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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA 
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO” 
FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA 
 
 
 
VAGNER MATIAS DO PRADO 
 
 
 
 
 
 
 
Entre ditos e não ditos: a marcação social de diferenças de 
gênero e sexualidade por intermédio das práticas escolares da 
Educação Física 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Presidente Prudente 
2014 
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA 
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO” 
FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA 
 
 
 
VAGNER MATIAS DO PRADO 
 
 
 
 
 
 
 
Entre ditos e não ditos: a marcação social de diferenças de 
gênero e sexualidade por intermédio das práticas escolares da 
Educação Física 
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de 
Ciências e Tecnologia da Universidade 
Estadual Paulista (FCT/UNESP) campus de 
Presidente Prudente-SP como requisito 
obrigatório para a obtenção do título de Doutor 
em Educação. 
Orientadora: Profa Dra Arilda Ines Miranda 
Ribeiro 
 
 
 
 
 
 
 
 
Presidente Prudente 
2014 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FICHA CATALOGRÁFICA 
 
 
Prado, Vagner Matias do. 
P921e Entre ditos e não ditos: a marcação social de diferenças de gênero e 
sexualidade por intermédio das práticas escolares da Educação Física / 
Vagner Matias do Prado. - Presidente Prudente : [s.n], 2014 
 258 f. 
 
 Orientador: Arilda Ines Miranda Ribeiro 
 Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de 
Ciências e Tecnologia 
 Inclui bibliografia 
 
 1. Educação Física Escolar. 2. Teoria Queer. 3. Heteronormatividade. 4. 
Homossexualidades. 5. Homofobia. I. Ribeiro, Arilda Ines Miranda. II. 
Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. III. 
Entre ditos e não ditos: a marcação social de diferenças de gênero e 
sexualidade por intermédio das práticas escolares da Educação Física. 
 
 
 
Ficha catalográfica elaborada pela Seção Técnica de Aquisição e Tratamento da 
Informação – Serviço Técnico de Biblioteca e Documentação - UNESP, Campus de 
Presidente Prudente. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico este trabalho aos corpos 
transgressores, às vidas ininteligíveis, ao 
coletivo anômalo, às travas, sapas e 
bichas, às insurgências queer. 
Agradecimentos 
 
 A finalização de um trabalho não pode ocultar o processo de seu 
desenvolvimento. Durante esse trajeto, árduo, nunca estamos sozinhos. Ao contrário, 
sempre acompanhados e inspirados por múltiplas vozes que se materializam a cada 
palavra grafada em papel. Reconhecer essas vozes, mesmo sem nomeá-las, é 
imprescindível para que possamos, realmente, compreender alguns dos significados 
contidos na enunciação “PESQUISA”. Com isso, desde já, agradeço aos colaboradores 
que imprimiram suas vozes neste trabalho e permitiram com que fosse possível 
compreender que se faz necessário, e urgente, interceder nos processos formativos 
escolares, pois, essa trajetória pode se transformar em uma verdadeira Odisséia a ser 
travada. E, com o agravante de que nem todos somos “Ulisses”. 
Mesmo correndo altos riscos de não ser fiel a todas e todos que, efetivamente, 
contribuíram para a conclusão desta Tese de Doutorado, assumirei a responsabilidade 
por eventual equívoco. Longe de soar de forma hierárquica, nos primeiros parágrafos 
me dedico a explicitar alguns significados que atribuo a três devires femininos que 
marcam, de forma visível, o que nomeio como vida. Sem contar que a potente 
subjetivação feminina que me acompanha se conecta com estas três mulheres. 
 Agradeço a minha inspiradora MÃE, por ter criado inúmeras condições 
históricas de possibilidade que viabilizaram a conclusão de mais essa etapa. A figura 
feminina mais significativa em minha vida. Mesmo imersa em situações dolorosas 
durante o transcorrer de sua vida, não poupou esforços, motivações e confiança para 
fabricar meios, até então inéditos, que contribuíram para que um de seus filhos 
alcançasse o almejado título de Doutor. Agradeço muito pelo afeto, carinho e proteção 
dedicados durante todo esse processo. 
 À minha querida irmã. Outra mulher contagiante que, além de ser capaz de 
reconstruir o que pensava ser a vida, sempre esteve ao meu lado para tudo e contra 
todos. Recordo que foi a primeira pessoa do núcleo familiar para quem tive a coragem 
de desvelar desejos latentes e a vontade de migrar, e não somente em um sentido 
geográfico, para conhecer outras possibilidades de vida. Mesmo longe, sempre se fez 
presente. 
 À minha respeitável orientadora, Profa. Dra. Arilda Ines Miranda Ribeiro, uma 
mulher forte, dedicada, competente e decidida com quem tenho o prazer de aprender, 
cotidianamente, muito dos trâmites do processo de “tornar-se” um acadêmico que se 
pretende professor. Penso que boa parte de minha determinação provém desse encontro 
e da linha de subjetivação contagiante que me proporciona. Além de orientadora, sinto 
que estabelecemos vínculos de amizade. Uma mulher sempre alerta e pronta para 
desestabilizar minhas certezas. 
 Ao Prof. Dr. José Ignácio Pichardo Galán por ter me recebido na condição de 
estagiário junto ao Departamento de Antropologia Social anexo à Facultad de Ciencias 
Políticas e Sociología da Universidad Complutense de Madrid (UAM). Um profissional 
que muito me auxiliou em tempos difíceis, separado do habitual, por um oceano. 
Embora a experiência de sete meses tenha trazido grandes contribuições acadêmicas e 
culturais, me fez valorizar minha terra e as parcerias que efetivei nela. Sete meses de 
leituras, conversas e pesquisas. Mas, sete meses de saudades e vontade de regressar! 
 Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e 
Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/UNESP) 
por fornecer à necessária infraestrutura e recursos humanos para que o doutorado fosse 
viabilizado. Desde os tempos de graduação, tenho orgulho das marcas da UNESP em 
minha trajetória. Ela fez e faz diferença! 
 Aos Professores membros da Banca de Defesa a quem quero detalhar minha 
gratidão: 
 À Profa. Dra. Maria de Fátima Salum Moreira. Profissional admirável, sempre 
comprometida e solícita aos chamados discente. Ainda quando estudante de mestrado já 
me fascinava com seu amplo conhecimento sobre culturas, currículos e processos de 
formação escolares. Aprendi muito sobre educação escolar na pretensa condição de 
investigador da área, uma vez que, como bacharel em Educação Física, apresentava 
defasagens em compreender o ambiente escolar enquanto foco para análises críticas e 
políticas. 
 À Profa. Dra. Helena Altmann. Inspiração teórica desde os tempos de graduação. 
Um dos primeiros contatos com pesquisas em Educação Física e relações de gênero foi 
viabilizado por sua produção. Ao ter a oportunidade de conhecê-la pessoalmente percebi 
que, além de uma pesquisadora de peso para a área de Educação Física, é uma pessoa 
humilde e aberta a parcerias. Mesmo com aspirantes a pesquisador. 
 Ao Prof. Dr. Wiliam Siqueira Peres, um querido que me contagiou com seu 
posicionamento político e comprometimento social em desestabilizar as normas de 
gênero e sexualidade que legislam sobre nossas vidas. Agradeço por ter me recebido 
como “aluno especial” em sua disciplina junto ao Programa de Pós-Graduação em 
Psicologia da UNESP campus de Assis-SP. Também não poderia esquecer o carinho 
com que, ao passar por Madri em meus tempos de solidão, prontamente entrou em 
contato para saber como as coisas estavam. Aquele encontro foi muito importante, pois 
me fortaleceu para enfrentar os meses que viriam. 
 Ao Prof. Dr. Márcio Rodrigo Vale Caetano, outro querido e respeitável 
“intelectual militante” com quem aprendi, não somente a partir de seus textos, mas 
também ao ouvi-lo durante os congressos nos quais nos encontramos. Sempre disposto a 
contribuir durante o processo de construção de minhas inquietações acerca dos gêneros 
esexualidades e uma fonte de inspiração feminista. 
 Também agradeço ao Prof. Dr. Divino José da Silva, Prof. Dr. Irineu Aliprando 
Tuim Viotto Filho, Profa. Dra. Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo e Profa Dra 
Eliane Rose Maio, também membros de Banca e sempre dispostos a interlocuções. 
 Às meninas e menino da seção de Pós-Graduação. Em especial às queridas e 
querido: Ivonete Gomes de Andrade, Cínthia Thiemi Onish, André Trindade Meira, 
amigas e amigo de jornada que nunca pouparam esforços para construírem algumas 
condições de materialidade que viabilizassem esse processo de doutoramento. Também 
deixo meus agradecimentos à Ana Claudia de Marchi Pazin Ursulin e Aline da Silva 
Ribeiro Muniz, novas companheiras de incansáveis consultas acadêmicas. 
Ao Danilo Santiago Gomes Lúcio, companheiro afetivo e parceiro intelectual. 
Digamos que um engenheiro e futuro Professor Doutor que se doa às intersecções entre 
Humanas e Exatas. Muito da finalização desse processo devo a ti. Quantas discussões! 
Quantas divergências! Quantos confrontos! E quantas possibilidades! Aprendi a me 
despir do “meu eu” e a exercitar o silêncio para ouvir vozes que nos trazem novos 
fôlegos. O trajeto Presidente Prudente - Ilha Solteira realmente foi produtivo. 
 À amiga e parceira profissional Keith Daiani da Silva Braga pelas incansáveis 
discussões acadêmicas e abertura pessoal. Perdi as contas dos muitos e acalorados 
confrontos teóricos sobre os estudos pós-estruturalistas e teoria queer. Entre foucaults, 
butlers, preciados, wittigs, rubins e richs aprendemos a nos respeitar enquanto 
profissionais e fortalecemos uma parceria que, penso eu, levar para o resto da vida. 
 À Jéssica Kurak Ponciano, outra parceira de pesquisa que estabeleci durante 
meu processo de formação. Uma estudiosa de questões feministas que partilhou comigo 
diversas ideias que geraram muitas possibilidades de problematização. Além de uma 
companheira para debates, uma amiga que produz diversas linhas críticas que 
possibilitam novas subjetivações. 
 À querida Maryna Vieira Martins Antunes, amiga com quem partilhei muitos 
momentos de angústias e possibilidades. Em nossa jornada como pós-graduandos foram 
vários os debates sobre políticas formativas e a necessidade de nos posicionarmos frente 
às injustiças sociais. 
Ao amigo Marcos Vinicius Francisco. Mais que parceiro, um irmão que instituí 
em solo prudentino. Profissional capacitado, inconformado com a situação social posta 
e professor comprometido com a almejada transformação das condições de opressão e 
não acessibilidade baseadas na classe social. Um teórico materialista com quem muito 
aprendi e em quem me inspiro desde os tempos de mestrado. Agradeço por ter me 
auxiliado em minha incursão empírica. 
 Ao amigo Alex Sandro Gomes Pessoa. Sujeito sempre disposto a “socorros” 
acadêmicos e preparado intelectualmente quando convocado para confrontos 
necessários. Amigo que contribuiu de maneira significativa para o delineamento 
metodológico de minha pesquisa. Uma das poucas subjetividades masculinas que me 
inspira. 
 Às queridas e queridos: Jamilly da Cunha Nicácio, Taluana Laiz Martins Torres, 
Jorge Luis Mazzeo Mariano, Jaqueline de Andrade, Wagner Aparecido Caetano, André 
Caobianco e Édison Trombeta de Oliveira, membros do NUDISE – Núcleo de 
Diversidade Sexual na Educação e GEPECUMA – Grupo de Pesquisa em Educação, 
Cultura Memória e Arte, ambos da FCT/UNESP. Muito além de grupos de pesquisas, 
coletivo de amigos e amigas, parceiros e parceiras com quem travei inúmeras discussões 
que enriqueceram, em muito, meu processo formativo. 
 Ao coletivo discente do Programa de Pós-Graduação em Educação da 
FCT/UNESP. Ao todo, foram mais de seis anos (entre Mestrado e Doutorado) na 
companhia desse grupo que, sempre em mutação, possibilitou inúmeras experiências 
significativas. 
 À FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pela 
concessão de duas bolsas de estudos que viabilizaram o desenvolvimento da pesquisa. 
Uma concedida no Brasil e outra para que pudesse realizar o almejado estágio de 
pesquisa no exterior (BEPE). O ato de “debruçar” sobre o tema de investigação e a 
elaboração da versão final do trabalho aqui apresentada, seriam dificultados caso não 
obtivesse os recursos disponibilizados. 
 
Os meus “muito obrigado”! 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Nada é impossível de mudar 
 
Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece 
habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, 
pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade 
consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural 
nada deve parecer impossível de mudar. 
(Bertold Brecht) 
Entre ditos e não ditos: a marcação social de diferenças de gênero e sexualidade 
por intermédio das práticas escolares da Educação Física 
 
Resumo 
 
A Educação Física se encontra inserida em sistemas discursivos que constroem 
representações sobre condutas normalizadas em nossa sociedade. Ostentar um corpo 
diferente dos padrões de saúde e beleza instituídos, não se adequar aos comportamentos 
sociais “apropriados” segundo seu gênero, ou transgredir o sistema de inteligibilidade 
cultural que prediz uma relação causal e ordenada entre sexo, gênero e sexualidade são 
marcadores que denunciam algumas “diferenças” durante aulas de educação física na 
escola. Ao contar com o aporte teórico de estudos pós-estruturalistas e da teoria queer, 
objetivamos compreender de que maneira os discursos utilizados pela disciplina 
produzem marcas associadas ao gênero e a sexualidade, tendo a heterossexualidade 
como base normativa. Investigamos como sujeitos que questionam os padrões de 
normalidade heterossexual são representados nos espaços escolares e como constroem 
resistências para transitarem por eles. A pesquisa foi desenvolvida junto a jovens 
adultos gays no município de Presidente Prudente – SP. Através da aplicação de 
questionários socioeconômicos e da elaboração de seis (6) entrevistas semiestruturadas, 
analisamos relatos sobre vivências de sujeitos, que se autorrepresentam enquanto 
homossexuais, a partir de suas rememorações sobre aulas de educação física na 
Educação Básica. Os resultados obtidos apontam que a Educação Física escolar é 
gerenciada pelos mecanismos reguladores de gênero na qual a heterossexualidade é 
tomada como padrão de normalidade. Sujeitos que não performatizam a masculinidade 
hegemônica, ou pautada na noção de virilidade e subjugação do feminino, são alvos 
constantes de marcações de diferenças que objetivam “materializar” suas “não 
adequações” no cenário escolar e, mais especificamente, durante aulas de educação 
física nesse contexto. 
 
Palavras chave: Educação Física Escolar, Teoria Queer, Heteronormatividade, 
Homossexualidades, Homofobia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Between the said and the unsaid: social labeling of gender and sexuality differences 
in the academic implementation of Physical Education 
 
Abstract 
 
Physical education is part and parcel of the discursive systems that construct 
representations of standardized behaviors in our society. Sporting a different physique 
than that set by the commonly accepted standards of health and beauty, not adhering to 
socially appropriate gender behaviors, or running afoul of the system of cultural 
intelligibility that demands a causal and ordered relationship between sex, gender and 
sexuality are markers that indicate "differences" in physical education classes at school. 
By relying on the theoretical framework of poststructuralist studies and queer theory, 
we aim to understand how the discourses used by the discipline produce standards for 
gender and sexuality, using heterosexuality as a normative baseline. Weresearched 
subjects who questioned the standards of heterosexual normality as represented in 
academic spaces and how they built the defenses that allowed them to transit in these 
spaces. The survey was developed with young gay adults in the city of Presidente 
Prudente - SP. Through the use of socioeconomic questionnaires and the development 
of six (6) semi-structured interviews, we analyzed reports of the experiences of the 
subjects, who self-represent as homosexuals, from their recollections of physical 
education classes throughout basic education. The results obtained indicate that Physical 
Education is managed by the regulatory gender mechanisms in which heterosexuality is 
taken as a standard of normality. Subjects who did not demonstrate hegemonic 
masculinity, as grounded in the notion of virility and female subjugation, are constant 
targets of labeling that aim to "materialize" their "lack of adequacies" in the school 
setting and, more specifically, within the context of physical education classes. 
 
Keywords: Physical Education, Queer Theory, Heteronormativity, Homosexuality, 
Homophobia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
Algumas palavras..........................................................................................................15 
 
Introdução......................................................................................................................19 
 
Procedimentos Metodológicos......................................................................................27 
 Primeira Parte: A teoria queer e o reconhecimento do anômalo enquanto 
potencialidade desconstrutiva..........................................................................................29 
Segunda Parte: Sobre a abordagem investigativa...............................................42 
Terceira Parte: A produção dos dados................................................................44 
Quarta Parte: Caracterização socioeconômica dos sujeitos colaboradores........49 
Quinta Parte: Os eixos problematizadores e a elaboração dos capítulos............53 
 
Capítulo I - Gênero e Educação Física: marcas corporais da criação dos sujeitos.57 
1.1 - Das práticas corporais para a Educação Física: um dispositivo biopolítico 
de controle sobre a vida?..........................................................................................57 
 1.2 - O corpo enquanto uma ficção: o conceito de gênero e suas implicações para 
a construção do imperativo da diferença sexual..............................................................64 
 1.3 - Educação Física e as relações de gênero: a fabricação de mulheres e 
homens por intermédio das práticas corporais................................................................69 
 1.4 - Política do performativo: contribuições de Judith Butler para problematizar 
a produção de sujeitos generificados nas aulas de educação física.................................87 
 1.5 - Aulas separadas por sexo, mistas ou coeducativas? Problematizando a 
forma pela qual a Educação Física reproduz ou transforma os sujeitos a partir da ótica 
de gênero........................................................................................................................100 
 1.6 - Educação Física e esportes: um cenário masculino?.................................109 
1.7 - Perspectivas para os estudos de gênero na Educação Física.....................121 
 
Capítulo II - (HETERO)normalização, homofobia e homossexualidade(s): dos 
discursos pedagógicos para a pedagogia da Educação Física..................................125 
 2.1 - A construção discursiva da realidade e o sujeito enquanto ficção: o 
pensamento heterossexual e a produção dos corpos homossexuais..............................127 
 2.2 - Normalização de condutas e a produção de violências: a homofobia 
enquanto uma tecnologia heteronormativa....................................................................140 
 2.3 - Transgressão, confronto e violência: a homofobia na escola....................154 
 2.4 - Território contestado: Educação Física, homossexualidades e 
homofobia......................................................................................................................173 
 
Capítulo III - Teoria queer e a emergência de corpos abjetos: das novas estéticas de 
existência à desterritorialização da sexualidade genitalizada.................................196 
 3.1 - Queerizando o processo de construção dos corpos/subjetividades: fuga das 
normas e resignificação da identidade deteriorada........................................................200 
 3.2 - Mecanismos de resistência e autorrepresentação dissidente nos espaços 
escolares.........................................................................................................................207 
 3.3 - O uso dos corpos enquanto instrumento para a busca do prazer: as 
possibilidades de uma sexualidade não genitalizada.....................................................223 
 
Considerações Finais...................................................................................................230 
Referências...................................................................................................................237 
Anexos...........................................................................................................................253 
 
 
15 
 
Algumas palavras 
Desveste o coração 
das plumas e dos pesos 
da existência. 
Deste portal em diante 
só existem paisagens: 
Os riscos esboçados 
dos pórticos do olhar. 
Neles não cabe ciência, 
sequer filosofia, 
mas o simples gozo 
de vagar. 
Angélica Torres (Ao navegante) 
 
 Deixar nossas certezas de lado, duvidar de nossas “verdades”, correr os riscos 
dos encontros, por vezes, inusitados e questionar o plano da existência, não são tarefas 
fáceis. Embora seja complicado nos desvestirmos do cotidiano, ficar nu se torna 
importante para que possamos recriar possibilidades de vestimentas. Nesse processo, “o 
simples gozo do vagar”, sem pretensões de chegar a algum lugar e construindo sempre 
novos caminhos para contemplar as experiências possibilitadas pelos trânsitos, nos 
permite ampliar o alcance de nossos sentidos e, consequentemente, de nossa 
compreensão do que nomeamos como vida. Foi durante esse transitar que atravessei 
espaços antes impensados, dos quais o terreno político-acadêmico se tornou 
significativo e construiu algumas condições históricas de possibilidade para que eu 
pudesse travar constantes embates. 
O desafio da construção de uma Tese requer desapego, desassossego e 
desprendimento das razões que nos ensinaram universais. O gozo do vagar nos abre 
possibilidades. Descentra-nos. Constitui-se em uma espécie de força vibrátil que não 
cessa, mesmo perante tentativas constantes de adequações. Creio que meu pensamento 
materializado nessas primeiras palavras, e potencializado pela sensibilidade de Angélica 
16 
 
Torres, possa esboçar a compreensão que tenho sobre meu processo rumo ao almejado 
título de Doutor em Educação. 
 Mas, durante esse processo, questionar a sexualidade? Sim! Questionar um 
dispositivo que me adequou a uma identidade desde a primeira vez que me marcaram 
discursivamente enquanto “bicha”. Não que eu requeresse a participação nesse sistema 
de inteligibilidade violento e cruel, mas, no qual me inseriram de forma arbitrária e sem 
me oferecerem a possibilidade de uma “não-identificação”. “Gay”, “bicha”, “viado”... 
Tantos nomes que penetravam de maneira cortante em meus ouvidos e que deixaram 
inúmeras marcas! Felizmente, algumas delas me potencializaram para renunciar certos 
limites identitários, ao mesmo tempo em que reconhecia que o que antes me soava 
como xingamento, ganhava nova significação. A “bicha” agora já não me acua, ao 
contrário, amplia minhas possibilidades de atuação e existência nesse mundo. Foi no 
meiodesse jogo categorial que os questionamentos que apresento neste trabalho 
ganharam materialidade. 
 A lembrança mais remota que tenho sobre “me conceberem como diferente” (ou 
a que me marcou de forma mais violenta) foi, quando ainda na juventude e cursando a 
antiga oitava série do Ensino Fundamental, a perseguição constante, por meio de piadas, 
chacotas e zombarias devido a minha não adequação a um sistema de regulação de 
corpos/subjetividades que ainda desconhecia, construía o contexto de minhas relações. 
O medo de ser apontado como “aquilo” tornou minhas vivências escolares nessa época 
quase insuportáveis. Embora já tivesse ouvido essas nomeações, foi nesse cenário 
“educativo” que, hoje percebo com clareza, senti pela primeira vez o peso da 
administração de minha vida pautada em um ideal heterossexista, em grande escala 
legitimado por meus antigos professores e professoras. 
 Lembro-me que muitos foram os desconfortos que senti e os desesperos que me 
afligiam quando, ao acordar pela manhã, tinha que me preparar para encarar o que viria. 
Todavia, penso que enfrentei, e esse confronto constante fez com que minha trajetória 
transpassasse por aqui. É nesse sentido que endosso o argumento de que “o pessoal é 
político”. De que é preciso problematizar o cotidiano para demonstrar o quanto ele é 
fabricado por uma ordem discursiva que nos precede. 
17 
 
 Finalmente (e felizmente!) ao concluir o Ensino Médio, percebi que a jornada 
tinha que continuar. Uma bicha só com a educação básica, talvez, não fosse levada tão a 
sério. Foi assim que no ano de 2003 ingressei no curso de graduação em Educação 
Física pela UNESP de Rio Claro-SP (sonho realizado!) e me deparei pela primeira vez 
com a complexidade dos estudos que envolvem o corpo e suas relações socioculturais e, 
ainda de forma ingênua, atentei para a política contida nas formas não convencionais de 
configurações de vida. Dessa maneira, em meu Trabalho de Conclusão de Curso para a 
obtenção do título de Bacharel em Educação Física, optei por realizar uma pesquisa que 
problematizasse as relações de gênero em decorrência da prática de atividades 
corporais. Mais especificamente, iniciei meus estudos sobre o gênero enquanto 
categoria analítica com o objetivo de questionar a noção de “escolha” do sujeito por 
uma atividade corporal. Minhas inquietações me levavam a hipotetizar que a “escolha” 
não passa de um direcionamento social. 
 Ao finalizar a graduação, a possibilidade de continuidade dos estudos a partir da 
ótica do gênero me instigava. Assim, em uma incursão por Presidente Prudente-SP, me 
deparei com o Programa de Pós-Graduação em Educação da FCT/UNESP, o qual 
possibilitava investir em um projeto de mestrado para continuar a discutir o tema. Ao 
ingressar no Mestrado, embora não mais com um projeto sobre Educação Física e 
relações de gênero, iniciei estudos sobre a sexualidade humana e suas intersecções com 
a escola. Talvez por minha trajetória escolar não “tão feliz” no que se refere ao trato 
com “minha sexualidade”, foi inevitável o encontro com a teoria queer. 
Com isso, ao propor um projeto de Doutorado, e levar em consideração minhas 
memórias durante todo o período que precedia o processo de seleção, percebi que 
poderia contribuir para a área da Educação Física ao propor um trabalho investigativo 
que pudesse viabilizar a aproximação das problematizações queer junto à área, 
principalmente em sua vertente escolar. Com isso em mente, iniciei essa jornada que, 
mesmo cansativa, permitiu com que empreendesse esforços intelectuais (e não foram 
poucos!) para tentar compreender de que maneira os atravessamentos sociais de gênero 
e sexualidade perpassam os discursos pedagógicos da Educação Física e quais seus 
efeitos na vida de sujeitos que não se adéquam (ou não querem se adequar) às normas 
regulatórias postas. Meu interesse era me aventurar por um caminho no qual o encontro 
18 
 
com outras bichas, sapas e travas pudesse compor estratégias para (re)pensar a noção de 
humano, baseado nos ideais de corpo-gênero-sexualidade, enquanto uma ficção. 
Essa jornada me marcou tanto com encontros vibrantes e ampliações teóricas e 
políticas, como com momentos de solidão e questionamento de minha capacidade 
intelectual rumo a um (às vezes longínquo) título de Doutor. Todavia, sobrevivi! E é 
nesse sentido que reitero os agradecimentos ao coletivo que me acompanhou até aqui, 
pois sem “elas” e “eles”, certamente, esse caminho poderia ter sido interrompido. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
19 
 
Introdução 
(HETERO)SEXUALIDADE: A CONSTRUÇÃO DE UM DISPOSITIVO 
 
A presente investigação articulada junto à Linha de Pesquisa “Processos 
Formativos, Diferença e Valores”, do Programa de Pós-Graduação em Educação da 
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de 
Mesquita Filho” (FCT/UNESP) se constitui em uma Tese de doutoramento que 
intencionou problematizar as articulações entre práticas pedagógicas da Educação Física 
na escola e processos sociais de marcação de diferenças de gênero e sexualidades. 
Durante o processo de idas e vindas entre campo investigativo e um referencial teórico 
que pudesse desestabilizar o olhar de neutralidade dispensado à Escola e à Educação 
Física enquanto componente curricular, elaboramos algumas inferências que 
intencionam desvelar os discursos da área enquanto construtores de identidades 
atendentes aos ideais heterossexistas e heteronormalizadores. 
Aprendemos com Michel Foucault1 que a sexualidade não se constitui em uma 
“dimensão humana” oriunda da biologia e dos processos de maturação do organismo. 
Em questionamento a essa ideia, o filósofo argumenta que nossa sexualidade (e 
acrescentaríamos aqui “nossa noção contemporânea de desejo”) é uma construção 
pautada em discursos culturais que, ao produzirem certo conhecimento sobre os corpos 
e prazeres, administram nossas vidas e nos conformam às normas sociais. 
O dispositivo da sexualidade é acionado a partir de representações oriundas de 
diversas tramas discursivas. Conhecimentos científicos, pensamentos filosóficos, 
doutrinas religiosas, exposições midiáticas, estruturas arquitetônicas, filiações políticas, 
valores morais, gestos e comportamentos tipificados, todo esse artefato sociocultural 
constitui as numerosas redes relacionais que permitem o funcionamento desse 
dispositivo. 
 
 
1 De acordo com a perspectiva adotada para a elaboração do presente trabalho reflexivo de investigação, 
os prenomes e sobrenomes dos autores, quando de sua primeira aparição no corpo do texto, serão 
evidenciados em uma tentativa de superação da invisibilidade de gênero construída por intermédio da 
produção acadêmica e científica tradicionalista. 
20 
 
Por meio de uma historiografia muito refinada, Foucault demonstrou a criação e o 
desenvolvimento de uma maquinaria de controle do sexo e das práticas sexuais 
através da definição de geografias específicas, isto é, os saberes e as instituições 
sociais. Foucault demonstrou demarcações em torno das práticas sexuais, além de 
um controle rígido, gerado por saberes institucionalizados, como a medicina, a 
psiquiatria, a pedagogia e psicologia, os quais demarcaram os territórios e as 
subjetividades entre a normalidade e anormalidade. (CÉSAR, 2012, p. 356). 
 
Como apontado por Maria Rita de Assis César, essa produção de conhecimentos 
e representações é gerenciada por diversas instituições estatais. A Ciência, a Medicina, a 
Escola, a Igreja, a Família e o Sistema Jurídico, por exemplo, atuam como mecanismos 
reguladores da população ao instituírem práticas que promovem o controle social, 
fabricando assim sujeitos específicos para atenderem aos interesses políticos de 
determinado contexto. 
No que se refere à identificação do sujeito com a vivência dos prazeres, alguns 
marcadores específicosdelimitam as possibilidades (e limites) para essas relações. Os 
marcadores sociais de gênero e sexualidade, por exemplo, se configuram enquanto 
dispositivos que, em muitos casos, estabelecem a subjugação e a falta de legitimidade 
para múltiplos modos de existência. Ser enquadrado enquanto homem ou mulher, 
masculino ou feminino e ser forçado a desenvolver determinadas práticas ditas 
“sexuais” são estratégias políticas que posicionam os corpos/subjetividades a partir de 
um ideal de normalização focado na noção de uma heterossexualidade natural, universal 
e homogeneizada2. 
Muitos discursos que ganham nossos sistemas culturais de inteligibilidade 
instituem a heterossexualidade como princípio definidor de uma “verdadeira” 
identidade. Essa demarcação arbitrária se utiliza de diversas justificativas para assegurar 
o caráter de “naturalidade” dessa invenção (BRITZMAN, 1996; BUTLER, 2003; 2008; 
HALPERIN, 2004; WEEKS, 2001; WITTIG, 2006). É a partir desse pressuposto que 
muitas críticas e críticos focaram/focam suas análises no intuito de expor os 
mecanismos sociopolíticos que negativizam determinadas vivências humanas. 
 
2 Cabe destacar que os marcadores sociais de diferenciação de gênero e de sexualidade não são os únicos 
dispositivos que constroem noções identitárias de sujeitos e que, em muitos casos, passam a ser os 
indicativos que subjugarão determinados modos de existência. Os dispositivos acionados pelas noções de 
diferença sexual, raça, etnia, categoria geracional, deficiência, religião, nacionalidade, regionalidade e 
classe social também cumprem essa finalidade, sendo que, a partir das relações estabelecidas entre esses 
múltiplos marcadores, é que o contexto sociopolítico será constituído. 
21 
 
Como exemplo estratégico desse sistema heterocentrado poder-se-ia citar certo 
discurso religioso, que prega a complementaridade do homem com a mulher; 
determinados discursos médicos-científicos, que através da dissecação das diferenças 
anatômicas, fisiológicas e hormonais entre os sexos procuram evidenciar “provas” de 
que os seres são diferentes por natureza; uma boa parte do discurso jurídico, que não 
reconhece como sujeitos de direitos corpos que transgridem a essas normas; e muito do 
discurso pedagógico, que além da omissão frente ao reconhecimento de representações 
de sexualidade que se distanciam da lógica heterossexual, não promove 
questionamentos sobre a construção e marcação cultural dessas aparentes “diferenças” 
(ALTMANN, 2013; CÉSAR, 2009; FURLANI, 2008; LAQUEUR, 2001; LIONÇO e 
DINIS, 2009; LOURO, 2008; VAINFAS, 1986). 
O sistema normativo que prevê a regulação da sexualidade também institui uma 
cisão radical entre as representações de homem e mulher (ESTEBAN, 2004; 
LAQUEUR, 2001; NICHOLSON, 2000, WITTIG, 2006; RUBIN, 2013). Assim, 
características definidas como “femininas” são subjugadas e submetidas a manobras de 
poder que enaltecem determinado modelo de masculinidade como prova de 
superioridade de alguns sujeitos em relação a outros (BUTLER, 2003; CLARKE, 2002; 
CONNELL, 1995; RIOS, 2007). Dessa forma, tanto a aversão ao considerado como 
feminino, quanto a não legitimidade jurídica e social de sujeitos LGBTTI3 (Lésbicas, 
Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Intersexuais) constroem as bases para a 
instauração de processos discriminatórios em relação às diferenças, o que, nos dias 
atuais, facilmente reconhecemos como homo, lesbo ou transfobias (GRUPO GAY DA 
BAHIA, 2008; JUNQUEIRA, 2007; RAMOS, 2005; RIOS, 2007). 
Os regimes discursivos que pretendem fixar verdades universais acabam, devido 
a sua insistência, reiteração e ampla divulgação social, por não permitir com que 
compreendamos que somos constantemente fabricados por essas disposições. Na esfera 
do gênero e da sexualidade, identidades são forjadas a partir da instituição da norma 
heterossexual que é instaurada como “Lei”. Essa Lei de Criação constrói mecanismos 
 
3 O termo LGBTTI utilizado no presente trabalho não se remete ao movimento social organizado. Antes, 
a todos os sujeitos e sujeitas que não vivenciam uma expressão de sexualidade pautada na norma 
heterocentrada. Quando da menção ao movimento social, utilizaremos a expressão “movimento 
LGBTTI”. 
22 
 
de subjetivação que institui uma única possibilidade identitária: as que passem a manter 
uma ótica de coerência entre sexo biológico, gênero, desejo e prática sexual. 
 
Na perspectiva do indivíduo metafísico, os modos de subjetivação se apoiam em 
regras normativas que determinam identidades fixas, rígidas e cristalizadas que 
apresentam as pessoas como viciados em normas, dependentes de padrões 
hierarquizados e defensores da lei, dos contratos e das instituições regulatórias e 
disciplinares. Essa dimensão é escravizada pelos imperativos da 
heteronormatividade, que impõem a heterossexualidade de modo compulsório e se 
apoiam em um sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais em que um indivíduo, ao 
nascer macho, seu gênero será masculino, seu desejo heterossexual e sua prática 
sexual ativa, enquanto que, caso nasça fêmea, seu gênero será feminino, seu desejo 
heterossexual e sua prática sexual passiva (PERES, 2012b, p. 541). 
 
Essa forma de controle social dos corpos se demonstra muito eficiente. O 
dispositivo da (HETERO)sexualidade está disperso por toda a geografia social. Ao 
disponibilizarmos um pouco de atenção ao que nos cerca, facilmente poderemos notar 
as variadas estratégias de constituição de corpos “generificados” e “sexualizados”: na 
separação entre meninos e meninas nas escolas (ordenamento em filas segundo o 
gênero; divisão e controle exercidos para o acesso aos banheiros etc.); em um passeio 
pelos corredores do supermercado no qual os produtos são estampados segundo o 
gênero a que se destinam; no preenchimento de algum formulário onde temos que 
marcar um “X” nos espaços correspondentes ao “sexo”; nos modelos representacionais 
veiculados pelas mídias em seus mais diferenciados formatos (novelas, programas 
humorísticos, programação infantil). Somos bombardeados por tecnologias de produção 
de corpos de gênero e de sexualidade regidos por um modelo heterossexual que nos é 
posto de uma maneira impositiva e violenta. 
 Todavia, nem todos os sujeitos se conformam a partir dessas normas. Apesar de 
inseridos em um contexto heteronormativo, sujeitos que não se definem enquanto 
heterossexuais emergem como possibilidades de existência, entretanto, não obtendo o 
reconhecimento social e jurídico devido. No que se refere à negativização da 
homossexualidade enquanto uma identidade subalterna, por exemplo, a partir da 
segunda metade do século XIX esses sujeitos foram marcados pelos discursos em voga 
como “débeis” ou “doentes” por conta de suas práticas e desejos. O aparato médico que 
surgiu a partir da segunda metade do século XIX possibilitou a construção da 
Psicanálise enquanto um aparato discursivo que contribuiu para legitimar o dispositivo 
23 
 
da (hetero)sexualidade. Javier Sáez (2004) argumenta que a escola psicanalítica que 
surgiu em tempos pós Freud chegou a proibir a admissão de homossexuais enquanto 
aspirantes a psicanalistas. 
 Em uma tentativa de marcar a ilegalidade dessa expressão, em alguns países 
europeus a homossexualidade passou a ser perseguida legalmente. Em 1869, por 
exemplo, o governo Prussiano aprovou uma lei que criminalizava os “atos sexuais entre 
homens” (SÁEZ, 2004). Nesse momento, uma sociedade dividida entre categorizar a 
homossexualidade enquanto crime ou doença se estabelece. Poderíamos dizer que as 
tentativas médicas de descriminalização da homossexualidade, em uma primeira 
observação, se configuraram enquanto um movimento de resistência que objetivava 
combater o discurso jurídico. Entretanto, essa nova onda de conhecimento acabou por se 
constituir emum novo instrumento tecnológico que passou a fabricar os corpos 
homossexuais enquanto suscetíveis a diferenciadas formas de intervenções corretoras. 
É nesse sentido que, como nos alerta Michel Foucault, Judith Butler e Beatriz 
Preciado, fomos produzidos discursivamente para nos pensarmos, materializarmos e 
agirmos de determinada maneira. Fomos docilizados à suscetibilidade e postos a serviço 
de uma política disciplinar de assujeitamento. Com isso, se faz necessário questionar os 
discursos, os efeitos de verdade que eles criam e de que maneira fabricam e posicionam 
os sujeitos na hierarquia social. 
Atualmente, diferenciados movimentos sociais, pensamentos filosóficos e 
posicionamentos críticos objetivam desconstruir as regras de normalidade instituídas 
para o gênero e sexualidade. Nesse sentido, da representação de “pecador” ou “doente” 
ou “homem-masculino”, “mulher-feminina” as manifestações de gênero e sexualidade 
não padronizadas ou heterocentradas se configuram enquanto estratégias políticas para 
enfrentar os efeitos discursivos que impossibilitam o exercício da cidadania e o 
reconhecimento da potência vibrátil oriundas das infinitas possibilidades de constituição 
subjetiva. 
Assim, cabe alertar que o poder domesticador não é a única via possível para a 
atuação social. O poder não é, meramente, unidirecional, verticalizado e opressor. Pelo 
contrário, é exercido em redes e em várias direções. Aproveita-se das fissuras, dos 
intervalos, do “não dito” enquanto estratégia de subversão. Essa potencialidade vibrátil 
24 
 
nos desafia a novas constituições, a novas possibilidades de existência. Ou seja, é 
possível se tornar “um outro” do que se é. 
No que se refere à Educação Física, sua construção enquanto área de intervenção 
cultural pautada em discursos médicos e biológicos atendeu a diversas finalidades 
políticas de fabricação e controle de corpos. Desde a constituição de um corpo militar 
para a defesa do então inaugurado Brasil imperial; de sua aplicação higiênica para o 
“desenvolvimento” de “corpos saudáveis” para garantir a saúde pública; sua vinculação 
aos ideais eugênicos/militares da era getulista; sua manipulação ideológica no período 
militar, chegando a propostas biológicas “modernas” que tendem a instituir, cada vez 
mais, a divisão entre os corpos de acordo com dois gêneros, a Educação Física 
contribuiu para a construção de corpos diferenciados, legitimando a manutenção de 
diversas formas de preconceitos sociais. 
Nesse sentido, ao partir da hipótese de que as práticas utilizadas pela Educação 
Física, quando inserida no contexto escolar, instituem marcas nos corpos associadas ao 
gênero e a sexualidade tendo como referencial de “normalidade” ideais heterossexistas, 
o problema de investigação proposto consiste em analisar de que maneira essa marcação 
se efetivou em jovens adultos homossexuais do gênero masculino que passaram pelo 
processo educacional formal. Vale destacar que a presente proposta vai ao encontro de 
parâmetros governamentais e de entidades de defesa dos Direitos Humanos e Sexuais, 
que objetivam minimizar as implicações da violência de gênero e sexual nos espaços 
sociais (BRASIL, 1998; CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À 
DISCRIMINAÇÃO, 2004; FURLANI, 2008; JUNQUEIRA, 2007, 2009; LIONÇO e 
DINIS, 2009). 
 O objetivo geral da proposta se constitui em analisar de que maneira jovens 
adultos gays4 residentes no município de Presidente Prudente – SP representam às 
práticas da Educação Física Escolar e quais foram os efeitos que estas exerceram sobre 
suas vidas. Dessa maneira delineamos o foco de atenção que direcionaria nossos 
esforços no exercício das leituras e ampliação teórica, bem como na busca para a 
produção dos dados. Especificamente, quatro pontos foram elencados enquanto focos de 
análise principais para desenvolver o estudo, a saber: 
 
4 Na presente Tese a grafia “gay” será utilizada para se referir à homossexualidade masculina. Quando da 
menção à homossexualidade feminina, o termo “lésbica” será empregado. 
25 
 
 
• Refletir sobre as contribuições teóricas da perspectiva pós-estruturalista e da teoria 
queer para a área da Educação Física Escolar, no que tange a construção da homofobia. 
 
• Analisar como jovens adultos gays representam as práticas pedagógicas da Educação 
Física em relação ao reconhecimento das diferenças sexuais e de gêneros no contexto 
escolar. 
 
• Problematizar de que maneira os “ditos” e “não ditos” presentes nos discursos da 
Educação Física escolar acerca da homossexualidade masculina exerceram, ou não, 
influências sobre o processo de constituição de suas subjetividades. 
 
• Identificar possíveis mecanismos de resistências construídos por jovens gays para se 
autorrepresentarem nos espaços escolares. 
 
A presente Tese se encontra subdividida em três capítulos que sucedem os 
passos metodológicos adotados. Ao apresentarmos a “metodologia” exporemos o 
pensamento teórico que nos move, bem como os procedimentos para a produção dos 
dados gerados e uma breve análise socioeconômica dos sujeitos que colaboraram para o 
desenvolvimento do estudo. 
O primeiro capítulo “Gênero e Educação Física: marcas corporais da criação 
dos sujeitos” versa sobre a constituição histórica da Educação Física enquanto área de 
intervenção social e suas tentativas de legitimação ao se vincular aos discursos 
biomédicos. Ao tomar emprestado o conceito de biopolítica cunhado por Michel 
Foucault, tentamos refletir sobre a Educação Física enquanto uma tecnologia de 
fabricação de corpos e gerenciamento da vida a partir dos pressupostos de 
heteronormalização. Transitamos entre problematizações sobre como os gêneros 
masculino e feminino foram geridos e sustentaram a constituição de um corpo 
discursivo cujo foco é reiterar a primazia da diferenciação sexual. 
No segundo capítulo “(HETERO)normalização, homofobia e 
homossexualidade(s): dos discursos pedagógicos para a pedagogia da Educação 
26 
 
Física” nos centramos em explicitar de que maneira as práticas escolares lidam com a 
homossexualidade, bem como as estratégias normalizadoras pautadas na homofobia que 
são postas em práticas na escola. Posteriormente, apresentamos relatos e 
questionamentos sobre como a Educação Física se articula para a produção das 
diferenças sexuais que partem da premissa heterossexual como parâmetro de 
normalização. 
 No terceiro capítulo “Teoria queer e a emergência de corpos abjetos: das novas 
estéticas de existência à desterritorialização da sexualidade genitalizada” tentaremos 
apontar possíveis práticas de resistências construídas por sujeitos homossexuais para se 
autorrepresentarem nos espaços escolares. Nesse trajeto também teceremos algumas 
considerações sobre o processo de esquadrinhamento do corpo e genitalização da 
sexualidade, bem como possíveis estratégias para superação desse processo de 
gerenciamento de vidas. 
 Por fim, apresentaremos as considerações às quais fomos conduzidos durante o 
desenvolvimento do trabalho investigativo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
27 
 
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 
 
Quando pensamos em sexualidade, muitas vezes, os discursos sociais 
disponíveis nos remetem a compreensão de que esta seria uma “essência”, algo interior 
ao sujeito e que o vincularia a ideia de uma “natureza universal” que categoriza o que 
representamos como “humano”. Esse fato acaba por decretar o aprisionamento dos 
corpos e subjetividades em perspectivas fixas que, reiteradamente, caracterizam a 
heterossexualidade enquanto norma, relegando expressões dissonantes desta ao âmbito 
das “inconformidades sociais”. 
Contudo, para correntes pós-modernas, quando evocamos o termo, a identidade 
passa a ser vista como uma espécie de “agenciamento estratégico”. Ou seja, considerada 
como uma construção histórica, transitória e fruto de interpelações sociais,ao mesmo 
tempo em que apela para um agrupamento coletivo com o objetivo de unificar uma 
mesma bandeira de reivindicação. É a partir dessa ambivalência que muitos estudos 
focam seus esforços analíticos. 
No caso da teoria queer a problematização sobre a construção social da 
identidade toma a heterossexualidade enquanto sistema político normativo. Assim, 
rejeita a noção de uma identidade essencializada e procura evidenciar os mecanismos 
culturais que constroem as diferenças sociais. Sua empreitada política intenciona 
desconstruir as representações hegemônicas de sexo, gênero e sexualidade. Direciona 
seus olhares questionadores à compreensão dos porquês da heterossexualidade ser 
valorizada como “a identidade” e as intencionalidades sociais em condenar as 
lesbianidades, transexualidades, travestilidades, intersexualidades, bissexualidades e 
homossexualidades ao rechaço social. 
Também problematiza os rígidos padrões culturais de comportamento que 
definem o gênero masculino e feminino. Ao contrário de singular, evidencia que as 
representações de masculinidade ou feminilidade são plurais e estabelecidas em uma 
cadeia hierárquica na qual o homem, masculino, branco, ocidental, de classe média, 
heterossexual e cristão é considerado superior a qualquer outra forma de identidade. 
Dessa maneira, para a teoria queer, o corpo pode ser pensado como uma categoria 
analítica que permite desvelar os mecanismos culturais de constituição, desconstruindo 
28 
 
a ideia de um “eu” naturalmente dado e concebido a partir de uma perspectiva biológica 
(MÉLLO, 2012). 
Postas estas considerações preliminares, para recriarmos nosso trajeto 
investigativo apresentaremos o contexto histórico de insurgência dos movimentos queer 
e sua configuração enquanto arcabouço teórico e problematizador que permite 
desconstruir as aparentes verdades sobre os sujeitos. Assim, em um primeiro momento 
realizamos um resgate histórico visando apresentar o caráter político dessa forma de 
pensamento. Posteriormente, detalharemos os passos que nos levaram até os nossos 
colaboradores e os instrumentos que nos possibilitaram gerar narrativas acerca das 
experiências escolares destes em aulas de educação física. 
 Os procedimentos utilizados para viabilizar a investigação compreendem tanto 
as ferramentas de geração dos dados, quanto o referencial teórico utilizado para as 
análises. Assim, a opção por apresentar a teoria queer nesta seção explicita nossa 
compreensão dos processos de construção cultural das sexualidades, bem como os 
mecanismos sociais reguladores dos corpos/subjetividades baseados na identidade. 
 Embora possa parecer extenso, a descrição metodológica do presente trabalho se 
faz necessária, pois, não compreendemos um Método de Trabalho Investigativo 
dissociado do referencial teórico que o baliza. Acreditamos que a exposição teórica 
também contribui para a Educação Física, uma vez que permite (re)pensá-la enquanto 
área de intervenção cultural que exerce efeitos de verdade nos corpos, adequando-os à 
uma ótica social que, em muito, pode gerar discriminações, preconceitos e violência. 
Acreditamos que a teoria queer pode subsidiar problematizações para a 
Educação Física e Educação Física Escolar5 ao fornecer bases epistemológicas que 
possibilitem a construção de outras investigações acerca dos diferenciados marcadores 
sociais que engessam identidades. Para além de questionamentos sobre classe social, 
gênero, sexualidade e/ou raça/etnia, essa abordagem teórica e política pode favorecer 
questionamentos acerca das noções de estética, saúde, habilidade motora, capacidade 
 
5 Quando nos referirmos à Educação Física e Educação Física Escolar enquanto áreas de produção de 
conhecimento, utilizaremos as iniciais maiúsculas. Ao aludirmos às aulas de educação física no contexto 
escolar, ou seja, as intervenções pedagógicas implementadas pelos professores e professoras da área para 
transmissão de determinados conteúdos, nos valeremos da grafia “aula/aulas de educação física” com 
iniciais minúsculas por se tratar de um substantivo comum. 
29 
 
física, deficiência entre outros mecanismos que também concorrem para a construção 
dos corpos e compreensão dos sujeitos. 
 
PRIMEIRA PARTE: 
A teoria queer e o reconhecimento do anômalo enquanto potencialidade 
desconstrutiva 
 
Lo que quería decir a propósito de esa función de diagnóstico acerca de lo que pasa 
hoy es que no consiste simplemente en caracterizar lo que somos, sino en seguir las 
líneas de fragilidad actuales, para llegar a captar por dónde lo que es y cómo lo que 
es podría no ser lo que es. En este sentido, la descripción se debe hacer según esa 
especie de fractura virtual que abre un espacio de libertad, entendido como espacio 
de libertad concreta, es decir, de transformación posible (FOUCAULT apud 
HALPERIN, 2004, p. 141).6 
 
A presente citação de parte do pensamento foucaultiano poderia expor a 
complexidade de relações necessárias de serem problematizadas para que possamos 
conceber os corpos/subjetividades enquanto construções discursivas. E, mais que isto, 
compreender quais os efeitos desses discursos nos processos de despotencialização de 
muitas possibilidades de existência. Michel Foucault explicitou algumas das relações 
existentes nos mecanismos de produção social dos corpos, e nos deixou um legado que 
possibilita compreender a ética enquanto um exercício crítico (e necessário) sobre 
como, e em quais condições, nos tornamos o que aparentemente “somos”. E mais, quais 
as maneiras possíveis de constituição de um “outro eu”. 
Em muitos casos, a aparente realidade de nossa existência enquanto humano se 
ancora em nossa sexualidade. A partir dos séculos XVII/XVIII observou-se uma 
produção contínua de conhecimentos que objetivaram ostentar a verdade sobre nosso 
sexo. Sexo este que, para o pensamento tradicional, nos remete a pensar em uma 
sexualidade biologicamente determinada e psicologicamente conduzida, na qual a 
diferença sexual e nossos mais profundos desejos, afeições, sentimentos e vontades se 
consolidariam (caso tenhamos um bom desenvolvimento de nossa vida sexual) em uma 
identidade que expressa o verdadeiro “eu”. 
 
6 Michel Foucault: Estructuralismo y posestructuralismo, p. 325. 
30 
 
É contra esse pensamento que algumas correntes, consideradas por muitos 
intelectuais como “pós-modernas”, desenvolveram longas e aprofundadas críticas, pois, 
se entregam a um exercício de desvelamento das normas sociais que regulam nossos 
comportamentos ao construírem nossas identidades. Dessa maneira, o pensamento de 
Foucault acabou por se configurar enquanto uma estratégia de resistência para essas 
“novas” teorizações que possibilitam certa transformação de nós mesmos e, 
consequentemente, da realidade que criamos. Dentre as estratégias que se valem dos 
escritos do filósofo para acionar mecanismos políticos de dissolução das identidades 
modernas, encontramos o que a literatura denomina enquanto “teoria queer”7. 
Contemporaneamente a denominada “teoria queer” poderia ser compreendida 
enquanto uma abordagem “teórico-crítica” que possibilita problematizar sistemas de 
normalização social que objetivam enquadrar os sujeitos em categorias identitárias. 
Seus pressupostos permitem atentar para os mecanismos sociais que constroem e 
legitimam as diferenças como representações contrárias a “natureza” humana 
(HALPERIN, 2004; LOURO, 2008; MISKOLCI e SIMÕES, 2007; SILVA, 2002). 
Entretanto, essa definição seria reducionista, pois a subversão que se constrói a 
partir de uma presença queer na ordem estabelecida prevê estratégias de ações que 
possam desafiar, constantemente, os modelos de normalidade impostos. Nesse sentido, 
para além de um pensamento teórico ou acadêmico, o queer faz uso da militância 
enquanto estratégiapara o confronto e desafio, não estabelecendo vinculo direto com 
qualquer pretensão identitária (seja ela de estilo de vida ou acadêmica). Para esse modo 
analítico, é preciso compreender as intencionalidades políticas de determinado meio 
para que possamos identificar os sistemas que organizam e hierarquizam os sujeitos em 
determinados grupos, enaltecendo alguns e subjugando muitos a um contexto pautado 
por diversas desigualdades sociais. 
Entretanto, quando falamos em intencionalidades políticas é preciso 
compreender o adjetivo “político” fora dos moldes tradicionais ou de representatividade 
partidária governista. A política a que se refere à crítica queer são os modos de 
regulação aos quais somos sujeitados por diversas instituições sociais, tais como, 
 
7 No decorrer de nosso exercício de escrita termos como “atitude queer”, “pensamento queer”, “política 
queer” “abordagem queer” ou “perspectiva queer” serão utilizados em referência a “teoria queer” no 
sentido de tentar afastá-la de uma possível compreensão cristalizada de “teoria”, pois, historicamente, as 
teorias apresentam conceitos fechados que não permitem uma flexibilização para seus usos. 
31 
 
Família, Religião, Sistema Jurídico, Sistema Pedagógico, Mídias etc. Dessa maneira, 
somos forjados em meio a valores sociais e “verdades” científicas que garantam o 
“bom” funcionamento de determinada ordem estabelecida. Qualquer fenômeno que 
cause estranhamento ou ameaça de subversão dessas leis normativas, qualquer presença 
queer nesse meio, é automaticamente marcado como inapropriado, doentio e/ou 
ilegítimo. 
A teoria queer se ancora em estudos pós-estruturalistas. Segundo Neil Franco 
(2009) ela surgiu nos Estados Unidos e Inglaterra na década de 1990, sendo o termo 
criado por Teresa De Lauretis. Alfonso Ceballos Muñoz (2005) relata que, embora o 
termo queer esteja presente na língua inglesa desde os finais do século XVI (ao referir-
se a diferentes significados), sua absorção gráfica para designar uma teoria foi 
empregada pela primeira vez no artigo “Queer Theory. Lesbian and Gay Sexualities: An 
introduction” publicado na revista Differences e assinado por De Lauretis. Para muitos 
autores, é a partir dessa publicação que essa grafia passa a designar uma vertente de 
teorizações filosóficas e ganha espaços acadêmicos (HALPERIN, 2004; MUÑOZ, 
2005). 
Entretanto, David Halperin (2004), ao estabelecer críticas sobre os modos de 
apropriação do adjetivo “queer” em muitos estudos acadêmicos ou estilos de vida norte 
americanos pautados no consumo, argumenta que, na formulação de De Lauretis, o 
termo foi empregado para perturbar a pauta de discussão dos até então denominados 
gays and lesbian studies. A investida da autora era criticar o discurso homogeneizante e 
monolítico sobre a diferença sexual observados nestes estudos (HALPERIN, 2004). 
Embora alguns escritos como os de David Halperin e Paco Vidarte explicitem 
críticas a uma boa parte dos modelos academicistas de teorização que se 
autodenominam queer, algumas teóricas e teóricos se destacam por seu trabalho 
militante, reflexivo e desestabilizador das normas sociais nessa área. Nomes como 
Judith Butler, Eve Sedgwick, Gayle Rubin, Monique Wittig e Michael Warner (além de 
Michel Foucault) marcam presença constante nos livros, artigos, ensaios e bibliografia 
de estudos acadêmicos que se pretendem críticos dos sistemas contemporâneos de 
subjetivação da(s) sexualidade(s). 
Contemporaneamente, pesquisadores e pesquisadoras como Beatriz Preciado, 
Marié Hélène Bourcier, Judith Jack Halberstam, Paco Vidarte, Susana López Penedo, 
32 
 
Javier Sáez e David Córdoba também construíram visibilidade integrando aos estudos 
acadêmicos a experiência da militância política em diversos espaços sociais 
(CÓRDOBA, SÁEZ e VIDARTE; 2005; HALBERSTAM, 2008; PENEDO; 2012; 
PRECIADO, 2011a, 2011b). Alguns destes trabalhos acabam por aprofundar muitos dos 
temas apontados (mas não desenvolvidos) por Michel Foucault, contribuindo assim para 
o desenvolvimento do pensamento crítico na atualidade. 
Segundo Richard Miskolci e Júlio Simões (2007), o termo queer, em uma 
interpretação literal, poderia ser traduzido como esquisito, estranho ou como uma série 
de xingamentos direcionados a homossexuais nos Estados Unidos (a exemplo de 
“bicha” ou “sapatão” no Brasil). Entretanto, no sentido utilizado pela teoria, queer 
também pode ser utilizado para designar alguém ou algo desestabilizador, que desafia 
os padrões de normalidade instituídos. 
As definições identitárias são um dos focos para as problematizações queer. Ao 
partir do pressuposto de que as identidades são construções sócio-históricas, e não 
definidas por uma descendência biológica ou criacionista, denunciam que essas 
categorias nada mais fazem do que enquadrar os sujeitos ao definirem limites para a 
atuação humana. Nesse sentido, a identidade se torna um potente mecanismo de 
controle e contenção social, pois, permite homogeneizar grandes massas tornando-as 
suscetíveis a diferenciados processos de gerenciamento. É a partir desse embate crítico 
que os estudos queer centralizam esforços na desconstrução de identidades sexuais que 
fogem da ótica heterocêntrica ao possibilitar a compreensão das lesbianidades, 
homossexualidades, intersexualidades, travestilidades, transgeneridades, e demais 
vivências de sexualidades não atendentes ao padrão hegemônico, enquanto possíveis, e 
diferenciados, modos de existência. 
 
A teoria queer se recusa a enumerar, classificar ou dissecar as sexualidades 
disparatadas, antes propõe evidenciar os processos invisíveis que atribuem à 
perspectiva da normalidade, identificada como a própria razão, o poder de instituir 
esta designação-julgamento (MISKOLCI e SIMÕES, 2007, p. 10). 
 
A instabilidade proporcionada pela teoria queer, atua especialmente no sistema 
discursivo em que vivemos, onde cada identidade sexual (homo, hetero ou 
bissexual) é construída através do eixo sexo/gênero, claramente identificável e 
interdependente, pois se espera a convergência lógica entre um corpo sexuado (que 
deve ser macho-homem ou fêmea-mulher), sua identidade de gênero (masculina ou 
feminina) e seu objeto de desejo (dirigido ao sexo oposto) (FURLANI, 2008, p. 36) 
(grifos da autora). 
33 
 
 
Para Judith Butler (2002) o termo “queer” é um importante instrumento que 
possibilita romper a continuidade, o fluxo enunciativo da construção de sujeitos 
retos/endireitados (straight). Ele é empregado em um sentido de “degradação” do 
sujeito ao qual se refere. Entretanto, possibilita a construção de novas linhas de 
constituição a partir de referentes até então não inteligíveis. O queer adquire seu poder 
através da enunciação do patológico, do insulto, do abjeto. 
Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2002), através da “estranheza”, a teoria queer 
propõe perturbar a tranquilidade da noção de (hetero)normalidade. A definição da 
“minha” identidade é intimamente dependente da marcação da identidade do “outro” 
(LOURO, 2008; SILVA, 2002). Nesse sentido, se, por exemplo, nosso contexto cultural 
não produzisse discursos que constroem representações sobre a homossexualidade, a 
noção de uma identidade heterossexual não poderia ser estruturada. Afinal, quais as 
fronteiras que definem a configuração de um desejo? 
Embora a grafia “queer” tenha ganhado certa legitimidade acadêmica, muitos 
estudos têm questionado sua importação terminológica para pesquisas na qual a palavra 
passa a ser empregada sem uma tradução. As críticas relacionadas evidenciam que o 
caráter performático e político da enunciação do termo perde força. Na Espanha, por 
exemplo, vários autores e autoras ensaiaram novas possibilidades ao utilizarem termos 
que evocam o caráter de insulto e fazem com que a injúria trabalhe sobre ela mesma. 
Assim, termos como teoria maricona, bollera, maríbollo, rarita, nãoraro, aparecem na 
produção espanhola (CÓRDOBA, 2005; MUÑOZ, 2005). Ainda, Ricardo Llamas 
(1998) utiliza o termo “teoria torcida” para se referir a essas proposições. 
 Entretanto, outros autores/as optam por não traduzir o termo e assumem as 
vantagens e desvantagens de não o fazê-lo. Segundo David Córdoba (2005) tanto 
importações quanto traduções terminológicas possuem “contaminações culturais” que 
não podem ser controladas completamente (CÓRDOBA, 2005, p. 21). Em favor da 
utilização do termo em inglês, o autor nos apresenta quatro justificativas que 
passaremos a adotar como pertinentes para a manutenção de “queer” em detrimento de 
uma possível tradução para o português: 
 
34 
 
1. “Queer” já se estabelece como um termo comum no âmbito do ativismo e já foi 
incorporado em uma boa parte da produção teórica gay e lesbiana no mundo. 
 
2. O uso do termo em inglês possibilita certo “estranhamento” com a cultural local 
e suas possibilidades de compreensão das representações sociais sobre 
sexualidades não heterocentradas. Assim, permite um distanciamento das 
“contaminações culturais” e dos mecanismos de definições locais que atribuem 
status identitário às diferenciadas maneiras de configuração dos desejos, afetos e 
parcerias baseadas no gênero e na sexualidade. 
 
3. Queer é um termo sem gênero. Com isso, não se aprisiona em representações 
postas de masculinidade e feminilidade. Permite assim combinar novas 
possibilidades ao desconstruir as representações de gênero hegemônicas. Pensar 
queer permite conceber uma masculinidade efeminada e uma feminilidade 
masculinizada, sem que precisemos pensar o gênero a partir de uma ótica 
dicotomizada. 
 
4. Por último, para conservar seu sentido de “raro”, “excêntrico”, “estranho”, pois 
se refere a todas e todos que se distanciam da norma heterossexual, estando ou 
não articulado com representações identitárias. 
 
En este sentido, queer es más que la suma de gays y lesbianas, incluye a éstos y a 
muchas otras figuras identitarias construídas en este espacio marginal (transexuales, 
transgénero, bissexuales, etc.) a la vez que se abre a la inclusión de todas aquéllas 
que puedan proliferar en su seno. (CÓRDOBA, 2005, p. 22). 
 
Em complemento aos postulados de David Córdoba, acrescentaríamos uma 
quinta justificativa para o uso do termo queer em inglês: 
 
35 
 
5. Queer não faz menção somente a questões de gênero e sexualidade, mas a todos 
os sujeitos marginalizados por políticas de normalização, sejam elas baseadas na 
classe social, religião, nacionalidade, regionalidade, raça/etnia, deficiência etc. 
 
Para a abordagem queer as análises das relações de poder que se difundem no 
contexto social se torna questão central. Baseados no método genealógico 
foucaultiano, vários de seus estudos procuram dissecar as formas sutis pelas quais o 
poder opera. Essa operação de poder não se estabelece de uma maneira restritiva, 
mas sim produtiva ao construir condições de possibilidades para que determinadas 
formas de inteligibilidades culturais sejam decodificáveis. Desta maneira, propõe 
uma reviravolta epistemológica para a compreensão dos processos de subjetivação e 
suas articulações com os conhecimentos socialmente produzidos e que tomam 
formas materiais a partir dos diferenciados regimes de verdades que ecoam como 
seus efeitos. 
 
A emergência da teoria queer, nos anos 90 do século XX, efetivamente, vem sendo 
associada ao pensamento crítico ocidental contemporâneo, contribuindo para as 
problematizações que vêm sendo construídas, ao longo do século XX, a respeito das 
noções de sujeito, de identidade, de identificação e de comunidade (PERES, 2012a, 
p. 47). 
 
Nesse sentido, e como um pressuposto presente em boa parte dos estudos pós-
estruturalistas, todo conhecimento está relacionado com a construção de “verdades” 
que, como efeito, passa a construir a nossa “realidade”. Tudo o que não é previsto ou 
“explicado” por determinada teoria acaba relegado ao âmbito das “inconformidades”, da 
inexistência social. Ou seja, ao contrário de sua aparente “neutralidade”, uma teoria 
constrói as representações do que é possível ou impossível de ser compreendido na 
esfera sociocultural (FURLANI, 2008; SILVA, 2002). 
Tanto nossas ações no mundo, quanto a constituição de nossas subjetividades, 
são balizadas por “permissividades discursivas”. É esse sistema que possibilita com que 
determinado sujeito, prática ou ação possa ser compreendida como possível para que 
sua manifestação nos espaços sociais seja permitida. O que não é dito, não é nomeável. 
Ganha o terreno da inexistência e não se faz decodificável (inteligível) pelos 
36 
 
significados instituídos. Entretanto, o “não dito”, o silenciamento produzido por esse 
sistema que permite dar inteligibilidade à nossa existência e nossa relação com o 
mundo, também faz parte do mecanismo político das permissividades discursivas, 
relegando ao ocultismo e mutismo expressões de vida que não devem ser “lidas” pelo 
sistema. 
 
Qualquer expressão fora do circuito sexo/gênero tende a manter-se na invisibilidade 
ou ser tratada como criminosa e/ou pecadora e/ou anormal e/ou perversa, logo como 
abjeta. A abjeção se incumbe da desapropriação de qualquer reconhecimento ou 
direito que um ser humano possa ter por inexistir para a inteligibilidade lógica das 
compreensões normativas, ou seja, sem visibilidade não é reconhecido como sujeito, 
se não é sujeito não existe, logo não pode ser tomado como ser de direitos (PERES, 
2012b, p. 541). 
 
 Sobre suas operações conceituais, as teorias pós-críticas, dentre elas a teoria 
queer, estruturam suas bases questionadoras no pós-estruturalismo francês. A 
compreensão dos conceitos de “discurso”, “poder”, “assujeitamento”, “disciplina”, 
“biopoder” e “biopolítica” propostas por Michel Foucault, e o método desconstrutivo, 
que permite desestabilizar oposições conceituais que estruturam as sociedades 
ocidentais, referenciado por Jacques Derrida, são cruciais para essas teorizações 
(HALPERIN, 2004; FURLANI, 2008; LOURO, 2008; SÁEZ, 2004; SILVA, 2002). 
Javier Sáez (2005) argumenta que o contexto sociopolítico de surgimento da 
teoria queer se assenta em três eixos: 1. Nos movimentos de reivindicação social a partir 
da década de 1960; 2. Na crise provocada pelo surgimento da Aids (no Brasil também 
conhecida como SIDA - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) e; 3. Nas 
contribuições teóricas do pensamento do filósofo Michel Foucault. Essas condições de 
possibilidades históricas, com maior ênfase da década de 1980 nos Estados Unidos e em 
alguns países da Europa, deram origem à construção de um corpo de conhecimento 
responsável por severas críticas aos modelos sociais hegemônicos de sexo, gênero, raça, 
etnia e de produção científica (BACHILLER, 2005; HALPERIN, 2004; MISKOLCI, 
2012, PERES, 2012a; SÁEZ, 2004, 2005; WITTIG, 2006). 
No que se refere aos Estados Unidos cabe também destacar o cenário político 
disruptivo em que se assenta essa nova possibilidade de teorização social: o contexto 
político norte americano no qual a direita conservadora iniciou uma campanha para a 
construção de uma identidade nacional que negava toda e qualquer forma de “minoria”. 
37 
 
Dessa maneira, muitas universidades entraram em confronto com a política 
governamental e valorizava, em relação ao ingresso nas universidades e pautas 
estudantis, os interesses de mulheres, negros, gays, lésbicas e outros grupos excluídos 
da política nacional. 
Ao se referir a esse momento histórico norte americano de contestação, Javier 
Sáez (2004) relata que o movimento contracultural estabelecido nos anos de 1970 
funcionaria enquanto um mecanismo produtivo para a reorganização dos movimentos 
de gays e lésbicas. As lutas travadas pelos movimentos afro-americanos, de estudantes, 
de radicais, a organização das culturas hippies, o movimento antimilitarista, o 
feminismo, a nova esquerdae a psicodelia estimularam a produção de novas 
possibilidades de visibilidade. Com isso, mecanismos de ações mais politizados e de 
enfrentamento social, que rechaçavam uma política igualitária e lutavam para o 
reconhecimento da diferença, passam a ser postos em prática por seus militantes. 
 
Estos movimientos militantes que comienzan a tomar cuerpo en Estados Unidos, 
Europa, Australia y America Latina van a afirmar la identidad gay como algo 
positivo, y van a denunciar aquellas instituciones que habían marginalizado y 
patologizado la homosexualidad: medicina, psiquiatria, derecho, religión. Sus 
discursos y estrategias van a ser más agresivos y desafiantes ante los poderes 
establecidos y ante los discursos de los “expertos” que hasta ahora habían decidido 
sobre la suerte que debían correr las personas con prácticas sexuales diferentes a la 
norma heterosexista (SÁEZ, 2004, p. 29). 
 
David Halperin (2004) explica que esse cenário também provocou uma divisão 
na política de esquerda. De um lado, os esquerdistas tradicionais que chegaram ao poder 
na década de 1959, 1960 e que pautavam seu pensamento em categorias marxistas 
tradicionais. Do outro, uma nova esquerda oriunda dos movimentos de contracultura e 
que dialogava com base nos processos sociais de significação e, em suas 
problematizações, incluía discussões oriundas dos grupos minoritários. Esses novos 
esquerdistas estavam influenciados: 
 
(...) por el estructuralismo, la semiótica, la desconstrucción, el psicoanálisis, el 
análisis de los discursos; para ellos no eran os sujetos individuales los que producen 
y determinan el sentido sino las estructuras sociales y los sistemas de 
significaciones. Para ellos la política no engloba solamente al Estado y a las clases 
sociales, sino también a la familia, las relaciones sociales de sexo, las reglas de 
discurso que gobiernan la representación del otro y de si mismo, las jerarquías 
38 
 
raciales y étnicas y los campos ya constituidos del saber: la política, la medicina, el 
derecho, la cultura y el sistema universitario y escolar. (HALPERIN, 2004, p. 14). 
 
Halperin argumenta que uma parte dessa esquerda marxista, não adepta aos 
novos modelos de crítica política, se uniu ao campo neoconservador. Outra parte, que 
ainda criticava o governo reaganista (1981-1989), mas também não compartilhava as 
criticas anti-humanistas em relação ao gênero, sexualidade, raça, etnia e processos de 
constituição de subjetividades, também se posicionou contrário às novas ideias no plano 
do ensino como, por exemplo, impedindo o contato dos estudantes com o pensamento 
de escritores franceses, “culpados” por essa nova política de esquerda. É nesse contexto 
que surge a possibilidade para que uma nova onda de reivindicações esquerdistas entre 
em cena e dialogue com questões até então não consideradas como problemáticas para a 
esquerda tradicional. 
Nesse sentido, a crítica incisiva ao movimento feminista da década de 1960 pode 
ser considerada como uma das primeiras dimensões constituintes da base teórica queer. 
Nesse contexto, mulheres negras, latinas, lésbicas e transexuais denunciam a 
estruturação do movimento feminista tradicional e os debates por ele travado. Assim: 
 
Se denuncia no solo la falta de visibilidad y representación de estos minorias en los 
discursos feministas mayoritarios, sino la pobreza de un análisis que se centra solo 
en el género (y en una vision naturalizada del sexo y de la “mujer”) y que deja de 
lado otros factores transversales que también influyen en las situaciones de 
exclusión, como la raza, la clase social o la orientación sexual (SÁEZ, 2005, p. 70). 
 
O debate travado entre as feministas negras como Audre Lord e Barbara Smith; 
a crítica dos movimentos lésbicos radicais como o Lesbian Avenger e Radical Fairies; e 
a problematização do heterocentrismo impregnado no discurso feminista tradicional 
realizada por Adrienne Rich, Monique Wittig, Audre Lord, Gloria Anzaldúa e Chérrie 
Moraga contribuíram para a desestabilização de um movimento feminista constituído 
por mulheres brancas, heterossexuais, de classe média e agrupadas por uma distinção de 
sexo (SÁEZ, 2005). Esse princípio “desestabilizador” dos discursos hegemônicos foi 
uma das ferramentas analíticas apropriadas pela teoria queer. 
39 
 
Outro ponto que merece destaque é a crise estabelecida no movimento gay8 a 
partir dos movimentos de contestação identitária em voga. Nesse sentido, após sua 
estruturação enquanto um movimento de reivindicação social baseado na vivência de 
uma sexualidade, algumas de suas conquistas acabaram configurando-se como uma 
estratégia de absorção dos “novos sujeitos” ao sistema capitalista. Dessa maneira, 
muitos homossexuais acabaram integrando-se aos ideais de “normalidade” para que 
pudessem ter acesso aos privilégios heterossexuais e de consumo. Muitos grupos 
passam então a tecer severas críticas a essa “incorporação”, fortalecendo a afronta ao 
sistema de produção de desigualdades baseados no heterossexismo e de “tolerância” às 
sexualidades desertoras. 
Halperin (2004) reforça essa crítica ao reconhecer que as táticas de ação queer 
não foram acompanhadas pelo conjunto do movimento gay, pois, dentre outras 
diferenças, o movimento queer se constrói enquanto um modelo de ação não identitária. 
Com isso, difere do movimento homossexual tradicional inclusive no que concerne a 
pautas de reivindicações: 
 
La política gay y lesbiana en el apogeo de su momento queer, había dejado de 
aferrarse a la especificidad del deseo homossexual y se había anclado a una relación 
con todo lo que tenían en común aquellos que la sociedad mayoritaria consideraba 
como “anormales”, es decir como queers (...) las minorías raciales y étnicas, los 
disidentes sexuales, las madres solteras, las familias no tradicionales, los 
seropositivos y los enfermos de sida, los prisioneros, los toxicômanos, los 
indocumentados. (HALPERIN, 2004, p. 17) (grifos do autor). 
 
 No que se refere ao contexto de surgimento da Aids, a doença foi logo associado 
aos “modos de vida homossexual”9. Assim, o “componente” sexual atribuído ao 
contágio acabou por reiterar o discurso moralista de condenação das práticas sexuais 
não monogâmicas e estabelecidas fora da ordem heterossexual. “A su vez, el 
componente “sexual” de la transmisión de la enfermidad va a recrudecer los discursos 
moralistas reacionários y las campañas de demonización de las prácticas y de los 
cuerpos homosexuales” (SÁEZ, 2005, p. 67). 
 
8 Embora sua origem de enfrentamento radical traga como marco o embate entre a polícia e os 
frequentadores do bar Stonewall em 28 de junho de 1969, é importante salientar que mobilizações em prol 
do reconhecimento social de gays e lésbicas antecedem a essa data. 
9 Em 1986 ocorre a identificação e denominação do vírus HIV. Como a sintomatologia da doença se 
manifesta primeiramente junto a comunidade gay, é instaurada a falsa associação ente a doença e a 
homossexualidade (SÁEZ, 2005). 
40 
 
Segundo Halperin (2004), ao ser considerada como uma “peste gay”, a crise da 
Aids aumentou demasiadamente nos EUA a violência contra homossexuais. É nesse 
cenário que ações de resistência organizada pela sociedade civil são visibilizadas e 
constituem possibilidades radicais de manifestações frente ao descaso do governo 
reaganista. Nesse momento uma onda de protestos e reivindicações dos grupos 
feministas, gays, lésbicos, dos não brancos, dos desempregados, dos imigrantes ilegais e 
outras formas de ação radical direcionadas contra o governo omisso e pautado em 
valores tradicionais brancos, heterossexuais e cristãos, foram observadas. Assim, surge 
um novo tipo de política, a política queer. 
A partir dessa configuração histórica, e em uma movimentação para contestação 
do descaso do governo estadunidense em relação ao tratamento dos doentes, surgem 
alguns

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