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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA VAGNER MATIAS DO PRADO Entre ditos e não ditos: a marcação social de diferenças de gênero e sexualidade por intermédio das práticas escolares da Educação Física Presidente Prudente 2014 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA VAGNER MATIAS DO PRADO Entre ditos e não ditos: a marcação social de diferenças de gênero e sexualidade por intermédio das práticas escolares da Educação Física Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (FCT/UNESP) campus de Presidente Prudente-SP como requisito obrigatório para a obtenção do título de Doutor em Educação. Orientadora: Profa Dra Arilda Ines Miranda Ribeiro Presidente Prudente 2014 FICHA CATALOGRÁFICA Prado, Vagner Matias do. P921e Entre ditos e não ditos: a marcação social de diferenças de gênero e sexualidade por intermédio das práticas escolares da Educação Física / Vagner Matias do Prado. - Presidente Prudente : [s.n], 2014 258 f. Orientador: Arilda Ines Miranda Ribeiro Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Educação Física Escolar. 2. Teoria Queer. 3. Heteronormatividade. 4. Homossexualidades. 5. Homofobia. I. Ribeiro, Arilda Ines Miranda. II. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. III. Entre ditos e não ditos: a marcação social de diferenças de gênero e sexualidade por intermédio das práticas escolares da Educação Física. Ficha catalográfica elaborada pela Seção Técnica de Aquisição e Tratamento da Informação – Serviço Técnico de Biblioteca e Documentação - UNESP, Campus de Presidente Prudente. Dedico este trabalho aos corpos transgressores, às vidas ininteligíveis, ao coletivo anômalo, às travas, sapas e bichas, às insurgências queer. Agradecimentos A finalização de um trabalho não pode ocultar o processo de seu desenvolvimento. Durante esse trajeto, árduo, nunca estamos sozinhos. Ao contrário, sempre acompanhados e inspirados por múltiplas vozes que se materializam a cada palavra grafada em papel. Reconhecer essas vozes, mesmo sem nomeá-las, é imprescindível para que possamos, realmente, compreender alguns dos significados contidos na enunciação “PESQUISA”. Com isso, desde já, agradeço aos colaboradores que imprimiram suas vozes neste trabalho e permitiram com que fosse possível compreender que se faz necessário, e urgente, interceder nos processos formativos escolares, pois, essa trajetória pode se transformar em uma verdadeira Odisséia a ser travada. E, com o agravante de que nem todos somos “Ulisses”. Mesmo correndo altos riscos de não ser fiel a todas e todos que, efetivamente, contribuíram para a conclusão desta Tese de Doutorado, assumirei a responsabilidade por eventual equívoco. Longe de soar de forma hierárquica, nos primeiros parágrafos me dedico a explicitar alguns significados que atribuo a três devires femininos que marcam, de forma visível, o que nomeio como vida. Sem contar que a potente subjetivação feminina que me acompanha se conecta com estas três mulheres. Agradeço a minha inspiradora MÃE, por ter criado inúmeras condições históricas de possibilidade que viabilizaram a conclusão de mais essa etapa. A figura feminina mais significativa em minha vida. Mesmo imersa em situações dolorosas durante o transcorrer de sua vida, não poupou esforços, motivações e confiança para fabricar meios, até então inéditos, que contribuíram para que um de seus filhos alcançasse o almejado título de Doutor. Agradeço muito pelo afeto, carinho e proteção dedicados durante todo esse processo. À minha querida irmã. Outra mulher contagiante que, além de ser capaz de reconstruir o que pensava ser a vida, sempre esteve ao meu lado para tudo e contra todos. Recordo que foi a primeira pessoa do núcleo familiar para quem tive a coragem de desvelar desejos latentes e a vontade de migrar, e não somente em um sentido geográfico, para conhecer outras possibilidades de vida. Mesmo longe, sempre se fez presente. À minha respeitável orientadora, Profa. Dra. Arilda Ines Miranda Ribeiro, uma mulher forte, dedicada, competente e decidida com quem tenho o prazer de aprender, cotidianamente, muito dos trâmites do processo de “tornar-se” um acadêmico que se pretende professor. Penso que boa parte de minha determinação provém desse encontro e da linha de subjetivação contagiante que me proporciona. Além de orientadora, sinto que estabelecemos vínculos de amizade. Uma mulher sempre alerta e pronta para desestabilizar minhas certezas. Ao Prof. Dr. José Ignácio Pichardo Galán por ter me recebido na condição de estagiário junto ao Departamento de Antropologia Social anexo à Facultad de Ciencias Políticas e Sociología da Universidad Complutense de Madrid (UAM). Um profissional que muito me auxiliou em tempos difíceis, separado do habitual, por um oceano. Embora a experiência de sete meses tenha trazido grandes contribuições acadêmicas e culturais, me fez valorizar minha terra e as parcerias que efetivei nela. Sete meses de leituras, conversas e pesquisas. Mas, sete meses de saudades e vontade de regressar! Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/UNESP) por fornecer à necessária infraestrutura e recursos humanos para que o doutorado fosse viabilizado. Desde os tempos de graduação, tenho orgulho das marcas da UNESP em minha trajetória. Ela fez e faz diferença! Aos Professores membros da Banca de Defesa a quem quero detalhar minha gratidão: À Profa. Dra. Maria de Fátima Salum Moreira. Profissional admirável, sempre comprometida e solícita aos chamados discente. Ainda quando estudante de mestrado já me fascinava com seu amplo conhecimento sobre culturas, currículos e processos de formação escolares. Aprendi muito sobre educação escolar na pretensa condição de investigador da área, uma vez que, como bacharel em Educação Física, apresentava defasagens em compreender o ambiente escolar enquanto foco para análises críticas e políticas. À Profa. Dra. Helena Altmann. Inspiração teórica desde os tempos de graduação. Um dos primeiros contatos com pesquisas em Educação Física e relações de gênero foi viabilizado por sua produção. Ao ter a oportunidade de conhecê-la pessoalmente percebi que, além de uma pesquisadora de peso para a área de Educação Física, é uma pessoa humilde e aberta a parcerias. Mesmo com aspirantes a pesquisador. Ao Prof. Dr. Wiliam Siqueira Peres, um querido que me contagiou com seu posicionamento político e comprometimento social em desestabilizar as normas de gênero e sexualidade que legislam sobre nossas vidas. Agradeço por ter me recebido como “aluno especial” em sua disciplina junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNESP campus de Assis-SP. Também não poderia esquecer o carinho com que, ao passar por Madri em meus tempos de solidão, prontamente entrou em contato para saber como as coisas estavam. Aquele encontro foi muito importante, pois me fortaleceu para enfrentar os meses que viriam. Ao Prof. Dr. Márcio Rodrigo Vale Caetano, outro querido e respeitável “intelectual militante” com quem aprendi, não somente a partir de seus textos, mas também ao ouvi-lo durante os congressos nos quais nos encontramos. Sempre disposto a contribuir durante o processo de construção de minhas inquietações acerca dos gêneros esexualidades e uma fonte de inspiração feminista. Também agradeço ao Prof. Dr. Divino José da Silva, Prof. Dr. Irineu Aliprando Tuim Viotto Filho, Profa. Dra. Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo e Profa Dra Eliane Rose Maio, também membros de Banca e sempre dispostos a interlocuções. Às meninas e menino da seção de Pós-Graduação. Em especial às queridas e querido: Ivonete Gomes de Andrade, Cínthia Thiemi Onish, André Trindade Meira, amigas e amigo de jornada que nunca pouparam esforços para construírem algumas condições de materialidade que viabilizassem esse processo de doutoramento. Também deixo meus agradecimentos à Ana Claudia de Marchi Pazin Ursulin e Aline da Silva Ribeiro Muniz, novas companheiras de incansáveis consultas acadêmicas. Ao Danilo Santiago Gomes Lúcio, companheiro afetivo e parceiro intelectual. Digamos que um engenheiro e futuro Professor Doutor que se doa às intersecções entre Humanas e Exatas. Muito da finalização desse processo devo a ti. Quantas discussões! Quantas divergências! Quantos confrontos! E quantas possibilidades! Aprendi a me despir do “meu eu” e a exercitar o silêncio para ouvir vozes que nos trazem novos fôlegos. O trajeto Presidente Prudente - Ilha Solteira realmente foi produtivo. À amiga e parceira profissional Keith Daiani da Silva Braga pelas incansáveis discussões acadêmicas e abertura pessoal. Perdi as contas dos muitos e acalorados confrontos teóricos sobre os estudos pós-estruturalistas e teoria queer. Entre foucaults, butlers, preciados, wittigs, rubins e richs aprendemos a nos respeitar enquanto profissionais e fortalecemos uma parceria que, penso eu, levar para o resto da vida. À Jéssica Kurak Ponciano, outra parceira de pesquisa que estabeleci durante meu processo de formação. Uma estudiosa de questões feministas que partilhou comigo diversas ideias que geraram muitas possibilidades de problematização. Além de uma companheira para debates, uma amiga que produz diversas linhas críticas que possibilitam novas subjetivações. À querida Maryna Vieira Martins Antunes, amiga com quem partilhei muitos momentos de angústias e possibilidades. Em nossa jornada como pós-graduandos foram vários os debates sobre políticas formativas e a necessidade de nos posicionarmos frente às injustiças sociais. Ao amigo Marcos Vinicius Francisco. Mais que parceiro, um irmão que instituí em solo prudentino. Profissional capacitado, inconformado com a situação social posta e professor comprometido com a almejada transformação das condições de opressão e não acessibilidade baseadas na classe social. Um teórico materialista com quem muito aprendi e em quem me inspiro desde os tempos de mestrado. Agradeço por ter me auxiliado em minha incursão empírica. Ao amigo Alex Sandro Gomes Pessoa. Sujeito sempre disposto a “socorros” acadêmicos e preparado intelectualmente quando convocado para confrontos necessários. Amigo que contribuiu de maneira significativa para o delineamento metodológico de minha pesquisa. Uma das poucas subjetividades masculinas que me inspira. Às queridas e queridos: Jamilly da Cunha Nicácio, Taluana Laiz Martins Torres, Jorge Luis Mazzeo Mariano, Jaqueline de Andrade, Wagner Aparecido Caetano, André Caobianco e Édison Trombeta de Oliveira, membros do NUDISE – Núcleo de Diversidade Sexual na Educação e GEPECUMA – Grupo de Pesquisa em Educação, Cultura Memória e Arte, ambos da FCT/UNESP. Muito além de grupos de pesquisas, coletivo de amigos e amigas, parceiros e parceiras com quem travei inúmeras discussões que enriqueceram, em muito, meu processo formativo. Ao coletivo discente do Programa de Pós-Graduação em Educação da FCT/UNESP. Ao todo, foram mais de seis anos (entre Mestrado e Doutorado) na companhia desse grupo que, sempre em mutação, possibilitou inúmeras experiências significativas. À FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pela concessão de duas bolsas de estudos que viabilizaram o desenvolvimento da pesquisa. Uma concedida no Brasil e outra para que pudesse realizar o almejado estágio de pesquisa no exterior (BEPE). O ato de “debruçar” sobre o tema de investigação e a elaboração da versão final do trabalho aqui apresentada, seriam dificultados caso não obtivesse os recursos disponibilizados. Os meus “muito obrigado”! Nada é impossível de mudar Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar. (Bertold Brecht) Entre ditos e não ditos: a marcação social de diferenças de gênero e sexualidade por intermédio das práticas escolares da Educação Física Resumo A Educação Física se encontra inserida em sistemas discursivos que constroem representações sobre condutas normalizadas em nossa sociedade. Ostentar um corpo diferente dos padrões de saúde e beleza instituídos, não se adequar aos comportamentos sociais “apropriados” segundo seu gênero, ou transgredir o sistema de inteligibilidade cultural que prediz uma relação causal e ordenada entre sexo, gênero e sexualidade são marcadores que denunciam algumas “diferenças” durante aulas de educação física na escola. Ao contar com o aporte teórico de estudos pós-estruturalistas e da teoria queer, objetivamos compreender de que maneira os discursos utilizados pela disciplina produzem marcas associadas ao gênero e a sexualidade, tendo a heterossexualidade como base normativa. Investigamos como sujeitos que questionam os padrões de normalidade heterossexual são representados nos espaços escolares e como constroem resistências para transitarem por eles. A pesquisa foi desenvolvida junto a jovens adultos gays no município de Presidente Prudente – SP. Através da aplicação de questionários socioeconômicos e da elaboração de seis (6) entrevistas semiestruturadas, analisamos relatos sobre vivências de sujeitos, que se autorrepresentam enquanto homossexuais, a partir de suas rememorações sobre aulas de educação física na Educação Básica. Os resultados obtidos apontam que a Educação Física escolar é gerenciada pelos mecanismos reguladores de gênero na qual a heterossexualidade é tomada como padrão de normalidade. Sujeitos que não performatizam a masculinidade hegemônica, ou pautada na noção de virilidade e subjugação do feminino, são alvos constantes de marcações de diferenças que objetivam “materializar” suas “não adequações” no cenário escolar e, mais especificamente, durante aulas de educação física nesse contexto. Palavras chave: Educação Física Escolar, Teoria Queer, Heteronormatividade, Homossexualidades, Homofobia. Between the said and the unsaid: social labeling of gender and sexuality differences in the academic implementation of Physical Education Abstract Physical education is part and parcel of the discursive systems that construct representations of standardized behaviors in our society. Sporting a different physique than that set by the commonly accepted standards of health and beauty, not adhering to socially appropriate gender behaviors, or running afoul of the system of cultural intelligibility that demands a causal and ordered relationship between sex, gender and sexuality are markers that indicate "differences" in physical education classes at school. By relying on the theoretical framework of poststructuralist studies and queer theory, we aim to understand how the discourses used by the discipline produce standards for gender and sexuality, using heterosexuality as a normative baseline. Weresearched subjects who questioned the standards of heterosexual normality as represented in academic spaces and how they built the defenses that allowed them to transit in these spaces. The survey was developed with young gay adults in the city of Presidente Prudente - SP. Through the use of socioeconomic questionnaires and the development of six (6) semi-structured interviews, we analyzed reports of the experiences of the subjects, who self-represent as homosexuals, from their recollections of physical education classes throughout basic education. The results obtained indicate that Physical Education is managed by the regulatory gender mechanisms in which heterosexuality is taken as a standard of normality. Subjects who did not demonstrate hegemonic masculinity, as grounded in the notion of virility and female subjugation, are constant targets of labeling that aim to "materialize" their "lack of adequacies" in the school setting and, more specifically, within the context of physical education classes. Keywords: Physical Education, Queer Theory, Heteronormativity, Homosexuality, Homophobia. SUMÁRIO Algumas palavras..........................................................................................................15 Introdução......................................................................................................................19 Procedimentos Metodológicos......................................................................................27 Primeira Parte: A teoria queer e o reconhecimento do anômalo enquanto potencialidade desconstrutiva..........................................................................................29 Segunda Parte: Sobre a abordagem investigativa...............................................42 Terceira Parte: A produção dos dados................................................................44 Quarta Parte: Caracterização socioeconômica dos sujeitos colaboradores........49 Quinta Parte: Os eixos problematizadores e a elaboração dos capítulos............53 Capítulo I - Gênero e Educação Física: marcas corporais da criação dos sujeitos.57 1.1 - Das práticas corporais para a Educação Física: um dispositivo biopolítico de controle sobre a vida?..........................................................................................57 1.2 - O corpo enquanto uma ficção: o conceito de gênero e suas implicações para a construção do imperativo da diferença sexual..............................................................64 1.3 - Educação Física e as relações de gênero: a fabricação de mulheres e homens por intermédio das práticas corporais................................................................69 1.4 - Política do performativo: contribuições de Judith Butler para problematizar a produção de sujeitos generificados nas aulas de educação física.................................87 1.5 - Aulas separadas por sexo, mistas ou coeducativas? Problematizando a forma pela qual a Educação Física reproduz ou transforma os sujeitos a partir da ótica de gênero........................................................................................................................100 1.6 - Educação Física e esportes: um cenário masculino?.................................109 1.7 - Perspectivas para os estudos de gênero na Educação Física.....................121 Capítulo II - (HETERO)normalização, homofobia e homossexualidade(s): dos discursos pedagógicos para a pedagogia da Educação Física..................................125 2.1 - A construção discursiva da realidade e o sujeito enquanto ficção: o pensamento heterossexual e a produção dos corpos homossexuais..............................127 2.2 - Normalização de condutas e a produção de violências: a homofobia enquanto uma tecnologia heteronormativa....................................................................140 2.3 - Transgressão, confronto e violência: a homofobia na escola....................154 2.4 - Território contestado: Educação Física, homossexualidades e homofobia......................................................................................................................173 Capítulo III - Teoria queer e a emergência de corpos abjetos: das novas estéticas de existência à desterritorialização da sexualidade genitalizada.................................196 3.1 - Queerizando o processo de construção dos corpos/subjetividades: fuga das normas e resignificação da identidade deteriorada........................................................200 3.2 - Mecanismos de resistência e autorrepresentação dissidente nos espaços escolares.........................................................................................................................207 3.3 - O uso dos corpos enquanto instrumento para a busca do prazer: as possibilidades de uma sexualidade não genitalizada.....................................................223 Considerações Finais...................................................................................................230 Referências...................................................................................................................237 Anexos...........................................................................................................................253 15 Algumas palavras Desveste o coração das plumas e dos pesos da existência. Deste portal em diante só existem paisagens: Os riscos esboçados dos pórticos do olhar. Neles não cabe ciência, sequer filosofia, mas o simples gozo de vagar. Angélica Torres (Ao navegante) Deixar nossas certezas de lado, duvidar de nossas “verdades”, correr os riscos dos encontros, por vezes, inusitados e questionar o plano da existência, não são tarefas fáceis. Embora seja complicado nos desvestirmos do cotidiano, ficar nu se torna importante para que possamos recriar possibilidades de vestimentas. Nesse processo, “o simples gozo do vagar”, sem pretensões de chegar a algum lugar e construindo sempre novos caminhos para contemplar as experiências possibilitadas pelos trânsitos, nos permite ampliar o alcance de nossos sentidos e, consequentemente, de nossa compreensão do que nomeamos como vida. Foi durante esse transitar que atravessei espaços antes impensados, dos quais o terreno político-acadêmico se tornou significativo e construiu algumas condições históricas de possibilidade para que eu pudesse travar constantes embates. O desafio da construção de uma Tese requer desapego, desassossego e desprendimento das razões que nos ensinaram universais. O gozo do vagar nos abre possibilidades. Descentra-nos. Constitui-se em uma espécie de força vibrátil que não cessa, mesmo perante tentativas constantes de adequações. Creio que meu pensamento materializado nessas primeiras palavras, e potencializado pela sensibilidade de Angélica 16 Torres, possa esboçar a compreensão que tenho sobre meu processo rumo ao almejado título de Doutor em Educação. Mas, durante esse processo, questionar a sexualidade? Sim! Questionar um dispositivo que me adequou a uma identidade desde a primeira vez que me marcaram discursivamente enquanto “bicha”. Não que eu requeresse a participação nesse sistema de inteligibilidade violento e cruel, mas, no qual me inseriram de forma arbitrária e sem me oferecerem a possibilidade de uma “não-identificação”. “Gay”, “bicha”, “viado”... Tantos nomes que penetravam de maneira cortante em meus ouvidos e que deixaram inúmeras marcas! Felizmente, algumas delas me potencializaram para renunciar certos limites identitários, ao mesmo tempo em que reconhecia que o que antes me soava como xingamento, ganhava nova significação. A “bicha” agora já não me acua, ao contrário, amplia minhas possibilidades de atuação e existência nesse mundo. Foi no meiodesse jogo categorial que os questionamentos que apresento neste trabalho ganharam materialidade. A lembrança mais remota que tenho sobre “me conceberem como diferente” (ou a que me marcou de forma mais violenta) foi, quando ainda na juventude e cursando a antiga oitava série do Ensino Fundamental, a perseguição constante, por meio de piadas, chacotas e zombarias devido a minha não adequação a um sistema de regulação de corpos/subjetividades que ainda desconhecia, construía o contexto de minhas relações. O medo de ser apontado como “aquilo” tornou minhas vivências escolares nessa época quase insuportáveis. Embora já tivesse ouvido essas nomeações, foi nesse cenário “educativo” que, hoje percebo com clareza, senti pela primeira vez o peso da administração de minha vida pautada em um ideal heterossexista, em grande escala legitimado por meus antigos professores e professoras. Lembro-me que muitos foram os desconfortos que senti e os desesperos que me afligiam quando, ao acordar pela manhã, tinha que me preparar para encarar o que viria. Todavia, penso que enfrentei, e esse confronto constante fez com que minha trajetória transpassasse por aqui. É nesse sentido que endosso o argumento de que “o pessoal é político”. De que é preciso problematizar o cotidiano para demonstrar o quanto ele é fabricado por uma ordem discursiva que nos precede. 17 Finalmente (e felizmente!) ao concluir o Ensino Médio, percebi que a jornada tinha que continuar. Uma bicha só com a educação básica, talvez, não fosse levada tão a sério. Foi assim que no ano de 2003 ingressei no curso de graduação em Educação Física pela UNESP de Rio Claro-SP (sonho realizado!) e me deparei pela primeira vez com a complexidade dos estudos que envolvem o corpo e suas relações socioculturais e, ainda de forma ingênua, atentei para a política contida nas formas não convencionais de configurações de vida. Dessa maneira, em meu Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do título de Bacharel em Educação Física, optei por realizar uma pesquisa que problematizasse as relações de gênero em decorrência da prática de atividades corporais. Mais especificamente, iniciei meus estudos sobre o gênero enquanto categoria analítica com o objetivo de questionar a noção de “escolha” do sujeito por uma atividade corporal. Minhas inquietações me levavam a hipotetizar que a “escolha” não passa de um direcionamento social. Ao finalizar a graduação, a possibilidade de continuidade dos estudos a partir da ótica do gênero me instigava. Assim, em uma incursão por Presidente Prudente-SP, me deparei com o Programa de Pós-Graduação em Educação da FCT/UNESP, o qual possibilitava investir em um projeto de mestrado para continuar a discutir o tema. Ao ingressar no Mestrado, embora não mais com um projeto sobre Educação Física e relações de gênero, iniciei estudos sobre a sexualidade humana e suas intersecções com a escola. Talvez por minha trajetória escolar não “tão feliz” no que se refere ao trato com “minha sexualidade”, foi inevitável o encontro com a teoria queer. Com isso, ao propor um projeto de Doutorado, e levar em consideração minhas memórias durante todo o período que precedia o processo de seleção, percebi que poderia contribuir para a área da Educação Física ao propor um trabalho investigativo que pudesse viabilizar a aproximação das problematizações queer junto à área, principalmente em sua vertente escolar. Com isso em mente, iniciei essa jornada que, mesmo cansativa, permitiu com que empreendesse esforços intelectuais (e não foram poucos!) para tentar compreender de que maneira os atravessamentos sociais de gênero e sexualidade perpassam os discursos pedagógicos da Educação Física e quais seus efeitos na vida de sujeitos que não se adéquam (ou não querem se adequar) às normas regulatórias postas. Meu interesse era me aventurar por um caminho no qual o encontro 18 com outras bichas, sapas e travas pudesse compor estratégias para (re)pensar a noção de humano, baseado nos ideais de corpo-gênero-sexualidade, enquanto uma ficção. Essa jornada me marcou tanto com encontros vibrantes e ampliações teóricas e políticas, como com momentos de solidão e questionamento de minha capacidade intelectual rumo a um (às vezes longínquo) título de Doutor. Todavia, sobrevivi! E é nesse sentido que reitero os agradecimentos ao coletivo que me acompanhou até aqui, pois sem “elas” e “eles”, certamente, esse caminho poderia ter sido interrompido. 19 Introdução (HETERO)SEXUALIDADE: A CONSTRUÇÃO DE UM DISPOSITIVO A presente investigação articulada junto à Linha de Pesquisa “Processos Formativos, Diferença e Valores”, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/UNESP) se constitui em uma Tese de doutoramento que intencionou problematizar as articulações entre práticas pedagógicas da Educação Física na escola e processos sociais de marcação de diferenças de gênero e sexualidades. Durante o processo de idas e vindas entre campo investigativo e um referencial teórico que pudesse desestabilizar o olhar de neutralidade dispensado à Escola e à Educação Física enquanto componente curricular, elaboramos algumas inferências que intencionam desvelar os discursos da área enquanto construtores de identidades atendentes aos ideais heterossexistas e heteronormalizadores. Aprendemos com Michel Foucault1 que a sexualidade não se constitui em uma “dimensão humana” oriunda da biologia e dos processos de maturação do organismo. Em questionamento a essa ideia, o filósofo argumenta que nossa sexualidade (e acrescentaríamos aqui “nossa noção contemporânea de desejo”) é uma construção pautada em discursos culturais que, ao produzirem certo conhecimento sobre os corpos e prazeres, administram nossas vidas e nos conformam às normas sociais. O dispositivo da sexualidade é acionado a partir de representações oriundas de diversas tramas discursivas. Conhecimentos científicos, pensamentos filosóficos, doutrinas religiosas, exposições midiáticas, estruturas arquitetônicas, filiações políticas, valores morais, gestos e comportamentos tipificados, todo esse artefato sociocultural constitui as numerosas redes relacionais que permitem o funcionamento desse dispositivo. 1 De acordo com a perspectiva adotada para a elaboração do presente trabalho reflexivo de investigação, os prenomes e sobrenomes dos autores, quando de sua primeira aparição no corpo do texto, serão evidenciados em uma tentativa de superação da invisibilidade de gênero construída por intermédio da produção acadêmica e científica tradicionalista. 20 Por meio de uma historiografia muito refinada, Foucault demonstrou a criação e o desenvolvimento de uma maquinaria de controle do sexo e das práticas sexuais através da definição de geografias específicas, isto é, os saberes e as instituições sociais. Foucault demonstrou demarcações em torno das práticas sexuais, além de um controle rígido, gerado por saberes institucionalizados, como a medicina, a psiquiatria, a pedagogia e psicologia, os quais demarcaram os territórios e as subjetividades entre a normalidade e anormalidade. (CÉSAR, 2012, p. 356). Como apontado por Maria Rita de Assis César, essa produção de conhecimentos e representações é gerenciada por diversas instituições estatais. A Ciência, a Medicina, a Escola, a Igreja, a Família e o Sistema Jurídico, por exemplo, atuam como mecanismos reguladores da população ao instituírem práticas que promovem o controle social, fabricando assim sujeitos específicos para atenderem aos interesses políticos de determinado contexto. No que se refere à identificação do sujeito com a vivência dos prazeres, alguns marcadores específicosdelimitam as possibilidades (e limites) para essas relações. Os marcadores sociais de gênero e sexualidade, por exemplo, se configuram enquanto dispositivos que, em muitos casos, estabelecem a subjugação e a falta de legitimidade para múltiplos modos de existência. Ser enquadrado enquanto homem ou mulher, masculino ou feminino e ser forçado a desenvolver determinadas práticas ditas “sexuais” são estratégias políticas que posicionam os corpos/subjetividades a partir de um ideal de normalização focado na noção de uma heterossexualidade natural, universal e homogeneizada2. Muitos discursos que ganham nossos sistemas culturais de inteligibilidade instituem a heterossexualidade como princípio definidor de uma “verdadeira” identidade. Essa demarcação arbitrária se utiliza de diversas justificativas para assegurar o caráter de “naturalidade” dessa invenção (BRITZMAN, 1996; BUTLER, 2003; 2008; HALPERIN, 2004; WEEKS, 2001; WITTIG, 2006). É a partir desse pressuposto que muitas críticas e críticos focaram/focam suas análises no intuito de expor os mecanismos sociopolíticos que negativizam determinadas vivências humanas. 2 Cabe destacar que os marcadores sociais de diferenciação de gênero e de sexualidade não são os únicos dispositivos que constroem noções identitárias de sujeitos e que, em muitos casos, passam a ser os indicativos que subjugarão determinados modos de existência. Os dispositivos acionados pelas noções de diferença sexual, raça, etnia, categoria geracional, deficiência, religião, nacionalidade, regionalidade e classe social também cumprem essa finalidade, sendo que, a partir das relações estabelecidas entre esses múltiplos marcadores, é que o contexto sociopolítico será constituído. 21 Como exemplo estratégico desse sistema heterocentrado poder-se-ia citar certo discurso religioso, que prega a complementaridade do homem com a mulher; determinados discursos médicos-científicos, que através da dissecação das diferenças anatômicas, fisiológicas e hormonais entre os sexos procuram evidenciar “provas” de que os seres são diferentes por natureza; uma boa parte do discurso jurídico, que não reconhece como sujeitos de direitos corpos que transgridem a essas normas; e muito do discurso pedagógico, que além da omissão frente ao reconhecimento de representações de sexualidade que se distanciam da lógica heterossexual, não promove questionamentos sobre a construção e marcação cultural dessas aparentes “diferenças” (ALTMANN, 2013; CÉSAR, 2009; FURLANI, 2008; LAQUEUR, 2001; LIONÇO e DINIS, 2009; LOURO, 2008; VAINFAS, 1986). O sistema normativo que prevê a regulação da sexualidade também institui uma cisão radical entre as representações de homem e mulher (ESTEBAN, 2004; LAQUEUR, 2001; NICHOLSON, 2000, WITTIG, 2006; RUBIN, 2013). Assim, características definidas como “femininas” são subjugadas e submetidas a manobras de poder que enaltecem determinado modelo de masculinidade como prova de superioridade de alguns sujeitos em relação a outros (BUTLER, 2003; CLARKE, 2002; CONNELL, 1995; RIOS, 2007). Dessa forma, tanto a aversão ao considerado como feminino, quanto a não legitimidade jurídica e social de sujeitos LGBTTI3 (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Intersexuais) constroem as bases para a instauração de processos discriminatórios em relação às diferenças, o que, nos dias atuais, facilmente reconhecemos como homo, lesbo ou transfobias (GRUPO GAY DA BAHIA, 2008; JUNQUEIRA, 2007; RAMOS, 2005; RIOS, 2007). Os regimes discursivos que pretendem fixar verdades universais acabam, devido a sua insistência, reiteração e ampla divulgação social, por não permitir com que compreendamos que somos constantemente fabricados por essas disposições. Na esfera do gênero e da sexualidade, identidades são forjadas a partir da instituição da norma heterossexual que é instaurada como “Lei”. Essa Lei de Criação constrói mecanismos 3 O termo LGBTTI utilizado no presente trabalho não se remete ao movimento social organizado. Antes, a todos os sujeitos e sujeitas que não vivenciam uma expressão de sexualidade pautada na norma heterocentrada. Quando da menção ao movimento social, utilizaremos a expressão “movimento LGBTTI”. 22 de subjetivação que institui uma única possibilidade identitária: as que passem a manter uma ótica de coerência entre sexo biológico, gênero, desejo e prática sexual. Na perspectiva do indivíduo metafísico, os modos de subjetivação se apoiam em regras normativas que determinam identidades fixas, rígidas e cristalizadas que apresentam as pessoas como viciados em normas, dependentes de padrões hierarquizados e defensores da lei, dos contratos e das instituições regulatórias e disciplinares. Essa dimensão é escravizada pelos imperativos da heteronormatividade, que impõem a heterossexualidade de modo compulsório e se apoiam em um sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais em que um indivíduo, ao nascer macho, seu gênero será masculino, seu desejo heterossexual e sua prática sexual ativa, enquanto que, caso nasça fêmea, seu gênero será feminino, seu desejo heterossexual e sua prática sexual passiva (PERES, 2012b, p. 541). Essa forma de controle social dos corpos se demonstra muito eficiente. O dispositivo da (HETERO)sexualidade está disperso por toda a geografia social. Ao disponibilizarmos um pouco de atenção ao que nos cerca, facilmente poderemos notar as variadas estratégias de constituição de corpos “generificados” e “sexualizados”: na separação entre meninos e meninas nas escolas (ordenamento em filas segundo o gênero; divisão e controle exercidos para o acesso aos banheiros etc.); em um passeio pelos corredores do supermercado no qual os produtos são estampados segundo o gênero a que se destinam; no preenchimento de algum formulário onde temos que marcar um “X” nos espaços correspondentes ao “sexo”; nos modelos representacionais veiculados pelas mídias em seus mais diferenciados formatos (novelas, programas humorísticos, programação infantil). Somos bombardeados por tecnologias de produção de corpos de gênero e de sexualidade regidos por um modelo heterossexual que nos é posto de uma maneira impositiva e violenta. Todavia, nem todos os sujeitos se conformam a partir dessas normas. Apesar de inseridos em um contexto heteronormativo, sujeitos que não se definem enquanto heterossexuais emergem como possibilidades de existência, entretanto, não obtendo o reconhecimento social e jurídico devido. No que se refere à negativização da homossexualidade enquanto uma identidade subalterna, por exemplo, a partir da segunda metade do século XIX esses sujeitos foram marcados pelos discursos em voga como “débeis” ou “doentes” por conta de suas práticas e desejos. O aparato médico que surgiu a partir da segunda metade do século XIX possibilitou a construção da Psicanálise enquanto um aparato discursivo que contribuiu para legitimar o dispositivo 23 da (hetero)sexualidade. Javier Sáez (2004) argumenta que a escola psicanalítica que surgiu em tempos pós Freud chegou a proibir a admissão de homossexuais enquanto aspirantes a psicanalistas. Em uma tentativa de marcar a ilegalidade dessa expressão, em alguns países europeus a homossexualidade passou a ser perseguida legalmente. Em 1869, por exemplo, o governo Prussiano aprovou uma lei que criminalizava os “atos sexuais entre homens” (SÁEZ, 2004). Nesse momento, uma sociedade dividida entre categorizar a homossexualidade enquanto crime ou doença se estabelece. Poderíamos dizer que as tentativas médicas de descriminalização da homossexualidade, em uma primeira observação, se configuraram enquanto um movimento de resistência que objetivava combater o discurso jurídico. Entretanto, essa nova onda de conhecimento acabou por se constituir emum novo instrumento tecnológico que passou a fabricar os corpos homossexuais enquanto suscetíveis a diferenciadas formas de intervenções corretoras. É nesse sentido que, como nos alerta Michel Foucault, Judith Butler e Beatriz Preciado, fomos produzidos discursivamente para nos pensarmos, materializarmos e agirmos de determinada maneira. Fomos docilizados à suscetibilidade e postos a serviço de uma política disciplinar de assujeitamento. Com isso, se faz necessário questionar os discursos, os efeitos de verdade que eles criam e de que maneira fabricam e posicionam os sujeitos na hierarquia social. Atualmente, diferenciados movimentos sociais, pensamentos filosóficos e posicionamentos críticos objetivam desconstruir as regras de normalidade instituídas para o gênero e sexualidade. Nesse sentido, da representação de “pecador” ou “doente” ou “homem-masculino”, “mulher-feminina” as manifestações de gênero e sexualidade não padronizadas ou heterocentradas se configuram enquanto estratégias políticas para enfrentar os efeitos discursivos que impossibilitam o exercício da cidadania e o reconhecimento da potência vibrátil oriundas das infinitas possibilidades de constituição subjetiva. Assim, cabe alertar que o poder domesticador não é a única via possível para a atuação social. O poder não é, meramente, unidirecional, verticalizado e opressor. Pelo contrário, é exercido em redes e em várias direções. Aproveita-se das fissuras, dos intervalos, do “não dito” enquanto estratégia de subversão. Essa potencialidade vibrátil 24 nos desafia a novas constituições, a novas possibilidades de existência. Ou seja, é possível se tornar “um outro” do que se é. No que se refere à Educação Física, sua construção enquanto área de intervenção cultural pautada em discursos médicos e biológicos atendeu a diversas finalidades políticas de fabricação e controle de corpos. Desde a constituição de um corpo militar para a defesa do então inaugurado Brasil imperial; de sua aplicação higiênica para o “desenvolvimento” de “corpos saudáveis” para garantir a saúde pública; sua vinculação aos ideais eugênicos/militares da era getulista; sua manipulação ideológica no período militar, chegando a propostas biológicas “modernas” que tendem a instituir, cada vez mais, a divisão entre os corpos de acordo com dois gêneros, a Educação Física contribuiu para a construção de corpos diferenciados, legitimando a manutenção de diversas formas de preconceitos sociais. Nesse sentido, ao partir da hipótese de que as práticas utilizadas pela Educação Física, quando inserida no contexto escolar, instituem marcas nos corpos associadas ao gênero e a sexualidade tendo como referencial de “normalidade” ideais heterossexistas, o problema de investigação proposto consiste em analisar de que maneira essa marcação se efetivou em jovens adultos homossexuais do gênero masculino que passaram pelo processo educacional formal. Vale destacar que a presente proposta vai ao encontro de parâmetros governamentais e de entidades de defesa dos Direitos Humanos e Sexuais, que objetivam minimizar as implicações da violência de gênero e sexual nos espaços sociais (BRASIL, 1998; CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO, 2004; FURLANI, 2008; JUNQUEIRA, 2007, 2009; LIONÇO e DINIS, 2009). O objetivo geral da proposta se constitui em analisar de que maneira jovens adultos gays4 residentes no município de Presidente Prudente – SP representam às práticas da Educação Física Escolar e quais foram os efeitos que estas exerceram sobre suas vidas. Dessa maneira delineamos o foco de atenção que direcionaria nossos esforços no exercício das leituras e ampliação teórica, bem como na busca para a produção dos dados. Especificamente, quatro pontos foram elencados enquanto focos de análise principais para desenvolver o estudo, a saber: 4 Na presente Tese a grafia “gay” será utilizada para se referir à homossexualidade masculina. Quando da menção à homossexualidade feminina, o termo “lésbica” será empregado. 25 • Refletir sobre as contribuições teóricas da perspectiva pós-estruturalista e da teoria queer para a área da Educação Física Escolar, no que tange a construção da homofobia. • Analisar como jovens adultos gays representam as práticas pedagógicas da Educação Física em relação ao reconhecimento das diferenças sexuais e de gêneros no contexto escolar. • Problematizar de que maneira os “ditos” e “não ditos” presentes nos discursos da Educação Física escolar acerca da homossexualidade masculina exerceram, ou não, influências sobre o processo de constituição de suas subjetividades. • Identificar possíveis mecanismos de resistências construídos por jovens gays para se autorrepresentarem nos espaços escolares. A presente Tese se encontra subdividida em três capítulos que sucedem os passos metodológicos adotados. Ao apresentarmos a “metodologia” exporemos o pensamento teórico que nos move, bem como os procedimentos para a produção dos dados gerados e uma breve análise socioeconômica dos sujeitos que colaboraram para o desenvolvimento do estudo. O primeiro capítulo “Gênero e Educação Física: marcas corporais da criação dos sujeitos” versa sobre a constituição histórica da Educação Física enquanto área de intervenção social e suas tentativas de legitimação ao se vincular aos discursos biomédicos. Ao tomar emprestado o conceito de biopolítica cunhado por Michel Foucault, tentamos refletir sobre a Educação Física enquanto uma tecnologia de fabricação de corpos e gerenciamento da vida a partir dos pressupostos de heteronormalização. Transitamos entre problematizações sobre como os gêneros masculino e feminino foram geridos e sustentaram a constituição de um corpo discursivo cujo foco é reiterar a primazia da diferenciação sexual. No segundo capítulo “(HETERO)normalização, homofobia e homossexualidade(s): dos discursos pedagógicos para a pedagogia da Educação 26 Física” nos centramos em explicitar de que maneira as práticas escolares lidam com a homossexualidade, bem como as estratégias normalizadoras pautadas na homofobia que são postas em práticas na escola. Posteriormente, apresentamos relatos e questionamentos sobre como a Educação Física se articula para a produção das diferenças sexuais que partem da premissa heterossexual como parâmetro de normalização. No terceiro capítulo “Teoria queer e a emergência de corpos abjetos: das novas estéticas de existência à desterritorialização da sexualidade genitalizada” tentaremos apontar possíveis práticas de resistências construídas por sujeitos homossexuais para se autorrepresentarem nos espaços escolares. Nesse trajeto também teceremos algumas considerações sobre o processo de esquadrinhamento do corpo e genitalização da sexualidade, bem como possíveis estratégias para superação desse processo de gerenciamento de vidas. Por fim, apresentaremos as considerações às quais fomos conduzidos durante o desenvolvimento do trabalho investigativo. 27 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Quando pensamos em sexualidade, muitas vezes, os discursos sociais disponíveis nos remetem a compreensão de que esta seria uma “essência”, algo interior ao sujeito e que o vincularia a ideia de uma “natureza universal” que categoriza o que representamos como “humano”. Esse fato acaba por decretar o aprisionamento dos corpos e subjetividades em perspectivas fixas que, reiteradamente, caracterizam a heterossexualidade enquanto norma, relegando expressões dissonantes desta ao âmbito das “inconformidades sociais”. Contudo, para correntes pós-modernas, quando evocamos o termo, a identidade passa a ser vista como uma espécie de “agenciamento estratégico”. Ou seja, considerada como uma construção histórica, transitória e fruto de interpelações sociais,ao mesmo tempo em que apela para um agrupamento coletivo com o objetivo de unificar uma mesma bandeira de reivindicação. É a partir dessa ambivalência que muitos estudos focam seus esforços analíticos. No caso da teoria queer a problematização sobre a construção social da identidade toma a heterossexualidade enquanto sistema político normativo. Assim, rejeita a noção de uma identidade essencializada e procura evidenciar os mecanismos culturais que constroem as diferenças sociais. Sua empreitada política intenciona desconstruir as representações hegemônicas de sexo, gênero e sexualidade. Direciona seus olhares questionadores à compreensão dos porquês da heterossexualidade ser valorizada como “a identidade” e as intencionalidades sociais em condenar as lesbianidades, transexualidades, travestilidades, intersexualidades, bissexualidades e homossexualidades ao rechaço social. Também problematiza os rígidos padrões culturais de comportamento que definem o gênero masculino e feminino. Ao contrário de singular, evidencia que as representações de masculinidade ou feminilidade são plurais e estabelecidas em uma cadeia hierárquica na qual o homem, masculino, branco, ocidental, de classe média, heterossexual e cristão é considerado superior a qualquer outra forma de identidade. Dessa maneira, para a teoria queer, o corpo pode ser pensado como uma categoria analítica que permite desvelar os mecanismos culturais de constituição, desconstruindo 28 a ideia de um “eu” naturalmente dado e concebido a partir de uma perspectiva biológica (MÉLLO, 2012). Postas estas considerações preliminares, para recriarmos nosso trajeto investigativo apresentaremos o contexto histórico de insurgência dos movimentos queer e sua configuração enquanto arcabouço teórico e problematizador que permite desconstruir as aparentes verdades sobre os sujeitos. Assim, em um primeiro momento realizamos um resgate histórico visando apresentar o caráter político dessa forma de pensamento. Posteriormente, detalharemos os passos que nos levaram até os nossos colaboradores e os instrumentos que nos possibilitaram gerar narrativas acerca das experiências escolares destes em aulas de educação física. Os procedimentos utilizados para viabilizar a investigação compreendem tanto as ferramentas de geração dos dados, quanto o referencial teórico utilizado para as análises. Assim, a opção por apresentar a teoria queer nesta seção explicita nossa compreensão dos processos de construção cultural das sexualidades, bem como os mecanismos sociais reguladores dos corpos/subjetividades baseados na identidade. Embora possa parecer extenso, a descrição metodológica do presente trabalho se faz necessária, pois, não compreendemos um Método de Trabalho Investigativo dissociado do referencial teórico que o baliza. Acreditamos que a exposição teórica também contribui para a Educação Física, uma vez que permite (re)pensá-la enquanto área de intervenção cultural que exerce efeitos de verdade nos corpos, adequando-os à uma ótica social que, em muito, pode gerar discriminações, preconceitos e violência. Acreditamos que a teoria queer pode subsidiar problematizações para a Educação Física e Educação Física Escolar5 ao fornecer bases epistemológicas que possibilitem a construção de outras investigações acerca dos diferenciados marcadores sociais que engessam identidades. Para além de questionamentos sobre classe social, gênero, sexualidade e/ou raça/etnia, essa abordagem teórica e política pode favorecer questionamentos acerca das noções de estética, saúde, habilidade motora, capacidade 5 Quando nos referirmos à Educação Física e Educação Física Escolar enquanto áreas de produção de conhecimento, utilizaremos as iniciais maiúsculas. Ao aludirmos às aulas de educação física no contexto escolar, ou seja, as intervenções pedagógicas implementadas pelos professores e professoras da área para transmissão de determinados conteúdos, nos valeremos da grafia “aula/aulas de educação física” com iniciais minúsculas por se tratar de um substantivo comum. 29 física, deficiência entre outros mecanismos que também concorrem para a construção dos corpos e compreensão dos sujeitos. PRIMEIRA PARTE: A teoria queer e o reconhecimento do anômalo enquanto potencialidade desconstrutiva Lo que quería decir a propósito de esa función de diagnóstico acerca de lo que pasa hoy es que no consiste simplemente en caracterizar lo que somos, sino en seguir las líneas de fragilidad actuales, para llegar a captar por dónde lo que es y cómo lo que es podría no ser lo que es. En este sentido, la descripción se debe hacer según esa especie de fractura virtual que abre un espacio de libertad, entendido como espacio de libertad concreta, es decir, de transformación posible (FOUCAULT apud HALPERIN, 2004, p. 141).6 A presente citação de parte do pensamento foucaultiano poderia expor a complexidade de relações necessárias de serem problematizadas para que possamos conceber os corpos/subjetividades enquanto construções discursivas. E, mais que isto, compreender quais os efeitos desses discursos nos processos de despotencialização de muitas possibilidades de existência. Michel Foucault explicitou algumas das relações existentes nos mecanismos de produção social dos corpos, e nos deixou um legado que possibilita compreender a ética enquanto um exercício crítico (e necessário) sobre como, e em quais condições, nos tornamos o que aparentemente “somos”. E mais, quais as maneiras possíveis de constituição de um “outro eu”. Em muitos casos, a aparente realidade de nossa existência enquanto humano se ancora em nossa sexualidade. A partir dos séculos XVII/XVIII observou-se uma produção contínua de conhecimentos que objetivaram ostentar a verdade sobre nosso sexo. Sexo este que, para o pensamento tradicional, nos remete a pensar em uma sexualidade biologicamente determinada e psicologicamente conduzida, na qual a diferença sexual e nossos mais profundos desejos, afeições, sentimentos e vontades se consolidariam (caso tenhamos um bom desenvolvimento de nossa vida sexual) em uma identidade que expressa o verdadeiro “eu”. 6 Michel Foucault: Estructuralismo y posestructuralismo, p. 325. 30 É contra esse pensamento que algumas correntes, consideradas por muitos intelectuais como “pós-modernas”, desenvolveram longas e aprofundadas críticas, pois, se entregam a um exercício de desvelamento das normas sociais que regulam nossos comportamentos ao construírem nossas identidades. Dessa maneira, o pensamento de Foucault acabou por se configurar enquanto uma estratégia de resistência para essas “novas” teorizações que possibilitam certa transformação de nós mesmos e, consequentemente, da realidade que criamos. Dentre as estratégias que se valem dos escritos do filósofo para acionar mecanismos políticos de dissolução das identidades modernas, encontramos o que a literatura denomina enquanto “teoria queer”7. Contemporaneamente a denominada “teoria queer” poderia ser compreendida enquanto uma abordagem “teórico-crítica” que possibilita problematizar sistemas de normalização social que objetivam enquadrar os sujeitos em categorias identitárias. Seus pressupostos permitem atentar para os mecanismos sociais que constroem e legitimam as diferenças como representações contrárias a “natureza” humana (HALPERIN, 2004; LOURO, 2008; MISKOLCI e SIMÕES, 2007; SILVA, 2002). Entretanto, essa definição seria reducionista, pois a subversão que se constrói a partir de uma presença queer na ordem estabelecida prevê estratégias de ações que possam desafiar, constantemente, os modelos de normalidade impostos. Nesse sentido, para além de um pensamento teórico ou acadêmico, o queer faz uso da militância enquanto estratégiapara o confronto e desafio, não estabelecendo vinculo direto com qualquer pretensão identitária (seja ela de estilo de vida ou acadêmica). Para esse modo analítico, é preciso compreender as intencionalidades políticas de determinado meio para que possamos identificar os sistemas que organizam e hierarquizam os sujeitos em determinados grupos, enaltecendo alguns e subjugando muitos a um contexto pautado por diversas desigualdades sociais. Entretanto, quando falamos em intencionalidades políticas é preciso compreender o adjetivo “político” fora dos moldes tradicionais ou de representatividade partidária governista. A política a que se refere à crítica queer são os modos de regulação aos quais somos sujeitados por diversas instituições sociais, tais como, 7 No decorrer de nosso exercício de escrita termos como “atitude queer”, “pensamento queer”, “política queer” “abordagem queer” ou “perspectiva queer” serão utilizados em referência a “teoria queer” no sentido de tentar afastá-la de uma possível compreensão cristalizada de “teoria”, pois, historicamente, as teorias apresentam conceitos fechados que não permitem uma flexibilização para seus usos. 31 Família, Religião, Sistema Jurídico, Sistema Pedagógico, Mídias etc. Dessa maneira, somos forjados em meio a valores sociais e “verdades” científicas que garantam o “bom” funcionamento de determinada ordem estabelecida. Qualquer fenômeno que cause estranhamento ou ameaça de subversão dessas leis normativas, qualquer presença queer nesse meio, é automaticamente marcado como inapropriado, doentio e/ou ilegítimo. A teoria queer se ancora em estudos pós-estruturalistas. Segundo Neil Franco (2009) ela surgiu nos Estados Unidos e Inglaterra na década de 1990, sendo o termo criado por Teresa De Lauretis. Alfonso Ceballos Muñoz (2005) relata que, embora o termo queer esteja presente na língua inglesa desde os finais do século XVI (ao referir- se a diferentes significados), sua absorção gráfica para designar uma teoria foi empregada pela primeira vez no artigo “Queer Theory. Lesbian and Gay Sexualities: An introduction” publicado na revista Differences e assinado por De Lauretis. Para muitos autores, é a partir dessa publicação que essa grafia passa a designar uma vertente de teorizações filosóficas e ganha espaços acadêmicos (HALPERIN, 2004; MUÑOZ, 2005). Entretanto, David Halperin (2004), ao estabelecer críticas sobre os modos de apropriação do adjetivo “queer” em muitos estudos acadêmicos ou estilos de vida norte americanos pautados no consumo, argumenta que, na formulação de De Lauretis, o termo foi empregado para perturbar a pauta de discussão dos até então denominados gays and lesbian studies. A investida da autora era criticar o discurso homogeneizante e monolítico sobre a diferença sexual observados nestes estudos (HALPERIN, 2004). Embora alguns escritos como os de David Halperin e Paco Vidarte explicitem críticas a uma boa parte dos modelos academicistas de teorização que se autodenominam queer, algumas teóricas e teóricos se destacam por seu trabalho militante, reflexivo e desestabilizador das normas sociais nessa área. Nomes como Judith Butler, Eve Sedgwick, Gayle Rubin, Monique Wittig e Michael Warner (além de Michel Foucault) marcam presença constante nos livros, artigos, ensaios e bibliografia de estudos acadêmicos que se pretendem críticos dos sistemas contemporâneos de subjetivação da(s) sexualidade(s). Contemporaneamente, pesquisadores e pesquisadoras como Beatriz Preciado, Marié Hélène Bourcier, Judith Jack Halberstam, Paco Vidarte, Susana López Penedo, 32 Javier Sáez e David Córdoba também construíram visibilidade integrando aos estudos acadêmicos a experiência da militância política em diversos espaços sociais (CÓRDOBA, SÁEZ e VIDARTE; 2005; HALBERSTAM, 2008; PENEDO; 2012; PRECIADO, 2011a, 2011b). Alguns destes trabalhos acabam por aprofundar muitos dos temas apontados (mas não desenvolvidos) por Michel Foucault, contribuindo assim para o desenvolvimento do pensamento crítico na atualidade. Segundo Richard Miskolci e Júlio Simões (2007), o termo queer, em uma interpretação literal, poderia ser traduzido como esquisito, estranho ou como uma série de xingamentos direcionados a homossexuais nos Estados Unidos (a exemplo de “bicha” ou “sapatão” no Brasil). Entretanto, no sentido utilizado pela teoria, queer também pode ser utilizado para designar alguém ou algo desestabilizador, que desafia os padrões de normalidade instituídos. As definições identitárias são um dos focos para as problematizações queer. Ao partir do pressuposto de que as identidades são construções sócio-históricas, e não definidas por uma descendência biológica ou criacionista, denunciam que essas categorias nada mais fazem do que enquadrar os sujeitos ao definirem limites para a atuação humana. Nesse sentido, a identidade se torna um potente mecanismo de controle e contenção social, pois, permite homogeneizar grandes massas tornando-as suscetíveis a diferenciados processos de gerenciamento. É a partir desse embate crítico que os estudos queer centralizam esforços na desconstrução de identidades sexuais que fogem da ótica heterocêntrica ao possibilitar a compreensão das lesbianidades, homossexualidades, intersexualidades, travestilidades, transgeneridades, e demais vivências de sexualidades não atendentes ao padrão hegemônico, enquanto possíveis, e diferenciados, modos de existência. A teoria queer se recusa a enumerar, classificar ou dissecar as sexualidades disparatadas, antes propõe evidenciar os processos invisíveis que atribuem à perspectiva da normalidade, identificada como a própria razão, o poder de instituir esta designação-julgamento (MISKOLCI e SIMÕES, 2007, p. 10). A instabilidade proporcionada pela teoria queer, atua especialmente no sistema discursivo em que vivemos, onde cada identidade sexual (homo, hetero ou bissexual) é construída através do eixo sexo/gênero, claramente identificável e interdependente, pois se espera a convergência lógica entre um corpo sexuado (que deve ser macho-homem ou fêmea-mulher), sua identidade de gênero (masculina ou feminina) e seu objeto de desejo (dirigido ao sexo oposto) (FURLANI, 2008, p. 36) (grifos da autora). 33 Para Judith Butler (2002) o termo “queer” é um importante instrumento que possibilita romper a continuidade, o fluxo enunciativo da construção de sujeitos retos/endireitados (straight). Ele é empregado em um sentido de “degradação” do sujeito ao qual se refere. Entretanto, possibilita a construção de novas linhas de constituição a partir de referentes até então não inteligíveis. O queer adquire seu poder através da enunciação do patológico, do insulto, do abjeto. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2002), através da “estranheza”, a teoria queer propõe perturbar a tranquilidade da noção de (hetero)normalidade. A definição da “minha” identidade é intimamente dependente da marcação da identidade do “outro” (LOURO, 2008; SILVA, 2002). Nesse sentido, se, por exemplo, nosso contexto cultural não produzisse discursos que constroem representações sobre a homossexualidade, a noção de uma identidade heterossexual não poderia ser estruturada. Afinal, quais as fronteiras que definem a configuração de um desejo? Embora a grafia “queer” tenha ganhado certa legitimidade acadêmica, muitos estudos têm questionado sua importação terminológica para pesquisas na qual a palavra passa a ser empregada sem uma tradução. As críticas relacionadas evidenciam que o caráter performático e político da enunciação do termo perde força. Na Espanha, por exemplo, vários autores e autoras ensaiaram novas possibilidades ao utilizarem termos que evocam o caráter de insulto e fazem com que a injúria trabalhe sobre ela mesma. Assim, termos como teoria maricona, bollera, maríbollo, rarita, nãoraro, aparecem na produção espanhola (CÓRDOBA, 2005; MUÑOZ, 2005). Ainda, Ricardo Llamas (1998) utiliza o termo “teoria torcida” para se referir a essas proposições. Entretanto, outros autores/as optam por não traduzir o termo e assumem as vantagens e desvantagens de não o fazê-lo. Segundo David Córdoba (2005) tanto importações quanto traduções terminológicas possuem “contaminações culturais” que não podem ser controladas completamente (CÓRDOBA, 2005, p. 21). Em favor da utilização do termo em inglês, o autor nos apresenta quatro justificativas que passaremos a adotar como pertinentes para a manutenção de “queer” em detrimento de uma possível tradução para o português: 34 1. “Queer” já se estabelece como um termo comum no âmbito do ativismo e já foi incorporado em uma boa parte da produção teórica gay e lesbiana no mundo. 2. O uso do termo em inglês possibilita certo “estranhamento” com a cultural local e suas possibilidades de compreensão das representações sociais sobre sexualidades não heterocentradas. Assim, permite um distanciamento das “contaminações culturais” e dos mecanismos de definições locais que atribuem status identitário às diferenciadas maneiras de configuração dos desejos, afetos e parcerias baseadas no gênero e na sexualidade. 3. Queer é um termo sem gênero. Com isso, não se aprisiona em representações postas de masculinidade e feminilidade. Permite assim combinar novas possibilidades ao desconstruir as representações de gênero hegemônicas. Pensar queer permite conceber uma masculinidade efeminada e uma feminilidade masculinizada, sem que precisemos pensar o gênero a partir de uma ótica dicotomizada. 4. Por último, para conservar seu sentido de “raro”, “excêntrico”, “estranho”, pois se refere a todas e todos que se distanciam da norma heterossexual, estando ou não articulado com representações identitárias. En este sentido, queer es más que la suma de gays y lesbianas, incluye a éstos y a muchas otras figuras identitarias construídas en este espacio marginal (transexuales, transgénero, bissexuales, etc.) a la vez que se abre a la inclusión de todas aquéllas que puedan proliferar en su seno. (CÓRDOBA, 2005, p. 22). Em complemento aos postulados de David Córdoba, acrescentaríamos uma quinta justificativa para o uso do termo queer em inglês: 35 5. Queer não faz menção somente a questões de gênero e sexualidade, mas a todos os sujeitos marginalizados por políticas de normalização, sejam elas baseadas na classe social, religião, nacionalidade, regionalidade, raça/etnia, deficiência etc. Para a abordagem queer as análises das relações de poder que se difundem no contexto social se torna questão central. Baseados no método genealógico foucaultiano, vários de seus estudos procuram dissecar as formas sutis pelas quais o poder opera. Essa operação de poder não se estabelece de uma maneira restritiva, mas sim produtiva ao construir condições de possibilidades para que determinadas formas de inteligibilidades culturais sejam decodificáveis. Desta maneira, propõe uma reviravolta epistemológica para a compreensão dos processos de subjetivação e suas articulações com os conhecimentos socialmente produzidos e que tomam formas materiais a partir dos diferenciados regimes de verdades que ecoam como seus efeitos. A emergência da teoria queer, nos anos 90 do século XX, efetivamente, vem sendo associada ao pensamento crítico ocidental contemporâneo, contribuindo para as problematizações que vêm sendo construídas, ao longo do século XX, a respeito das noções de sujeito, de identidade, de identificação e de comunidade (PERES, 2012a, p. 47). Nesse sentido, e como um pressuposto presente em boa parte dos estudos pós- estruturalistas, todo conhecimento está relacionado com a construção de “verdades” que, como efeito, passa a construir a nossa “realidade”. Tudo o que não é previsto ou “explicado” por determinada teoria acaba relegado ao âmbito das “inconformidades”, da inexistência social. Ou seja, ao contrário de sua aparente “neutralidade”, uma teoria constrói as representações do que é possível ou impossível de ser compreendido na esfera sociocultural (FURLANI, 2008; SILVA, 2002). Tanto nossas ações no mundo, quanto a constituição de nossas subjetividades, são balizadas por “permissividades discursivas”. É esse sistema que possibilita com que determinado sujeito, prática ou ação possa ser compreendida como possível para que sua manifestação nos espaços sociais seja permitida. O que não é dito, não é nomeável. Ganha o terreno da inexistência e não se faz decodificável (inteligível) pelos 36 significados instituídos. Entretanto, o “não dito”, o silenciamento produzido por esse sistema que permite dar inteligibilidade à nossa existência e nossa relação com o mundo, também faz parte do mecanismo político das permissividades discursivas, relegando ao ocultismo e mutismo expressões de vida que não devem ser “lidas” pelo sistema. Qualquer expressão fora do circuito sexo/gênero tende a manter-se na invisibilidade ou ser tratada como criminosa e/ou pecadora e/ou anormal e/ou perversa, logo como abjeta. A abjeção se incumbe da desapropriação de qualquer reconhecimento ou direito que um ser humano possa ter por inexistir para a inteligibilidade lógica das compreensões normativas, ou seja, sem visibilidade não é reconhecido como sujeito, se não é sujeito não existe, logo não pode ser tomado como ser de direitos (PERES, 2012b, p. 541). Sobre suas operações conceituais, as teorias pós-críticas, dentre elas a teoria queer, estruturam suas bases questionadoras no pós-estruturalismo francês. A compreensão dos conceitos de “discurso”, “poder”, “assujeitamento”, “disciplina”, “biopoder” e “biopolítica” propostas por Michel Foucault, e o método desconstrutivo, que permite desestabilizar oposições conceituais que estruturam as sociedades ocidentais, referenciado por Jacques Derrida, são cruciais para essas teorizações (HALPERIN, 2004; FURLANI, 2008; LOURO, 2008; SÁEZ, 2004; SILVA, 2002). Javier Sáez (2005) argumenta que o contexto sociopolítico de surgimento da teoria queer se assenta em três eixos: 1. Nos movimentos de reivindicação social a partir da década de 1960; 2. Na crise provocada pelo surgimento da Aids (no Brasil também conhecida como SIDA - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) e; 3. Nas contribuições teóricas do pensamento do filósofo Michel Foucault. Essas condições de possibilidades históricas, com maior ênfase da década de 1980 nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, deram origem à construção de um corpo de conhecimento responsável por severas críticas aos modelos sociais hegemônicos de sexo, gênero, raça, etnia e de produção científica (BACHILLER, 2005; HALPERIN, 2004; MISKOLCI, 2012, PERES, 2012a; SÁEZ, 2004, 2005; WITTIG, 2006). No que se refere aos Estados Unidos cabe também destacar o cenário político disruptivo em que se assenta essa nova possibilidade de teorização social: o contexto político norte americano no qual a direita conservadora iniciou uma campanha para a construção de uma identidade nacional que negava toda e qualquer forma de “minoria”. 37 Dessa maneira, muitas universidades entraram em confronto com a política governamental e valorizava, em relação ao ingresso nas universidades e pautas estudantis, os interesses de mulheres, negros, gays, lésbicas e outros grupos excluídos da política nacional. Ao se referir a esse momento histórico norte americano de contestação, Javier Sáez (2004) relata que o movimento contracultural estabelecido nos anos de 1970 funcionaria enquanto um mecanismo produtivo para a reorganização dos movimentos de gays e lésbicas. As lutas travadas pelos movimentos afro-americanos, de estudantes, de radicais, a organização das culturas hippies, o movimento antimilitarista, o feminismo, a nova esquerdae a psicodelia estimularam a produção de novas possibilidades de visibilidade. Com isso, mecanismos de ações mais politizados e de enfrentamento social, que rechaçavam uma política igualitária e lutavam para o reconhecimento da diferença, passam a ser postos em prática por seus militantes. Estos movimientos militantes que comienzan a tomar cuerpo en Estados Unidos, Europa, Australia y America Latina van a afirmar la identidad gay como algo positivo, y van a denunciar aquellas instituciones que habían marginalizado y patologizado la homosexualidad: medicina, psiquiatria, derecho, religión. Sus discursos y estrategias van a ser más agresivos y desafiantes ante los poderes establecidos y ante los discursos de los “expertos” que hasta ahora habían decidido sobre la suerte que debían correr las personas con prácticas sexuales diferentes a la norma heterosexista (SÁEZ, 2004, p. 29). David Halperin (2004) explica que esse cenário também provocou uma divisão na política de esquerda. De um lado, os esquerdistas tradicionais que chegaram ao poder na década de 1959, 1960 e que pautavam seu pensamento em categorias marxistas tradicionais. Do outro, uma nova esquerda oriunda dos movimentos de contracultura e que dialogava com base nos processos sociais de significação e, em suas problematizações, incluía discussões oriundas dos grupos minoritários. Esses novos esquerdistas estavam influenciados: (...) por el estructuralismo, la semiótica, la desconstrucción, el psicoanálisis, el análisis de los discursos; para ellos no eran os sujetos individuales los que producen y determinan el sentido sino las estructuras sociales y los sistemas de significaciones. Para ellos la política no engloba solamente al Estado y a las clases sociales, sino también a la familia, las relaciones sociales de sexo, las reglas de discurso que gobiernan la representación del otro y de si mismo, las jerarquías 38 raciales y étnicas y los campos ya constituidos del saber: la política, la medicina, el derecho, la cultura y el sistema universitario y escolar. (HALPERIN, 2004, p. 14). Halperin argumenta que uma parte dessa esquerda marxista, não adepta aos novos modelos de crítica política, se uniu ao campo neoconservador. Outra parte, que ainda criticava o governo reaganista (1981-1989), mas também não compartilhava as criticas anti-humanistas em relação ao gênero, sexualidade, raça, etnia e processos de constituição de subjetividades, também se posicionou contrário às novas ideias no plano do ensino como, por exemplo, impedindo o contato dos estudantes com o pensamento de escritores franceses, “culpados” por essa nova política de esquerda. É nesse contexto que surge a possibilidade para que uma nova onda de reivindicações esquerdistas entre em cena e dialogue com questões até então não consideradas como problemáticas para a esquerda tradicional. Nesse sentido, a crítica incisiva ao movimento feminista da década de 1960 pode ser considerada como uma das primeiras dimensões constituintes da base teórica queer. Nesse contexto, mulheres negras, latinas, lésbicas e transexuais denunciam a estruturação do movimento feminista tradicional e os debates por ele travado. Assim: Se denuncia no solo la falta de visibilidad y representación de estos minorias en los discursos feministas mayoritarios, sino la pobreza de un análisis que se centra solo en el género (y en una vision naturalizada del sexo y de la “mujer”) y que deja de lado otros factores transversales que también influyen en las situaciones de exclusión, como la raza, la clase social o la orientación sexual (SÁEZ, 2005, p. 70). O debate travado entre as feministas negras como Audre Lord e Barbara Smith; a crítica dos movimentos lésbicos radicais como o Lesbian Avenger e Radical Fairies; e a problematização do heterocentrismo impregnado no discurso feminista tradicional realizada por Adrienne Rich, Monique Wittig, Audre Lord, Gloria Anzaldúa e Chérrie Moraga contribuíram para a desestabilização de um movimento feminista constituído por mulheres brancas, heterossexuais, de classe média e agrupadas por uma distinção de sexo (SÁEZ, 2005). Esse princípio “desestabilizador” dos discursos hegemônicos foi uma das ferramentas analíticas apropriadas pela teoria queer. 39 Outro ponto que merece destaque é a crise estabelecida no movimento gay8 a partir dos movimentos de contestação identitária em voga. Nesse sentido, após sua estruturação enquanto um movimento de reivindicação social baseado na vivência de uma sexualidade, algumas de suas conquistas acabaram configurando-se como uma estratégia de absorção dos “novos sujeitos” ao sistema capitalista. Dessa maneira, muitos homossexuais acabaram integrando-se aos ideais de “normalidade” para que pudessem ter acesso aos privilégios heterossexuais e de consumo. Muitos grupos passam então a tecer severas críticas a essa “incorporação”, fortalecendo a afronta ao sistema de produção de desigualdades baseados no heterossexismo e de “tolerância” às sexualidades desertoras. Halperin (2004) reforça essa crítica ao reconhecer que as táticas de ação queer não foram acompanhadas pelo conjunto do movimento gay, pois, dentre outras diferenças, o movimento queer se constrói enquanto um modelo de ação não identitária. Com isso, difere do movimento homossexual tradicional inclusive no que concerne a pautas de reivindicações: La política gay y lesbiana en el apogeo de su momento queer, había dejado de aferrarse a la especificidad del deseo homossexual y se había anclado a una relación con todo lo que tenían en común aquellos que la sociedad mayoritaria consideraba como “anormales”, es decir como queers (...) las minorías raciales y étnicas, los disidentes sexuales, las madres solteras, las familias no tradicionales, los seropositivos y los enfermos de sida, los prisioneros, los toxicômanos, los indocumentados. (HALPERIN, 2004, p. 17) (grifos do autor). No que se refere ao contexto de surgimento da Aids, a doença foi logo associado aos “modos de vida homossexual”9. Assim, o “componente” sexual atribuído ao contágio acabou por reiterar o discurso moralista de condenação das práticas sexuais não monogâmicas e estabelecidas fora da ordem heterossexual. “A su vez, el componente “sexual” de la transmisión de la enfermidad va a recrudecer los discursos moralistas reacionários y las campañas de demonización de las prácticas y de los cuerpos homosexuales” (SÁEZ, 2005, p. 67). 8 Embora sua origem de enfrentamento radical traga como marco o embate entre a polícia e os frequentadores do bar Stonewall em 28 de junho de 1969, é importante salientar que mobilizações em prol do reconhecimento social de gays e lésbicas antecedem a essa data. 9 Em 1986 ocorre a identificação e denominação do vírus HIV. Como a sintomatologia da doença se manifesta primeiramente junto a comunidade gay, é instaurada a falsa associação ente a doença e a homossexualidade (SÁEZ, 2005). 40 Segundo Halperin (2004), ao ser considerada como uma “peste gay”, a crise da Aids aumentou demasiadamente nos EUA a violência contra homossexuais. É nesse cenário que ações de resistência organizada pela sociedade civil são visibilizadas e constituem possibilidades radicais de manifestações frente ao descaso do governo reaganista. Nesse momento uma onda de protestos e reivindicações dos grupos feministas, gays, lésbicos, dos não brancos, dos desempregados, dos imigrantes ilegais e outras formas de ação radical direcionadas contra o governo omisso e pautado em valores tradicionais brancos, heterossexuais e cristãos, foram observadas. Assim, surge um novo tipo de política, a política queer. A partir dessa configuração histórica, e em uma movimentação para contestação do descaso do governo estadunidense em relação ao tratamento dos doentes, surgem alguns
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