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BIOQUÍMICA CLÍNICA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Identificar as doenças hepáticas e os diagnósticos bioquímicos diferenciais. > Diferenciar os marcadores hepáticos e as reações bioquímicas correspon- dentes. > Interpretar testes laboratoriais da função hepática. Introdução Com múltiplas funções, o fígado é um órgão vital que participa do metabolismo de aminoácidos, glicídios, carboidratos, hormônios, colesterol e bilirrubinas, além de atuar na eliminação de toxinas e na metabolização de fármacos. Ele também atua como reservatório de vitaminas, bile e ferro, e desempenha a importante função de síntese de proteínas plasmáticas, albuminas, globulinas e fatores de coagulação. Disfunções ou lesões nesse órgão causam inflamação, fibrose e podem levar a carcinogênese. Para monitorar o estado do fígado, avalia-se um conjunto de marcadores (proteínas ou enzimas) que representam a qualidade e a eficiência dos processos metabólicos pelos quais ele é responsável. A partir desses resultados, é possível classificar as lesões e identificar a porção do órgão acometido, o que permite diagnosticar doenças hepatocelulares ou colestáticas. Neste capítulo, você vai conhecer as doenças hepáticas, os diagnósticos dife- renciais e os principais marcadores bioquímicos utilizados para avaliar a função hepática. Além disso, abordaremos as reações bioquímicas envolvidas no surgimento das hepatopatias e a interpretação dos exames laboratoriais do perfil hepático. Marcadores hepáticos Camila Batista de Oliveira Silva Rossi Avaliação do perfil hepático Para compreender os marcadores hepáticos e a importância da correta ava- liação bioquímica, é preciso estudar alguns temas importantes, como as características básicas do funcionamento do fígado e o modo como ocorrem as lesões ou desbalanços no seu metabolismo, que resultam em doenças de perfil inflamatório agudo ou crônico, cuja gravidade evolui conforme o timing no diagnóstico. Fígado: importância clínica Maior órgão do corpo humano, o fígado representa de 2,5 a 4,5% da massa corporal e pesa em média 1.500 gramas. Quanto à sua composição tecidual, os hepatócitos são as menores unidades funcionais do fígado, constituindo aproximadamente dois terços de toda a sua massa (SOLHI et al., 2021). A importância clínica do fígado é imensurável, seja por sua capacidade metabólica, seja pela biotransformação de fármacos e toxinas. Além disso, o fígado participa da degradação da hemoglobina, por meio da transformação do grupo heme em bilirrubina, excretando-a, por fim, na forma de bile (SOLHI et al., 2021). Frente ao mau funcionamento desse órgão, alguns sintomas podem ser apresentados; porém, muitas alterações bioquímicas não são visíveis até o agravamento das lesões. Os principais sintomas que caracterizam uma doença hepática são icterícia, fadiga, náuseas, vômitos, anorexia, prurido, hepatomegalia, distensão abdominal, hemorragia intestinal, entre outros. Entretanto, isolados, são sintomas inespecíficos, devendo-se ressaltar a necessidade de um monitoramento regular dos marcadores de função hepática e da existência de hábitos positivos, como atividade física e alimentação balanceada (AMERICAN LIVER FOUNDATION, 2022). Os principais causadores de lesão no fígado são as doenças virais e o uso abusivo de substâncias tóxicas (p. ex., drogas e álcool), bem como uma dieta rica em gordura. Uma característica única desse órgão é a capacidade regenerativa dos tecidos, ou seja, mesmo após dano tecidual, é possível recuperar a região, desde que identificada e removida sua causa, como, por exemplo, o uso excessivo de medicamentos ou injúrias causadas por infecções virais (SOLHI et al., 2021). Marcadores hepáticos2 Diante de suspeita de lesão hepática, deve-se avaliar a história clínica do paciente, associada ao exame físico, a fim de identificar se existem fatores de risco prévios, como etilismo, doença familiar, diabetes, entre outros. Após isso, devem ser realizados testes bioquímicos (marcadores hepáticos) e imunológicos (presença de anticorpos e antígenos virais). Patogênese das doenças hepáticas A patogenia das doenças que afetam o fígado é conhecida, mas ainda não foi completamente explicada. Sabe-se que, quando há lesões no parênquima celular que são repetidas de forma constante, é impedida a ocorrência dos processos de reparo celular. Devido a isso, as lesões causam uma mudança tecidual, além de serem foco inflamatório (DONGIOVANNI; VALENTI, 2017). Em relação à patogenia causada por vírus, destacam-se as hepatites (principalmente as dos tipos B e C), conhecidas por sua transmissão paren- teral e causadoras de processos inflamatórios agudos e crônicos, podendo evoluir para casos graves, como a cirrose e o carcinoma hepatocelular. Ambas as fases (aguda ou crônica) elevam a produção dos marcadores hepáticos (COTRIM, 2022). A patogenia das doenças hepáticas está muito associada à obesidade ou à dieta rica em gordura. Duas patologias graves são provenientes desse acúmulo descontrolado de gordura no corpo: a doença hepática gordurosa não alcoólica (DHNA) e a esteato-hepatite. Ambas são de grande relevância médica, pois há maior possibilidade de progressão e pior prognóstico (YOU- NOSSI et al., 2016). Um quadro clínico frequente no estudo das doenças do fígado é a pre- sença de fibrose, que é causada pela cicatrização do tecido lesionado. Uma vez que o tecido normal sofre cicatrização, o fluxo sanguíneo nessa região é prejudicado, acarretando um quadro de insuficiência da função hepática. Esse evento é conhecido como “cirrose”, a partir da qual podem ser relatadas complicações graves, sendo a principal delas a carcinogênese (YOUNOSSI et al., 2016). O acúmulo de gordura e as infecções virais são as principais causadoras de inflamação hepática, com consequente agravamento de quadros clínicos pré-existentes, como diabetes, dislipidemia e hipertensão. A Figura 1 ilustra as principais patologias e sua evolução clínica — o pior desfecho é o hepa- tocarcinoma (DONGIOVANNI; VALENTI, 2017). Marcadores hepáticos 3 Figura 1. Estágios de progressão da doença hepática. Fonte: Adaptada de Scio21/Shutterstock.com. Fígado saudável Gorduroso Fibrose Cirrose Câncer O fígado é formado por 80% de hepatócitos, células que compõem o parênquima do órgão. Além dos hepatócitos, há outras células que coabitam o órgão: células imunes (principalmente macrófagos, chamados “células de Kupffer”), células estreladas e células endoteliais. Essas células agem quando os hepatócitos foram exauridos da sua capacidade de metabolização de toxinas ou agentes tóxicos. Ao tentar eliminar esses agentes, elas frequentemente causam lesão nos tecidos (REISNER, 2016). Processos bioquímicos relacionados à patogênese Instaurada a patogênese, os processos bioquímicos decorrentes acontecem em eventos programados, prejudicando a integridade dos hepatócitos. Entre esses eventos, o mais importante é o processo de inflamação, que poderá evoluir para cronicidade e carcinogênese se não for identificado precocemente o foco da lesão. Toda inflamação é decorrente de um processo de autodefesa do orga- nismo, que busca isolar o possível agente agressor por meio de quimiotaxia de fatores de crescimento, células imunológicas, aumento da vascularização Marcadores hepáticos4 local, além de iniciar os processos de cicatrização e regeneração do tecido. O processo de inflamação no fígado começa após o rompimento da membrana celular dos hepatócitos, que dá início ao extravasamento do seu conteúdo intersticial. Esse extravasamento inicia a cascata de eventos bioquímicos que agem na microcirculação, aumentando 1. a circulação de sangue local; 2. a permeabilidade vascular; e 3. a exsudação de plasma e de células para o meio extravascular. Então, observamos a formação de um edema na região hepática e a fagocitose dos restos celulares, o que caracteriza a inflamação aguda do órgão. Essa agudização poderá persistir por período longo, expan- dindoo tecido lesionado e aumentando os níveis de enzimas plasmáticas, principalmente as transaminases (VIEIRA et al., 2021). Quando a natureza do estímulo causador da lesão (p. ex., o consumo excessivo de gorduras e o etilismo) não é interrompido, a reação inflamatória, até então local, pode causar sintomas sistêmicos, como febre, leucocitose, alterações em exames sanguíneos e até taquicardia. Normalmente, após inflamação aguda, as células recuperam sua capacidade em poucos dias, deixando pequenos focos de cicatrização no fígado. A inflamação crônica, por sua vez, está associada à presença de células imunes (linfócitos e ma- crófagos) e à produção de novos vasos sanguíneos (neoangiogênese) e de tecido conjuntivo (fibroplasia) (VIEIRA et al., 2021). As reações bioquímicas que envolvem o etilismo e o fígado são conhecidas. O metabolismo do álcool ocorre no fígado, por meio da enzima ADH (álcool desidrogenase), que produz metabólicos chamados “acetatos”, usados em uma série de vias do organismo. Em menor escala, essa enzima também está presente no trato gastrointestinal, reduzindo a sobrecarga no fígado. Quando há consumo excessivo de álcool, o fígado são é capaz de metabolizá-lo ade- quadamente; como consequência, o efeito da substância é sentido em todo o organismo, gerando sintomatologia (embriaguez). Ainda, convém salientar que o metabolismo do álcool pode variar, sendo menos eficaz em pessoas com sobrepeso e em idosos. Por fim, nas esteatoses, as reações bioquímicas envolvem o metabolismo de triglicerídeos, que são transformados em ácidos graxos e quilomícrons (moléculas de triglicerídeos ressintetizadas) e, após a ação das enzimas lipases, em glicerol e ácidos graxos, que são absorvidos pelos adipócitos e hepatócitos. Conforme o acúmulo de gordura nos hepatócitos, a esteatose pode ser classificada em macrovesicular, microvesicular ou mista. Quanto à etiologia, a esteatose macrovesicular é a mais comum, estando relacionada com etilismo, diabetes melito, alimentação hipercalórica e nutrição parenteral prolongada (MARTELI, 2010). Marcadores hepáticos 5 Marcadores hepáticos: o que são e como utilizá-los O biomarcador é uma substância ou um grupo de substâncias que serve como parâmetro para a detecção de determinado processo fisiológico ou patológico, sendo medido de forma objetiva e quantitativa. Dessa forma, os marcadores bioquímicos hepáticos são determinantes para expressar a condição atual do fígado (Quadro 1) (TRUJILLO et al., 2021). Quadro 1. Marcadores bioquímicos para avaliação da função hepática Marcadores para avaliação hepática Tipo de exame Valores de referência Alanina aminotransferase Rotina H: 11–45 U/L M: 10–37 U/L Aspartato aminotransferase Rotina H: 11–45 U/L M: 10–37 U/L Albumina Rotina Adultos: 3,5 a 5,5 g/dl Fosfatase alcalina Rotina Adultos: 46 a 120 U/L Bilirrubinas Rotina Direta: até 0,4 mg/dl Total: até 1,2 mg/dl Gama glutamil transferase Rotina Homem: até 85 U/L Mulher: até 38 U/L 5’nucleotidase Rotina Adultos: 0 a 10 U/L Proteínas totais Rotina Adultos: 6 a 8 g/dl Tempo de protrombina Rotina Adultos: 10 a 14 segundos Alfafetoproteína Especial Adultos: inferior a 13,7 ng/ml Amônia Especial Adultos: 9 a 30 µmol/l Ferritina Especial Adultos: 30 a 300 ng/ml Fonte: Adaptado de Cotrim (2022). O uso desses marcadores é importante para detectar doenças no fígado, realizar o diagnóstico diferencial, verificar a extensão do dano e avaliar a Marcadores hepáticos6 qualidade de resposta e o andamento do tratamento. Em exames de rotina, os pacientes frequentemente apresentam elevação dos níveis desses mar- cadores; entretanto, apenas uma minoria deles será diagnosticada com uma doença hepática. Isso ocorre devido à inespecificidade diagnóstica desses marcadores bioquímicos, sendo necessário um conjunto de marcadores com níveis alterados para caracterizar uma doença hepática. A fim de concluir o diagnóstico clínico, podem ser associados exames de imagem e biópsias (TRUJILLO et al., 2021). A Figura 2 apresenta exames usados para avaliar a condição do fígado. Figura 2. (A) Exame físico do fígado para identificar possível aumento em seu tamanho. (B) Ultrassonografia do abdômen superior (fígado e vesícula biliar), exame realizado para triagem de carcinoma de células hepáticas e cálculos biliares. Fonte: (A) Capifrutta/Shutterstock.com. (B) Radiological imaging/Shutterstock.com. A B Marcadores hepáticos 7 Principais marcadores hepáticos Os exames bioquímicos se baseiam na quantidade de enzimas extravasadas para o plasma sanguíneo após o rompimento do hepatócito (ou seja, como consequência do dano à célula) ou na quantidade de substâncias produzidas ou metabolizadas pelo fígado, como bilirrubinas, albuminas e fatores de coagulação. Os testes bioquímicos podem avaliar a integridade do órgão, a função secretora e a capacidade de síntese de substâncias. Isso é feito por meio de exames laboratoriais, dosando-se os seguintes marcadores: enzimas AST (aspartato aminotransferase), ALT (alanina aminotransferase), GGT (gama glutamil transferase) e FA (fosfatase alcalina), além de bilirrubina, proteínas da coagulação e albumina. As aminotransferases (AST e ALT) são os principais marcadores de dano hepático. A AST existe também em outros tecidos (cerebral, cardíaco e esque- lético), sendo menos específica quando comparada com a ALT, encontrada somente no fígado. Sua elevação aguda está associada ao consumo de drogas, à infecção por hepatites virais (principalmente dos tipos B e C), bem como a doenças autoimunes, isquemias e coledocolitíases (cálculos biliares). Após a resolução dos eventos causadores dessa elevação aguda, é comum que os níveis séricos de tais enzimas retornem aos basais, diferentemente do que é observado nos casos de elevação crônica, resultantes de consumo de drogas, medicamentos e álcool; hepatites crônicas; hemocromatose; doença de Wilson; e doenças extra-hepáticas (LIU et al., 2021). Quando o fluxo biliar está comprometido (caracterizando uma colestase), determinadas enzimas dos canais biliares tendem a migrar para o plasma. As duas enzimas mais utilizadas são a FA e a GGT, sendo esta última menos específica de colestase, pois está amplamente presente no fígado. A FA é uma enzima importante para a reparação óssea, para o metabolismo do cálcio e para o funcionamento do intestino. Ela também está presente no fígado, mas em maior concentração nos ductos biliares. O aumento de FA causado por doença hepática está associado à obstrução dos ductos biliares, ocorrendo durante as fases iniciais da doença colestática. Quando não está associado ao fígado, esse aumento é observado no hiperparatireoidismo e em casos de fraturas. Os níveis de FA também podem ser elevados por outras situações fisiológicas, como o crescimento ósseo, a gestação e a menopausa. A 5’nucleotidase é uma isoenzima da FA, presente no parênquima he- pático e nas células dos ductos biliares. Sua avaliação também serve como diagnóstico diferencial entre doenças hepáticas ou ósseas, uma vez que seus níveis são raramente elevados em patologias ósseas. Observa-se aumento Marcadores hepáticos8 de 5’nucleotidase na cirrose e na obstrução extra-hepática, e sua diminuição é observada em casos de hepatite. Outra importante enzima hepática é a GGT, cuja função é a transferência de um grupo glutamil (ϒ) para uma proteína ou aminoácido. Presente no fígado, nos rins, no pâncreas, no baço e em outras regiões do corpo, ela tem grande sensibilidade quando há lesão hepática, estando aumentada em grandes proporções em casos de etilismo. Alguns medicamentos também podem ocasionar sua elevação, como os barbitúricos e os antidepressivos tricíclicos. Na doença hepática, observa-se elevação dessa enzima quando há obstrução dos ductos, colangites, colecistites, esteatose hepática, cirrose, hepatites virais, bem como tumores hepáticos e de próstata (LABTEST, 2016a, 2016b). A albumina é sintetizada exclusivamente nofígado. Níveis baixos de albu- mina são comuns em doenças hepáticas, especialmente as crônicas. Quanto à bilirrubina, ela pode ser encontrada de duas formas: conjugada e não conjugada. Aumentos isolados da fração não conjugada estão relacionados não à doença hepática, mas à anemia hemolítica. Por sua vez, o aumento da fração conjugada é indicativo, na maioria dos casos, de uma lesão hepática ou biliar, visto que apenas a bilirrubina conjugada aparece na urina. Por fim, outro marcador é o tempo de protrombina, devido à função do fígado de síntese de vitamina K. Essa vitamina regula o tempo de coagulação, uma vez que alguns fatores de coagulação (fator II, VII, IX e X) são dependentes da ação dela. Quando o tempo de protrombina está elevado, associado a demais marcadores alterados (albumina diminuída e bilirrubinas elevadas), isso significa que o fígado está comprometido. Logo, esse marcador é con- siderado um marcador de função hepática (PERIN, 2021). As isoenzimas AST e ALT têm função de transferência reversível de grupamento de aminas entre aminoácidos, além de apresentarem peso molecular e estruturas semelhantes. Uma diferença interessante entre elas diz respeito à sua distribuição na célula. Ao passo que a AST é uma isoenzima localizada no citoplasma e na mitocôndria, a ALT está presente somente no citoplasma das células hepáticas, sendo mais específica para indicar lesão no fígado do que a AST (LIU et al., 2021). Marcadores hepáticos 9 Interpretação de exames laboratoriais do perfil hepático A interpretação dos exames é tão importante quanto a sua execução. Sem a correta avaliação dos resultados por parte dos profissionais de saúde, seria desafiador o diagnóstico precoce de várias doenças. Quando falamos em marcadores hepáticos, devemos compreender que eles são testes labora- toriais de grande relevância e com valores de referência preconizados por entidades especializadas (GIANNINI et al., 2003). Os valores de referência dos marcadores hepáticos são descritos no Quadro 2. Quadro 2. Valores de referência dos marcadores hepáticos Exame Valor de referência Método Laboratório AST � Homens: até 40 U/L � Mulheres: até 32 U/L Cinético UV* Diagnóstico das Américas ALT � Homens: até 41 U/L � Mulheres: até 33 U/L Cinético UV* Diagnóstico das Américas GGT � Homens: até 60 U/L � Mulheres: até 43 U/L Enzimático colorimétrico Diagnóstico das Américas FA � Crianças de 1 a 6 anos: até 275 U/L � Homens maiores de 18 anos: 40 a 129 U/L � Mulheres maiores de 18 anos: 35 a 104 U/L Cinético IFCC** Laboratório INCA*** Albumina � 3,5 a 5,0 g/dl Colorimétrico Diagnóstico das Américas *UV = ultravioleta; ** IFCC = International Federation of Clinical Chemistry and Laboratory Medicine; *** INCA = Instituto Nacional do Câncer Fonte: Adaptado de Bahia et al. (2014). Para a avaliação específica das enzimas AST e ALT, são comuns resultados 50 a 100 vezes superior ao valor de referência, com pico máximo entre o sétimo e o décimo dia após a lesão, podendo normalizar em até quatro semanas. O método de análise laboratorial mais empregado atualmente é o cinético (ultravioleta) manual ou automatizado (LIU et al., 2021). Quanto à extensão e à gravidade da lesão hepática, costuma-se utilizar a razão de Ritis, que Marcadores hepáticos10 corresponde à divisão do valor de AST pelo de ALT. Um resultado superior a 1 indica possível lesão reversível, ao passo que um resultado menor que 1 indica lesão irreversível grave (necrose) (RITIS; COLTORTI; GIUSTI, 1957). Quando se trata de FA, é necessário um diagnóstico diferencial, a fim de identificar a origem de seu aumento — que pode ser proveniente do metabo- lismo ósseo, intestinal ou hepático. Para tanto, deve-se realizar sua dosagem juntamente à de GGT e 5’nucleotidase, que são específicas dos hepatócitos. Aumentos nos níveis de 5’nucleotidase são sensíveis na detecção de colestase e de obstrução biliar, mas são mais específicos que a FA, frequentemente indicando doença hepatobiliar. Caso o aumento isolado de FA persista, é indi- cada uma eletroforese de proteína, para identificar as isoenzimas presentes. Quanto à dosagem de GGT, é comum sua elevação em doenças hepato- biliares, principalmente na colestase. Sua associação com os níveis de FA e 5’nucleotidase é considerada fraca, não sendo notado aumento em doenças ósseas, durante o crescimento ou em doenças pediátricas, assim como não há elevação durante a gestação. Entretanto, o uso abusivo de álcool e de medicamentos pode causar aumento significativo nos níveis de GGT, devido à ação das enzimas microssômicas, como citocromo P-450. Para a dosagem de GGT, o método de análise é o método cinético (IFCC), colorimétrico, podendo ser manual ou automatizado (LABTEST, 2016a, 2016b). Quando há aumento de bilirrubinas (hiperbilirrubinemia), isso pode se dever a aumento de produção, diminuição da captação, diminuição da con- jugação no fígado ou diminuição da excreção. A bilirrubina total é constituída principalmente de fração não conjugada (valores menores que 1,2 mg/dl). Dosando-se as frações de bilirrubina, é possível quantificar quanto de bilir- rubina está conjugada. Somente em casos de hiperbilirrubinemia é preciso medir as frações. Frente à normalidade dos demais exames hepáticos, não é considerada uma doença do sistema hepatobiliar. Em hepatopatias crônicas, a albumina normalmente se encontra reduzida, resultante do aumento do volume de distribuição dessa proteína (como na ascite), da deficiência de síntese hepática ou de ambas as causas. Uma vez que a meia-vida da albumina é relativamente alta, a redução de sua síntese pelas células hepáticas pode demorar vários dias para que haja uma mani- festação laboratorial ou clínica. Níveis < 3 g/dl sugerem síntese diminuída, que pode ser motivada por cirrose, doença hepática alcoólica, inflamações crônicas ou, ainda, desnutrição (TUFONI et al., 2020). O estudo e a dosagem dos marcadores hepáticos capacitam os profissio- nais de saúde na escolha direta e conduzem ao melhor desfecho terapêutico. Outra utilidade desses marcadores diz respeito ao monitoramento dos trata- Marcadores hepáticos 11 mentos, mensurando a sua eficácia. Ainda, cabe ressaltar que a interpretação dos exames de cunho diferencial deve ser realizada em conjunto com exames de imagem, como ultrassonografia ou elastografia (método que quantifica a gordura), a fim de excluir doenças hepatobiliares ou colestases (YOUNOSSI et al., 2016). Neste capítulo, você pôde compreender as principais funções do fígado e sua importância clínica, conhecendo as hepatopatias mais frequentes na população em geral e os marcadores laboratoriais que auxiliam na identifica- ção de doenças ou permitem acompanhar a saúde global do órgão. Conhecer previamente os exames laboratoriais, realizar sua correta interpretação bioquímica e estar atento aos diagnósticos diferenciais, que auxiliam na exclusão de outras patologias, são ações que devem ser pautadas nos pre- ceitos fisiológicos e patológicos do fígado, que, como vimos neste capítulo, é um órgão multifacetado e essencial ao organismo. Referências AMERICAN LIVER FOUNDATION. Diagnosing liver disease. Suite: American Liver Founda- tion, 2022. Disponível em: https://liverfoundation.org/pt/for-patients/about-the-liver/ diagnosing-liver-disease/#1505842521128-d791fb49-be91. Acesso em: 4 set. 2022. BAHIA, C. A. et al. Alterações nos marcadores hepáticos decorrentes da exposição am- biental a organoclorados no Brasil. Cadernos Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, p. 133-141, 2014. COTRIM, H. P. Esteatose hepática. São Paulo: Sociedade Brasileira de Hepatologia, 2022. Disponível em: https://sbhepatologia.org.br/imprensa/esteatose-hepatica/. Acesso em: 4 set. 2022. 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