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1 ANEXO II OS PARÂMETROS DO CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO NO PRÊMIO JABUTI DE 1999 A 2008 Luiz Gonzaga Marchezan UNESP, Araraquara/FAPESP A presente reflexão tem por objetivo analisar a disposição do ideário ficcional que perpassa os contos premiados e finalistas do Prêmio Jabuti no período de 1999 a 2008. São 33 obras premiadas∗, que compreendem um total de 610 contos, de 24 contistas. A pluralidade de motivos, valores e práticas literárias, que encontramos, pôde ser organizada, sem riscos de homogeneização, em conjuntos narrativos que configuram os parâmetros dos contos em pauta. Os conjuntos narrativos depreendidos exploram a cólera, o humor e a memória. Procuramos apreender aquilo que Bosi nomeia “a máscara estética possível para nossos dias” e a encontramos mesmo, como também prevê o estudioso, na oscilação ∗ Segue a relação anual das obras vencedoras e finalistas (a premiação ocorreu sempre no ano posterior à publicação). 1999: Charles Kiefer. Antologia pessoal. Mercado Aberto, 1998; Rubens Figueiredo. As palavras secretas. Cia. das Letras, 1998; João Inácio Oswald Padilha. Bolha de luzes. Cia. das Letras, 1998. 2000: Rubem Fonseca. Confraria das Espadas. Cia. das Letras, 1999; Raimundo Carrero. As sombrias ruínas. Iluminuras, 1999; Marçal Aquino. O amor e outros objetos pontiagudos. Geração Editorial, 1999; Ignácio Loyola Brandão. O homem que odiava a segunda-feira. Global, 1999; Menalton Braff. À sombra do cipreste. Palavra mágica, 1999. 2001: Lygia Fagundes Telles. Invenção e memória. Cia das Letras, 2000. 2002: Marçal Aquino. Faroestes. Ciência do Acidente, 2001; Rubem Fonseca. Secreções, excreções e desatinos. Campo das Letras, 2001. 2003: João Anzanello Carrascoza. Duas tardes. Boitempo, 2002; Lygia Fagundes Telles. Durante aquele estranho chá. Rocco, 2002; Rubem Fonseca. Pequenas criaturas. Cia. das Letras, 2002. 2004: Sérgio Sant´Anna. O vôo da madrugada. Cia. das Letras, 2003; José Roberto Torero. Pequenos amores. Objetiva, 2003; João Gilberto Noll. Mínimos, múltiplos, comuns. Francis, 2003. 2005: Paulo Henriques Britto. Paraísos artificiais. Cia. das Letras, 2004; Edgard Telles Ribeiro. Histórias mirabolantes de amores clandestinos. Record, 2004; Cíntia Masovitch. Arquitetura do arco-íris. Record, 2004. 2006: Marcelino Freire. Contos negreiros. Record, 2005; Silviano Santiago. Histórias mal contadas. Rocco, 2005; Mário Araújo. A hora extrema. 7 Letras, 2005. 2007: Rubens Figueiredo. Contos de Pedro. Cia. das Letras, 2006; Menalton Braff. A coleira no pescoço. Bertrand do Brasil, 2006; Charles Kiefer. Logo tu repousarás também. Record, 2006; Rubem Fonseca. Ela e outras mulheres. Cia. das Letras, 2006; Artur Oscar Lopes. A casa de minha vó e outros contos exóticos. Edições Inteligentes 2006; João Anzanello Carrascoza. O volume do silêncio. Cosac Naify, 2006; Autran Dourado. O senhor das horas. Rocco, 2006. 2008: 2008: Vera do Val. Histórias do Rio Negro. Martins Fontes, 2007; Jorge Eduardo Pinto Hausen. A Prenda de seu Damaso e Outros Contos. Alcance, 2007; Jaime Prado Gouvêa. Fichas de Vitrola. Record, 2007. 2 “entre o retrato fosco da brutalidade corrente e a sondagem mítica do mundo, da consciência ou da pura palavra” (1977, p.22). Na organização deste texto, consideramos as diretrizes do Prêmio Jabuti, que, não poderia ser diferente, orientam as candidaturas dos autores; apresentamos as bases teóricas que fundamentam o tratamento que fazemos das obras, em que destacamos os conceitos de conto de enredo e conto de atmosfera, bem como a noção de conjunto narrativo. Na sequência, dedicamos uma seção para cada um dos três conjuntos narrativos depreendidos, que, como já adiantamos acima, compõem o universo da cólera, do humor e da memória. O estudo se fecha com uma reflexão que busca, à guisa de conclusão, considerar a totalidade dos contos examinados. Antes das coordenadas, expostas acima, no entanto, optamos por fazer alguns registros iniciais, índices e notícias, sobre a leitura no Brasil e por examinar os paratextos publicados nos volumes dos contos – partes de um todo a ser considerado conforme o propósito central desta pesquisa. Segundo a 4ª. edição de Retratos da Leitura no Brasil (2016), o brasileiro lê, por ano, 4,96 livros. Desses, 3 foram indicados pela escola. O leitor brasileiro lê, em média, 1 livro (inteiro ou em parte) a cada 3 meses, conforme essa mesma estatística, que se mantém sem alterações nos últimos 12 anos e em que se observa também que muitos leitores não se lembram dos títulos lidos. No mesmo recenseamento constatamos que, entre estudantes e não estudantes, num rol de 2978 pesquisados, 22% leem contos. Por escolaridade, esses leitores de contos no ensino Fundamental I (1ª. a 5ª. série) são 22%; no Fundamental II (6ª. e 9ª série), 25%; no ensino Médio, 20% e no Superior, 20%. Por faixa etária, mantido o mesmo rol de consultados, o percentual de leitores de contos mostra-se da seguinte maneira: na faixa etária de 5 a 10 anos, é de 37%; de 11 a 13, 40%; de 14 a 17, 31%, de 18 a 24, 23%; de 25 a 29, 21%; de 30 a 39, 12%; de 40 a 49, 14%; de 50 a 59, 13% e de 70 para mais, 11%. Há que se notar que os contos finalistas e premiados não participam das categorias de livros mais vendidos em nenhuma das edições de Retratos de Leitura no Brasil, nem do elenco dos autores admirados ou conhecidos pelos leitores brasileiros. Pode-se detectar, em categorias diversas concorrentes ao Prêmio Jabuti, um movimento ascendente nos números de inscrições a partir de 2008, ano em que foi superior a 2000. De 2009 a 2016, as inscrições sempre ultrapassaram o número de 2200, chegando a 2867 em 2010. Seguindo a linha do tempo, em 2015, houve, no entanto, uma redução de 3 12,6% no faturamento das editoras, pior resultado desde 2002; e em 2016, de abril a maio, o mercado vendeu 31,6 % a menos do que no mesmo período de 2015. Dos 33 volumes em questão, nesta pesquisa, 31 encontram-se na 1ª. edição; os dois restantes Confraria das Espadas (1999)∗, de Rubem Fonseca, conta com 2ª. edição e À sombra do cipreste (1999), de Menalton Braff, soma seis edições. Algumas obras foram incluídas na lista de leitura de vestibulares nacionais: Paraísos artificiais (2004), de Paulo Henriques Britto, aparece na lista de três vestibulares; Durante aquele estranho chá (2002), na lista de dois; Pequenas criaturas (2002), de Rubem Fonseca, O vôo da madrugada (2003), de Sérgio Sant´Anna, e Contos negreiros (2005), de Marcelino Freire, na lista de um vestibular. Ainda conforme a 4ª. edição de Retratos da Leitura no Brasil, o Brasil experimenta o aumento da escolaridade média de sua população, ao mesmo tempo em que constata que apenas 1 em cada 4 brasileiros tem habilidade de leitura. Já a criança brasileira, na escola, mostra-se apta para a leitura aos 5 anos. A pesquisa também detecta que a população adulta, fora da escola, fora, portanto, da órbita de indicação escolar de livros, tem lido mais, por iniciativa e vontade própria. Esse interesse pela leitura, hoje, encontra-se associado à busca de conhecimento. Parece haver uma movimentação no público leitor, que passa a ler ao longo de toda a vida e em lugares e plataformas diversas, impulsionado pela televisão, pela internet, pelas redes sociais, etc. A pesquisa ainda indica que metade dos leitores brasileiros lê por empréstimo, a outra metade adquire seus livros e 30% afirmam nunca ter adquirido um volume. O assunto do livro, indicado em orelhas e prefácios dos volumes, é o grande motivador da escolha para a leitura ou compra da obra. PARATEXTOS: ORELHAS, PREFÁCIOS, POSFÁCIOS Dos 33 volumes estudados, 13 incluem orelhas assinadas por um crítico, exceto um deles cuja orelha é escrita pelo próprio autor; 19 contam com orelhas sem uma assinatura; e um único não conta com orelha, masinsere um prefácio assinado pelo contista em coautoria com um crítico. Observamos, ainda, que, além de orelhas, 15 volumes trazem prefácios ou posfácios, às vezes, mais de um posfácio. Lygia Fagundes ∗ Neste texto, identificaremos, sempre, a data da primeira publicação, conforme consta da nota anterior. 4 Telles, em Durante aquele estranho chá (2002), faz nota introdutória para o seu livro e dois críticos os posfácios. O assunto das orelhas assinadas dirige-se a um público leitor. A título de explicação, faremos um comentário acerca da disposição dos textos de orelhas e prefácios dos volumes que receberam mais de uma edição, e também daqueles escolhidos como leituras obrigatórias de exames vestibulares. Confraria das Espadas (1999), de Rubem Fonseca, na 2ª. edição, conta com um texto anônimo como orelha, e traz, ao final do volume, notas biográficas sobre o autor e mais dois textos, um de Sérgio Augusto, “Prazer & Morte”, e outro de Malcom Silverman, “Resenha”. Seguindo o estudo de Silviano Santiago sobre a obra de Rubem Fonseca, Sérgio Augusto inclui Confraria das Espadas na terceira fase do autor, momento em que substitui argumentos calcados na racionalidade, por outros, calcados no “delicioso, injurioso, luxurioso e libidinoso nonsense” (AUGUSTO, 2014, p. 142). Para Sérgio Augusto, o livro afasta-se de quaisquer traços da dignidade humana, e mostra o homem em situações de “prazer e morte” (AUGUSTO, 2014, p. 143). Malcom Silverman, por sua vez, considera a obra em questão como as anteriores, sem diferenciá- la das demais: trata-se de “um cosmos enlouquecidamente ficcional refletido numa disfunção sociossexual (...) [em que] persiste, aí, a natureza patológica das relações sociais” (SILVERMAN, 2014, p.149). As notas biográficas finais localizam, no tempo do autor, sua opção por uma “literatura noir, pop, brutalista e sutil”; suas leituras desde a adolescência, assim como a trajetória de vida e de trabalho em várias de suas ocupações. À sombra do cipreste (1999), de Menalton Braff, encontra-se na 6ª. edição. O volume da 1ª. à 5ª. edição contou com orelha de Moacyr Scliar, um texto bem humorado, inteligente, em que afirma o valor da forma literária do conto, sua popularidade, para destacar do contista Menalton seu domínio da narrativa breve, situando-o como notável ficcionista, que faz o conto na sua melhor expressão: uma narrativa curta, intensa, voltada para situações limites diante de assuntos essenciais da existência. A 6ª. edição do livro, publicado por uma nova editora, retoma, entre aspas, o comentário do escritor e crítico gaúcho, acrescentando, ainda na orelha, uma biografia de Menalton. Paraísos artificiais (2004) é anunciado aos “leitores brasileiros” numa orelha apresentada pela editora, que destaca a estréia do autor na ficção, numa “prosa precisa e 5 flexível” sobre “situações extremas” apresentadas, por meio de “narradores e personagens firmes” (HENRIQUES BRITTO, 2004). Durante aquele estranho chá (2002) tem também orelha apresentada pela editora, seguida de nota da autora e, no final do volume, impressões de leitura de Nelly Novaes Coelho, Ricardo Ramos, posfácio de Alberto Costa e Silva e uma apresentação da obra, da sua primeira edição, por Suênio Campos de Lucena, seguida, ainda, de reapresentação da autora pela editora. No texto da orelha, a editora destaca o conto que intitula o volume, apresentando-o como resultado de um encontro, nos idos de 1944, numa confeitaria paulistana, entre a então jovem autora e o já consagrado Mário de Andrade. Comenta, depois, os demais assuntos do volume, acentuando o traço forte do memorialismo presente nos textos de Lygia Fagundes Telles, ao lado do ficcionalismo instalados em suas recordações. A nota da autora, por sua vez, quer dar uma “satisfação ao leitor” (FAGUNDES TELLES, 2010, p.7): dizer-lhe que, com exceção de “três crônicas” que havia escrito, das quais ainda chegou “a cortar uma delas” (CAMPOS DE LUCENA, 2010, p.155), o volume é, todo ele, produto de uma reunião de textos realizada por Suênio Campos de Lucena, que, tendo sua obra como corpus de estudo, defendera tese de doutorado no ano de 2002. Nelly Novaes Coelho assina o primeiro de dois depoimentos reunidos e destaca, em suas impressões de leitura, a maneira com a autora “fixa a matéria indecisa da vida” (NOVAES COELHO, 2010, p.144), no segundo depoimento, Ricardo Ramos, localiza para o leitor “uma atmosfera peculiar, figuras de perfil bem nítido e um largo espectro de temas e enredos, com o maior rigor formal, da linguagem à estrutura da narrativa” (RAMOS, 2010, p.145). O posfácio de Alberto da Costa e Silva, “Conto e memória”, de início, convida o leitor para que o “acompanhe na impressão de que acabou de ler uma coletânea de contos, ainda que a autora não lhe dê esse nome”, e pondera: “nem tudo que não recebe o nome de conto deixa de ser conto” (COSTA E SILVA, 2010, p.148). Quis o crítico, com isso, destacar do texto da autora seu domínio nos argumentos, sua imaginação e astúcia, uma vez que “ela escreve como se narrasse oralmente uma história, sem desprezar os olhos de quem, lendo, a ouve”, para concluir que “descreve a vida como ficcionista” (COSTA E SILVA, 2010, p.149). Suênio Campos de Lucena, autor da ideia da organização da obra em questão, apresenta-a ao leitor: durante anos fui reunindo e ordenando o material que ficou fora dos livros da escritora para compor meu trabalho de pós- 6 graduação. Nesse esforço de tentar juntar as peças como num jogo de encaixe, fui descobrindo a produção de Lygia Fagundes Telles ainda desconhecida do público. Ou melhor, que ainda está dispersa na efemeridade das revistas e dos jornais (CAMPOS DE LUCENA, 2010, p. 155). E continua: o propósito deste livro é auxiliar o leitor nos labirintos dessa escrita. Suprir lacunas com minhas sugestões e indicações que, devo confessar, foram nascendo do convívio com a escritora. E, principalmente, da devoção deste estudioso em face dessa obra (CAMPOS DE LUCENA, 2010, p.155). Suênio concluiu para o leitor: “diante de seus romances e contos, algumas vezes expressos de forma direta e até clara, é preciso que o leitor levante a pele dessas palavras. Sob a pele está a face oculta do sentido mais profundo” (CAMPOS DE LUCENA, 2010, p.155). A seguir, a autora é nova e completamente reapresentada pela editora. Pequenas criaturas (2002), de Rubem Fonseca, traz orelha e, como posfácios, duas resenhas; a primeira de Marcelo Pen e a segunda de Sérgio Augusto, além da mesma apresentação mais alentada do autor já presente nas páginas finais do volume Confraria das espadas (1999). Os textos voltam-se para uma explicação ao leitor acerca dos contos arrebatadores de Pequenas criaturas. Conforme as observações da orelha do volume, são enredos concisos, em torno do “dia a dia de homens e mulheres sem importância, com ocupações triviais”, vivendo um “cotidiano prosaico”, em suas “fraquezas, mesquinharias” (FONSECA, 2011). Marcelo Pen (2011), em “Fonseca volta com lucidez que cega”, destaca os “juízos dogmáticos” das personagens, homens e mulheres que “tem algo a dizer da vida”, embora “arrogantes, intolerantes e, invariavelmente, limitados”. Sérgio Augusto (2011), com “Miudezas”, continua por classificar as pequenas criaturas de Rubem Fonseca, em “pequenas histórias” e em seus “pequenos dilemas, pequenos defeitos”, ao lado de seus “temores, ambições”, algo, segundo ele, que seduz o leitor. O vôo da madrugada (2003), de Sérgio Sant´Anna, promove, em sua orelha, mediante as experimentações formais do autor, uma aproximação com o leitor motivada pelos contos de situações absurdas e especulações das personagens na presença da 7 morte, do desespero, da solidão; o que, metaforicamente, expressa o título do volume: uma imersão doleitor num vôo extra, enigmático, entre Boa Vista e São Paulo. A edição de Contos negreiros (2005), ao gosto do autor, Marcelino Freire, acrescenta no término do volume uma epígrafe, dedicatórias e notas voltadas para a vida literária do contista. O PRÊMIO JABUTI E SEUS QUESITOS Os quesitos para concorrer ao Prêmio Jabuti na Categoria Conto e Crônica dirigem-se ao autor, tendo-o, precisamente, como um leitor de ficção e conhecedor da natureza textual do conto e da crônica. Autor e editora, seguidos os quesitos formais, em comum acordo, inscrevem um volume editado no ano para concorrer ao Prêmio Jabuti do ano seguinte. A Categoria Contos e Crônica, em 1999, recebeu, para concorrer ao Jabuti, 63 inscrições; em 2000, 66; 2001 contou com 78; 107, em 2002; 116 em 2003; 178, em 2004; 145, em 2005; 139, em 2006; 133, em 2007 e 128 em 2008. Somente em 2010, com 165 inscrições, os números ficaram próximos aos das inscrições de 2004; no entanto, entre 2008 e 2016, sempre se mantiveram com três dígitos. Uma editora toma cuidados comerciais para a publicação de um livro: aproxima seus autores de leitores e procura fazer do leitor um cliente seu. Editar contos finalistas e vencedores do Jabuti é converter uma edição em referência nacional para a narrativa do conto. Os contos inscritos são selecionados por um corpo profissional de leitores, em duas etapas, em que são classificados como finalistas e, depois, vencedores, conforme quesitos que seus autores cumpriram para a elaboração dos contos literários. Os primeiros leitores dos contos premiados são, assim, seletos; os prêmios, assertivos, com critérios determinados pela Câmara Brasileira do Livro para o seu corpo de leitores. Editoras e Prêmio Jabuti, dessa maneira, criam juntos um fato literário. O Guia Jabuti (2016) faz duas exigências para julgar um volume de contos: que contenha “narrativas curtas ficcionais” e “técnica narrativa, originalidade e estilo”. O CONTO E A “TÉCNICA NARRATIVA” 8 O modo de contar o conto, seu estilo e originalidade prevendo técnicas narrativas para sua forma literária são determinações da época moderna, em que autores também liam prefácios e autor e leitor entendiam-se por meio deles. As duas “técnicas narrativas” que compõem o conto de enredo e o conto de atmosfera mostraram-se operacionais na leitura e no exame do material contístico, propostos nesta pesquisa. Retomemos um modo de entendê-las. “A filosofia da composição”, de 1845, de Edgar Allan Poe (1987), ao fixar o encadeamento das sequências do conto literário em uma única ação narrada, coesa, aponta-nos o seu entendimento de unidade narrada fixado no curso de dois outros pontos de vista: o de Aristóteles, na Poética, de 335ac/323ac, e o de Honoré de Balzac (1959), discutido no “Prefácio da Condição Humana”, de 1842. Uma unidade de ação, para Aristóteles, apresenta-se una, inteira e completa. No “Prefácio à Comédia Humana”, Balzac considerou o termo unidade como “unidade de composição”: “a unidade de composição já preocupou, sob outros termos, os maiores espíritos dos dois séculos precedentes” (1959, p.10). A ideia de unidade composicional de Balzac pressupõe sua poética, uma poética da observação, que procura agrupar, constituir, relacionar, em unidades, tipos de camadas sociais, retiradas de conjuntos sociais diversos. O tom da poética de Balzac é o de uma observação minuciosa do tecido social de sua época. Poe, a partir de 1840, já escreve, ao mesmo tempo em que compõe “O Corvo”, uma filosofia de composição, propondo-se a qualificar a composição de sua poética de maneira econômica, a fim de que o leitor tenha visibilidade, por meio de uma unidade essencial de leitura, de um efeito de leitura resultante do espetáculo promovido pelo texto literário. Trata-se de uma poética do ver, em que o leitor, no curso de uma narrativa breve, numa circunscrição fechada do espaço narrado, nota o tom introspectivo, melancólico, misterioso, de um acontecimento literário, composto com originalidade, perfeição, arrebatamento. Balzac afirma no Prefácio: O acaso é o maior romancista do mundo; para ser-se fecundo basta estudá-lo. A sociedade francesa ia ser o historiador, eu nada mais seria do que seu secretário. Ao fazer o inventário dos vícios e das virtudes, ao reunir os principais fatos das paixões, ao pintar os caracteres, ao escolher os acontecimentos mais relevantes da sociedade, ao compor os tipos pela reunião dos traços de múltiplos caracteres homogêneos, poderia, talvez, alcançar escrever a 9 história esquecida por tantos historiadores, a dos costumes (BALZAC, 1959, p.14). Para Edgar Allan Poe, a composição de uma obra não se dá de forma casual. A fim de que a história se dê com brevidade e, ao lado disso, com intensidade, a narrativa de Poe obedece a uma coesão interna lavrada por uma organização combinada entre incidentes que melhor trabalhem a construção de um efeito, circunscrito a uma unidade de efeito verbal, lugar de beleza, para o autor. As disposições dos textos “Prefácio à Comédia Humana” e “A filosofia da composição” voltam-se, portanto, para as poéticas de Balzac e Poe, centradas, conforme o primeiro, na construção de unidades narrativas que compõem, para o universo ficcional, observações de tipos sociais da sociedade francesa do século XIX; já o segundo se mostra, de olho no mesmo século, concentrado, de forma cerebrina, na visão de tipos humanos excêntricos, estranhos, ególatras, apartados da vida social. “A filosofia da composição”, de Poe, tem, para sua obra, a partir da descrição do poema “O corvo”, a mesma função do “Prefácio à Comédia Humana” para a obra de Balzac, conforme o autor francês: “assinalar a sua ideia diretriz, contar-lhe a origem, explicar sucintamente o plano seguido”. (BALZAC, 1959, p.50). As ideias do autor francês envolvidas com definições de tipos, relações, correspondências entre traços, unidades, avolumaram-se entre suas considerações acerca da ciência, advindas de suas leituras das Ciências Naturais e, depois, convertidas como medidas para representações ficcionais de tipos sociais, estratificados numa grandeza disposta em unidades como estratos do todo social. Balzac e coetâneos, em suas leituras das Ciências Naturais, e a partir delas, consideraram bastante as ideias de unidade de composição. Paulo Rónai orientou, desde 1946, para a Editora Globo de Porto Alegre, a tradução, impressão, reimpressão e novas edições da Comédia Humana. Ao lado dessas tarefas, fez-se autor de uma Nota que acompanha todas as edições da obra traduzida e em que comenta o Prefácio à Comédia Humana, escrito por Balzac. Nela, lembra-nos das intenções do autor, a partir de 1833, executadas em 1842, em prefaciar a obra com a finalidade de direcionar seus 88 volumes que encerram “dois a três mil tipos” (RÓNAI, 1959, p.3), e, assim, situar o leitor diante do seu propósito ficcional: “assinalar a sua ideia diretriz, contar-lhe a origem, explicar sucintamente o plano seguido” (BALZAC, 1959, p.9). 10 Em sua “Nota”, Rónai também destaca a unidade de composição formulada por Balzac, a que já fizemos menção. Para ele, “o ‘Prefácio à Comédia Humana’ constitui um documento literário da maior importância. Nele vemos o artista medir e reconhecer o alcance de sua obra, salientar-lhe a unidade essencial e apontar as suas diretrizes” (1959, p.3). Rónai reafirma Balzac como um leitor dos cientistas naturalistas da época, lembrando-nos do modo como o ficcionista francês, no “Prefácio à Comédia Humana”, num exercício movido por constantes analogias, aproxima as ciências sociais das naturais, para refletir sobre a sociedade humana, fazendo um paralelo entre as forças transformadoras que promove no interior das relações entre classes sociais e as forças vivas da natureza (RÓNAI, 1959, p.11). Noutra ocasião, no artigo “Balzac e nós”, reiteraque o protagonista de Balzac “é um ser múltiplo, definível por suas relações sociais” (RÓNAI, 1990, p.147); afirmando que: “Balzac tinha a sua teoria sobre a correspondência entre os traços físicos e os morais, adotando a respeito as teses de alguns cientistas” (RÓNAI, 1990, p.150). Balzac considera o modo como os cientistas naturalistas, citados em seu “Prefácio, estudaram o encaixe de todos os seres vivos numa única cadeia viva. E assim, mais uma vez, conclui seus exercícios com raciocínios analógicos: “há situações que se apresentam em todas as existências, fases típicas, e foi isso uma das exatidões que eu mais busquei” (BALZAC 1959, p.20). Percebemos, assim, que o termo unidade, como medida de uma grandeza, encontra-se em Aristóteles, nos cientistas naturalistas, em Balzac, em Poe, e é reiterada por Rónai ao comentar a obra de Balzac, assim como, por Baudelaire, ao aproximar o idealismo de Balzac ao de Poe: há nos dois “uma aspiração arrebatadora para a unidade” (BAUDELAIRE, 1987, p.18). Edgar Allan Poe, leitor de Honoré de Balzac, tanto leu do autor francês “O Prefácio à Comédia Humana”, como a novela A obra-prima ignorada, de 1832; leituras que lhe possibilitaram realizar um exercício aplicado para a construção do seu modo de compor o conto. Inspirado nessa novela – composta de duas unidades –, Poe compõe a unidade de seu conto “O retrato oval”, de 1842, em que, diferentemente da personagem Gillette de Balzac, uma modelo falante, que se insurge contra os pintores Porbus, Poussin e Frenhofer, dado o modo como foi por eles desprezada, sua modelo é apenas contemplada na sua beleza pelo pintor, ambos solitários, num só ambiente. Em “De marginalia”, seu texto seguinte, mas sem data, Poe assentaria, mais uma vez, sua opção pela prosa contística, ao observar, na forma da novela, exatamente o que desconsiderou da leitura de A obra-prima ignorada para a fatura de “O retrato 11 oval”: o papel falante da modelo, o incidente que compõe o segundo movimento da narrativa de Balzac, seu enovelamento: “no gênero literário chamado ‘novela’ não falta espaço para desenvolver os caracteres, ou para acumular os incidentes variados” (POE, 1987, p. 185). O modo como Poe busca por uma única unidade de efeito, dentro de uma circunscrição fechada no espaço, de forma coesa, impede-o de “desenvolver caracteres” ou “acumular incidentes variados”. Assim, como anunciamos acima, em “O retrato oval”, Poe inspira-se na novela de Balzac, reduzindo sua dupla situação narrada a uma unidade: um viajante, com seu criado, abriga-se em um castelo abandonado, onde descobre uma “obra ignorada”, um retrato ovalado e também um relato anônimo de toda a produção do retrato, a relação do pintor e sua modelo. Como já dissemos, Poe não desenvolve a segunda unidade de ação da narrativa de Balzac, própria da forma literária da novela: o embate entre a modelo, Gillette e os pintores. Pintor e modelo, no conto do autor neorromântico norte-americano, são amantes e vivem conforme o Romantismo, um amor fatal, sem diferenças. Na novela e no conto, a representação de dois rostos femininos, calcados nas faces de duas modelos, são obras desconhecidas, ignoradas, até que descobertas; a primeira, por gestão de outros dois pintores junto ao autor, que a mantivera em segredo, e a segunda pelo viajante desconhecido, que lê, no local em que se abrigara, o relato anônimo. A novela de Balzac dá-se por meio de diálogos mediados por um narrador, entre três pintores e uma modelo, numa conversação em torno de concepções da arte da pintura e de conhecimentos artísticos de três dos pintores – Porbus, o mestre, Poussin, o jovem pintor, e o pintor da obra-prima ignorada, Frenhofer. A modelo, Gillette, num segundo movimento da narrativa, terá papel efetivo no desenlace da novela. A narrativa de Poe traz duas personagens – o viajante, narrador e protagonista, e seu criado, Pedro, único nomeado, além da presença indireta das duas personagens do relato lido pelo viajante e da pintura: o pintor e sua modelo e amante. A modelo de Balzac tem voz, autoestima, argumenta com os pintores e ocupa a segunda unidade da narrativa, seu epílogo; das personagens de Poe somente o narrador e protagonista tem voz, o que possibilita deduzir a atitude sempre silenciosa da modelo, durante a pintura de seu retrato. Percebemos, assim, que a questão da originalidade, estabelecida pelo Romantismo, não compõe, de forma tão decisiva, as obsessões de Edgar Allan Poe para com sua narrativa: o assunto do texto original de Balzac regula o do texto repetido, 12 emulado por Poe, afirmando-o em suas semelhanças, e diferindo dele exatamente na desconsideração da segunda unidade da novela do prosador francês, o que é realizado ao se somar, na figura de um duplo, duas personagens numa só identidade, numa só paixão, sem diferenças, voltada, como uma unidade de efeito, para a beleza, no tom melancólico, buscado pelo contista norte-americano para a representação da morte da mulher retratada. De maneira obsessiva, o pintor busca o rosto modelar, e este transita entre a vida e a morte da modelo e amante. Quanto à recepção dos quadros, Balzac, realista, revela o mistério da obra-prima ignorada mostrando-a, algo que o Poe, romântico, em parte, também faz. Mostra-a na história de sua composição, mantendo em segredo suas personagens, de almas românticas, singulares, e, por isso, ignoradas. Temos, assim, assentada a narrativa do conto de enredo, que, pelo tento de Edgar Allan Poe, passa a ser caracterizada pela diferença entre a situação inicial e a situação final da narrativa. Já o conto de atmosfera será destacado pela igualdade entre a situação inicial e a situação final da narrativa. A narrativa do conto de enredo mostra-se, preponderantemente, descontínua; a do conto de atmosfera, preponderantemente, contínua, circular. A ênfase do conto de enredo transita entre sequências e reside, fundamentalmente, no desenlace. O conto de atmosfera fixa-se num estado, no ambiente de uma ação, que não evolui para um desenlace, até porque, nela, o nó excede a diegese. A versão do conto de atmosfera de Anton Pavlovitch Tchékhov, encontrada em seu epistolário, rompe a estrutura do conto de desenlace montada por E. A. Poe, alterando-lhe, assim, sua unidade de efeito, mantendo, no entanto, sua brevidade, sua circunscrição espacial, seu tom melancólico. Para isso, promove uma proximidade entre as sequências narradas, sem mediação, dissolvendo a diferença entre o início e o final da narrativa. O objetivo do contista russo é dissolver, na sua narrativa, o princípio da causalidade, diluindo contrastes e diferenças entre sequências, neutralizando-os para evitar o desenlace. Tchékhov instala, desse modo, uma atmosfera em sua narrativa, cujo término acontece fora da cena da narrativa, com a reflexão do leitor. Sabemos que tanto E.A.Poe, como A.P.Tchékhov, escritores do seu tempo, preocupam-se com o prazer do leitor; ambos voltam-se, com objetividade, para o entendimento da natureza humana; o primeiro, para a percepção da inteligência, seu poder de imaginação, para a realização das vontades, tanto do bom homem, como do mau; diferentemente, o segundo, para o pequeno feito bom ou mau dos homens, que, mesmo pequeno, sensibiliza, toca a intimidade. 13 O perímetro de pertinência dos contos que são objeto de reflexão desta pesquisa pode ser traçado pelo conto de enredo e de atmosfera, conforme procuramos delimitar acima. OS CONTOS E SEUS CONJUNTOS NARRATIVOS Delineada a situação da leitura do conto no Brasil, e estabelecida a tipologia que distingue o conto de enredo e o conto de atmosfera, que fundamenta o tratamento, aqui proposto, para as obras premiadas pelo Prêmio Jabuti, passamos, neste item, a indicar as principais ideias matrizes de conjuntos narrativos dominantes nos contos. Com o estabelecimentode conjuntos narrativos, seus traços contextuais invariantes e suas medidas textuais, autorais, queremos observar, nos argumentos dos contos, os principais núcleos figurativos, os diferentes ânimos e as ideias que motivam. Nesse caminho de investigação, destacamos estratégias narrativas diferentes: a que traça o tema da cólera, a que compõe o humor e a que dispõe o tema da memória. São traços dominantes que nos permitem identificar, com critérios representativos, as constantes compostas pelo imaginário literário que permeia o corpus inventariado. Os contos estudados distribuem-se, portanto, nos três conjuntos narrativos: o encolerizado, o humorado e o memorialista. No primeiro grupo, estão cinco contistas – Rubem Fonseca, Sérgio Sant´Anna, Marçal Aquino, Marcelino Freire e Raimundo Carrero –; no segundo, incluem-se três – Ignácio de Loyola Brandão, José Roberto Torero e Paulo Henriques Britto – e, no terceiro, estão dezesseis autores – João Anzanello Carrascoza, Mário Araújo, Lygia Fagundes Telles, Cíntia Moscovich, Silviano Santiago, Autran Dourado, Menalton Braff, Artur O. Lopes, Charles Kiefer, Jaime Prado Gouvêa, Jorge Hausen, Vera do Val, João Inácio Padilha, Rubens Figueiredo, João Gilberto Noll e Edgard Telles Ribeiro. A seguir, buscamos identificar e comentar os conjuntos narrativos das obras, destacando pelo menos um conto de cada volume laureado. 1. A CÓLERA 14 O primeiro deles, que envolve um conjunto de traços contextuais, invariantes, voltados ao tema da cólera, está presente em cinco autores, de modo por vezes convergente, por vezes divergente. Hildete é personagem de conto homônimo do volume Pequenas criaturas (2002), de Rubem Fonseca. Tem nome e perfil inventados e moldados por equipe televisiva, formada por homens e mulheres e voltada para a encenação de uma história em que a personagem vive uma trajetória de superação e redenção de tragédias pessoais: espancada ainda bebê, molestada sexualmente, passa pela mendicância, por gravidez aos quinze anos, seguida de aborto e prostituição. Tudo se encaminha com o propósito de possibilitar-lhe, ao final, na forma de um espetáculo televisivo, o resgate de sua identidade. O conto é narrado por meio de um fluxo intenso de pensamentos múltiplos, em primeira pessoa, de forma objetiva, com impressões, diálogos sucessivos, advindos de sugestões da equipe, com juízos mínimos, clichês, embora a personagem, radicalmente, não os aceite no seu espírito e miséria humana. Temos, assim, a reversão de um desenlace inicialmente encaminhado, previsível, por outro, inesperado, com comportamentos que homologam a rotinização da violência urbana, com ações embrutecidas, oriundas de contextos à margem da vida social civilizada, recorrentemente espetacularizados pela mídia. Desse modo, Rubem Fonseca transfigura tais substratos em motivos literários; combina-os, seleciona-os, por meio de um conjunto de fios narrativos, que constitui, para o seu conto, medidas ajustadas para enredos com desenlaces tanto reversivos, como consecutivos. “Belos dentes e bom coração”, do volume Secreções, Excreções, Desatinos (2001), do mesmo Rubem Fonseca, mostra-se também narrado objetivamente, em primeira pessoa e por meio de um narrador enfático, protagonista, um investigador particular, contratado por um marido para a apuração de conflito amoroso: o marido sente-se traído pela mulher e solicita ao detetive uma averiguação. A evolução do conflito, novamente, não envolve uma situação dividida entre causa e efeito; há uma bem humorada reversão da causalidade: o investigador constata que o caso entre a mulher e seu amante está para terminar naturalmente e, assim, suspende o serviço contratado, revertendo, mais uma vez, como no conto anterior, um desenlace previsto. Sensibilizado, desde o início, pelas lágrimas frequentes da mulher, faz-se tanto cúmplice 15 da traidora como manipulador do caso junto ao marido traído, em participação ativa no desenrolar dos fatos, anulando-os, sem ser reconhecido por ambos os lados. Rubem Fonseca, portanto, trabalha sua narrativa por meio de disposições simétricas: com reversões humoradas da causalidade, como vimos nos dois contos acima, e, outras vezes, com disposições opostas, por meio de um desenlace consecutivo e cruel. Conforme já observamos: as personagens de Rubem Fonseca não são livres, são sozinhas; a sua liberdade é física, o que leva sua autonomia pessoal ao extremo (...) O seu individualismo extrapola as regras da convivência humana. Desse modo, a narrativa de Rubem Fonseca aproxima, de modo frontal, o leitor de uma combinação de acontecimentos narrados sem motivos intermediários; são contínuos e sempre distorcidos, estranhos (...) (MARCHEZAN, 2008, p.367). Em Elas e outras mulheres (2006): (...) nos seus vinte e sete contos, as personagens são movidas por estímulos que não despertam afinidades, relações de afeto e, dessa maneira, naturalizam um comportamento truculento na maneira como, libertas da afetividade, elas atribuem sentido ao que bem entendem diante do que fazem (MARCHEZAN, 2008, p.366). Tais circunstâncias estão presentes, por exemplo, no conto “Belinha”, de Elas e outras mulheres (2006), que reúne um matador e sua namorada, de 18 anos, a Belinha, da classe alta, que contrata o namorado para matar o pai. Contrariado em seus valores diante de tal pedido, o matador assassina friamente a namorada. Em circunstâncias semelhantes, Confraria das espadas (1999), conto que também dá título a volume, traz Renata, jovem, bela e cúmplice dos crimes de um namorado matador, disfarçado de corretor de seguros que, por encomenda, assassina friamente um paraplégico, também do mundo do crime. Sérgio Sant´Anna, no volume O vôo da madrugada (2003), transita, como Rubem Fonseca, por uma narrativa que procura soluções imaginárias infinitas, calcadas em resíduos de imagens e em comportamentos que, como dissemos, homologam a rotinização da violência da vida urbana, tão espetacularizada pela mídia. Em um dos contos desse livro, “O embrulho da carne”, Teresa vive um surto psicótico: mostra-se transtornada e obsessiva. Tem ideias fixas advindas de um cenário de horror, de 16 homicídio, lido em notícia de uma folha de jornal, que embrulhava carne comprada por ela. Tal situação transforma-se a partir de uma consulta psiquiátrica; o humor que envolve sua terapia com Elias, o terapeuta, desfigura sua psicose. A obsessão de Teresa, brutal, desfaz-se, revertendo sua crise para um cenário de humor. Teresa, de início, apresenta-se em conflito profundo com sua identidade, dividida, insegura, enlouquecida diante da notícia que lera e que a coloca alucinada mediante vivências recentes com acidente de carro, sexo, indignação e rejeição. No transcurso da terapia, Teresa mostra- se uma psicótica com senso de humor diante do terapeuta paciencioso. No caso, uma disposição insólita que a narrativa deu para o texto do conto. Tal narrativa, como Teresa, divide-se, reverte-se, passando a jogar com as inconstâncias dos transtornos da personagem e, quando esta, aos poucos, começa a se situar melhor no mundo, também com suas constâncias. O narrador é observador e nos faz ver Teresa representando um duplo, a teatralização do duplo, entre momentos de indecisão e os últimos, decididos, com gestos, opiniões e atitudes humoradas. O humor alimenta a ironia e, com isso, faz Teresa e Elias, paciente e terapeuta, rirem de si mesmos, diante de notícias, fatos, do mundo dos dois. O conto de Sérgio Santa´Anna, como o do primeiro Rubem Fonseca, conta-nos, dentro de um mesmo contexto, histórias humoradas, bem elaboradas, a partir de eventos insólitos. Os humores, reiterada e explicitamente, alimentam-se do desvario, do disparate, da loucura – comportamentos estes que são discutidos e refletidos. Diferentemente de Teresa, a personagem Hildete, de RubemFonseca, já mencionada, não se identifica com a história que lhe é contada. O conto de Sant´Anna foi inspirado numa notícia de jornal; o de Fonseca traz caricaturas de programas de auditório televisivos, calcados em valores da cultura de massa. Neste conto, como dissemos, há uma reversão na questão da causalidade, que se anula, dada a maneira como a protagonista não se deixa manipular pela equipe de produção; em “O embrulho da carne” há, também a partir da protagonista, uma reversão na questão da causalidade, de forma espaçada, diante dos vários tons assumidos pelo humor mediador entre paciente e terapeuta. Hildete e Teresa apresentam-se, a seu modo, vítimas da sociedade de espetáculo. Hildete, como toda personagem de Fonseca, sozinha, corajosa, mostra-se decidida; Teresa titubeia, no entanto, aprende com a vida, principalmente, a rir de si mesma. Quando a causalidade desaparece, já afirmou Tomachevski (1973), surge o tempo, que, no caso em discussão, é alegorizado. Alegorias de vivências em tempos 17 brutos, teatralizados às vezes com humor e às vezes sem. O bestial transparecerá, em Fonseca, numa voz em primeira pessoa, surpreendentemente objetiva, que traduz o assunto invariante da voz autoral: a cólera expressa num dado contexto social. Sant´Anna prefere um narrador em terceira pessoa, que, como no caso em pauta, observa Teresa, Elias e as circunstâncias vividas por eles. Temos, nas obras dos dois autores, gestos diferentes, porque expressões de conteúdos psíquicos diferentes, incorporados por Hildete e Teresa, com emoções, reações e significações diferentes. Ao lado de Rubem Fonseca e Sérgio Sant´Anna, Marcelino Freire e Marçal Aquino filiam-se a uma tendência ou temática de fortes relações com o presente histórico, relativo a aspectos da violência urbana, espetacularizados pela mídia. Contos negreiros (2005), de Marcelino Freire, lembra-nos cantos alternados, dramáticos, entoando embates que presentificam a violência urbana em grandes cidades, com mortes entre insurgentes e polícia. Tais cantos mostram-nos indivíduos saídos do mesmo extrato social, com destinos iguais e práticas diferentes, divididos na construção da sua identidade, opção de vida, que, no entanto, em atitudes trágicas, se encontram lado a lado diante do excesso constantemente vivido. Contados por um narrador, também protagonista e observador da história, num tom oral, que distancia a mensagem narrativa de um registro literário já assentado, mas, mesmo assim, homologado pela experiência do leitor, os contos levam a exacerbação de um modo novo de narrar o ficcional aos excedentes de sentido dos retratos violentos da vida urbana. Em “Polícia e ladrão”, o canto de número 12 da obra, temos sempre alguém desejando entender a pobreza de suas experiências, a sua miséria humana, como um vivente anônimo, diante de um vazio e à deriva. A construção literária também sinaliza a representação de uma situação em que seus protagonistas revelam-se pobres em experiências, sem terem o que compartilhar. São errantes, não sabem bem o que sabem ou o que querem, e transitam entre poucas experiências de vida e de espírito. O conto de Marçal Aquino, também em primeira pessoa, com protagonista e narrador observador, movimenta, por meio de diálogos sucessivos, objetivos, uma ação narrada em duas sequências. Com a primeira, como nos contos “Partilha I” e “Partilha II”, de O amor e outros objetos pontiagudos (1999), expõe a trajetória de um ex- presidiário, uma vez em liberdade, enfrentando, no sombrio mundo do crime, valores civilizatórios de lealdade, retidão, amizade, numa ironia que se aprofunda ainda mais dada a forma elíptica como, paralelamente, a segunda sequência do conto é 18 movimentada, secretamente, para a composição de um desenlace surpreendente que retoma a vida do protagonista a partir de sua estada na prisão. Para isso, nos segredos da segunda sequência, Marçal Aquino dissolve, novamente de forma irônica, as marcas da cólera no interior das forças que ordenam o crime, revertendo uma situação de eventual enfrentamento, com ações que, no universo do crime, se ajustam, se associam, transitando de uma situação de tensão para outra distensa, ao retomar, o período anterior à reclusão do assaltante protagonista, então, comandante de bando armado para assaltos. A maneira como Marçal Aquino conta seu conto, por meio da reversibilidade entre sequências narrativas, homologa a composição e recomposição entre forças policiais e mandantes no universo do crime. “Balaio”, conto de Faroeste (2001), mostra-nos, por meio da mesma composição narrativa de “Partilha I” e “Partilha II”, no idêntico cenário de um bar, seu proprietário, cúmplice de crimes entre bandos rivais, e a chegada da polícia para uma investigação, na iminência de uma desavença armada entre marginais de bandos rivais. Os policiais procuram por um criminoso, Tiãozinho, tanto cúmplice como desafeto dos dois bandos, e motivo da contenda entre eles. Nessas circunstâncias, e sem que nenhuma das forças, interessadas na sua captura, troquem informações mínimas sobre ele, Tiãozinho, ironicamente, escapará ileso das três forças que o procuram. Os contos dos quatro autores, até aqui comentados, expõem, de forma repetida, relações com o presente histórico, no modo como trabalham a realidade urbana, os excessos do universo do crime, e sua espetacularização. O envolvimento de Raimundo Carrero com a questão da cólera, longe das coordenadas do tempo histórico, advém de um puritanismo doentio das personagens, de um pensamento que, morbidamente, divide os insanos entre o afeto e o crime, o delírio, próprio da insanidade, e a razão. No conto “Entre o sangue e a inocência”, de As sombrias ruínas da alma (1999), o autor trabalha com os perversos, em fios narrativos de memórias em que o narrador- personagem vive uma identidade dupla: de um lado, pai e marido carinhoso, de outro, um insano, dono de um comportamento desesperado de perversão sádica, que promove assassinatos de mulheres e maus-tratos à esposa. Com tal identidade, o protagonista reflete sobre a própria perversão, secundado pela esposa, que se deixa perverter. Juntos, vivem situações criminosas e, docilmente, também cuidam da filha, alheia aos fatos. O conto compõe um tríptico, um conjunto de três relatos enredados: o da filha, que, inocente, desconhece os crimes, o do pai e o da mãe, em que ambos expõem seus duplos. 19 2. O HUMOR O homem que odiava a segunda-feira (1999), de Ignácio de Loyola Brandão, obedece a uma disposição do autor afirmada também no conto homônimo: “o real é tão imaginário que o falso retorna verdadeiro” (LOYOLA BRANDÃO, 1999, p. 67). Nada mais verdadeiro que a verdade nacional de que o brasileiro, tendo em vista o início de uma jornada semanal de trabalho, resiste à segunda-feira. Pelo imaginário nacional conhecem-se muitas ponderações acerca de tal dia da semana, tendo em vista sua superação. A segunda-feira fez-se, assim, um mito nacional pela eloquência como foi aceito, pelo convencimento de todos, que o dia é grave, preocupante, penoso, sisudo. Ignácio Loyola Brandão assumiu tal hábito do brasileiro para com o primeiro dia da semana como matéria memorial na construção de uma mitologia pessoal, num conto e volume, que trabalham verdades oriundas de experiências tanto vividas, quanto inventadas. Nessa mitologia pessoal, o mito não traduz uma façanha, algo excepcional, um feito, mas uma atitude invulgar, do mistério vivido pelo protagonista, diante da imposição da segunda-feira. No conto “O mistério da formiga matutina”, o solitário protagonista troca ideias com o inseto sobre a vida e a morte, no café da manhã de todos os dias. Ora, não há mesa de café que não tenha, volta e meia, a presença de uma formiga, que também, há muito, protagoniza narrativas das fábulas, que, tal como no conto, envolvema problematização da vida e da morte. Pequenos amores (2003), volume de contos de José Roberto Torero, traz um apelo ao riso, presente também no livro de Ignácio de Loyola Brandão comentado acima. José Roberto Torero, em seus 50 casos de amor narrados no volume, utiliza-se reiterada e explicitamente de peripécias cômicas, em que preconceitos sociais, tragédias, tabus, envolvem as personagens, que deles se desfazem, superando-os, sem querer discuti-los. O humor, assim trabalhado, harmoniza as histórias, que não trazem argumentos nem explicações de causa e efeito, revertendo, dessa maneira, as narrativas para desenlaces, reconhecimentos. Pequenos amores, com tal opção pelo humor, contraria as expectativas do leitor afeito à leitura de memórias, envolvidas com sérias experiências existenciais, levando-o, ao contrário, a rir de desvios individuais de conduta. O enunciador, ao optar por tal comicidade, investe nas movimentações de peripécias e no inesperado, e, assim, provoca o riso. O cômico, dessa maneira, mostra- se livre, voluntarioso e, para isso, não promove embate entre paixões – amor, ódio, 20 ciúmes, dissolvendo-as em situações de riso. Os juízos não são abalados diante dos casos cômicos contados por José Roberto Torero; nenhum caráter é punido. Dá-se, assim, a adesão do leitor às narrativas cômicas do autor, pelo gosto por leituras de um texto em que o torpe, a deformação, o feio, não são punidos, mas diluídos em riso. Pequenos amores traz, do início ao final de seus casos, uma deformação do paradigma do Gênesis. Em projeto cômico, o pensamento grave do mito da criação, voltado à procriação do mundo, transforma-se em histórias múltiplas de amores que ganham cenários de fábulas e de contos de fada, indígenas e míticos, com enredos que passam, sem interdição nem sanção, pelo incesto, pela necrofilia e pela traição. Ignácio de Loyola Brandão encadeia suas narrativas com argumentos risíveis, mas também com traços trágicos, uma vez que, conforme o primeiro conto comentado, o vivido pela personagem traz momentos de catástrofe, terror e piedade, algo inesperado para o leitor. O inesperado não é cômico; é o trágico de um destino, faz sofrer; está numa situação oposta à maneira como a voluntariosa personagem cômica aceita seu fracasso. A personagem de Loyola Brandão é apaixonada por sua causa, faz dela juízo sério. Os dois autores, Loyola Brandão e Torero, encontram-se no que promovem com o exagero: a caricatura que criam para suas personagens são deformações – em cada autor, respectivamente, harmônicas e desarmônicas. Paraísos artificiais (2004), de Paulo Henriques Britto, traz contos de atmosfera e de enredo, com histórias em primeira e em terceira pessoas, envolvidas com humor, solidão e apreensão. As narrativas dos contos, voltadas para suas personagens, concentram-se em observar um acontecimento curioso e transitório, homologando o senso comum do leitor: conhecemo-nos pouco uns aos outros e temos ideias transitórias de uns para outros. No entanto, algo diferente pode surgir diante das inquietudes das personagens e narradores de Paulo Henriques Britto. Em “Uma visita”, um dos contos do volume, alguém, na rua, observa um morador – o narrador e protagonista –, à janela do seu apartamento, no terceiro andar de um prédio. Os dois trocam olhares, gestos mínimos e, possivelmente, sensações semelhantes de que se conhecem. No entanto, individualmente, pressentem que apenas um conhece o outro. Ao final, desse rápido acontecimento, a personagem da rua, que parecia solicitar ao morador do prédio que abrisse o portão de entrada, desiste e vai embora. Trata-se de uma história em que nada acontece do ponto de vista de uma trama, como é próprio de um conto de atmosfera. Situação idêntica é revertida pelo enredo de “Um criminoso”, do mesmo volume. Uma mesma inquietude, novamente diante de um voyeurismo, agora, com ansiedade maior 21 por parte do narrador e personagem, que, do apartamento em que mora, observa, na rua, um casal de namorados, atracado em beijos, e um bêbado que deles se aproxima e, depois, acaba tocando, errônea e coincidentemente, a campainha do seu apartamento. Os dois contos trabalham com acontecimentos cotidianos de indivíduos inquietos, ansiosos, curiosos, com dificuldade em perceberem e se convencerem acerca do limite entre o concreto e o imaginário, frustrando-se ou surpreendendo-se com o acaso, conforme a trama do segundo conto, elíptica, desarmônica, que suscita, como no primeiro conto comentado, uma situação insólita e humorada. 3. A MEMÓRIA No inventário de conjuntos narrativos, que acumulam, em unidades temáticas, motivos dominantes, nucleares, e que movimentam ações de personagens com identidades individuais ou coletivas comuns, destaca-se, por fim, a linha de força sustentada pela memória. Os dramas familiares contados como expressão de si envolvem-se com memória e ocupam-se da ficção, imaginação, espaços da intimidade humana. Somos, o tempo todo, memória e consciência; representamos o que somos, o que vivemos, o que imaginamos, compartilhado com a experiência vivenciada; representamos experiências de vida, desdobradas a partir de fatos biográficos. Vemo-nos, desse modo, o tempo todo, pela linguagem; somos ou não convencidos pela linguagem; podemos, assim, substituir, com a linguagem, o que aconteceu pelo que poderia ter acontecido. Na Poética de Aristóteles, a mímese, conforme a necessidade de expressar o verdadeiro, faz-se verossímil ou necessária para o dizer coeso e coerente, ou, ainda, maravilhosa, e assim, duplica o mundo, representando-o ou deixando de representá-lo com improváveis semelhanças. A representação mimética da memória envolve-se com os espaços recônditos da intimidade humana, portanto, com experiência e imaginação. Com a exceção dos oito contistas vencedores ou finalistas do Jabuti, cujas obras comentamos até aqui, os demais, dezesseis contistas, trabalham, às vezes se aproximando, às vezes não, com conjuntos narrativos voltados para a representação da memória. Ganham, assim, mais ênfase, nesse terceiro momento, conjuntos narrativos de traços contextuais em torno do tema da memória, que situam invariantes individuais, 22 com medidas tiradas de movimentos individuais, específicos, autorais, permitindo-nos identificar determinadas constantes traçadas pelo imaginário literário. A utilização da memória pela prosa de ficção não substitui a ação; acaba por elaborá-la numa forma de ação, uma vez que sua representação exige tratamento literário, marcas literárias, a partir de quem recorda, de como recorda o anunciado. Temos, assim, a representação da memória com ou sem nitidez, com sentimentos de proximidade ou de distância temporal, com diferentes sensações de duração, próprias da vida que se lembra. A narrativa envolta em memórias aponta vazios, silêncios, que, uma vez evocados, sinalizam uma representação difícil, observada no próprio modo de dizer da representação dos acontecimentos. Uma vez em terceira pessoa, a narrativa leva-nos a uma leitura em que o enunciador, em um texto confessional, coloca-se como querendo se sentir outro, no lugar e tempo do outro. João Anzanello Carrascoza, em Duas tardes (2002) e O volume do silêncio (2006), empenha-se em narrar as relações familiares entre pais e filhos, fazendo-as base memorialista das suas histórias. É desse modo que se compõem “Duas tardes” e “O menino e o pião”, contos retirados, respectivamente, dos dois volumes mencionados. Nos dois contos, com a insuficiência dos diálogos e com a incidência maior de narrativas na terceira pessoa, cenas de lembranças invadem o cenário construindo silêncios e vazios por meio de imagens filtradas pelos olhos dos narradores, que, no primeiro conto, observa o reencontro de dois irmãos, tempos após deixarem a casa paterna; no segundo, espreita, repetidamente, avida de um garoto em momento feliz de sua infância, rodando pião enquanto aguarda o pai voltar do trabalho. Ambos os contos constroem sua contiguidade temática com memórias familiares, ora voltadas a sensações de perda, de dispersão da família após mortes, afastamentos seguidos de reencontros; ora voltadas a estados extensos de espera, transpassados com pequenas revelações, os silêncios e vazios da narrativa, representando ansiedades e expectativas de um garoto. Mário Araújo, em A hora extrema (2005), retoma as representações de fatos de memória do universo das relações familiares, das situações entre pais e filhos, envolvendo a formação dos filhos, as regras domésticas, a organização da vida diante da disponibilidade do tempo dos pais para a convivência familiar. “A hora extrema”, conto que dá nome ao volume, expõe os pensamentos em fluxo de um menino, narrador em terceira pessoa, que, no percurso temporal de sua experiência, vê-se diante de seus 23 conhecimentos incompletos, limitados no tempo que lhe é dado para experimentar a vida; vê-se, assim, imobilizado pelas regras da mãe. Quer o que não conhece: o avanço do tempo cronológico nas diversas tonalidades, cores, referentes às horas entre o dia, a noite, a madrugada. O garoto, por meio dessa leitura física do tempo, representa, na narrativa, alguém que se sente incompleto; vê-se inicialmente imobilizado, sem aceitar a pobreza da sua experiência. Faz do seu quarto, onde fica confinado a partir das 21h30, hora de regra para dormir, um lugar de resistência, em que, acordado, desafiando a autoridade da mãe, toma consciência do tempo, sondando o andamento das horas pela noite adentro, para ele, de máxima valia para as experiências infantis. “A hora extrema” ilustra a vontade, os impulsos de um garoto para o novo, uma vez que se vê incompleto para sua vida. O menino representa, de forma alegórica, o sujeito que, consciente do que quer, não hesita, rompe com tabus familiares, adquire novos conhecimentos, transfigura-se. As relações entre pais e filhos, desenvolvidas por meio do motivo da memória, estão também presentes nas bases das narrativas de Lygia Fagundes Telles e de Cíntia Moscovich e de João Anzanello Carrascoza. Nos volumes Durante aquele estranho chá (2002) e Invenção e memória (2000), em contos diversos, Lygia Fagundes Telles estabelece um memorial da vida familiar: o cotidiano doméstico entre mãe, tia, pajens, irmãos e o pai. Destaca a estabilidade da vivência das crianças com as mulheres e a instabilidade de todos diante da vida errante do pai, inquieto em casa, e um jogador de pôquer, fora de casa. Em um conto do segundo volume, “Potyra”, esses casos simples de memória computam o vivido sem nitidez; falam da existência com ficção. A exatidão e a imperfeição da lembrança, sentimento de proximidade e distância temporal, repetem hábitos de memória, um padrão constante de Lygia Fagundes Telles, no qual estão suas relações com o pai errante. Apresentadas em primeira pessoa pela narradora-personagem-autora, imagens substitutas tomam o lugar das imagens memoráveis, para representarem sentimentos que, dessa maneira, se configuram de modo estranho, não familiar. Nesse conto, a substituição do pai por um estrangeiro explica-se como um lance de memória que toma o lugar da impossibilidade de despedida do pai, antes de sua morte. A despedida do pai dá-se, então, pelo onírico. A história, localizada no Jardim da Luz, espaço de lembranças do pai desde a infância da narradora, traz, na ausência de um pai já morto, um estrangeiro, um vampiro 24 dinamarquês, Ars Jacobsen, figura, para Lygia, como o pai errante, sem corpo, que vaga em sua mente, numa voz apenas, presa à sua memória, às suas faltas com o pai. Dessa maneira, no universo dos mortos-vivos, o vampiro faz-se dependente do sangue de uma nativa nacional, Potyra, cuja vida é sacrificada pela de Ars, analogicamente, a troca simbólica entre morto e viva, a redenção da narradora- personagem-autora: o vampiro conversa com a narradora, a redime e alivia sua mente da perda. Dá-se assim a substituição a que nos referimos: o relato da narradora- personagem-autora acerca do encontro entre o vampiro e Potyra configura-se num projeto de redenção que simula, vampirescamente, a sofrida libertação da filha da imagem sofrida que tem do pai. A literatura, ao construir sua realidade, dá-nos sua grandeza por meio de uma medida vicária. No caso de optar por uma construção mediada pelo fantástico, mais vicárias ainda serão as medidas: enfáticas, exageradas. Temos, assim, a substituição de uma situação lembrada, memorável, afetiva, por outra, vampiresca. Na comutação de planos de expressão e de conteúdo por outros dois, no entanto, conserva-se um mesmo paradigma: lembranças em tempo de corrigir excessos (responsabilidade individual de uma culpa; libertação de um ciclo da existência; libertar a alma de um corpo; dar a tal corpo a mobilidade sempre presente em sua presença viva), num viés de expiação, penitência e contrição, de reparação de julgamentos impostos a uma pessoa morta. A figura do narrador, na dramatização dessa forma literária memorialista e confessional, é importante, até porque ela extrai da sua vida pessoal os conteúdos da história que relata. Cíntia Moscovich, em Arquitetura do arco-íris (2004) escreve sobre um eu que também é escritora e, com isso, constrói a identidade daquela que recorda suas relações familiares. Em tom autobiográfico, acrescenta memórias de leitura da literatura brasileira, traz situações de Laços de família, de 1960, de Clarice Lispector. Suplementa, pois, o material diegético de sua inventiva, com as citações. Trabalha, assim, com dois textos apaixonados, urdidos com memórias pessoais e de leitura. A matéria literária de “Cartografia”, um dos contos de Arquitetura do arco-íris (2004), segue, assim, o mesmo paradigma memorialista de João Anzanello Carrascoza e de Lygia Fagundes Telles, o da dramatização de relações familiares. Nesse conto, a narradora-personagem, que também se apresenta como autora, não consegue superar a perda do pai, nem suportar a viuvez da mãe; menos ainda consegue morar fora de casa. 25 Vive sob o impacto de memórias pontuais: a da morte do pai e de seu difícil relacionamento com a mãe. Tal como em João Anzanello Carrascoza, Cíntia Moscovich apresenta uma cartografia do silêncio, resultante da passagem de uma fase de sofrimento na vida da narradora a outra, aliviada, mais calma, tendo apenas, de acordo com o conto, “o silêncio como uma suspensão da vida”. Em “Os laços e os nós, os brancos e os azuis”, Cíntia Moscovich busca ainda, no conto “Laços de família”, de Clarice Lispector, a solução para os desencontros entre a narradora e a mãe. No horizonte de expectativa do texto memorialista, apresentam-se, desse modo, conforme as obras dos três contistas, narrativas com identificações, em diferentes gradações, entre o sujeito da enunciação e o do discurso. O narrador, como organizador da ação narrada, estabelece a apreensão do sentido pela representação espácio-temporal da história. João Anzanello Carrascoza opta por um narrador em terceira pessoa; como enunciador, afasta o eu do ponto de vista dos sentidos narrados. Lygia Fagundes Telles, por meio de um ponto de vista em primeira pessoa, volta-se às relações paternas vividas no Jardim da Luz, na cidade de São Paulo, e instaurando um realismo mágico, constrói uma memória e uma autobiografia fictícias. Cíntia Moscovich narra as relações entre a narradora-personagem-autora e sua família, além de aproximá-las dos laços de família narrados por Clarice Lispector. Também nesse eixo memorialista, a prosa de ficção de Silviano Santiago, incluindo seu Histórias mal contadas (2005), situa-se, mais especificamente, no domínio da autoficção. De um lado, a vida do professor universitário que lecionae escreve, sua experiência como leitor e ensaísta e, de outro, o tratamento que dá ao texto ficcional, constituindo-o como um evento inédito. O conto “Conversei ontem à tardinha com o nosso querido Carlos”, uma das histórias mal contadas, enviesada entre ficção e ensaio, mostra o modo como o autor simula situações em que aparece, ao lado de vozes outras, o ensaísta que reflete sobre as poéticas no curso do modernismo brasileiro. A simulação mostra-se numa narrativa em primeira pessoa e estabelece um escritor, nascido em 1936, correspondendo-se, diante de laços de amizade, com Mário de Andrade (1893/1945), e comentando com o escritor paulista seus livros recém-lançados: Paulicéia desvairada, de 1922, e Losango caqui, de 1926, assim como, sem nomeá-lo, Alguma poesia, de 1930, de Carlos Drummond de Andrade. Com acuidade de um crítico, reflete sobre o conceito de felicidade que perpassa tanto a obra de Mário de Andrade, como a de Carlos Drummond de Andrade, assim como a de Manuel Bandeira, 26 em seu livro Carnaval, de 1919. A narrativa trabalha, assim, com uma falsificação assistemática da memória, encerrando uma fábula vertiginosa, em que o sujeito da enunciação trama com dois tipos de discurso e desaparece no interior de uma narrativa desgarrada dos fatos no tempo. Autran Dourado, como Silviano Santiago, é também um inventor de memórias. O narrador de ambos tem autonomia discursiva; diferem-se, no entanto, no modo de relatar o que inventam como memorável. Em Autran Dourado, trata-se de “memórias imaginárias” para um “livro temporal, não cronológico”, que localiza no tempo o “risco do bordado”, conforme aparece em seu próprio livro de críticas (1973, p.68-9). Em O senhor das horas (2006), Autran Dourado retorna, com sua poética memorialista, para o cenário da imaginada cidadinha mineira de Duas Pontes, situada unicamente no mapa do universo mítico estabelecido pelo prosador. Em “O herói de Duas Pontes”, conto do volume O senhor das horas (2006), retoma as mesmas invariantes que narram condutas, com o protagonista e herói Oriosvaldino Cunegundes, sua formação, aprendizados na Escola, no trabalho, no amor e na guerra da Revolta Constitucionalista. Os valores vividos pelo protagonista constituem-se em invariantes, reutilizadas, retomadas pelo prosador em seus “livros temporais” e assumem, de fato, a função do traço dominante da invariante mítica, voltada para falas estratificadas, de um dado universo literário. Autran Dourado narra o conto mencionado em terceira pessoa, e organiza pensamentos em fluxo pelo discurso indireto livre, que, por três vezes, justapõe citações de dois sonetos e uma oitava de Camões. Os fragmentos dos sonetos de Camões – “Um mover de olhos, brando e piedoso” (CAMÕES, 2001, p.62), “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” (CAMÕES, 2001, p.127) – e da oitava – “Depois que a clara Aurora a noite escura” (CAMÕES, 1843, p.228) –, intervêm no conto. Sua função narrativa e discursiva é a de, ironicamente, operacionalizar a versão patética que o herói Oriosvaldino Cunegundes tem do mundo, dando-nos o perfil da sua heroicidade traçado entre seus sentimentos de amor e morte, movimentados, pelos saberes dos textos de Camões. Dessa maneira, o inventor de memórias faz-se também num prosador que trabalha com memórias de leitura, narrativa subsumida, que atravessa um processo de composição estável do escritor mineiro. 27 As invenções do memorialismo de Autran Dourado passam pela urdidura de um conjunto de outras narrativas suas, por fios narrativos que tramam várias obras do autor, seguindo o veio de suas invariantes míticas. Autran Dourado é autor de enredos enraizados, dispostos e desenvolvidos, com equilíbrio, ilustração que, sem impostura, destilam pelas histórias uma ironia proverbial, no âmbito de hábitos e costumes mineiros centrados e dramatizados pelos protagonistas da imaginada Duas Pontes. Diante dos novos tempos, com fortes alterações nas noções de afetividade, identidade, familiaridade, Menalton Braff opta por dramatizar as relações familiares contrárias à cultura do esquecimento, voltando-se para os dramas de histórias familiares, aquelas em que, em nossas memórias, reconhecemo-nos em experiências comuns: circunstâncias da vida que envolvem rituais familiares, hábitos e relações de parentesco com reconhecidas identidades culturais. O volume À sombra do cipreste (1999), mesmo diante dos novos tempos anunciados, não deixa de despertar no leitor as mesmas sensações de acomodação e impotência. “Adeus, meu pai”, um dos contos da obra, com uma forma literária híbrida – de enredo com atmosfera –, conta, em terceira pessoa, a história de Ana, a protagonista, com uma vida limitada entre os acontecimentos da morte da mãe e da doença e morte do pai. Assim, mostra-se o enredo do conto, que, nas cenas de um velório, cria a atmosfera da narrativa, a partir da movimentação de fragmentos do poema “Retrato”, de Cecília Meireles, de modo a exibir o envelhecimento da protagonista Ana, postada ao lado do caixão do pai, e a mostrar o custo de uma existência, que nunca abandonou o conhecido compromisso familiar de cuidar dos pais. “Os sapatos de meu pai”, conto do volume A coleira no pescoço (2006), dispõe, como o conto mencionado anteriormente, também de narrador em terceira pessoa, que observa a alma aflita da protagonista, jovem que sofre desde menina pelo abandono do pai. Trata-se, novamente, de um conto híbrido, em que a atmosfera elaborada pela narrativa compõe, na projeção da memória já imaginária da filha, imagens inconsistentes da figura do pai. A protagonista, curvada sobre uma calçada, imagina avistar o pai, ao fixar seu olhar nos sapatos de um transeunte, que deles tenta retirar o barro no meio-fio da calçada. Diferentemente da atmosfera ordenada pela história do conto anterior, neste conto, o desamparo da protagonista e seu 28 desassossego são representados pela situação pontual, pelo instante de espanto da personagem, diante do eventual reconhecimento dos sapatos do pai. A representação de memórias imaginárias demanda invenção fora da delimitação de um fato de memória. A casa de minha vó e outros contos exóticos (2006), de Artur O. Lopes, trabalha com memórias imaginárias e inventa, pela voz do protagonista e narrador, nos espaços de uma casa de avós, uma série de acontecimentos que encerra contos com dimensão de fábulas. Os contos são determinados pelos espaços de cada um dos cômodos da casa, plasmados nas poéticas do mestre Edgar Allan Poe e de seu seguidor Jorge Luís Borges. Suas construções atendem a uma equação. O sexto, “A casa de minha vó”, faz-se estrutural: contém a fábula maior, o destino da trama dos demais, a planta baixa do livro, a iniciação de um garoto no universo de fábulas criadas pelos avós. O décimo segundo conto discute a poética contística acima referida, nos legados daqueles dois autores, em cuja contística há invariantes, semelhanças, que se voltam para andamentos e motivos de histórias já contadas por outros autores, emulando-os. A imitação por emulação, conforme Jorge Luís Borges, por meio de citações, afirma uma identidade cultural, distanciando-se de critérios de propriedade autoral. Entre suas personagens, não há diferenças, alteridades; para o autor, a originalidade não é uma obsessão digna de louvor. Assim, o autor argentino, entre os impulsos de falar de si e de verdades, elabora, de forma inédita na ficção, uma construção da cultura, dentro e fora do tempo histórico, mantendo, dessa maneira, contato com a memória letrada por meio de um acontecimento intemporal. Charles Kiefer, escritor e orientador de oficinas literárias, simula, no conto “Elo perdido”, do volume Antologia pessoal (1998), uma situação de criação literária, numa sala de aula. Diante do público aprendiz, o professor opta por ensinar a forma literária do conto pelaspoéticas de Edgar Allan Poe e Jorge Luís Borges. Tais escolhas, conforme o encenado pela narrativa, coincidem com as atividades profissionais do escritor, professor e ficcionista, circunstância que se repete em “Lídia e o Rabino”, conto do volume, Logo tu repousarás também (2006); neste, novamente, o professor de criação literária encontra-se, do mesmo modo, dividido: um duplo de professor e de escritor, no curso de uma experiência vivida entre dois tempos, sem marcas cronológicas. Uma narrativa sempre envolvida com um duplo, nos moldes da narrativa de Poe e Borges. 29 Em “Rosa rosarum”, conto do mesmo volume, traz, como personagem, o próprio Charles Kiefer, orientando de pós-graduação da professora Regina Zilberman, inventariando o processo criativo de Jorge Luís Borges. O estudioso, aficionado à obra do autor argentino, rastreia, para sua tese de doutorado, Invenções e fontes de Jorge Luís Borges, o nascedouro das narrativas do escritor argentino, em andanças labirínticas pela Europa e USA, onde percorre circuitos habitados por livreiros raros, eruditos, que, como na ficção de Jorge Luís Borges, vão lhe desvendando os vestígios de manuscritos que serão pesquisados e, posteriormente, ficcionalizados. Convivem, portanto, no personagem o estudioso da literatura e o contista. Temos, assim, a fabulação de Charles Kiefer: uma invenção contística em que o narrador, ora em primeira, ora em terceira pessoa, aparece e desaparece do texto, estabelecendo um diálogo entre autoria e memória literária. Jaime Prado Gouvêa, com Fichas de vitrola e outros contos (2007), volta-se também para as representações de memórias permeadas pelas experiências familiares comuns, como as domésticas e as escolares. Os contos do volume “A nossa infância” e “Primeira lição” são exemplares em relação a isso. Em Gouvêa, o narrador e protagonista em primeira pessoa, que organiza a ação narrada, é, de modo surpreendente, também um observador onisciente, como seria próprio de um narrador em terceira pessoa. Assim, o leitor estará sempre com o narrador e personagem, atento a uma encenação que, numa constante, movimenta os andamentos das narrativas acerca da dificuldade das personagens, sem experiência e sem auto- conhecimento para a tomada de conhecimento do mundo. As marcas do sujeito da enunciação nas representações da memória aparecem e desaparecem de acordo com o planejamento da ação narrada delegada ao narrador e conforme uma linha divisória calculada para os avanços e recuos da voz autoral, concordante com o diálogo que o autor quer realizar com a memória. Jorge Hausen, em A prenda de seu Damaso e outros contos (2007), estabelece o modo de contar um caso. Em relação a isso, Ivan Cavalcanti Proença, que introduz o volume, qualifica a obra como o “melhor estilo regional, contos de época e de memória ficcional” (2007, p.6). O caso é uma unidade narrativa breve, de enredo, assumida por um narrador com a dicção e o ritmo de um contador de histórias, quase sempre, regionais. O relato de “O pegador de onças” assume a dicção da língua erudita e a fabulação dá-se, preponderantemente, pelo discurso indireto livre. Desse modo, como o narrador de uma 30 fábula, ou de um conto de fada, o contador de caso envolve-se com o caso contado, que se dá em uma mata espessa, onde se travam lutas entre homens, bichos e mistérios. Assim, no espaço desmesurado da mata, o embate entre o instinto e a ferocidade dos bichos e a coragem e inteligência dos homens, ou falta delas, suscita exageros, humor e muita dúvida. Dessa maneira, como quer até o caso jurídico, os casos literários de Jorge Hausen ficam abertos às leituras e aos julgamentos. Histórias do Rio Negro (2007), de Vera do Val, traz histórias situadas na extensão das margens do Rio Negro. Na introdução do volume, a autora adianta sua visão apaixonada pelo rio: “O Negro é sensual, insinuante, muito masculino. É um rio macho. Chega a se apossar de nossa paixão sem pedir licença” (2007, p.6). Os contos, no entanto, não vão nessa direção. O rio não invade ou condiciona os seres. Mesmo fazendo-se num cenário de julgamentos morais de dramas entre tipos sociais locais e estrangeiros, o rio flui e, com suas águas, movimenta os afetos e desejos da população ribeirinha. A paisagem como item da identidade brasileira marcou, para as literaturas romântica, realista, naturalista, modernista e pós-modernista brasileiras, os traços típicos das tendências dessas épocas que debatiam acerca de uma identidade nacional. Histórias do Rio Negro, no entanto, apresenta-se como um livro de contos, preponderantemente, de personagens femininas e distante de quaisquer impulsos naturalistas, o que contraria opiniões presumidas que se tenha em torno da paixão da autora pelo Rio Negro. Os dois últimos contistas – Vera do Val, que é bióloga, e Jorge Hausen, que é geólogo – mostram-se apegados às suas experiências em prospecção, apegados às referências geográficas, respectivamente, do Rio Negro e dos Pampas. E levam essas referências a suas memórias ficcionais. A ordenação da memória dá-se, portanto, por meio do tempo e do espaço e se sinaliza nas geografias locais. Bolha de Luzes (1998), de João Inácio Padilha, traz um conto “Memorial do esquecimento”, que se inclui em experiências retidas na memória e representadas pela ficção. Como aponta seu título, as contemplações do memorial dão-se em um campo figurativo borgeano. A memória não é nítida, não produz aproximação temporal; sem sensações de duração, assume o efêmero, ao modo de uma bolha de sabão, metáfora utilizada no volume. O conto emula o Jorge Luís Borges de “Animales de los espejos”, de El libro de los seres imaginários, inclusive o cita em epígrafe. A metáfora borgeana do espelho encontra-se no interior da metáfora da bolha de sabão de João Inácio Padilha; mais, este, tendo em mente a emulação do conto de Jorge Luís Borges, certifica ao leitor que a metáfora da bolha antecede, na sua gênese, a do espelho: arremata seu 31 conto de maneira inusitada, relatando que o conto “Pierre Menard autor do Quixote” origina-se de uma lembrança contida no interior de uma bolha que se arrebenta, liberando tal pensamento esquecido, do mundo sensível, para o conhecimento e para a narrativa que deu origem ao conto de Borges. Mário Araújo, em A hora extrema (2005), retoma as representações da memória das relações familiares cotidianas, de situações entre pais e filhos, envolvendo a formação dos filhos, as regras domésticas, a organização da vida diante da disponibilidade do tempo dos pais para a convivência familiar. “A hora extrema”, conto que dá título ao volume, traz, em relato de um narrador em terceira pessoa, os pensamentos em fluxo de um menino que tenta vivenciar e medir o tempo a partir de suas cores no dia e na noite, longe das “horas extremas” estabelecidas pela mãe para dormir e despertar. O garoto quer saber o que não conhece: a distinção entre o avanço do tempo cronológico e as diversas tonalidades das horas entre o dia, a noite, a madrugada. O garoto, em seu exercício de medir o tempo, representa alguém que se sente incompleto. Inicialmente imobilizado, mas sem aceitar a pobreza de sua experiência, faz do seu quarto, onde fica confinado a partir das 21h30, hora marcada para dormir, um lugar de resistência, em que, acordado, desafiando a autoridade da mãe. Desse modo, toma consciência do tempo no espaço, a partir de uma sondagem do andamento das horas pela noite adentro. De forma alegórica, “A hora extrema”, ilustra a vontade, os impulsos para o novo. O menino representa o sujeito que, consciente do que quer, não hesita, rompe com tabus familiares, adquire novos conhecimentos, transfigura-se. As representações da memória motivam as narrativas a promoverem, por meio de lembranças vivenciadas, o inexplorado, o pouco enfrentado pela subjetividade e, assim, possibilitar
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