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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA CAMILA BARBOSA PASINATO SABERES DE COSTUREIRAS: TECNOLOGIA E PRECARIEDADE NO AMBIENTE DE OFICINAS EM CUIABÁ, MATO GROSSO (2018-2019) CUIABÁ-MT 2021 CAMILA BARBOSA PASINATO SABERES DE COSTUREIRAS: TECNOLOGIA E PRECARIEDADE NO AMBIENTE DE OFICINAS EM CUIABÁ, MATO GROSSO (2018-2019) Tese de doutorado apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutora junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Faculdade de Comunicação e Artes da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGECCO-UFMT), Linha de Pesquisa em Epistemes Contemporâneas, sob orientação do Prof. Dr. Yuji Gushiken. CUIABÁ-MT 2021 Dedico a todas as mulheres, mães, que lutam para sustentar suas famílias por meio de suas próprias mãos e saberes. Agradecimentos Ao meu orientador Yuji Gushiken, por acreditar em mim desde 2013, quando ainda era aluna especial de mestrado do programa. Por entender nossas diferenças de construção de pensamento, leitura e escrita, minhas limitações e mesmo assim apoiar e acreditar. Agradeço pela paciência e sensibilidade que teve em cada etapa da minha vida. A todos os professores da banca, pelas valiosas colaborações que foram além do esperado. Agradeço pela dedicação do tempo, pela gentileza, sutileza e educação contida em cada comentário. Ao meu pai, minha mãe e meu marido que sempre me apoiaram em todas as minhas decisões e insistiram para que eu continuasse no doutorado, mesmo quando eu pensei em desistir. Durante todos esses anos, foram eles o meu suporte e a minha rede de apoio: quando casei, quando mudei de profissão, quando engravidei e nos cuidados com o meu filho. Ao meu filho, que antes mesmo de completar seu primeiro ano de vida me deu forças para continuar a pesquisa e escolher o caminho do estudo sempre que as dúvidas me cercavam. Obrigada por entender que muitas vezes era necessário estar à frente do notebook escrevendo, mesmo que ao seu lado, do que brincando ou dormindo com você. A todos que colaboraram com dados preciosos para a costura dessa tese: faccionistas, funcionários, professores, empresários, fornecedores e representantes: obrigada por gentilmente cederem seu tempo, sua paciência e sua experiência. RESUMO Oficina (ou “facção”) é o nome popularmente atribuído a confecções caseiras, em geral de estrutura familiar, instaladas em residências, que operam de forma terceirizada diante da flexibilização do mundo do trabalho, seguindo condições de produção impostas pelo comércio ou indústria de confecções. A precariedade do mundo do trabalho, imposto pela modernização capitalista, constitui uma interface que problematiza saberes domésticos como condição de produção de renda e espaço privado do lar em sua transformação em espaço de trabalho. O consumo tecnológico implica na aquisição de máquinas de costura e de outros instrumentos, o que demanda a produção de novos saberes e desenvolvimento de habilidades. Operar uma facção doméstica, hoje, na condição imposta pela modernidade, significa enfrentar problemas relacionados à condição de gênero e dominar, além de saberes tecnológicos, os saberes da área administrativa, contábil, jurídica, logística e de marketing. No sistema econômico, saberes das costureiras de oficinas constituem condição de pensamento e produção do campo da moda, mesmo que em meio à informalidade e à precarização do sistema produtivo, como a falta de leis trabalhistas específicas que se referem ao fenômeno da terceirização das facções. Neste aspecto, considera-se a dimensão comunicacional das práticas culturais, em que informações são produzidas, processadas e ressignificadas como saberes. A tese tem como objetivo analisar os saberes das costureiras em facções de Cuiabá-MT, o que inclui suas subjetividades, a precariedade e a tecnologia do trabalho que as envolve. Como recurso metodológico para se extrair as informações necessárias para a construção da tese, foram utilizadas pesquisa de campo e entrevista qualitativa em profundidade com três costureiras. Partindo dos conceitos de história oral, a tese é construída de modo que explicitassem o cotidiano e as condições subjetivas que envolvem as faccionistas. A tese propõe uma análise e discussão sobre a interface entre produção de saberes e processos de tecnificação na experiência de modernização no setor de confecções na cidade de Cuiabá-MT. Trata-se de uma pesquisa interdisciplinar, que une campos da sociologia, direito, psicologia, história e moda, todos centralizados nos estudos de cultura. Palavras-chave: Costureira, Cuiabá, facção, saberes, precarização. ABSTRACT Workshop (or "faction") is the name popularly attributed to homemade confection, generally with a family structure, installed in homes, which operate on an outsourced basis in view of the flexibilization of the world of work, following production conditions imposed by the garment trade or industry. The precariousness of the world of work, imposed by capitalist modernization, constitutes an interface that problematizes domestic knowledge as a condition for income production and the private space of the home in its transformation into a work space. Technological consumption implies the acquisition of sewing machines and other instruments, which demands the production of new knowledge and skills development. To operate a domestic faction, today, in the condition imposed by modernity, means facing problems related to the condition of gender and dominaing, in addition to technological knowledge, knowledge in the administrative, accounting, juridical, logistical and marketing areas. In the economic system, knowledge of workshop seamstresses is a condition of thought and production in the field of fashion, even in the informality and the precariousness of the production system, such as the lack of specific labor laws that refer to the phenomenon of outsourcing of factions. In this aspect, the communicational dimension of cultural practices is considered, in which information is produced, processed and re-signified as knowledge. The thesis aims to analyze the knowledge of seamstresses in factions in Cuiabá-MT, which includes their subjectivities, precariousness and the technology of the work that involves them. As a methodological resource to extract the necessary information for the construction of the thesis, field research and in-depth qualitative interviews with three seamstresses were used. Starting from the concepts of oral history, the thesis is constructed in a way that make explicit the daily life and the subjective conditions that involve factionists. The thesis proposes an analysis and discussion on the interface between knowledge production and technification processes in the experience of modernization in the clothing sector in the city of Cuiabá-MT. It is an interdisciplinary research, which unites fields of sociology, law, psychology, history and fashion, all centered on cultural studies. Keywords: Seamstress, Cuiabá, faction, knowledge, precariousness. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Capa do livro Método Vogue, exemplar original da década de 1967 ................................................................................. 57 Figura 2 - Exemplo de desenho explicando como cortar o vestido ....................................................................................................61 Figura 3- Máquina de costura reta. ..................................................................................................................................................... 71 Figura 4 - Ponto da costura reta visto de cima ................................................................................................................................... 72 Figura 5 - Máquina Galoneira com aparelho próprio para fazer golas e punhos em uma facção de Cuiabá-MT. ............................... 72 Figura 6 - Ponto da costura da galoneira ............................................................................................................................................ 73 Figura 7 - Máquina Overloque em uma facção de Cuiabá-MT .......................................................................................................... 73 Figura 8 - Ponto da costura da Overloque visto de cima .................................................................................................................... 74 Figura 9 - Fluxograma da cadeia têxtil e de confecção .....................................................................................................................116 Figura 10 - Valor Bruto da Produção Industrial por UF – Têxtil 2016 ..............................................................................................116 Figura 11 - Número de estabelecimentos por porte das empresas na cadeia produtiva Algodão/Confecção e Vestuário em Mato Grosso (2017) ...................................................................................................................................................................................118 Figura 12 - Sexo dos trabalhadores por atividade na cadeia produtiva ..............................................................................................118 Figura 13 - Camisetas sendo cortadas. ..............................................................................................................................................124 Figura 14 - Camisetas sendo costuradas em facção de Cuiabá - MT. ................................................................................................125 Figura 15 - Instalações da Facção de Julia. .......................................................................................................................................137 Figura 16 - Instalações da parte de serigrafia da facção de Julia. ......................................................................................................138 Figura 17- Fachada da facção de Maria. Acima se encontra a sua casa e à esquerda a casa de sua irmã. ..........................................139 Figura 18 - Instalações da Facção de Maria. .....................................................................................................................................139 Figura 19 - Instalações da Facção de Neide. .....................................................................................................................................140 Figura 20 - Engradado plástico usado como suporte para as peças já costuradas ..............................................................................143 Figura 21 - Tubos de fios e linhas separados por cor em facção. ......................................................................................................143 Figura 22- Facção de Neide com detalhe para o chão e as mesas ......................................................................................................144 Figura 23 - Sacolas com peças cortadas, tapetes, tubos e outros materiais ........................................................................................145 Figura 24 - Cadeira usada na facção de Julia ....................................................................................................................................155 Figura 25 - Cadeira usada na facção de Maria ..................................................................................................................................156 Figura 26 - Cadeira usada na facção de Neide ..................................................................................................................................156 Figura 27 - Faccionista realizando a etapa 4 da descrição acima.......................................................................................................159 Figura 28 - Maria respondendo os clientes ao fim de uma das etapas da costura. .............................................................................160 Figura 29 - Detalhe dos cadernos de Maria para cada cliente............................................................................................................161 Figura 30 – Salmo 23 pregado na parede da facção de Maria ...........................................................................................................163 Figura 31 – Detalhe da bíblia disposta ao lado da máquina de costura, apontando para um ritual de leitura e oração antes de iniciar a jornada de trabalho............................................................................................................................................................................164 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13 A COSTURA DO MÉTODO: CULTURA E HISTÓRIA ORAL ........................... 27 CAPÍTULO 1 – SABERES COSTURADOS POR UMA FACCIONISTA ............ 42 1.1 Saberes do mundo da moda .................................................................................................................................................... 42 1.2 Saberes das costureiras a partir da década de 1950 ................................................................................................................. 56 1.3 Saberes tecnológicos: a lida com a máquina ........................................................................................................................... 64 CAPÍTULO 2 – COSTURAS FRÁGEIS: PRECARIZAÇÃO NAS FACÇÕES ... 76 2.1 Questões de gênero ................................................................................................................................................................. 76 2.2 Trabalho e emprego ................................................................................................................................................................ 89 2.3 Leis e terceirização: saberes trabalhistas e judiciais ................................................................................................................ 97 CAPÍTULO 3 – CENÁRIO TÊXTIL E DE CONFECÇÃO: COMO SE COSTURA EM CUIABÁ .......................................................................................... 112 3.1 O cenário produtivo têxtil e de confecção de Cuiabá .............................................................................................................112 3.2 O cenário de uma facção........................................................................................................................................................120 3.3 O cenário da casa ...................................................................................................................................................................132 CAPÍTULO 4 – SUBJETIVIDADE COMO COSTURA: VIDA DE FACCIONISTA .......................................................................................................... 147 4.1 O cotidiano de trabalho na facção ..........................................................................................................................................147 4.2 A vida das faccionistas ..........................................................................................................................................................1624.3 De costureiras a faccionistas ..................................................................................................................................................178 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 186 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 194 APÊNDICE ................................................................................................................. 201 13 INTRODUÇÃO “A gente aprendeu praticamente na garra.” (JULIA, fevereiro, 2019). A citação extraída da fala de uma das costureiras de facção ou oficina entrevistadas para a pesquisa resume a forma como as profissionais do ramo aprendem não só a costurar, mas também a desempenhar as distintas funções necessárias para conduzir uma facção ou oficina. Em Mato Grosso e em alguns estados do Brasil é comum o uso do termo “facção” para categorizar um grupo de pessoas que se reúnem para prestar serviços terceirizados de costura ou outras etapas produtivas de confecção a uma marca. Em geral, os indivíduos desse grupo são do sexo feminino e possuem algum vínculo familiar entre si. Porém, o termo “facção” é comum apenas entre as pessoas que se relacionam com a área têxtil e de confecção. Pude perceber isto com a tentativa de usar o título da pesquisa de “Saberes de costureiras: tecnologia e precariedade no ambiente de facções em Cuiabá, Mato Grosso (2018-2019)”, ao invés de usar o termo “oficinas”. Ao escolher o termo “facção” no título e apresentar o trabalho em algumas palestras e seminários no próprio programa, o vocabulário causou muito estranhamento por parte das pessoas que tinham contato com a tese, sempre associando o termo “facção” a “facção criminosa” - uma vez que é assim que o termo é mais popularmente conhecido na mídia de modo geral. Sendo assim, optei por usar o termo “oficinas” no título e durante a tese usar o termo que comumente é usado: “facção”. O local de trabalho das pequenas facções situadas na cidade de Cuiabá é, em sua grande maioria, na própria casa das costureiras. Uma das facções está localizada no município de Várzea Grande, vizinha ao município de Cuiabá, no aglomerado urbano principal da chamada Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá. Dadas as características entre Cuiabá e Várzea Grande, o que inclui o cotidiano comum que as cidades partilham, decidimos indicar no título apenas a cidade de Cuiabá, pela capacidade que tem de centralizar a rede urbana local. A cidade de Cuiabá não está no imaginário da população brasileira como uma cidade que produz moda ou como um polo de confecções, assim como Goiânia está por exemplo. No entanto, o estado de Mato Grosso é reconhecido por ser um forte produtor de algodão, uma das matérias primas utilizadas para as confecções. 14 Porém, se for analisada toda a cadeia têxtil, desde a produção da matéria-prima até a comercialização de artigos de vestuário em lojas, a cidade de Cuiabá, ao contrário do que pode permear o imaginário das pessoas por ser a capital de um estado forte produtor de algodão, possui uma representatividade muito maior no setor de comércio do que de indústria ou agro. Pesquisar as questões de uma cidade com tais singularidades é um dos diferenciais da pesquisa, uma vez que não há muitos registros sobre facções em Cuiabá, dando mais margem para problemas como a precarização e a informalidade, além de evidenciar a forma como as faccionistas sobrevivem em um cenário pouco favorável, produzindo renda e sustentando suas famílias. O termo precariedade é usado na tese para caracterizar as condições de trabalho em que se encontram as faccionistas diante do contexto das transformações que ocorreram no mundo do trabalho. Por condição precária se entende a ausência dos direitos trabalhistas, a desproteção social, as condições ergonômicas impróprias e insalubres que se encontram (acarretando problemas de saúde e acidentes de trabalho) e a exploração do trabalho de forma geral. A pesquisa possui um recorte temporal entre os anos de 2018 e 2019. Isso significa que o cenário estudado retrata o contexto antes da pandemia do vírus Covid-19. Todos os dados coletados dizem respeito a um cenário que, provavelmente, hoje não é mais o mesmo, porém, por ser um período em que ainda estamos vivendo, optei por não o retratar. A pandemia modificou a vida de todos, principalmente das pessoas mais pobres. Acredito que o novo cenário que as faccionistas estão hoje vivendo deve ser revisado e estudado em um outro momento, quando os efeitos dessa doença que se alastrou por todo o mundo sejam melhor compreendidos. Penso dessa forma por respeito a dor de muitos que adoeceram e perderam seus familiares. Tendo feito esse esclarecimento ao leitor, outro ponto importante é sobre a diferença da função da costureira e da faccionista. Nem toda costureira é faccionista, assim como nem toda faccionista é costureira. Ou seja, uma costureira pode exercer a sua função, trabalhando com carteira assinada por uma fábrica, cumprindo uma carga horária específica e sendo uma funcionária contratada. Pode também exercer sua profissão em oficinas de conserto, em ateliês de roupas de festas e outros lugares. 15 A faccionista, por sua vez, possui uma facção onde exerce a função de costurar. Porém, como foi mencionado, nem toda faccionista é costureira. Existem facções dentro do cenário de Cuiabá-MT especializadas na etapa de bordado ou estamparia. Por serem raras, durante a presente tese abordarei o termo faccionista, que, dentro do determinado contexto, servirá para se tratar das profissionais que possuem uma facção e são costureiras. A diferença entre uma costureira e uma faccionista, portanto, é o saber, o que para nós equivale a uma produção epistêmica. Uma faccionista, além de costurar, precisa cuidar da sua facção e exercer outros saberes. São vários os saberes necessários para se administrar um negócio, mesmo na informalidade, e tal fato se aplica ao caso das faccionistas. Entre os saberes estão os que tradicionalmente se aprendem em faculdades ou outras instituições de ensino superior, como os saberes administrativos, contábeis, jurídicos e logísticos. Porém, o que as faccionistas sabem não foi aprendido no cenário acadêmico. Trata-se de saberes empíricos, adquiridos ao longo da vida e de acordo com as mais variadas experiências vividas. As faccionistas, na lida com o trabalho diário, tropeçam, se erguem, atuam na informalidade, cometem equívocos pela escassez de saberes ou até pelo excesso, mas, em geral, representam vidas que atuam em meio à precariedade social do sistema capitalista em vigor no mundo de muitas confecções de moda. Entre os saberes necessários, aprender a lidar com a tecnologia através da máquina de costura, é o primeiro deles, não o mais importante, porém é o saber que comumente se pensa ser o único. São máquinas importadas, de difícil manuseio e que exercem diversas funções, uma para cada tipo de costura. Além disso, precisam lidar e aprender sobre as propriedades dos materiais necessários para a costura e toda a dimensão tecnológica concernente, como tipos de linha, fios e tecidos, que se disponibilizam como matéria-prima das facções. Para cada tipo de tecido, um novo ajuste na máquina deve ser feito e, possivelmente, uma determinada agulha e uma determinada linha, e ainda um modo específico de proceder à costura. Para se gerir uma facção é necessário entender da parte administrativa, logística, contábil, financeira e jurídica que a envolve. De todos os saberes necessários, esses são os mais complexos para as faccionistas devido ao difícil acesso aos conteúdos e por serem áreas do conhecimento ligadas ao ensino acadêmico ou à gestão administrativa.16 As faccionistas são pressionadas pelo sistema fabril a aprender a negociar com os clientes que terceirizam suas produções. No cenário de Cuiabá-MT, a prática comum é a das fábricas ou marcas que as procuram e pré-estabelecem um valor a ser pago para cada peça produzida. As faccionistas não possuem poder de negociação. Elas relatam que, se não aceitarem o trabalho, as fábricas ou marcas escolhem outras facções concorrentes, que, por sua vez, aceitam o trabalho de fornecimento das peças mesmo que o valor a ser pago seja baixo. Além de todos os saberes mencionados, existe um que tradicionalmente a sociedade impõe à mulher. Elas precisam ainda administrar a casa, local onde suas facções se situam. Uma casa que precisa ser limpa, cuidada e vivida, com todas as subjetividades que incidem no cotidiano de uma família: cuidado dos filhos pequenos, demandas da vida conjugal no casamento, preparação de refeições e outras atividades. O título da presente tese possui o sujeito “costureiras” usando o artigo feminino no plural. O uso do gênero feminino é proposital, pois trata-se de uma profissão predominantemente feminina e que, durante a história e principalmente no presente, carrega consigo muitos problemas relacionados à condição de gênero que serão mencionados durante a tese. A presente pesquisa coloca em primeiro plano os saberes das costureiras de facções, considerando-as como epistemes contemporâneas ligadas aos diversos campos da prática social. Optei por evidenciá-los, pois há certa carência em pesquisas acadêmicas no campo da moda que estudam sobre o meio produtivo da cadeia econômica. Ou seja, quem efetivamente costura as peças, suas subjetividades e condições de trabalho. Mais escassas ainda são as pesquisas que envolvem as facções, fato observado após revisão bibliográfica com base em palavras-chave, como “moda”, “facções”, “oficinas”, “costureiras” e “faccionistas” realizadas em sites como o Periódicos da CAPES, Plataforma Lattes CNPQ, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações e Google Acadêmico. A escassez de dados referente a essa classe de trabalhadoras foi uma grande motivação para a produção e a escrita da tese. Entre as pesquisas encontradas, a grande maioria se situa na área das Ciências Sociais, História e Psicologia. Além disso, quase todas as pesquisas relevantes possuem uma marcação geográfica, ou seja, um recorte no cenário pesquisado. Os cenários mais pesquisados são de cidades do Nordeste e do Sul do país. Lugares tradicionalmente conhecidos pela forte 17 produção têxtil e de confecção. Os assuntos mais abordados nas pesquisas encontradas sobre as faccionistas são as condições precárias de trabalho, terceirização e questões de gênero. Entre as pesquisas encontradas que contribuíram para a construção da presente tese, destaco a de Angela Maria de Sousa Lima (2009), intitulada “As faces da subcontratação do trabalho: um estudo com trabalhadoras e trabalhadores da confecção de roupas de Cianorte e região” do Programa de Pós Graduação “Doutorado em Ciências Sociais” do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. A tese de Lima retrata o cenário dos trabalhadores de confecções de roupas de Cianorte e região, relacionando a informalidade com questões de gênero. A autora faz uma análise que relaciona o processo de modernização e reestruturação do setor de confecções na região com a intensificação da precarização de trabalho, principalmente para as mulheres. Destaco igualmente a dissertação de Juliane Oliveira Matos (2008), intitulada “Os sentidos do trabalho: a experiência de trabalhadoras de facções de costura da indústria de confecções do Ceará”, do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. A dissertação de Matos relata as experiências de faccionistas e costureiras de confecções do Distrito Industrial de Maracanaú com uma abordagem mais subjetiva através de citações diretas ao decorrer da pesquisa. A autora afirma que foi possível identificar as tendências globais de transformação da organização do trabalho no pequeno distrito que foi o cenário da pesquisa e que essas tendências, sob a prática da subcontratação e trabalho informal, trouxeram junto a ampliação do trabalho precarizado. Com a mesma relevância das pesquisas já citadas, destaco a de Louisianne Barros de Siqueira (2012), dissertação intitulada “Informalidade e precarização: o trabalho das costureiras de facção de Fortaleza/Ceará”, do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Apesar da pesquisa anterior pertencer ao mesmo programa, esta última possui o recorte temporal de anos seguintes e traz o recorte espacial da cidade de Fortaleza, especificamente de um único bairro, com a pesquisa qualitativa com oito costureiras. Da mesma forma que as anteriores, esta pesquisa considerou que as novas relações de trabalho, marcadas pela globalização, capitalismo e as ideias neoliberais, trouxeram consequências para a vida das costureiras de facção da cidade, marcadas pela exploração do trabalho. 18 Destaco à lista de pesquisas relevantes, a de Verena Fazolo (2014), intitulada “Industria del vestuário: la cuestión de la subcontratación em las micro y pequenas empresas de la gran Cuiabá, estado de Mato Grosso – Brasil”. Trata-se de uma dissertação do programa em Administração Estratégica de Negócios, da Universidad Nacional de Misiones, da Argentina. A dissertação de Fazolo aborda o contexto das facções na cidade de Cuiabá nos anos que antecedem o de 2014, ou seja, período em que a lei que legalizava a terceirização ainda não havia sido aprovada. Através de uma pesquisa quantitativa com empresas ligadas ao ramo da confecção na cidade, a autora comprovou que existia a prática da terceirização do trabalho há alguns anos, mesmo sendo, na época, ilegal. A pesquisa de Fazolo contribuiu, além disso, com o contexto histórico das leis que envolvem a terceirização. Foi um ponto de partida para o subcapítulo que aborda de forma mais ampla a parte burocrática e jurídica do trabalho das faccionistas. Considero que as quatro pesquisas destacadas contribuem efetivamente para a construção da presente tese oferecendo suporte, seja através da pesquisa de Fazolo (2014), que aborda todo o histórico referente às leis que envolvem a terceirização, ou através das contribuições características das áreas de psicologia e ciências sociais com abordagens mais subjetivas através do método de citações diretas. As pesquisas de Lima (2009), Matos (2008) e Siqueira (2012) comprovam a existência de um cenário de terceirização através da exploração do trabalho, informalidade e precarização em cidades da Região Sul e Nordeste do país. A presente tese contribui como um registro de que a situação de precarização na relação “mulheres-costura-trabalho” se constata da mesma forma na cidade de Cuiabá, localizada no Centro-Oeste do Brasil. Considero que a presente tese vai além das pesquisas estudadas e contribui para o conjunto de pesquisas já realizadas sobre costureiras e facções no Brasil. A tese relata de forma subjetiva a vida das faccionistas, levando em conta os seus saberes empíricos ao mesmo tempo que aborda o estudo de conceitos como os saberes da parte jurídica, contábil e econômica, trazendo também conceitos sobre trabalho, precarização, flexibilização e informalidade, além de uma discussão importante sobre gênero. Todos os conceitos acima são raramente estudados no campo da moda. Como a presente tese se situa dentro dos estudos interdisciplinares da cultura contemporânea, 19 considerei importante expor um panorama dos saberes relacionados ao mundo da moda, agregando à interdisciplinaridade. Ou seja, trata-se de uma pesquisa que une campos como sociologia, direito, psicologia, história e moda, todos sendo analisadossob a ótica da cultura contemporânea. A pesquisa ainda vai além ao analisar todas essas questões em um cenário onde não há grande representatividade da produção têxtil, de confecção e de criação de moda. Dessa forma, a potência da pesquisa está em relatar o modo de sobrevivência e resistência das faccionistas de Cuiabá, Mato Grosso. A tese se situa no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, um programa que, como já foi mencionado, é de natureza interdisciplinar. Sendo assim, trago aqui alguns conceitos relevantes para o leitor compreender o que é o contemporâneo e o que compreendo por cultura, um conceito extremamente amplo e com muitos significados possíveis. A definição de Giorgio Agambem, filósofo italiano, sobre o indivíduo contemporâneo é muito atual. Ao meu ver, o autor traz a noção de que o contemporâneo é improprio, anacrônico e até, ouso dizer, desajustado com o tempo em que vive. Segundo o autor (2009, p. 58), em uma leitura possível, “pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este nem está adequado às suas pretensões [...]”. O autor complementa afirmando que é exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo que o indivíduo é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. Agamben (2009) compara a contemporaneidade com a moda, ou melhor, com o "estar" ou "não-estar-mais-na-moda”. Essa cesura, ainda que sutil, é perspícua no sentido em que aqueles que devem percebê-la a percebem impreterivelmente, e, exatamente desse modo, atestam o seu estar na moda; mas, se procuramos objetivá-la e fixá-la no tempo cronológico, ela se revela inapreensível. (AGAMBEN, 2009, p. 66). A comparação com a o “estar ou não na moda” me fez compreender com mais facilidade a questão da contemporaneidade, por isso trago ao leitor como uma forma de complementar o entendimento acerca da moda: "O tempo da moda está constitutivamente adiantado a si mesmo e, exatamente por isso, também sempre atrasado, tem sempre a forma de um limiar inapreensível entre um 'ainda não' e um 'não mais'". (AGAMBEN, 2009, p. 67). 20 A tese foi escrita levando em consideração que existem culturas no plural, não cultura como algo singular, além de compreender os indivíduos como produtos culturais. Considero que as culturas populares são plurais. São urbanas e rurais, masculina e feminina, velha e jovem, ou seja, são múltiplas. Assim como são essenciais para a produção de alteridades, marcam as diferenças, criando classes, raças, identidades de gênero, refletindo em múltiplas subjetividades. A escrita de uma tese é como a costura de uma peça. Os mínimos detalhes que envolvem a sua produção são construídos por etapas. O início da “costura” da presente tese foi marcado a quatro anos atrás, pela escolha do objeto e indagações que o cercavam. Entre as indagações que motivaram a escrita, estavam: - Costurar de forma terceirizada em facções em Cuiabá-MT é um trabalho precário? - Se realmente é um trabalho precário, quais são os motivos que levam as faccionistas a trabalharem dessa forma? - O trabalho como faccionista está atrelado a uma condição de gênero? - Trata-se de uma fonte de renda que sustenta a família? - Como as faccionistas enxergam seus trabalhos e suas condições de vida? Foram perguntas muito simples e diretas, que nortearam a tese, que tem como objetivo geral: analisar os saberes das costureiras em facções de Cuiabá-MT, o que inclui suas subjetividades, a precariedade e a tecnologia do trabalho que as envolve. Para alcançar o objetivo geral, o dividi em objetivos específicos: - Identificar as questões de gênero na abordagem histórica do trabalho relacionado à costura através de processo de revisão bibliográfica. - Investigar quais são os saberes necessários para a operação de uma facção domiciliar. - Descrever a relação entre faccionistas e tecnologia, ou seja, como essa relação, muitas vezes familiar, se constrói no cotidiano como modo de subjetivar a vida, dentro do recorte das facções. - Apresentar as questões emergentes no âmbito das relações de trabalho, como as leis de terceirização, do microempreendedor individual e contrato de facção. 21 Em seguida, a forma como a tese deveria ser “costurada” foi escolhida, ou seja, o método. Depois disso fui ao encontro com o meu objeto de pesquisa, as costureiras de facções domésticas, para ouvi-las. Somente depois dessa etapa é que a tese começou a ser escrita. O saber empírico é considerado, na presente pesquisa, um saber de igual relevância a qualquer outro saber. Trata-se do saber aprendido ao longo dos anos através de suas experiências, ou seja, a forma como montaram suas facções, como aprenderam a costurar e como inseriram esse saber em suas facções, lidando com a organização de pedidos, atendimento ao cliente e a logística de produção. O saber empírico envolve a relação humano-máquina no processo de modernização e da obsolescência planificada das máquinas e dos saberes, através da lida com a tecnologia em constante transformação de seus equipamentos, como as máquinas de costura. A máquina arrasta os saberes das faccionistas conforme a própria tecnologia se transforma em modernização. Além disso, o saber dessas faccionistas envolve os processos de consumo, ou seja, a escolha do material, como tecidos, linhas, agulhas. São saberes determinados pelo jogo do mercado e pela burocracia de estado, como por exemplo, abrirem um cadastro como MEI (Microempreendedor individual), para terem acesso a um CNPJ e alguns benefícios, como a previdência social. Sendo assim, a fim de entender com mais detalhes o saber empírico, a análise de todo o conteúdo proposto na tese partiu das falas das entrevistadas. Elas foram processadas em conjunto com os conceitos estudados de teóricos de diversas áreas que serão mencionadas. Ao ir a campo, e estar de frente com o objeto de estudo, foi possível perceber que tanto o saber empírico quanto o saber acadêmico, representado pelos conceitos dos autores estudados, dialogam, apesar de a linguagem e a vivência serem diferentes. O Capítulo 1 da tese, nomeado “Saberes costurados por uma faccionista”, aborda os saberes que as costureiras necessitam conhecer e exercer para se ter uma facção. Como confeccionam artigos têxteis e representam parte da cadeia produtiva da moda, foi necessário trazer ao leitor uma perspectiva do mundo da moda, trata-se do subcapítulo 1.1, intitulado “Saberes do mundo da moda”. Durante toda a tese tive o cuidado de pensar que o meu leitor poderia ser de diferentes áreas do conhecimento, principalmente por se tratar de uma tese interdisciplinar, que envolve conceitos de diversas áreas que podem ou não serem familiares. 22 O subcapítulo dialoga sobre o cenário da moda de forma direta e simplificada, apesar de trazer as contribuições de teóricos como o filósofo francês Gilles Lipovetsky, o sociólogo francês Frédéric Godart, o sociólogo britânico Anthony Giddens e a historiadora de moda brasileira Mara Rúbia Sant’Anna. Traz uma discussão em torno do que é moda, um resumo ao longo dos anos sobre a história e seu percurso no mundo, além dos quatro sistemas que sustentam o mercado da moda: a alta-costura, o prêt-a-porter, o fast-fashion e o slow-fashion. Para finalizar o subcapítulo, há uma explanação de como o sistema da moda rebate no cenário da presente pesquisa: Cuiabá-MT, uma cidade com desenvolvimento de moda autoral tímido, que segue tendências de comportamento e consumo de cidades maiores como São Paulo e Rio de Janeiro. Adianto ao leitor que a presente tese aborda os conceitos relacionados à Moda e se ancora nos estudos desse campo do saber, porém defendo que a pesquisa abrange com mais ênfase o lado avesso da moda do que o lado mais conhecidono imaginário das pessoas. O subcapítulo 1.2, intitulado “Saberes das costureiras a partir da década de 1950”, tem como objetivo relatar como as costureiras aprendiam a costurar desde a década de 1950. Foi necessário o recorte temporal para que o subcapítulo não se tornasse extenso demais ao ponto de se desviar do foco principal. Na década de 1950 e 1960 o método Vogue foi muito disseminado no Brasil. Tratava- se de um livro com o método de ensino presencial ou por correspondência voltado principalmente para mulheres encontrarem no ofício da costura uma forma de ganhar dinheiro ou serem uma boa “dona do lar”. O presente subcapítulo possui uma curiosidade que gostaria de compartilhar com o leitor: tenho um exemplar original da década de 1967, da décima nona edição, que guardei por muitos anos, desde quando estudava design de moda na graduação. Fui presenteada por uma costureira que aprendeu a costurar com ele. Por muitos anos guardei e me esqueci, até que, ao me deparar com a necessidade de pesquisar como as costureiras aprendiam a costurar, surgiu o nome “Vogue”, que me despertou a lembrança. Encontrei o livro bem empoeirado e com as páginas amarelas, mas que foi muito útil, pois pude fazer uma análise na íntegra, sem o filtro de outro pesquisador. 23 O subcapítulo se ancora nos conceitos de André Gorz, filósofo francês e Richard Sennet, sociólogo e historiador norte-americano. Ambos contribuem para a tese com conceitos sobre o conhecimento, saberes e o termo “artífice”, que fui conhecer somente ao me deparar com o momento da escrita. Além disso traz alguns exemplos práticos dos saberes específicos que as faccionistas possuem no dia-a-dia da confecção, como a etnomatemática, conceituada aqui pelo matemático brasileiro Ubiratan D’Ambrosio. O subcapítulo 1.3, intitulado “Saberes tecnológicos: a lida com a máquina”, traz conceitos acerca da tecnologia dos autores Álvaro Vieira Pinto, filósofo brasileiro, e do também filósofo, Val Dusek. Neste subcapítulo, o objetivo é que o leitor compreenda que as faccionistas precisam dominar o saber tecnológico que envolvem seus instrumentos de trabalho, tendo a máquina de costura como o principal deles. São inúmeras marcas de máquinas de costura industrial, sendo que todas comercializadas no Brasil são de tecnologia importada. Durante o subcapítulo cito as principais utilizadas no cenário das facções domésticas em Cuiabá e as dificuldades de se aprender e lidar com elas. Aproveito para mostrar com fotos e imagens explicativas os modelos de máquinas mais usadas e os pontos específicos que cada uma produz. Ao pesquisar sobre o processo produtivo das facções domésticas, duas palavras aparecem diretamente: informalidade e precariedade. O Capítulo 2, “Costuras frágeis: precarização nas facções”, dá ênfase a essa dura realidade que envolvem as faccionistas. O subcapítulo 2.1 expõe as questões de gênero, nele as entrevistas realizadas com as faccionistas aparecem com mais expressividade e dialogam a todo momento com as autoras pesquisadas: a antropóloga brasileira Adriana Piscitelli, a historiadora norte-americana Joan Scott, a socióloga francesa Danièle Kergoat, e a cientista política brasileira Flavia Biroli. As três faccionistas entrevistadas são mães e, em todos os casos, foi observado que a escolha pelo sistema de facção doméstica foi impulsionado ou relacionado justamente ao fato de terem se tornado mães. Ao observar e analisar o contexto das três entrevistadas foi possível perceber que nenhuma delas teve a opção de parar de trabalhar depois que tiveram filhos. Na verdade, ocorre o contrário: elas precisaram continuar trabalhando exatamente por esse motivo. 24 Trabalhar em casa através do sistema de facção acabou sendo uma opção, pois em alguns casos não conseguiram arrumar uma vaga na creche ou gostariam de acompanhar melhor seus filhos dentro de casa. São mulheres que acumulam funções, pois além do trabalho como faccionistas, cuidam dos afazeres domésticos da casa, além do cuidado com os filhos. O que se percebe é que aos companheiros fica a função de “contribuir” ou “ajudar” com o cuidado com a casa e os filhos. Muito diferente do papel assumido pelas mulheres, já que a rotina dessas tarefas é uma condição atrelada ao gênero. O subcapítulo 2.2 intitulado “Trabalho e emprego” possui um viés mais teórico. Foi necessário trazer para o contexto da tese um estudo relacionado à conceituação do trabalho e o que representou ao longo dos anos. Para isso busquei o suporte de autores como o sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato, o sociólogo brasileiro Ricardo Antunes, além das bases teóricas de Karl Marx e do filósofo francês Gilles Deleuze, que guiaram toda a construção da tese. Seu subcapítulo traz para o leitor discussões acerca do capitalismo, mais-valia, divisão sexual do trabalho, fordismo, Toyotismo, flexibilização e horizontalização. Além disso, traz a diferenciação entre trabalho e emprego. Após a apresentação de conceitos, que podem não ser familiares ao leitor, o subcapítulo especifica e detalha o trabalho realizado pelas faccionistas. Com uma escrita mais densa e carregada de informações jurídicas, o subcapítulo 2.3 intitulado “Leis e terceirização: saberes trabalhistas e judiciais”, também aborda, assim como o anterior, informações mais teóricas e conceitos ancorados na leitura de Ricardo Antunes. Através de um percurso ao longo da história do Brasil no que tange às leis trabalhistas e direcionadas a questão da terceirização, é possível compreender o porquê de as costureiras trabalharem em situação informal e de precariedade. Para tanto, foram estudadas a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, que proibia a terceirização de atividades-fim; a Lei nº 128 de dezembro de 2008, que cria e legaliza a situação do microempreendedor individual (MEI); e a lei 13.429 de março de 2017, que, por fim, legaliza a terceirização das atividades-fim, abrindo brechas para a precarização do trabalho realizado pelas faccionistas. Ao longo do subcapítulo são apresentadas algumas formas das faccionistas trabalharem de forma legal, assim como apresenta casos de exploração do trabalho, como 25 condições análogas à escravidão ocorridos no Brasil, além de expor como as fábricas e faccionistas lidam com essas questões em Cuiabá. O Capítulo 3, intitulado “Cenário têxtil e de confecção: como se costura em Cuiabá” fornece ao leitor um panorama sobre o cenário econômico da cidade de Cuiabá, sobre as facções e o ambiente doméstico onde trabalham as faccionistas. O subcapítulo 3.1, “O cenário produtivo têxtil e de confecção de Cuiabá”, contextualiza melhor a cidade de Cuiabá, as regiões vizinhas e as especificidades que envolvem um cenário em que não houve uma industrialização de forma efetiva, e que não é caracterizado por um forte desenvolvimento no setor de confecção e têxtil, além disso aborda dados econômicos e geográficos. Dessa forma, o leitor pode compreender que entre as dificuldades das faccionistas está a falta de reconhecimento da profissão, bem como a não representatividade, a falta de união e força da categoria, por não se tratar de uma cidade considerada polo têxtil e de confecção. O subcapítulo 3.2 chamado “O cenário de uma facção” detalha a forma de operação das facções em Cuiabá, bem como as etapas de produção que podem ser realizadas através do processo de terceirização nos ambientes domésticos, já que, ao mencionar facções dentro do contexto das confecções, é comum imaginar que se tratam de facções de costura, o que não é uma regra, já que existem facções especializadas em processos de estamparia e bordado por exemplo, além de outros. O respectivo subcapítulo se baseia em dados mais empíricos, ou seja, coletados tanto através das entrevistas realizadas com as faccionistas e proprietários, assim como através da minhaexperiência prévia enquanto estive imersa no contexto das facções e indústrias de Cuiabá. O subcapítulo 3.3, intitulado “O cenário da casa”, possui um viés mais subjetivo e se alicerça sobre os conceitos teóricos da arquiteta brasileira e pós doutora em Crítica da Cultura Ludmila Brandão, do filósofo francês Félix Guattari e Gilles Deleuze. A casa é um ambiente subjetivo e de intimidade da família que a habita. Porém quando o ambiente de trabalho se instala em seu interior, como é o caso das facções, outras relações subjetivas se constroem naquele ambiente. O subcapítulo as explora e expõe, através de análises dos teóricos e dos relatos das entrevistadas. 26 Além disso, conta com o suporte de fotografias tiradas nos momentos das entrevistas, para que o leitor observe melhor as instalações das facções, como adaptaram o ambiente de trabalho dentro do ambiente doméstico e suas formas de organização. O Capítulo 4, intitulado “Subjetividade como costura: vida de faccionista” explora de forma mais incisiva as entrevistas realizadas com as faccionistas. Possui esse nome por abranger questões como o cotidiano e os papéis sociais desempenhados por essas mulheres e, assim, ao mencionar esses temas, as subjetividades que envolvem a vida das faccionistas foram expostas e debatidas. O subcapítulo 4.1, nomeado “O cotidiano de trabalho na facção”, tem como ponto de partida o conceito de cotidiano da filósofa húngara Agnes Heller e como ele se aplica no contexto do trabalho dentro de casa. Debate sobre o sentimento de “estar em casa” em meio ao ritmo frenético da produção, além dos conflitos das próprias faccionistas em tentar dividir momentos de trabalho com os momentos de estar com a família, mesmo que seja através de pequenos rituais matinais se preparando para o trabalho, como tomar um café. Também é abordada nesta parte a maneira como as três entrevistadas se percebem como faccionistas, como enxergam os seus trabalhos, os problemas de saúde que enfrentam em decorrência das longas jornadas e da falta de ergonomia, a forma como lidam com o tempo. Além disso, descreve com detalhes a etapa produtiva de uma camiseta, a fim de que o leitor perceba como cada minuto da produção conta e se reverte em uma renda boa ou não no fim do mês. O subcapítulo 4.2 tem como título: “A vida das faccionistas”. A palavra “vida” foi escolhida intencionalmente pois remete a questões subjetivas e aspectos pessoais. Além disso, foi uma forma mais fácil de elucidar às faccionistas sobre o motivo das entrevistas. Ao entrar em contato com elas o contexto da presente pesquisa foi esclarecido, e foi mencionado que seria interessante que eu soubesse detalhes tanto sobre suas vidas profissionais, quanto pessoais. Para isso o subcapítulo conta com o suporte dos conceitos dos autores já mencionados Agnes Heller, Flavia Biroli, Maurizio Lazzarato e Félix Guattari. O subcapítulo aborda a forma como o capitalismo incide e molda as subjetividades das faccionistas e suas trajetórias de vida e de profissão. Além de contar com a visão crítica de cada uma das entrevistadas sobre seus trabalhos. 27 Questões como as poucas horas de sono, a fadiga, o stress, os papéis sociais desempenhados pelas faccionistas, seus sonhos, a forma como veem o futuro, a religião e a própria dinâmica da família são analisados mais profundamente durante o subcapítulo. O subcapítulo 4.3, nomeado “De costureiras a faccionistas”, expõe conceitos ligados à história oral, história cultural, cultura popular e folkcomunicação. Essa costura de conceitos foi necessária para compreender os saberes das faccionistas como um saber popular e empírico. O subcapítulo é chamado “De costureiras a faccionistas” pois retrata a transformação ao longo dos anos, devido a modernização do mundo, de uma profissão. Através de momentos marcantes da história, como antes e depois da industrialização em alguns países e o fenômeno da terceirização, é possível compreender como os saberes das costureiras tiveram que ser ajustados e como elas se viram forçadas a dominar muitos outros, além do “saber costurar”. Como já foi mencionado anteriormente, a tese se situa dentro do programa de Pós- graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Faculdade de Comunicação e Artes da Universidade Federal de Mato Grosso. Está inserida dentro do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Cidade (Citicom-UFMT/CNPq), que busca enfatizar a cidade como questão no campo comunicacional, e de modo específico a cidade de Cuiabá-MT. A pesquisa se insere na Linha de Epistemes Contemporâneas. Dentro das práticas interdisciplinares, considero os saberes de faccionistas como epistemes comunicacionais na medida em que eles se processam como informações que passam em âmbito familiar, dimensão comunitária e com características de atravessamento de gênero. Os saberes das faccionistas são também saberes midiáticos, operados pela presença de equipamentos tão domésticos quanto máquinas de costura, como smartphones, notebooks, aplicativos como o Whatsapp e ferramentas como o Youtube A COSTURA DO MÉTODO: CULTURA E HISTÓRIA ORAL Durante a pesquisa, optei por utilizar a entrevista e a observação de campo como técnicas que compõem a metodologia, que são aqui identificadas como observação direta e entrevista qualitativa em profundidade semiestruturada. 28 Existem algumas formas de se referir à abordagem da observação, como observação participante, observação direta ou observação in situ. (JACCOUD e MAYER, 2008, p. 254). Mylène Jaccoud e Robert Mayer (2008, p. 258), citando um trabalho de Burguess, elencam algumas técnicas que podem ser utilizadas como complemento à observação direta: “fontes documentais, fontes estatísticas, entrevistas e questionários.” Levando em conta os dados apresentados e a necessidade de se extrair ao máximo fontes que relatam o contexto em que as costureiras vivem, optei pela entrevista qualitativa em profundidade, com três faccionistas. A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 1994, p. 21). A pesquisa qualitativa se difere da quantitativa principalmente por se aprofundar nos significados das ações e relações humanas (MINAYO, 1994, p. 22). Algo que não é possível ser medido através de análises, equações ou estatísticas da pesquisa quantitativa. O processo da pesquisa qualitativa se inicia com uma fase que se chama “fase exploratória da pesquisa”. Segundo Maria Cecília Minayo (1994, p. 26) trata-se do: [...] tempo dedicado a interrogar-nos preliminarmente sobre o objeto, os pressupostos, as teorias pertinentes, a metodologia apropriada e as questões operacionais para levar a cabo o trabalho de campo. Seu foco fundamental é a construção do projeto de investigação. Sendo assim, antes de ir a campo, me preparei pensando nas entrevistadas e nos cenários que poderia encontrar. Formulei algumas perguntas que considerava importantes de serem abordadas. Eram perguntas divididas por temas, pensando na fluidez da entrevista. Essas perguntas se transformaram em um roteiro semiestruturado, ou seja, aberto para possíveis outros assuntos que poderiam surgir ao longo das entrevistas. Em todos os momentos em que fui acolhida nas casas das faccionistas, iniciei as entrevistas, que serão mencionadas através de trechos de citação direta durante a tese, informando o leitor de que os nomes reais foram substituídos por nomes fictícios, a fim de preservar suas identidades. Elas são chamadas aqui de Neide, Julia e Maria. São trêscostureiras com histórias de vida diversas, que serão apresentadas ao longo da tese. Para a melhor compreensão e diferenciação, apresento um breve perfil de cada uma delas: 29 Neide possui 54 anos, foi casada duas vezes, é divorciada, possui três filhos, mora em uma casa muito simples de cinco cômodos em um bairro afastado do centro da cidade, sem asfalto. Trabalha há 34 anos como costureira e há 20 como faccionista. Seu filho mais novo de 19 anos mora com ela e a ajuda raramente. Trabalha só meio período e no outro estuda e atua como obreira. Não possui o ensino fundamental completo, vem de uma geração de costureiras e aprendeu a costurar em um curso, pago pelo ex-marido. Maria possui 56 anos, é solteira e mora com o filho de 25 anos. Mora em uma casa em um bairro não tão distante do centro de Cuiabá. No mesmo terreno, porém em uma construção separada, moram sua irmã, cunhado e sobrinho. Trabalha como faccionista em sociedade com sua irmã. Atua há 26 anos como costureira e há 22 como faccionista. Não possui o ensino fundamental completo e aprendeu a costurar em uma fábrica. Julia possui 38 anos, é casada e mora com o marido e três filhos, uma menina de 14 anos, um menino de 9 e um bebê de 2 anos. Trabalha junto com o seu marido, que fica mais responsável pela parte de estamparia da facção. Mora em uma casa com terreno amplo em um bairro afastado e sem asfalto na cidade de Várzea Grande, vizinha de Cuiabá. Possui o ensino fundamental completo, nunca trabalhou em fábricas e aprendeu a costurar com a sua professora do Senai de Cuiabá, há 12 anos atrás. A pesquisa se apoia no método da história oral. José Meihy (2000, p. 44) compreende que: “Como método, a história oral se ergue segundo alternativas que privilegiam os depoimentos como atenção central dos estudos. Trata-se de focalizar as entrevistas como ponto central das análises”. O autor argumenta que a história oral não é de uso exclusivo de historiadores. “[...] não fica restrito à História – com ‘H’ maiúsculo – o monopólio da história oral. Nem a qualquer outra área do conhecimento, diga-se.” (MEIHY, 2006, 196). Com base na defesa do autor, entendi que à minha pesquisa caberia o uso de tal método. Meihy (2000, p. 49) defende que “se tomados como ‘saber’ ou ‘conhecimento’, os trabalhos de história oral se revestem da mesma consideração que os históricos convencionais.” O autor também aponta: Hoje em dia, os projetos de história oral passam a ter importância por tratarem de impressões, aspectos subjetivos, fantasias e visões de mundo que implicam interpretações diferentes das possíveis em histórias feitas com critérios considerados científicos. (MEIHY, 2000, p. 49). 30 O autor acredita que a história oral é um recurso de transformação, e não apenas um acesso ao conhecimento ou informação. Esse ponto é o que difere a história oral das entrevistas de cunho testemunhal. Janaína Amado e Marieta de Moraes Ferreira (2006, p. 12) compreendem que há três posturas a respeito do status da história oral: a história oral como uma técnica, como uma disciplina e como uma metodologia. As autoras defendem a postura da história oral como metodologia, pois é muito mais abrangente e complexa do que uma simples técnica. Não reconhecem a história oral como uma disciplina, isto é, uma área de estudos com objeto próprio e capacidade de gerar soluções teóricas para as questões surgidas na prática. Defendem que a história oral estabelece e ordena procedimentos de trabalho, assim como todas as metodologias. Ou seja, qual o tipo de entrevista e as suas implicações para a pesquisa, as possibilidades de transcrições, a forma como o historiador se relaciona com o entrevistado. (AMADO e FERREIRA, 2006, p. 16). Losandro Tedeschi (2014, p. 11) complementa: A racionalidade hegemônica, o pensamento único, patriarcal, colonizador, o consenso fabricado sobre os campos de significados produzidos acerca da sociedade, a ciência, a cultura, a política, entre outros, apagaram a memória desses grupos, negando o passado e reificando o presente, levando mulheres, negros e indígenas a lutar pela desnaturalização desses discursos. Outro ponto interessante da história oral é a relevância que as entrevistas assumem como uma forma alternativa de proposta para uma história diferente do habitual, que é feita sobre bases documentais tradicionais. (MEIHY, 2006, p. 196). O objetivo da história oral trata-se então de captar as vozes ocultas pelo saber oficializado. Trata-se de um ponto que se aproxima muito da presente pesquisa, pois as entrevistadas são mulheres, que possuíam e possuem muitas vezes suas vozes silenciadas na história. Além de terem uma profissão que as silencia e ocultam ainda mais. Sendo assim, optei por inserir trechos das entrevistas na íntegra e de forma privilegiada pois os saberes das costureiras das oficinas ou facções são o meu objeto de estudo, além de serem muito singulares, pois são empíricos e não acadêmicos, sendo possível serem extraídos somente através delas, tendo assim muita relevância para o presente estudo. O uso da história oral, portanto deveria ser aplicado onde os documentos convencionais não atuam, revelando segredos, detalhes, ângulos pouco ou nada prezados pelos documentos formalizados em códigos dignificados por um saber acadêmico que se definiu longe das políticas públicas. (MEIHY, 2006, p. 197). 31 A história oral traz realidades que não aparecem em documentos escritos: Não se pode esquecer que, mesmo no caso daqueles que dominam perfeitamente a escrita e nos deixam memórias ou cartas, o oral nos revela o “indescritível”, toda uma série de realidades que raramente aparecem nos documentos escritos, seja porque são considerados “muito insignificantes” – é o mundo da cotidianidade – ou inconfessáveis, ou porque são impossíveis de transmitir pela escrita. (JOUTARD, 2000, p. 33). O cotidiano faz parte da vida das faccionistas, sendo assim, compreendi que as questões que podem ser consideradas “insignificantes” em primeiro momento, não só fazem parte, mas são essenciais nas subjetividades que constroem todas as dimensões de uma faccionista, e poderiam ser melhor extraídas através da história oral como parte do processo metodológico. Para usar a história oral como método procurei entender a própria história da história oral, fazendo uma revisão bibliográfica, analisando seu campo de estudos, que áreas abrangem e seus principais teóricos. Pesquisando com mais densidade, pude observar que se trata de um campo de difícil conceituação por parte dos próprios teóricos. Tal fato trouxe dúvidas se eu, como pesquisadora da área da moda e atuando no campo dos estudos de cultura, estaria preparada para usá-la como método. Venho de uma área muito prática, de formação acadêmica hoje, com perfil profissionalizante, que possui uma fragilidade quanto ao registro e estudos de metodologias quando comparada a outras. Acredito que exatamente por vir de uma área muito prática, torna-se premente compreender temas presentes em áreas e/ou subáreas que também estão em busca de uma conceituação mais definida e objetiva, como o caso da história oral. Jorge Lozano (2006, p. 19), frisa que a história oral se constitui pela confluência multidisciplinar, é como uma encruzilhada de caminhos, um intercâmbio entre a história e as demais ciências sociais e do comportamento. A história oral é inclusive usada e apropriada fora do mundo acadêmico. Amado e Ferreira (2006, p. 15) compreendem que o fato de a história oral ser largamente praticada fora do mundo acadêmico tem gerado tensões. Porém, essa pluralidade, que é marca da história oral, quando aceita pode gerar um rico diálogo que é raro em outras áreas da história. Mesmo ciente das dificuldades que abarcam a história oral, optei por usá-la como ferramenta teórica no arcabouço metodológico, principalmentepor sua proximidade com o campo da história cultural, outro campo que apresenta também esforços na busca por uma conceituação objetiva e teoricamente aceitável na comunidade acadêmica, se não na história, 32 em área adjacentes e igualmente emergentes e metodologicamente em busca de caminhos possíveis de investigação. Importante para a presente pesquisa é o fato de a história oral tender a se situar exatamente onde a história geral, a história política ou econômica, não chega: a história da cultura. Enfatizando-a e compreendendo que existem “culturas”, e não “a cultura”, opta-se por “[...] uma saída para a atual fragmentação da disciplina em especialistas de história de população, diplomacia, mulheres, ideias, negócios, guerra e assim por diante.” (BURKE, 2005, p. 06). A não-especialização que a história cultural defende contribuiu para o entendimento de que, no caso desta pesquisa em estudos de cultura contemporânea, os saberes das costureiras, constituídos através das suas subjetividades, experiências e cotidiano em meio à estrutura econômica e política, devem ser analisados em conjunto. Não há como compreender seus saberes sem abordar as dimensões que as envolvem, como os relacionamentos, a família, o casamento, filhos, religião e trabalho. Ao ler “Costumes em Comum” (1998) e “A formação da classe operária inglesa” (1988), ambos do historiador inglês Edward Palmer Thompson, compreendi a importância do registro da história sob a ótica cultural da classe operária, ou seja, a história cultural “a partir de baixo”. São obras que aparecem como um marco na história cultural britânica. Ao fazer esse registro, Thompson influenciou diversos historiadores a romper com as abordagens anteriores, em que pessoas comuns são deixadas de fora da história. O autor passou a se tornar uma referência para a história do trabalho, pois em suas análises os trabalhadores eram os próprios sujeitos de suas histórias. Assim, segundo Peter Burke (2005, p. 68), os historiadores se tornaram cada vez mais conscientes de que pessoas diferentes podem ver o mesmo evento ou estrutura a partir de perspectivas muito diversas. Thompson apresenta, portanto, uma versão diferente da história, uma história que nunca foi bem explorada, já que os olhares dos historiadores estavam voltados para outros atores, em geral pertencentes a outras camadas sociais. Ao analisar suas obras, mesmo que no contexto de trabalho do operário inglês do século XVIII e XIV, em uma realidade distante no espaço e no tempo, considera-se, a partir 33 do ponto de vista de Burke, o cenário das facções em Cuiabá, uma cidade, que séculos depois, já na segunda década do século XXI, ainda não passou por um processo de industrialização efetivo, e assim pude perceber semelhanças, apesar das diferenças. Mesmo séculos depois do tempo retratado por Thompson, o cenário produtivo da classe das trabalhadoras de facção é desvalorizado e pouco documentado. Através da revisão bibliográfica percebi que são raras as pesquisas que abordam o cenário das facções de costura no Brasil através de uma abordagem pela perspectiva das próprias faccionistas. Ou seja, que privilegiasse as vozes dessas mulheres, ou que com clareza e amplitude registrasse os cenários em que vivem, suas subjetividades, enfim, seus saberes. Compreendi que, ao escolher e defender uma opção metodológica de observar o contexto “a partir de baixo”, fiz também uma opção política. Ao adotar tal postura como pesquisadora, enfatizo a existência de “culturas”, e não “cultura” no singular, algo que a história cultural defende e que muitos historiadores do passado não tiveram como objetivo alcançar ou compreender. Além das entrevistas com faccionistas, foi necessário entrevistar três proprietários de confecção, pois precisava de dados técnicos e burocráticos que não foi possível obter apenas com as entrevistadas. Alguns dos proprietários terceirizam ou já terceirizaram com algumas das faccionistas. Para isto também optei pela entrevista qualitativa em profundidade semiestruturada. Por fim optei, pelo método de observação direta nas facções das três faccionistas entrevistadas. O plano inicial era retornar a cada um dos cenários das facções onde tinha realizado as entrevistas, para observar enquanto trabalhavam. Porém, o retorno só foi possível em uma das casas das faccionistas. Quando expliquei que eu retornaria para observá-las trabalhar, todas responderam que não teria nenhuma objeção. Porém Maria foi a única faccionista que permitiu o meu retorno. Neide não respondeu às minhas ligações e mensagens quando solicitei para retornar, e, no caso de Julia, seu marido me informou que não gostaria que eu voltasse à facção. Respeitei a condição colocada nos dois casos. Acredito que tal situação aconteceu, pois as faccionistas podem ter algum tipo de receio do rumo da pesquisa ou consideraram que a minha visita tomaria muito tempo delas, tempo que poderia ser dedicado ao trabalho, gerando renda. 34 Durante a primeira visita em cada facção, foi utilizado um gravador para as entrevistas, por meio de um aplicativo no próprio celular. Após a etapa das entrevistas, foi realizada a transcrição. O momento da passagem da oralidade para a escrita foi realizado de forma cautelosa. Afinal, uma pausa na fala, um silêncio ou uma hesitação podem significar muitas coisas dependendo do contexto. Daniele Voldman (2006, p. 38) comenta sobre a pausa: Para ele [historiador], não se trata de propor interpretações da mensagem que lhe é comunicada, mas de saber que o não-dito, a hesitação, o silêncio, a repetição desnecessária, o lapso, a divagação e a associação são elementos integrantes e até estruturantes do discurso e do relato. Joutard (2000, p. 35) esclarece que: “[...] o documento original é a gravação e que a transcrição não passa de acessório, não podendo substituir a audição de fitas gravadas [...]”. Sendo assim, mesmo tendo ciência de que a transcrição não substitui a oralidade, procurei ser o mais abrangente possível nos detalhes e identificá-los nas transcrições a fim de que esse processo auxiliasse no decorrer da tese. Além disso tive acesso constante às gravações, sempre recorrendo a elas em momento de necessidade. As perguntas foram levadas a campo e transformadas em um roteiro, porém, seguidas de forma livre, à medida que certos assuntos surgiam. Durante as entrevistas, diversas perguntas que não estavam no roteiro vieram à tona de forma muito espontânea. A espontaneidade das entrevistas, que se tornaram conversas, foi muito importante para a percepção das questões subjetivas, os saberes que as envolvem e o cenário em que vivem. Além do celular com o aplicativo de gravador de voz, levei a campo um caderno, que a princípio pensei que funcionaria como um diário de campo. Porém, o caderno foi pouco utilizado, pois sentia que as faccionistas faziam breves pausas quando eu fazia alguma anotação, interrompendo o fluxo natural da conversa. Já no momento de observação direta, quando voltei a campo para observar Maria, que permitiu o retorno, o diário de campo foi fundamental. Expliquei à faccionista e à sua irmã, sócia da facção, que daquela vez o gravador estaria desligado, e que o foco do meu retorno era a observação do cotidiano, resumido ali a um dia de trabalho. Usei o diário para descrever o cenário através das minhas percepções, descrição de gestualidades que poderiam ser classificadas como cotidianas e despercebidas pelo gravador, características subjetivas em geral, além de alguns questionamentos. Jaccoud e Mayer (2008, p. 274) falam sobre a importância das anotações na pesquisa: 35 As anotações metodológicas consistem na descrição do desenvolvimento das atividades da pesquisa e no relatório sobre a integração social do pesquisador no meio observado. As anotações teóricas visam a construçãosocial do pesquisador no meio observado. Nas anotações descritivas, registra-se o trabalho de percepção do vivido e relata-se exaustivamente a situação observada. É fato que a utilização do gravador inibiu as faccionistas. Por isto, desde as primeiras conversas por telefone, quando comentava como seria a pesquisa, mencionava o uso do gravador, mas amenizava ao comentar que as entrevistas se assemelhariam a conversas informais. No retorno à facção de Maria, foi possível constatar que ela e a irmã estavam mais à vontade, devido ao fato de já me conhecerem e porque o gravador estava desligado. A abordagem da observação direta é bem detalhada, o pesquisador deve estar atento aos detalhes para estar apto a descrevê-los durante a tese. No modelo de passividade, o pesquisador colhe os dados de natureza principalmente descritiva, observando a vida cotidiana do grupo, da organização, da pessoa que ele quer pesquisar. Sua intervenção continua mínima. (DESLAURIERS, 1991 apud JACCOUD e MAYER, 2008, p. 262). A pesquisa adota o modelo de passividade no momento de imersão, quando retornei à facção para observar o cotidiano de um dia de trabalho. Ou seja, durante esse momento, a minha intervenção foi reduzida, a fim de não atrapalhar a cena produtiva e colher os dados como seriam se eu não estivesse no meio. [...] o termo ‘observação’ pode ser empregado tanto para designar um tipo de coleta dos dados pelo próprio pesquisador (a observação in situ), quanto um tipo de relação com os objetos-sujeitos pesquisados; isto é, o de um contato mais ou menos íntimo. (CHAPOULIE, 1993, apud JACCOUD e MAYER, 2008, p. 258). Em todas as entrevistas foi permitido que eu tirasse fotos. Para isso, foi utilizado um aplicativo de telefone celular. O objetivo das fotografias era o foco nos detalhes, de modo a não revelar através das imagens o local de trabalho ou a identidade das faccionistas, devido ao teor ético da pesquisa e que então estávamos buscando delimitar com mais precisão: até que ponto as informações constituiriam a tese, sem causar maiores desconfortos às entrevistadas e sem produzir sensação de ameaça ao trabalho e à vida privada das entrevistadas. Angers (1992, p. 131) desenvolve sobre a abordagem da observação direta: Trata-se de uma técnica direta, já que há um contato com informantes. Trata-se, também, de uma observação não-dirigida, na medida em que a observação da realidade continua sendo o objetivo final e, habitualmente, o pesquisador não intervém na situação observada. Trata-se, ainda, de uma análise qualitativa, uma vez que entram em jogo anotações para descrever e compreender uma situação, mais do que números para enumerar as frequências de comportamentos. 36 Chapoulie (1984) e Laperrièrre (1984, apud Jaccod e Mayer, 2008, p. 260) comentam sobre as diferenças de abordagem em relação a hipótese: [...] a observação é concebida como uma abordagem, cuja visão é essencialmente explicativa ou objetiva: trata-se de observar fatos num meio determinado, para formular hipóteses que serão, depois, testadas por meio de um retorno a um trabalho de observação, e assim por diante (modelo indutivo); ou, ao contrário, trata-se de empreender o trabalho de campo a partir de hipóteses que deverão ser testadas e validadas pelas observações (modelo dedutivo). A hipótese da tese, portanto, que veio se desenvolvendo entre revisão bibliográfica e pesquisa de campo, pode ser assim enunciada: As costureiras de facção produzem saberes específicos para o funcionamento das facções, saberes em construção e a serem possivelmente construídos. Estão trabalhando em suas casas, através de uma atividade informal, como uma saída a precariedade, buscando transformar o saber, possivelmente saberes populares urbanos, em trabalho, realização pessoal e valor econômico. No caso da pesquisa, a hipótese surgiu após as primeiras visitas nas casas das faccionistas. Dessa forma, a pesquisa, considerando a busca pelo argumento ou hipótese como construção teórica, seguiu o modelo indutivo, apontado pelos autores, ou seja, através de uma hipótese inicial em campo com as entrevistas, observando as faccionistas em seus ambientes para posteriormente a hipótese ser reformulada, que foi testada ao retornar a campo. As questões mais debatidas, mais comentadas, e, enfim, mais documentadas concernem, sobretudo, à posição e ao papel do observador, sua relação com o campo de pesquisa, o lugar da observação no procedimento de pesquisa, os critérios de validade e de confiabilidade, a amostragem ou a seleção do local de observação, a construção das categorias de análise, a produção teórica, o problema da generalização dos resultados e as questões de ordem ética. (JACCOUD e MAYER, 2008, p. 255). As categorias de análise foram construídas levando em conta as características de definição de amostragem da pesquisa qualitativa. A pesquisa qualitativa não se baseia no critério numérico para garantir sua representatividade. Uma pergunta importante neste item é “quais indivíduos sociais têm uma vinculação mais significativa para o problema a ser investigado?” A amostragem boa é aquela que possibilita abranger a totalidade do problema investigado em suas múltiplas dimensões. (DESLANDES, 1994, p. 43). Sendo assim, para a presente pesquisa, o mais importante era que, no desafio da busca e da construção metodológica, eu, como pesquisadora, conseguisse extrair o máximo de informações e percepções de cada faccionista. Entendi que mais importante do que um grande número de informações e de entrevistadas, era a profundidade da pesquisa. Somente dessa forma seria possível entender as dimensões subjetivas que envolvem o trabalho das faccionistas neste fazer simultaneamente relacionado ao doméstico e à produção econômica. 37 Resolvi, levando em conta tais características e condições, começar com três entrevistadas, tendo em mente que esse número poderia aumentar ou não no decorrer da pesquisa. Solicitei a indicação de três faccionistas a uma fábrica que terceiriza sua produção com facções há muitos anos. As características que foram prezadas no momento da escolha das três foram a de serem pessoas abertas à comunicação, que se sentissem mais à vontade na presença de um gravador e que fossem solícitas. Após entrar em contato com todas as faccionistas, uma delas me deu uma resposta negativa. Antes disso me perguntou se teria alguma remuneração por me ceder a entrevista. Expliquei que minha pesquisa não previa nenhum tipo de verba para as entrevistadas, e que todas elas seriam beneficiadas de alguma forma, pois a pesquisa retrataria suas vidas e se destinaria também a elas. A resposta, mesmo assim foi negativa, e eu tive que entrar em contato com uma quarta costureira, que gentilmente aceitou me receber em sua facção. A metodologia da história oral não se detém nos pontos comuns entre os entrevistados. “[...] a história oral, diferentemente das abordagens comuns à sociologia, se preocupa com as versões individuais sobre cada fenômeno. [...] Afirma-se pois que cada depoimento para a história oral tem peso autônomo, ainda que se explique socialmente.” (MEIHY, 2000, p. 70). Levando em consideração a individualidade com que se lida em cada entrevista, a quantidade de entrevistadas não foi uma questão relevante. Levei em conta os dados que obtive ao final das três entrevistas, e constatei que esclareciam as questões, confirmando ou derrubando argumentos que tinha antes de ir a campo. “Quando os argumentos começam a ficar repetitivos, deve-se parar as entrevistas.” (MEIHY, 2000, p. 124). Levando em consideração o que o autor defende e o observado nas entrevistas, encerrei totalizando três. Assim seria possível dar ênfase para cada realidade encontrada. As três faccionistas foram informadas sobre as características e os objetivos da pesquisa, e aceitaram participar das entrevistas