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AULA 1 PLANEJAMENTO E SUSTENTABILIDADE URBANA Profª Tharsila Maynardes Dallabona Fariniuk 2 INTRODUÇÃO Falar sobre esse tema exige a abrangência dos diversos fatores que incidem sobre a vivência nas cidades. À medida que cresce a concentração de pessoas em centros urbanos, transformam-se as relações de trabalho, sociais, econômicas e até mesmo comportamentais. E a gestão urbana não pode estar desatrelada disso, afinal, gerir uma cidade exige lidar não apenas com os fatores político-governamentais, mas também com as expectativas e demandas dos cidadãos. Assim, é importante que, para iniciarmos nossa disciplina, tracemos um breve panorama sobre os conceitos fundamentais para entender o processo de gestão urbana brasileira. Vamos começar discutindo o desenvolvimento urbano brasileiro a fim de compreender alguns fatores históricos que contribuíram para a consolidação do nosso espaço urbano tal como é hoje. Já no segundo tema, começaremos a falar sobre a organização espacial brasileira. Para isso, estudaremos o instrumento legal mais determinante nesse processo: o estatuto da cidade. É essa legislação que determina a existência de planos diretores, fundamentais para a gestão das nossas cidades. O Tema 3 trata do conceito de sustentabilidade especificamente. Vamos voltar brevemente à origem do termo e entender de que maneira ele se associa ao planejamento urbano. No quarto tema, abordaremos um conceito que engloba todos os fatores estudados até então: a inteligência urbana. O que faz uma cidade ser inteligente? O que é possível aprender com casos de sucesso na gestão de cidades inteligentes mundo afora? Por fim, o quinto tema sintetizará toda a discussão ao levantar o debate sobre o desenvolvimento sustentável de comunidades. Vamos entender o que quer dizer esse conceito, quais estratégias estão relacionadas a ele e quais são as boas práticas identificadas nesse processo. Ao final desta aula, esperamos que você saia motivado com o embasamento teórico para prosseguir para os próximos temas! Boa aula, bons estudos! 3 TEMA 1 – DESENVOLVIMENTO URBANO BRASILEIRO O processo de urbanização no Brasil se acentuou a partir da década de 1940, com a chegada de indústrias e o fomento a novos processos produtivos. E não é possível desatrelar as práticas de gestão do processo de indução ao desenvolvimento local. Sendo assim, nesse primeiro tema, abordaremos a questão do desenvolvimento brasileiro a partir da etimologia do conceito e do histórico de abordagens em escala regional e local. 1.1 Uma breve retomada do conceito de desenvolvimento Quando tratamos de temáticas abrangentes, como é o caso do desenvolvimento urbano brasileiro, é importante voltarmos um passo atrás para entendermos a etimologia dos termos e os fatos históricos que contribuíram para o atual entendimento do conceito. É bastante comum a confusão entre os termos “desenvolvimento” e “crescimento”, os quais, muitas vezes, são utilizados como sinônimos. No Dicionário Cambridge (2021a), crescimento significa um aumento literal, que indica uma relação quantitativa, matemática, visível ou estatística. Desenvolvimento, por sua vez, é definido (2021b) como algo em expansão e em progresso, que consiste em um significado mais subjetivo. Assim, podemos entender desenvolvimento como aquilo que transforma, modifica e estabiliza as pessoas, os processos, as diretrizes e os comportamentos ao longo do tempo (Papalia; Feldman, 2013). Quando aplicamos esse entendimento nas práticas regionais e urbanas, três elementos podem ser destacados: a) o eixo econômico, pelo qual se tornam visíveis as práticas de alocação de recursos naquele dado local, o que depende fundamentalmente das demandas, dos interesses políticos e governamentais; b) o eixo político em si, que determina de que maneira as ferramentas legais e institucionais serão utilizadas no local; e c) o eixo social, no qual fica evidente a capacidade local de ativação cidadã, de mobilização interna e de propulsão ao crescimento, o que é algo inerente (interno) às características daquele contexto (Oliveira; Lima, 2003). A configuração das cidades também é elemento fundamental no processo de desenvolvimento urbano no Brasil, especialmente nas cidades de menor porte, nas quais a herança colonial deixou legados significativos. Batista (2018) comenta 4 que essa morfologia urbana específica fez com que o desenvolvimento urbano se desse em função da presença das pessoas no centro da cidade, da presença da igreja católica como edificação central e simbólica, e da organização da vida em torno do comércio e do lazer com funções centrais; nesse processo, a presença de áreas rurais foi sendo ressignificada com o passar do tempo. De acordo com dados do IBGE (2010), até os anos 1940, a taxa de urbanização no Brasil era de cerca de 31%. A partir do processo de industrialização que se inicia nesse período, nos anos 1970, esse valor já se aproximava de 56%, e é quando as políticas de desenvolvimento urbano se tornam mais necessárias e presentes. Assim, na década de 1950 surgem novas políticas de desenvolvimento voltadas para o local e o regional, a exemplo do que ocorreu também em outros países da América Latina. Um dos exemplos dessas iniciativas foi a criação da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) na década de 1960, que tinha por objetivo uma maior intervenção estatal em locais menos desenvolvidos da região Nordeste. A crise econômica dos anos 1980, no entanto, prejudicou a plena instrumentalização de estratégias como essa, e somente na década seguinte, com a chegada do Plano Real, é que o Estado retomou parte de sua capacidade de intervenção e ação para induzir o crescimento (Uderman, 2008). O IBGE (2010) estima que atualmente nos aproximamos de 90% de taxa de urbanização, ou seja, especialmente nos últimos 20 anos, diversos fatores influenciaram intensamente o desenvolvimento urbano brasileiro, e alguns deles estão explicitados na Figura 1. 5 Figura 1 – Algumas influências no desenvolvimento brasileiro recente Fonte: Elaborada com base em Resende et al., 2015. 1.2 A gestão das cidades no processo de desenvolvimento brasileiro Alguns autores consideram que o desenvolvimento urbano brasileiro foi “tardio”, o que significa dizer que houve uma certa discrepância entre os arranjos que ocorriam aqui em comparação a outros locais do mundo, no mesmo período. Pesquisadores como Martins e colaboradores (2010) afirmam que alguns dos fatores que contribuíram para impulsionar o desenvolvimento brasileiro nas últimas décadas foram os arranjos de cooperação intermunicipal, a implantação de centros e parques tecnológicos, a cooperação e o associativismo, e a economia solidária. Os professores Ultramari e Firkowski (2012) sintetizam a gestão urbana brasileira em quatro diferentes momentos, que, por uma razão didática, podem ser sobrepostos, respectivamente, nas décadas de 1970, 1980, 1990 e a partir dos anos 2000 (ver figura 2). Os autores comentam que os anos 1970 marcam o início desse processo de maneira mais evidente por concentrar uma configuração bastante tecnicista, sem limitações de recursos financeiros e com repasses mais diretos acontecendo entre união e cidades. Nesse período, a gestão urbana era muito mais operacional, pois tinha o papel de direcionar e administrar os recursos e os investimentos. São frutos dessa 6 década diversas obras de grande porte e de infraestrutura básica, tais como estradas, pontes, viadutos, redes etc. Atualmente, é difícil mensurar de maneira homogênea qual foi a perenidade desse legado Brasil afora, pois cada município aproveitou os recursos de modos diferentes, sendo que em alguns deles as obras do período ainda permanecem, e em outros já houve a substituição ou atualização. A décadade 1980, por sua vez, agregou à gestão urbana a problemática econômico-financeira em que o país estava inserido. Nesse sentido, a gestão passou a ter um caráter emergencial e desenvolvimentista que teve sua origem na necessidade de driblar a crise e de lidar com o esgotamento da capacidade de governança. Os autores afirmam que é nesse período que a gestão urbana deixa de ter um caráter puramente operacional e passa a ser, de fato, uma gestão. Nos anos 1990, após a acomodação das problemáticas surgidas na década anterior, abriu-se espaço para novas temáticas de gestão e desenvolvimento. Seguindo uma tendência mundial, surge no Brasil o que os autores chamam de Gestão Ambiental Urbana, muito influenciada pelas correntes ecológicas que alimentavam eventos como a ECO-92, sediada no Rio de Janeiro. Nesse modelo, o discurso da sustentabilidade ganhou mais espaço, e os interesses ambientais passaram a estar mais presentes nas agendas desenvolvimentistas. A preocupação ambiental deixou de ser exclusiva de espaços com grandes áreas verdes e passou a existir também nos centros urbanos já bastante adensados. Por fim, a década de 2000 representa um importante divisor de águas no desenvolvimento brasileiro em termos de gestão, especialmente no que diz respeito à participação mais ativa da população. O Estatuto da cidade, aprovado em 2001 – sobre o qual falaremos mais no tópico seguinte –, permitiu modelos mais descentralizados de administração, que mudou a forma como o planejamento e os gestores encaravam os espaços. Figura 2 – A gestão e o desenvolvimento urbano brasileiro das últimas décadas 7 Fonte: Elaborada com base em Ultramari e Firkowski, 2012. TEMA 2 – ESTATUTO DA CIDADE O Estatuto da Cidade está diretamente atrelado ao processo de planejamento urbano e às características que contribuem para ambientes mais sustentáveis. Essa lei atualizou a forma como a cidade deve ser pensada, planejada e idealizada. 2.1 As definições do Estatuto da Cidade O Estatuto da Cidade é um instrumento criado por meio da Lei n. 10.257 de 10 de julho de 2001, que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal. Esses artigos tratavam da política urbana e da regularização fundiária. A função do Estatuto é garantir a função social da propriedade e dispor com detalhes sobre a gestão urbana, especialmente no que se refere ao uso, ocupação e planejamento do território das cidades (Brasil, 2001). Uma das mais importantes urbanistas do Brasil, Raquel Rolnik ([S.d.]), afirma que o Estatuto trouxe inovações para a política urbana brasileira, em especial em três eixos: a) O eixo da indução à ocupação do solo urbano, assim como à normatização dessa ocupação, a partir da criação de novos instrumentos urbanísticos. Esse eixo diz respeito principalmente às forças do mercado imobiliário e à forma como se planeja a sustentabilidade urbana na relação entre espaços naturais e espaços construídos. b) O eixo da participação cidadã diretamente sobre o processo decisório relativo à cidade. O Estatuto postula a obrigatoriedade de se realizar audiências públicas, consultas, plebiscitos, orçamentos participativos e 8 outros processos participativos em que os cidadãos ajudam a identificar as demandas e a determinar a destinação dos recursos. c) O eixo da regularização da propriedade urbana, que ampliou as possibilidades de legalização de lotes, terrenos e imóveis. O Estatuto prevê maiores condições para tratar de assentamentos irregulares, subnormais e ocupações clandestinas, tão comuns nas cidades brasileiras. A partir disso, a cidade – enquanto território físico – se torna um ente importante também no combate das assimetrias e desigualdades sociais. Sobre a participação cidadã, o Estatuto da cidade visa garantir maior transparência governamental, associado ao posicionamento dos cidadãos frente às demandas urbanas. Veja o que diz a lei, em seu art. 39, inciso 4º: [...]§ 4o No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão: I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade; II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos; III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos (Brasil, 2001). O Estatuto da Cidade prevê diversos instrumentos, alguns totalmente novos e outros que atualizam seções já existentes. Os principais instrumentos determinados na lei dizem respeito especialmente à forma de organização do solo urbano mediante uso, ocupação e oneração fiscal, dentre os quais, destacam-se: i. parcelamento, edificação ou utilização de compulsórios – para combater ociosidade e subutilização de espaços urbanos; ii. Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo – para onerar imóveis e terrenos que descumpram as regulamentações e a função social no território urbano; iii. desapropriação – aplicada quando o IPTU progressivo não é efetivo; iv. usucapião especial urbano – incide sobre a transferência de posse de um imóvel ou terreno; v. direito de preempção – garante ao poder público a preferência de compra de um espaço; vi. direito de superfície – determina a concessão do direito de utilização do solo, subsolo ou espaço aéreo de um terreno a um terceiro; 9 vii. outorga onerosa do direito de construir – determina uma contrapartida financeira ao município quando se deseja construir acima do limite estabelecido pelo planejamento; viii. transferência do direito de construir – autorização para a construção em outro local, mediante contrapartidas acordadas com o município; ix. operações urbanas consorciadas – conjunto de medidas estabelecidas entre múltiplos atores para regulamentar e/ou melhorar a qualidade de um espaço urbano; x. EIV – Estudo de Impacto de Vizinhança – estudo realizado para mensurar e diagnosticar o impacto de empreendimentos, a fim de autorizar ou não existência destes (Mukai, 2019). 2.2 Planos Diretores O Plano Diretor é um instrumento-base do Estatuto da Cidade, que visa ordenar o desenvolvimento e a expansão urbana, considerando toda a abrangência do território municipal. Esse planejamento deve ser composto de avaliações, diagnósticos, diretrizes e mapeamentos revistos a cada dez anos, no mínimo. Tudo o que for previsto no Plano Diretor deve ser considerado também em outras legislações municipais, a exemplo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e do Planejamento Plurianual (PPA) (Brasil, 2001). O Brasil possui atualmente mais de 5.000 municípios, por essa razão, nem todos eles possuem a obrigatoriedade de ter um Plano Diretor. O Estatuto determina alguns critérios para a existência dos planos, que podem ser verificados na figura 3. Figura 3 – Critérios de obrigatoriedade do Plano Diretor 10 Fonte: Elaborada com base em Brasil, 2001. TEMA 3 – SUSTENTABILIDADE NAS CIDADES O termo sustentabilidade, muitas vezes, é automaticamente associado a aspectos ambientais. Com o passar do tempo, entende-se a sustentabilidade como um processo holístico e multifacetado que incide sobre todas as áreas do conhecimento. 3.1 O conceito de sustentabilidade aplicado nas cidades Para o pesquisador Sachs (2002), podemos considerar a sustentabilidade a partir de seis dimensões principais (Figura 4). A primeira delas é a sustentabilidade ecológico-ambiental, que consiste em estratégias de preservação do meio ambiente a fim de promover o equilíbrio dos ecossistemas e a garantia da perenidade de recursos naturais para as gerações futuras. A segunda dimensão é a sustentabilidade econômica, relacionada com a equilibrada relação entre renda e consumo, e a uma correta distribuição de recursos. A terceira dimensão é a sustentabilidadesocial, que diz respeito ao equilíbrio de forças na sociedade, de forma que exista uma distribuição de renda mais equitativa, redução das desigualdades e pleno desenvolvimento dos indivíduos. A 11 quarta dimensão é a sustentabilidade política, que significa a garantia da participação dos cidadãos na vida pública, tendo assegurados seus direitos democráticos e um equilíbrio entre as forças de poder. Na quinta dimensão, temos a sustentabilidade cultural, que engloba o incentivo à autonomia e respeito às identidades e à história de um povo, valorizando costumes e tradições locais de maneira equilibrada com as inovações. Por fim, a sexta dimensão é a territorial, que envolve o equilíbrio entre os sistemas urbano e rural, atividades econômicas, produção e demografia, de forma que todos tenham garantido o seu acesso ao espaço desenvolvido. Figura 4 – As dimensões da sustentabilidade Fonte: Elaborada com base em Sachs, 2002. Essas dimensões não devem ser consideradas de forma isolada ou linear, pois são complementares e retroalimentáveis. Para uma cidade ser considerada sustentável, é preciso que exista equilíbrio entre esses seis eixos. Esse processo é desafiador para a gestão urbana. No caso do Brasil, autores como Rocha e colaboradores (2017) comentam que a busca pela sustentabilidade em suas múltiplas formas é o meio de melhorar a distribuição de renda e a qualidade de vida das pessoas, transformando significativamente os padrões de consumo, a inserção social e as políticas públicas. Os autores comentam, ainda: No que se refere ao desenvolvimento local sustentável, as discussões apontam para a necessidade de se olhar para as pequenas comunidades, em um mundo globalizado, levando em consideração suas necessidades e suas contribuições para o desenvolvimento global (Rocha et al., 2017, p. 472, grifo nosso). 12 3.2 Smart sustainable cities A sustentabilidade é um eixo importante para a qualidade de vida e para o desenvolvimento urbano. Alguns autores utilizam o termo smart sustainable cities para enfatizar a importância do fator sustentável para o incremento do bem-estar urbano. No próximo tema abordaremos um pouco mais a questão da chamada inteligência urbana, mas por ora vamos entender o papel do conceito de sustentabilidade no processo de gestão das cidades. Na concepção da atual cidade sustentável, o meio urbano é um “tecido social” que pode se apoiar nas ferramentas digitais e tecnológicas no aumento da qualidade de vida e da sustentabilidade urbana (Bibri; Krogstie, 2017). Sob essa óptica, as funções das cidades são otimizadas ao se fazer uma gestão racional dos recursos, o que demanda, necessariamente, ter mais domínio sobre ferramentas – digitais, inclusive – que possam fornecer mais informações sobre o estado das estruturas e dos meios, e isso consequentemente se revela em uma melhor capacidade de gestão dos sistemas e demandas urbanas (Steenbruggen et al., 2015). Quando falamos sobre sustentabilidade das cidades, também devemos considerar o aumento da resiliência urbana. O termo resiliência pode ser aplicado nas mais diversas áreas do conhecimento, mas em suma, significa ter capacidade de recuperação e de estabilidade após impactos e alterações. Alves (2015) comenta que situações críticas colocam em xeque o nível de interação e coesão dos diversos elementos e grupos que compõem as cidades. Diversos são os fatores que podem tornar uma cidade mais resiliente, nesse sentido. Segundo a Rockfeller Foundation (2014), instituição que, entre outras coisas trabalha com estratégias para gestão urbana, pode-se sintetizar um incremento na resiliência urbana a partir de sete características: i. capacidade de reinvenção constante; ii. robustez, que diz respeito aos ativos e infraestruturas que compõem os sistemas; iii. plenitude de recursos; iv. flexibilidade, que tem a ver com a capacidade de adaptação a diferentes circunstâncias; v. redundância, que significa reposição constante e proposital de recursos e que possui vários meios de atender uma mesma demanda; 13 vi. inclusão, que faz com que diferentes grupos e segmentos sociais estejam engajados no processo de melhoria urbana e de responsabilidade coletiva; vii. integração entre sistemas e componentes do meio. TEMA 4 – CIDADES INTELIGENTES Acabamos de falar sobre a importância da sustentabilidade para incremento do bem-estar urbano, que é um dos fatores importantes para a chamada inteligência urbana. Mas, afinal, o que significa um ambiente urbano inteligente? O termo smart city passou a ser cada vez mais utilizado nos últimos anos, tanto na gestão pública quanto na academia e iniciativa privada, na maioria das vezes, atrelado também à noção de ambientes mais sustentáveis. Existem diversos vieses de interpretação desse conceito, e nesse tema vamos explorar alguns deles. 4.1 Origem e interpretações do conceito de cidade inteligente O advento da internet e das tecnologias digitais, especialmente a partir dos anos 1990, alteraram comportamentos, por consequência, esse processo transformou o modo como vivemos em sociedade. Os ambientes urbanos passaram a ser cada vez mais permeados por tecnologias cabeadas ou não, tais como sensores, câmeras de monitoramento, vigilância, rede wireless etc. Ao longo do tempo, o universo do entretenimento e cultura pop (filmes, séries, livros, jogos) contribuíram para criar a imagem de que a cidade tecnológica é algo futurista, quase utópico. Alguns pesquisadores, como Anwaar AlDairi e Lo’Ai A.Tawalbeh (2017) e também Maria-Lluisa Marsal-Llacuna e colaboradores (2015) indicam que o conceito de cidade inteligente realmente se originou na tentativa de designar ambientes urbanos que adotavam tecnologias digitais para aprimoramento, atualização e otimização da gestão urbana e dos serviços. No entanto, esses e outros pesquisadores, como Margarita Angelidou (2014) e Christos Cassandras (2016) concordam que atualmente há múltiplas perspectivas no conceito de cidade inteligente, e que não há uma definição única nas aplicações ou na literatura. O consenso entre os autores é de que o conceito de fato começa a ser disseminado nos anos 1990, com base nas novas possibilidades tecnológicas, de mudanças no entendimento da flexibilidade produtiva e do surgimento de novos polos tecnológicos em todo o mundo. 14 O que chamamos de inteligência urbana não quer dizer uma cidade que define automaticamente as estratégias e o planejamento. Os conceitos cada vez mais holísticos e abrangentes são os que determinam que uma cidade inteligente é aquela que aproveita o seu capital intelectual para otimizar o planejamento e garantir melhores condições urbanas e bem-estar. Assim, a cidade inteligente mistura inteligência artificial (as tecnologias digitais), inteligência humana e inteligência coletiva, construída por todos em comunidade (Komninos, 2011). Um dos conceitos mais difundidos é o de um grupo da Universidade Tecnológica de Viena (Tuwien, 2016; Giffinger et al., 2007), que estabelece um modelo sistêmico para as smart cities, a partir de seis dimensões obrigatórias para o desenvolvimento urbano inteligente (ver Figura 5). • Smart Governance, que preza por uma gestão pública eficiente que converge transparência, eficácia e oferta de serviços públicos de qualidade; • Eixo Smart Living, que consiste em um processo constante de melhoria e bem-estar urbano, oferecendo segurança, saúde, lazer, cultura e coesão social para os cidadãos; • Dimensão Smart Economy, baseada na criação de uma inteligência coletiva movida por um espírito de inovação, empreendedorismo e produtividade; • Smart Environment, que consiste na construção de uma consciência coletiva de preservação do meio e de uma boa gestão dos recursos naturais; • Smart Mobility, que visa a adoção de estratégias no eixo transporte,a fim de torná-lo multimodal, menos poluente, acessível, integrado e sustentável; • Por fim, dimensão Smart People, que descreve o processo pelo qual os cidadãos são capacitados, empoderados e se tornam cada vez mais receptivos e ativos frente aos desafios, estratégias e demandas. Aliás, essa noção de cidade inteligente como um conjunto de atores inteligentes, coletivamente, é defendida também por Vanolo (2014), e chamada pelo autor de smartmentality. O pesquisador reforça, no entanto, a importância de se considerar variações de contexto que interferem nesse processo, como a exclusão digital e o analfabetismo tecnológico, a fim de não assumir apenas a objetividade da tecnologia, excluindo-se, assim, as questões sociais do processo. 15 Figura 5 – Dimensões das cidades inteligentes Fonte: Elaborada com base em European Smart Cities, 2016; Giffinger, 2007. 4.2 Aplicações em cidades inteligentes São diversos os exemplos de aplicação do conceito de cidade inteligente mundo afora. Alguns dos projetos pioneiros surgiram em países do oriente, no final da década de 1990, como é o caso de Singapura. Pesquisadores como Arun Mahiznan (1999) estudaram esse exemplo, em especial, lá, a gestão pública iniciou a estratégia implantando rede pública de banda larga nacionalmente (e isso, na época, era considerada uma grande novidade!). Processos de digitalização e de otimização das infraestruturas de TI são comuns no local desde a década de 1980. No entanto, também lá as assimetrias sociais vieram à tona em projetos dessa natureza, mostrando que a tecnologia não era capaz de atingir todas as camadas da população, por motivos de exclusão, marginalização e dificuldade de adaptação às novas ferramentas. No Brasil, pesquisas indicam que as aplicações para cidades inteligentes estão bastante relacionadas a projetos que são patrocinados por empresas estrangeiras, e por meio de parcerias público-privadas. Além disso, segue-se aqui 16 uma tendência internacional de exposição e divulgação de ideias em feiras e exposições, nas quais o conceito também normalmente vem acompanhado de protótipos de máquinas, ideias desenvolvidas em startups e produtos da indústria automobilística e da construção civil. Saiba mais Para conhecer um pouco mais sobre a disseminação desse conceito no Brasil, consulte o seguinte material: FARINIUK, T. M. D. A construção multifacetada do conceito de smart city: o panorama brasileiro e o caso de Curitiba-PR (Tese de Doutorado) – Programa de pós-graduação em Gestão Urbana. PUCPR. Curitiba, 2018. Pode-se observar alguns pontos em comum entre as estratégias de sucesso mundo afora. A figura 6 apresenta alguns desses itens, que foram obtidos com base em um levantamento bibliográfico-documental realizado entre os anos de 2015 e 2018 (Fariniuk, 2018). Figura 6 – Estratégias comuns em casos de sucessos das cidades inteligentes Fonte: Fariniuk, 2021. 17 TEMA 5 – DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE COMUNIDADES O que significa desenvolver uma comunidade? Neste tema, vamos entender quais estratégias estão relacionadas com esse conceito e quais são as boas práticas identificadas nesse processo. 5.1 O que é desenvolver de modo sustentável? Desenvolver localmente significa impulsionar uma localidade para a movimentação de capital e para a competitividade, com equilíbrio. Paula (2008) comenta que podemos utilizar a sigla DLIS (Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável) para designar o processo de aprimoramento humano e social de modo sustentável, não somente focando no crescimento econômico. Por muito tempo se considerou, de certa forma, que o desenvolvimento estava atrelado à existência de tecnologias e de uma inovação muitas vezes utópica, até mesmo futurista. Cada vez mais se cria a consciência de que o pleno desenvolvimento de comunidades, para ser sustentável, deve ser pautado sobre o humano, sobre o capital social e as particularidades individuais. A pesquisadora brasileira Macke (2005) faz uma reflexão a esse respeito: O desenvolvimento local exige pois, uma nova forma de gestão no campo social [...]qualquer iniciativa no campo da gestão social [...] deve contemplar aspectos que vão além do incentivo aos valores da sociedade industrial, incorporando uma visão de mundo mais ampliada. [...] Estaremos verdadeiramente fazendo “gestão social” quando a sociedade entrar em um processo de negociação dos rumos do desenvolvimento com o Estado e o Mercado e quando conseguirmos construir mecanismo de controle social sobre estes dois atores. A gestão social pressupõe que os atores são sujeitos protagonistas do desenvolvimento (Macke, 2005, p. 255-256, 268, 273). 5.2 Lições aprendidas sobre desenvolvimento sustentável de comunidades O conhecimento e a inovação são fatores que desencadeiam o desenvolvimento. Esse é um entendimento de muitos especialistas. A capacidade de criar e utilizar estrategicamente o conhecimento, de modo coletivo, é o que o pesquisador canadense Julien (2010) denomina de Sociedade do Conhecimento. Uma “competividade intelectual”, ou “de ideias”, é saudável à medida que pessoas estão pensando conjuntamente em soluções para determinado problema. O conhecimento possui um caráter imaterial e sua boa utilização ajuda a transformar os processos internos da gestão e contribui para valorizar os 18 indivíduos. Essa é uma lição importante do universo do empreendedorismo que podemos trazer para dentro da gestão urbana. Figura 7 – Sociedade do conhecimento Créditos: tadamichi/Shutterstock. Os pesquisadores Sthor e Taylor, em publicação de 1981, afirmam que existem algumas estratégias fundamentais para o desenvolvimento que podem ser observadas em casos de sucesso: i. a busca pela equidade territorial, que pressupõe evitar as disparidades regionais; ii. o planejamento de longo prazo, que demanda prioridade e controle das demandas, mesmo sob pressão dos diferentes interesses, poderes e mercados; iii. a prioridade à escala local, que faz com que pequenas comunidades sejam mais autônomas e, somadas, propulsionem o desenvolvimento; iv. a autodeterminação, fator de motivação que precisa existir nas comunidades e no processo de gestão para lidar com os desequilíbrios que surgirem. Esses aspectos merecem ser aprofundados mais um pouco. Voltaremos ao tema da gestão voltada para o desenvolvimento em oportunidades futuras nas nossas aulas. Até lá! 19 REFERÊNCIAS ALDAIR, A; TAWALBEH, L. Cyber Security Attacks on Smart Cities and Associated Mobile Technologies. 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