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PAULO NICCOLI RAMIREZ RENAN REIS FONSECA SUSANA MESQUITA BARBOSA HELOÍSA MARIA DOS SANTOS TOLEDO ÉTICA E CIDADANIA ÉTICA E CIDADANIA 2022 Heloísa Maria dos Santos Toledo Paulo Niccoli Ramirez Renan Reis Fonseca Susana Mesquita Barbosa PRESIDENTE Frei Thiago Alexandre Hayakawa, OFM DIRETOR GERAL Jorge Apóstolos Siarcos REITOR Frei Gilberto Gonçalves Garcia, OFM VICE-REITOR Frei Thiago Alexandre Hayakawa, OFM PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO E PLANEJAMENTO Adriel de Moura Cabral PRÓ-REITOR DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO Dilnei Giseli Lorenzi COORDENADOR DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - NEAD Renato Adriano Pezenti GESTOR DO CENTRO DE SOLUÇÕES EDUCACIONAIS - CSE Franklin Portela Correia REVISÃO TÉCNICA Osmair Severino Botelho PROJETO GRÁFICO Impulsa Comunicação DIAGRAMADORES Daniel Landucci CAPA Daniel Landucci © 2022 Universidade São Francisco Avenida São Francisco de Assis, 218 CEP 12916-900 – Bragança Paulista/SP CASA NOSSA SENHORA DA PAZ – AÇÃO SOCIAL FRANCISCANA, PROVÍNCIA FRANCISCANA DA IMACULADA CONCEIÇÃO DO BRASIL – ORDEM DOS FRADES MENORES HELOÍSA MARIA DOS SANTOS TOLEDO Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2010) e Especialista em Educação pela PUC-RS. Tem experiência nas áreas de So- ciologia e Ciências Sociais e Humanas, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, tecnologia e mediação tecnológica, Sociologia Geral e pensamento clássico, Arte, Cultura e Indústria Cultural. Professora no Ensino Superior e autora de materiais didáticos. Professora orientadora no curso de pós-graduação Especialização na Inova- ção da Educação Mediada por Tecnologias, na Universidade Federal do ABC, financia- do pela UAB/Capes. PAULO NICCOLI RAMIREZ Professor de Filosofia, Sociologia, Antropologia e Ciência Política. Leciona na ESPM, Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), Casa do Saber e Colégio São Luís. Possui doutorado (2014) e mestrado (2007) em Ciências Sociais pela PUC-SP (respectivamente nas áreas de concentração Antropologia e Sociologia) e tam- bém bacharelado em Ciências Sociais (PUC-SP - 2004) e Filosofia (USP - 2007). Autor do livro Sérgio Buarque de Holanda e a dialética da cordialidade (2011). RENAN REIS FONSECA Graduado em História (2006 - 2010) nas modalidades bacharelado e licenciatura pela Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ. Mestre (2010 - 2013) pela mesma instituição de ensino no Programa de Mestrado em Letras, Teoria Literária e Crítica da Cultura - PROMEL. Doutor (2014 - 2019) em História Social pela Universidade de São Paulo - USP. É autor dos livros: O transnacional e o local nas revistas Readers Digest e Seleções: relações de gênero nos Estados Unidos e Brasil (1939 - 1971) e Amor e Gênero em Revista: os quadrinhos em sua (sub)versão romântica, ambos publicados em 2020 pela Editora ApeKu. Possui experiência na área de conservação, organização, descrição e indexação em banco de dados de documentos históricos. Possui, também, experiência na área docente, como professor de História, Funcionamento do Estado e Criação Literária para o Ensino Médio e superior. Atualmente desenvolve pesquisa nos O AUTOR seguintes temas: Histórias em quadrinhos, Estudos culturais, História da Imprensa e do mer- cado editorial, História Cultural, Relações Brasil – Estados Unidos, Imigração. SUSANA MESQUITA BARBOSA Bacharel e licenciada em Filosofia (UNICAMP). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universi- dade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Doutora em Direito Político e Econômico (MACKENZIE). Especialista em “Educação e Tecnologia: Docência no Ensino Superior” na UFSCAR. Coordenadora dos Cursos de História e Filosofia da Universidade São Francisco (USF). Pro- fessora e Assessora pedagógica na Faculdade Paulista de Ciências da Saúde (SPDM Edu- cação). Membro da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) e Parecerista de diferentes periódicos. Autora do livro “História do Direito” e de “Introdução à História do Direi- to”, organizadora das obras “Direitos Humanos: perspectivas e reflexões para o Século XXI” e “Transparência Eleitoral”. Autora de capítulos de livros e artigos resultados das pesquisas nas áreas de Ética, Filosofia, Direitos Humano, Cidadania e Políticas Públicas e Políticas de Desenvolvimento. O REVISOR TÉCNICO OSMAIR SEVERINO BOTELHO Possui graduação em Filosofia pelo Centro de Estudo da Arquidiocese de Ribeirão Preto (1987), graduação em História - Centro Universitário Barão de Mauá (1991), graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná , Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Campus de Toledo, Paraná (1994), especialização em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (1996) e mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005). Trabalhou em diversas instituições de ensino de Ribeirão Preto e região, tais como: Colégio Vita et Pax, Centro Universitário UNISEBCOC, Centro Universitário Claretiano. Atualmente é professor no no Instituto de Filosofia Dom Felício, em Brodósqui - SP, e no Centro Universitário Barão de Mauá, na cidade de Ribeirão Preto. Tem experiência na área de História, Filosofia e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Filosofia Grega, Filosofia Moderna e Contemporânea, Ética, Filosofia Política, Teoria do Conhecimento, Filosofia da Reli- gião, Filosofia da Educação, História Geral e da Educação e Metodologia da Pesquisa. SUMÁRIO UNIDADE 01: ÉTICA – SUA ESSÊNCIA E O COTIDIANO ...................................8 1. Ética moral ..........................................................................................................14 2. Aprendendo a decidir com ética ..........................................................................22 3. Sendo ético no dia a dia ......................................................................................31 UNIDADE 02: ATUAÇÃO PROFISSIONAL ÉTICA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA .................................................................................................42 1. O que significa ser profissional ...........................................................................43 2. A necessidade de regras morais .........................................................................53 3. Sociedade tecnológica e digital ...........................................................................63 UNIDADE 03: VIVÊNCIA PROFISSIONAL E CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA ...............................................................................................................72 1. Cidadania ontem e hoje ......................................................................................73 2. O espaço da cidadania .......................................................................................80 3. É preciso cuidar! ..................................................................................................88 UNIDADE 04: O DIVERSO E O DESIGUAL – QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS E O ÂMBITO DO TRABALHO ...........................................98 1. Ser diferente é ser desigual? ..............................................................................98 2. A profissão não tem gênero ................................................................................107 3. Enfim, uma sociedade possível ...........................................................................116 4. Rememorando as temáticas estudadas ao longo das unidades .........................124 5. Reflexões éticas, práticas de cidadania: construções do futuro .........................126 8 1 Ética – sua essência e o cotidiano UNIDADE 1 ÉTICA – SUA ESSÊNCIA E O COTIDIANO INTRODUÇÃO Caro(a) estudante, paz e bem! Ética e Cidadania é um dos componentes que constituem o Núcleo de Formação Ge- ral – juntamente com Estudo do Ser Humano Contemporâneo, Iniciação à Pesquisa Científica, Direitos Humanos e EmpreendedorismoSocial. Estes componentes serão trabalhados de forma interdisciplinar: os conteúdos de cada um servirão para construir um entendimento de mundo e uma maneira de problematizar a realidade. Eles, conjun- tamente, oferecerão novas chaves para que você possa reinterpretar a realidade. Os elementos que apresentamos nesta introdução são importantes para que você bem entenda de que modo os componentes curriculares do Núcleo de Formação Geral estão estruturados a fim de oferecer uma experiência significativa de aprendizagem, contri- buindo, assim, para sua formação profissional. Vamos lá! CONECTAR Ética e Cidadania e a interdisciplinaridade Ao pensarmos os conteúdos e problematizações deste componente, é importante en- tender que ele não pode ser restrito a apenas um âmbito de vivência humana, pois tudo o que o ser humano faz tem reflexo (direto ou não) na vivência plural. Enquanto a ética busca pensar a ação do indivíduo, pautada por valores, a cidadania amplia a visão de mundo e tenta enxergar de que modo o individual se transforma em coletivo: a cidadania se refere à maneira como uma comunidade possibilita a participação de seus membros na construção de uma vivência coletiva que permita a realização humana. Deste modo, as temáticas relacionadas às vivências ética e cidadã são, em si mesmas interdisciplinares – principalmente quando pensamos a formação profissional. Pense no âmbito da sua escolha profissional e nos outros componentes do Núcleo de Formação Geral. Vejamos: 9 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co ` Em todas as suas escolhas – acadêmicas ou profissionais – você traz valores aprendidos ao longo de sua vida. Onde tais valores encontram fundamento? Você traz como princí- pios de vida algo que sua vivência familiar e social ensinou. Pode ser por meio dos livros aos quais teve acesso; pode ser por meio de uma vivência religiosa; ou, simplesmente, por meio da convivência nos diferentes ambientes. Estes âmbitos – ou dimensões huma- nas – são problematizados em Estudo do Ser Humano Contemporâneo. ` Você pretende fazer uma pesquisa? Sabe quais caminhos seguir e de que modo pode evitar problemas com seu conteúdo? Uma pesquisa alcançará mais sucesso, quanto mais responder aos anseios da sociedade. E é importante entender que, para algumas pesqui- sas, é necessário submeter o projeto ao Comitê de Ética da instituição. Ainda mais: um trabalho autoral, sabendo como se utilizar de fontes de pesquisa, evita graves problemas, como o plágio. Estas questões são tratadas em Iniciação à Pesquisa Científica. ` Na vida profissional, possivelmente, você vai lidar com pessoas – mesmo que seja indire- tamente. Uma reflexão sobre o espaço de vivência para todos na sociedade e no ambien- te de trabalho é questão de oportunidades e não de capacidades. Não falamos mais de ‘gosto’, ou ‘preferência’; a igualdade e a não discriminação são pilares de uma concepção de cidadania. Temas como estes são problematizados em Direitos Humanos. ` Como profissional, é claro que você objetivará alcançar satisfação e sucesso. Mas, será que todo caminho é válido? Cada pessoa deve tentar por si mesma um caminho? Vale pensar “sucesso a qualquer preço”? Ser profissional é entender que há uma necessidade social que precisa ser respondida – lembre-se de que você escolheu uma profissão que existe por ser importante neste contexto no qual você vive. Estes temas com viés ético estão presentes no componente Empreendedorismo Social. Enfim, no Núcleo de Formação Geral, o componente Ética e Cidadania partilha de gran- des temas que perpassam os demais componentes. As competências objetivadas pelo Núcleo buscam auxiliar em sua formação de modo amplo, para ser um bom profissional, com conteúdos que vão além do âmbito técnico da área específica do seu curso. DESENVOLVER O DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS A USF adota, como diretriz pedagógica, a educação por competências. Mas, você sabe o que é a competência, ou quando alguém pode se entender competente? A competência trata da maneira como lidamos com as situações que nos aparecem na vida cotidiana. Neste sentido, é competente aquela pessoa que consegue dar conta das exigên- cias que as diferentes situações impõem. Mas, é possível aprender sobre todas as situações que a vida – profissional ou não – vai nos apresentar? Claro que não; não há um curso sequer que possa dar conta disso. SAIBA MAIS 10 1 Ética – sua essência e o cotidiano Quando se fala em desenvolver competências, mais do que uma prática, o que se objetiva é ensinar um modo de compreender as situações. A pergunta que deve ser feita não é “Eu aprendi a fazer isso?”, mas sim “Que tipo de raciocínio eu aprendi, a partir deste caso, e que vai me possibilitar resolver outros (mesmo que não sejam iguais)?” Figura 01. O desenvolvimento de competências Fonte: Elaborado pelo autor / Imagens: Pixabay. Desenvolver competências é desenvolver a habilidade de resgatar esquemas mentais que possam ser encaixados em diferentes situações. O célebre autor que tratou da temática das competências é Philippe Perrenoud (1944-). Para conhecer mais, assista ao vídeo Pensadores na Educação: Perrenoud e o desenvolvi- mento de competências:https://www.youtube.com/watch?v=lYvoCDRCfOw Conheça as competências que devem ser desenvolvidas por meio dos estudos que o componente Ética e Cidadania incitará: 01. Definir o que são ética e moral, estabelecendo diálogo crítico com teorias e autores. 02. Examinar os fundamentos da ação profissional ética, identificando o conceito de ‘boa ação’ como necessidade para a vida humana em sociedade. 03. Interpretar a realidade a partir dos impasses éticos e de cidadania, compreendendo a construção social dos valores e a histórica luta por direitos sociais. 04. Avaliar a postura individual, considerando-se a prática ética e cidadã, reconhecendo a importância da postura de influência positiva na prática cotidiana. 11 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Releia as competências apresentadas acima. Não se trata de um ideal construído de forma ale- atória, mas de uma proposta de formação que indica aquilo em que a USF acredita, formando você como profissional. São competências possíveis, mas que apenas podem ser desenvolvi- das se você se aplicar aos estudos e atividades propostos. IMPORTANTE PRATICAR a. DIFERENTES OBJETOS DE APRENDIZAGEM PARA DIFERENTES FORMAS DE APRENDER O desenvolvimento de competências pode se dar de diferentes modos, de acordo com o objetivo que se tem. Cada componente curricular, em cada unidade, tem objetivos es- pecíficos pensados a partir das competências estabelecidas para o profissional que está sendo formado – você! –, não importando a área de conhecimento. Mas, antes dos ob- jetivos de cada componente, temos de pensar as competências necessárias para bem cursar um componente oferecido a distância. E você, sabe como você aprende? Possivelmente, você já ouviu dizer que uma pessoa aprende mais ouvindo, enquanto outra o faz escrevendo, e ainda outra, lendo e anotando. Leia ao artigo: Os quatro estilos de aprendizagem − ou por que alguns leem os manuais e outros não https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/10/ciencia/1476119828_530014.html SAIBA MAIS b. O CONHECIMENTO – TEORIA E PRÁTICA A competência pode ser entendida como um conjunto de elementos que, no todo, tra- tam de um saber prático; trata-se de três elementos: conhecimento, habilidade e ati- tude. Dificilmente conseguimos dizer que um profissional é competente sem ter estes elementos como base sólida. A partir deste entendimento é que este componente cur- ricular é entendido e proposto com significativa importância para sua formação pro- fissional. A USF entende que ser profissional deve ser mais que, simplesmente, um reprodutor da técnica. 12 1 Ética – sua essência e o cotidiano Avalie suas competências, verificando: ` Conhecimento – você tem os conhecimentos necessários, que possibilitarãouma vivência profissional humana e responsável consigo, com o outro e com a sociedade? ` Habilidade – você sabe se utilizar dos conhecimentos para realizar uma prática que seja eficiente, fazendo bem feito aquilo que se espera de um(a) bom(a) profissional? ` Atitude – a partir do conteúdo assimilado e da boa prática desenvolvida, você se motiva a agir de modo eficaz, buscando a melhor em cada situação? Conheça mais sobre a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, pesquisando em: https://www.br.undp.org/content/dam/brazil/docs/agenda2030/undp-br-Agenda2030-comple- to-pt-br-2016.pdf IMPORTANTE SAIBA MAIS Ao longo das unidades, as temáticas apresentadas têm sempre o objetivo de possibili- tar uma prática profissional, carregada de sentido e que possa responder aos anseios da sociedade, sem deixar de lado a realização pessoal. Neste sentido, pense sobre as competências deste componente – indicadas acima –, e procure verificar se você já as tem desenvolvidas. Inicie o curso deste componente, já tendo em mente suas compe- tências e entendendo que elas devem ser metas a se alcançar. Ao terminar os estudos de Ética e Cidadania, você terá oportunidade de se avaliar, verificando quanto aprendeu e desenvolveu, e o que ainda restará como necessidade. c. OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO BRASIL No ano de 2015, pensando a necessidade de ações que pudessem melhorar a vida no planeta como um todo, líderes mundiais se reuniram na ONU e estabeleceram a chamada Agenda 2030 – trata-se de um plano para erradicar a pobreza e promover o desenvolvimento da vida humana e do planeta. Da Agenda 2030, foram pensados os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a partir dos quais são delineadas áreas mais específicas para atuação das nações. São 17 ODS: 13 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Veja que os ODS abarcam diferentes áreas e problemas que a humanidade enfrenta como um todo. E, considerando-se que a USF objetiva oferecer uma formação integral, entende- mos a importância de que a formação seja ampla e geral, ligada aos problemas e situações diversas que você, como profissional, vai enfrentar. Neste sentido, os ODS devem ser trazi- dos nas problematizações dos componentes curriculares. Fonte: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs Conheça mais sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil, pesquisando em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs SAIBA MAIS Aproveite as oportunidades que forem ofertadas para o desenvolvimento deste compo- nente: textos, fóruns, vídeos etc. Tudo é desenvolvido para seu melhor aproveitamento e sucesso na formação profissional! 14 1 Ética – sua essência e o cotidiano PRIMEIROS CONCEITOS Nesta unidade, a primeira problematização a ser feita se refere ao que é, propriamente, a ética – o que, por sua vez, nos leva a pensar sua relação com a moral. Ambos os con- ceitos se relacionam à vida prática dos indivíduos, entendendo que a vida em sociedade seja a tentativa de organizar a realidade de modo tal que permita a realização de todos. Quase a totalidade das ações que podemos tomar tem reflexos na vida coletiva – por isso, há uma clara necessidade de se refletir sobre as motivações e as possíveis conse- quências das ações. Não é simples; porém, a ética, enquanto reflexão que vem sendo desenvolvida desde séculos, apresenta ideias que podem ser aplicadas para se pen- sar a prática. Significa que diversos pensadores contribuíram para a reflexão ética e deixaram suas contribuições. Investigaremos diferentes posturas éticas elaboradas por filósofos ao longo da histó- ria da cultura ocidental, entre eles, Aristóteles (384-322 a.C.) e os chamados estoicos (séculos III a I a.C.). Além disso, outras concepções modernas também serão inves- tigadas, tais como o pensamento de Kant (1724-1804) e o seu dever ético; Bentham (1748-1832) e o utilitarismo, que se refere à ética consequencialista; contratualismo, hedonismo, relativismo e, no período contemporâneo, as possibilidades do diálogo e do consenso ético de Habermas (1929 -). Quando estudamos ética, precisamos considerar que existem múltiplas formas de compreender nossas escolhas, decisões e os caminhos a serem tomados. Faz -se necessário, também, levarmos em conta que as ações podem ser múltiplas e não é possível saber como os demais indivíduos irão reagir, segundo seus valores e pre- ferências. A ética é uma ciência que estuda os valores morais e os comportamentos humanos. Porém, ao contrário das ciências exatas, trabalha com a multiplicidade de escolhas e caminhos a serem seguidos, suas consequências e modos distintos de per- ceber a realidade e a vida com os demais indivíduos. Longe de procurar um resultado e respostas únicas e universais, a ética está preocupada em desenvolver formas de vida que produzam o bem-estar e o bem comum. Ainda estudaremos a relação da ética com liberdade, escolhas, decisões e responsa- bilidade. A respeito desses elementos, investigaremos o pensamento existencialista de Sartre (1905-1980), pensador francês que refletiu sobre a relação entre ética, ações individuais e seus reflexos sobre a coletividade. A filósofa alemã Hannah Arendt (1906- 1975) trouxe também importantes contribuições a respeito do assunto, sobretudo nas ruas reflexões sobre a relação entre regras sociais e os valores dos indivíduos. 1. ÉTICA MORAL 1.1 O QUE É ÉTICA? A palavra ética, do grego ethos, foi elaborada pela primeira vez por Aristóteles (384– 322 a.C.), pensador que viveu na Grécia Antiga. Ética significa conduta ou modo de agir, sendo também compreendida como reflexão sobre os fundamentos da conduta ou do 15 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co modo de agir. A ética, portanto, é entendida como uma reflexão ou ciência que estuda o comportamento dos indivíduos em comunidade. Segundo Aristóteles (1992, p. 22), a finalidade da ética deve ser o de promover a fe- licidade coletiva, o bem comum ou a excelência humana. Na obra Ética a Nicômaco, Aristóteles apresenta a concepção dessa expressão empregando os seguintes termos [...] parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais; mas as honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas de excelência, embora as escolhamos por si mesmas [...], escolhe- mo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por qualquer outra coisa além dela mes- ma (ARISTÓTELES,1992, p. 23). A ética se relaciona ao uso da racionalidade e do senso-crítico, conduz ao bom senso ou moderação. Isso significa afirmar que exige a reflexão; ou seja: é preciso medir os prós e os contras, os elementos positivos e negativos de cada ação antes mesmo que qualquer decisão seja tomada. Nessa direção, a ética tem como finalidade estabelecer a melhor atitude ou ação mais equilibrada para o convívio coletivo. Leandro Karnal, no vídeo a seguir referenciado, comenta sobre a obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles, veja mais em: KARNAL, Leandro. Ética segundo Aristóteles, 2020. Vídeo (4 min. 09 seg.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8fi7yzeogD0. Acesso em: 07 jun. 2022. SAIBA MAIS A ética busca estabelecer as melhores formas de conduta perante outros indivíduos. Para isso, é relevante refletir sobre os procedimentos e as virtudes que são fundamen- tais para a realização do bem coletivo. O exercício da ética exige a busca do que os gregos denominavam como areté, compreendida como melhor ação – portanto, um comportamento virtuoso ou atitudes que buscam a excelência humana. 1.2 O QUE É MORAL? É comum que confundamos as palavras “ética” e “moral”. Contudo, ambas pos- suem diferenças, por isso, é necessário esclarecermos o que exatamente as distin- gue. A moral tem origem no latim, moris, e significa costume, tradiçãoou hábitos. A sua diferença com a palavra “ética” está no fato de que a moral não exige refle- xão mais profunda ou senso-crítico, não sendo reflexo de um exame detalhado de uma conduta ou ação. Isso ocorre porque a moral é constituída por regras, nor- mas ou costumes que não são analisados ou questionados de forma detalhada, são, na verdade, transmitidos de geração a geração como se fossem normais, naturais, de modo que devem ser seguidas e obedecidas. 16 1 Ética – sua essência e o cotidiano No que diz respeito à moral, os sujeitos são introduzidos em um conjunto de costumes como se eles fossem normais ou como se existissem desde sempre, sem que isso implique análises e problematizações profundas sobre a existência de padrões de com- portamento, formas de ver o mundo e valores. O que vem a ser a moral? Um conjunto de valores e de regras de compor- tamento, um código de conduta que coletividades adotam, quer sejam uma nação, uma categoria social, uma comunidade religiosa ou uma organiza- ção. Enquanto a ética diz respeito à disciplina teórica, ao estudo sistemático, a moral corresponde às representações imaginárias que dizem aos agentes sociais o que se espera deles, quais comportamentos são bem-vindos e quais não. (SROUR, 2000, p. 29). Em linhas gerais, podemos afirmar que a ética é ex- pressa por condutas que têm alcance universal, ge- ral ou coletivo, pois sua principal intenção é tentar promover a felicidade coletiva por meio da reflexão e da razão. A ética mede os elementos favoráveis e desfavoráveis de cada ação ou conduta, além de procurar condições que contribuam para a convi- vência entre diversos grupos e diferentes indivídu- os, dotados de morais distintas. A ética estuda e investiga a moral (os hábitos e costumes humanos) para produzir a melhor ação possível, sem desconsiderar a existência de grupos e moralidades que são heterogêneas, mas que de- vem coexistir numa mesma sociedade. A moral é considerada relativa, pois suas regras e nor- mas de comportamento podem valer para um grupo ou sociedade, mas não necessariamente para outros. A moral se transforma, ao longo do tempo, e é expressa pelos chamados valores (ou juízos morais), que norteiam as noções do que é justo ou injusto, bem ou mal, o que é virtuoso ou que promove vícios. 1.3 O PROBLEMA DO VALOR E O JULGAMENTO ÉTICO A vida humana é marcada por reflexões e ações morais e éticas. Desde governos, empresas, relações familiares, passando por jogos, esportes e as demais práticas hu- manas, todas elas são constituídas de valores morais e condutas éticas. Avaliamos que a moral é relativa, porque costumes, hábitos e visões de mundo variam de sociedade para sociedade conforme o período histórico. Diante da variabilidade de valores morais presentes em qualquer sociedade e na rela- ção entre diferentes povos e culturas, a ética opera não apenas como estudo ou ciência que investiga a moral, mas também fornece bases para a prática de julgamentos éticos, que visam produzir convivência entre diferentes valores morais presentes nos indivídu- os. Cada ação ética pressupõe a análise de quais são os impactos causados sobre dife- rentes grupos e comunidades humanas constituídos por valores morais heterogêneos. Figura 02. Moral e ética Fo nt e: 1 23 R F 17 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co A ética parte do pressuposto de que os indivíduos, certas vezes, possuem um forte sentimento, vontade ou impulso que surgem como um primeiro impacto quando nos en- contramos em situações em que temos que agir de maneira imediata. Com indignação, às vezes, engrossamos o tom de voz se uma pergunta ou circunstância chocante está diante de nossa visão. Outras vezes, realizamos juízos sobre as ações que presencia- mos, sendo que julgamos, demonstramos valores ou comentamos o acontecimento que atraiu a nossa percepção. Esses comportamentos são chamados de senso moral. Quando vemos um indivíduo em condição vulnerável passar fome ou vivendo de maneira mi- serável e decidimos oferecer alguma ajuda; ou quando vemos um idoso que tenta atravessar a rua e de forma imediata e impulsiva, nós o auxiliamos; se somos favoráveis ou contrários ao aborto ou legalização do uso de entorpecentes, nessas situações, agimos com gritos, gestos bruscos de reprovação ou aceitação, visões e expressões mais singelas ou ríspidas. Todos esses valores e comportamentos revelam o que é designado como senso moral. Para saber mais a respeito da ética e o senso moral, recomendamos que você assista à aula do professor Washington Soares, referenciada na sequência: SOARES, Washington. Ética - Senso Moral e Consciência moral, 2020. Vídeo (6min. 13s.). Publicado na página do Prof. Washington Soares, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FE5CZ- 1DA92s&t=8s. Acesso em: 07 jun. 2022. EXEMPLO SAIBA MAIS Com o senso moral não há a necessidade de justificativa imediata, pois o conceito está relacionado à formação e aos valores morais de um indivíduo, fundamentados em tra- dições e costumes que originam e caracterizam comportamentos imediatos, portanto, fundamentam o próprio senso moral. Situações que não entendemos de maneira com- pleta ou posicionamentos tomados sem uma análise detalhada da realidade influenciam a prática do senso moral. Em uma de suas obras capitais para a introdução ao pensamento filosófico, intitulada “Convite à filosofia”, Chaui (2000) escreve que esse sentimento prova que nós somos seres morais, dotados de um senso de moralidade. O sentimento despertado em nós prova a existência de um universo moral e nos leva a pensar sobre o que é certo ou errado, justo ou injusto, bom ou mau diante de situações de sofrimento e dor, principalmente quando envol- vem crianças, seres inocentes que nos comovem por conta de sua fragilida- de (BRAGA JUNIOR; MONTEIRO, 2016, p. 42). Os nossos atos e posicionamentos, sejam contrários ou favoráveis diante de certas situações, exigem de nós uma justificativa perante os demais ou à sociedade. Essa forma de justificativa é chamada de consciência moral e representa explicações que são fornecidas para explicar o senso moral. 18 1 Ética – sua essência e o cotidiano Quando somos questionados sobre a legalização do aborto e caso haja um posicionamento contra a partir de uma perspectiva de uma moral religiosa, será preciso justificar este mesmo posicionamento para os indivíduos que nos cercam. EXEMPLO A consciência moral é compreendida, as- sim, como a justificativa fundamentada a partir da moral e fornece sentido às nos- sas atitudes e percepções de mundo. Se procurarmos ajudar a criança com fome ou o idoso que busca atravessar a rua, exercemos o chamado senso moral. Quando procuramos justificar aos demais e a nós mesmos quais são os motivos que permitiram a ação imediata, exercemos a consciência moral. Esta, por sua vez, permite que os sujeitos se tornem res- ponsáveis pelas formas como nos com- portamos. Senso e consciência moral estão presentes no dia a dia, nos sentimentos, nas intenções e decisões, no que é ou não correto a ser feito. Posto de outra maneira, [...] diante de um senso moral, temos emoções e sentimentos que são susci- tados pelos acontecimentos com base em nossa crença nos padrões morais que adotamos e que nos orientam. Mas é a nossa consciência moral que nos leva a agir e a assumir a responsabilidade por nossos atos (BRAGA JUNIOR; MONTEIRO, 2016, p. 44). Os julgamentos éticos são o resultado do estudo e da análise do senso e da consciência moral. Ao realizar a capacidade de julgar, a ética leva em consideração os diferentes pontos de vista e tem como objetivo produzir equilíbrio e condições de coexistência entre posicionamentos heterogêneos, desde que eles promovam o bem comum ou coletivo. 1.4 QUESTÕES ÉTICAS E QUESTÕES MORAIS Há questões e problemas que dividem opiniões, pois demonstram os dilemas éticos e mo- rais. À vista disso, James e Stuart Rachels, na obra Os elementos da Filosofia Moral (2013),refletem como, no passado, havia justificativas que procuravam legitimar a escravidão de seres, erroneamente, considerados inferiores. Os autores argumentam que, por vezes, es- sas justificativas eram carregadas de argumentos religiosos. Sabemos que tais ideias não são mais condizentes com os direitos humanos e igualdade jurídica. Isso porque [n]ossos sentimentos podem ser irracionais: eles podem ser nada mais do que produtos do prejuízo, egoísmo ou condicionamento cultural. Em um momento, por exemplo, os sentimentos das pessoas lhes disseram que os membros de outras raças eram inferiores e que a escravidão era o plano de Deus. Ademais, os sentimentos das pessoas podem ser muito diferentes (RACHELS; RACHELS, 2013, p. 23). Figura 03. A ética visa o equilíbrio e coexistência entre comportamentos morais heterogêneos Fo nt e: 1 23 R F 19 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Debates como o assunto de aborto e de legalização das drogas nos permitem, primeiro, identificar diferentes juízos de valor. Via de regra, de um lado, sob uma fundamentação moral religiosa, argumenta-se que a vida é um valor sagrado, de modo que abortos não deveriam ser legalizados. Por outro lado, movimentos feministas têm como valor as defe- sas da liberdade de decisão das mulheres e o direito de escolha sobre seus próprios cor- pos. Além disso, o uso de drogas sob perspectivas morais religiosas é julgado de modo negativo, sendo relacionado a uma vida marginal, de degradação e distante de virtudes. Nas últimas décadas, no entanto, países como Holanda, Bélgica, Espanha, Uruguai, en- tre outros, têm concedido liberdade de uso de algumas drogas, como a maconha. Tais posturas têm recebido adeptos mundo afora, segundo os valores da liberdade individual e teses que amenizam os efeitos de certos entorpecentes. A partir dessa oposição de valores morais surgem questões éticas, ou seja, reflexões, estudos e condutas em que devemos observar, sendo possível promover o bem comum levando em consideração a oposição entre diferentes valores morais. No intuito de verificar valores morais e propiciar uma reflexão acerca de decisões éticas pos- síveis para cada situação, observe, a seguir, outros problemas contemporâneos, de ordem ética, que certamente produzem visões morais diferentes quando são discutidos: ` A ciência pode desenvolver, de forma autônoma, pesquisas genéticas com embriões humanos? ` É possível concordar com a manipulação genética irrestrita? ` Podem os governos e as empresas privadas de tecnologias (redes sociais, aplicativos, provedores etc.) terem o controle sobre a privacidade dos seus usuários? ` Devemos preservar o direito à vida ou à liberdade econômica, quando nos defrontamos com uma grave pandemia? ` Devemos concordar ou podemos discordar da decisão da justiça em permitir o casamento entre indivíduos do mesmo sexo ou pertencentes aos que se identificam como membros da comunidade LGBTQIA+? ` Proteger o meio ambiente é mais importante do que defender o desenvolvimento econô- mico por meio de práticas predatórias? ` É correto substituir trabalhadores por máquinas nas fábricas? PARA REFLETIR 1.5 A ÉTICA COMO PROJETO DE VIDA Os indivíduos passaram a viver em sociedade, quando surgiram as comunidades e, pos- teriormente, as cidades criaram regras de convivência social, cujo objetivo é até hoje o de produzir o bem e a felicidade a todos. Dessa forma, a ética permite a relação entre proje- tos de vida coletivos e individuais. Com esses projetos, por exemplo, surgiram normas e punições com o propósito de garantir a qualidade de vida individual e social. 20 1 Ética – sua essência e o cotidiano A ética, sob esse aspecto, afasta-nos de uma vida guiada por impulsos, caprichos e de- sejos individuais que prejudicam o interesse coletivo. Por meio da elaboração racional de princípios, condutas, normas, regras e leis que permitam a civilidade, a ética se torna um elemento essencial para a construção do sentido de projetos de vida. Devemos, neste ponto, destacar a distinção entre normas jurídicas e morais, pois am- bas permeiam a vida cotidiana e em sociedade. As normas jurídicas são aquelas que relacionam o indivíduo com o meio externo, ou seja, a sociedade como um todo e são reguladas por meio de princípios e obrigações legais (constituição, leis, decretos, entre outras normas estabelecidas coletivamente). As normas morais pertencem ao campo mais restrito e íntimo dos indivíduos, sendo arti- culadas com as motivações pessoais. Elas são reguladas pelas relações que concernem aos laços familiares, comunitários, religiosos ou mesmo grupos cujas tradições e visões de mundo representam amplo convívio, proximidade e compartilhamento de valores. Com isso, percebemos que, desde o nascimento, fomos submetidos a interações sociais que permitiram a vida em sociedade. A partir desses padrões éticos recebi- dos, durante a existência, é que será possível desenvolver projetos que entrelacem a vida individual e a coletiva. Quando, hoje, discutimos a preservação do meio ambiente, por exemplo, estamos ela- borando um projeto de existência para as gerações futuras a partir de atitudes éticas que são urgentes no presente. A forma como falamos, nossos gestos, propósitos pro- fissionais, relações de trabalho e modos de agir considerados corretos estão presentes no universo de formação das crianças e dos adultos. Todas essas ações podem ser tidas como projetos de vida éticos, pois procuram organizar relações sociais em nome da vida em sociedade. Figura 04. Mapa Conceitual Ciência Reflexão Senso Crítico ÉTICA Bem Comum Felicidade coletiva Interesse coletivo Estudo das diferentes moralidades Problematizar Universalidade Heterogeneidade MORAL Hábito Costume Tradição Valores Reativismo Particularidade Variabilidade Hábito Costume Tradição Valores Senso Moral Consciência Moral Fonte: elaborada pelo autor. 21 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co ` Filme � O filme Advogado do Diabo (1998) trata da vida profissional de Kevin Lomax, um jovem e prodigioso advogado norte-americano. Ele se destaca por defender clientes inescrupulo- sos e assassinos por meio de brechas que encontra nas leis. Ele é contratado pelo maior escritório de advocacia de Nova York e passa a trabalhar na defesa de casos moralmente condenáveis. A obra apresenta uma série de dilemas éticos e morais a respeito do traba- lho e vida pessoal do personagem. Após assistir ao filme, tente identificar três aspectos morais presentes no filme e qual a decisão ética foi tomada pelo personagem principal. ` Texto Complementar � Indicação do livro A Política, de Aristóteles. ` Somos animais Políticos � Em A política, Aristóteles define a humanidade como um “animal político por natureza”. Deve-se frisar a etimologia em grego de animal político (Zoon Politikon). Politikon não significa apenas a atividade política como a ocupação ou exercício de cargos públicos, mas, na realidade, tem um sentido mais amplo para o mundo grego na Antiguidade, pois é a política que diferencia humanidade dos demais animais. A política representa o agir, a reflexão e o aprimoramento da vida em sociedade; está associada à capacidade humana de discernir, estabelecer, criar, construir, refazer e viver (em sociedade) o que se entende como justo e injusto, o bem e o mal, de modo que normas e regras são incorporadas coletivamente. A política é produzida por meio do uso da razão e das palavras. Sem o uso da razão e da linguagem seríamos incapazes de comunicar e muito menos de expor valores, criar costumes e leis. O que Aristóteles define como Zoon Politikon (animal político) está relacionado à noção de que a política é um elemento natural e vivido de forma intensa e social na cidade (Pólis em grego). Portanto, a política é o fundamento para a existência da vida moral e ética dos sujeitos, pois a existência é dada em sociedade e será por meiodela que juízos, costumes, tradições, regras e leis que constituem o convívio comum serão fundados. Um exemplo para você analisar como a moral esteve arraigada na vida dos indivíduos pode ser verificado, a partir do fato histórico no qual, até aproximadamente a década 1960, a maioria das sociedades possuía a visão de que as funções sociais das mulheres deveriam se resumir aos cuidados domésticos. Ainda hoje é possível ver alguns grupos sociais defen- dendo tal postura. No entanto, com o desenvolvimento do mercado de trabalho, a ascensão de movimentos feministas e maior conscientização da sociedade, as mulheres passaram a ocupar lugares importantes no meio social, como no mercado de trabalho, política e meios de comunicação. Diferentemente de anos atrás, nos dias atuais é impossível imaginar empre- sas, universidades e emissoras de rádio e TV sem elas, ainda que visões machistas predo- minem em muitos setores da sociedade. Caso de aplicação 1 22 1 Ética – sua essência e o cotidiano 2. APRENDENDO A DECIDIR COM ÉTICA 2.1 A ÉTICA DA MEDIANIA (ARISTÓTELES) Aristóteles, pensador grego da Anti- guidade, foi o primeiro a definir a pa- lavra “ética” (do grego ethos, significa conduta em relação aos outros), esta- belecendo-a, ao mesmo tempo, como uma ciência que investiga os compor- tamentos humanos e como a busca de uma conduta que é capaz de gerar equilíbrio. Em outras palavras, o autor defende a ética como conduta media- na ou caminho do meio que permite aos indivíduos viverem em sociedade, visando ao bem comum e à Eudaimo- nia, palavra que em grego clássico se relaciona à felicidade e promoção da excelência humana realizada de modo coletivo. O ethos é a morada do animal e passa a ser a «casa» (oikos) do ser huma- no, não já a casa material que lhe proporciona fisicamente abrigo e proteção, mas a casa simbólica que o acolhe espiritualmente e da qual irradia para a própria casa material uma significação propriamente humana, entretecidas por relações afetivas, éticas e mesmo estéticas que ultrapassam suas fina- lidades puramente utilitárias e a integram plenamente no plano humano da cultura. [...] Tal é a historicidade própria do ethos, que nele se exprime como necessidade instituída que Aristóteles comparou à e necessidade dada da Natureza. (VAZ, 1988, p. 39-40). Na obra Ética a Nicômaco, Aristóteles partia do pressuposto de que toda cidade e sociedade são caracterizadas por apresentar indivíduos heterogêneos, ou seja, com valores, formas de pensar, condições econômicas e políticas bem distintas. Diante disso, considera que o papel da ética, assim como das leis, deve ser o de produzir equilíbrio, isto é, condições de coexistência entre grupos diferentes com o objetivo de realizar o bem comum. Aristóteles, portanto, atribui à ética a busca do equilíbrio, considerando que desse equi- líbrio será possível produzir a felicidade, a excelência humana, a justiça e a virtude entre os membros que constituem uma sociedade. Logo, Com isso, vemos que a moral está sempre em transformação, de forma que é modificada ou varia de acordo com o período histórico, ou conforme cada sociedade ou geração. Com base no exposto, elabore um breve texto relatando outros exemplos de transformações de visões morais na sociedade. Explique como é possível observar a moral nessas transformações. Selecione uma matéria de jornal e revista para fundamentar a sua pesquisa. Pense em questões em torno do mercado de trabalho, política, meios de comunicação ou mesmo educação. Figura 05. Ética Fo nt e: 1 23 R F 23 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co [t]oda arte e toda investigação, bem como toda ação e toda escolha, visam a um bem qualquer, e por isso foi dito, não sem razão, que o bem é aquilo a que as coisas tendem. Mas entre os fins observa-se uma certa diversidade: alguns são atividades, outros são produtos distintos das atividades das quais resultam; e onde há fins distintos das ações, tais fins são, por natureza, mais excelentes do que as últimas (ARISTÓTELES, 1979, p. 49). 2.2 O HEDONISMO Do grego hedonê (prazer), o hedonismo expressa um modelo de ética que tem como principal objetivo para a vida (ou como suprema norma moral) a busca da felicidade e a exaltação do prazer. Essa modalidade de ética foi pensada pela primeira vez pelo filósofo grego Epicuro (341–270 a.C.) e influenciou pensadores romanos da Antiguidade conhe- cidos como estoicos, entre eles Cícero (106 -43 a.C.), Lucrécio (94-50 a.C.), Horácio (65 a.C-8 d.C.), Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.) e o imperador-filósofo Marco Aurélio (121-180 d.C.). Epicuro partia da ideia de que a verdadeira virtude estava na realização dos prazeres. Não devemos tomar o epicurismo ou o hedonismo de forma vulgar, pois não se reduzem a uma satisfação cega e sem reflexão sobre os prazeres. O prazer deve trazer o bem-es- tar. Epicuro fundou um grande jardim na periferia de Atenas, lugar que ficou conhecido como “O Jardim de Epicuro”. O local foi resultado de uma mudança de postura, em que o filósofo viu a necessidade de se distanciar dos problemas da cidade da pretensão de promover a virtude no espaço público. A política é fonte de avareza e corrupção. O jardim reunia discípulos (escravos e cidadãos livres) que procuravam a virtude no equilíbrio entre os diferentes prazeres – nas bebidas, amizades, sexo, banquetes e afins. Não se deve concentrar o prazer em apenas uma única atividade (caso contrário, produzirá o vício), mas equilibrar os diferentes prazeres fornecidos pelo corpo. O Arcadismo foi um movimento literário desenvolvido na Europa, durante o século XVIII. Ca- racterizou-se por valorizar a vida humana em meio à natureza, ou seja, a existência bucólica exercida com simplicidade. No Brasil, o movimento se deu em Minas Gerais também, no sé- culo XVIII, e se envolveu com o movimento da Inconfidência Mineira. Seus principais autores foram Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Basílio da Gama. GLOSSÁRIO GLOSSÁRIO Epicuro buscava a chamada ataraxia, conceito que representa o equilíbrio entre os pra- zeres em seu jardim em meio à natureza e distante dos problemas da cidade. O filósofo e poeta romano Horácio (65 a.C. – 8 d.C.), inspirado no epicurismo, concebe o “Carpe diem quam minimum credula póstero” (ao qual traduzimos ao português como Aprovei- ta o dia e confia o mínimo possível no amanhã), concepção incorporada pelo Arcadismo (movimento literário do século XVIII). 24 1 Ética – sua essência e o cotidiano 2.3. O CONTRATUALISMO A partir dos séculos XVI e XVII, com a ascensão da Modernidade, surgiram novas mo- dalidades de ética com objetivo de atender a novas demandas que surgiam com a nova sociedade e formas de pensamento. Entre as transformações que constituem a Modernidade estão o surgimento de uma sociedade capitalista e o fortalecimento da burguesia, industrial e de defesa da liberdade econômica e política. O contratualismo se refere à percepção éti- ca surgida entre os séculos XVII e XVIII, que estabelece a obrigação de se comportar de acordo com as leis ou a burocracia. Trata- -se da noção de que as relações humanas apenas se tornam possíveis, estáveis, du- ráveis e seguras, por meio da criação de obrigações e exigências legais, sem as quais existiriam desconfiança e instabilida- de social. Entre os pensadores contratualis- tas, destacamos Hobbes (1588-1679), Lo- cke (1632-1704) e Rousseau (1712-1778). Temos como exemplos de contratos: leis, pactos sociais, documentos e impostos. Por meio da existência do contratualismo, é possível notar como a sociedade moderna ga- rante a sobrevivência de trocas comerciais, acordos políticos ou relações sociais de qualquer espécie. O contratualismo é, à vista disso, uma forma moderna de ética que visa consolidar relações sociais racionais, seguras e legitimadas por meio de pactos, contratos ou acordos considerados legais. 2.4 A ÉTICA DO DEVER DE KANT Entre os séculos XVIII e XIX, com o advento da ciência moderna,do contratualismo, do liberalismo e do Iluminismo (depois da consolidação do pensamento burguês) surgiram novas análises éticas sobre princípios morais que regulamentam o comportamento do bom cidadão e das boas práticas de administração pública. Kant (1724-1804) foi um pensador alemão, contemporâneo à Revolução Francesa, que se demonstrou otimista diante das conquistas burguesas. Considerava que superstições e for- mas de interpretações medievais da realidade haviam sido substituídas pela racionalidade da ciência moderna, da indústria e direitos individuais. Ele percebia que o poder dos reis estava prestes a desaparecer definitivamente, com as sociedades deixando de ser guiadas segundo humores dos tiranos, mas de acordo com a racionalidade e a legalidade. Na obra Fundamentação metafísica dos costumes (1785), Kant valoriza a razão moder- na aplicada ao direito e à ética, responsável por se opor à tradição maquiavélica fun- damentada na teleologia (nos fins). Kant estabelece a deontologia (do grego deon, que significa obrigação ou dever moral) (conferir texto complementar e mapa mental) como ciência do dever. Isto é, obrigação racional que deve ser realizada, necessariamente, a todo custo, independentemente das consequências, pois considera que tudo que tem origem na razão seria benéfico ou positivo à humanidade. Figura 06. Contratualismo Fo nt e: 1 23 R F 25 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Kant foi o mais importante pensador alemão a se declarar Iluminista, de modo que ali- mentava grande crença nos benefícios da razão humana. Dessa forma, importam os meios racionais ou mesmo os meios se confundem com os fins, pois confia que a razão conduziria a humanidade ao bem e à verdade, não podendo ela ser questionada. Com a deontologia, Kant (2009, p. 245) estabeleceu o imperativo categórico, defendendo o seguinte lema: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua von- tade, uma lei universal”. A expressão afirma o caráter inquestionável da aplicação e obediência à ação racional, sendo válida em toda parte e temporalidade, o que demonstra a visão otimista de Kant diante da razão. Portanto, o imperativo categórico é uma lei moral e racional que valo- riza a autonomia do indivíduo e sua racionalidade, com o objetivo de universalizá-la na forma de leis e consenso coletivos. 2.5. A ÉTICA DA UTILIDADE (J. BENTHAM E J.S. MILL): A ÉTICA CONSEQUENCIALISTA O modelo ético utilitarista foi criado entre os séculos XVIII e XIX pelos filósofos ingle- ses Bentham (1748-1832) e Stuart Mill (1806-1873). Tem como sinônimo a concepção de maximização, isto é, produzir o maior prazer, ganhos, lucros ou um bem ao maior número possível de pessoas, evitando-se ao máximo prejuízos, dores ou perdas. O maior bem produzido não significa necessariamente que este abrangerá a maioria das pessoas. Segundo Moreira (1999, p. 22): [a] ideia de maior bem para a sociedade, não leva em conta o número de pessoas beneficiadas, mas sim o tamanho do bem. Em outras palavras, em uma circunstância na qual o maior bem beneficie poucos, em contra- posição ao bem menor que possa ser feito a muitos, a primeira atitude deverá ser a escolhida. A maximização é um termo rotineiro no universo administrativo e econômico. Por isso esse modelo ético também é designado como consequencialista, ou seja, justifica a va- lidação de uma determinada ação ou conduta a partir da observação e da identificação dos possíveis resultados. Trata-se, portanto, de verificar em qual medida a ação é mo- ralmente útil a ponto de produzir o prazer ou o bem-estar coletivo, procurando reduzir os prejuízos da ação. Além disso, é entendido como o processo que pode reduzir gas- tos em nome do aumento da produtividade ou apenas manter o ritmo de produção ou a margem de lucro, ainda que para tanto seja necessário demitir alguns funcionários. Maximizar pode também implicar, por exemplo, na manutenção do tempo de trabalho, ao passo que a quantidade de trabalho ou capital gerado é aumentado. As democracias modernas, quando apresentam o “segundo turno”, são um processo de maximização, o qual visa produzir o maior bem ao maior número possível de pessoas, evitando-se ao máximo prejuízos. Isso justifica por que é declarado vencedor de uma eleição aquele que conseguir 50% dos votos mais 1. 26 1 Ética – sua essência e o cotidiano 2.6. A ÉTICA DO DISCURSO (J. HABERMAS) Durante o século XX, novos dilemas éticos permitiram o surgimento de novas pers- pectivas conceituais ou, ao menos, a verificação de questões pertinentes ao diá- logo consensual e racional, consumo e relação com outras culturas, considerando a expansão da globalização. O alemão Habermas (1929 -) abordou, do ponto de vista ético, o que definiu como te- oria da ação comunicativa. Segundo o filósofo, o agir comunicativo está relacionado ao mundo da vida cotidiana, de modo que está fundamentado em regras de sociabili- dade e no diálogo, considerando, ainda, que os indivíduos se comunicam por meio de diferentes moralidades. Contudo, é possível alcançar consenso e entendimento mútuo caso abandonemos relações hierárquicas de dominação e deslegitimação do discurso do outro (é o caso de preconceitos, coerção ou mesmo desmerecimento da fala e dos valores de indivíduos pertencentes a outros grupos e seus respectivos valores). Habermas defende que o diálogo, a capacidade de escutar, entender, falar e negociar com grupos diferentes alcança a dimensão ética capaz de produzir interações con- sensuais, ainda que haja a diversidade de sentimentos, expectativas e concepções de mundo. A teoria da ação comunicativa tem como finalidade produzir concordâncias após a solução e a superação de discordâncias entre os sujeitos. Para tanto, é neces- sário considerarmos o diálogo racional que tornaria possível a sociabilidade desde os níveis familiares, da comunidade, do campo científico, artístico e político. Há um interessante dilema a respeito da situação hipotética de um trem desgovernado: O trem corre em alta velocidade pelos trilhos e está fora de controle. Caso não seja parado ou desviado, o trem colidirá com cinco pessoas que estão amarradas aos trilhos. Nessa situa- ção, a única possibilidade de salvar as pessoas é mover uma alavanca que desviaria o trem para outro trilho. Porém, caso seja desviado e não atropele as cinco pessoas presas nos trilhos, o trem irá, fatalmente, em direção a um outro único indivíduo parado na outra pista. O que fazer? Considerando os elementos que constituem a ética utilitarista ou consequencialista, reflita qual seria a melhor solução a ser seguida. Elabore sua resposta a partir dos princípios que norteiam a ética elabora por Bentham e Mill. Caso de aplicação 2 Observarmos, assim, que uma sociedade é constituída por uma pluralidade de vozes, de modo que uma ação racional é consolidada de maneira coletiva e não individual, desde que haja sensibilização e afeto em relação à condição e às percepções daqueles que se apre- sentam a nós como diferentes. 27 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Devemos, portanto, colocar-nos na condição de nosso interlocutor, compreen- der seus dilemas e buscar entendimento, o que evitaria a posição relativista, que veremos no tópico a seguir. 2.7 RELATIVISMO O relativismo é um princípio que passa a ser promovido, principalmente entre o final do século XIX e durante o século XX. Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão, é conside- rado um dos principais teóricos dessa perspectiva. Na Antropologia norte-americana do século XX, os pensadores denominados como culturalistas (Franz Boas e Clifford Geertz) desenvolveram o chamado relativismo cultural. Em linhas gerais, o relativismo resume-se na expressão “cada um é cada um”, ou seja, normatiza a condição alheia, ainda que a condição do outro seja degradante. O relativis- mo anula os valores morais, por isso as noções de verdade, como o bem e mal ou o jus- to e o injusto.Elas são suspensas, pois há a noção de que nenhum juízo de valor possa ser universal ou verdadeiro, de sorte que toda e qualquer ação passa a ser aceita. O relativismo elimina a possibilidade de engajamento ou uma ação responsável diante de outras pessoas ou sociedades. Empresas e governos que atuam de modo relativista, por exemplo, não se preocupam com as condições sociais e de saúde de seus con- sumidores ou cidadãos. Um sujeito se torna relativista quando não emite juízos sobre uma situação, qualquer que seja, pois considera que nenhum valor é válido. Se não nos importamos com a condição de fome e miséria de um semelhante e julgamos que cada um ocupa o lugar que deseja estar, acabamos por enveredar em uma relativista. Dessa maneira, o relativismo é uma afirmação absoluta da diferença e da impossibilidade de um consenso a respeito dos valores e juízos morais. Para saber mais a respeito do relativismo, confira a fala do filósofo brasileiro Má- rio Sérgio Cortella. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VumyyS3THSY. Acesso em: 07 jun. 2022. SAIBA MAIS O relativismo não se restringe ao mercado. Podemos percebê-lo quando não da- mos importância a um acontecimento distante. É o mesmo sentimento de muitas pessoas que tendem a observar a pobreza, o desemprego ou as desigualdades so- ciais como naturais ou normais, sem procurar refletir ou fazer absolutamente nada para modificar tal situação. 2.8. FUNDAMENTALISMO O fundamentalismo ocorre para quem os conceitos, profissões de fé, doutrinas políti- cas ou deveres morais devem ser extraídos de uma fonte tida como superior e externa (Estado, religião, líder, imposições do mercado) ao ser humano. Isso significa afirmar que o indivíduo se submete a uma ordem superior à sua própria vontade, pois a julga 28 1 Ética – sua essência e o cotidiano racionalmente correta e inquestionável. Muitas vezes, o fundamentalismo é visto como obediência cega diante da autoridade de um terceiro. Do ponto de vista da religião, co- nhecemos os chamados fundamentalistas religiosos. Na esfera política, o exemplo mais evidente é a obediência a um líder político, assim como ocorreu na Alemanha nazista de Hitler, quando os seus seguidores obedeciam e concordavam com todas as ações de seu líder cegamente. Em relação ao mercado ou o capitalismo, podemos observar tal ética dentro dos padrões de moda ou mercadorias impostas sobre o comportamento e os objetivos de vida de consumidores. Devemos destacar que a ética fundamentalista é, geralmente, criticada pelos filósofos e estudiosos, sendo que dificilmente encontraremos reflexões que apontem suas caracte- rísticas sem problematizá-las. A respeito disso, Boff (2009) situa que o fundamentalismo [...] não é uma doutrina, mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É assumir a letra das doutrinas e normas sem cuidar de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da história, postura que exige contínuas interpretações e atualizações, exatamente para manter sua ver- dade originária. Fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista (BOFF, 2009, p. 49). Nos últimos anos, tem crescido o movimento de consumidores sobre a necessidade de as empresas produtoras de alimentos (principalmente os processados) informar sobre a compo- sição química de seus produtos. Há indícios de uso de agrotóxicos, entre outros elementos químicos nocivos à saúde pública. Esse movimento de consumidores exige que as empresas fabricantes desses alimentos informem e alertem nas embalagens os seus consumidores. Investigue duas reportagens ou matérias em jornais e revistas recentes que ilustrem esta si- tuação. Em seguida, faça uma análise desses materiais levando em consideração conceitos éticos em torno do utilitarismo e relativismo. Aponte quais as soluções éticas poderiam ser tomadas a respeito disso. Caso de aplicação 3 29 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Deontologia DEVER MORAL RACIONAL MEIOS MAIS IMPORTANTES QUE OS FINS CERTEZA NAS CONSEQUÊNCIAS BENÉFICAS CONFIANÇA NA RAZÃO Do grego deon, que significa dever, obrigação KANT Figura 07. Mapa conceitual MAQUIAVEL Teleologia Do grego télos, que significa propósito ou fim. CALCULISMO E JOGO DE FORÇAS O BEM E O MAL, A RAZÃO E O IRRACIONAL SÃO MEIOS DA AÇÃO ÉTICA OS FINS JUSTIFICAM OS MEIOS IMPORTAM OS FINS Fonte: elaborada pelo autor. ` Filme Um mercado Relativista O filme The Corporation (2003) mostra três exemplos impactantes do relativismo aplicado ao cenário empresarial. Podemos destacar, primeiramente, a Monsanto (uma das maiores empresas produtoras de sementes e derivados de leite do mundo e que tem atuação no Brasil). Para aumentar a produtividade de vacas leiteiras nos EUA e, consequentemente, os seus lucros, a Monsanto é acusada de ter aplicado nesses animais hormônios que significativamente elevaram o nível de produção. No entanto, sem se importar com os impactos causados sobre as vacas e os con- sumidores, descobriu-se que os hormônios, na verdade, facilitam a proliferação de bactérias que levam os animais à morte. O produto contaminado é ingerido pelos clientes, sem que a Monsanto preocupe-se com as suas condições. O segundo exemplo refere-se a IBM, famosa grife de computadores e sistemas empresariais de gestão. Antes e durante a Segunda Guerra Mundial, a IBM foi res- ponsável por criar um sistema, ainda não informatizado, de geração de códigos entre outras burocracias que contribuíram muito para catalogar judeus, ciganos, homossexuais e opositores do ditador alemão, Hitler. Uma entre as tantas funções 30 1 Ética – sua essência e o cotidiano dos sistemas criados pela IBM na Alemanha ajudaram a tatuar códigos nos braços desses prisioneiros, que eram levados, em sua grande maioria, aos campos de concentração. A IBM nega até hoje qualquer envolvimento com o nazismo. Ao se eximir de sua responsabilidade, a empresa adota também uma ética relativista, sim- plesmente quando se considera que eram apenas “negócios”. O terceiro caso mostrado pelo documentário refere-se à espantosa história da Co- ca-Cola na mesma Alemanha Nazista. Após a entrada dos EUA no conflito armado em 1942, o governo desse país exigiu que as empresas americanas, sobretudo as de maior destaque, encerrassem suas atividades na Alemanha. Em nome da manu- tenção de seus lucros, a Coca-Cola não exprimiu qualquer oposição ao nazismo; o refrigerante foi substituído, saiu de cena e, em vez de fechar a fábrica, a empresa substituiu o antigo pela sua mais nova invenção: Fanta. Naquela época tornou-se o refrigerante mais vendido na Alemanha. As empresas, por não informarem am- plamente e publicamente aos seus clientes e consumidores os riscos em relação ao uso de suas mercadorias adotam o relativismo, cujo princípio elementar é dizer “cada um é cada um!”. ` Texto Complementar Maquiavel (1469-1527), na obra O Príncipe (publicada de forma póstuma em 1532), passa a observar o ser humano como, naturalmente, dotado de egoísmo, individua- lismo e nenhuma preocupação com o bem comum, a não ser de forma dissimulada, sendo que, na primeira oportunidade, poderia trair seus semelhantes. O filósofo parte de um ponto de vista negativo sobre a natureza humana. Seus questionamentos gira- vam em torno de como o príncipe (expressão que se refere a qualquer governo) tem condições de manter o poder e o domínio sobre os súditos. Além disso, o pensador investiga como é possível persuadir os subordinados à autoridade de um governo e de que forma um príncipe deve agir para conter permanentes conflitos internos e externos, com outros governos. Maquiavel nunca escreveu a expressão “os fins justificam os meios”, porém, sua obra permite relacioná-la com essa ideia, pois julga que, para consolidar o poder, o governante tudo pode e deve, como: matar, mentir, agir com hipocrisia, demitir, distorcer informações, ser amado pelo povo e ser temido pelosinimigos, tornar ini- mizades em novos amigos ou oposto, promover e buscar ora a guerra, ora a paz. Tudo isso segundo a situação, interesse e conveniência. É necessário desmitificar o termo maquiavélico, geralmente associado a fazer ou realizar o mal. Na verdade, ser maquiavélico expressa a capacidade de ser cal- culista ou entender e saber medir racionalmente os prós e contras de uma ação. Trata-se da noção de que a ética maquiavélica está direcionada aos fins (manter o poder e garantir o apoio popular, pois sem ele ninguém se mantém no poder), seja lá quais forem os meios empregados. 31 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co 3. SENDO ÉTICO NO DIA A DIA 3.1. LIBERDADE, ESCOLHA E DECISÃO Nas obras O Ser e o nada (1943) e O existencialismo é um humanismo (1946), Sartre- afirma que “a existência precede a essência”. A expressão afirma a ideia de que não há nada de inato, pronto ou acabado no ser humano, não há uma essência ou natureza hu- mana predeterminada. Tais elementos explorados por Sartre indicam que ninguém nasce definido ou direcionado naturalmente a ser e agir de alguma forma, ou, muito menos, é determinado por alguma força externa que o obrigue a ocupar uma posição social. Na realidade, o ser humano, na visão de Sartre, nasce “condenado a ser livre”, de maneira que suas escolhas o tornam livre para a todo instante modificar o seu ser (SARTRE, 1984, p. 9). Isso significa que o indivíduo é construído e se constrói por meio do seu vínculo com a realidade, com o mundo à sua volta. Com a ética de Maquiavel considera-se que ela visa fins, o que é designado com a palavra teleologia (do grego telos, que significa fim, finalidade, objetivo; e logos: discurso, razão ou racionalidade). Sendo assim, a teleologia representa o estudo dos fins ou das finalidades, sendo um modelo ético em que fins, resultados ou consequên- cias são calculados pelo indivíduo, podendo ser utilizado em qualquer meio possível. Sartre afirma, nessa direção, a liberdade como sinônimo de fazer escolhas e tomar decisões. Nossas escolhas e decisões modelam quem somos, são atitudes livres, cuja origem é particular a cada indivíduo. O resultado dessa liberdade (nossas escolhas e decisões) é a constituição de tudo aquilo que somos e que podemos vir a ser. Com a afirmação de que o ser humano se caracteriza pela liberdade, Sartre se opôs à noção de natureza humana, entendida como elemento determinista ou fatalista, cuja defesa limita a liberdade humana e condena os indivíduos a pensarem que não são o resultado de suas próprias escolhas. O autor também se contrapôs à tradi- ção filosófica grega e medieval. Os pensadores gregos na Antiguidade, como Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), concebiam que o comportamento e as posições sociais eram determinados pela natureza. Na Idade Média, teólogos como Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.), afirmavam ser Deus o responsável por determinar quem são os senhores e os servos. A concepção de natureza humana é criticada por Sartre porque, além de renunciar à liberdade humana, leva os indivíduos a justificarem passividade diante da realida- de em que estão inseridos, desconsiderando que a vida é uma construção em mo- 32 1 Ética – sua essência e o cotidiano vimento que dialogam com nossas escolhas e decisões. Já a condição humana é caracterizada por ser plástica, flexível e está em permanente transformação. Sendo assim, o conceito é sinônimo de liberdade, decisão e escolha. Ela revela que tudo o que o sujeito é ou possa vir a ser acaba sendo o resultado da liberdade e de suas escolhas diante do mundo em que vive. Sartre considera que a humanidade vive condenada à liberdade. Posto de outro modo, ser livre expressa que a todo instante estamos fazendo escolhas ou projetamos nossa subjetivi- dade no mundo a partir de nossas decisões. Na perspectiva do existencialismo, a liberdade é uma decisão ética constante que im- põe a cada indivíduo escolhas e decisões que constituem quem somos e o que repre- sentamos para a sociedade. Porém, conforme indica na obra O ser e o nada (1997), a liberdade provoca o que Sartre designa como náusea ou angústia. Sendo que são dois fatores que provocam esse sentimento, a saber: ` Cada escolha (liberdade) obriga o abandono ou a anulação de todas as outras pos- sibilidades de ação. Se, por exemplo, um indivíduo gosta das áreas médicas e das ciências humanas ao mesmo tempo, na juventude, ele é obrigado a escolher um único caminho profissional e decide escolher estudos na faculdade de medicina, ele viverá an- gustiado por ter aberto mão de outra possibilidade de estudos e de vida. Quando decidi- mos um rumo, abandonamos algumas opções e deixamos outras possibilidades de lado. Nossas escolhas profissionais, amorosas, projetos de vida e decisões econômicas que estabelecemos ao longo da vida estão sujeitos à angústia e náusea. ` Cada escolha (ou projeto que façamos) não se realizará no futuro tal como o pla- nejamos originalmente no presente. Isso porque nossas escolhas e liberdades se en- contram em uma relação de tensão com o mundo a nossa volta, pois há nele incontáveis subjetividades dos outros que estão também promovendo escolhas, ações livres e toma- das de decisões que se chocam com nossos próprios projetos. Por isso, o filósofo afirma em diferentes obras que “o inferno são os outros”. Na perspectiva ética existencialista, a angústia e a náusea têm origem no fenômeno que Sartre define como nadificação. Este conceito implica na noção de que o que somos é resultado das decisões que conduziram a resultados diferentes ao espera- do, além de elementos que limitaram nossas escolhas e nos conduziram ao fracas- so. Cada decisão, cada escolha exercida por um sujeito está em relação de tensão com as liberdades dos outros indivíduos. As liberdades e as escolhas presentes e exercidas por todas as demais subjetividades entram em contradição ou oposição com as nossas preferências. 33 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Em outras palavras, a nadificação diz respeito a tudo aquilo que barra ou limita a liberdade, são ações diferentes daquelas que planejamos ou mesmo desvios que a liberdade opera sobre a realidade na qual estamos inseridos, transformando-a. Embora até aqui o pensamento ético de Sartre pareça ser pessimista, visto que a nadifi- cação produz resultados diferentes aos projetados por nossa liberdade e fazer escolhas ocasiona em náusea e angústia, porque decidir significa abandonar outras possibilida- des de vida, o filósofo afirma ser o existencialismo uma posição ética humanista e otimista (SARTRE, 1984, p. 3-32). De acordo com o existencialismo, a liberdade é ta- manha que, apesar da tensão com as escolhas dos outros e os permanentes riscos de nadificação, somos suficientemente livres para contornar e superar fracassos, desvios e a concorrência que travamos com as decisões dos outros. Na visão de Sartre, por sermos livres e por tomarmos decisões a todo instante, temos condições de superar as limitações com as quais nossa liberdade se depara. É nesse sentido que o existencialismo é considerado um humanismo, posto que apresenta oti- mismo com a capacidade que possuímos de projetar a liberdade de modo a nos tornar seres em constante adaptação e transformação à medida que estamos no mundo e em contato com os outros. 3.2 ÉTICA, LIBERDADE E RESPONSABILIDADE Sartre (1984, p. 8-11) aponta que cada es- colha, decisão ou ato, isto é, cada passo nosso no mundo possui reflexos amplos, com alcance universal. O filósofo defende, assim, que “fazer escolhas” e “responsa- bilidade” são termos próximos, configuram a dimensão ética da liberdade, pois, ao tomar decisões, somos responsáveis pe- los outros. Sartre demonstra que nossas decisões estão interligadas com o univer- sal, com a subjetividade de todos os outros indivíduos, tal como quando escolhemos estudar e nossa profissão auxilia a vida de outros sujeitos, passamos a nosdar conta de como nossas decisões influenciam e são influenciadas pelas escolhas dos outros. Max Weber (1864-1920), no início do século XX, foi outro pensador importante a tecer relações entre ética e responsabilidade. Nos seus dois ensaios publicados em 1919, Ciência como Vocação e Política como Vocação, o autor diferencia os conceitos que definiu como ética da convicção e ética da responsabilidade. Para ele, [...] toda atividade orientada pela ética pode subordinar-se a duas máximas totalmente diferentes e irredutivelmente opostas. Ela pode orientar-se pela ética da responsabilidade ou pela ética da convicção. Isso não quer dizer Figura 08. Monumento de Jean-Paul Sartre, em Nida, Lituânia Fo nt e: 1 23 R F 34 1 Ética – sua essência e o cotidiano a ética da responsabilidade à ausência de convicção. Não se trata eviden- temente disso. Todavia, há uma oposição abissal entre a atitude de quem age segundo as máximas da ética da convicção - em linguagem religiosa, diremos: “O cristão faz seu dever e no que diz respeito ao resultado da ação remete-se a Deus” - e a atitude de quem age segundo a ética da responsa- bilidade que diz: Devemos responder pelas consequências previsíveis de nossos atos (SROUR, 2000, p. 50) A ética da convicção diz respeito a um dever moral que por ser considerado racional deve ser realizado independentemente das consequências. Weber remete à deontolo- gia criada por Kant (1724-1808 d.C.), no final do século XVIII (ver mapa mental), para conceber a ética da convicção. que a ética da convicção seja idêntica à ausência de responsabilidade e Imagine um médico que cria como valor moral jamais mentir por considerar que dizer a verda- de é sempre a atitude mais racional e razoável. No entanto, suponha um paciente em estado terminal que pergunta qual é a sua condição após a análise de um exame. Certamente, o paciente receberá as palavras mais pessimistas e desagradáveis anunciadas pelo médico que prometeu jamais mentir. Dirá as verdades que podem ser desconcertantes, levando o paciente ao desespero e lágrimas. Weber afirma que a ética da convicção possui aspectos negativos, porque os meios se confundem com os fins, ou seja, o dever se torna mais rele- vante do que as consequências, ao passo que elas podem ser desastrosas. EXEMPLO A ética da responsabilidade, por seu turno, procura medir as consequências; há cálculo e reflexão sobre os prós e contras de todos os atos. Portanto, visa os fins e não os meios, relacionando-se ao padrão de ética denominada como teleologia (ver o mapa conceitual ao final deste tópico). Voltando-nos, novamente, ao exemplo do médico que possui como compromisso ético jamais mentir, podemos investigar o quanto foi irresponsável ao seguir a ética da con- vicção fornecendo o diagnóstico ao seu paciente. No entanto, seria possível pensar em um médico que passasse agora a seguir a ética da responsabilidade. Ele poderia ser considerado responsável caso tivesse mentido e dissesse ao seu paciente o quanto ele é forte, resistente, um grande exemplo e corajoso, surpreendido a todos no hospital. Sabendo que são palavras mentirosas, porém confortáveis ao paciente, elas poderiam motivar seu paciente a não desistir e a aceitar a gravidade de sua doença. Na ética da responsabilidade, os fins são mais relevantes que os meios. Para ampliar o conhecimento acerca da ética, confira as reflexões do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, a partir de seus estudos sobre Max Weber, sobre a ética dentro da política para o programa Café Filosófico, referenciadas a seguir: SAIBA MAIS 35 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co 3.3 A ÉTICA E O CAPITALISMO Os desenvolvimentos do capitalismo e da sociedade burguesa entre os séculos XVIII e XIX produziram modificações a respeito do que vem a ser a ética e o próprio trabalho. Adam Smith (1723-1790) é considerado o precursor da ética voltada ao trabalho e à economia. A palavra “economia”, até antes do surgimento do capitalismo, estava restrita à administração privada do lar (família, alimentos e escravos ou servos). Foi a partir da teoria econômica de que a noção desse conceito foi posta de ponta-cabeça, tornando- -se um assunto público e, portanto, uma ética. No século XVIII, Adam Smith conseguiu demonstrar, na sua A riqueza das nações, que o lucro não é um acréscimo indevido, mas um vetor de distribuição de renda e de pro- moção do bem-estar social. Com isso, logrou expor pela primeira vez a compatibilidade entre ética e atividade lucrativa (MOREIRA, 1999, p. 28). Para Smith (1996), o mercado deveria funcionar segundo preceitos éticos individualis- tas, o que designou como “mão invisível”, a partir da qual o [...] indivíduo procura, na medida do possível, empregar seu capital em fo- mentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira essa atividade que seu produto tenha o máximo valor possível [...]. Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções (SMITH, 1996, p. 438). O autor supracitado cria a percepção de que a eco- nomia é uma esfera ética à medida que o merca- do, aparentemente caótico, é, na realidade, organi- zado e produz as espécies e quantidades de bens que são mais desejados pela população. Quanto mais egoísta e competitivo for um indivíduo e quan- to mais obtiver riquezas por meio de seu trabalho, indiretamente ele contribuirá com o progresso de outros indivíduos competitivos, por meio da com- pra de outros serviços ou mercadorias, de modo que ocorre o progresso coletivo. Surge uma modalidade de ética que tem, como fim último, o progresso social a partir do individualismo exacerbado. Na obra A Riqueza das Noções (1996), UM POLÍTICO não pode fugir das responsabilidades dos seus atos, 2019. Vídeo (2min 37s). Publicado pelo canal Café Filosófico CPFL. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?- v=_8K1NxxgsfE. Acesso em: 07 jun. 2022. Figura 09. Monumento de Adam Smith na Royal Mile de Edimburgo Fo nt e: 1 23 R F 36 1 Ética – sua essência e o cotidiano Adam Smith concebe que a melhor forma de uma sociedade prosperar se dá por meio das livres iniciativa e concorrência, competitividade, do individualismo; ou seja, cada sujeito deve concentrar-se em seus interesses econômicos privados. No ano de 2021, a ONU publicou o Relatório do Clima. O documento é um importante diag- nóstico a respeito dos resultados da ação humana sobre o meio ambiente diante de uma so- ciedade industrializada que procurou se apropriar dos recursos naturais de forma predatória. Os desequilíbrios sobre o clima causados pela ação humana foram estimulados pelos lucros das grandes multinacionais. Investigue em jornais e revistas informações sobre o relatório do clima publicado em 2021 pela ONU. Em seguida, faça uma análise e reflexão desses materiais levando em conside- ração duas questões: a. problematize se o interesse privado pode estar acima do coletivo quando pensamos em questões envolvendo o meio ambiente; b. avalie formas de equilibrar o interesse privado das empresas e as questões ambientais. Sugestões de leitura: INSTITUTO NACIONAL DE METEOROLOGIA. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abas- tecimento. Novo relatório climático do IPCC apresenta avaliação do clima no mundo. Portal Inmet, 13 ago. 2021. Disponível em: https://portal.inmet.gov.br/noticias/ipcc-alerta-para-necessidade-de-a%- C3%A7%C3%B5es-para-mitiga%C3%A7%C3%A3o-de-riscos-clim%C3%A1ticos Caso de aplicação 4 ` Devemos sempre obedecer às leis de forma incondicional? ` É ético obedecer a leis quando elas podem produzir algummalefício a outros humanos? 3.4 A REGRA SOCIAL E OS VALORES DO INDIVÍDUO Hannah Arendt (1906-1975), filósofa alemã, concebeu o conceito de banalidade do mal, descrito na obra Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal (1963). O livro apresenta uma importante reflexão sobre limites e tensões da relação entre regras coletivas e valores individuais, que pode ser traduzida nas seguintes questões: 37 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Hannah Arendt foi convidada pela revista The New Yorker para acompanhar o processo e julgamento, em Israel, de Adolf Eichmann, um oficial nazista responsabilizado por operações de extermínio de milhões de civis prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial, que foi capturado na Argentina, em 1961, e julgado em Jerusalém. A filósofa alemã se surpreendeu ao observar e descrever o julgamento do oficial, pois Eichmann não parecia ser um monstro, muito menos um indivíduo com um espírito maligno e que aparentasse um comportamento antissemita. Ele era, na verdade, um burocrata que se considerava bom funcionário e obediente às leis de seu país e que de- veriam ser seguidas. O oficial dizia que seguia ordens superiores e leis por considerar a obediência nelas seu dever racional. Hannah Arendt descreve o oficial como um sujeito medíocre, pois ele renunciou pensar ou refletir nas consequências dos seus atos. Eichmann, obediente às regras impos- tas coletivamente, mas sem pensar criticamente sobre elas, conduziu ao extermínio milhares de pessoas. Em virtude dessa observação, Hannah Arendt (1999, p. 144-5) pondera que, na banalidade do mal, verifica-se a renúncia da humanidade, a ausência de reflexão sobre os próprios atos, promovendo a falta de responsabilidade, isto é, não se medem as consequências das ações. A banalidade do mal ilustra que, muitas vezes, a obediência mais fiel às leis poderia criar reflexos contra a própria humanidade, porque distancia o indivíduo da responsa- bilidade com os outros semelhantes, tornando-o adepto de atitudes desumanas. Não esqueçamos que os campos de concentração, de forma sistemática e organizada, pro- moviam o trabalho escravo e o extermínio de humanos. A banalização do mal surge quando outros indivíduos são tratados de forma irresponsável, quando avaliados como meros números, ou são desumanizados por uma ordem legal que pode ser considerada cega. Devemos, então, avaliar como os valores de um indivíduo podem contestar regras sociais. Caso essas regras estejam em desacordo com princípios éticos de defesa à humanidade, como as leis nazistas, o sujeito que procura assumir uma atitude ética precisa refletir a ponto de negar e desobedecer a essas leis e regras sociais. Valores individuais norteados por princípios éticos e racionais têm que orientar a vida do sujeito, ainda que as regras coletivas estejam em desacordo com estes mesmos valores. 38 1 Ética – sua essência e o cotidiano Figura 10. Mapa conceitual Fonte: elaborada pelo autor. Filme Banalidade do mal no filme o Tribunal de Nuremberg Após a Segunda Guerra (1939-1945), muitos oficiais nazistas foram levados à corte e julgados na cidade de Nuremberg, na Alemanha. Eram acusados de crime contra a humanidade, responsáveis pelo holocausto – o extermínio de milhares de seres humanos em campos de concentração nazistas. Com lançamento no ano de 2000, a versão do filme O Julgamento de Nuremberg apresenta as versões dos oficiais nazistas que procuravam se defender dos cri- mes cometidos. O filme permite que relacionemos o conceito de banalidade do mal elaborado pela filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) e os argumentos em- pregados pelos oficiais nazistas. Diziam apenas estar obedecendo ordens ou leis, sendo que seria uma traição à pátria desobedecê-las. Apresentavam-se como bons cidadãos, responsáveis, chefes de família e religiosos, tudo isso para mascarar a barbárie realizada nos campos de concentração contra seres humanos. Deontologia DEVER MORAL RACIONAL MEIOS MAIS IMPORTANTES QUE OS FINS CERTEZA NAS CONSEQUÊNCIAS BENÉFICAS CONFIANÇA NA RAZÃO ÉTICA DA CONVICÇÃO ÉTICA DA RESPONSABILIDADE Teleologia REFLEXÃO E CÁLCULO SOBRE RESULTADOS É RESPONSÁVEL PORQUE MEDE PRÓS E CONTRAS MEDE AS CONSEQUÊNCIAS IMPORTAM OS FINS 39 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Texto Complementar Sobre o livro A ética protestante e o espírito do Capitalismo, de Max Weber. Uma importante interpretação sobre a ética presente nas relações mercantis mo- dernas está na obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, escrita entre 1904 e 1905, mas publicada apenas no ano de 1921. Max Weber procura compre- ender qual é a origem da racionalidade e da burocracia presentes no capitalismo. A Reforma Protestante, segundo Weber, deu origem à ascese, entendida como a busca constante do domínio e controle do próprio corpo, disciplina rígida diante das paixões, visando finalmente ao controle sobre a natureza por meio da ação metódica e calculada. Diferentemente do catolicismo (que na Idade Média negava o trabalho como fonte de riquezas), a conduta de vida protestante, sobretudo a calvinista, desenvolveu uma ética que prevê a racionalização da atividade mundana e, portanto, que se realiza por meio do trabalho rígido e do negócio (negação do ócio), enquanto formas de demonstração a si mesmo de que se é um escolhido por Deus, ou seja, um predestinado à salvação. A riqueza, o trabalho metódico e a prosperidade seriam sinais de Deus diante dos eleitos, os predestinados. Na visão de Weber, representa um paradoxo, pois trata-se de uma forma de religiosidade eminentemente moderna, uma vez que a fé não ape- nas se reduz à contemplação de Deus, mas também prevê uma ação e dominação do mundo por meio do trabalho. O que está em jogo é a relação entre a prosperidade econômica e a ética protestante com a origem da racionalidade presente no capitalismo. Weber designa esse estilo de vida como ética do trabalho, o que possivelmente teria criado certas crenças de que o “trabalho dignifica o homem” ou o “enobrece”. A principal característica da ética do trabalho é o controle e a racionalização sobre todos os processos da vida e do trabalho. O lucro e a cobrança dos juros, atividades vistas historicamente como degradantes e realizadas por espíritos gananciosos, passaram a ser tidas como benéficas e dignas, de acordo com a análise de Weber a respeito do protestantismo e do surgimento da modernidade. Noções antes apenas presentes no vocabulário do catolicismo, como missão, visão e vocação, foram transferidas à esfera do trabalho racional e gradativa- mente incorporadas ao vocabulário do universo gerencial da administração. O ponto central da análise que Weber realiza sobre a ética do trabalho é a de que indiretamente, ou seja, sem o saber, os protestantes inventaram as práticas racio- nalizadoras que foram incorporadas pelo capitalismo. Certamente, indivíduos de outras religiões e até mesmo ateus teriam percebido o rápido progresso econômico dos fiéis puritanos e começaram a imitar a ética do trabalho, mas agora sem a sua religiosidade original. Pode-se dizer que as práticas econômicas adotaram a ética do trabalho, mas o vínculo entre a religiosidade e a racionalidade evaporou-se. É interessante notarmos que a ética do trabalho e o individualismo proposto por Adam Smith contribuíram para consolidar a ética no cenário econômico capitalista. 40 1 Ética – sua essência e o cotidiano REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um retrato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. ARISTÓTELES. A política: 2. ed. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro I. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Pensadores). ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: Ed. UNB, 1992. BOFF, Leonardo. Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz. Petrópolis: Vozes, 2009. BRAGA JUNIOR, Antonio Djalma;MONTEIRO, Ivan Luiz. Fundamentos da ética. Curitiba: InterSaberes, 2016. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Barcarolla e Discurso Editorial, 2009. MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1979. MOREIRA, Joaquim Manhães. A ética empresarial no Brasil. São Paulo: Pioneira Cengage, 1999. RACHELS, James; RACHELS, Stuart. Os elementos da filosofia moral. Porto Alegre: AMGH, 2013. SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril, 1984. (Col. Os Pensadores). SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. SROUR, Robert Henry. Ética empresarial. Rio de Janeiro: Campus, 2000. VAZ, Henrique Claudio de Lima. Escritos de filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1988. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1999. 41 1 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co 42 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea UNIDADE 2 ATUAÇÃO PROFISSIONAL ÉTICA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA INTRODUÇÃO Na Unidade 1, tratamos de apresentar algumas ideias iniciais e fundamentais para a problematização que vamos fazer a partir de agora. Isto, pois não é possível problema- tizar a realidade sem um fundamento teórico – a não ser que o objetivo fosse continuar no senso comum. Assim, já entendemos de que modo a ética e a moral se fazem pre- sentes na realidade cotidiana e de que modo as ideias de diferentes autores podem ser auxílio para uma vivência ética e cidadã na sociedade. Não é possível pensar um bom profissional (entendendo-se uma completude), se não houver uma opção de decisão racional pela boa ação – a ação ética. Nesta unidade, lançaremos olhar sobre aquilo que é a inserção de um(a) profissional no meio social – lembrando que, apenas em sociedade, a vivência profissional alcança sentido, quando os indivíduos respondem às necessidades da comunidade humana. E que sociedade é esta? Em primeiro lugar, temos de considerar a velocidade das mudanças. Ser profissional é assumir a necessidade de atualização constante, enten- dendo que sua formação deve ser um processo que começa com a formação universi- tária, mas que não tem fim determinado. São necessidades em contextos de diferentes oportunidades também. Porém, sem a ética, corre-se o risco de fazer da profissão um tipo de subemprego (pensemos as controvérsias do fenômeno da uberização). Os dilemas aparecerão em todos os contextos e a ética não oferece as respostas e soluções, mas oportunidade de reflexão mais aprofundada sobre as situações. E são estas reflexões que permitem a construção de caminhos mais específicos para cada âmbito profissional, o que aparece de forma concisa nos códigos de ética pro- fissional. Será importante pensar sobre quanto as regras de uma carreira profis- sional podem entrar em conflito com os valores dos indivíduos. O que fazer, então? Decidir e assumir responsabilidades. Ainda nesta unidade, refletiremos sobre a sociedade enquanto marcada pelas tecnolo- gias – digitais, principalmente. O que muda nas relações pessoais e profissionais quan- do mediadas pela tecnologia? E a ética pode sofrer influências? De que tipo e até que ponto? Vamos refletir sobre estas importantes temáticas para a formação profissional! 43 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co 1. O QUE SIGNIFICA SER PROFISSIONAL? 1.1. DIALOGAR COM A REALIDADE O ANO é 2019 d.C. no calendário Ocidental. A sociedade está há quase 100 anos se desen- volvendo na mesma toada. Depois da longínqua Revolução Industrial, que criou as primeiras máquinas a vapor, o ritmo de produção se mantém praticamente intacto: rotinas produtivas e administrativas pré-estabelecidas; relações diretas de subordinação e hierarquia; jornadas pre- senciais de trabalho bem identificadas; tecnologias de trabalho restritas e acessíveis somente em um determinado local. Todos sabem quem são, a quem se submetem, qual sua remunera- ção e qual o descritivo de sua função e a natureza dessa profissão. No final do ano, sem muito holofote, alguns cientistas do mundo dizem que ‘há nas redondezas’ um novo ser, pequeno e mortal, circulando no ar. Ele tem uma capacidade única de entrar em seu corpo, alterar sua forma de respirar, sua composição muscular, suas sinapses neurais. Não há tratamento. Não há dimensão de como será sua transmissão. Não há vacina. Só há uma recomendação: iso- lamento total e imediato. Alguns meses depois, a Organização Mundial de Saúde (autoridade máxima internacional) declara: Pandemia. Em menos de 72 horas, todas as sociedades deve- riam fechar seus comércios, indústrias e serviços. Não há vida nem movimento nos espaços públicos. Pessoas devem se afastar de outras pessoas, inclusive familiares, e se colocarem em reclusão e com proteção facial. Trabalhadores devem trabalhar isolados. Trabalhar? Sim. O mundo das relações afetivas e cotidianas deve parar. O mundo do trabalho não. Em outras 72 horas, os trabalhos são realizados a distância. Tecnologias coletivas instaladas em ambientes privados; ambientes privados transformados em espaços públicos; trabalho sem superviso- res hierárquicos; profissões sem ocupação ou sem perspectiva. Cobranças por produtividade mantidas acompanhadas de desestruturações internas (departamentos e setores fechados e fundidos; novas funções assumidas por novos profissionais; expertises secundárias ganhando valor dentre outras). Por quanto tempo deve durar esse momento? - indagam-se todos. Eles respondem: Até que exista a cura! E se não houver ou não descobrirem? Até que exista a va- cina! E até lá? Reinvente-se. Reeduque-se. Transforme-se. Aceite. E assim aconteceu. Para alguns historiadores, mais uma das grandes transformações da humanidade. Para sociólogos, a dinâmica esperada nas sociedades. Para ambientalistas, a consequência do nosso modo de viver e a resposta da natureza. Para os educadores, o momento de demonstrar que os funda- mentos de formação e comportamentais dão base para a resolução de qualquer adversidade. Afinal, o que significa ser profissional? A descrição sucinta apresentada acima sobre as consequências e mudanças na vida da humanidade em virtude da Pandemia do SARs-COV 19 poderia referir-se a um mo- mento único na história. Mas não é. A Pandemia do SARS-COV19 foi declarada pelo Sr. Tedros Adhanom, diretor geral da Or- ganização Mundial de Saúde (OMS), no dia 11 de março de 2020. A organização elevou o estado de contaminação à pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), não em virtude, à época, da gravidade da doença, e sim à disseminação SAIBA MAIS 44 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea geográfica rápida que o Covid-19 estava apresentado. Para mais informações consultar Bio-Manguinhos – Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Disponível em: https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/1763-o-que-e-u- ma-pandemia. Acesso em: out. 2021. Movimentos de valorização, modificação e extinção das profissões acompanham de perto as grandes mudanças sociais e políticas da humanidade decorrentes de desas- tres naturais, guerras ou transformações tecnológicas. As primeiras décadas do século XXI foram marcadas por mais uma leva de mudanças. Os processos contínuos de independência e inovação econômicas e tecnológicas con- tribuíram para novos rompimentos de barreiras nacionais e culturais – como observa- mos sempre nos grandes processos de globalização –, mas, também e sobretudo, para alteração nas diretrizes da excelência do trabalho profissional, cada vez mais exigidas pela sociedade e desejadas pelos mercados vez que aumentam a produtividade. Toda nova realidade provoca mudanças sistêmicas – forma de relação entre as par- tes – e, por vezes, estruturais – as bases e fundamentos das relações. Todasas ve- zes que averiguamos as consequências e causas de alguma grande Revolução na História – tais como a Industrial, a Francesa, as Revoluções de Independência, as Tecnológicas, as Culturais e, mais recentemente, as Nanotecnológicas –, veri- ficamos efetivas alterações estruturais, que afetam desde os processos aos valores fundamentais dentro de uma sociedade. Esses momentos nos levam a alterar nossa relação e nossos padrões de consumo – como o nosso vestuário e nossa alimentação –, de formas de aprender – aumentando a procura por cursos rápidos de formação técnica, língua estrangeira etc. –, de práticas de autocuidado – bem-estar e de saúde mental –, de prática de atividades de lazer e diversão e de momentos de interação social. A realidade transforma as relações sociais, dentre as quais se situa a relação de traba- lho, alterando sua forma de realização, sua forma de produção, seu local de desenvol- vimento – por exemplo, sair do presencial e ir para o home office – e, sobretudo, seus referenciais valorativos que são base para a realização e para identidade profissional. Sabemos que muitas das necessidades são inexoráveis, aconteceriam com o próprio desenvolvimento social e tecnológico. Outras, não. Por isso mesmo, ser um bom profis- sional significa saber ler a realidade e estar preparado para se antecipar às mudanças, de forma comprometida com a realidade na qual está inserido, agindo em diálogo com o desenvolvimento e melhora de seu contexto social. 1.2. A NECESSÁRIA E OPORTUNA ATUALIZAÇÃO PROFISSIONAL As literaturas de recursos humanos, gestão de pessoas, psicologia organizacional, direito do trabalho, de pedagogia e sociologia da educação, dentre outras, nos trazem uma série de referenciais para respondermos à pergunta “O que significa ser um bom profissional?”. https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/1763-o-que-e-uma-pandemia https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/1763-o-que-e-uma-pandemia 45 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Em grande medida, mesmo com cada um destacando alguma característica que mais chame atenção ao seu olhar específico, esses diferentes profissionais concordam que para ser um bom profissional é preciso, de maneira contínua, estar atualizado na área científica e nas competências pertinentes à sua função, buscando sempre o maior nível de excelência técnica. Instituições internacionais, como a EdTech Global Limited, acreditam que tal atitude é das mais importantes, tanto é que a elencam dentre as categorias de competências (skills) a serem desenvolvidas para se ser um profissional de sucesso e do futuro. Identificada e denominada na literatura de gestão de pessoas por recapacitação (reskilling) (traduzida livremente para “retreinamento”), essa competência refere-se à capacidade que o profissional deve ter de “reconstruir a si mesmo” ou, ainda, de cons- truir novas habilidades a partir de sua base. Para, efetivamente, comprometer-se com esse processo de atualização técnica em nível de excelência, algumas outras compe- tências devem ser estimuladas, a partir da necessidade de: ` uma postura de não-conformação (ou seja, de não acomodação frente aos desafios e às soluções já testadas); ` aceitação de novas ideias (buscando-as por si mesmo ou reconhecendo-as em membros da equipe de trabalho); ` desprendimento em relação às certezas consideradas absolutas e irrefutáveis que não permitem espaço para o novo. A busca constante pela excelência, mais do que uma competência individual, é uma exigência concreta do mundo no qual estamos inseridos e que se mostra inundado por mudanças rápidas, profundas e simultâneas em campos tecnológicos, políticos, econômicos e valorativos. O desenvolvimento da excelência profissional exige, além do conhecimento da realida- de, o aprofundamento constante sobre as necessidades sociais de cada área. Por isso mesmo, tal compromisso além de ético é, também, manifestação de cidadania. Vincu- la-se a um projeto emancipatório em que passamos a ter um papel ativo nas decisões profissionais e de promoção de autonomia. A busca por excelência, seja no âmbito global – quando pensamos no desenvolvimento de um país – ou no âmbito individual – quando pensamos em crescimento profissional –, exige de nós o estabelecimento de rotinas, processos e diretrizes adequadas. Por meio dessas exigências, eliminamos, constantemente, os diferentes desequilíbrios de origem – como a formação educacional de base –, de ordem socioeconômicas e de pré-concepções e preconceitos. 46 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea 1. 3. COMPROMISSO COM A INOVAÇÃO O novo status das profissões, suas dinâmicas inter-relacionais, em trabalhos que exi- gem formações múltiplas, suas novas formas de realização –internacionalizada, flexível e “uberizada”, dentre outras –, além do “[...] tsunami tecnológico que tem decretado a falência de vários modelos de negócio e diminuído o prazo de validade – não apenas de produtos e serviços, mas de empresas inteiras” (SOUZA, 2021, [n.p.]), colocam-nos questões profundas sobre as habilidades e competências que devem permear a forma- ção acadêmica tecnológica e profissional. Em seu parecer, Souza (2021, [n. p.]) ainda afirma que “[...] há mais de dois anos ‘negó- cios tradicionais estão sendo destruídos da noite para o dia por soluções disruptivas’”. As chamadas soluções disruptivas – aquelas que rompem com o esperado, com o cur- so normal de um processo – têm se apresentado como uma manifestação de inovação. Há muito tempo a inovação não concerne somente às ações de criação de produtos ou sistemas novos, gerados a ‘partir do nada’ ou de uma ‘ideia genial’. É evidente, principalmente para aqueles que se dedicam de forma profissional às pes- quisas, que ainda se mantém no horizonte e no projeto de sociedade o objetivo de reali- zar alguma grande descoberta, em decorrência de nossa prática e estudos. Entretanto, para os profissionais inseridos no mercado dinâmico do trabalho cotidiano – conside- rando-se a natureza das relações no sistema capitalista –, os elementos inovadores podem ser também aqueles oriundos da inserção de práticas alternativas que estabele- cem novas lógicas, novos processos e articulações e que apresentam novas soluções. Mas, comumente, quando observamos o mercado de trabalho, costumávamos apontar que momentos inovadores e ações inovadoras estavam presentes somente em gran- des reestruturações produtivas. Entretanto, a diversidade do mercado, das profissões e das empresas, a especialização e a flexibilização de processos, fez com que essas práticas se deslocassem do âmbito das grandes estratégias para o âmbito da formação individualizada, ética, de cada profissional. O termo usual para definir um conjunto de transformações com grande impacto no mundo do trabalho é a Reestruturação Produtiva – alguns denominam como Reengenharia Produtiva. Esse termo se refere a um processo com efetivas alterações estruturais, nas bases lógicas e racionais de determinada forma de realização produtiva e profissional. A inserção de lógicas, tais como o Taylorismo, o Fordismo, o Toyotismo, a automação dos anos 1970 são clássicos exemplos de reestruturação. A efetividade da alteração diz respeito às novidades introduzidas nos sistemas produtivos, que impactam os processos de trabalho, geram mudanças no modo de elaborar os produtos e organização dos processos de traba- lho, ocasionando processo de flexibilização, desregulamentação e reformas gerenciais. Com a especificação das profissões e dos ambientes de trabalho – saúde, serviços ou indústria, nacionais ou transnacionais –, essas transformações vêm sendo percebidas de maneira e em tempos diferentes em cada setor. SAIBA MAIS 47 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ser profissional significa, dessa forma, ser comprometido com uma prática inovadora e empreendedora individualizada, absorvida como diretriz interna de gestãoda própria carreira. Ser comprometido eticamente com a inovação nos leva a dimensionar um pro- fissional orientado para o respeito às regras e a consciência do impacto de suas ações para o desenvolvimento da sociedade. 1.4. COMPROMISSO COM A ÉTICA PROFISSIONAL Dentre as perguntas fundamentais que circulam em torno da pergunta “o que significa ser profissional?”, a todo instante, encontramos a preocupação ética. Certo é que, ao pensarmos em formação ética, podemos verificar a complexidade e interdisciplinarida- de, o que nos propicia indagar: como a dimensão ética do ensino, da aprendizagem e da vivência acadêmica e profissional pode estar compromissada com o desenvolvimen- to e a realização de valores humanizadores, de maneira a proporcionar uma diferencia- da e contemporânea identidade profissional? Ser profissional significa, então, conhecer e reconhecer a importância da cultura huma- na em nossos valores individuais e coletivos, a partir da identificação de sua construção social, os problemas com que dialogam. Implica um processo de conscientização do conjunto de elementos que constituem a teia social e o entendimento de que as rela- ções são problematizadas em níveis internos e externos. Para compreender melhor o conceito, indicamos a leitura do artigo do sociólogo Octavio Ianni, referenciado abaixo. IANNI, Octavio. O mundo do trabalho. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 8, n. 1, p. 2-12, 1994. Disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v08n01/ v08n01_01.pdf. Acesso em 09 jun. 2022. A necessidade financeira aliada a uma ausência de formação profissional específica ou difi- culdade de inserção nos mercados de trabalho pode nos encaminhar para um trabalho sem garantias, com uma autonomia relativa, como são aqueles intermediados por plataformas di- gitais – entregadores, motoristas de aplicativos etc. Entretanto, tanto em nossa prática quanto em nosso olhar social sobre este trabalho, não podemos deixar de problematizar as questões relativas ao respeito humano, ao direito fundamental ao trabalho digno e sem precarização. EXEMPLO O compromisso ético de todos os profissionais está ligado ao exercício profissional para realização e desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, dentro de parâmetros claros de cidadania e de valores. Nesse sentido, Vazquez (2003, p. 23) define ética como “[...] a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano”. Ser um profissional significa assumir um determinado comportamento humano, portanto o ato em si mesmo já é um ato ético. http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v08n01/v08n01_01.pdf http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v08n01/v08n01_01.pdf 48 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea A questão basilar que nos orienta nesta unidade é a da compreensão de “O que significa ser profissional?”. Para além de uma resposta apressada que nos conduziria a algo do tipo “é ser formado em tal área” ou “desempenhar determinada função”, buscamos construir um caminho reflexivo que nos levasse a entender a multiplicidade da questão. Ser profissional é ser um sujeito de consciência ética, comprometido com sua sociedade e com os problemas do concreto, comprometido com seu desenvolvimento pessoal em nível de excelência técnica e pré-disposto a se envolver em uma jornada empreendedora e inovadora. Longe de ser tarefa fácil, ser profissional significa inserir-se em uma posição de respeito frente à formação e crítica em relação ao que as circunstâncias exigem no dia a dia da prática. Não se nasce um bom profissional, torna-se em cada atitude e em cada escolha. Figura 01. Mapa: Trabalho e Realidade Dialogar com a realidade Sociologia do trabalho Mudanças sistêmicas: alteram a forma de realizar as atividades. Mudanças estruturais: alteram as bases da relação produtiva O trabalho como elemento da condição humana A humanidade sempre está em busca de algo novo, que dê novos significados à vida e dialogue com novas formas de organização, novos valores e uma nova dimensão de ser humano. O papel social do profissional: impli- ca em assumir uma postura crítica e ética, colocando-se como participan- te das transformações do mundo. 1 Fonte: elaborado pela autora. 49 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Figura 02. Compromisso com Inovação Assumir um compromisso com a inovação Reestruturações (reengenharias) produtivas Ações disruptivas Nova lógica Novas soluções Novos produtos Novas metodologias Novas técnicas Novas competências (skills) Empreendedorismo (novas atitudes) Fonte: elaborado pela autora. Figura 03. Atualização Profissional 3 2 Permanecer atualizado em sua profissão Atualizar em novos conhecimentos profissionais Desenvolver olhar multidi- mensional sobre a profissão, acompanhando as mudanças na teoria, na metodologia e nos procedimentos de sua área específica Buscar conhecimentos inter- disciplinares em áreas que são consideradas bases para o apri- morar o desenvolvimento pro- fissional (Ex: aperfeiçoamento na língua portuguesa, domínio da língua estrangeira, domínio de novas tecnologias de base [textos, planilhas mecanismos de busca, etc.] Excelência técnica Fonte: elaborado pela autora. 50 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea Figura 04. Compromisso com a Ética 4 Assumir compromisso com uma postura ética Valores da profissão em diálogo com os valores da Sociedade Autonomia das vontades individuais = liberdade de agir Heteronomia em relação às vontades coletivas = responsabilidade Desenvolvimento de valores sólidos e compromisso com a sociedade Desenvolvimento de práticas e políticas de responsabilidade social e gestão de diversidade A ação humana: liberdades e responsabilidade Fonte: elaborado pela autora. 1.5. PANORAMA DO MERCADO DE TRABALHO NO BRASIL Para compreender um pouco a realidade do Mercado de Trabalho no Brasil, verifique os links abaixo com materiais complementares ao tema. 1. Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – CESIT Vinculado ao Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, o CESIT se dedica ao estudo das relações trabalhistas no Brasil, analisando principalmente os im- pactos das alterações sociais na economia e nos modelos produtivos. As pesquisas são pautadas em dados obtidos nos relatórios econômicos, nas atuais teorias de economia e sociologia do trabalho e em planos nacionais de desenvolvimento. Recomendamos a leitura das Cartas que abordam sempre os temas mais recentes do Merca- do de Trabalho. Disponível em: https://www.cesit.net.br/. Acesso em: 09 jun. 2022. SAIBA MAIS https://www.cesit.net.br/ 51 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co 2. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE Atuando desde 1955, entidade criada pelas associações sindicais (Sindicatos, fede- rações, confederações de trabalhadores e centrais sindicais) de todas as categorias profissionais, tem o objetivo de desenvolver pesquisas que subsidiem as demandas dos trabalhadores. Um dos trabalhos mais sólidos e consistentes diz respeito à análise de empregabilidade de cada categoria profissional (divulgada mensamente em boletins es- tatísticos) e um estudo pormenorizado do valor real do Salário-Mínimo frente aos custos e à inflação registrada mês a mês (desde o início do Plano Real em 1994). Disponível em: https://www.dieese.org.br/. Acesso em: 09 jun. 2022. Os programas são disponibilizados em duas plataformas: Youtube (https://www.youtube.com/ channel/UCvg3GT5Xb9EII7BY9UXOSKQ) e nas Plataformas de Podcast. SAIBA MAIS SAIBA MAIS 3. Conversas Sobre o Mundo Contemporâneo. Instituto de Economia/ UFRJ Canal Audiovisual de debates e atualizações sobre o mundo contemporâneo, com especial atenção às questões econômicas e sociais vinculadas aoTrabalho. Idealizada e realizada pelos professores do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Filme e Documentários ` Filme � O homem que mudou o jogo Moneyball (Original). Direção: Bennett Miller. Produção de Brad Pitt, Michael De Luca e Rachael Horovitz. Estados Unidos da América. Colum- bia Pictures, 2011, 133 minutos. Síntese comentada: Billy Beane (Brad Pitt) gerencia o time de beisebol Oakland A’s e o responsável pela montagem da equipe. Os maus resultados fazem com que ele seja for- çado a reinventar e reorganizar sua equipe, entretanto terá à disposição um orçamento apertado, inferior aos de seus concorrentes. A prática de contratação dos times (o gerenciamento de talentos e equipes) leva em consideração dados estatísticos e análises subjetivas dos famosos ‘olheiros’. Diante da crise, um assistente propõe uma ideia nova: utilizar análises geradas por computador para contratar novos jogadores. O gerente geral apoia a nova ideia e coloca em prática https://www.dieese.org.br/ https://www.youtube.com/channel/UCvg3GT5Xb9EII7BY9UXOSKQ https://www.youtube.com/channel/UCvg3GT5Xb9EII7BY9UXOSKQ 52 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea seu plano, enfrentando desconfianças de toda a equipe. O filme vale ser visto pelos no- vos profissionais pois trabalha a característica de estarmos sempre prontos para inovar, para aceitar novas ideias e desafios e, sobretudo, a rompermos com culturas no ambien- te de trabalho que não geram resultados positivos. Documentário GIG – A Uberização do Trabalho. (Gig Society - The Uberization of Work). Dirigido por Car- los Juliano Barros, Caue Angeli & Maurício Monteiro Filho. Produzido por Carlos Juliano Barros. Brasil, 2019, 60’. Site Oficial: https://reporterbrasil.org.br/gig/ Sinopse Oficial: “O crescimento da economia alternativa, chamada de “GIG Economy”, tem chama- do cada vez mais a atenção da sociedade. Isso acontece devido às plataformas digitais em todo o mundo. No Brasil, esse processo também é conhecido como ‘Uberização’, que consiste na prática do trabalho autônomo, porém, com condições precárias ao trabalhador. Os debates a respeito vêm crescendo a cada dia. Esse documentário nos fornece uma real dimensão das necessidades e da situação atual do trabalho em grandes centros, agravada durante a Pandemia do SARS-COV19. Para além de uma reflexão sobre as novas formas de trabalho, o documentário aborda, a partir de relatos pessoais, temas como a tecnologia no mundo do trabalho, precarização e dignidade huma- na”. Esta problemática será retomada adiante.” SAIBA MAIS ` Texto Complementar Empreendedorismo social corporativo: uma agenda para a promoção sustentável de práticas sociais, ambientais e económicas. Resumo: “A presente comunicação integra uma investigação mais ampla que está a ser desen- volvida no quadro do projeto europeu EMBRACE – European Corporate Social Entrepreneur- ship Curriculum. Pretende apresentar os resultados da segunda fase do projeto centrada no levantamento de boas práticas de empreendedorismo social corporativo (ESC), implementadas em organizações de diferentes tipologias, pertencentes aos 9 países europeus parceiros (Ale- manha, Espanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Lituânia, Países Baixos, Portugal e Roménia) [...]”. Leia o texto completo em: https://parc.ipp.pt/index.php/iirh/article/view/4291. Acesso em: 09 jun. 2022. SAIBA MAIS � Uberização, A Nova Classe De Trabalhadores Resumo: “Neste artigo, analisaremos o que significa a uberização, será observado o contexto histórico do trabalho e suas evoluções, assim como a análise social, jurídica sobre a regulamentação dessa nova classe de trabalhadores, enfatizando os impactos e resultados diretos que a uberização tem na vida dos indivíduos”. https://reporterbrasil.org.br/gig/ https://parc.ipp.pt/index.php/iirh/article/view/4291 53 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co 2. A NECESSIDADE DE REGRAS MORAIS 2.1. OS DILEMAS ÉTICOS CONTEMPORÂNEOS Imagine a seguinte situação: um sequestrador seleciona duas barcas na baía de uma cidade grande e instala nelas duas bombas. Uma das barcas está transportando traba- lhadores e cidadãos comuns que voltam para suas residências, após um dia de traba- lho. A outra está transportando prisioneiros condenados por crimes graves contra a so- ciedade. O sequestrador informa aos passageiros das duas barcas que eles possuem, cada um, o detonador da bomba da outra barca. O primeiro que detonar a outra barca garantirá a sobrevivência de todos em sua barca. Imediatamente o dilema se instaura. Quais vidas são mais importantes? Quais são os limites para a defesa da própria so- brevivência? Os cidadãos comuns ao escolherem aqueles que já foram condenados e criminosos devem morrer, eles se igualam a eles? E os condenados ao escolherem sobreviver serão mais criminosos ainda confirmando o que a sociedade argumenta que, entre eles, não existem valores éticos? Esse episódio conhecido por muitos como uma das cenas mais impactantes do filme de Hollywood, Batman: o cavaleiro das trevas, baseia-se em um clássico dilema da teoria dos jogos determinado o “Dilema dos Prisioneiros” (TUCKER; LUCE, 1959, p. 13) e utilizado desde a década de 1950 para pensarmos em estratégias decisórias frente a situações inusitadas e de difícil discernimento. Esse também é o exemplo escolhido para ilustrar a discussão desta unidade. Se todos temos, em nossa composição como sujeitos e cidadãos, valores sociais e morais que nos conduzem a uma prática responsável e direcionada ao bem-comum, por que temos a necessidade de construir novas regras morais e atitudinais para profissionais distintos e situações distintas? Todos nós já ouvimos a expressão “a escolha de Sofia”. Quando em 1979, o escritor in- glês William Styron publicou seu romance com esse título que resumia o enredo de sua personagem principal, ele nem sequer imaginou que dali em diante o mundo ocidental utilizaria essa expressão sempre que quisesse se referir a um dilema que se estabelece entre escolhas muito difíceis. Leia o texto completo em: https://www.periodicorease.pro.br/rease/article/view/312. Acesso em: 4 nov. 2021. SAIBA MAIS https://www.periodicorease.pro.br/rease/article/view/312 54 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea Na vida pessoal, os grandes dilemas nos colocam em situações em que devemos esco- lher entre sonhos, projetos e, de maneira mais delicada, em ocasiões que enfrentamos a vida versus a morte. Isso se dá, normalmente, porque os dilemas nos colocam em confronto com nossos valores. Se analisarmos o contexto das sociedades contemporâneas, notaremos que enfrenta- mos um período no qual os paradigmas, isto é, os grandes postulados e princípios que determinavam a estrutura social e moral de um tempo, vêm sendo colocados à prova, gerando novos desafios e redimensionando conceitos e valores. Em outros tempos da história da humanidade, como no Renascimento do século XV, após as Revoluções Industrial e Francesa no século XVIII, ou mais recentemente, logo após a Segunda Guerra Mundial no século XX, a sociedade foi fortemente impactada por essas mesmas dúvidas e reflexões. Alguns teóricos defendem que essa crise ética se dá pela inexistência, nesses períodos de mudança, das chamadas “teorias universais da moralidade”, que geram um momento de “suspensão de juízos”, no qual não se sabe exatamente quem se é, o que se tem ou o que se deve fazer, mas se tem certeza do que aquilo que acreditávamos ter e saber não se mostra mais suficiente para explicar e/ou referenciar o mundo atual em que vivemos. O nome ‘dilema’ é o termo escolhido para identificar situações nas quais as escolhas são aparentemente impossíveis ou, como identificamos nas teorias éticas, nas quais as opções representam bens irreconciliáveis ou males inescapáveis. SAIBA MAIS Compreende-se como “Teoria Universal da Moralidade” ou “Universalismo Moral” as propostas de sistema ético paraas quais todos os indivíduos possuem ou estão em uma situação semelhante – e por vezes até idêntica –, considerando-se, sobretudo, sua natu- reza humana. Entende-se que a ação moral é única e as decisões são tomadas indepen- dente de características como raça, cultura, sexo, religião, nacionalidade, sexualidade ou qualquer outro distinto. Um dos períodos filosóficos que possui variados sistemas éticos universais é o da Filosofia Antiga e, depois, os estabelecidos no Iluminismo, como o perí- odo analisado pelo professor Paulo Sérgio Rouanet, no artigo referenciado a seguir: ROUANET, Paulo Sérgio. Grandeza e decadência da Ética da Ilustração. Hypnos, São Pau- lo, ano 8, n. 10, p. 1-10, 2003. Disponível em https://hypnos.org.br/index.php/hypnos/article/ view/142. Acesso em: 03 dez. 2021. SAIBA MAIS Como herdeiros de uma modernidade estimulada a acreditar no futuro, na ciência, na técnica e no progresso individual, considerando o conhecimento válido como o resulta- do do avanço dos esforços do homem na apropriação e compreensão do seu mundo, estamos acostumados às revoluções tecnológicas e sociais. https://hypnos.org.br/index.php/hypnos/article/view/142 https://hypnos.org.br/index.php/hypnos/article/view/142 55 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Sabemos que, na sociedade contemporânea, cada dilema estabelecido é potencial- mente gerador de uma nova organização da comunidade, das formas de acumulação e distribuição da riqueza, do desenvolvimento das artes, dos saberes, de um reposiciona- mento do homem frente ao seu mundo e ao seu tempo. Gilles Lipovetsky (2007, p. 23) aponta que, “de repente”, a instantaneidade se trans- forma em uma das marcas de nosso tempo – que ele classifica como hipermoderno. Nesse tempo, somos convidados a vislumbrar a possibilidade de se viver sem sentido, ou seja, agimos sem crer na existência de um único e categórico sentido, mas apostar na construção permanente de sentidos múltiplos, individuais, grupais e até fictícios (es- tratégias hipotéticas como a do dilema dos prisioneiros). Frente à possibilidade de “viver sem sentido”, de não se crer mais em um único e cate- górico sentido, em uma verdade absoluta, mas de apostar na construção de sentidos múltiplos, Lipovetsky (2007, p. 61) nos alerta que abrimos espaço para a inserção da ética em uma cultura de massa. Essa cultura propicia uma uniformização de atitudes, uma ampliação da alienação em relação para a nossa sociedade e para as nossas profissões e, em consequência, uma perda de autonomia e emancipação. Com esse quadro, o dilema deixa de ser situacional e se torna um dilema interno no qual, frequen- temente, nós nos vemos imersos em um mundo de contradições entre “aquilo que eu posso ser” e “aquilo e que eu consigo ser” e “aquilo que eu deveria ser”. Essa nova dinâmica da sociedade nos insere em um processo decisório insustentável, uma vez que, de maneira prática e objetiva, não temos como gerenciar estratégias co- letivas para resolução de problemas. Um dos caminhos, então, é o de recorrermos aos acordos coletivos que estabelecem novas regras sociais e profissionais, tentando frear essa característica contemporânea de autodeterminação das próprias regras. 2.2. CONFRONTO INICIAL: ÉTICA DO INDIVÍDUO VERSUS ÉTICA DA PROFISSÃO Os dilemas éticos contemporâneos parecem nos inserir em um processo de reivindica- ção, de busca, pelo direito de sermos absolutamente nós mesmos, vivenciando nossas vidas a partir de valores culturais e em busca de bens e benefícios individuais. O período que se iniciou após as guerras mundiais do século XX é caracterizado como pós-modernidade, período que abrigaria o sujeito pós-moderno. Vale lembrarmos que, para a história tradicional, a última demarcação de período histórico é o da Idade Con- temporânea, iniciada com a Revolução Francesa. O termo “pós-modernidade” surgiu com a obra do sociólogo francês Jean-François Lyo- tard denominada A condição pós-moderna, em que o autor apresenta que, depois das grandes guerras, as metanarrativas (a história contada de uma única forma, a caracteri- zação do bem e do mal absoluto) deixaram de existir. As explicações agora precisam de contextos específicos para que sejam validadas. SAIBA MAIS 56 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea Essas transformações na ética individual criam novos desafios para as éticas sociais e profissionais. O indivíduo encontra um complexo de incertezas valorativas que re- sultam em sua dificuldade em identificar sua própria identidade, diluídas nos múltiplos interesses sociais (interesses afetivos distintos de interesses de consumo de interesses profissionais de interesses familiares dentre outros), e sua identidade ética e moral em meio a um “[...] mundo pleno de contradições e incertezas” (GOERGEN, 2005, p. 59). Essa perda de identidade ética individual ocorre, pois o ser humano pós-moderno não assume determinados comportamentos por força de princípios éticos ou de um dever ser – como se acreditava na deontologia tradicional –, mas sim porque é seduzido pelas promessas hedonistas do sistema (o prazer imediato, a felicidade e a tranquilidade). Com outros desdobramentos, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (conhecido pelas obras Modernidade Líquida e Amor Líquido) defende que a pós-modernidade existe como uma “modernidade líquida”, ou seja, somos conscientes de que nossa realida- de atual é ambígua, multiforme, possível de apresentar respostas diferentes para os mesmos problemas, mas não tem força suficiente ainda para romper com os valores gerais da modernidade. O uso do termo “pós-moderno”, aqui, nesta unidade refere-se a esse tempo que abriga homens inseridos em um mundo em transformação, em busca de respostas verdadeiras, padrões éticos válidos e universais. Como já viso na Unidade 1, deontologia é termo filosófico é termo filosófico derivado do conceito grego deontos (dever ser) e logos (lógica ou tratado). O termo é utilizado para se referir a uma teoria da filosofia moral que expõe a ciência dos deveres, determinan- do suas regras e princípios. Absorvida pela ética profissional, essa ciência dos deveres torna-se a base para a construção de regras éticas (normas de conduta) gerais para cada categoria profissional. Em decorrência dessa abordagem, constantemente, vemos os ter- mos “deontologia jurídica”, “deontologia médica”, dentre outras, como sinônimo de direitos e deveres vinculados a alguma prática profissional (ABBAGNANO, 1998, p. 240). GLOSSÁRIO Goergen (2005, p. 61) ainda afirma que a “[a] sedução é uma forma refinada, sutil e suave da destruição social [...]”, uma vez que ela acaba por destituir todas as caracte- rísticas públicas da ação ética, dentre elas, a diferenciação entre os espaços (mundos) públicos e privado. Essa proposta hedonista contemporânea (a promessa da felicidade individual a qual- quer custo) encontra-se exatamente na afirmação de que é possível a construção de uma ética e uma moral à la carte, na qual o homem se desvincula de princípios dura- douros e universais, e se pauta somente por aquilo que é momentâneo e particular (LIPOVETSKY, 2007, p. 16). 57 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Essa promessa é atraente, porque ela parece para nós como exercício de liberdade, em que todas as ações só precisam dialogar com os nossos valores, com a nossa opinião individual. O mundo é todo remodelado em acordo com os interesses individuais, os pro- cessos de coação uniforme (sermões, as grandes lições de moral, os grandes manuais ou códigos de conduta) devem ser substituídos pelas regras da livre escolha responsável. Do ponto de vista da vida privada, essa escalada de uma ética individual à la carte, com regras válidas de indivíduo para indivíduo, vem gerando inúmeros questionamentos e necessidades de regras mais claras. Isso, porque, com certa frequência, confunde-se liberdade com autorização para violações de direitos humanos (como nos casosde pro- pagação de fake news, de crimes de ódio e crimes de injúrias e difamação nas redes so- ciais). Do ponto de vista profissional, desde os anos 1960, a ética do “vazio” de universais (termo de lipovetskiano) vem gerando questionamentos e movimentos contrários. Como podemos garantir um ambiente de igualdade de condições econômicas, estrutu- rais, gerenciais e de concorrência sem o estabelecimento de regras claras de conduta? As regras morais, mais do que uma necessidade ética, tornam-se uma necessidade de sobrevivência profissional. 2.3. O INTERMEDIADOR ESCOLHIDO: OS CÓDIGOS DE ÉTICA PROFISSIONAL Muitos são os caminhos escolhidos para estabilizar o confronto contemporâneo de va- lores entre indivíduos e profissões (mercado), relatados e postulados em teorias filosó- ficas, da psicologia comportamental, da teoria de gestão de pessoas dentre outras. Mas para a deontologia profissional, a escolha decisiva passou a se delinear em meados dos anos 1970 quando, para atender às necessidades das teorias da Responsabilidade Social e da Governança Corporativa, foram formulados e postulados Códigos de Ética e Conduta específicos para cada categoria profissional. Os Códigos de Ética são normas administrativas que estabelecem comportamentos e práti- cas gerais aceitas, adequadas e justas para determinada categoria profissional. Em linhas gerais, tais normas detalham atitudes e princípios que devem reger as rela- ções dos profissionais entre si, destes com a cadeia produtiva (fornecedores e clientes) e, em algumas situações, com a própria sociedade (quando estabelecem, por exemplo, regras pontuais em termos de sigilo profissional). Considerado, na literatura técnica, como um dos possíveis primeiros passos na constru- ção de uma estrutura ética empresarial, os Códigos de Ética se delineiam como meca- nismos ou ferramentas de implementação e de introjeção de uma cultura organizacio- nal saudável, valorizando práticas e condutas aceitas pela sociedade, pelos órgãos de classe e, sobretudo, pelas diferentes instituições. 58 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea Meira (2002, p.131-132.), comentando as teorias de Sorell e Hendry, salienta que Códi- gos de Ética são instrumentos relevantes na construção da ética empresarial. Contudo, em sua grande maioria, essas ferramentas são normativas orientadoras e só serão efe- tivamente cumpridas se não forem trabalhadas de forma dependente da filosofia organi- zacional, pois ficariam limitadas a uma prática desvinculada da real cultura da empresa. Acompanhados da inserção dos Códigos de Ética, dessa maneira, foram estabelecidos os Comitês de Ética (em algumas profissões denominados de Tribunais de Ética) res- ponsáveis pela avaliação da prática profissional com vistas a determinar se aquele indi- víduo demonstrou ou não capacidade para assimilar as regras da coletividade. Nesses comitês, as ações concretas são avaliadas e o indivíduo pode, inclusive, a depender do que foi feito e após o devido processo legal, receber como sanção a proibição do exercício de sua profissão. Os Códigos de Ética são um intermediador necessário e útil para as instituições, mas somente sua existência não basta para que se altere o comportamento interno. Eles exigem uma remodelagem das culturas ambientais (regras de toda a categoria profis- sional) e organizacionais (regras internas). Afinal, como os autores da ética empresarial sempre ressaltam, sabe-se há muito que uma política ética não necessariamente se traduz em comportamento ético. Conhecer o Código de Ética e Conduta de sua categoria é elemento obrigatório para todo profissional contemporâneo comprometido. 2.4. O CONFRONTO FINAL: ÉTICA PROFISSIONAL E ÉTICA INSTITUCIONAL Sabemos que um dos elementos ensejadores da discussão ética contemporânea foi a teoria da Governança Corporativa que, com seus princípios de boas práticas proporcio- nadoras de eficácia e eficiência, exigia regras claras de comportamento e de avaliação para ambientes organizacionais. Tais teorias se vinculam às discussões que tomam for- ma no final do século XIX, quando a sociologia lança seu olhar sobre elas promovendo a discussão sobre a ética empresarial. Desde aquele momento, um dos postulados que passou a ser considerado nas discus- sões foi o da função social da empresa. A empresa – que aqui é trabalhada como sinôni- mo de toda e qualquer instituição ou organização profissional – é elemento estruturador de uma sociedade. Nela, desenvolvemos nossos valores, realizamos e concretizamos nossa dignidade social, produzimos e realizamos as trocas valorativas essenciais da economia (trabalho por remuneração). Essas instituições se inserem nas sociedades alterando formas e costumes, modifican- do os territórios (pense em situações como nos casos em que uma empresa constrói bairros para seus trabalhadores – conhecidos no Brasil como as Vilas Industriais), al- terando os parâmetros e ofertas da educação profissional. Ou seja, essas instituições são, na cultura, extremamente relevantes para a realização ética. 59 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Assim como os indivíduos que possuem éticas “próprias”, as empresas também estão inseridas em situações que as tornam únicas, detentoras de princípios que respondem aos anseios e desejos internos. Para que tenhamos um espaço com uma orientação ética adequada, as empresas de- vem externalizar seu compromisso ético. E muitas o fazem a partir da determinação, construção e publicização de sua “Missão, Visão e Valores”, por meio de políticas de Transparência, Anticorrupção e Compliance, itens que devem ser compreendidos e vi- venciados por todos os profissionais inseridos neste ambiente. A partir da compreensão do porquê temos “a necessidade de regras morais”, busca- mos pontuar que a essência de nossa sociedade é o dilema. Os dilemas se apresen- tam, cotidianamente, em nossa vida individual e profissional e exigem de nós respostas adequadas. Assim como na prática pessoal, nas práticas profissionais e institucionais resolveremos com mais agilidade, competência e justiça os dilemas na medida em que estivermos melhor orientados para agir. Em um mundo no qual parece natural que todos os comportamentos éticos sejam consi- derados como válidos, valores tradicionais como a humildade, o respeito, a urbanidade, o diálogo, a hierarquia, a independência responsável dentre outros encontram formas de se fazerem presentes como regra geral do mundo profissional. É nesse contexto de temores e esperanças, de dúvidas e anseios, que surge a necessidade ética de se pensar nas repercussões dos “novos saberes”, dos “novos comportamentos”, de modo que as regras sejam estabelecidas não para que se perca a liberdade, mas para que tenhamos a oportunidade de vermos nossas profissões e instituições sobreviverem e a oportunidade de construirmos ambientes saudáveis. Figura 05. A necessidade de regras morais As decisões em nossas vidas pessoais e profissionais são guiadas por valores e padrões éticos. Em algumas situações, necessitamos de regras para agirmos corretamente. Ética do indivíduo x ética da profissão Código de ética profissional Ética do indivíduo e ética da instituição Dilemas éticos 60 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea A vida profissional propicia situações no mundo público em que, muitas vezes, os valores pessoais de- senvolvidos na esfera privada não são sufi- cientes para orientar o profissional a tomar uma decisão. Os códigos éticos profissionais surgem como instrumentos de auxílio e mode- ração. Neles estão contidos os parâme- tros de ação, compor- tamento e juízos que devem ser seguidos por todos aqueles que estão envolvidos na profissão. Situações limítrofes que geram reflexões sobre a natureza hu- mana e os limites e valores válidos, acei- táveis e legítimos, dentro de uma orga- nização e, também, na profissão. Além de situações vi- venciadas em virtude da profissão,muitos dilemas advêm da natureza da empresa /institução organiza- ção na qual se está inserido. Nessas situ- ações, é preciso um exercício reflexivo constante sobre as normas de conduta, compliance e éticas que são orientadas. Necessidade de compreensão e exercícios reflexivos preparativos para a tomada de decisões difíceis em ambientes profissionais Compreender o con- ceito de ética indivídal à luz dos princípios de formação cultural e social. Participar constante- mente de treinamento para o desenvolvi- mento de compe- tências atitudinais e fortalecimento dos processos decisórios. Conhecer o Código de Ética (Código de Conduta) da institui- ção em que atua e agir de acordo com a sua missão, valores e princípios. Conhecer o Código de Ética da profissão as orientações Tribunais e ética e dos Conselhos Profissionais. Fonte: elaborado pela autora. 1.5. A QUESTÃO ÉTICA E AS REGRAS MORAIS Para você compreender um pouco a realidade da questão ética e das regras morais em ambientes profissionais, indicamos os seguintes links: 61 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co 1. Instituto Ethos O Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social é uma Organização da Socie- dade Civil de Interesse Público (OSCIP), “cuja missão é mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerirem seus negócios de forma socialmente responsável, tornando-as parcei- ras na construção de uma sociedade justa e sustentável.” (ETHOS. Sobre o instituto. Dis- ponível em: https://www.ethos.org.br/conteudo/sobre-o-instituto/, Acesso em 10 jun. 2022.) Reunindo um histórico de mais de 20 anos de ações éticas e de responsabilidade social em empresas de diferentes segmentos no Brasil, o Instituto é uma importante fonte de pesquisa para os estudantes. Consulte: https://www.ethos.org.br/. Acesso em: 10 jun. 2022. Consulte: Disponível em: https://www.ibgc.org.br/. 10 jun. 2022. SAIBA MAIS SAIBA MAIS 2. Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) “O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) é uma organização sem fins lucrativos, fundada em 1995 com sede na cidade de São Paulo. Com o desenvolvimen- to e o aprofundamento das práticas de Responsabilidade Social, tornou-se referência nacional e internacional em governança corporativa tendo uma contribuição grande no país para o desenvolvimento de relatórios, orientações e formações destinadas à me- lhoria do desempenho sustentável das organizações por meio da geração e dissemina- ção de conhecimento das melhores práticas, visando uma sociedade melhor. Possui uma biblioteca de textos e práticas consideradas adequadas para instituições e empresas de diferentes segmentos e portes, sendo um bom mecanismo de pesquisa”. Filme ou Documentários ` Filme � Um homem entre gigantes (Concussion). Direção de Peter Landesman Austrália, Es- tados Unidos, Reino Unido. Columbia Pictures, 2015. 123 min. https://www.ethos.org.br/conteudo/sobre-o-instituto/ https://www.ethos.org.br/ https://www.ibgc.org.br/ 62 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea � Sinopse: “Um Homem Entre Gigantes” é uma obra que se contextualiza nos Estados Unidos, no Estado da Pensilvânia, no Condado de Pittsburgh, e foi realizada a partir da biografia do médico nigeriano Bennet Omalu. No início dos anos 2000, Omalu, patologis- ta forense e neuropatologista, trabalha no Instituto Médico Legal quando recebe a tarefa de investigar alguns casos que são incomuns. Em suas pesquisas, ele diagnostica um severo trauma cerebral em um jogador de futebol americano e, investigando o assun- to, descobre que em virtude da ausência de equipamentos de segurança este vem se tornando um mal comum entre os profissionais do esporte. Imediatamente, a agência responsável pelo esporte, preocupada com a propaganda negativa, age para esconder os dados e questionar a tese do médico que, determinado, entra em uma batalha sem precedentes discutindo os aspectos éticos envolvidos na prática profissional. ` Filme � Fome de Poder (The Founder). Direção: John Lee Hancock. Roteiro Robert D. Siegel. Elenco: Michael Keaton, Nick Offerman, John Carroll Lynch. EUA: The Combine, Film- Nation Entertainment. 1h 55min. 2016. � Sinopse: “A história da ascensão da rede de fast food McDonald ‘s. Após receber uma demanda sem precedentes e notar uma movimentação de consumidores fora do normal, o vendedor de Illinois Ray Kroc (Michael Keaton) adquire uma participa- ção nos negócios da lanchonete dos irmãos Richard e Maurice “Mac” McDonald no sul da Califórnia. Implementando novas formas de gerenciamento e práticas de ex- pansão comercial, o novo sócio inicia um processo no qual, pouco a pouco, ele re- tira os irmãos criadores da rede, transformando a marca em um gigantesco império alimentício.” (Disponível em: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-234023/) Muitas questões éticas são trabalhadas durante o filme, dentre elas a questão do res- peito à criação e invenção e as práticas comerciais inseridas no contexto de uma con- corrência sem limites. ` Texto Complementar: A importância da ética profissional nas organizações: uma pesquisa sobre a ética profissional no mercado de trabalho Resumo: “Este artigo apresenta a importância da ética profissional nas organizações, pois esta contribui para geração de boas relações de trabalho, uma melhor produtivida- de, um bom clima organizacional que aumenta a motivação dos colaboradores e agrega valor para a organização. Embora a postura ética seja muito exigida profissionalmente, tanto das empresas quanto dos colaboradores, observou-se uma certa dificuldade de ambos para colocá-la em prática, sendo este o motivo desse estudo. Para tanto, reali- zou-se uma pesquisa bibliográfica e de campo por meio de um questionário com trinta profissionais, na busca por informações sobre o comportamento ético dentro das orga- nizações. Os resultados da pesquisa de forma geral foram positivos, mas evidenciaram a necessidade de falar mais sobre esse tema nas empresas, porque ainda existem comportamentos que não são adequados para o ambiente de trabalho de ambos os la- dos. Concluiu-se, por meio das respostas dos participantes, a importância de se adotar um conjunto de medidas para tornar o ambiente de trabalho mais agradável que inclui trabalhar o tema da ética profissional dentro da organização com maior frequência, ter https://www.adorocinema.com/filmes/filme-234023/ 63 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co 3. SOCIEDADE TECNOLÓGICA E DIGITAL 3.1. O MUNDO TECNOLÓGICO E A ERA DIGITAL As transformações tecnológicas ocorridas durante o século XX alteraram substancial- mente tanto as estruturas econômicas como as estruturas políticas e sociais. A partir disso, resulta a necessidade de repensar novos princípios éticos para fundamentar as relações nessa nova realidade. Novas formas de se organizar, compreender e interagir com o mundo se desenvolveram e se popularizaram. Ainda que tais mudanças tenham acarretado grandes transformações, talvez a mais intensa de todas tenha sido a forma como a percepção do tempo se alterou, desde o advento da revolução industrial no século XVIII, com um crescente sentimento de uma política ética mais eficiente com ações voltadas para a realidade da empresa, um melhor diálogo e comunicação sobre o tema, adotar medidas corretivas para que as pessoas reflitam sobre seus atos e busquem uma mudança de comportamento. Além disso, é importante que os profissionais reflitam sobre a relevância do tema observando as consequências de seus atos para toda a equipe e organização, buscando orientar e mudar seus comportamentos por meio das normas de conduta, a fim de gerar um bom convívio no ambiente profissional” (SOUZA et al., 2020, p. 10). Leia o texto completo em: https://revistaunibf.emnuvens.com.br/monumenta/article/view/3. Acesso em: 10 jun. 2022. SAIBA MAIS A ética profissional como parâmetro e valor na sociedade democráticaResumo: “Dialogando com a teoria filosófica e política de formação da sociedade e dos parâmetros éticos, o autor percorre a constituição do conceito de ética profissional revelando os valores fundantes de uma perspectiva interdisciplinar que sustente os pa- râmetros democráticos em uma sociedade. Um texto escrito em 1998, mas que per- manece vivo nas reflexões sobre os desejos e anseios dos profissionais da sociedade contemporânea” (SOUZA FILHO, 2016, p. 173). Leia o texto completo em: http://revistathemis.tjce.jus.br/index.php/THEMIS/article/download/399/386. Acesso em: 10 jun. 2022. SAIBA MAIS https://revistaunibf.emnuvens.com.br/monumenta/article/view/3 http://revistathemis.tjce.jus.br/index.php/THEMIS/article/download/399/386 64 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea aceleração. A forma de se perceber e conceber a temporalidade afetou as relações sociais e trabalhistas, concedendo uma nova perspectiva sobre a individualidade e a interatividade. Ao longo do século XX e do XXI, diversos autores abordaram a forma como a moderni- dade (e, para alguns teóricos, a pós-modernidade) afetou a maneira de se perceber o mundo no âmbito privado e público. Para o sociólogo Zygmunt Bauman, em sua reco- nhecida e recomendada obra Modernidade líquida (2001), a modernidade transformou as relações em algo efêmero, líquido e, por vezes, fugidio. Partindo dessa perspectiva, vamos nos aprofundar um pouco mais nos limites, ou na ausência deles, da tecnologia e da era digital na sociedade contemporânea. A REVOLUÇÃO DIGITAL No Brasil, desde os anos 1970, diversos autores têm se debruçado sobre as for- mas como as novas tecnologias têm im- pactado nossas vidas. Um dos primeiros autores a dedicar ao tema foi o geógrafo Milton Santos, em especial em sua obra Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional (1998). A partir de uma série de conside- rações, Santos propôs a concepção de meio técnico-científico-informacional para caracterizar as relações entre o de- senvolvimento do capitalismo no espaço geográfico, mas também a relação mais intrínseca entre técnica e ciência, principal- mente com a intensificação do processo de globalização. O cenário da quarta fase da Revolução Industrial, também denominada de Indústria 4.0, é marcado pelas tecnologias da automação e da troca de dados, da informatização dos processos. Nessa fase de industrialização, as novas possibilidades apresentadas, como os amplos sistemas de dados e o armazenamento em nuvem, dinamizaram os processos produtivos e apresentaram novas interfaces de trabalho e interatividade. Podemos observar que, nas últimas décadas, com o advento da internet e de novos recursos da tecnologia, além do protagonismo das redes sociais, o papel do indivíduo ganhou destaque e, ao mesmo tempo, diluiu-se em um grande número de conexões possíveis dentro do espaço virtual. A relação entre individualidade e coletividade é in- trínseca e os novos meios de comunicação têm dominado as formas de interação, não só com as máquinas e inteligências artificiais, mas também com as pessoas. Com base nesses aspectos, podemos vislumbrar, desde relações entre pessoas reais, por meio de trocas de mensagens, lives, curtidas, ambiente educacional virtual, até na interação entre pessoas e atendentes virtuais, por exemplo, os call centers que cada Figura 06. Era digital Fo nt e: 1 23 R F 65 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co vez mais contam com atendentes de inteligência virtual. Em relação ao último tópico, podemos apontar uma questão sobre os limites sociais que ganham contorno com as novas tecnologias. Recentemente, diversas empresas têm realizado campanhas abordando o assédio e a violência contra a mulher, uma vez que, até mesmo atendentes virtuais, quando carac- terizadas como pertencentes ao gênero feminino (seja pelo nome, ilustração, forma de articular o gênero gramatical), sofrem com falas que remetem a situações de preconcei- to e violência. Nesse sentido, a intersecção entre o mundo real e o virtual tem nos colo- cado, enquanto sociedade, importantes questionamentos sobre os limites necessários nas novas e antigas formas de se viver e representar no mundo. Com o intuito de refletir sobre a questão das novas tecnologias e o impacto que elas têm nas re- lações sociais e de gênero, ressaltando antigas formas de violência, leia a reportagem a seguir. Robôs precisaram aprender a responder ao assédio feito por homens “As agressões sofridas pela Bia não são ‘pessoais’ contra ela e nem isoladas. O chamado ‘assédio cibernético’ acontece contra todo tipo de assistente digital dotada ou não de inteli- gência artificial. Recentemente, a Lu, o chatbot do Magazine Luiza, gravou um vídeo reba- tendo pedidos de namoro que recebe, lado mais ‘gentil’ desse tipo de interação: nas redes sociais, a robô recebe pedidos de ‘nudes’ e insultos.” Fonte: TOUEG, Gabriel. Robôs precisaram aprender a responder ao assédio feito por homens. UOL, 08 abr. 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/reda- cao/2021/04/08/bia-chatbot-do-bradesco-vairesponder-a-altura-quem-vier-com-assedio.htm Acesso em: 11 jun. 2022. PARA REFLETIR 3.2. AS REDES SOCIAIS E OS NOVOS APLICATIVOS Com a expansão das possibilidades tecnológicas, desenvolveu-se também novas pro- blemáticas que vão de crimes cibernéticos até os denominados cancelamentos virtuais. Nesse sentido, uma das grandes dificuldades que existe hoje, visto que ainda há pouca regulamentação jurídica sobre o tema, reside justamente em compreender os limites legais dentro da esfera virtual. Cabe destacarmos, neste ponto, o Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965/2014, que regulamenta, grosso modo, o uso da rede de internet em nosso país. Nesse quesito, podemos acrescentar as diferentes políticas de utilização que cada meio virtual cria para proteger a si mesmo e seus usuários. Constantemente, aceitamos termos de uso sem ao menos ler todos os pontos ali apresentados, ou seja, nós nos permitimos entrar em esferas sem conhecer legalmente as políticas de conduta e utilização às quais nos submetemos. https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/04/08/bia-chatbot-do-bradesco-vairesponder-a-altura-quem-vier-com-assedio.htm https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/04/08/bia-chatbot-do-bradesco-vairesponder-a-altura-quem-vier-com-assedio.htm 66 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea A CULTURA DO CANCELAMENTO – O OSTRACISMO DO SÉCULO XXI Acerca da cultura do cancelamento, po- deríamos estabelecer um paralelo com o mundo antigo grego. Se na Grécia Antiga os indivíduos poderiam ser condenados ao escrutínio e ao isolamento social, por meio da prática do ostracismo, no mundo contemporâneo as pessoas estão sujei- tas ao denominado cancelamento virtual. Resumidamente, esse ato consiste em denunciar (anonimamente ou não) e boi- cotar pessoas e/ou empresas que, por al- guma razão, teriam realizado uma atitude condenável, como um ato de racismo, xenofobia, homofobia, misoginia, dentre outros. Um exemplo de quem sofreu com essas práticas é o caso do filósofo grego Sócrates, que foi acusado e condenado por (entre outras coisas) desvirtuar os jovens de Atenas. Ele poderia ter optado pelo ostracismo político e social, no entanto, diante do que isso significaria, optou pela morte por envenenamento com cicuta. Atualmente, inúmeros artistas e políticos sofreram o cancelamento virtual. Um dos casos emblemáticos é o da influenciadora digital Gabriela Pugliesi que, durante a quarentena imposta pela Co- vid-19, postou em uma rede social um vídeo em que aparecia em uma confraternização, sendo duramente criticada pelo público, o que a fez deletar temporariamente sua conta e, posteriormente, acarretou a perda de inúmeros patrocínios. Figura 07. Cultura do cancelamento Fo nt e: 1 23 R F Para uma leitura complementar sobre a cultura do cancelamento, visando aprofundar a dis-cussão, leia o artigo de Miguel Lago à Folha de São Paulo, intitulado: “Derrubem as estátu- as. Quem reclama da ‘cultura do cancelamento’ está cego para a cultura do outro”. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/derrubem-as-estatuas/. Acesso em: 11 jun. 2022. SAIBA MAIS Ainda nesse cenário do ciberespaço, é necessário sublinharmos as possibilidades do anonimato, o que potencializa tais atitudes e, como apontado, devido à incipiente regu- lamentação existente, torna as chances de contenção e punição limitadas. Isso se dá pelo fato de o anonimato empoderar indivíduos que nutrem discursos de ódio e violên- cia (conhecidos no mundo como hate speech), que se sentem aptos a pronunciarem, de forma ampla, seus preconceitos e visões de mundo. Tendo isso em mente, é necessário frisarmos que esse mesmo anonimato também abre espaço para que indivíduos silenciados e/ou vitimados pelos mais distintos processos de violência possam projetar suas vozes e demandas de forma segura e, assim, encon- trar respaldo coletivo para a superação de suas dores e traumas. https://piaui.folha.uol.com.br/materia/derrubem-as-estatuas/ 67 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Diante da temática do cancelamento, um ponto de relevância sobre o tema se encontra na compreensão de tal ato: seria a prática de cancelar alguém, ou uma organização, um elemento estruturante da sociedade ou um elemento estruturado? Ou seja, poderí- amos conceber o cancelamento como o resultado de um modo social de compreender o mundo ou uma consequência desse universo? Trata-se de uma questão que suscita respostas ainda em disputas e que leva diretamente até outros questionamentos: qual o papel e os limites do ativismo social e/ou cibernético? Pode-se se falar de um “efeito manada” ou as pessoas estão ficando mais conscientes de seus valores e atitudes diante do mundo e de outros? O ciberespaço, para Pierre Lévy (1999, p. 17), pode ser definido como “[...]o novo meio de comu- nicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo”. O autor também avança e define cibercultura como “[...] o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e valores que se desenvol- vem juntamente com o crescimento do ciberespaço” (LÉVY, 1999, p. 17). GLOSSÁRIO OS LIMITES DO MUNDO DIGITAL NO MUNDO DO TRABALHO – A UBERIZAÇÃO Concomitantemente às problemáticas já apresentadas, outras se desenvolveram no campo das relações sociais e, principalmen- te, trabalhistas. Além das possibilidades de trabalho em home office, a utilização de pla- taformas digitais também cresceu, de forma intensa, em pouco tempo e suscitou a inter- venção de novos limites e parâmetros legais para as demandas advindas de tais usos. Uma temática bastante debatida se refere ao fenômeno da é a Uberização, termo que, devido ao crescente uso de aplicati- vos que mediassem o contato entre cliente e o prestador de serviço, acabou por adentrar o sistema jurídico brasileiro. O assunto está longe de ser esgotado e, constantemente, ganha novos contornos, sendo que muitos deles têm abordado, diretamente, a limitação ou não de tais relações. Dentro dos dilemas advindos, as principais questões sobre tal temática se referem à po- sição do trabalhador nessa relação. Por um lado, seria uma possibilidade de que ele gerisse seus próprios horários e autonomia. Por outro, implicaria a não existência de Figura 08. Uberização e o mercado de trabalho contemporâneo Fo nt e: 1 23 R F 68 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea vínculo empregatício e legal entre a plataforma, o prestador e o usuário. A discussão tem se aprofundado e crescido, como apontam obras publicadas sobre o assunto, como, por exemplo, Ube rização, trabalho digital e Indústria 4.0, organizada por Ricardo Antunes. Além do constante surgimento de novas plataformas, têm-se atualizado exponencial- mente (elemento intensificado) os aplicativos já existentes, principalmente, após a pan- demia de Covid-19, que demandou formas distintas de os indivíduos buscarem solu- ções para suas necessidades, especialmente recorrendo ao meio digital. REPRESENTAÇÃO E CRÍTICA SOCIAL – ALGORITMO E REDES SOCIAIS Diante dos algoritmos utilizados pelos aplicativos, que controlam grande parte da- quilo que os indivíduos têm acesso e o que visualizam, a forma de se apresentar e se representar na era digital encontra limitações e dita, em grande medida, desejos e consumos na contemporaneidade. Além das produções científico-acadêmicas, diversas criações no âmbito cultural têm procurado refletir sobre as formas como as novas tecnologias, em sua presença ou ausência, influenciam os indivíduos e suas relações no mundo contemporâneo. Ilustrações O cineasta britânico Kenneth Loach aborda questões referentes ao capitalismo, à imigração, ao envelhecimento, às interfaces da tecnologia e à uberização em seus filmes Eu, Daniel Blake (2017) e Você não estava aqui (2020). O Dilema das Redes Sociais (2020), dirigido por Jeff Orlowski, por exemplo, por meio da narrativa documental, estabelece apontamentos basilares para a relação entre as mídias sociais, a democracia e o futuro das organizações sociais. Partindo dos comentários de im- portantes nomes de dentro da indústria da tecnologia, que apresentam suas preocupações e receios diante de suas próprias criações, o documentário aponta para os riscos e os limites que as redes na contemporaneidade têm trazido à tona. Na mesma perspectiva, mas por meio da narrativa ficcional, no episódio Queda Livre, da terceira temporada da série Black Mirror, os limites da tecnologia, dos likes e compartilha- mentos são levados ao extremo. A obsessão pelos likes e notas dadas é trabalhada como um adendo da vida social. Para obter um empréstimo para comprar uma casa, a jovem pro- tagonista precisa ter uma nota alta nas redes sociais. Em busca de atingir o número neces- sário, ela entra em uma jornada de trocas de pontuações, que, no entanto, vão se tornando cada vez mais complicadas devido a circunstâncias da vida cotidiana. Com uma narrativa distópica (em oposição ao termo utopia, que descreveria uma sociedade ideal), o episódio nos leva aos limites da percepção de si e dos outros no mundo contemporâneo, relações agora mediadas em grande escala por notas dadas e recebidas em plataformas digitais e aplicativos, ou seja, apresenta uma sociedade imperfeita, opressiva e disfuncional. 69 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ainda que a era digital tenha aberto as portas para todo um conhecimento e aces- so inimagináveis em outras épocas, as restrições geradas pelos algoritmos acabam mantendo os indivíduos dentro de uma esfera de trocas e visualizações, por vezes, muito homogêneas. Em um mundo cada vez mais diversificado e heterogêneo, um dos grandes dilemas da atualidade é construir conexões reais que ultrapassem as fronteiras das denominadas “bolhas sociais” ou “bolhas digitais”. Isto é, amplie esses espaços fechados nos quais os indivíduos se refugiam e fortalecem posturas pré-concebidas, em que o diálogo pouco encontra o contraditório, o que constrói possibilidades para posturas extremistas. Nesse sentido, buscar os limites do mundo tecnológico perpassa diretamente não só o acesso a tal mundo, mas também as formas de se conceber e utilizar esse universo. Para ampliar o aporte teórica sobre a sociedade tecnológica e digital, indicamos duas leituras, a saber: ` Livro: Uma obra lançada em 2020 de extrema relevância sobre a era digital e a sociedade conectada é: Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0, organizada por Ricardo Antunes, que conta com capítulos escritos por Arnaldo Mazzei Nogueira, Cílson César Fagiani,Clarissa Ribeiro Schinestskck, entre outros. ` Artigo: SERRAZINA, Filomena, Esfera pública, tecnologia e reconfiguração da identidade individual. Observatorio (OBS*) Journal, Lisboa, v. 6, n. 3, p. 177-191, 2012. Disponível em: http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/574. Acesso em: 11 jun. 2022. SAIBA MAIS Uma das questões diretamente relacionadas à era digital é a forma como as redes sociais impactaram o mundo do trabalho. Assim, compreender como as relações entre vida privada e pública se interconectam e se impactam mutuamente é fundamental para a construção de espaços harmoniosos. Estabelecer os limites entre o público e o privado nas redes é uma das questões mais importantes atualmente. Para entender melhor como tecnologias da internet e das redes sociais, por exemplo, precisam ser cuidadosamente analisadas e compreendidas, leia a matéria referenciada a seguir: SILVA, Juliana Américo Lourenço da. Redes sociais: veja como se comportar na internet na hora de concorrer a um emprego. USF, 2 set. 2014. Disponível em: https://www.usf.edu.br/ diferenciais/carreira-dicas-exibir/91909726/redes+sociais+veja+como+se+comportar+na+in- ternet+na+hora+de+concorrer+a+um+emprego.htm#.YQLk3Y5KjIU. Acesso em: 11 jun. 2022. Caso de aplicação 1 http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/574 https://www.usf.edu.br/diferenciais/carreira-dicas-exibir/91909726/redes+sociais+veja+como+se+comportar+na+internet+na+hora+de+concorrer+a+um+emprego.htm#.YQLk3Y5KjIU https://www.usf.edu.br/diferenciais/carreira-dicas-exibir/91909726/redes+sociais+veja+como+se+comportar+na+internet+na+hora+de+concorrer+a+um+emprego.htm#.YQLk3Y5KjIU https://www.usf.edu.br/diferenciais/carreira-dicas-exibir/91909726/redes+sociais+veja+como+se+comportar+na+internet+na+hora+de+concorrer+a+um+emprego.htm#.YQLk3Y5KjIU 70 2 Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bosi. 21. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2001. COUTO, Ana Isabel et al. Empreendedorismo social corporativo: uma agenda para a promoção sustentável de práticas sociais, ambientais e económicas. Conferência – Investigação e Intervenção em Recursos Hu- manos, [S. l.], n. 10, p. 1-3, 2021. FERREIRA, J. V. M.; BRANDÃO, A. Uberização, A Nova Classe De Trabalhadores. 2020. Revista Ibero-Ame- ricana De Humanidades, Ciências e Educação. São Paulo, v. 6, n. 12, p. 91-104, 2020. GOERGEN, Pedro. Educação e Valores no mundo contemporâneo. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 26, n. 92, p. 938-1011, out. 2005. Disponível em: https://scholar.google.com.br/scholar?oi=bibs&clus- ter=7675107301423375992&btnI=1&hl=en. Acesso em: 17 nov. 2021. IANNI, Octavio. O mundo do trabalho. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 8, n. 1, p. 2-12, 1994. Disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v08n01/v08n01_01.pdf. Acesso em: 04 nov. 2021. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Trans, 1999. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Tradução de Juremir Machado da Silva. São Paulo: Editora Manole, 2007. MEIRA, Fabio Bittencourt. Ética empresarial e gerencialismo – um estudo sobre a ética da ética empresarial. 2002. Dissertação (Mestrado em Administração) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2002. Sobre o impacto das redes sociais, confira os vídeos a seguir: KARNAL, Leandro; IOSCHPE, Gustavo. Tecnologia e privacidade: inteligência artificial no cotidiano Vídeo (44min 09s). Postado pelo canal Prazer, Karnal – Canal Oficial de Leandro Karnal. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sBMROEaLKZY. Acesso em: 11 jun. 2022. SANTOS, Milton. Milton Santos – o mais importante geógrafo do Brasil (TV Brasil 2011). Ví- deo (25min 38s). Postado pelo canal Geografia e Ensino de Geografia. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=Y51aSaBC614. Acesso em: 11 jun. 2022. TURK, Gary. Look up – Kleber Carriello – Legenda Português BR. Vídeo (4min 58s). Postado pelo canal de Kleber Carriello. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EPoUK- DuGMLg&t=3s. Acesso em: 12 jun. 2022. SAIBA MAIS https://scholar.google.com.br/scholar?oi=bibs&cluster=7675107301423375992&btnI=1&hl=en https://scholar.google.com.br/scholar?oi=bibs&cluster=7675107301423375992&btnI=1&hl=en https://www.youtube.com/watch?v=sBMROEaLKZY https://www.youtube.com/watch?v=Y51aSaBC614 https://www.youtube.com/watch?v=Y51aSaBC614 https://www.youtube.com/watch?v=EPoUKDuGMLg&t=3s https://www.youtube.com/watch?v=EPoUKDuGMLg&t=3s 71 2 Ética e Cidadania U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co ROUANET, Paulo Sérgio. Grandeza e decadência da Ética da Ilustração. Hypnos, São Paulo, ano 8, n. 10, p. 1-10, 2003. Disponível em https://hypnos.org.br/index.php/hypnos/article/view/142. Acesso em: 03 dez. 2021. SERRAZINA, Filomena, Esfera pública, tecnologia e reconfiguração da identidade individual. Observatorio (OBS*) Journal, Lisboa, v. 6, n. 3, p. 177-191, 2012. Disponível em: http://obs.obercom.pt/index.php/obs/ article/view/574. Acesso em: 7 set. 2021. SILVA, Juliana Américo Lourenço da. Redes sociais: veja como se comportar na internet na hora de concor- rer a um emprego. USF, 2 set. 2014. Disponível em: https://www.usf.edu.br/diferenciais/carreira-dicas-exi- bir/91909726/redes+sociais+veja+como+se+comportar+na+internet+na+hora+de+concorrer+a+um+empre- go.htm#.YQLk3Y5KjIU. Acesso em: 7 set. 2021. SOUSA FILHO, Oscar D.’Alva e. A ética profissional como parâmetro e valor na sociedade democrática. THE- MIS: Revista da ESMEC, Fortaleza, v. 1, n. 2, p. 173-185, 2016. SOUZA, Ana Paula Maximiano de et al. A importância da ética profissional nas organizações: uma pesquisa sobre a ética profissional no mercado de trabalho. Monumenta – Revista Científica Multidisciplinar, [S. l.], v. 1, n. 1, p. 10-21, 2020. Disponível em: https://revistaunibf.emnuvens.com.br/monumenta/article/view/3. Acesso em: 17 nov. 2021. SOUZA, C. Trabalho no Século 21: desafios do Líder na Nova Ordem Exponencial. IstoÉ Dinheiro, 08 mar. 2021. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/trabalho-no-seculo-21-desafios-do-lider-na-nova-or- dem-exponencial/. Acesso em: set. 2021. TOUEG, Gabriel. Robôs precisaram aprender a responder ao assédio feito por homens. UOL, 08 abr. 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/04/08/bia-chatbot-do-bradesco-vairespon- der-a-altura-quem-vier-com-assedio.htm Acesso em: 28 jul. 2021. TUCKER, Albert W.; LUCE, R. Duncan; AUMANN, Robert J. Contributions to the Theory of Games IV. Prince- ton, New Jersey: Princeton University Press, 1959. VAZQUEZ, Adolfo Sáncbez. Ética. 24. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/574 http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/574 https://revistaunibf.emnuvens.com.br/monumenta/article/view/3 https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/04/08/bia-chatbot-do-bradesco-vai-responder-a-altura-quem-vier-com-assedio.htm https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/04/08/bia-chatbot-do-bradesco-vai-responder-a-altura-quem-vier-com-assedio.htm 72 3 Vivência profissional e construção da cidadania UNIDADE 3 VIVÊNCIA PROFISSIONAL E CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA INTRODUÇÃO A partir do que entendemos sobre a ação boa do indivíduo, a ação ética, podemos partir para o que ela deve constituir em seu todo: enquanto sociedade, ela dá origem à vivência cidadã. Na contemporaneidade, ser considerado cidadão está diretamente relacionado à possibilidade de uma pessoa ter acesso aos denominados direitos civis, políticos e sociais. É importante destacarmos que gozar de direitos significa que o indi- víduo também arca com deveres perante a sociedade. Nos dias atuais, a concepção de cidadania, no contexto brasileiro, deve ser aplica- da a todos (homens, mulheres, crianças, idosos), independentementede cor, gênero, orientação sexual etc. No entanto, nem sempre foi assim: por muito tempo, os direitos, políticos e/ou sociais, foram proibidos às mulheres, os analfabetos, à população negra e indígena, entre outros grupos excluídos historicamente. Nesta unidade, temos o intuito de compreender a relação entre Ética e Cidadania, como se estabelecem em nossa sociedade e em nosso cotidiano profissional, impulsionando mudanças em processos gerenciais, práticas e políticas institucionais e, sobretudo, em nossos próprios comportamentos. Se há algo que vai se consolidando entre nós é que tanto o conceito de ética quan- to o de cidadania não têm definições estanques e acabadas, definitivas. São con- ceitos que são históricos, vinculados a circunstâncias específicas dependen- tes e variáveis no tempo e no território, cronologicamente considerados e nos espaços culturalmente estabelecidos. Nosso estudo e nossa análise, à vista disso, devem sempre ser encaminhados e diri- gidos pelo olhar da complexidade, a partir de múltiplas relações e interlocuções. E isso pode se dar por meio dos estudos interdisciplinares, uma vez que temos que lembrar que são conceitos e estes são originários no seio de teorias referenciadas em realida- des, neste caso, plurais e multifacetadas. Vale aqui, então, recordarmos como nota histórica sobre a cidadania: sua conceitua- ção contemporânea encontra raízes nas revoluções sociais, políticas e econômicas, iniciadas no século XVIII, que culminaram na conquista de direitos políticos e civis, decorrentes da reestruturação de estados monárquicos e absolutistas em repúblicas e parlamentos, da construção de instituições democráticas (executivas, judiciárias e legis- lativas), das inúmeras transformações sociais, culturais, de ordem religiosa e científica, 73 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania além da consolidação do sistema econômico capitalista. Essa origem é fundamental para nos revelar uma das grandes facetas do conceito, que diz respeito à compreensão de seus espaços de consolidação e pertencimento, colocando-nos perguntas profundas que tentamos desenvolver. Ainda nesta unidade, traremos a ideia de que uma postura cidadã exige dos indivíduos um cuidado que vai além do mundo humano, alcançando o mundo natural, chamado também de natureza mais que humana. As questões ambientais têm ganhado destaque dentre as grandes preocupações contemporâneas e devem ser assumidas com respon- sabilidade por todos que atuam no mundo profissional. Vamos começar! 1. CIDADANIA ONTEM E HOJE 1.1 A CIDADANIA NA ANTIGUIDADE A concepção de cidadania – e cidadão – está diretamente atrelada à democracia. Com- preender a história e a evolução desses termos remonta diretamente ao mundo antigo grego. Com a evolução do modelo político grego, transitando da monarquia, passando pela oligarquia e chegando à democracia, houve a necessidade de se determinar quais pessoas teriam direito à participação política e ao usufruto dos direitos determinados pelo corpo político na pólis. Emerge, nesse sentido, a concepção de cidadão, ou seja, dos indivíduos que seriam diretamente representantes de uma determinada cidade-estado. Democracia direta e democracia representativa Na Grécia Antiga, a democracia funcionava por meio da representação direta, ou seja, os indiví- duos considerados cidadãos participavam ativamente e votavam nas propostas apresentadas pela assembleia. Na atualidade, incluindo o Brasil, vigora, de modo geral, a democracia repre- sentativa, na qual os cidadãos elegem indivíduos (vereadores, deputados, senadores etc.) que os representarão no processo democrático do funcionamento do Estado e de sua organização. SAIBA MAIS No mundo grego, primeiramente nasceu a cidade-estado, a pólis, e, posteriormente, o cidadão – condição que, no caso da cidade de Atenas, por exemplo, era restrita aos ho- mens livres, filhos de pai e mãe atenienses, maiores de 18 anos e que fossem nascidos na cidade. Em Roma, o conceito era um pouco mais aberto, estendendo-se às distintas cidades que compunham a Península Itálica e, posteriormente, às províncias do Impé- rio, incluindo também os escravos que fossem libertados por seus senhores. No caso das mulheres, elas eram consideradas membros da sociedade, mas, não gozavam da condição da cidadania plena, nem participavam da política. 74 3 Vivência profissional e construção da cidadania 1.2. A CIDADANIA A PARTIR DA IDADE MODERNA Da cidadania no mundo greco-romano, passando pelo mundo medieval, ocorreram modificações intensas, principalmente com a introdução do cristianismo. No entan- to, as modificações mais significativas para o mundo ocidental atual se concentram na Idade Moderna com as denominadas Revoluções Burguesas. É nesse período que acontecem importantes transições, tais como a mudança de súdito para cida- dão e a implementação dos denominados direitos naturais e inalienáveis do homem, pontos que serão tratados a seguir. “No sentido moderno, cidadania é um conceito derivado da Revolução Francesa (1789) para designar o conjunto de membros da sociedade que têm direitos e decidem o destino do Esta- do. Essa cidadania moderna liga-se de múltiplas maneiras aos antigos romanos, tanto pelos termos utilizados como pela própria noção de cidadão. Em latim, a palavra cinis gerou ciuitas, ‘cidadania’, ‘cidade’, ‘Estado’. Cidadania é uma abstração derivada da junção de cidadãos e, para os romanos, cidadania, cidade e Estado constituem um único conceito – e só pode haver esse coletivo se houver, antes cidadãos. Ciuis é o ser humano livre e, por isso, ciuitas carrega a noção de liberdade em seu centro. Cícero, pensador final da República romana, afirmava no século I a.C. que ‘recebemos de nossos pais a vida, o patrimônio, a liberdade, a cidadania’. A descrição daquilo que os pais nos deixam, segundo o estadista romano, é cronológica, mas também acumulativa. Recebemos a vida ao nascer; em seguida, a herança, na forma de nossa educação quando crianças, o que nos permite alcançar a liberdade individual e coletiva na vida adulta. Se para os gregos havia primeiro a cidade, polis, e só depois o cidadão, polites, para os romanos era o conjunto de cidadãos que formava a coletividade. Se para os gregos havia cidade e Estado, politeia, para os romanos a cidadania, cinitas, englobava cidade e Estado.” (FUNARI, 2005, p. 49) SAIBA MAIS a. DE SÚDITO A CIDADÃO O avanço definitivo da concepção moder- na de cidadania deriva das denominadas Revoluções Burguesas. Desde a Revolu- ção Inglesa (1640-1688), a projeção da cidadania começou a mudar drasticamen- te. Porém, foi com a Revolução America- na (1775-1783) e a Francesa (1789-1799) que a ordem definitivamente se alterou, modificando a estrutura das sociedades organizadas por súditos (indivíduos sub- metidos ao rei soberano) para cidadãos de direitos (submetidos às cartas consti- tucionais). Ocorreu, assim, o abandono da concepção de súdito e seus deveres: quando o indivíduo era submetido diretamente Figura 01. Direitos Fo nt e: 1 23 R F 75 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania a um rei e às suas vontades, por uma população cidadã que, agora, gozava de direitos e podia, com inúmeras restrições, participar da política de forma mais ampla. Ainda que tais revoluções tenham favorecido, predominantemente, a classe burguesa, elas contaram também com participações de grupos mais populares, como os nivela- dores e cavadores na Revolução Inglesa e os sans culotes na Revolução Francesa. Contudo, ainda levaria um bom tempo e muitos outros processos reivindicatórios para que os grupos mais populares pudessem ter acesso pleno aos seus direitos, fato que ocorreu, de modo geral, no mundo ocidental apenas no século XX. Nessa evolução, alguns documentos escritos nos contextos inglês, norte-americano e francês, principalmente, tornaram-se importantes marcos históricos para a evolução da cidadania como a conhecemos atualmente.Podemos destacar entre eles: ` Bill of Rights (Declaração de Direitos, 1689), no caso da Inglaterra; ` Carta dos Direitos dos Estados Unidos (1787), no caso dos Estados Unidos; ` Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), no caso da França. Nesses documentos, a concepção de cidadão e cidadania ganhou seus primeiros con- tornos e serviu de modelo para grande parte das constituições das sociedades contem- porâneas ocidentais. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – 1789 “Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos, resolveram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, cons- tantemente presente junto a todos os membros do corpo social, lembre-lhes permanente- mente seus direitos e deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e do poder executivo, podendo ser, a todo instante, comparados ao objetivo de qualquer instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante funda- das em princípios simples e incontestáveis, estejam sempre voltadas para a preservação da Constituição e para a felicidade geral.” Fonte: https://br.ambafrance.org/A-Declaracao-dos-Direitos-do-Homem-e-do-Cidadao. Acesso em: 11 jun. 2022. SAIBA MAIS Essa nova concepção de cidadania surgida na modernidade, que se pautou em grande parte nos pressupostos do Iluminismo e do Liberalismo Político, pressupunha, como https://br.ambafrance.org/A-Declaracao-dos-Direitos-do-Homem-e-do-Cidadao 76 3 Vivência profissional e construção da cidadania ponto de partida, os denominados direitos naturais e inalienáveis, tais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, além da ampliação do direito de participação política diante do Estado-nação. É importante ressaltarmos que, durante grande parte do século XIX e XX, esses direitos estavam restritos aos indivíduos adultos (homens) e, grosso modo, levavam em conta critérios censitários (que poderiam ser por idade, riqueza etc.), de alfabetização, ra- ciais e de gênero. Nesse sentido, frisamos que as mulheres foram, por muito tempo, relegadas a uma condição marginalizada de cidadania, sendo, inclusive, proibidas tanto de participar da política quanto de exercer o direito ao voto. “Cidadania é noção construída coletivamente e ganha sentido nas experiências tanto so- ciais quanto individuais, e por isso é uma identidade social. Claro que pensamos aqui em identidade como uma construção social relativa, contrastiva e situacional. Ou seja, ela é uma resposta política a determinadas demandas e circunstâncias igualmente políticas, e é volátil como são diversas as situações de conflito ou de agregamento social. Porque é política, também sua força ou fragilidade depende das inúmeras mobilizações, confrontos e negociações cotidianas, práticas e simbólicas. Confrontos e negociações que, por sua vez, variam enormemente à medida que avançam os processos de construção do Estado-nação, da expansão capitalista, da urbanização e da coerção — e pensamos aqui especialmente na guerra. ‘Identidade social politizada’ significa, portanto, que a extensão dos direitos da cida- dania democrática deve ser pensada como resultados possíveis das contendas concretas de grupos sociais, e que essas contendas são, por sua vez, fontes poderosas de identificação intersubjetiva e reconhecimento entre as pessoas. Nesse sentido, identidade e cidadania não são conceitos essenciais, fixos por natureza. Eles variam conforme a agência que fazem deles os homens que os mobilizam. Na verdade, e diferente do que se pensa, a comuni- dade se une como grupo, e depois dele é que se criam sentidos e políticas identitárias.” (SCHWARCZ; BOTELHO, 2012, p. 12-13). PARA REFLETIR Após esse primeiro momento que comportava uma concepção ainda muito excludente de cidadania, principalmente ao longo dos dois últimos séculos, ocorreram intensas mo- bilizações de grupos que foram excluídos dessa possibilidade de participação, que se organizavam e lutavam com o intuito de ampliar seus direitos civis e políticos, ou seja, que lutavam para serem considerados cidadãos de fato. Durante o século XIX, movimentos que vão desde os agrupamentos de trabalhadores, como o movimento ludista e o cartista na Inglaterra, até o movimento em prol do sufrá- gio feminino e dos movimentos abolicionistas ganharam cenário na história. Além das organizações citadas, podemos destacar ainda mobilizações no contexto brasileiro ao longo do século XIX, principalmente as revoltas regenciais (Sabinada, Balaiada, Caba- nagem, Revolta dos Malês, Revolução Farroupilha) e o movimento de Canudos. O século XX iniciou-se arrebatado pelas lutas dos mais distintos grupos, principalmente os movimentos organizados sindicais, que estavam em busca da possibilidade de usu- fruírem, plenamente, de seus direitos e de exercerem livremente sua cidadania. Além 77 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania das lutas trabalhistas, no caso brasileiro, houve também distintas mobilizações popula- res, como a Revolta da Chibata, a Revolta da Vacina e a Guerra do Contestado. A partir da segunda metade do século, essas lutas se intensificaram, e muitas delas per- sistem até os dias atuais. Nesse sentido, podemos sublinhar as recentes mobilizações pela luta dos direitos à educação, como as ocupações de escolas ocorridas nos últimos anos no Brasil, mas também movimentos de cunho racial, como o Black Lives Matter “vidas negras importam”. 1.3. A CIDADANIA NA CONTEMPORANEIDADE Após o término da Segunda Guerra Mun- dial, em 1945, e com a reorganização de uma nova ordem mundial, os pressupos- tos cidadãos existentes até aquele mo- mento se somaram aos denominados Di- reitos Humanos. Em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU), recém-criada, publicou a emblemática Declaração Uni- versal dos Direitos Humanos. Tal docu- mento, ainda que não verse sobre a cida- dania, visto que esta é definida por cada Estado nacional, serve de parâmetro para a ampliação dos direitos cidadãos nos mais distintos países do mundo, incluindo o Brasil. No Brasil, a condição cidadã e o direito à cidadania são garantidos pela Constituição Federal promulgada em 1988. Entretanto, ainda que este seja um pressuposto cons- titucional, diversos indivíduos ainda não usufruem plenamente de tais condições, seja por ausência da presença efetiva de um Estado que possa garantir tal usufruto, seja por condições históricas e econômicas de desigualdade social, entre outros elementos. Diante dessas exclusões, diversos movimentos sociais têm, nas últimas décadas, lutado para garantir que a condição cidadã e o acesso pleno aos direitos, incluin- do o de igualdade, sejam acessíveis a todos. Dentre eles, ressaltamos as lutas pe- los direitos indígenas, das mulheres, da população negra (incluindo os quilombolas), da comunidade LGBTQIA+ etc. A cidadania, nesse sentido, é um conceito em transformação contínua e é através de tensões e mobilizações que ela vai tanto se reconfigurando como se ampliando. Vale destacarmos que, ao se tratar de uma prerrogativa constitucional, ela deveria, de fato, ser acessível a todos os brasileiros. Figura 02. Black lives matter Fo nt e: 1 23 R F 78 3 Vivência profissional e construção da cidadania Declaração Universal dos Direitos Humanos – 1948 “Agora, portanto, a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Decla- ração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, porassegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.” Fonte: FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA – Unicef. Declaração Universal dos Direitos Humanos – 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-uni- versal-dos-direitos-humanos.Acesso em: 11 jun. 2022. “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e in- dividuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. TÍTULO I DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana [...]” Fonte: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil – 1988. Disponível em:http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 11 jun. 2022. SAIBA MAIS A história da cidadania, como apontado, não segue uma linha de evolução clara. Desse modo, é importante considerarmos a cidadania no mundo antigo, levando em conta as peculiaridades daquele contexto, ou seja, a forma como a pólis antecedia o cidadão. No mundo moderno, o ponto de transição entre a condição de súdito para cidadão demarca um fator importante de ruptura e de inauguração de toda uma tradição que se poster- garia até os dias atuais. Na contemporaneidade, diferentemente do mundo antigo, é o corpo de cidadãos que inaugura os Estados nacionais e que, portanto, torna-se a entidade soberana de suas diretrizes, principalmente, por meio das inúmeras cartas constitucionais que regem os https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm 79 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania países na atualidade. São os denominados cidadãos que, a partir das vontades coleti- vas, direcionam os andamentos de uma sociedade democrática. Pertencer ao corpo de cidadãos, usufruindo dos direitos, mas também respondendo aos deveres, é uma parte fundamental para a constituição de uma sociedade não apenas mais justa, mas que seja, especialmente, capaz de garantir a igualdade entre os indi- víduos que a compõem, abarcando, inclusive, suas diferenças, e sendo, portanto, uma sociedade que garante a cidadania de forma plural. Figura 03. Mapa Conceitual - Cidadania MAPA CONCEITUAL Somente homensBill of rights - 1680 Carta dos Direitos dos Estados Unidos - 1780 Estado-nação Cidadão Direitos SúditoPessoa Modernidade Antiguidade Greco-Romana Democracia Cidadão Somente homensPolítica Pólis Cidadania Rei Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão - 1789 Contemporaneidade Cidadão Direitos e deveres Plural Civis Políticos DireitosMovimentos sociais Declaração Universal dos Direitos Humanos - 1948 Constituição da República Federativa do Brasil - 1988 Sociais Igualdade Justiça Social Fonte: elaborada pelo autor Para a reflexão, indicamos assistir aos vídeos a seguir e buscar considerar como eles repre- sentam a sociedade atual, quais os problemas sociais que abordam e quais suas contribui- ções para a discussão desta unidade. ` MANIFESTAÇÃO: Fernanda Montenegro e Chico Buarque em clipe pelos Direitos Huma- nos. Vídeo (8min 33s). Postado pelo canal #ProgramaDiferente. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=hISHrW79sQQ. Acesso em: 11 jun. 2022. ` MARTINHO, Marcos. O dever da educação como formação do cidadão. Vídeo (11min 53s). Postado pelo canal Casa do Saber. Disponível em: https://www.youtube.com/wat- ch?v=NhQq76oBHJE. Acesso em: 11 jun. 2022. SAIBA MAIS https://www.youtube.com/watch?v=hISHrW79sQQ https://www.youtube.com/watch?v=hISHrW79sQQ https://www.youtube.com/watch?v=NhQq76oBHJE https://www.youtube.com/watch?v=NhQq76oBHJE 80 3 Vivência profissional e construção da cidadania 2. O ESPAÇO DA CIDADANIA 2.1. IGUALDADE E DESIGUALDADE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Desde os primeiros registros acerca das sociedades, temos como marca importante o diagnóstico – de pensadores aos primeiros cientistas – da existência de desigualdades. Em Platão e Sócrates – filósofos gregos e referência para o mundo ocidental –, apren- demos que a “civilização de ouro”, a Grécia Antiga, organizava sua sociedade a partir de distinções de: ` RODRIGUES, Gilberto. Quais são os direitos das minorias? Vídeo (4min 22s). Postado pelo canal Casa do Saber. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Y5hoP- S-mQsc&t=21s. Acesso em: 12 jun. 2022. ` PINSKY, Jaime. Prof. Jaime Pinsky fala sobre o livro “História da Cidadania”. Vídeo (7min 49s). Postado pelo canal Editora Contexto. Disponível em: https://www.youtube.com/wat- ch?v=L_NpX6XQyEI&t=17s. Acesso em: 12 jun. 2022. O tema da cidadania, atualmente, está presente nas mais diversas esferas da sociedade e, mais recentemente, tem feito parte, inclusive, do universo do trabalho. Cada vez mais tanto as empresas como os profissionais têm se dedicado a pensar acerca da responsabilidade social e de suas contribuições enquanto participantes diretos da organização econômica e social dos mais diversos países. Nesse sentido, pensar atitudes diárias e construir espaços abertos e praticantes da cidadania se tornaram elementos cada vez mais comuns no mundo profissional. Além de tais participações dentro das empresas, muitas delas têm valorizado atividades voluntárias praticadas por seus funcionários e candidatos a vagas de emprego. Leia a matéria abaixo e veja como as empresas têm colocado a cidadania como um conceito cada vez mais importante tanto na contratação de seus funcionários como no cotidiano do exercício do trabalho. “Não é de hoje que diversas empresas descobriram a responsabilidade social e a impor- tância de uma preocupação maior com a realidade que as cerca. A cidadania também faz parte desse conceito. Atitudes que podem ser consideradas cidadãs - como envolvimento em projeto sociais, atividades comunitárias e voluntárias - podem até contar pontos no currículo de quem procura um emprego, uma vaga em programas de trainee ou mesmo na carreira de quem já trabalha.” Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/eleicoes/2010/cidadania-e-valorizada- -pelas-empresas-34v3t48z5dvryk6lscxmtg8cu/ Acesso em: 11 jun. 2022. Caso de aplicação 1 https://www.youtube.com/watch?v=Y5hoPS-mQsc&t=21s https://www.youtube.com/watch?v=Y5hoPS-mQsc&t=21s https://www.youtube.com/watch?v=L_NpX6XQyEI&t=17s https://www.youtube.com/watch?v=L_NpX6XQyEI&t=17s https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/eleicoes/2010/cidadania-e-valorizada-pelas-empresas-34v3t48z5dvryk6lscxmtg8cu/ https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/eleicoes/2010/cidadania-e-valorizada-pelas-empresas-34v3t48z5dvryk6lscxmtg8cu/ 81 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania Na filosofia romana, entendemos que essas distinções e discriminações eram dife- rentes, incorporando distinções entre funções dentro das cidades – senadores, cléri- gos, administradores públicos, trabalhadores –, de distinção social – nobres, religio- sos, plebeus –, distinção por exercício de profissão – magistrados, generais – e de nacionalidade – cidadãos e estrangeiros. Contemporaneamente, a partir da segunda metade do século XX, só alcançamosum conceito genérico de cidadania ao olharmos para os pactos sociais internacio- nais, ou seja, aqueles nos quais cada Estado, respeitando sua soberania, concor- dou em aceitar como critério objetivo para diálogo e proposição de ações um único conceito. E conceitos genéricos podem, muitas vezes, ser potencializadores ou não de diferenças naturais. A filósofa Hannah Arendt (1906-1975) dedicou-se a refletir sobre as questões do per- tencimento dos cidadãos aos seus territórios, inclusive quando estão na condição de estrangeiros – situação que ela compreendia com profundidade, pois, como judia, con- seguiu fugir da Alemanha nazista e se refugiar nos EUA. Em diferentes obras da autora, a filósofa assevera que a igualdade não é natural entre os homens, no sentido do que quis exprimir a Declaração dos Direitos do Homem de 1948. homens livres e escravos. homens e mulheres com direitos e atribuições distintas; crianças, jovens, adultos e idosos;Faixa etária Econômica Gênero Na Grécia antiga, a palavra “cidadania” se referia àquele que vivia na cidade, que participava de suas decisões. Cidade, em grego, tem o nome de polis. Como nos lembra a professora de filosofia Marilena Chauí (2002, p. 509), a pólis era a “[...] reunião dos cidadãos em seu territó- rio e sob suas leis. Dela se deriva a palavra política (politikós: o cidadão, o que concerne ao cidadão, os negócios públicos, a administração pública)”. Quando traduzido para o latim, o termo continuou a se referir ao espaço público em referência imediata a civitas, isto é, à cidade. O cidadão é aquele que está e participa da vida das cidades. SAIBA MAIS 82 3 Vivência profissional e construção da cidadania Resgatando em seu argumento as teses antigas, Arendt (1989, p. 46) postula que a na- tureza produz homens desiguais em cultura, gênero, condições físicas e psicológicas, estatura, cores e tons de pele. A regra do mundo é a desigualdade. A igualdade é, para a autora, um conceito resultado de uma construção coletiva da comunidade polí- tica, que estabeleceu um critério para garantir a todos da mesma condição o exercício autônomo dos direitos políticos pelo homem. Desde Aristóteles (384-322 a.C), perpetuado em sua obra Ética a Nicômaco, apren- demos sobre igualdade e desigualdade como fundamento da Justiça. Para o filósofo, apenas formalmente somos iguais. Hannah Arendt (1906-1975), filósofa alemã, dedicou-se à reflexão sobre as questões políticas e filosóficas de seu tempo, sobretudo, vinculada à formação dos Estados Modernos e seus processos de legitimidade. Arendt é autora de obras como: Origens do Totalitarismo (1951), A condição humana (1958), Sobre a revolução (1963), Eichmann em Jerusalém (1963). SAIBA MAIS Somos todos iguais perante uma lei que estabelece “Todos devem” ou “Todos podem” ou “To- dos são”; somos iguais perante uma regra que aponta que “todos terão os mesmos direitos de autodefesa”, ou seja, mandamentos formais uma vez que esses direitos, efetivamente, só alcançavam os homens livres (cidadãos) e não mulheres, crianças e escravos. Por isso, para ele, a igualdade está presente somente na realização e concretização da justiça artificial, ou seja, naquela criada por convenções e regras (promoção da igualdade). EXEMPLO No cotidiano, a regra da sociedade é a desigualdade. Essa é a condição da natureza. E, em um mundo de desigualdade, o único critério possível de justiça é a Equidade – redução das desigualdades. A equidade é o critério formal para minorar diferenças e estabelecer oportunidades concretas a todos, independentemente de suas diferenças que, para o filósofo, eram naturais. Nos últimos anos, vemos circular na internet e redes sociais ima- gens como esta, para descrever o que seria a verdadeira justiça. Quando a igualdade é colocada como parâmetro de justiça ela, ao invés de promover o bem para todos, amplifica as diferenças. Em uma situação em que o degrau tem a mesma altura para todos, somente aqueles que já têm naturalmente uma vantagem terão acesso ao benefício. Entretanto, quando percebemos as diferenças naturais, somos capazes de projetar uma rampa com alturas desiguais que permita que todos alcancem seu prêmio. Exemplo contemporâneo de uma forma de promoção de equi- dade são as políticas públicas de inclusão social – de deficien- tes, de gênero e raça, étnicas dentre outras. SAIBA MAIS Figura 04. Diferença entre igualdade e equidade Fo nt e: 1 23 R F 83 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania Contemporaneamente, as estatísticas nos revelam que a realidade das sociedades é de profunda desigualdade, não somente em relação às naturais e culturais, mas sobre- tudo em virtude das diferenças de acesso aos bens e patrimônios coletivos como traba- lho, educação, saúde e moradia. Isso nos coloca em reflexão contínua sobre o processo de consolidação da cidadania. 2.2. O CIDADÃO COMO DETENTOR DE DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS Quando Thomas Humphrey Marshall, sociólogo britânico, expôs sua teoria sobre ci- dadania, ele observou esta nova condição do membro da comunidade e postulou que [c]idadania é um status concedido àqueles que são membros plenos da co- munidade. Todos os que possuem o status são iguais no que diz respeito aos direitos e deveres com os quais o status é conferido. Não existe um princípio universal que determine quais devem ser esses direitos e deveres, mas sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimen- to criam uma imagem de uma cidadania ideal contra a qual as realizações podem ser medidas e para a qual as aspirações podem ser dirigidas. (MAR- SHALL, 1963, p. 87, tradução livre) Ao construir tal definição, o sociólogo estabeleceu o conceito de cidadania a partir de duas estruturas fundamentais: primeiro, a de que a cidadania é um status (sociologi- camente considerado) e, segundo, que os cidadãos devem ser titulares de deveres e direitos decorrentes dessa posição. Sobre a segunda dimensão, a sociedade contemporânea a caracteriza sob a expressão da cidadania democrática, construída por meio do modelo desenhado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos que pressupõe, ao menos, o exercício de três formas de cidadania (PINSKY; PINSKY, 2008, p. 9): I. A civil: que se refere às liberdades pessoais e aos direitos individuais; II. A política: que se trata da participação política e à representação democrática; III. A social: vinculada à intervenção do Estado na redução das desigualdades econômicas e promoção da justiça social – sobretudo por intermédio de políticas públicas e ações afirmativas. No Brasil, com o restabelecimento da república e do estado democrático após o período da ditadura militar, a marca simbólica e factual do estabelecimento desse status jurídico é a Constituição da República Federativa de 1988. No início da Constituição Federal, foi estabelecido um conjunto de princípios e diretri- zes, tais como princípios da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, além do pluralismo político. Esse conjunto é considerado como essencial para a manutenção do Estado e do poder do povo. Percebemos que, na lei constitucional, o aspecto social e o campo econômico dos 84 3 Vivência profissional e construção da cidadania princípios são pontos de destaque, motivo pelo qual a Constituição Federal recebe o apelido de “Constituição Cidadã”. Mais adiante, a Constituição inova em sua concepção de cidadania e incluiu, sobretudo, um rol de valores socioeconômicos expressos como Direitos Sociais – artigos 6° ao 11º –, colocando diretrizes concretas para efetivação no espaço público da cidadania. Fato é que a consolidação da cidadania exige a proteção estatal, mas só se concretiza se for acompanhada de um movimento de apropriação de valores e reconhecimento da importância da participação de todo e cada indivíduo em sua comunidade, a partir de ações da vida cotidiana. 2.3. A ATUAÇÃO PROFISSIONAL E A VIVÊNCIACIDADÃ: A RETOMADA DO PROTAGONISMO SOCIAL No caso do Brasil, o processo de consolidação jurídica democrática vem deixando claro que a percepção da cidadania é consequência, muitas vezes, de ação exclusiva do Estado, afastando, em um primeiro momento, a compreensão de que ela só se cria e concretiza na ação individualizada de cada ser humano, como membro de sua comuni- dade e ator nos espaços individuais e coletivos. Pensar dessa forma – que só sou cidadão se houver uma determinação externa do Estado, das leis – trouxe consequências muito sérias para a sociedade. A primeira foi o surgimento do que se denominou na literatura nacional de “cidadania de papel”, ou seja, um Estado que formalmente prevê todos os direitos que compõem o conjunto da cidadania, mas que, efetivamente, não os implementa (DIMENSTEIN, 2012, p. 58). Tal fato vem gerando um total desinteresse dos cidadãos por seus direitos e esse proces- so de consolidação, fazendo surgir o fenômeno da cidadania passiva, “[...] outorgada pelo Estado, se diferencia da cidadania ativa, na qual o cidadão, portador de direitos e deveres, é essencialmente criador de direitos para abrir novos espaços de participação política”. (VIEIRA, 2002, p. 40). “Cidadania de papel” é um termo derivado da interpretação do livro O cidadão de papel, do jornalista Gilberto Dimenstein (1956-2020). Nessa obra, escrita no início dos anos 1990, somos apresentados ao Brasil real dos contrastes. Analisando notícias divulgadas cotidianamente nos jornais da cidade, faz-nos refletir sobre como o país que tem uma das maiores economias do planeta se torna ao mesmo tempo um dos lugares mais socialmente injustos para se viver e indaga o porquê dos cidadãos não se revoltarem com tal situação, aceitando a condição da desigualdade como algo natural da sociedade. Uma de suas respostas é que vivenciamos uma cidadania passiva, existente só no papel. SAIBA MAIS A segunda forma de pensar seria o desvirtuamento da percepção dos homens como mem- bros de suas comunidades, deixando o papel de construtores de direitos para se tornarem consumidores de direitos (ROCHE, 1992, p. 31-32), visto que o Estado deixou de lado sua di- mensão de representatividade para ser provedor de direito, limitando-os aos seus interesses. 85 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania Com o intuito de retomar o protagonismo desse movimento de consolidação, no campo profissional, muitas ações vêm sendo implementadas para que os indivíduos (re)apren- dam a participar e se envolver em temas e decisões que são geradoras de bens coleti- vos e, muitas vezes, de benefícios individuais. Esse é um movimento que dá base para a chamada cidadania empresarial e são exemplos de ações: participação em fóruns de planejamento estratégico, em comissões de empresas – representantes, segurança do trabalho, compliance, dentre outras. Compreender o movimento histórico faz com que percebamos que a cidadania não é uma estrutura meramente formal, mas sim um desdobramento da continua busca pela realização do desejo homem de estar presente. Os juristas Wolkmer e Leite (2003, p. 23) comentam que, [p]or serem inesgotáveis e ilimitadas no tempo e no espaço, as necessida- des humanas estão em permanente redefinição e criação. Por consequên- cia, as situações de necessidade e carência constituem a razão motivadora e a condição de possibilidade do aparecimento de “novos” direitos. (WOLK- MER; LEITE, 2003, p. 23). Nessa perspectiva, então, não podemos afirmar que esse seja um rol fechado de ações de cidadania, pois, a cada dia, temos novas necessidades (por exemplo: na década de 1990, a Internet era uma tecnologia não popularizada; a partir dos anos 2000, ela passa a ser considerada como direito de acessibilidade e ganha um novo status, pois sabemos o quanto precisamos dela em nosso dia a dia). A cidadania ativa, assim, exige o que podem ser chamados mergulhos na realidade. Essa cidadania se manifesta em ações de responsabilidade social, trabalhos voluntá- rios junto a comunidades vulneráveis, discussões internas em organizações e institui- ções sobre diversidade e gestão da inovação, a revisão dos códigos de ética e conduta, com o estabelecimento claro de punições aos desvios e às práticas de discriminação e propagação de crimes de ódio e a mudança e a transformação dos ambientes pro- fissionais de modo a propiciar inclusão verdadeira são caminhos obrigatórios para o entendimento da cidadania no tempo presente. Dessa forma, a retomada do protagonismo implica em um compromisso com uma pos- tura participativa e não meramente consumista. A cidadania se realizará plenamente quando este for o direcionamento concreto da sociedade. A Cidadania do consumismo é um termo referenciado na literatura, usado para definir a pos- tura de cidadãos que escolhem não se envolver em decisões. Manziini-Crove (2007, p. 72-73) explica que “A proposta da cidadania da etapa atual permite abrir espaço para a retomada daquele exercício de cidadania [...], com a vantagem de que, agora, a sociedade tecnológica criou bens e condições de realmente atender a todos os homens do planeta. Isso depende de uma condição sine qua non – a de que os sujeitos precisam construir o possível nesse espaço aberto, lutando por todos os direitos do cidadão. E lembrando sempre: o que se reivindica tem relação íntima com o modo usado para reivindicar. SAIBA MAIS 86 3 Vivência profissional e construção da cidadania A polarização e a exteriorização das diferenças entre os povos, típicas da economia e política mundial contemporânea, colocou em questão, no final do século XX, o direito a sua autodeterminação (soberania). Isso significa apontar que o espaço da cidadania esteve em perigo, uma vez que se tornou um espaço de formalidade. A cidadania ativa implica que todo e qualquer cidadão saiba e reconheça que a garantia de direitos e o estabelecimento de deveres, depende de sua participação efetiva nos processos de melhoria e desenvolvimento de sua sociedade, de suas regras jurídicas e de sua profissão. A necessidade de incorporação de novas práticas, novas competên- cias e novos valores promotores de justiça social e bem comum tornam-se garantia da própria sobrevivência de determinados grupos sociais e culturais. O exercício dos direitos e a mensuração dos deveres é parâmetro objetivo para o de- senvolvimento de políticas de pertencimento profissional e, consequentemente, de re- conhecimento social. O status de cidadão hoje passa, necessariamente, pela análise de como nós atuamos e nos comportamos na execução de nosso trabalho – com princípios éticos, de transparência e sem corrupção – e em nossos espaços privados e públicos – com o respeito a toda e qualquer diferença. Figura 05. Mapa Conceitual - O espaço da cidadania A bandeira da luta da cidadania é transformar o cotidiano do trabalhador em algo bom, satisfa- tório, sob condições que respeitem a própria vida, dando chance também à questão do desejo – a identidade do indivíduo com as atividades que realiza [...]”. MANZINI-COVRE, Maria de Lourdes. O que é cidadania? São Paulo: Brasiliense, 2007. [Primeiros Passos] Fonte: elaborada pela autora Pertencimento a uma nação/sociedade Ações em espaços privados como residência, comunidade, família Realização individual de direitos e garantias fundamentais (vida, liberdade, autonomia privada, desenvolvimento individual) Participante do projeto social estabelecido na Constituição Federal Ações em espaços públicos coletivos, comunidades religiosas e profissionais Realização coletiva de direitos e garantias sociais (educação, transporte, lazer, segurança) Defesa das propriedades coletivas (direitos urbanos, cultura, esporte, limpeza, meio ambiente) Inclusão social: construção de ambientes coletivos inclusivos e acessíveis Cidadania econômica coletiva: combate à corrupção, elogia da transparência e respeito às regras de concorrência Gestão da diversidade: criação de projetos deintegra- ção e punição de crimes de ódio, de discriminação, de racismo e outros ambientes coletivos Cidania econômica individual: exercício dos direitos do consumidor (escolhas pessoais) e proteção contra abusos Cidadania política individual: participação nas decisões que impactam o seu cotidiano Respeito à individualidade e direito a ser quem se é (diversidade) Valorização da tolerância, da cultura de paz e do respeito ao outro em sua integridade Redução de desigualdades O ESPAÇO DA CIDADANIA Preservação de igualdade INDIVIDUAL COLETIVO 87 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania SOCIAL WATCH (Observatório da cidadania/social). Disponível em: https://www.socialwatch. org/es. Acesso em: 11 jun. 2022. Dados em inglês, espanhol e francês. Resumo: “Site da rede internacional de organizações de cidadãos na luta para erradicar a po- breza e suas causas, propondo ações e fornecendo dados necessários para acabar com todas as formas de discriminação e racismo, para garantir uma distribuição equitativa da riqueza e a realização dos direitos humanos. Analisa dados de responsabilidade dos governos, do sistema das Nações Unidas e das organizações internacionais no cumprimento dos compromissos na- cionais, regionais e internacionais de erradicação da pobreza”. SAIBA MAIS Filme ou Documentários ` VIDAS Descartáveis, de Alexandre Valenti e Alberto Graça � Sinopse: O documentário lança olhar para a precariedade do trabalho no Brasil, a partir de situações reais. A temática da escravidão aparece, também, no modo como ela se dá na atualidade, ao ser considerado um conjunto de situações de trabalho degradante, seus processos de produção e consequente exclusão da cidadania – seja na cidade ou no campo, sempre considerando a busca dos trabalhadores por melhoria de vida. Tam- bém é analisada a responsabilidade das empresas e dos profissionais. ` O MENINO que descobriu o vento (The Boy Who Harnessed the Wind), de Chiwetel Ejiofor � Sinopse: “O filme, disponível em plataformas de streaming, é baseado em uma história real retratada no livro “O menino que descobriu o vento”. Trata-se da histó- ria real de Willian Kamkwamba, morador do Malawi, país litorâneo do sudeste da África, que sofre com as inconstâncias do tempo indo da extrema seca até a inten- sidade das chuvas. O aluno, em um período de grande problema econômico, é obri- gado a abandonar a escola. Entretanto, curioso e autodidata, ele continua estudan- do e descobre uma forma de construir um sistema de irrigação em seu povoado”. O MENINO que descobriu o vento (The Boy Who Harnessed the Wind). Drama. Direção e Roteiro: Chiwetel Ejiofor. EUA, Malawi, França, Reino Unido, Netflix Filmes. 1h 53min. Textos Complementares ` Educação para a cidadania democrática: Desafios, impasses e perspectivas, de Luís Fernando Santos Corrêa da Silva e Egidiane Michelotto Muzzato � Resumo: “O presente artigo tem como objetivo discutir as intersecções contemporâneas entre a cidadania e a democracia, sobretudo no que concerne ao papel da educação para a consolidação de ambas. Resgata-se o debate teórico e conceitual sobre os desafios e os impasses da cidadania e da democracia na contemporaneidade, bem como enfatiza-se as https://www.socialwatch.org/es https://www.socialwatch.org/es 88 3 Vivência profissional e construção da cidadania características de um modelo específico de cidadania, mais ativa e substantiva, que é a ci- dadania democrática. Tal modelo fundamenta-se em três pilares que devem integrar o currí- culo escolar: a) o pensamento crítico, b) a cidadania universal, c) a capacidade imaginativa. Entende-se que a construção da cidadania democrática depende de uma formação hu- mana plural, de modo a superar o utilitarismo técnico e econômico. Surge daí a impor- tância da presença das ciências humanas, da filosofia e das artes no currículo escolar, dado o caráter crítico e desnaturalizador dessas áreas do conhecimento”. MUZZATTO, Egidiane Michelotto; SILVA, Luís Fernando Santos Corrêa da. Educação para a cidadania democrática: desafios, impasses e perspectivas. Educação. Porto Ale- gre, Porto Alegre, v. 44, n. 1, e32656, enero 2021 . Disponível em <http://educa.fcc.org. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-25822021000100004&lng=es&nrm=iso>. Acesso em: 11 jun. 2022. ` Ética, cidadania e cidadania organizacional: conceito, trajetória e alguns direitos e deveres relacionados, de Nelson Lambert de Andrade � Resumo: “Este artigo aborda os conceitos e bases históricas a respeito da cidadania, seus diversos direitos e deveres relacionados e a cidadania organizacional dentro do mundo empresarial. O objetivo deste trabalho foi demonstrar que a cidadania atual- mente está ligada aos direitos humanos, deveres impostos pelas constituições de cada país, e no mesmo sentido a cidadania aplicada dentro das organizações, que são uma extensão da sociedade, onde os colaboradores têm direitos e deveres que precisam ser gerenciados com ética para um convívio harmônico no ambiente de trabalho”. DE ANDRADE, N. (2020). ÉTICA, CIDADANIA E CIDADANIA ORGANIZACIONAL: CONCEITO, TRAJETÓRIA E ALGUNS DIREITOS E DEVERES RELACIONADOS. Re- vista Científica E-Locução, 1(18), 13. Recuperado de https://periodicos.faex.edu.br/in- dex.php/e-Locucao/article/view/278 3. É PRECISO CUIDAR! 3.1. O HOMEM E O MEIO AMBIENTE Nas últimas décadas, a preocupação com a questão ambiental ganhou espaço nas discussões internacionais e suscitou discussões intensas tanto em nível global como lo- cal. Identificar responsabilidades em relação ao meio ambiente, acerca de temas como exploração e preservação da natureza e sustentabilidade, passou a fazer parte do coti- diano das pessoas, das empresas e das nações. Nesse sentido, entendemos, na atualidade, que se portar como um cidadão conscien- te inclui assumir uma postura ética diante de questões relacionadas não apenas às relações humanas, mas também em relação a todo o meio que nos cerca, incluindo a natureza e os animais. http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-25822021000100004&lng=es&nrm=iso http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-25822021000100004&lng=es&nrm=iso https://periodicos.faex.edu.br/index.php/e-Locucao/article/view/278 https://periodicos.faex.edu.br/index.php/e-Locucao/article/view/278 89 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania ` POR UMA CIDADANIA AMBIENTAL Quando começamos a nos preocupar com a natureza e o meio ambiente que nos cerca? A resposta, se colocada in- dividualmente, percorreria toda a histó- ria, em maior ou menor medida. Sem- pre houve indivíduos que refletiram e se preocuparam com o meio, a natureza e os animais. No entanto, ao colocarmos o mesmo questionamento para o cole- tivo de cidadãos, encurtaríamos esse intervalo de tempo para um período que se iniciaria em finais do século XIX e que percorreria todo o século XX, che- gando aos dias atuais. Partindo desse recorte é que poderíamos apontar a projeção de uma cidadania ambiental. Figura 06. Consciência ecológica Fo nt e: 1 23 R F Pode-se apontar que “[...] a noção de cidadania ambiental pressupõe o estabelecimento de uma relação mais harmoniosa com a natureza. Essa postura deve estar presente em toda a extensão da vida cotidiana, com cada cidadão exercitando sua responsabilidade ambiental em toda a ocasião que estiver manipulando bens e materiais, buscando a fina- lidade mais ecológica possível em cada atitude adotada no seu dia a dia e com consci- ência do impacto que os mais simples procedimentos podem provocar no meio natural”. (WALDMAN apud PINSKY; PINSKY, 2005, p. 557, grifo nosso) GLOSSÁRIO Tal questionamento tem relação direta com o advento da Revolução Industrial no século XVIII. As modificações produzidas sobre o meio natural se tornaram muito mais intensas e criaram formas de exploração que, ao longo dos séculos, deixaram fortes impactos na natureza. Florestasforam derrubadas, rios e mares foram poluídos, espécies foram extintas, solos foram contaminados e grande parte desses recursos naturais ainda se encontra degradada. Acrescenta-se, ainda, em decorrência da rápida industrialização, a queima intensiva de combustíveis fósseis, a destruição da camada de ozônio e o efei- to estufa que vem alterando as condições climáticas nos últimos séculos. Nas últimas décadas, têm ocorrido inúmeras mobilizações internacionais voltadas para a discussão de uma ética ambiental. Um dos pontos de referência sobre o tema ocorreu no Brasil, em 1992, no Rio de Janeiro: a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Eco 92. O evento teve um impacto importante nas discussões e resultou na proposta da Agenda XXI, que tinha como prerrogativa apresentar medidas para se estabelecer uma melhor forma de interação com o meio ambiente, além de projetar meios de se realizar um consumo mais sustentável. 90 3 Vivência profissional e construção da cidadania A partir desse evento, a sustentabilidade se converteu em um conceito extremamente importante e cotidiano. Governos passaram a projetar políticas públicas que visassem atingir tais medidas, além de inúmeras empresas começaram a se preocupar com o ali- nhamento de seus processos produtivos a medidas eco sustentáveis, adotando assim posturas éticas em relação ao meio ambiente. A constituição brasileira de 1988, em seu capítulo VI, artigo 225, estipula alguns pontos em relação ao meio ambiente, no entanto, uma legislação mais específica encontra-se dividida em áreas distintas (biossegurança, agrotóxicos, crimes ambientais etc.), sendo um dos mais importantes o denominado “código florestal”, Lei 12.651, de 2012. O acordo de Paris – 2015 Mais recentemente, em 2015, aconteceu a COP21, a 21ª Conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, em Paris. Nesse encontro foi firmado o Acordo de Paris, no qual os governos dos países participantes estabeleceram metas de redução de gases que provo- cam o efeito estufa a partir de 2020. O acordo foi discutido por 195 países e entrou em vigor em novembro de 2016, sendo o Brasil um de seus signatários. Sobre a relação entre capitalismo e meio ambiente “Uma das principais fontes de tensão con- temporânea ao desenvolvimento do capitalismo está justamente na dificuldade em relacionar tempos diferentes. A racionalidade produtivista de sociedade de consumo é incompatível com as diversas temporalidades que integram os sistemas naturais. Enquanto máquinas deman- dam energia e matéria-prima sem parar, os ambientes naturais possuem um ritmo mais lento para absorver os dejetos da produção e para repor a base material da existência”. (RIBEIRO apud PINSKY; PINSKY, 2005, p. 413). CURIOSIDADE PARA REFLETIR É importante destacarmos que, em um mundo capitalista que passa por um exponencial crescimento demográfico e urbano, equilibrar produção, consumo e meio ambiente não é uma tarefa fácil. Nesse sentido, a proposição de uma formação consciente e ética de uma cidadania em relação ao meio ambiente se apresenta como uma demanda urgente. Hoje, além da preocupante questão da escassez de água, que já é uma realidade em diversas partes do mundo, tema que tem trazido à tona a necessidade do uso cons- ciente da água, outra preocupação é em relação à adoção de uma ética sustentável no consumo de energia, mais especificamente, em referência a quais fontes de energia utilizamos: renováveis ou não renováveis. Fontes não renováveis como o petróleo e o carvão mineral, extremamente poluentes, vêm sendo substituídas por outras fontes de energia renováveis e limpas, como a energia eólica, a solar e a hídrica. O Brasil obtém grande parte de sua energia por meio das hi- 91 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania drelétricas. Porém, durante o período das secas, que têm sido impactos recorrentes das mudanças climáticas dos últimos anos, a utilização das termelétricas em tem crescido. Assumir posturas éticas em relação ao meio ambiente, muitas vezes, implica custos mais elevados. Assim, construir uma cidadania ambiental ética deve pressupor um es- forço generalizado que envolva as pessoas, o Estado e as empresas privadas. Todos precisam estar alinhados na projeção de uma produção em consonância não somente com o meio ambiente, mas também com a realidade econômica dos indivíduos de uma em determinada região ou país. Promover tal condição é abarcar, de forma mais ampla, uma sustentabilidade que seja tanto ambiental como socioeconômica. Dentro das preocupações ambientais, dois termos são ressaltados com relação ao que concerne à interação entre o homem e a natureza: preservacionismo e conservacio- nismo. Os termos, muitas vezes, são utilizados de forma incorreta e não são sinônimos. Enquanto o preservacionismo se preocupa em salvar ecossistemas, espécies, biomas etc., sem levar em consideração interesses econômicos que eles podem vir a render, o conservacionismo pressupõe a proteção e a conservação, mas permitindo a integração do homem com a natureza. Nessa leitura, o preservacionismo compreende que o homem é uma ameaça à nature- za e propõe que ela seja isolada, por exemplo, em áreas de preservação permanente (manguezais, nascentes de rios e córregos, mata ciliar etc.). Já o conservacionismo de- fende uma integração e um desenvolvimento sustentável entre o homem e a natureza, por meio de parques ecológicos e áreas de conservação (Parque Nacional do Iguaçu, Parque Nacional da Chapada dos Guimarães etc.). A temática da interação entre homem e natureza atingiu também, nos últimos anos, todo o mercado de trabalho e apontou a necessidade de se pensar não apenas sobre as posturas das empresas, mas também exigiu posicionamentos éticos de seus funcio- nários. Dessa forma, a temática de uma cidadania ambiental vem se desdobrando para além da vida privada dos indivíduos e, com o seu desenvolvimento, fez surgir nomen- claturas para essas relações; agora podemos acompanhar o avanço de funcionários e empresas sustentáveis. 92 3 Vivência profissional e construção da cidadania 3.2. POR UMA ÉTICA ANIMAL: O ANIMAL HUMANO E OS ANIMAIS NÃO HUMANOS A preocupação com o meio ambiente e uma prática de vida mais sustentável se estendeu à forma como lidamos com os animais. Ao longo do século XX, e princi- palmente no século XXI, a questão animal foi ganhando contornos amplos, desde perspectivas filosóficas até questões re- lacionadas ao mundo do direito, como a Lei 9.605/1998, que no Capítulo V, Seção I, dos crimes contra a fauna, artigo 32, estipula punições para crimes cometidos contra animais silvestres, domésticos ou domesticados. Três nomes são realçados nessa discussão: o filósofo australiano Peter Singer, o filósofo americano Tom Regan e o ativista, também americano, Henri Spira. Figura 07. Relação humano e não-humano Fo nt e: 1 23 R F ` LIBERTAÇÃO HUMANA, LIBERTAÇÃO ANIMAL Um dos marcos das mudanças acerca da preocupação com a questão animal está as- sociado à publicação do importante livro de Peter Singer, Libertação Animal, de 1975. Na obra, Singer estabelece uma leitura importante sobre a ética animal. Partindo da concepção de especismo, o autor aponta que a diferenciação e a discriminação entre os seres vivos acontecem apenas porque eles pertencem a outras espécies. Ele ainda pontua que as formas de sentir e sofrer, de escravizar e matar deveriam ser colocadas como proibidas de forma igualitária para todos os seres. Peter Singer, dessa forma, afirma que escravizar animais para a alimentação é injustificável e fere uma ética animal que precisa ser levada em consideração, visto que fere e mata um outro ser vivo, uma outra espécie. Singer avançou em suas proposições em outras obras, sempre pensan- do a relação entre as espécies animais (incluindo os humanos), a ética e a moral. Outro texto basilar para a temática é The Case for Animal Rights (1983), de Tom Regan,lançado em 1983. A proposta de Regan, difere da proposta de Peter Singer (este, que segue uma vertente de defesa dos animais não humanos de acordo com a filosofia utilitarista): Regan propõe uma leitura de que a ética deve se assentar na análise das ações que compreende como boas quando elas causam a felicidade e más, caso tenha como consequência o sofrimento. Essa concepção ética pode ser denominada de “con- sequencialismo”, visto que propõe uma abordagem diretamente associada ao direito. Singer avalia que a possibilidade de se utilizar animais em alguns experimentos cien- tíficos é válida, o que Tom Regan rejeita, já que aborda uma perspectiva em que os direitos deveriam se equivaler. Apesar de ambos abordarem uma perspectiva da ética animal, Regan advoga, por meio de uma visão de direitos ampla, a total abolição dos animais em relação a qualquer tipo de exploração humana, enquanto Singer concede algumas permissões que ele entende como éticas. 93 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania Outra questão bastante em voga na atualidade, mas que ganhou repercussão a partir da década de 1980, refere-se à vivissecção (que consiste em realizar uma cirurgia – dissecação – em um ser ainda vivo com a finalidade de analisar o funcionamento do seu organismo interno) e os testes farmacêuticos e industriais realizados em animais. Neste ponto, o nome de maior evidência é o do ativista Henri Spira que, desde a déca- da de 1950, se tornou um importante ativista dos direitos civis e, posteriormente, dos direitos animais. Realizando uma série de manifestações públicas nos Estados Unidos, Spira criticava fortemente a utilização de animais em testes científicos. Na busca por ampliar a discussão, na década de 1970, o autor supracitado trouxe ao co- nhecimento público o modo como muitos desses testes ocorriam, o que gerou uma am- pla comoção popular e fez com que diversas empresas nos Estados Unidos passassem a rever seus métodos. Spira é o fundador da organização Animal Rights International, criada com o objetivo direto de expor e pressionar as empresas que utilizavam animais em testes. Essas proposições, aliadas a uma série de questões ambientais e de saúde, contribuíram para um crescimento exponencial do vegetarianismo e do veganismo nas últimas décadas. Simplificadamente, o vegetarianismo propõe uma alimentação isenta de produtos animais, já o veganismo (compreendido por muitos como uma filosofia de vida) pressupõe uma alimentação e um estilo de vida sem qualquer tipo de produto ou alimento de origem animal ou que cause algum dano a esses seres. Ambas as práticas possuem inúmeras ramificações. No entanto, o ponto que frisamos é que a preocupação com os animais e com o meio ambiente como um todo tem acarre- tado uma série de transformações na forma de se viver e entender nossa relação com o mundo que nos cerca. Para se aprofundar um pouco mais na proposição de Tom Regan e sua relação com a ética, leia o trecho abaixo retirado do recomendado artigo de Gabriela Dias de Oliveira, A teoria dos direitos animais humanos e não-humanos, de Tom Regan. “O que impele o trabalho de Tom Regan é a intuição de que algo vai mal com a moralidade humana. Não se trata de uma alar- mista ‘crise de valores’, mas de algo um tanto mais alarmante: uma profunda incoerência de princípios de valoração no seio do sujeito moral humano. Velha fórmula de injustiça: dois pesos, duas medidas. Na trapaça quem perde são os animais, mas não perdem menos os humanos a eles assemelhados. Ao apresentar-se como advogado da causa dos animais, Regan tem em mira os preconceitos que envolvem o próprio estatuto moral da vida humana; é por isso que, no trabalho intelectual por ele empreendido, não está em jogo apenas a inclusão dos animais no âmbito da moralidade humana, através do redimensionamento das relações entre animais humanos e não-humanos, mas a própria fundamentação dos direitos humanos”. (OLIVEIRA, 2004, p. 283) Fonte: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/view/14917/13584. Acesso em: 11 jun. 2022. SAIBA MAIS https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/view/14917/13584 94 3 Vivência profissional e construção da cidadania Posto isso, podemos sublinhar que nos concentramos, aqui, em apontar alguns di- recionamentos para que aprofundamentos possam ser feitos, posteriormente. As questões que trouxemos, brevemente, nesta unidade, estão na pauta do dia das discussões contemporâneas. Ao pensar sobre meio ambiente, sustentabilidade, direitos animais etc., somos levados diretamente a refletir sobre a forma como nos portamos e interagimos com o mundo que nos cerca. Nesse sentido, ser um cidadão hoje inclui ser um agente de direitos e deve- res, mas também um indivíduo em constante transformação diante das mais diferentes demandas que vão surgindo. Ser um cidadão de direitos e ser alguém que se preocupa em garantir direitos aos outros e, como vimos, a outros que podem ser inclusive de espécies diferentes da humana. A preocupação em adotar posicionamentos éticos é, cada vez mais, uma demanda na atualidade e envolve não apenas outros seres humanos, mas também o meio ambiente e as outras espécies que habitam o mundo. Para uma maior definição sobre os termos vegetarianismo e veganismo, veja como a Socie- dade Vegetariana Brasileira apresenta as diferenças: “Vegetarianismo é o regime alimentar que exclui os produtos de origem animal. A SVB re- conhece variações de interpretação do termo por causa do dinamismo da linguagem. Os principais tipos de vegetarianismo são: a. Ovolactovegetarianismo: utiliza ovos, leite e laticínios na sua alimentação. b. Lactovegetarianismo: utiliza leite e laticínios na sua alimentação. c. Ovovegetarianismo: utiliza ovos na sua alimentação. d. Vegetarianismo estrito: não utiliza nenhum produto de origem animal na sua alimentação. O veganismo, segundo definição da Vegan Society, é um modo de viver (ou poderíamos chamar apenas de “escolha”) que busca excluir, na medida do possível e praticável, todas as formas de exploração e crueldade contra os animais - seja na alimentação, no vestuário ou em outras esferas do consumo”. Fonte: https://www.svb.org.br/vegetarianismo1/o-que-e. Acesso em: 11 jun. 2022. GLOSSÁRIO https://www.svb.org.br/vegetarianismo1/o-que-e 95 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania Figura 08. Mapa Conceitual - Ética, cidadania e meio ambiente Fonte: elaborada pelo autor Sustentabilidade Ética e Cidadania Teses de laboratório Vivisecção Ética animal Cidadania Ambiental Posturas Diárias Empresas e funcionários sustentáveis Vegetarianismo Veganismo Filosofia Ato político Ações no presente e para o futuro Fontes de energia renováveis Capitalismo ECO-92 Poluição Agenda XXI Políticas Públicas Estado Conservadorismo e Preservacionismo Industrialização Fontes de energia não-renováveis No intuito de propiciar outros materiais que acrescente ao seu repertório de discussões sobre a cidadania ambiental e a ético ecológica, indicamos 3 vídeos recomendados para ouvir outros especialistas e suas articulações com o tema, sugestões de reflexões e posicionamentos éticos. ` SINGER, Peter. O status moral do sofrimento. Vídeo (3min 29s). Postado pelo canal Fonteiras do Pensamento. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lw74Q2w- 7NHE&t=1s. Acesso em: 13 jun. 2022. ` SINGER, Peter. Mudança climática é uma questão ética. Vídeo (2min 48s). Postado pelo canal Fonteiras do Pensamento. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2Ea- GQfbKtOE. Acesso em: 13 jun. 2022. ` O AMANHÃ é hoje Link. Vídeo (23min 10s). Postado pelo canal O amanhã é hoje. Dis- ponível em: https://www.youtube.com/watch?v=azrnx55oawQ. Acesso em: 11 jun. 2022. SAIBA MAIS Filme ` Okja, de Bong Joon-ho � Sinopse: O filme Okja é uma narrativa que parte de um olhar da infância para abordar temas concernentes aos impactos de uma sociedade capitalista de consumo desenfreado e, portanto,pouco consciente dos impactos sobre o meio ambiente. Partindo da relação entre uma menina (Mihka) e um animal fictício, Okja, (um superporco) com quem ela man- tém uma relação de amizade, o filme nos apresenta o conflito entre a indústria da carne https://www.youtube.com/watch?v=lw74Q2w7NHE&t=1s https://www.youtube.com/watch?v=lw74Q2w7NHE&t=1s https://www.youtube.com/watch?v=2EaGQfbKtOE https://www.youtube.com/watch?v=2EaGQfbKtOE https://www.youtube.com/watch?v=azrnx55oawQ 96 3 Vivência profissional e construção da cidadania e as preocupações por uma ética animal. Quando o animal é sequestrado pela líder de uma dessas indústrias, inicia-se uma trajetória de resgate por parte da jovem Mihka. A jor- nada apresentada de forma fabular problematiza não apenas o consumo exagerado, mas também a falta de uma perspectiva ambiental diante desse consumo. Também mostra as falsas narrativas de uma preocupação ambiental, que são apresentadas pela empresa que sequestra Okja, ou seja, aborda a necessidade de exigir medidas sustentáveis e a importância de se analisar criticamente o objetivo por trás de tais medidas. A preocupação com o meio ambiente e a adoção de medidas mais sustentáveis, como apon- tado ao longo da unidade, se tornou uma pauta recorrente na atualidade. No entanto, não somente as empresas têm pensado na adoção de políticas ambientais como parte de seus valores, mas também o próprio mercado profissional tem começado a apontar nesse sentido. Diante disso, ser um funcionário que preza por medidas sustentáveis e que as pratique vem se tornando uma demanda crescente no mercado de trabalho. Leia o excerto abaixo e veja como as empresas têm destacado tais elementos como pressupostos cada vez mais impor- tantes na contratação de seus funcionários e no cotidiano do exercício do trabalho. “Agora, as organizações começam a perceber que não existem empresas sustentáveis sem pessoas sustentáveis. Neste novo cenário, os departamentos de Recursos Humanos con- quistam ainda mais espaço e enfrentam o desafio de se atualizar constantemente diante da necessidade de incorporar os valores da sustentabilidade na rotina da empresa e dos funcio- nários. Esta necessidade criou o conceito de funcionário sustentável, que é comprometido com a cultura de responsabilidade ambiental da empresa e da sociedade. Muito valorizado atualmente, este profissional é adepto do chamado ‘gerenciamento verde’, ou seja, adota ati- tudes simples para preservar o meio ambiente e evitar desperdícios, dentro e fora do trabalho”. Fonte: https://msarh.com.br/blog/o-funcionario-sustentavel/. Acesso em: 11 jun. 2022. Caso de aplicação 2 97 3 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Nelson Lambert de. Ética, cidadania e cidadania organizacional: conceito, trajetória e alguns di- reitos e deveres relacionados. Revista Científica E-Locução, [S. l.], v. 1, n. 18, p. 13-23, dez. 2020. Disponível em: https://periodicos.faex.edu.br/index.php/e-Locucao/article/view/278. Acesso em: 7 jan. 2021. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo – Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Trad. Roberto Ra- poso. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. CHAUI, Marilena. Introdução à história da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. Vol 1. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. DIMENSTEIN, G. O cidadão de papel: a infância, a adolescência e os Direitos Humanos no Brasil. 24.ed. São Paulo: Ática, 2012. FUNARI, Pedro Paulo. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2005. 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Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. São Paulo: Editora Claro Enigma, 2012. E-book. SILVA, Luís Fernando Santos Corrêa da; MUZZATO, Egidiane Michelotto. Educação para a cidadania demo- crática: Desafios, impasses e perspectivas. Educação, [S. l.], v. 44, n. 1, p. 1-15, jan./abr. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1981-2582.2021.1.32656. Acesso em: 7 jan. 2021. SINGER, Peter. Libertação Animal. São Paulo: Martins Fontes, 2010. VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. São Paulo: Editora Record, 2002. WOLKMER, Antonio Carlos.; LEITE, José Rubens Morato. Os “novos” direitos no Brasil – Natureza e perspec- tivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. https://doi.org/10.5007/%25x 98 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho UNIDADE 4 O DIVERSO E O DESIGUAL – QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS E O ÂMBITO DO TRABALHO INTRODUÇÃO Diferentemente do que acontecia há décadas, quando a sociedade tinha estabelecido certos valores e ideais como inquestionáveis, a respeito dos lugares sociais a serem ocupados a partir de diferenças, como o gênero, no século XXI vivemos um ambiente social que, após questionamentos e lutas, parte de uma outra consideração, a saber, a de que todos temos os mesmos direitos em sociedade, ainda que sejamos diversos. A sociedade exige que o âmbito profissional assuma posicionamentos adequados a esta contemporaneidade. Significa que, não importa qual área de formação seja escolhida, é imperativo fazer valerem os direitos sociais. Nesta unidade, o objetivo é problematizar os temas da igualdade e da diferença, pen- sando a partir do ideal de uma formação profissional adequada ao tempo presente. Raça e gênero são categorias centrais, a partir das quais se torna possível pensar em situações de exclusão social. É importante lembrar que a diferença não pode justificar a desigualdade. As questões que se originam a partir de tais temáticas tocam, diretamen- te, o âmbito profissional. Empresas, hospitais, escolas, hotéis... em todos os lugares da profissão surgem problemas de desigualdade; mesmo na rua, enquanto cidadãos, os profissionais devem agir de forma ética, para a construção de um mundo melhor, que seja menos excludente. E isto é possível! Necessária é a disposição. 1. SER DIFERENTE É SER DESIGUAL? 1.1. AS DESIGUALDADES RACIAIS NO BRASIL Sabemos que a formação do povo brasileiro é constituída pela diversidade de culturas e grupos étnico-raciais. Antes mesmo da colonização, habitavam por aqui, em média, 8 milhões de indígenas divididos em quase mil nações distintas entre si (CUNHA, 2012, p. 16-17). A chegada dos europeus e o processo de colonização portuguesa, fundado na escravidão e na inferiorização de povos negros originários de países africanos, instituiu novos elementos à formação brasileira, constituindo as bases da sociedade que, desde então, têm se construído. O estabelecimento dessa sociedade e da identidade da população brasileira nascem, assim, de um amálgama de culturas, etnias, crenças e costumes diversos, os quais nos caracterizam como um dos povos mais miscigenados do mundo. Essa formação não se deu de forma pacífica, mas, sim, violenta, conflituosa e marcada pela discriminação sis- 99 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Éticae Cidadania temática de grupos sociais inteiros, levando, inclusive, ao extermínio de povos e etnias ao longo dos últimos séculos e até nos dias atuais. Se por um lado, então, a diversidade e a diferença estão nas raízes da nossa for- mação, por outro, é certo que a história e a realidade brasileira são marcadas pela desigualdade e discriminação, em particular contra grupos étnico-raciais, isto é, de origens indígenas e negras. Com isso, percebemos que as diferenças entre as pessoas e os grupos, a partir da perspectiva racial, constituíram-se em desigualdade de oportunidades e acesso à cida- dania plena, revelando a profunda exclusão racial, o racismo e a falta de diversidade étnico-racial em diferentes espaços da sociedade, entre eles, no mercado de trabalho e no acesso desigual aos bens, serviços e direitos sociais e econômicos. Uma das definições para “amálgama”, segundo o Dicionário Michaelis, refere-se à mistura ou ajuntamento de coisas ou pessoas diferentes que formam um todo, uma mescla. Nesse sentido, a cultura brasileira resultaria da fusão entre outras culturas de povos e grupos étni- co-raciais distintos, constituindo-se como uma cultura miscigenada e única. Essa tese produziu ao menos dois grandes debates nas ciências humanas: de um lado, a ideia de que na sociedade brasileira se estabeleceu efetivamente a integração racial, diferen- temente de países como Estados Unidos e África do Sul, que são marcados pela segrega- ção, ou seja, pela separação entre os grupos étnico-raciais. Essa é a perspectiva central da obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, uma das referências nas Ciências Sociais e que teve grande impacto entre intelectuais e políticos na própria cultura brasileira, principalmente na primeira metade do século XX. Por outro lado, a ideia de a cultura brasileira ser uma mistura de outras culturas acabou por camuflar o reconhecimento das profundas desigualdades e das práticas discriminatórias e ra- cistas que marcaram a realidade, servindo para a criação do mito e, posteriormente, da ideolo- gia de que a sociedade brasileira, por ser miscigenada, seria, de fato, uma democracia racial. Essa última abordagem tem sido desenvolvida, ao longo da segunda metade do século XX até os dias atuais, graças à força e às demandas dos movimentos negros, mas também de intelectuais, como Florestan Fernandes. Na obra Significado do Protesto Negro, publicada pela primeira vez em 1989, Fernandes afirma que o racismo é um dos males da formação brasileira e está entranhado nas instituições sociais, de forma que não é possível pensarmos em uma efetiva democracia brasileira enquanto não houver plena igualdade racial. IMPORTANTE 100 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho a. A DIFERENÇA COMO UM DADO DE CLASSIFICAÇÃO Há distintas teorias sobre a origem eti- mológica da palavra raça, mas, de modo geral, um ponto de concordância é que o termo surge primeiro como forma de classificação das plantas e animais para, posteriormente, também classificar e hie- rarquizar os seres humanos. Essa noção de raça como um elemento que distingue as diferentes categorias de seres, a par- tir das suas diferenças físicas, é relativa- mente nova na história da humanidade, remontando ao século XVI (ALMEIDA, 2019, [n. p.]). Em um primeiro momento, esse recurso servia para categorizar e classificar a diversi- dade humana, afinal, esta é incontestável. Há diferenças visíveis entre um oriental e um senegalês ou entre um indígena sul-americano e um norueguês ou, ainda, entre um aborígene australiano e um pigmeu africano. A diversidade humana é visível, entretan- to, não compõe elementos suficientes para a distinção biológica em raças. Figura 01. Diversidade humana Fo nt e: 1 23 R F. Enquanto a noção de raça funciona como a categorização das pessoas a partir das característi- cas físicas/biológicas, a noção de etnia, por sua vez, fundamenta-se no compartilhamento de uma mesma cultura, língua, religião e ancestralidade por um povo que o diferencia dos demais grupos. O uso de referenciais étnicos como forma de classificação de indivíduos e grupos assume maior importância após a Segunda Guerra Mundial, como oposição à noção de raça e aos hor- rores dos ideais de limpeza racial produzidos pelo holocausto. Buscava-se definir as diferenças entre os povos não mais pela raça, mas pela cultura. O professor e filósofo Kabengele Munan- ga (2004, [n. p.]) afirma que tal mudança, entretanto, não significou o fim do racismo, uma vez que também funciona como uma forma de hierarquização e classificação. IMPORTANTE Categorizar as pessoas e os grupos servia ao pensamento como forma para facili- tar a compreensão da enorme diversidade humana. O reconhecimento das diferen- ças entre os seres humanos, entretanto, desembocou na hierarquização dos diver- sos grupos com base na raça à qual pertenciam, dando origem às teorias racistas, à discriminação e servindo como justificativa para a exploração de um grupo sobre outro. Tais teorias buscavam atribuir causas naturais às desigualdades que são social e historicamente produzidas. 101 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania Com o desenvolvimento da genética e da antropologia, essa noção biológica da raça perde sua validade. Geneticamente, tem-se as diferenças entre cor de pele, tamanho do nariz, dos lábios ou do crânio, tipo de cabelo, estatura etc. – elementos esses que serviam como base para a classificação das pessoas em brancas, negras e amarelas. Porém, essas características são muito pequenas para que possamos considerar a distinção dos grupos humanos em raças específicas. A ciência hoje comprova que pode haver uma maior variedade genética no interior de um mesmo grupo, ao passo que as diferenças entre um congolês e um alemão podem ser mínimas. Prática e teoria são dois aspectos que convergem para a construção da realidade, inclusive quando falamos de discriminação ou racismo. Qual o impacto das teorias raciais na constru- ção de práticas racistas? A antropóloga Lilia Schwarcz explica, neste breve vídeo indicado a seguir, a origem e os impactos concretos da entrada das teorias raciais na sociedade brasileira. SCHWARCZ, Lilia. A entrada das teorias raciais no Brasil. Vídeo (6min 11s). Postado no Canal Lili Schwarcz. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=93f7nkbD7tY. Acesso em: 13 jun. 2022. SAIBA MAIS Você sabia que entre um grupo de mil chimpanzés, em um parque da Nigéria, há mais variabilidade genética do que entre os 7 bilhões de humanos? O biólogo e pesquisador Átila Iamarino trata des- sa questão e de outros temas importantes que demonstram como o desenvolvimento das teorias sobre a raça humana utilizaram-se da ciência para justificar formas de exploração e desigualdade que não eram naturais, mas, sim, sociais. Verifique o vídeo do estudioso, explicando sobre essa temática, referenciado abaixo: IAMARINO, Átila. Qual a raça do brasileiro? Vídeo (16min 36). Postado no canal Atila Iamarino, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DBC29cUHxYg&-t=272s. Acesso em: 11 jun. 2022. SAIBA MAIS b. A CATEGORIA RAÇA EM QUESTÃO Tão visível aos olhos de todos, a diversidade humana não corresponde às diferenças genéticas profundas que justifiquem a divisão das pessoas em grupos menores ou em raças. Há mais similaridades biológicas/genéticas entre os seres do que diferenças. Podemos, portanto, concluir que o conceito de raça na atualidade perdeu sua validade? Sim e não. Do ponto de vista da ciência biológica, a partir dos conhecimentos que hoje possuímos, não faz sentido dividir a humanidade em outras subdivisões como raças, pois as diferenças internas na espécie humana são muito pequenas. Ou seja, usada https://www.youtube.com/watch?v=93f7nkbD7tY 102 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho durante séculos como um conceito para explicar a diversidade humana, a noção de raça não se sustentacomo realidade biológica e, portanto, não possui validade biologi- camente científica. Por outro lado, se a categoria raça não existe enquanto realidade biológica, ela existe como construção social, como elemento de distinção, classificação e hierarquia nas diferentes sociedades. Além disso, a identificação do indivíduo a uma das raças, ou mesmo às etnias, é um importante elemento de constituição da sua identidade social e do sentimento de pertencimento. Raça não é um termo fixo e estático. Seu sentido está inevitavelmente atre- lado às circunstâncias históricas em que é utilizado. Por trás da raça sempre há contingência, conflito, poder e decisão, de tal sorte que se trata de um conceito relacional e histórico. Assim, a história da raça ou das raças é a his- tória da constituição política e econômica das sociedades contemporâneas (ALMEIDA, 2019, [n. p.], grifos do autor). Desse modo, apesar das diferenças entre os indivíduos não serem significativas do ponto de vista biológico, elas se configuram como traços distintivos no meio social e fun- cionam como justificativas para determinados comportamentos e ações que promovem a exclusão, a exploração, a desigualdade, o racismo e o preconceito. Logo, fragilidade da noção biológica de raça não significa a inexistência de relações e estruturas sociais pautadas pela questão racial. Posto de outro modo, no campo das ciências humanas e nos debates sobre o racismo, a concepção de raça não é pensada como um elemento biológico ou genético, mas, sim, como fator essencialmente político e que ainda nas sociedades contemporâneas é utilizado para naturalizar e legitimar desigualdades sociais e formas de exclusão de grupos específicos (ALMEIDA, 2019, [n. p.]). 1.2. AFINAL, O QUE É RACISMO? Para compreendermos a noção de racismo, é importante, antes, diferenciá-lo dos ter- mos discriminação e preconceito que costumam aparecer juntos para designar fenôme- nos parecidos. Na verdade, são conceitos que possuem diferenças, ainda que possam se referir às mesmas realidades. Compreender cada um deles é basilar para que pos- samos identificá-los no conjunto das relações sociais. O jornal Nexo elaborou um glossário com os principais conceitos e termos relacionados à questão racial, oferecendo algumas perspectivas históricas para suas construções e sentidos, inclusive para termos mais recentes, como colorismo e branquitude. SAIBA MAIS 103 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania a. PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO RACIAL Afirmamos que há preconceito quando estereótipos são usados para definir e caracteri- zar os indivíduos pertencentes a um grupo específico. Tais estereótipos são fundamen- tados em juízos de valor, em generalizações ou opiniões que atribuem determinadas características às pessoas a partir da sua identificação a um grupo. São ideias como “indígenas são selvagens”; “negros são violentos”; “judeus são avarentos” etc. A matéria completa pode ser acessada via: RIOS, Flávia; MILANEZI, Jaciane; ARRUTI, José Maurício; MACHADO, Marta. Questão racial. Nexo Jornal, jun. 2020. Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/glossario/Quest%C3%A3o-ra- cial. Acesso em: 11 jun. 2022. Estereótipos são ideias, rótulos ou opiniões generalizadas sobre uma pessoa, uma etnia, um povo ou uma cultura que nascem do senso comum, ao longo das vivências e da história, funcionando como forma de pré-julgamento. Por exemplo, quando se comenta que “baianos são preguiçosos”, “indígenas são selvagens”, “judeus são avarentos” etc., recorre-se aos es- tereótipos. Eles podem ser vistos como “inocentes” (exemplo: “o Brasil é o país do futebol”), mas também podem configurar-se como fontes de preconceito, discriminação e violência. GLOSSÁRIO O preconceito racial, em particular, faz-se tomando o pertencimento a um grupo ra- cial como referência e pode ou não resultar em atitudes discriminatórias, como nas abordagens policiais que costumam ser mais frequentes e agressivas contra negros do que contra brancos. Já a discriminação se refere a um processo de marginalização e diferenciação social, econômica e cultural da pessoa pertencente a um determinado grupo. No caso da dis- criminação étnica e/ou racial, o critério de diferenciação se fundamenta na identificação do pertencimento da pessoa aos grupos racial ou etnicamente identificados como tal. Reconhecemos um fenômeno de discriminação racial, quando negros são proibidos ou constrangidos ao entrar em determinados lugares, como shoppings, lojas e bancos ou de usar o mesmo elevador que outros grupos (prática comum até poucas décadas atrás) – proibições que são feitas apenas com base na cor da pele. Essa é uma forma mais direta e intencional de discriminação. EXEMPLO https://pp.nexojornal.com.br/glossario/Quest%C3%A3o-racial https://pp.nexojornal.com.br/glossario/Quest%C3%A3o-racial 104 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho As discriminações, assim, podem se dar de diferentes formas. Mas, de modo geral, todas envolvem algum mecanismo de poder, pois atribuem vantagens e permissões, desvantagens e proibições distintas a pessoas e grupos. A discriminação racial, no entanto, pode se revelar ainda de modo mais indireto, quando são construídas práticas e teorias que não reconhecem a existência de diferenças e desigualdades sociais significativas pautadas pela questão racial. Por exemplo, a existência de normas ou regras que se pretendem neutras, mas que, na prática, discriminam grupos mais vulneráveis, como os processos e testes para preenchimento de vagas que, apesar do discurso da igual- dade, acabam selecionando sempre certos tipos de pessoas, enquanto estigmatizam outras. Há outra perspectiva sobre a discriminação, analisada também sob o aspecto positivo. Nesse caso, são atribuídos tratamentos ou vantagens diferenciadas para grupos que foram histórica e social- mente prejudicados por sua condição. A discriminação aqui funciona como um meio para compen- sar tais desigualdades (MOREIRA, 2017, p. 37-41). Ações afirmativas, políticas públicas, como as cotas para ingresso no ensino superior, são exemplos da discriminação positiva. Nessa perspectiva, a finalidade é compensatória e não excludente. IMPORTANTE b. RACISMO O racismo, via de regra, compreende formas e práticas sistemáticas de discriminação racial conscientes ou não, que acabam por conceder acessos, direitos e privilégios desiguais aos diferentes grupos que formam a sociedade. Nessa perspectiva, a raça aparece como uma construção para justificar as desigualdades sociais dando a elas um caráter de naturalidade. Essa é uma definição do racismo como algo estrutural, isto é, que está nas bases e nas estruturas da sociedade, e que orienta todo o conjunto de relações sociais, econômi- cas, políticas e jurídicas, expressando-se concretamente como desigualdade. Assim, o racismo não se explica apenas pelos comportamentos individuais ou institucionais e, tampouco, se restringe às formas de discriminação e preconceito, mas é estrutural. O conjunto de práticas e relações sociais são racistas porque a sociedade, quer dizer, sua estrutura, é racista. O filósofo e jurista Silvio de Almeida é um dos mais importantes pensadores sobre a noção de racis- mo estrutural na atualidade. Em uma entrevista à antropóloga e professora Lilia Schwarcz, Almeida explica a concepção do racismo como estruturante das relações sociais e reflete sobre o impacto dessa concepção nas formações universitárias, na economia, nas subjetividades e nas relações sociais e políticas. Assista à entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0TpS2P- JLprM. Acesso em: 11 jun. 2022. SAIBA MAIS https://www.youtube.com/watch?v=0TpS2PJLprM https://www.youtube.com/watch?v=0TpS2PJLprM 105 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania O racismo condiciona o conjunto de relações e das desigualdades sociais que se mani- festam de diferentes formas nas sociedades, algumas mais conscientee outras, menos. Filme O filme M8 – Quando a morte socorre a vida, do diretor Jeferson De, é uma alegoria do racis- mo estrutural na sociedade brasileira. Na trama, um jovem negro, Maurício, ingressa no curso de Medicina em uma instituição federal por meio das políticas de cotas. A narrativa recons- trói o cotidiano desse jovem e das diversas práticas de discriminação racial que ele sofre, como o estranhamento causado pela presença de um negro em um curso de Medicina, até a perseguição de um colega que acredita que ali não é lugar dele. Um dos momentos mais emblemáticos da trama está nas aulas de anatomia, quando todos os corpos são negros, identificados apenas por códigos. 1.3. RACISMO E DESIGUALDADE Em sociedades racistas, ser diferente é ser desigual, uma vez que pertencimento ou não às determinadas categorias étnico-raciais produzem condições desiguais de existência. É sabido que, no Brasil, as características raciais das pessoas e grupos implicam níveis distintos, mas profundos, de desigualdades. Há um consenso e um reconhecimento na atualidade – e já há algumas décadas – de que o racismo e a conjuntura racial existentes no Brasil condicionam e estruturam a sociedade. Desse modo, evidenciamos, no mapa mental a seguir, termos, discrimina- ções raciais e o próprio racismo, tendo como origem os processos de colonização que inferiorizaram negros e indígenas. Figura 02. Mapa conceitual – raízes do Brasil Fonte: elaborada pela autora. Raízes do Brasil Formas de dominação Escravidão Tráfico negreiro Submissão e extermínio de povos indígenas Se revela nas diferentes relações Sistematização da discriminaçãoRacismo estrutural ExploraçãoViolência física e sexual Diversidade e diferença Miscigenação Colonização portuguesa Lei Áurea Desigualdade Desigualdade e exclusão Discriminação étnico-racial Preconceito racial Fim da escravidão? Econômicas Políticas Jurídicas Sociais Culturais Falta de diversidade Teorias raciais 106 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho Na Figura acima, o eixo central, Raízes do Brasil, faz referência ao livro de mesmo título do historiador Sérgio Buarque de Holanda, escrito em 1936. Nele, o autor defende que o legado da colonização portuguesa deixou marcas na estrutura social brasileira que deveriam ser superadas para que o país pudesse estabelecer uma democracia plena (HOLANDA, 2016, p. 12-19). Por isso, a escolha do termo raiz, como algo que está enraizado nas bases e nas estruturas da sociedade. Nas últimas décadas, essa perspectiva tem sido retomada por diferentes estudos que buscam compreender as relações étnico-raciais contemporâneas. Sob esse olhar, o racismo é compreendido como um dos principais elementos estruturantes da sociedade brasileira, isto é, que está em nossas raízes, e um dos caminhos pelos quais é possível compreender as desigualdades sociais, políticas e econômicas. a. O RACISMO E O MERCADO DE TRABALHO Mesmo na atualidade, após mais de um século do fim da escravidão, as desigualdades so- ciais e o acesso à cidadania plena permanecem fortemente marcados pela questão racial e, também, étnica. Esse certamente não é um problema apenas brasileiro. A Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais, promulgada em 1998 pela Organização Internacional do Trabalho – OIT –, por exemplo, traz como um dos quatro princípios fundamentais a elimi- nação da discriminação em relação ao emprego e à cobrança de atores sociais e governos para a criação de políticas e práticas de combate às formas de discriminação no mercado de trabalho, sejam elas motivadas por preconceito de raça, étnicas, gênero ou outras. No Brasil, a questão da discriminação étnico-racial é percebida no mercado de trabalho tanto da iniciativa privada como do serviço público. Negros são minoria em cargos de chefias e também em determinadas profissões, sobretudo de maiores rendas ou posi- ções de poder, apesar de comporem a maioria da população brasileira. Consequen- temente, as funções, profissões e cargos informais, de menor renda e precarizados, tendem a ser ocupados pelas populações negras, em especial, mulheres. Esses são fatos que mostram como opera o racismo estrutural sendo elemento de- finidor de lugares sociais, principalmente como um processo que cria as condi- ções sociais e políticas para que grupos identificados a partir de suas raças sejam, sistematicamente, discriminados. Busque as reportagens abaixo, em que a primeira é da Revista Exame, que apresenta os dados referentes à ocupação de negros e pardos em cargos de chefia nas empresas. Já a segunda trata dos impactos da pandemia no acesso ao mercado e ao emprego formal pelos indígenas. ` GRANATO, Luísa. Pesquisas mostram abismos no mercado de trabalho para profissionais ne- gros. Revista Exame, 17 set. 2020. Disponível em: https://exame.com/carreira/pesquisas-mos- tram-abismo-no-mercado-de-trabalho-para-profissionais-negros/. Acesso em: 23 jul. 2021. ` MARCHESAN, Ricardo. Indígenas tiveram maior queda no emprego e renda na pandemia, diz FGV. Economia. UOL, 14 out. 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/reda- cao/2020/10/14/pandemia-indigenas-mercado-trabalho.htm. Acesso em: 13 jun. 2022. Caso de aplicação https://exame.com/carreira/pesquisas-mostram-abismo-no-mercado-de-trabalho-para-profissionais-negros/ https://exame.com/carreira/pesquisas-mostram-abismo-no-mercado-de-trabalho-para-profissionais-negros/ https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/10/14/pandemia-indigenas-mercado-trabalho.htm https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/10/14/pandemia-indigenas-mercado-trabalho.htm 107 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania Como um conceito tão ultrapassado tal como raça continua servindo de marcador so- cial? Essa é uma questão que nos leva necessariamente a pensar na construção so- cial e histórica da raça e do racismo, nas teorias e dinâmicas que se construíram so- bre as diferenças raciais para justificar e normalizar discriminações e desigualdades socialmente construídas. A consciência dessa perspectiva é que nos possibilita compreender o racismo como algo estrutural e que opera no conjunto das relações que todos estabelecemos no cotidiano. Provavelmente, um dos grandes desafios na atualidade é desestabilizar e transformar essas estruturas, dando lugar às ações afirmativas da identidade negra e indígena e à construção de práticas antirracistas, nas quais as diferenças raciais não se constituam desigualdades. Texto Complementar Busque e leia o texto Persistentes desigualdades raciais e resistências negras no Brasil contemporâneo, das pesquisadoras Zelma Madeira e Daiane de Oliveira Gomes, trata do racismo como um dos eixos centrais das estruturas sociais brasileiras e traça um panorama da pós-abolição até a atualidade para demonstrar como as desigualdades resultantes do racismo estrutural impactam as diferentes formas de sociabilidade e in- serção dos negros. As autoras apresentam, especialmente, a questão das mulheres negras, grupo que está entre os mais vulneráveis na realidade brasileira. Madeira, Zelma e Gomes, Daiane Daine de OliveiraPersistentes desigualdades ra- ciais e resistências negras no Brasil contemporâneo. Serviço Social & Sociedade [on- line]. 2018, n. 133 [Acessado 11 Junho 2022] , pp. 463-479. Disponível em: https://doi. org/10.1590/0101-6628.154. ISSN 2317-6318. 2. A PROFISSÃO NÃO TEM GÊNERO 2.1. O QUE SÃO QUESTÕES DE GÊNERO E POR QUE TRATAR DO TEMA Em uma das passagens mais clás- sicas da sua produção intelectu- al, a escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir (2009, p. 9) afirma que “ninguém nasce mu- lher: torna-se mulher”. Essa frase e as ideias contidas nela têm sido, já há algumas décadas, uma das principais referências das teorias feministas e dos estudos sobre o gênero e suas construções nas sociedades e nas relações sociais. Nessa perspectiva, o “tornar-se mulher” acontece por meio de uma série deprocessos e relações sociais que são mais fundamentais nessa construção do que a própria condição biológica do indivíduo. Figura 03. Gênero socialmente construído Fo nt e: 1 23 R F. https://doi.org/10.1590/0101-6628.154 https://doi.org/10.1590/0101-6628.154 108 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho Há várias dimensões e aspectos teóricos sobre a construção social do gênero que, inclusive, nem sempre convergem entre si. Mas, de modo geral, os estudos sobre o gênero abarcam ao menos três grandes dimensões: I. A perspectiva simbólica, isto é, dada pela cultura; II. A estrutural, em especial relacionada à divisão sexual do trabalho; III. As dimensões sobre as identidades de gênero que procuram compreender as formas de ação e comportamento dos indivíduos a partir de suas identificações com um ou mais determinados gêneros. Entre essas diversas possibilidades de análise há alguns pontos comuns, como o fato de que todas elas consideram as noções de gênero, de sexualidade e orientação sexual como conceitos sociais e historicamente construídos. Nesse sentido, os papéis sociais que homens e mulheres desempenham nas sociedades, os comportamentos admitidos ou reprovados, as expectativas em torno dos indivíduos e do que cada um deles pode se tornar são frutos de contextos sociais e culturais particulares. Como toda construção social, esses contextos são também constituídos a partir de relações de poder. É dessa perspectiva que, a partir dos anos 1970, os estudos sobre o gênero voltaram-se, particularmente, para a compreensão de como tais contextos produziram desigualdades entre homens e mulheres que nasceram e culminaram de diferentes formas pelo conjunto do meio social, desde a violência física e simbólica, ao acesso desigual ao mercado de trabalho, às profissões e remunerações, a baixa repre- sentatividade de mulheres nos espaços de poder e decisão, entre outros. É fundamental compreendermos aqui que os modos e intensidades de discriminação, preconceito e violência, a partir do referencial de gênero são complexos. Posto de outro modo, tais práticas impactam tanto as mulheres cisgênero – isto é, pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento –, como as pessoas que se identificam com outras diferentes formas de sexualidade e identidade de gênero que constituem a diversidade da existência e espécie humana, como as pessoas transexuais e travestis. Para este grupo, grande parte das políticas públicas se voltaram muito mais para a prevenção de doenças e exploração sexual do que para sua inserção nos sistemas educacionais e, sobretudo, no mercado de trabalho (ANDRADE, 2012, p. 226). Para ampliar seu repertório, o artigo indicado a seguir. Nele, os autores abordam algumas das formas de exclusão, discriminação e violência sofridas pelas pessoas trans, em particu- lar, no acesso ao mercado e que se revelam a partir de dois vetores opostos: como exclusão ou como sublimação da diferença. MARTINELLI, Fernanda et al. Entre os cisplay e a passabilidade: transfobia e regulação dos cor- pos trans no mercado de trabalho. Revista Latino Americana de Geografia e Gênero, Ponta SAIBA MAIS 109 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania a. GÊNERO: NATUREZA E CULTURA Gênero, de modo geral, pode ser compreendido como os comportamentos e os papéis que os indivíduos assumem nos diferentes contextos sociais, com base em sua identifi- cação como homem, mulher e, mais contemporaneamente, como neutro. São padrões que foram definidos ao longo do tempo e das diferentes relações sociais e culturais, estabelecendo as funções, os papéis e as identidades do indivíduo por meio de sua identificação com um dos gêneros. Grossa, v. 9, n. 2, p. 348-364, 2018. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/rlagg/article/ view/12855/pdf_19. Acesso em: 13 jun. 2022. Há, em alguns espaços sociais, a confusão entre identidade de gênero e ideologia de gê- nero, sendo que os conceitos são distintos. Identidade de gênero diz respeito às formas como os indivíduos se expressam, se reconhecem e atuam socialmente a partir da sua identificação com um determinado gênero que pode não corresponder necessariamente ao seu sexo biológico. Por sua vez, a ideologia de gênero pode ser compreendida como a recusa em consi- derar ou questionar as tensões e desigualdades que estruturam as relações sociais com base nos gêneros. Por exemplo, as definições de que os homens são provedores (racionais, fortes, aptos às ciências exatas e pouco sentimentais), ao passo que as mulhe- res estão mais aptas aos cuidados do lar e dos filhos (são frágeis, sentimentais e pouco racionais), são construções ideológicas, pois replicam tais ideias e comportamentos sem questioná-los, como se fossem naturais. SAIBA MAIS Durante muito tempo, a explicação para as diferenças e desigualdades entre homens e mulheres se estruturavam em bases biologicamente deterministas. Ou seja, acre- ditava-se que haveria uma natureza biológica prévia e definitiva que se impõe sobre o indivíduo e determina seu pertencimento ou não a um gênero específico. Assim, as pessoas que possuem órgãos sexuais e reprodutivos femininos são mulheres, ao passo que aquelas que nascem com órgãos sexuais e reprodutivos masculinos são homens. As teorias sobre o gênero e sua construção, entretanto, romperam com essa associa- ção entre o sexo e a identidade ao afirmarem que gênero é mais complexo que o sexo, pois corresponde às expectativas que o meio social tem sobre as ideias, os comporta- mentos e os pensamentos dos indivíduos. https://revistas.uepg.br/index.php/rlagg/article/view/12855/pdf_19 https://revistas.uepg.br/index.php/rlagg/article/view/12855/pdf_19 110 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho Fundamentada nessas teorias, nasce a diferenciação entre sexo e gênero, em que o primeiro é entendido enquanto fator biológico, ao passo que o segundo é uma constru- ção social e histórica, portanto, não natural, apreendida pelos processos de socializa- ção dos diferentes contextos. Dessa forma, o tornar-se homem ou mulher depende de uma série de outros dispositivos sociais e culturais que não se resumem ou são desig- nados pelos órgãos sexuais. Como são construções históricas e sociais, as expectativas em torno dos gêneros se transformam, assumindo novos recortes em cada meio social. Na contemporaneidade, por exemplo, mesmo a distinção entre dois gêneros (homem e mulher) já não é mais universalmente válida, contemplando outras possibilidades ou mesmo tentando romper com o papel tão determinista do gênero no conjunto das relações sociais. Observe o mapa mental proposto a seguir. Nele, apresentamos as principais definições e distinções dos conceitos relacionados ao gênero e às sociedades mais atuais. A filósofa americana Judith Butler (2017, p. 17-30), uma das principais pesquisadoras e te- óricas contemporâneas sobre o feminismo e as teorias do gênero, argumenta que nas defi- nições das identidades baseadas no sexo e no gênero uma série de práticas e discursos de poder se impõem. Essa forma de poder não é necessariamente repressiva, mas determina a identidade, as formas e relações com o corpo e todo o conjunto de relações sociais que o in- divíduo exerce na vida coletiva. Por isso, a autora explica que, ao nascermos, já há uma série de significados culturais sobre o corpo, o sexo e o gênero que são impostos discursivamente. Assim, em um exame de ultrassom, quando se diz “é menino” ou “é menina”, um conjunto de expectativas é criado e imposto para aquele ser, tais como: cores de roupas, comportamento, brinquedos e brincadeiras, desejos, profissões etc., e que irá moldar a forma como indivíduo compreende a si e ao outro. A construção dessa identidade, de acordo com Butler, não é natural, mas resulta de uma produção discursiva. SAIBA MAIS 111 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania GêneroA maneira como o indivíduo se enxerga ` Homens; Mulheres / Masculino; Feminino ` Transgênero; Cisgênero ` Binário; Não-binário ` Teoria Queer ` Independente do sexo biológico; ` Todas as pessoas performam, a partir de uma identidade de gênero ` Fluida ` Vai além do feminino e do masculino ` Expressão de gênero com a qual o indivíduo se identifica Figura 04. Mapa mental: gênero e sociedade ` Poder ` Processo ` Ordenamento da realidade ` Heteronormatividade ` Atração afetiva e/ou sexual ` Múltipla e fluída ` Sexualidade ` Exemplos: heterossexual; homossexual; bissexual; assexual etc. ` Características biológicas ` Não define o gênero ` Exemplos: macho; fêmea; hemafrodita Sexo Biológico Relações de Gênero Orientação Sexual Identidade de Gênero Gênero e Sociedade Fonte: elaborado pela autora. “O problema do gênero é que ele descreve como devemos ser em vez de reconhecer quem somos”. Essa é uma frase da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, uma das vozes contemporâneas mais importantes acerca do feminismo, dos direitos das mulheres e das possibilidades de criação de uma sociedade mais igualitária para os diferentes gêneros. SAIBA MAIS 112 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho B. DESIGUALDADE E IGUALDADE DE GÊNERO Dentre as perspectivas fundamentais propostas pelas teorias feministas está a relação entre o gênero e o poder. A premissa básica dessa perspectiva é a de que a diferencia- ção entre homens e mulheres, ao longo da história, constituiu formas de poderes e de acessos desiguais entre os indivíduos. Nesse processo, as mulheres, em particular, foram subjugadas, consideradas inferiores em relação aos homens ou, ainda, pouco aptas para assumir funções e papéis que não estavam vinculados aos ambientes domésticos e/ou de cuidados. Este é um dos elementos que caracteriza o que as ciências humanas denominam como sociedades patriarcais – ou o patriarcado –, sistemas sociais que são estruturados nas relações desiguais entre homens e mulheres. Busque assistir ao TED da autora: Todos devemos ser feministas, no qual ela debate o feminismo como possibilidade de justiça e igualdade. Observe os principais pontos sócio estruturais que a pensadora elege, ao longo de sua fala e busque associá-los ao seu contexto sociocultural. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_we_should_all_be_ feminists?language=pt-br. Acesso em 13 jun. 2022. Patriarcado é um conceito das ciências humanas que se refere aos sistemas sociais fun- dados na relação desigual entre gêneros. Nesses modelos, a desigualdade entre homens e mulheres está inserida nas instituições e estruturas sociais presentes em diferentes aspectos da vida social e coletiva. Trata-se de um modelo de organização social em que prevalecem relações de poder e domínio dos homens, especialmente brancos e heterossexuais, sobre os demais sujeitos. Na reportagem da OSC Politize, há um descritivo histórico e a apresentação das características das sociedades patriarcais. Para ler na íntegra o texto de Regiane Folter, confira a referência abaixo: FOLTER, Regiane. O que é Patriarcado? Politize! 29 jun. 2021. Disponível em: https://www.politize.com.br/patriarcado/?https://www.politize.com.br/&gclid=CjwKCAjw9uKI- BhA8EiwAYPUS3Ic_MKehqiYPk2AgFWMqBWrJbjbd0oBPmG4Mu2DkNNAHIkMQ6MklVRo- CwXMQAvD_BwE. Acesso em: 13 jun. 2022. GLOSSÁRIO Existem diferentes dimensões nas quais a desigualdade de gênero se manifesta e que podem se revelar tanto nos espaços públicos como privados da vida social. Al- guns exemplos de como padrões e comportamentos que produzem e reproduzem a desigualdade entre os gêneros estão entranhados nas estruturas sociais são: ocu- pação dos mesmos cargos e com formação educacional ou superior; fosso salarial entre homens e mulheres. https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_we_should_all_be_feminists?language=pt-br https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_we_should_all_be_feminists?language=pt-br https://www.politize.com.br/patriarcado/?https://www.politize.com.br/&gclid=CjwKCAjw9uKIBhA8EiwAYPUS3Ic_MKehqiYPk2AgFWMqBWrJbjbd0oBPmG4Mu2DkNNAHIkMQ6MklVRoCwXMQAvD_BwE https://www.politize.com.br/patriarcado/?https://www.politize.com.br/&gclid=CjwKCAjw9uKIBhA8EiwAYPUS3Ic_MKehqiYPk2AgFWMqBWrJbjbd0oBPmG4Mu2DkNNAHIkMQ6MklVRoCwXMQAvD_BwE https://www.politize.com.br/patriarcado/?https://www.politize.com.br/&gclid=CjwKCAjw9uKIBhA8EiwAYPUS3Ic_MKehqiYPk2AgFWMqBWrJbjbd0oBPmG4Mu2DkNNAHIkMQ6MklVRoCwXMQAvD_BwE 113 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania No espaço doméstico, a responsabilidade dos cuidados com o lar e com os filhos tende a ser maior para mulheres do que para ho- mens. Em posições estratégicas e de poder político, homens ocupam maiores espaços do que as mulheres. A violência doméstica e sexual contra mulheres é um dado tanto nas esferas públicas como privadas. É do reconhecimento de tais estruturas e acessos desiguais entre homens e mu- lheres, ou seja, a desigualdade com base no gênero, que movimentos sociais e políticas públicas pautam seu oposto. Há um ponto fundamental nessa questão de que a desigualdade não significa a anulação das diferenças entre homens e mulheres, pelo contrário, pressupõe que as diferenças são a base da diversidade. O ponto central aqui é que essas diferenças não se configuram como desigualdades de acesso, oportunidade e reconhecimento. 2.2. AS MULHERES E O MERCADO DE TRABALHO O pertencimento ao gênero corresponde às formas específicas de desigualdade social. O campo do trabalho entendido de forma completa, ou seja, o acesso ao mercado de trabalho e à permanência nele, a remuneração, os trabalhos, funções e ocupações dis- poníveis entre outros fatores, compõe uma esfera significativa dos debates teóricos e das reivindicações dos movimentos sociais pautados pela igualdade de gênero. O trabalho é uma das dimensões mais essenciais da vida coletiva, em todas as épocas humanas, e que assume traços específicos em cada organização social, ao longo da história. Na atualidade, o trabalho, além de fonte de subsistência de cada indivíduo, é um importante indicativo do desenvolvimento social e econômico das sociedades e uma das esferas da construção e exercício da igualdade e da cidadania. No Brasil, em particular, a entrada das mulheres no mercado de trabalho ocorreu com maior intensidade na segunda metade do século XX, a começar por 1970, mais especi- ficamente. Visto que há múltiplos aspectos nesse cenário e que se relacionam com as relações de gênero, a seguir, destacamos alguns dos eixos principais que permitem a compreensão mais geral da relação entre trabalho e gênero. a. DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO Imagine a seguinte situação: em uma entrevista para uma vaga em uma determinada empresa, uma candidata é questionada sobre se tem filhos ou não e, em caso positivo, quem cuidaria dos filhos na ocasião de ela ser a contratada ou mesmo o que ela faria quando a criança ficasse doente e precisasse de cuidados médicos. Essa é uma questão bastante recorrente em entrevistas de emprego e reflete uma das consequências da divisão sexual do trabalho. Esta repartição identifica as for- mas como as sociedades estruturam as atividades produtivas e econômicas, de modo que associam os homens à produção e as mulheres à reprodução ou, Figura 05. Desigualdade salarial entre homens e mulheres Fo nt e: 1 23 R F. 114 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho posto de outra forma, os homens relacionados às atividades remuneradas e as mu- lheres às atividades domésticas e de cuidados com filhos, exercendo um trabalho não remunerado (BIROLI, 2018, p. 24-25). A divisão sexual do trabalho é entendida como um elemento estrutural das relações de gênero que impactam o acesso, a permanência das mulheres no mercado de trabalho e as funções e ocupações exercidas. No cotidiano, esses fatores serevelam em: Dupla jornada: A entrada expressiva das mulheres no mercado de trabalho, na segunda metade do século XX, não foi acompanhada pela redistribuição das tarefas e responsabilidades domésticas e de cuidado com os filhos. Apesar dos avanços vivenciados nas últimas décadas, essas atividades ainda permanecem como responsabilidade primordial das mulheres, podendo gerar consequências para a saúde física e emocional. Na atualidade, algumas políticas públicas e iniciativas estão sendo criadas para diminuírem os impactos na percepção da produtividade das mulheres, tomando os cuidados com a casa e os filhos, como fatores que devem ser considerados. No Brasil, por exemplo, desde abril de 2021, as mulheres podem indicar no Currículo Lattes a licença maternidade como justificativa para a pausa nas pesquisas e como uma forma para que não sejam prejudicadas na disputa por bolsas. Já na Argentina, uma lei aprovada também em 2021, contará a maternidade e os cuidados iniciais com os filhos como tempo de serviço quando as mulheres solicitarem a aposentadoria. Assim, o Estado reconhece a dedicação da mulher que se torna mãe e que, por vezes, precisa abdicar temporariamente da carreira, como tempo de trabalho hábil para fins previdenciários. CURIOSIDADE Falta de políticas públicas e institucionais voltadas para a possibilidade de maior conciliação entre as responsabilidades domésticas e do trabalho Em virtude dessa ausência de respaldo político público e institucionais, movimentos lutam em prol direito à creche e escolas infantis, proteção à maternidade, entre outros elementos que auxiliam a permanência da mulher no mercado de trabalho. Superação da ideia da mulher como uma “força de trabalho secundária”. Esse é um ponto de destaque nos estudos sobre a divisão sexual do trabalho e parte da relação entre produção/reprodução, bem como esfera pública/privada. Nessa cons- trução, permanece no imaginário a visão do homem como chefe/provedor e da mu- lher como responsável pela esfera privada, isto é, familiar e doméstica e, no máximo, “provedora secundária” (ABRAMO, 2020, p. 22-24). A mulher, então, ocuparia posições no mercado de trabalho sempre que o homem es- tivesse ausente (doença, incapacidade, desemprego ou mesmo pela separação ou morte). Entre as consequências, as trajetórias das mulheres são mais inconstantes e interrompidas, uma vez que regularizada a ocupação masculina, a mulher voltaria para as responsabilidades domésticas. 115 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania 2.3. DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS Atualmente, a ocupação de uma vaga ou de uma função está fundada na ideia da ca- pacidade cognitiva e técnica, nos conhecimentos e habilidades de quem disputa tais lugares, independentemente do seu gênero. Salvo poucos espaços que ainda perma- necem masculinos, a presença de mulheres é realidade nas mais diferentes profissões e espaços de produção e saber. Permanecem, entretanto, alguns desafios para que as mulheres possam efetivamente desfrutar de condições igualitárias de acesso e permanência no mercado de trabalho. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), como agência da Organização das Na- ções Unidas (ONU), pontua o fim da desigualdade de gênero como uma das metas que devem ser adotadas, em especial pelos países mais ricos do mundo, a fim de que o acesso das mulheres ao mercado de trabalho seja mais efetivo e duradouro. A pauta aparece como resposta às consequências da pandemia da COVID-19 que afetou de formas diferentes homens e mulheres, indicando a maior situação de vulnerabilidade das mulheres diante da crise sanitária e econômica. Para os representantes dessas organi- zações, esse fato aparece em situações variadas, como: a precarização ou informalização do trabalho, desemprego, violência doméstica, baixo nível de proteção social, entre outros pontos, revelando a necessidade da reorganização estrutural e econômica da vida coletiva. Mesmo com algum avanço, a ideia e a realidade das mulheres como responsáveis pela esfera doméstica permanecem como um importante elemento da desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Veja na reportagem abaixo dados recentes que corroboram com esta perspectiva. RODRIGUES, Léo. Estudo revela o tamanho da desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Agência Brasil. Rio de Janeiro, 4 mar. 2021. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-03/estudo-revela-ta- manho-da-desigualdade-de-genero-no-mercado-de-trabalho. Acesso em: 13 jun. 2022. SAIBA MAIS Atualidade do tema A ONU e OIT apresentam uma série de medidas que deveriam ser adotadas para que as estru- turas sociais dos diferentes países se tornem mais inclusivas à participação das mulheres na produção econômica, bem como na garantia da sua autonomia, da identidade e da cidadania. Leia o documento abaixo que traz as principais recomendações e iniciativas propostas: ORGANIZA- ÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT - COVID-19: Países do G7 devem tornar a igualdade de gênero eficaz para que o futuro das mulheres no trabalho seja melhor. Notícias OIT, 14 maio 2020. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_745194/lang--pt/index.htm. Acesso em: 13 jun. 2022. SAIBA MAIS https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-03/estudo-revela-tamanho-da-desigualdade-de-genero-no-mercado-de-trabalho https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-03/estudo-revela-tamanho-da-desigualdade-de-genero-no-mercado-de-trabalho https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_745194/lang--pt/index.htm 116 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho É certo que profissão não tem gênero. As mudanças ocorridas nas últimas décadas, capitaneadas pelos movimentos sociais e pelos estudos sobre as identidades e desi- gualdades de gênero, promoveram mudanças significativas nas mais diferentes realida- des. Isso se deu por meio de políticas públicas, institucionais e legislações que pautam a necessidade da reorganização das estruturas sociais voltadas para a maior inclusão e diversidade dos diferentes gêneros. Mas é certo também que esse é um caminho longo, cotidiano que requer a transfor- mação de práticas, comportamentos, concepções e estruturas concretas e simbólicas que promovam a reformulação das relações de gênero nas sociedades para o fim da discriminação e das formas de violência nos mais diferentes níveis nos espaços públi- cos e privados, constituindo formas mais igualitárias de convivência e possibilidades de existências entre homens e mulheres. Filme Uma alegoria interessante e complementar da temática trabalhada nesta unidade é o filme Estrelas Além do Tempo, de Theodore Melf (2017), o qual é baseado em fatos re- ais e retrata a história de três jovens mulheres cientistas que colaboraram com a NASA na década de 1960, para a chegada do homem à lua. Em um ambiente que as mulheres ainda não eram aceitas, especialmente em profissões como as engenharias ou outras das ciências exatas, a narrativa retrata as condições de desvantagens e desvalorização do trabalho que as personagens enfrentam pelo fato de serem mulheres negras. É uma oportunidade para a reflexão sobre quais mudanças ocorreram nessas últimas décadas e se elas permitem percebermos hoje a presença de mulheres em profissões que foram usualmente designadas como espaços exclusivos dos homens. 3. ENFIM, UMA SOCIEDADE POSSÍVEL 3.1. SOCIEDADE BRASILEIRA Há menos de 200 anos, o Brasil ainda vi- via sob a escravidão de homens, mulhe- res e crianças negras. Havia, além de leis que garantiam essa estrutura, discursos, teorias e um sistema moral que defen- diam a legalidade da escravidão e justi- ficavam os diversos modos de violência e exploração, ou seja, naturalizavam as formas de desigualdade e interiorização dos povos negros. Ainda nesse período, mesmo que sob outras condições, povos indígenas e culturas inteiras foram dizi- madas ao longo do processo de colonização. É igualmente perceptívela existência de todo um sistema legal e moral que justificavam tais práticas. O direito ao voto feminino é relativamente recente em nossa sociedade, (foi legitimado em 1932) e, nesse início, era um direito garantido apenas às mulheres casadas, desde que Figura 06. Gravura de Henry Chamberlian, A rede (1821) Fo nt e: W ik im ed ia . A ce ss o em : 1 7 de z, 2 02 1. 117 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania tivessem autorização dos maridos, e às viúvas que tivessem renda própria. Por sua vez, o acesso de mulheres casadas ao mercado de trabalho também dependia da autorização do marido, assim como a abertura de contas em bancos, viagens ao exterior ou ter um comér- cio, leis que foram alteradas apenas a partir de 1962. Nossa sociedade atual é herdeira dos fatos acima e, certamente, de outras diversas for- mas de desigualdade e exploração. Durante séculos, prevaleceu a ideia de que alguns grupos de pessoas, como negros, mulheres, indígenas e outros minoritários eram infe- riores, portanto, para esses grupos o acesso aos direitos e aos bens sociais era restrito, desigual ou sequer existia. Minorias ou grupos minoritários não são definidos quantitativamente, mas, sim, qualitativa- mente. De modo geral, para as ciências humanas e sociais, o conceito de minoria se refere aos grupos que se encontram em situação de desvantagem ou vulnerabilidade em relação a outros em uma dada estrutura social. Na sociedade brasileira, por exemplo, mulheres, negros e pardos representam a maioria numérica da população. Entretanto, são considerados grupos minoritários, pois possuem menos acessos aos bens e direitos sociais assim como aos espaços de poder e decisão. As minorias podem ser definidas a partir de diferentes critérios: gênero, raça, etnia, religião, cultura, sexualidade etc., e variam de uma ordem social para outra. Nas democracias, há o pressuposto de que as políticas públicas devem compensar e proteger as minorias, diminuin- do ou eliminando as formas de desigualdade e desvantagens. IMPORTANTE Esta é uma noção que ainda prevalece em nossa sociedade e pelo mundo de modo geral. O acesso desigual aos direi- tos e aos bens sociais, mesmo aos mais básicos, ainda é uma realidade. Assim, em pleno século XXI nos deparamos dia- riamente com diferentes formas e níveis de pobreza e exclusão, desigualdade e discriminação que vão desde o precon- ceito e a marginalização até a eliminação física e genocídio de grupos inteiros por motivos étnicos, culturais, religiosos, sexuais, geopolíticos etc. Mesmo diante da constatação dessa realidade, é possível, entretanto, vislumbrarmos avanços significativos. Entre eles, a consolidação, em nossa época, de valores, leis e mesmo de um sistema moral que reconhece como princípio fundamental a dignidade intrínseca de todo ser humano, isto é, a dignidade de toda pessoa como um valor su- premo e inquestionável. Figura 07. Campo de refugiados Fo nt e: 1 23 R F. 118 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho Esse é um dos pressupostos básicos para o exercício da cidadania e da constituição de direitos e deveres dos indivíduos, uma vez que o reconhecimento da dignidade humana implica garantia e acesso aos bens e direitos sociais. a. A RESPONSABILIDADE DO SER SOCIAL Poucas ideias são tão universais nas ciências humanas e sociais quanto a afirmação de que o ser humano é um ser social por natureza, que vive em coletividade e que constrói em grupo sua realidade social. Os elementos que constituem essa realidade – como as regras, as normas, as religiões, as leis, os direitos e deveres, entre outros –, não são produtos espontâneos da natureza, mas, sim, construções históricas e sociais empre- endidas pelos homens vivendo social e coletivamente. Essa afirmação pode parecer, à primeira vista, bastante óbvia, entretanto, ela abrange uma complexidade. O elemento social da vida humana não se reduz apenas ao viver em grupo. Se assim fosse, não nos diferenciaríamos de outras espécies que vivem grupalmente ou em bando, como os chimpanzés e gorilas, por exemplo. Além disso, a essência humana é social, o viver humano se realiza apenas em sociedade. O filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) – pensador contemporâneo – reflete sobre essa característica da vida coletiva humana, entendendo a interdependência dos indivíduos entre si e com seu meio social, mas, também, com as responsabilidades que cada um possui com o outro, mesmo que não conscientes ou assumidas. Esse traço da responsabilidade é a base da sociabilidade humana e surge a partir da nossa relação com o outro e com nosso meio social, além de ser portadora de um sentido moral. Um relacionamento humano é moral quando um sentimento de responsabi- lidade brota em nós, voltado para o bem-estar e a felicidade do “outro”. [...] Somos responsáveis por outras pessoas simplesmente porque são pesso- as, e assim ordena nossa responsabilidade. É igualmente moral quando a vemos como só nossa, não sendo, consequentemente, negociável, além de não poder ser transferida para quem quer que seja. A responsabilidade por outros seres humanos surge simplesmente porque eles são seres humanos, e o impulso moral para ajudar daí oriundo não exige nenhum argumento, legitimação ou prova além dessa noção (BAUMAN, 2010, p. 71). Para o autor supracitado, a responsabilidade com o outro é um traço da essência hu- mana que explica como sua existência apenas é possível em sociedade. As diferentes interações e responsabilidades que temos uns com os outros constituem a base do comportamento humano. Esse comportamento, por sua vez, não se realiza no vazio, pelo contrário, concretiza-se em um contexto social específico, em acordo com um meio social particular constituído por normas, regras, direitos, entre outros elementos que orientam e estruturam as relações sociais. Daí a importância da vida social. Assista a um pequeno trecho de uma entrevista feita com o filósofo Zygmunt Bauman. Nela, ele explica como na atualidade vivemos interligados e estabelecemos vínculos e laços sociais em níveis mundiais e não mais localmente. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=1miAVUQhdwM. Acesso em: 13 jun. 2022. SAIBA MAIS https://www.youtube.com/watch?v=1miAVUQhdwM https://www.youtube.com/watch?v=1miAVUQhdwM 119 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania b. A FUNÇÃO DA VIDA SOCIAL A vida e as formas de existência humana se realizam, portanto, em sociedade, em uma dada organização social que possui sentido concreto e histórico. Ou seja, cada orga- nização social, da mais primitiva e simples até a mais contemporânea e complexa que existe ou que já existiu, tem um conjunto de normas e códigos que orientam o existir coletivo num determinado tempo e espaço. Os sentidos e significados desse complexo conjunto mudam de uma organização social para outra, de um tempo histórico para outro. Valores, condutas, regras e leis que já foram aceitas por uma organização social se transformam conforme as próprias condi- ções histórico-sociais assim como as necessidades das pessoas e daquele meio social. Para além disso, o fato é que para existir coletivamente é preciso um espaço comum de convivência entre todos, algo que congregue as pessoas e suas individualidades em torno de uma mesma organização social e coletiva. A vida comum e coletiva são os espaços, por excelência, do exercício da cidadania. O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) afirma que essa é uma das funções da vida social, qual seja, a constituição de um conjunto de normas, regras e modos de agir que orientam e estruturam a vida dos indivíduos naquela coletividade e que fun- cionam como mediadores das relações das pessoas entre si e com o seu meio social. Todos nós, enquanto parte da sociedade brasileira, por exemplo, estamos sob um mesmo con- junto de normas, direitos e deveres que orientam nosso modo de viver e que estabelecem um modocomum de vida, apesar da individualidade de cada um. São pontos fundamentais para que se constitua o que sociólogo chama de “coesão social” ou “laços sociais”, estruturas, ideias e práticas pelas quais se criam os vínculos de solidariedade e de cooperação entre aqueles que habitam uma mesma organização social. Quanto mais a vida social tiver sentido e significado para o indivíduo, mais coesa, solidária e cooperativa é uma organização social. PARA REFLETIR 3.2. O DIREITO À PARTICIPAÇÃO NOS BENS SOCIAIS É na vida social que também se constrói as bases para a organização, segurança e desenvolvimento de cada um e da coletividade, bem como para a constituição da ci- dadania. Sabemos que todo esse conjunto não é estático e definitivo, pelo contrário, é dinâmico e está em constante construção, responde às necessidades e anseios da coletividade e também de indivíduos. As próprias noções de moral, direitos e deveres da cidadania se transformaram ao longo da história, contemplando em cada organização social acessos, direitos e deveres específicos. Na modernidade, em particular, até os dias atuais, consolidou-se um pressuposto básico, resultado de uma longa evolução histórica: a de que cada ser humano, por ser social, é dotado de um conjunto de direitos e deveres. Entre esses, alguns são relativos aos bens sociais fundamentais, como saúde, segurança, educação, moradia, habitação e trabalho. 120 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho A Constituição Federal Brasileira define, no artigo 6º, como direitos sociais o acesso à educa- ção, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Para conferir o texto na íntegra, visite: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 13 jun. 2022. SAIBA MAIS Logo na introdução desta unidade, propusemos pensar sobre o reconhecimento moder- no da dignidade intrínseca do ser humano. É desse pressuposto que nascem teorias e práticas que estruturam a vida coletiva, como o reconhecimento de que toda pessoa, independentemente da cor, gênero, classe social, idade, lugar, posição política, religio- sidade etc., tem (ou deveria ter) direitos básicos assegurados, que visam justamente garantir a reconhecida dignidade humana citada. O acesso e a participação aos bens sociais como um direito de cada pessoa respondem diretamente a esse pressuposto, uma vez que o atendimento às necessidades funda- mentais e básicas é inseparável das possibilidades de existências e vivências dignas. Além disso, é pelo acesso pleno aos bens sociais que outros direitos basilares para a dignidade humana são efetivamente contemplados, como a liberdade e a igualdade. Posto de outra forma, as liberdades e direitos individuais são inseparáveis da garantia dos direitos sociais. Como conceber, por exemplo, a liberdade e o direito individual que todos têm ao voto, se persiste na sociedade a pobreza extrema, falta de saneamento básico e condições de trabalho precárias? O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é um dos parâmetros nas sociedades atuais que mede o desenvolvimento social de um país, levando em consideração o acesso das pessoas aos bens sociais básicos, como educação, saúde e renda. Ele é coordenado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e é um importante parâmetro na definição de políticas públicas. Há outros institutos e pesquisas que também possibilitam compreender as demais esferas e conjunto de direitos, por exemplo, o The Economist Intelligence Unit (The EIU), que faz parte do Economist Group e mede diferentes âmbitos da vida social, como a paridade de gênero e o nível de democracia dos países. Para saber mais, você pode conhecer de forma interativa os indicadores usados pelo institu- to e seus níveis em cada um dos países pesquisados, basta visitar: https://www.v-dem.net/ data_analysis/VariableGraph/. Acesso em: 13 jun. 2022. SAIBA MAIS http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm https://www.v-dem.net/data_analysis/VariableGraph/ https://www.v-dem.net/data_analysis/VariableGraph/ 121 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania 3.3. O RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA: BASE PARA A IGUALDADE Diretamente relacionada aos direitos e bens sociais nas sociedades, a igualdade é um dos valores fundamentais na constituição das democracias e como um dos princípios que estruturam, de modo geral, o conjunto de direitos e deveres e o exercício da cida- dania nas sociedades. Todos são iguais perante a lei, sem distinção, é um dos pilares de constituições democráticas modernas, assim como da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Como tornar efetivo o princípio da igualdade nas sociedades atuais, globais e diversas, formadas pelas diferentes culturas, individualidades e identidades? Todos são iguais, afinal? Esse é um ponto central, pois igualdade, como um direito, não significa homoge- neidade. Contudo, o respeito à dignidade da condição humana pressupõe o direito e o reconhecimento da diferença. Os contrapontos não são entre igualdade e diferença, mas entre igualdade e desigual- dade. A desigualdade pressupõe hierarquias que estabelecem condições distintas às pessoas, acessos diferentes aos direitos e deveres, bem como aos postos de poder e de decisão. Assim, a desigualdade estratifica, divide os indivíduos e os grupos em superiores e inferiores, com mais ou menos direitos e deveres, com maior ou menor dig- nidade e serve como justificativa às formas de discriminação, exploração e até mesmo de morte ou extermínio. A diferença, por sua vez, fundamenta-se no reconhecimento das particularidades de cada um, de cada grupo social e da diversidade que compõe a natureza humana – é uma relação horizontal. Desse modo, é possível reconhecermos as diferenças entre homens e mulheres, brancos e negros, portadores e não portadores de deficiências, cristãos, muçulmanos ou ateus, indígenas e não indígenas, norte-americanos, indianos e brasileiros, jovens e idosos etc. Em todos esses grupos há diferenças. Entretanto, quando se instalam valores ou relações de superioridade ou inferioridade, as diferenças se convertem em desigualdades. O direito à diferença, portanto, é um corolário da igualdade na dignidade. O direito à diferença nos protege quando as características de nossa identida- de são ignoradas ou contestadas; o direito à igualdade nos protege quando essas características são destacadas para justificar práticas e atitudes de exclusão, discriminação e perseguição (BENEVIDES, 2007, p. 340). O direito à diferença é também a luta pelo direito ao reconhecimento e da diferenciação como consti- tutiva da diversidade e da dignidade humana. Partindo dessa perspectiva, recomendamos que você assista ao documentário Crip Camp: revolução pela inclusão (2020), dirigido por Jim LeBrechet. O documentário conta a história sobre o acampamento de verão Jened, nos EUA, voltado para pessoas portadoras de deficiências físicas, motoras e até intelectuais, com variados graus e níveis de lesão. O acampamento foi fundado em 1951 e fechado em 1977, e transformou não apenas a vida dos jovens e adolescentes que frequentavam aquele espaço, mas pautou diver- sos movimentos por direitos sociais e civis na sociedade americana. SAIBA MAIS 122 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho a. A LUTA POR DIREITOS NO SÉCULO XXI A luta por direitos é sempre uma luta histórica, pois reflete as formas de organização so- cial, as experiências e anseios de indivíduos e grupos em suas realidades. São reflexos das necessidades e demandas que as pessoas vivenciam em cada contexto histórico- -social e, ainda, dos recursos que estão disponíveis para isso. Em uma realidade global como a quevivenciamos, as lutas por direitos, nas suas mais diferentes esferas, tendem a refletir tanto as pautas e necessidades locais como outras mundializadas ou globais. É certo, desse modo, que diante das persistentes desigualdades sociais, parte das lutas por direitos contemporâneos está voltada para essas esferas, tais como: moradia, aces- so à saúde e educação de qualidade, condições e garantias trabalhistas, participação nas esferas públicas e políticas, segurança etc. Ao mesmo tempo, a defesa e o reconhecimento das diferenças entre as pessoas como um dos parâmetros para a constituição da justiça social e da igualdade, como vimos há pouco, revelaram novas disputas e lutas por direitos em diferentes âmbitos da sociedade. Da mesma forma, outros modos de opressão que não passam pela luta de classes têm pautado, ao longo das últimas décadas, diferentes movimentos sociais e lutas por direitos. Há, assim, um espaço de lutas por direitos nas sociedades atuais voltado para questões éticas e de valores humanos que não diz respeito necessariamente a uma classe social específica, mas, sim, ao conjunto da sociedade de um modo geral, inclusive, em termos globais (SANTOS, 2003, p. 258). Atualidade do tema Em momento anterior, já falamos sobre o movimento Black Liver Matter. Na reportagem a seguir, “Como três mulheres criaram o movimento global Black Lives Matter a partir de uma hashtag”, temos um relato de como essa luta antirracista começa bem pequena, com os esforços de três mulheres, mas rapidamente se torna uma causa global. Entre as características, está presente o uso das redes de comunicação e mídias digitais, como o Facebook, Twitter e Instagram. Para ler, na íntegra, visite: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/12/20/como-tres-mu- lheres-criaram-o-movimento-global-black-lives-matter-a-partir-de-uma-hashtag.ghtml. Acesso em: 13 jun. 2022. SAIBA MAIS O documentário está disponível nos streamings e é uma oportunidade para percebermos como o direito à igualdade passa pelo direito à diferença. https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/12/20/como-tres-mulheres-criaram-o-movimento-global-black-lives-matter-a-partir-de-uma-hashtag.ghtml https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/12/20/como-tres-mulheres-criaram-o-movimento-global-black-lives-matter-a-partir-de-uma-hashtag.ghtml 123 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania Lutas como as do movimento negro e o combate ao racismo às formas de discrimi- nação e constituição de relações antirracistas; movimento feminista e as pautas pela igualdade de gênero e fim do patriarcado; lutas dos movimentos LGBTQIA+ e a busca pela igualdade social e de direitos; pautas que se voltam às questões ecológicas e de sustentabilidade; intensas migrações humanas, genocídio de culturas e etnias e diversi- dade cultural, expandem as noções que se têm dos direitos e deveres de cada um nas sociedades contemporâneas globalizadas. Em uma importante passagem de sua obra, a filósofa Hannah Arendt (1989, p. 332) afirma que “[...] a cidadania é a consciência que o indivíduo tem do direito a ter direitos”. A era moderna e contemporânea consolidou os direitos fundamentais às pessoas, atri- buídos a todas elas por sua condição de ser. Constituiu-se, assim, um pressuposto fundado na igualdade em dignidade dos seres humanos. É um valor indispensável para a nossa época, pois nele se abrigam outros, como o reconhecimento à diferença e à pluralidade da vida humana. Essa é uma das perspectivas que orientam práticas e ideais para os dias atuais, e que servem de mote para a criação de relações e realidades mais igualitárias, plurais e justas. Figura 08. A luta pelos direitos no século XXI Diversidade de agendas Novas estratégias Movimentos globais e antiglobalização Pautas globais e locais Pautas culturais, identitárias e ecológicas LUTAS PELOS DIREITOS SÉCULO XXI As agendas dos movimentosso- ciais tornaram-se mais diversas e plurais e já não se restringem ao mundo do trabalho e da economia; Uso dos meios de comnicação e das redes digitais como plataforma para as pautas ultrapassarem fron- teiras geográficas e promoverem novas formas de articulação e estruturação A luta por direitos atua tanto local, para atender as demandas da comunidade, como globalmente, questionando práticas e formas de vida mundiais. Lutas que não se vinculam, ex- clusivamente, às classes sociais, mas se transferem para a cultura e para as mudanças culturais. Diferença e diversidade. Crítica aos danos e efeitos da exploração capitalista global e às formas contemporâneas de exclusão e marginalidade. Fonte: elaborada pela autora. 124 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho Filme Como pensamos a dignidade de todo ser humano diante das profundas desigualdades so- ciais que, ainda hoje, estão fortemente presentes em diferentes sociedades? O filme sul-core- ano Parasita, de Bong Joon-ho, ganhador do Oscar em 2020, tem como eixo central o olhar sobre a desigualdade a partir das diferenças entre classes sociais. Na história, acompanha- mos o cotidiano da família Kim, família pobre que mora em um porão apertado e enfrenta as dificuldades típicas de uma família de baixa renda. Em um movimento do acaso, um dos filhos dos Kim passa a trabalhar como professor/tutor na casa de uma família rica. Logo em segui- da, utilizando uma série de artimanhas e mentiras, o jovem faz com que o chefe empregue o restante da sua família. O filme transcorre mostrando as diferentes interações entre esses dois universos e de como são afetados de forma distinta pelo mundo externo. Texto complementar Reconhecer que a diferença e a diversidade humana são constitutivas das nossas so- ciedades é um caminho importante para que se reconheça, enfim, a dignidade humana. À vista disso, recomendamos a leitura do artigo “Reconhecimento e direito à diferença: teoria crítica, diversidade e a cultura dos Direitos Humanos”, de Eduardo Bittar, para ampliar a discussão do tema trabalhado nesta unidade. 4. REMEMORANDO AS TEMÁTICAS ESTUDADAS AO LONGO DAS UNIDADES Chegamos ao final de nosso curso após passarmos por distintas reflexões e análises que ti- veram como temáticas norteadoras a ética e a cidadania em suas mais distintas perspectivas. Com projeções de estabelecer uma reflexão final, retomaremos alguns dos tópicos aborda- dos e, após construir uma breve linha do tempo e do pensamento sobre o assunto, abordare- mos questões práticas sobre a ética e práticas de cidadania na contemporaneidade. Ao longo de nossa trajetória, foram apresentadas algumas perspectivas relacionadas a processos interdisciplinares com outras abordagens (Estudo do Ser Humano Con- temporâneo, Iniciação à Pesquisa Científica, Direitos Humanos e Empreendedorismo) e o desenvolvimento de competências e habilidades fundamentais para os processos de construção cidadã e profissional. Portanto, conectar experiências pessoas com tais abordagens e, partindo dessas conexões, projetar o desenvolvimento de novas compe- tências educacionais que serão colocadas em práticas se apresentaram como propos- tas norteadoras tanto para o processo de ensino aprendizado quanto de vivências éti- cas de cidadania. Neste sentido, essas perspectivas se relacionam diretamente com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil, apresentados pela Agenda 2030 em conexão com as diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU). Importantes colocações acerca da ética e da moral foram colocadas ao longo de nos- so aprendizado. Partindo das proposições apontadas, pudemos perceber que, grosso modo, enquanto a ética compreende uma proposição de condutas de amplo alcance e uma reflexão aprofundada que envolve a coletividade e suas ações, a moral, por sua vez, se norteia por regras e tradições transmitidas, por valores que orientam determina- das pessoas e grupos sociais sem necessariamente passarem por reflexões e análises. 125 4 U ni ve rs id ad e São F ra nc is co Ética e Cidadania Uma das temáticas que transpareceu foi a tentativa de se problematizar a relação en- tre escolhas e ética. Partindo de uma ampla construção teórica, o diálogo recaiu nas proposições de pensamento acerca das escolhas éticas ao longo de nossa existência. Distintas formas de se apreender e perceber o mundo, desde a antiguidade até a contemporaneidade foram discutidas e, dessa forma, proposições práticas foram sus- citadas. Diante de tais construções, a temática ganhou desdobramentos apontando uma articulação importante entre ética e liberdade, mas também sobre os processos decisórios e as escolhas responsáveis. Relações como ética, indivíduo e coletividade ganharam corpo, principalmente nas colocações de Jean Paul Sartre e, para além de tais apontamentos, a relação entre a ética e o capitalismo, sistema econômico vigente na atualidade, foi colocada em questão. Por fim, um importante conceito foi destaca- do, o de banalidade do mal, elaborado pela filósofa alemã Hanna Arendt e, partindo dele, a relação estabelecida entre seguir a lei e o bem coletivo e dos indivíduos, em muitas situações, suscita leituras e posicionamentos éticos, ainda que discordantes dos pressupostos legais impostos. Com a compreensão bem delineada dos conceitos éticos para a filosofia ao longo da história, a temática que engloba ética e cidadania foi articulada à uma importante esfera de nossas vidas sociais: o mundo do trabalho. Ser um profissional ético é um importante elemento em nossas trajetórias profissionais e, tal proposição, demanda uma forma- ção ética aprofundada, que se apresenta como uma das proposições de nosso curso. Cabe destacar que todo o sistema educacional brasileiro tem como proposições formar nossos jovens para a cidadania e o mundo do trabalho e um dos parâmetros para se atingir tal objetivo perpassa as discussões sobre ética, moral e a sociedade com suas diretrizes individuais e coletivas. Diante desses pontos, um prosseguimento interessan- te é dado ao se abordar a questão da necessidade de regras morais. Articulando regras individuais, sociais e profissionais, a unidade visa estabelecer uma leitura crítica e de constante reflexão e análise sobre tais relações, sempre colocando em destaque a for- ma como todos nós nos apresentamos e nos portamos em sociedade. No entanto, na atualidade, não basta abordarmos apenas a sociedade em suas con- cepções físicas, é preciso trazer para a discussão os espaços virtuais que as novas tecnologias têm nos permitido vivenciar. Neste sentido, buscamos refletir sobre os avanços da sociedade tecnológica digital pontuando questões éticas, morais e pro- fissionais ao questionar se há limites naquele universo virtual. Tais questionamentos demandaram uma melhor compreensão de direitos e deveres assegurados, ou seja, de uma leitura mais cuidadosa sobre nossa condição cidadã na atualidade. Ao esta- belecer um breve histórico das distintas formas de se conceber a cidadania ao longo dos tempos, nossos estudos procuraram avançar até os dias atuais e, dessa forma, levantar importantes reflexões sobre o acesso aos direitos dos cidadãos, ou seja, da possibilidade de se exercer uma cidadania plena, que como destacamos acima, com- preende uma das diretrizes do sistema educacional brasileiro, formar nossos jovens para se tornarem cidadãos plenos de direito. Nossas temáticas nos conduziram com problematizações e análises profundas e um outro ponto foi posto em reflexão: o espaço da cidadania, tendo como parâmetro nor- teador, mais uma vez, as relações entre ética, cidadania e mundo do trabalho. Correla- cionando o espaço da cidadania a uma perspectiva individual e coletiva, a abordagem 126 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho trouxe importantes reflexões sobre práticas cidadãs e exercício de direitos por parte dos indivíduos que compõem uma sociedade. Esta concepção é expandida para preocupa- ções com uma prática cidadã e ética que abarque, também, a questão ambiental, foram apresentadas. O tema, desde a apresentação inicial vinha perpassando as discussões anteriores, desde a apresentação dos objetivos para o desenvolvimento sustentável na unidade um. Ao longo do curso tais temáticas foram aprofundadas, trazendo à tona problemáticas atuais, como as questões ambiental e animal. Ao se pensar direitos e deveres, ética, moral, etc., nós estamos falando apenas da espécie humana? Qual seria o parâmetro adotado para se excluir os demais seres vivos de tais questões? Apenas o aspecto cognitivo? Abrir-se para tais reflexões, como destacado, é estabelecer uma leitura ética diante do mundo que nos cerca e com o qual interagimos e dependemos. Outro ponto fundamental quando se põe em pauta ética e cidadania é a questão das desigualdades raciais no Brasil. Neste sentido, foi necessário trazer para a discussão o conceito de raça e aprofundar a problemática do racismo em nossa sociedade. Partin- do de tais pressupostos, nosso curso visou refletir sobre a cidadania em um país com uma profunda desigualdade racial, aspecto que impacta as relações sociais, incluindo as relações do mundo do trabalho. Ainda, procurou-se problematizar o racismo estru- tural no Brasil, em suas mais diversas frentes. No mesmo seguimento, as discussões apontadas levaram à necessidade primordial de se abordar e estabelecer alguns apon- tamentos sobre questões de gênero, principalmente em sua relação com o mundo do trabalho. Ao introduzir o conceito e apresentar suas definições e diferenciações, proje- tando as diferenças biológicas e socioculturais, nosso curso teve como intuito refletir sobre um dos aspectos que demarcam profundas desigualdades em nossa sociedade. Importante destacar que, a interseccionalidade entre gênero, raça e classe, abarcam as mais profundas desigualdades no Brasil na atualidade e, por tais motivos, suscitam importantes reflexões e ações que promovam posturas de respeito, pautadas por prin- cípios éticos e cidadãos. Outro ponto de destaque foi a importância das lutas por igualdade e cidadania que ain- da persistem na atualidade. Tendo como parâmetros o reconhecimento das diferenças e da representatividade de grupos minoritários, visou-se refletir sobre as projeções fu- turas para a constituição de uma sociedade mais justa e igualitária, com espaço para o exercício de uma cidadania plena e, também, para a possibilidade de interações éticas, tanto no mundo social quanto no universo profissional. Ao chegarmos à esta última unidade, com tantos referenciais em mente e com a pos- sibilidade de colocá-los em prática, nós realizaremos agora uma elaboração pessoal e profissional importante: missão, visão e valores. 5. REFLEXÕES ÉTICAS, PRÁTICAS DE CIDADANIA: CONSTRUÇÕES DO FUTURO As práticas de cidadania, na atualidade, vão muito além do exercício do voto. Participar ativamente dos eventos e dilemas que se apresentam são fundamentais para cons- truirmos uma sociedade que compreenda interesses coletivos e individuais, mas que também seja capaz de manter posturas éticas em relação ao mundo que nos cerca, 127 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania levando em consideração, por exemplo, os direitos humanos e práticas de desenvolvi- mento sustentável. Neste sentido, por exemplo, “hoje pode-se afirmar que a realização plena e não apenas parcial dos direitos da cidadania envolve o exercício efetivo e am- plo dos direitos humanos, nacional e internacionalmente assegurados.” (PIOVESAN, Flávia. Cidadania Global é possível? IN: PINSKY, Jaime (org.). Práticas de cidadania. São Paulo: Contexto, 2004, p. 266.) Um dos elementos norteadores para a adoção de práticas éticas, de cidadania e de cons- trução sustentável de futuro podem ser apresentadas por meio da elaboração de um pa- râmetro que compreenda: missão, visão e valores. Trata-se de termos importantes dentro do universo empresarial e profissional e, muitas vezes, encontram-se destacados nossites das empresas, mas que também podem servir como referenciais pessoais. É partindo dos apontamentos das unidades e dos elementos destacados até agora que vocês irão definir, portanto, as diretrizes pessoais e profissionais de vocês, tendo como referencial posturas éticas e práticas cidadãs, nossos temas norteadores. É importante ainda, ao longo do processo de elaboração, levar em consideração que “uma pergunta fundamental deve ser feita: que mudanças implicam a ado- ção da sustentabilidade socioambiental como qualidade intrínseca de um novo ciclo de desenvolvimento? E se queremos – e acreditamos ser possí- vel – outro tipo de desenvolvimento, é imperioso reconhecer que, mais do que características técnicas, seu diferencial será a ética pública, os limites e as condições por ela colocados.” (SILVA, Marina. Ecologia, Cidadania e Ética. IN: PINSKY, Jaime (org.). Práticas de cidadania. São Paulo: Con- texto, 2004, p. 274.) Complementando os questionamentos apontados acima, devemos retomar o quadro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável apresentados na unidade 1. Figura 09. Mapa mental – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável Fonte: elaborado pelo autor. Ética e CidadaniaMundo Virtual Escolhas Liberdade Leis Questão Racial Desigualdade Racismo Moral Regras Valores Tradições Estrutural Desigualdade Indivíduo Profissional Missão Visão Valores Gênero Construção sociocultural Espaços de Cidadania Direitos Humanos Meio Ambiente Humanidade Ética Animal Diferenças Sexo Biológico Desigualdade Mundo do Trabalho Capitalismo e Desenvolvimento SustentávelLutas sociais Respeito às Diferenças Interseccionalidade Individuais Coletiva 128 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho Para relembrar os 17 ODS, leia: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs A Universidade São Francisco, aponta os seus direcionamentos institucionais da seguinte forma: ` “Missão: Educar para a paz e o bem, com excelência acadêmica, pluralismo, inovação e sustentabilidade. ` Visão: Ser reconhecida nacionalmente pela excelência acadêmica, pela promoção da inovação sustentável, do desenvolvimento regional, da justiça e da paz. ` Valores: Educação Integral Transformadora, Humanismo Solidário, Respeito à Diversida- de e Inovação Sustentável.” SAIBA MAIS PARA REFLETIR A título de exemplo e para o conhecimento de vocês sobre a nossa instituição, destaca- mos o quadro de missão, visão e valores da Universidade São Francisco. Agora, em vias de conclusão, chegamos ao momento de reflexão e prática. O primeiro passo que vamos seguir é definir a missão individual de vocês, aquela motiva- ção que lhes é intrínseca, que os move. Por missão, devemos partir de alguns questiona- mentos: é importante refletir sobre qual seria a sua missão, ou seja, qual o sentido de todas as atividades que vocês fazem no dia a dia. Reflita e responda: quais são os seus objetivos mais profundos diante dessa missão. Após refletirem, é o momento de condensar as ideias em uma única frase. O segundo apontamento deve ser a visão. Ela estabelece onde vocês gostariam de es- tar no futuro, realizando quais projetos e em que condições, como vocês gostariam de se ver. Aponte destacadamente que tipo de cidadão e profissional vocês gostariam de se tor- nar. Neste ponto, após apontarem de forma solta tais respostas, vocês precisam juntar as informações em uma sentença. Por fim, mas extremamente importante, chegamos aos valores. Que valores éticos e morais vocês valorizam em vocês e nas pessoas? Quais valores são importantes para vocês em suas vidas pessoais e profissionais, mas também, em relação às práticas cidadãs e susten- táveis? Os valores adotados serão norteadores das ações que vocês praticarão para efetivar a missão e a visão elaboradas acima. Reflita sobre as palavras apontadas, releia a missão e a visão desenvolvidas e, partindo delas, estabeleça de forma clara os valores que são im- prescindíveis para vocês em suas trajetórias pessoais e profissionais. Vamos Praticar! https://brasil.un.org/pt-br/sdgs 129 4 U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Ética e Cidadania Para ficar mais fácil de visualizar, complete o quadro abaixo, relacionado ao desenvolvimento das competências de vivência ética e cidadã. Minha missão Minha visão Meus valores Dessa forma, chegamos à conclusão de nossa elaboração. No entanto, é importante des- tacar que, nenhum desses itens, missão, visão e valores, são imutáveis. Eles podem ser repensados e modificados ao longo de suas trajetórias. Muitos saberes e trocas ainda com- porão a vida de vocês e eles podem vir a fazer parte de elaborações futuras. Lembrem-se, nós caminhamos em direção aos nossos sonhos e projetos e todo o caminhar é composto de aprendizado, por isso, muitas vezes os horizontes e caminhos escolhidos podem se mo- dificar. Como pontuou o poeta espanhol Antonio Machado, “caminhante não há caminho, se faz caminho ao andar...”. A todos vocês, muito sucesso, e que suas caminhadas pessoais e profissionais sejam ba- seadas em proposições éticas e cidadãs, repletas de empatia e alteridade, além de muito respeito às diferenças. 130 4 O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMO, Laís. Introdução. ORGANIZAÇÃO INTERNCIONAL DO TRABALHO. Igualdade de gênero e raça no trabalho: avanços e desafios. Brasília: OIT, 2020. p. 15-49. ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. 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A PROFISSÃO NÃO TEM GÊNERO 3. ENFIM, UMA SOCIEDADE POSSÍVEL 4. REMEMORANDO AS TEMÁTICAS ESTUDADAS AO LONGO DAS UNIDADES 5. REFLEXÕES ÉTICAS, PRÁTICAS DE CIDADANIA: CONSTRUÇÕES DO FUTURO _GoBack _Hlk102991740 _Hlk102997152 _Hlk101270290 _Hlk103000377 _Hlk102990077 _Hlk102990442 CAPA_EeC.pdf Ética – sua essência e o cotidiano 1. ÉTICA MORAL 2. APRENDENDO A DECIDIR COM ÉTICA 3. SENDO ÉTICO NO DIA A DIA Atuação Profissional Ética na Sociedade Contemporânea 1. O QUE SIGNIFICA SER PROFISSIONAL? 2. A NECESSIDADE DE REGRAS MORAIS 3. SOCIEDADE TECNOLÓGICA E DIGITAL Vivência profissional e construção da cidadania 1. CIDADANIA ONTEM E HOJE 2. O ESPAÇO DA CIDADANIA 3. É PRECISO CUIDAR! O diverso e o desigual – questões contemporâneas e o âmbito do trabalho 1. SER DIFERENTE É SER DESIGUAL? 2. A PROFISSÃO NÃO TEM GÊNERO 3. ENFIM, UMA SOCIEDADE POSSÍVEL 4. REMEMORANDO AS TEMÁTICAS ESTUDADAS AO LONGO DAS UNIDADES 5. REFLEXÕES ÉTICAS, PRÁTICAS DE CIDADANIA: CONSTRUÇÕES DO FUTURO