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ANAIS DO V SEMINÁRIO DE DIREITO DO ESTADO - “ALTERNATIVAS POLÍTICAS E RESPOSTAS JURÍDICAS DIANTE DA CRISE DAS INSTITUIÇÕES” Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Reitor Prof. Dr. Pasqual Barretti Vice-Reitora Profa. Dra. Maysa Furlan Pró-Reitor de Pesquisa Prof. Dr. Edson Cocchieri Botelho Pró-Reitor de Extensão Universitária e Cultura Prof. Dr. Raul Borges Guimarães FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS Diretor Prof. Dr. Murilo Gaspardo Vice-Diretora Profa. Dra. Nanci Soares Comissão Editorial UNESP - Câmpus de Franca Presidente Prof. Dr. Murilo Gaspardo Membros Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes Profa. Dra. Analúcia Bueno Reis Giometti Profa. Dra. Cirlene Aparecida Hilário da Silva Oliveira Profa. Dra. Elisabete Maniglia Prof. Dr. Genaro Alvarenga Fonseca Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz Profa. Dra. Hilda Maria Gonçalves da Silva Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França Prof. Dr. José Duarte Neto Profa. Dra. Josiani Julião Alves de Oliveira Prof. Dr. Luis Alexandre Fuccille Profa. Dra. Paula Regina de Jesus Pinsetta Pavarina Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira Profa. Dra. Rita de Cássia Aparecida Biason Profa. Dra. Valéria dos Santos Guimarães Profa. Dra. Vânia de Fátima Martino Murilo Gaspardo José Duarte Neto (Orgs) ANAIS DO V SEMINÁRIO DE DIREITO DO ESTADO - “ALTERNATIVAS POLÍTICAS E RESPOSTAS JURÍDICAS DIANTE DA CRISE DAS INSTITUIÇÕES” Câmpus de Franca 2022 © 2022 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Franca - Contato Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP 14409-160, Jd. Petráglia / Franca – SP publica.franca@unesp.br Diagramação e Revisão Sandra Aparecida Cintra Ferreira (STAEPE) Carlos Alberto Bernardes (STAEPE) Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira Márcio Augusto Garcia - ASS. ADM Comissão Organizadora Adolfo Raphael Silva Mariano de Oliveira Alfredo Minuci Lugato Jackeline Ferreira da Costa Joao Raul Penariol Fernandes Gomes Letícia Rezende Santos Liz Marina Tamião Santana Mayara Paschoal Michéias Murilo Gaspardo Nathalia Neves Escher Rafael dos Anjos Souza Renan Lucas Dutra Urban Yasmin Commar Curia V Seminário de Direito do Estado : “Alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” / Murilo Gaspardo, José Duarte Neto (orgs). –Franca : UNESP – FCHS, 2022. 900 p. ISSN: 2526-0391 1. Direito Público. 2. Segurança jurídica. 3. Políticas públicas. 4. Estado. I. Título. II. Gaspardo, Murilo. III. Duarte Neto, José. CDD – 340 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira – CRB8/8773 ORGANIZAÇÃO: Departamento de Direito Público da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp)/ Campus de Franca - SP Grupo de Pesquisa “Governança Global, Direitos Humanos e Democracia” Núcleo de Cidadania Ativa da Unesp/Franca – SP Núcleo de Estudos de Justiça Constitucional e Democracia Grupo de Pesquisa em “Direito Regulatório” COORDENAÇÃO: Professor Doutor Murilo Gaspardo (Departamento de Direito Público/ FCHS/UNESP) Professor Doutor José Duarte Neto (Departamento de Direito Público/ FCHS/UNESP) Professor Doutor José Carlos de Oliveira (Departamento de Direito Público da FCHS/UNESP) Professor Doutor Daniel Damásio Borges (Departamento de Direito Público da FCHS/UNESP) APOIO: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)- Câmpus de Franca- SP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) SUMÁRIO O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA E A SUPOSTA ABERRAÇÃO JURÍDICA PREVISTA NA REJEIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS Letícia Filgueira Bauab Daniel Fernandes Nato .............................................................................19 A OPERAÇÃO LAVA JATO, O ABUSO E A ESPETACULARIZAÇÃO DAS PRISÕES PREVENTIVAS Leonardo Sousa dos Santos Moura Victor Rodrigues Nascimento Vieira .......................................................33 EVOLUÇÃO JURÍDICO-PENAL DO COMBATE AO TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO NA ARGENTINA: ANÁLISE À LUZ DA INFLUÊNCIA DA LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL Luiz Henrique Garbellini Filho Paulo César Corrêa Borges ......................................................................51 APLICABILIDADE DA TEORIA DA CONTINUIDADE DELITIVA NAS INFRAÇÕES AMBIENTAIS Marilia Rodrigues Mazzola Priscylla Gomes de Lima Roberto Alves de Oliveira Filho ..............................................................65 A VINCULAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DOS ESTADOS DEMOCRÁTICOS SOCIAIS DE DIREITO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS Dailson Soares de Rezende Maria Eugênia Ugucione Biffi .................................................................79 PRIMEIROS DELINEAMENTOS SOBRE A INCONSISTÊNCIA DO MODELO CONSTITUCIONAL DE REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS PELO PRISMA DA PROTEÇÃO AMBIENTAL NOS MUNICÍPIOS - O PAPEL MARGINAL DOS ENTES LOCAIS Marcel Britto ............................................................................................93 A APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE E OS RESULTADOS BENÉFICOS E PREJUDICIAIS DE SUA APLICABILIDADE EM TEMPOS DE CRISE INSTITUCIONAL DOS PODERES EXECUTIVOS MUNICIPAIS Juliana Balbino dos Reis Ricardo Nunes de Oliveira Willian Albano Rocha ............................................................................105 A ANTIGA PEC LEI DA MORDAÇA: UMA RESTRIÇÃO A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO OU UMA COIBIÇÃO AO ESTRELISMO EXAGERADO E SUA POSSÍVEL SEMELHANÇA COM AS EMENDAS À LEI ANTICORRUPÇÃO Letícia Filgueira Bauab Daniel Fernandes Nato ...........................................................................115 PARLAMENTO JOVEM COMO INSTRUMENTO DE EDUCAÇÃO CIDADÃ DAS CASAS LEGISLATIVAS: UMA ANÁLISE DA ATIVIDADE NA CÂMARA MUNICIPAL DE JABOTICABAL-SP Denise Cardozo Silvia Cristina Mazaro Fermino Marcela Francine Garavello ...................................................................131 AS REFORMAS DO ESTADO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL REPUBLICANO (1937-1998) Caio César Vioto de Andrade .................................................................143 FINANCIAMENTO ILÍCITO PARTIDÁRIO Cauê Varjão de Lima ..............................................................................157 DIREITO E PODER POLÍTICO: A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA OPERAÇÃO LAVA JATO Luiz Antonio Martins Cambuhy Júnior .................................................173 DEMANDAS COMPLEXAS E DESEMPENHO LEGISLATIVO NO CONGRESSO NACIONAL: O CASO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EDUCAÇÃO INFANTIL BRASILEIRA (2001-2010) Sara Tironi ..............................................................................................187 PSICOLOGIA DE GÊNERO, CRIME E JUSTIÇA Patricia Massuno ....................................................................................203 PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: DELINEAMENTO A PARTIR DA COMPREENSÃO DOS FINS DA REFORMA ESTATAL BRASILEIRA DA DÉCADA DE 90 Carolina Guerra e Souza ........................................................................217 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: A DISSONÂNCIA NO MUNDO DO TRABALHO Graziela Donizetti dos Reis ...................................................................235 PLANO NACIONAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA (2011-2022) E MARCO LEGAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA (2016): POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CONSTRUÇÃO DA CRIANÇA CIDADÃ Ana Carolina Esposito Vieito Vera Gers Dimitrov ................................................................................247 PODER VS DIREITO: O DESMANTELAMENTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO A PARTIR DO EMBATE ENTRE FERDINAND LASSALE E KONRAD HESSE Felipe Rodrigues Xavier ........................................................................259OS INSTRUMENTOS DO CONTROLE SOCIAL DE 1967 Amanda Terumi Souza Takata Anne Martins Sobrinho Gabriela Teixeira de Souza ....................................................................271 PLEBISCITO E REFERENDO: UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DO REFERENDO DE 2005 Louislene Rocha Marques de Oliveira Maksuel Andrade Costa Washington Vinicius Almeida Dias .......................................................283 OS DIREITOS, DEVERES E CONDUTAS DOS ADOLESCENTES INFRATORES SOB UMA ANÁLISE PENAL E CONSTITUCIONAL DO ECA Bruna Nascimento Machado Fábio Ruz Borges ..................................................................................297 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA COMO POLÍTICA PÚBLICA E GARANTIDOR DE DIREITOS Lúcio Rangel Alves Ortiz .......................................................................307 O MÉTODO APAC COMO ALTERNATIVA PENAL À CRISE DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO Bruna Nascimento Machado Fábio Ruz Borges ...................................................................................323 O MODELO DA CONSTITUIÇÃO DE 1824 E A CONTRADIÇÃO PONTUAL DO LIBERALISMO BRASILEIRO Geovana Soares de Oliveira Gessyca Romilda Marques da Rocha Natália Siqueira Alves ............................................................................339 O ESTATUTO DA FAMÍLIA E A INTOLERÂNCIA PARA COM AS FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS COMO RESULTADO DE AÇÕES POLÍTICAS EXCLUDENTES Bruno Tozo Figueiredo Marina Bonissato Frattari Rozaine Ap. Fontes Tomaz ....................................................................355 O CALENDÁRIO CIVIL BRASILEIRO COMO RESULTADO DA NÃO EFETIVAÇÃO DO ESTADO LAICO DEVIDO A UMA HERANÇA CRISTÃ Marina Bonissato Frattari Rozaine Ap. Fontes Tomaz ....................................................................367 O FRACASSO DA PENA DE PRISÃO E AS MEDIDAS DE COMPENSAÇÃO NA EXECUÇÃO PENAL PARA MINIMIZAR A SUPERLOTAÇÃO E A CRISE NO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO Juliana Aparecida de Lima .....................................................................377 NATUREZA JURÍDICA E HERMENÊUTICA (COMPREENSÃO) DAS QUALIFICAÇÕES DO HOMICÍDIO QUALIFICADO E FEMINICÍDIO Luciana Sparsa Menegasso Ellen Cássia Giacomini Casali ...............................................................387 MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NAS CONFERÊNCIAS INTERNACIONAIS - ONU HABITAT II E ONU HABITAT III Cesar Andre Machado de Morais ...........................................................401 GLOBALIZAÇÃO E DIREITO INTERNACIONAL: A BUSCA DA EFICÁCIA DA ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL E SUA INTERNALIZAÇÃO Renata Aparecida Follone Otávio Rezende ......................................................................................413 CRISE NO JUDICIÁRIO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE MEDIAÇÃO E EDUCAÇÃO Amaranta Vasconcelos Silva Isadora Beatriz Magalhães Santos .........................................................425 DIREITOS ADQUIRIDOS PELAS MULHERES APÓS A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – PARTICIPAÇÃO ATIVA E PASSIVA NA POLÍTICA BRASILEIRA William Albano Rocha Juliana Balbino dos Reis Ricardo Nunes de Oliveira .....................................................................437 DO CAFÉ À SOJA: A REPRODUÇÃO BRASILEIRA DA ESTRUTURA AGRÁRIA ARTICULADA A PARTIR DE FLORESTAN FERNANDES Vanessa de Castro Rosa .........................................................................445 DEMOCRACIA, URBANISMO E A CRISE DE IDENTIDADE DO ESTADO André Simionato Castro Claudia Elias Valente .............................................................................459 CRISE INSTITUCIONAL E VIOLÊNCIA CONTRA O ÍNDIO: A PERMANÊNCIA HISTÓRICA DA INJUSTIÇA Luiz Adriano Moretti dos Santos Stéfanie dos Santos Spezamiglio ...........................................................473 ESTADO E SECULARISMO: ABORDAGEM COMPARATIVA EM HABERMAS, RATZINGER E TAYLOR Felipe Henrique Canaval Gomes Kaleo Dornaika Guaraty Marcio Henrique Pereira Ponzilacqua ...................................................493 CRIMES INFORMÁTICOS: COMENTÁRIOS AO PROJETO DE LEI Nº 5.555/13 André Luiz Pereira Spinieli ...................................................................507 CRISE DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO Loyana Christian de Lima Tomaz Nayara de Paula Moraes ........................................................................519 CRISE CONSTITUCIONAL E O NOVO DESENVOLVIMENTO: CONSIDERAÇÕES QUANTO À ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL Luiz Adriano Moretti dos Santos Stéfanie dos Santos Spezamiglio ...........................................................529 CENÁRIO DA BOMBA-RELÓGIO E A RELATIVIZAÇÃO DA PROIBIÇÃO DA TORTURA André Luiz Pereira Spinieli ...................................................................545 CARACTERIZAÇÃO E SUPERAÇÃO DO ATIVISMO JUDICIAL EM MATÉRIA DE SAÚDE Luciana Campanelli Romeu ...................................................................561 O DESAFIO NORTEADOR DA INSERÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL A POLÍTICA OPUBLICA DE EDUCAÇÃO Bárbara Sousa Piraí Elisângela de Jesus Silva .......................................................................575 A JUDICIALIZAÇÃO EXCEPCIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS COMO FORMA DE DESENVOLVIMENTO DO ESTADO Taisa Cintra Dosso .................................................................................589 APLICAÇÃO DAS TEORIAS DE THOMAS PIKETTY E ZYGMUND BAUMAN COMO ALTERNATIVAS PARA UMA MAIOR DISTRIBUIÇÃO DA RIQUEZA Isis De Angellis Sanches Alexandrino ...................................................561 A INTEGRAÇÃO INTERNO-INTERNACIONAL DO POSICIONAMENTO BRASILEIRO SOBRE A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FRENTE AO STF E O JULGAMENTO DO CASO GOMES LUND E OUTROS VS BRASIL Jamerson Soares Santos de Oliveira ......................................................615 DIREITO E COAÇÃO: ANÁLISE DO RE 693456 S PARTIR DA ÓTICA KELSENIANA Elias Andraus Neto Ian Xavier Rodrigues William Victor Silva Alves de Medeiros ...............................................629 A RELAÇÃO ENTRE OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Gabriel Leví Borges de Souza ...............................................................641 A UTILIZAÇÃO DAS MEDIDAS DE EXCEÇÃO DE FORMA CORRIQUEIRA NO BRASIL Camila Morita Lujan Vinícius Fernandes Ormelesi .................................................................657 LIMITES BRASIL-GUIANA: A QUESTÃO DO RIO PIRARA Andressa de Oliveira Resende Ana Clara Marques Barbosa Fernanda Luísa de Assis Resende ..........................................................667 PERSPECTIVAS SOBRE O TRÁFICO DE ORGÃOS DE PESSOAS COM ALBINISMO E A RESPOSTA POLITICO-CRIMINAL NA REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE Esteves Pedro Dina António Camacho ..................................................677 A FALÊNCIA DA ATUAL POLÍTICA DE DROGAS E SEUS EFEITOS COLATERAIS NA SOCIEDADE BRASILEIRA Pedro Tadeu Stocco Giaretta ..................................................................693 ALTERNATIVAS PARA A SUPERAÇÃO DA CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO: DA MULTIPLICAÇÃO DE PRESÍDIOS (E DE PRESOS) AO DESENCARCERAMENTO Fernanda Cristina Barros Marcondes José Arthur Fernandes Gentile Luciana de Freitas ..................................................................................711 O TRABALHO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL NA SAÚDE NA PERSPECTIVA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS Gabriela Cristina Braga Bisco Fernanda de Oliveira Sarreta .................................................................723 O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA CRIMINAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UM ESTUDO ACERCA DA CRIMINALIZAÇÃO DE PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA DEFESA DE INTEGRANTES DO PCC Ana Carolina de Sá Juzo Mariana Pinto Zoccal .............................................................................735 A DEMOCRACIA COSMOPOLITA E A QUESTÃO URBANA: A CIDADE COMO SUJEITO E OBJETO DA FORMAÇÃO DE UMA NOVA GOVERNANÇA GLOBAL Frederico Haddad ...................................................................................747PATRIMONIALISMO E ESTAMENTO BUROCRÁTICO: OS OBSTÁCULOS À EFETIVAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO Luiz Augusto Mendonça Honório Maria Laura Bolonha Moscardini ..........................................................765 A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL: LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA X INTOLERÂNCIA RELIGIOSA Clara de Souza Oliveira Maria Beatriz Appoloni Zambom Vitor Júnior Araújo Silva .......................................................................779 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO MODALIDADE DE REMIÇÃO DE PENA Ana Lucia Cândida Alves ......................................................................791 A CONFORMAÇÃO JURÍDICA DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE NO BRASIL: ANÁLISE DOS ANTECEDENTES ANGLO-AMERICANOS Murilo de Robbio ...................................................................................807 OS LIMITES DA INTERVENÇÃO ESTATAL E DA PRESERVAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA APLICAÇÃO DA LEI ANTITERRORISMO NO BRASIL Luís Gustavo Arantes .............................................................................817 CRIMINALIZAÇÃO DA IMAGEM DO ADOLESCENTE DA PERIFERIA: UMA ANÁLISE À PARTIR DOS RESULTADOS DO PROJETO ÉTICA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES DA FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO Gabrielli Silva Duarte ............................................................................829 O MODELO DA CONSTITUIÇÃO DE 1937 EM SENTIDO ANALÍTICO Felipe Eduardo de Oliveira Silva ...........................................................841 REFORMA AGRÁRIA E SEGURANÇA ALIMENTAR: UMA INTERSECÇÃO FAVORÁVEL AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Gil Ramos de Carvalho Neto Mateus Anderson Botelho ......................................................................849 A REESTRUTURAÇÃO DOS SISTEMAS TRIBUTÁRIOS MUNICIPAIS COMO ALTERNATIVA AO ENFRENTAMENTO DA CRISE DOS REPASSES DE VERBAS Maurício Queiroz de Melo Neto Marcos Simão Figueiras Samir Vaz Vieira Rocha .........................................................................863 A OPERAÇÃO LAVA JATO, O ABUSO E A ESPECULAÇÃO DAS PRISÕES PREVENTIVAS Leonardo Sousa dos Santos Moura Victor Rodrigues Nascimento Vieira .....................................................877 POLÍTICAS PÚBLICAS E O DIREITO À SAÚDE LIMITADO PELA APLICAÇÃO DE UMA PORTARIA DO MINISTÉRIO DA SAÚDE: UM ESTUDO DE CASO Ana Lélis de Oliveira Garbim Flávia Haddad França ............................................................................893 V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 19 O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA E A SUPOSTA ABERRAÇÃO JURÍDICA PREVISTA NA REJEIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS Letícia Filgueira Bauab1* Daniel Fernandes Nato2** INTRODUÇÃO A constituição brasileira contém uma série de princípios, que auxiliam na interpretação não só da própria Carta Magna, como de todas as outras leis. Teoricamente, uma lei que contraria um princípio constitucional não deveria sobreviver, visto tantas possibilidades de controle de constitucionalidade que são previstas no ordenamento jurídico brasileiro. Para o presente estudo, desconsideram-se as hipóteses de controle de constitucionalidade, o enfoque é na importância e eficácia dos princípios em si. De acordo com Spiliotopoulos (2000): “o princípio da segurança jurídica é um elemento substancial do Estado de direito, que é o fundamento jurídico da dignidade humana, que o Estado democrático deve respeitar e proteger”. Para Willy Zimmer (1999) a confiança é considerada como conceito de base da democracia: “Constitui o fundamento moral da democracia representativa (que começa com o mandato dos eleitores aos eleitos) e se propaga como fundamento de todas as relações travadas pelos cidadãos e os poderes públicos”. Vislumbra-se desde início que o princípio constitucional da segurança jurídica possui um alto valor em relação ao cidadão, pois é o que lhe garante de fato uma seguridade; é considerado um princípio que “confortável”, por sua suposta eficácia em tutelar e consequentemente garantir a democracia. No mesmo âmbito constitucional, têm-se a dita Medida Provisória (MP), cujas normas estão previstas no artigo 62 da Constituição Federal; é um instrumento com força de Lei, utilizado pelo presidente da * Discente do curso de graduação em Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG – Frutal. ** Discente do curso de graduação Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG – Frutal. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 20 República, apenas em casos de relevância e urgência. Produzindo efeitos imediatos, mas a qual depende de aprovação do Congresso Nacional para transformação definitiva em lei. Seu prazo de vigência é de 60 (sessenta) dias, prorrogáveis uma vez por igual período. Se não for aprovada no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, contados da sua publicação, a MP tranca a pauta de votações da Casa em que se encontrar (Câmara ou Senado) até que seja votada. Ao chegar ao Congresso Nacional, é criada uma comissão mista, formada por deputados e senadores, para aprovar um parecer sobre a Medida Provisória. Depois, o texto segue para o Plenário da Câmara e, em seguida, para o Plenário do Senado. Se a Câmara ou o Senado rejeitar a MP ou se ela perder a eficácia, os parlamentares têm que editar um decreto legislativo para disciplinar os efeitos jurídicos gerados durante sua vigência. O problema inicia-se quando os parlamentares não editam um decreto legislativo que regulamente as situações jurídicas. A delimitação do problema consiste na abordagem através do viés principiológico de apenas uma espécie contida no processo legislativo, a medida provisória, que nesse estudo, como já supracitado, é considerada como Lei; bem como a abordagem do processo legislativo da Medida Provisória, sobretudo na hipótese de rejeição desta, em detrimento do princípio da segurança jurídica, visto que, inicialmente, a sobrevivência das relações jurídicas regidas por uma medida provisória rejeitada, assemelha- se a uma aberração do ordenamento jurídico brasileiro. Vale ressaltar que existem inúmeras discussões doutrinarias acerca da eficácia da MP, se ela teria de fato a eficácia inerente às leis, além do abuso por parte Presidentes ao lançarem inúmeras Medidas Provisórias sem relevância e urgência. Todavia, não é cabível no presente artigo a explanação de tais teorias, visto que a delimitação é outra. A justificativa baseia-se na relevância e na grande utilização de Medidas Provisórias para legislar no ordenamento jurídico brasileiro, causando um certo receio e sensação de insegurança diante da amplitude de matérias que podem constituir objeto de uma medida; bem como a necessidade de um amparo legal nas relações. O objetivo consiste em afirmar que as situações decorridas da rejeição da medida provisória, apesar de temerosas, não constituem uma aberração jurídica, justamente pelo objetivo secundário do artigo, V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 21 de tornar nítida a conexão entre a Medida Provisória e o princípio da segurança jurídica. Para a realização, a metodologia será hipotético-dedutiva e contará, de forma qualitativa, com o amparo da legislação constitucional e infraconstitucional brasileira, compreendendo abordar desde seus textos legais e princípios atrelados até diversas opiniões doutrinárias sobre os respectivos temas, bem como um caso concreto (estudo de caso). Juntamente pretende-se fazer uma explanação sobre princípio da segurança jurídica, para logo após adentrar no complexo processo legislativo da Medida Provisória, bem como pincelar o conceito de aberração jurídica. 1 PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA Partindo de um Estado Democrático de Direito, ou seja, Estado que busca respeitar os cidadãos através dosdireitos humanos e das garantias fundamentais, pelo qual se estabelece uma proteção jurídica, nasce um importante princípio que está presente em diversas áreas do Direito. A segurança jurídica é elemento fundante de um Estado democrático e que respeita as instituições. Tal princípio, mesmo que implícito em diversas Constituições, como é o caso da Constituição Federal de 1988, não é negada sua existência e importância, visto que está intimamente ligado à própria concepção de Estado. De tal forma é que, desde 1789, com o advento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França, apareceu como direito fundamental, em seu art. 2º: O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789). Sendo assim, Canotilho conceitua o princípio geral da segurança jurídica, em seu sentido mais amplo: Os indivíduos têm o direito de poder contar com o fato de que aos seus atos ou às decisões públicas concernentes a seus direitos, posições ou relações jurídicas fundadas sobre normas jurídicas válidas e em vigor, se vinculem os efeitos previstos e assinados por estas mesmas normas. (CANOTILHO, 1999). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 22 E complementa ao revelar por onde tal princípio se manifesta de forma mais completa e abrangente: (1) Relativamente a atos normativos – proibição de normas retroativas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a atos jurisdicionais - inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a atos da administração - tendencial estabilidade dos casos decididos através de atos administrativos constitutivos de direitos. (CANOTILHO, 1999). Como se percebe e bem como ensinou o ilustre professor português J. J. Gomes Canotilho, a segurança jurídica prevê a proteção de atos e decisões públicas, vinculando seus efeitos ao que foi previsto e assinado pelas próprias normas. Desta forma, o princípio se encontra da forma mais irrestrita possível, protegendo os indivíduos que vivem no Estado Democrático de Direito. Assim sendo, tanto atos normativos, jurisdicionais ou até mesmo atos administrativos devem respeitar a segurança jurídica. Para Humberto Theodoro Júnior, o princípio da segurança jurídica se divide em dois sentidos: Há dois sentidos, segundo certos autores, a serem distinguidos no conceito de segurança jurídica: a) a segurança que deriva da previsibilidade das decisões que serão adotadas pelos órgãos que terão de aplicar as disposições normativas; e b) a segurança que se traduz na estabilidade das relações jurídicas definitivas. (THEODORO JÚNIOR, 2006). Desta maneira, percebe-se primeiramente uma preocupação expressa com o legislador, ou seja, aquele que cria as normas que serão aplicadas na sociedade. Este deve ser o mais claro e simplista possível para que os destinatários, a sociedade, possa compreender o que se pretende e como serão aplicadas tais normas no cotidiano. Essa imposição visa mitigar ou extinguir qualquer insegurança decorrente de leis ou normas que seja dúbia a sua interpretação ou normas em aberto, sendo passível qualquer tipo de interpretação, a depender apenas de quem irá fazê-las. E assim se manifesta o doutrinador: O primeiro cuidado a ser tomado pelo legislador, para garantir segurança jurídica aos indivíduos, é o da publicidade adequada, em que se inclui o período de vacatio legis compatível com a necessidade de conhecer a lei nova a tempo de adaptar-se aos seus preceitos inovadores. Mas, acima da publicidade, há também, na consciência jurídica italiana, a V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 23 convicção de que é fundamental o problema ligado à exigência de que os atos normativos sejam redigidos de modo a serem "compreensíveis pelos destinatários". Com efeito, a “maneira mais eficaz de reduzir consideravelmente a ‘insegurança’ jurídica é, mesmo, a de redigir os textos normativos à base de regras claras e estandardizadas” (segundo padrões técnicos). Além disso, impõe-se outro tipo de cuidado técnico para fugir da insegurança jurídica: tem-se de evitar o caos dentro do sistema geral do ordenamento jurídico. A lei nova, não pode desorganizar o sistema, criando contradições ou dificuldades insuperáveis de compatibilização e interpretação, levando o aplicador e o destinatário a perplexidades e conflitos graves e de difícil solução. A exigência de uma redação mais clara dos textos normativos vem, pois, juntar-se à exigência de coordenar os textos a fim de dar à administração, e também aos cidadãos, os meios de melhor conhecer o direito positivo. (THEODORO JÚNIOR, 2006). Quanto ao segundo sentido, a Constituição Federal de 1988 trouxe, mesmo que não de forma expressa, mas implícita, em seus direitos fundamentais, no art. 5º, XXXVI, uma parcela que decorre do princípio da segurança jurídica, que é a proibição de que lei prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Ou seja, o próprio Estado previu uma garantia para a segurança e estabilização de atos que envolvem diretamente os indivíduos nele existentes. Em suma, o princípio da segurança jurídica adquiriu grande importância, não só no ordenamento jurídico brasileiro, mas também no ordenamento jurídico ocidental, como um todo, afinal, está intimamente ligado a um Estado Democrático de Direito, onde não se imagina tal estado, sem uma segurança jurídica, capaz de prever interpretações possíveis e até mesmo estabilizar atos decorrentes da própria lei. Verifica ainda tal importância no qual, mesmo que não previsto de forma expressa na Constituição Federal, a segurança jurídica permeia e norteia as diversas esferas do poder estatal, como os atos normativos, jurisdicionais e administrativos. 2 PROCESSO LEGISLATIVO DA MEDIDA PROVISÓRIA Partindo da premissa de Estado Democrático de Direito, em que deve-se pré-estabelecer regras a serem seguidas, encontramos no processo legislativo um conjunto de normas que estabelecem os parâmetros seguidos V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 24 pelo legislador para criar, modificar ou, até mesmo, extinguir certa norma do ordenamento jurídico brasileiro. Em nível federal, temos o Congresso Nacional, dividido em duas Casas, sendo elas a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, como sede do Legislativo e sua função típica de legislar. Contudo, isso não impede de que, Executivo e Judiciário também possua essa função, de modo excepcional, visto tratar-se de função atípica desses Poderes. Assim, o processo legislativo deve ser visto como: [...] uma sequência de diversos atos jurídicos que, formando uma cadeia procedimental, assumem seu modo específico de interconexão, estruturado em última análise por normas jurídico-constitucionais, e, realizados discursiva ou ao menos em termos negocialmente equânimes ou em contraditório entre agentes legitimados no contexto de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, visam à formação e emissão de ato público-estatal de tipo pronúncia-declaração, nesse caso, de provimentos normativos legislativos, que, sendo o ato final daquela cadeia procedimental, dá-lhe finalidade jurídica específica. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006). Com o advento da Constituição de 1988, aboliu-se o antigo decreto-lei, sendo substituído, de certo modo, pela Medida Provisória, regulamentada em seu artigo 62. Trata-se de uma espécie normativa excepcional, cuja edição está atrelada a uma função atípica do Chefe do Poder Executivo, que detém sua competência exclusiva. Entretanto, de 1988 até os dias atuais, as Medidas Provisórias tiveram dois regimes jurídicos distintos,sendo a EC n. 32 de 11.09.2001 um marco divisor quanto a este instituto. Esta mudança quase que total do instituto da Medida Provisória foi motivada pela verdadeira distorção na utilização do instituto, que originalmente foi criado, segundo Pedro Lenza (2014), para “[...] corrigir as distorções verificadas pelo regime militar, que abusava de sua função atípica legiferante por intermédio do decreto-lei”. Contudo, conforme desta o próprio doutrinador, no período entre 05.10.1988 até a aprovação da EC n. 32/2001, já haviam sido editados e reeditados um número assustador de 6.130 Medidas Provisórias, algumas chegando quase sete anos sem aprovação. Sendo assim, após mais de sete anos de tramitação, foi votada e aprovada, em segundo turno, a PEC n. 1-B, de 1995, com parecer favorável da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, promulgada em 11.09.2001, a EC n. 32/2001, com o intuito de trazer limites à edição das medidas provisórias. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 25 Deste modo, conforme o art. 62, caput, da CF/88, compete de forma exclusiva, marcada pela indelegabilidade, ao Presidente da República editar Medidas Provisórias, com força de lei, em caso de relevância e urgência, que deverão ser submetidas de imediato ao Congresso Nacional. Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). Com relação ao conteúdo, está previsto nos §§ 1º e 2º do art. 62 do texto constitucional, vedações a edição de Medidas Provisórias que versem a determinadas matérias, porém, não cabe no presente trabalho explaná-las. O prazo de vigência da Medida Provisória, conforme o § 3º do referido artigo, será de 60 (sessenta) dias, contados a partir da data da publicação. Esse prazo poderá ser prorrogável por igual período, se ainda não foi apreciado pelo Congresso Nacional. Contudo, nos termos do art. 62, § 4º da CF, tal prazo será suspenso durante os períodos de recesso parlamentar. Inovação e, segundo Lenza (2014), grande novidade trazida pela EC n. 32/2001, foi o § 10 do art. 62 da CF que vedou a reedição de medida provisória, na mesma sessão legislativa, que tenha perdido sua eficácia ou que foi expressamente rejeitada pelo Congresso. Com relação a sua tramitação, editada uma Medida Provisória, esta será submetida de imediato ao Congresso Nacional, que de acordo com o § 5º e 9º do art. 62 da CF, caberá a uma comissão mista de Deputados e Senadores examiná-la e emitir parecer sobre seus aspectos constitucionais, mérito e adequação financeira e orçamentária, além do cumprimento, pelo Presidente da República, da exigência de ter enviado o seu texto ao Congresso, juntamente com documento expondo a motivação do ato. Tal parecer é meramente opinativo, mas é fase obrigatória, sendo vedada a substituição do exame da comissão mista por mero parecer do relator. § 5º. A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais. § 9º. Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 26 plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). Após o parecer, a votação será em sessão separada, tendo início na Câmara dos Deputados (§ 8º do art. 62 da CF), e sendo o Senado Federal a Casa revisora. Em cada Casa, segundo Lenza, decidirá: [...] em apreciação preliminar, o atendimento ou não dos pressupostos constitucionais de relevância e urgência, bem como a sua adequação financeira e orçamentária, antes do exame de mérito, sem a necessidade de interposição de recurso, para, ato contínuo, se for o caso, deliberar sobre o mérito. Isso porque, se o plenário da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal decidir no sentido do não atendimento dos pressupostos constitucionais ou pela inadequação financeira ou orçamentária da medida provisória, esta será arquivada. (LENZA, 2014). Após as votações no Congresso Nacional, teremos quatro possibilidades de resultados: aprovação sem alteração; aprovação com alteração; não apreciação e rejeição expressa. Aprovada a Medida Provisória e convertida em lei, sem alterações de mérito, será seu texto promulgado pelo Presidente da Mesa do Congresso Nacional, que, segundo o art. 57, § 5º, da CF, é presidida pelo Presidente do Senado Federal. Tal possibilidade não necessita de sanção ou veto do Presidente da República, uma vez que a Medida Provisória foi aprovada nos termos que o próprio propôs. Outra possibilidade é a da aprovação com alteração, que será assim tramitado, segundo Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino: Caso sejam introduzidas modificações no texto adotado pelo Presidente da República (conversão parcial), a medida provisória será transformada em “projeto de lei de conversão”, e o texto aprovado no Legislativo será encaminhado ao Presidente da República, para que o sancione ou vete. (PAULO; ALEXANDRINO, 2015). Por fim, as principais consequências decorrerão da não apreciação da medida provisória no prazo de 120 dias ou se for integralmente rejeitada. A problemática aqui se encontra nas relações que nasceram entre o período de vigência da Medida Provisória e da sua extinção. Para tais relações, o Congresso deverá sancionar decreto legislativo a fim de regulamentá-las. Assim explica os doutrinadores Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino: V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 27 Se for integralmente rejeitada (ou perder sua eficácia por decurso de prazo, em decorrência da não apreciação pelo Congresso Nacional no prazo constitucionalmente estabelecido), a medida provisória será arquivada, o Congresso Nacional baixará ato declarando-a insubsistente e deverá disciplinar, por meio de decreto legislativo, no prazo de sessenta dias contados da rejeição ou da perda de eficácia por decurso do prazo, as relações jurídicas dela decorrentes; caso o Congresso Nacional não edite o decreto legislativo no prazo de sessenta dias, as relações jurídicas surgidas no período permanecerão regidas pela medida provisória. (PAULO; ALEXANDRINO, 2015). Entretanto, curioso o caso que surge se uma Medida Provisória não for apreciada no tempo estipulado ou for integralmente rejeitada, e o Congresso Nacional for inerte em relação ao decreto legislativo que regulamentaria tais relações nascidas durante o prazo de vigência da medida provisória. Segundo a Carta Magna, em seu § 11, do art. 62, tais relações continuarão regidas pela medida provisória, mesmo que extinta. § 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988). O doutrinador Pedro Lenza (2014), crítico severo dessa opção constitucional, expõe que tal medida trata-se de verdadeiro resgate do autoritário decreto-lei, que permitia a sua aprovação por decurso do prazo. Assim expõe: [...] de maneira totalmente contrária aos interesses da sociedade, resgatando as mazelas do extinto decreto- lei, o § 11 do art. 62, na nova redação, estabelece que se não for editado o decreto legislativo para regulamentar as relações jurídicas decorrentes da medida provisória que perdeu a sua eficácia, “as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas”; [...] Datamáxima vênia, trata-se de verdadeiro resgate do autoritário decreto-lei, que permitia a sua aprovação por decurso do prazo. Aqui se diz que a não apreciação implica a perda da eficácia ex tunc. Mas, inexistindo o decreto legislativo, as relações serão regidas pela extinta medida provisória! [...] não deixamos de V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 28 declarar a nossa repulsa por essa nova sistemática, totalmente inconstitucional e arbitrária. (LENZA, 2014). De outro lado, como o próprio doutrinador explana, de acordo com a justificação encontrada no Projeto de Resolução n. 5 – CN (DCN, 03.10.2001, p. 19.989), o objeto dessa regra é “evitar vácuo jurídico [...] evidenciado na prática recente”. 3 SUPOSTA ABERRAÇÃO JURÍDICA E CASO CONCRETO De acordo com algumas teorias, “aberrações jurídicas” seria algo que desvia o direito de sua verdadeira finalidade, tornando-o obsoleto. Estão estritamente ligadas com “absurdo” e “contradição” e totalmente contrárias à razoabilidade das Leis. No âmbito do direito previdenciário têm-se um caso concreto, relacionado à aposentadoria por invalidez e auxílio-doença, de acordo com texto original do artigo 29, inciso II, da Lei 8213/91, o cálculo do benefício consistia na média aritmética simples de todos os últimos salários-de- contribuição dos meses imediatamente anteriores ao do afastamento da atividade ou da data da entrada do requerimento, até o máximo de 36 (trinta e seis), apurados em período não superior a 48 (quarenta e oito) meses. Em 1999, o dispositivo legal sofreu alterações pela Lei no 9.876 estabelecendo que o salário-de-benefício dos benefícios de auxílio-doença e de aposentadoria por invalidez consiste na média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a 80% de todo o período contributivo. Em 2005 a dita Medida Provisória 242 alterou a forma de cálculo do salário de benefício do auxílio-doença e de aposentadoria por invalidez, determinando a aplicação da média aritmética simples dos 36 (trinta e seis) últimos salários de contribuição: MP 242/05 - Art. . . Os arts. 29, 59 e 103-A da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, passam a vigorar com as seguintes alterações: Art.29[...] III - para os benefícios de que tratam as alíneas "e" e "h" do inciso I do art. 18, e na hipótese prevista no inciso II do art. 26, na média aritmética simples dos trinta e seis últimos salários-de-contribuição ou, não alcançando esse limite, V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 29 na média aritmética simples dos salários-de-contribuição existentes. (MP 242/2005). Essa Medida Provisória posteriormente foi rejeitada pelo Congresso, entretanto, não foi editado nenhum decreto legislativo regulamentando as situações ocorridas na vigência da medida, devendo a mesma medida rejeitada, ser aplicada para esses casos que se deram na época dos fatos. Isso seria, exemplificadamente, o conceito de “aberração jurídica”, mas no ordenamento jurídico brasileiro tal acontecimento é considerado uma “exceção da exceção”. A “aberração jurídica”, teoricamente, também engloba a enorme importância da Medida Provisória em face da situação “assustadora”. Basicamente, a Medida Provisória é uma espécie normativa com poucas restrições (contidas no artigo 62, §1°, I da Constituição Federal e esquecendo as antigas regras que quase não possuíam restrições), dessa forma, uma MP pode tratar de assuntos muito abrangentes ou muito específicos, extremamente delicados ou não. Como visto, uma MP pode tratar de matéria extremamente usual e corriqueira, como a aposentadoria por invalidez e auxilio doença, fatos de ocorrência constante no Brasil. Outro exemplo: a Medida Provisória que acresceu e alterou dispositivos da Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e dá outras providências (lei que regulamentava o uso da engenharia genética e liberação do meio ambiente de organismos geneticamente modificados), ou seja, um tema extremamente delicado (células tronco), que no caso não houve problemas como a rejeição e a não edição de decreto regulamentador (como no caso de direito previdenciário supracitado), mas que torna possível ver até onde se pode legislar através de uma MP e consequentemente mostra a que nível chegaria a suposta aberração, se acontecesse em um caso como esse, por exemplo. Sobre a MP: “nem se diga que o constituinte reformador, ao assim modificar o texto constitucional, teve em vista garantir a segurança ou estabilidade jurídica, como defendem alguns.” (SZKLAROWSKY, 2002, RESENDE, 2001). CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme visto no decorrer desse estudo, a Medida Provisória é um mecanismo de extrema importância no âmbito legislativo brasileiro, V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 30 sobretudo por seus requisitos de relevância e urgência que lhe conferem eficácia imediata de Lei. Na hipótese de rejeição de tal espécie normativa, apesar da situação, em primeira análise, parecer absurda e assustadora, não necessariamente se encaixa como uma aberração jurídica, justamente pela existência do princípio da segurança jurídica; sem ele as situações simplesmente ficariam totalmente desamparadas enquanto não confeccionam um decreto para regulamentação e perante a impossibilidade de reedição de nova medida na mesma seção legislativa. Diante disso, certeiro foi o legislador ao ilustrar a situação no § 11 do artigo 62 da Constituição Federal, pois é preferível que as situações permaneçam sobre vigência de uma MP rejeitada do que sem amparo nem tutela alguma, gerando insegurança e desconforto jurídico. A insegurança gerada pela falta de amparo é o que pode ser assemelhada a um “absurdo jurídico”, o sistema de Medidas Provisórias não. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 5 mar. 2017. BRASIL. Lei 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8974.htm. Acesso em: 6 mar. 2017. BRASIL. Lei 9.876, de 26 de novembro de 1999. Dispõe sobre a contribuição previdenciária do contribuinte individual, o cálculo do benefício, altera dispositivos das Leis nº 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, e dá outras providências. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9876.htm. Acesso em: 6 mar. 2017. BRASIL. Medida Provisória nº 22, de 24 de março de 2005. Altera dispositivos da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004- 2006/2005/Mpv/242.htm. Acesso em: 6 mar. 2017. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1999. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 31 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. FRANÇA. Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 02 de out. 1789. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e- conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-umanos/declar_dir_homem_ cidadao.pdf. Acesso em: 5 mar. 2017. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 18. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. RESENDE, Idma. Medidas Provisórias e a Emenda Constitucional no 32/01. Revista jus navigandi, Teresina, ano 8, n. 65,1 maio 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4073. Acesso em: 8 mar. 2017. SPILIOTOPOULOS, Epaminondas. Relatório na XVa Mesa Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, sobre o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire internacional de justice constitutionnelle, XV, 1999. Paris: Economica, 2000. SZKLAROWSKY, Leon Frejda. As medidas provisórias e a Emenda Constitucional no 32/2001. Revista jus navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=3331. Acesso em: 8 mar. 2017. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Onda Reformista do Direito Positivo e suas Implicações com o Princípio da Segurança Jurídica. In. Revista da escola nacional de magistratura, n. 1, p. 92-118, abr. 2006. ZIMMER, Willy. Relatório na XV Mesa Redonda Internacional, realizada em Aixen-Provence, sobre o tema “Constitution et sécurité- juridique”. In: Annuaire, 1999. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 33 A OPERAÇÃO LAVA JATO, O ABUSO E A ESPETACULARIZAÇÃO DAS PRISÕES PREVENTIVAS Leonardo Sousa dos Santos Moura* 2Victor Rodrigues Nascimento Vieira** INTRODUÇÃO A Operação Lava Jato despontou no cenário nacional e internacional por expor uma série de escândalos de corrupção no país envolvendo indivíduos poderosos que até então eram historicamente intocáveis e blindados pelo seu poder político e econômico. Assim, como uma forma de resposta a estes casos de corrupção, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal passaram a requisitar e o magistrado competente pela operação passou a conceder, frequentemente, mandados de condução coercitiva, de busca e apreensão, de quebra de sigilo telefônico, de prisões temporárias e de prisões preventivas. Neste sentido, o que se observou nos três anos de Operação Lava Jato que se seguiram foi que a grande maioria destas medidas cautelares foram amplamente aclamadas pelos veículos de informação e comunicação, em especial pelos canais de televisão aberta. Assim, a problemática que se estabelece neste trabalho, consiste em verificar até que ponto a utilização das prisões preventivas como medida cautelar está dentro de um limite legalmente permitido . A prisão preventiva está prevista no Capítulo III - arts. 311 a 316 do Código de Processo Penal (CPP)1. Da leitura dos artigos supracitados entendemos que tal modalidade de prisão cautelar não deve ser uma punição antecipada, o que inclusive é vedado pela legislação brasileira, pois a sanção só deve existir após a condenação judicial que transitou em julgado. * Graduando do curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. ** Graduando do curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. 1 Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/ Del3689.htm. Acesso em: 18 fev. 2017. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 34 Nesta linha de raciocínio, a1 pesquisa justifica-se pelo fato de que os recentes desdobramentos da Lava Jato2, caso mais emblemático do cenário jurídico-político brasileiro na atualidade3, colocaram em evidência, além dos investigados, os juízes, procuradores, delegados e policiais responsáveis pela operação. A hipótese que se levanta é que as autoridades responsáveis pela Lava Jato tenham sido tocadas pela opinião pública, bem como tenham acabado cedendo à pressão midiática que a espetacularização da operação causou. Assim, na primeira instância o órgão competente pela Operação é a 13ª Vara Criminal da Justiça Federal do Paraná (JFPR), sob responsabilidade do juiz Sérgio Fernando Moro. A 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) é o órgão do tribunal de apelação. Quanto aos órgãos superiores, são competentes: a Corte Especial e a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ); a 2ª Turma e o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Portanto, este estudo objetiva compreender o instituto da prisão preventiva e o preenchimento (ou não) dos requisitos legais para sua decretação ou manutenção, investigando o seu uso desenfreado pelos magistrados encarregados de julgar os réus.4 Para isso a metodologia utilizada foi a análise envolvendo os mandados de prisão preventiva da Lava Jato emitidos pela 13ª Vara Federal da JFPR e a pesquisa jurisprudencial por amostragem do TRF-4 e das instâncias superiores (STJ e STF) relacionada a tais medidas cautelares desde a instauração da operação em 17 de março de 2014 até 17 de março de 2017. A pesquisa realizada nos bancos de jurisprudência da 8ª Turma do TRF4; da 5ª Turma e da Corte Especial do STJ e da 2ª Turma e do Plenário do STF teve como parâmetro de busca os seguintes termos: “mandado e prisão preventiva e operação lava jato”. No total foram encontradas 98 jurisprudências, de modo que no TRF-4 foram encontrados 63 resultados, no STJ foram encontrados 24 resultados e no STF foram encontrados onze resultados. 1 2 Veja como foi a procura pelo caso no GOOGLE TRENDS (Org.). Operação Lava Jato. 2017. Disponível em: https://trends.google.com.br/trends/explore?q=Opera%C3%A7%C3%A3o%20 lava-jato. Acesso em: 17 mar. 2017. 3 BRASIL. Ministério Público Federal. Entenda o caso. 2014. Disponível em: http://lavajato.mpf.mp.br/entenda-o-caso. Acesso em: 23 mar. 2017. 4 Veja mais em: Quem são os juízes da operação Lava Jato. Disponível em: http://www.migalhas. com.br/Quentes/17,MI216941,91041Quem+sao+os+juizes+da+operacao+Lava+Jato. Acesso em: 10 fev. 2017. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 35 Após a análise dos julgados encontrados, foram descartadas 26 do TRF-4; duas do STJ e sete do STF pelo fato de que, ou se tratavam de processos de outros casos; ou então eram da Operação Lava Jato, porém não diziam respeito à prisão preventiva. Desse modo, ficamos com um total de 63 jurisprudências para serem utilizadas na pesquisa. Entre as jurisprudências encontradas e utilizadas, trabalhamos com as seguintes classes processuais: Habeas Corpus (HC); Embargos de Declaração em Habeas Corpus (EDHC); Recurso Criminal em Sentido Estrito (RCSE); Exceção de Impedimento Criminal (EXIMCR); Agravo Regimental no Habeas Corpus (AgRg no HC); Embargos de Declaração em Apelação Criminal (EDACR); Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) e Medida Cautelar no Habeas Corpus (MCHC). 1 PRISÃO COMO ÚLTIMA RATIO A prisão enquanto pena condenatória não existia na Antiguidade, nessa época o cárcere era basicamente um local onde o acusado aguardava o seu julgamento – evitando a sua fuga – que culminava muitas vezes na pena capital. Domicio Ulpiano, no Digesto, embasava esse sistema afirmando que: “o cárcere deve existir para custodiar as pessoas, não para puni-las”5 Essa ideia permaneceu praticamente imutável durante a Idade Média, proliferando cárceres particulares nos diversos feudos que existiam à época. A ideia de que a prisão poderia ser uma pena privativa de liberdade e não apenas um local temporário até que ocorresse o julgamento começa a florescer no início do século XIX, visto que "surgiu como uma instituição de fato, quase sem justificação teórica”.6 Não se buscava apenas a defesa da sociedade, mas também um controle do psicológico e da moral dos indivíduos. Atualmente, a pena privativa de liberdade é a sanção mais severa prevista no ordenamento jurídico- penal brasileiro, uma vez que são vedadas as penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e qualquer outra de natureza cruel.7 No caso da prisão cautelar (carcer ad custodiam), aquela decretada antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, deve ser aplica 5 Livro 48, título XIX, fragmento 8, parágrafo 9. 6 FOUCAULT, op. cit., p. 84. 7 Constituição Federal de 1988, artigo 5º, inciso XLVII. V Seminário de Direito do Estado: “alternativaspolíticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 36 como ultima ratio pois a liberdade é a regra. Segundo Luiz Flávio Gomes, “a prisão preventiva não é apenas a ultima ratio. Ela é a extrema ratio da ultima ratio. A regra é a liberdade; a exceção são as cautelares restritivas da liberdade (art. 319, CPP); dentre elas, vem por último, a prisão, por expressa previsão legal”.8 1.1 Prisão preventiva As prisões preventivas se encaixam na modalidade das medidas cautelares pessoais que, segundo Dezem (2016), atingem a liberdade do indivíduo e podem ser subdivididas em prisões processuais, medidas diversas da prisão e medidas substitutivas da prisão preventiva. As medidas cautelares pessoais obedecem a dois fundamentos gerais que conhecemos como fumus comissi delicti (fumaça da existência do delito) e periculum libertatis (perigo decorrente da liberdade). Em apertada síntese, temos que fumus comissi delicti “significa a existência de probabilidade de ocorrência do crime (abrangendo aqui tanto os indícios de autoria, quanto a materialidade)”.9 Por outro lado, periculum libertatis “significa o risco que a liberdade do acusado (ou indiciado) representa para o processo. Quanto maior o risco que esta liberdade represente, mais intensa poderá ser a medida cautelar a ser aplicada.”10 Outra questão que é fundamental no que diz respeito às medidas cautelares em geral é o Princípio da Presunção de Inocência. Segundo referido princípio, insculpido no art. 5º, LVII da CF/1988 temos que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.11 Além da previsão constitucional, a presunção de inocência encontra guarida no art. 8º, 2, do Pacto de São José da Costa Rica (Dec. 678/1992), que dispõe: “Toda pessoa tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente a sua culpa”.12 8 GOMES, apud MARQUES, Ivan Luís. Resumo em 15 Tópicos Sobre as Mudanças da Lei 12.403/2011. Disponível em: http://portalantigo.mpba.mp.br/atuacao/criminal/material/A_ lei_12_403_em_15_topicos.pdf. Acesso em: 20 mar. 2017. 9 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal: livro eletrônico. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, não paginado. 10 Ibidem, não paginado. 11 Constituição da República Federativa Do Brasil De 1988. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 fev. 2017. 12 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana. htm . Acesso em: 30 fev. 2017. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 37 O que se depreende do princípio supramencionado é que o acusado tem que ser “tratado como inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, porque de fato e juridicamente é inocente”13 e frise-se que isto não é um favor que o magistrado faz, mas um direito que o acusado tem. Assim, temos que qualquer prisão automática não pode ser aceita, de forma que, para seja decretada a prisão preventiva do acusado, esta deve se dar de maneira motivada e bem fundamentada pelo juiz, afinal, o que está em jogo é a liberdade de um sujeito de direitos, seja ele quem for. A prisão preventiva, ou prisão preventiva strictu sensu, como é denominada por alguns doutrinadores, é utilizada na maioria dos casos e, segundo Dezem, ainda serve como um termômetro relacionado à presunção de inocência: É a prisão processual utilizada na maioria dos casos, daí porque pode ser considerada um termômetro sobre como determinado sistema se relaciona com a presunção de inocência. Quanto mais larga for a admissão da prisão preventiva, menor será o compromisso com a presunção de inocência. Não entendemos a prisão preventiva como um mal, ontologicamente falando. [...] . A questão toda estará na forma de sua utilização e nos argumentos utilizados pelo Poder Judiciário para justificar a prisão preventiva. Aí está o cerne da questão. A depender da argumentação utilizada teremos uma medida que poderá se mostrar com maior ou menor legitimidade, que poderá ser ou não violadora da presunção de inocência.14 Tal medida cautelar poderá ser requerida “pelo Ministério Público, pelo querelante na ação penal privada ou pelo assistente de acusação. Ainda, quando se tratar de inquérito policial poderá ser decretada mediante representação da autoridade policial”.15 A preventiva só pode ser decretada pelo judiciário, em qualquer de suas instâncias16 e o momento para sua decretação pode ser tanto no inquérito policial quanto no decorrer da ação penal, desde que estejam presentes indícios suficientes de autoria e de prova da existência do crime. O cabimento da prisão preventiva gira em torno de três artigos do CPP, os arts. 312, 313 e 314 e as classificações sobre os elementos destes artigos são divergentes entre os doutrinadores, de forma que, vamos adotar a classificação de Guilherme Madeira Dezem. 13 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal: livro eletrônico. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, não paginado. 14 Ibidem, não paginado. 15 Ibidem, não paginado. 16 Se for um caso de competência originária, competente será o relator do tribunal em questão. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 38 Segundo Dezem, podemos dividir os elementos das prisões preventivas em quatro: pressupostos positivos; pressupostos negativos; fundamentos da prisão preventiva e condições de admissibilidade da prisão preventiva. Assim, para que ela seja decretada, é necessária a combinação dos requisitos supracitados da seguinte forma: a) pressupostos positivos - ambos devem se fazer presentes; b) pressuposto negativo - não pode estar presente sob pena de ficar obstada a possibilidade de decretar a prisão preventiva; c) fundamentos da prisão preventiva - deve haver a presença ao menos de um dos fundamentos da prisão preventiva e d) condições de admissibilidade - deve haver a presença de ao menos uma das condições de admissibilidade da prisão preventiva.17 Os pressupostos positivos encontram-se na parte final do art. 312 do CPP e são os seguintes: indícios suficientes de autoria e prova de existência do crime, de forma que os dois devem se fazer presentes. Os pressupostos negativos estão dispostos no art. 314 do diploma Processual Penal e tratam das causas excludentes de ilicitude previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23 do Código Penal. Assim, a presença de qualquer hipótese de excludente da ilicitude impede a decretação de prisão preventiva e a torna ilegal. O artigo 312 do Código de Processo Penal, por sua vez, versa sobre os fundamentos da prisão preventiva, que são quatro: garantia da ordem pública; garantia da ordem econômica; conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal. Como se observa de uma primeira leitura, o fundamento “garantia da ordem pública” é muito vago e esta é uma crítica muito recorrente entre os doutrinadores. Assim, para tentar traçar os limites de tal fundamento, seguimos a mesma linha de pensamento de Guilherme Madeira Dezem, que versa o seguinte: [...] a ordem pública tem este conteúdo material ligado à paz pública. No entanto, não basta violação da paz pública, é preciso que haja os seguintes requisitos cumulativos (é a mesma posição de Zanoide): a) pena prevista para o crime imputado deve justificar a prisão preventiva; 17 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal: livro eletrônico. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, não paginado. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 39 b) as circunstâncias e a forma demonstradas de cometimento do suposto crime devem ser de tal gravidade que justifica o cometimentoda restrição da liberdade; e c) relação temporal entre o conhecimento da autoria e o instante de determinação da prisão. Ora, não é possível falar- se em abalo à ordem pública de crime cuja autoria tenha sido descoberta há tempos e que apenas depois venha a se querer prender. Como justificar que a ordem pública foi violada quando um crime foi cometido em 2012, tendo lá sido descoberta sua autoria, e somente em 2014 tenha sido decretada sua prisão? Com a devida vênia, não há como.18 Entretanto, conforme se extrai da análise da maioria dos julgados, a garantia da ordem pública tem a ideia simplista de probabilidade de reiteração de condutas criminosas. Ademais, observa-se nas jurisprudências que o conceito de ordem pública abrange ainda: a probabilidade de reiteração de condutas criminosas; a gravidade em concreto do crime; a periculosidade do agente e a gravidade em concreto do crime baseada no modus operandi da conduta do agente. Por outro lado, acreditamos que fundamentos como a mera gravidade em abstrato do crime, o clamor público e a reincidência por si só, não podem ser admitidos para fundamentar a prisão preventiva com base na garantia da ordem pública. A garantia da ordem econômica também merece a mesma crítica que foi feita acima, por se tratar de um conceito que dá margem para ampla interpretação. Pelo que se observa da leitura das jurisprudências, os crimes que atentam contra esta garantia, são aqueles que tenham qualquer expressão econômica ou até mesmo crimes contra o patrimônio. Aqui ainda é importante ressaltar o art. 30 da Lei 7.492 de 1986, popularmente conhecida como Lei do Colarinho Branco, que dispõe: Sem prejuízo do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941, a prisão preventiva do acusado da prática de crime previsto nesta lei poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada. (Vetado).19 A conveniência da instrução criminal, por sua vez, não é objeto de muita discrepância na doutrina e conforme assevera Dezem, “possui 18 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal: livro eletrônico. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, não paginado. 19 Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L7492.htm. Acesso em: 15mar. 2017. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 40 significado preciso dentro da sistemática do Código de Processo Penal: trata-se de hipótese em que o indiciado ou acusado atuam de maneira indevida sobre a produção probatória (instrução criminal ou investigação criminal)”.20 É preciso entender a expressão “atuação indevida”, visto que não pode ser admitida a prisão preventiva caso o acusado esteja exercendo um direito seu. Assim, por exemplo, se um acusado se recusar a participar de uma delação premiada, ele não pode ser preso preventivamente até que forneça as informações que possam servir como prova para o caso, sob pena de voltarmos ao sistema inquisitório e infligimos uma punição antecipada ao investigado. Entretanto, as críticas que se fazem a Lava Jato vão em direção contrária ao supracitado, visto que se afirma que os investigados são mantidos presos para que sejam forçadas a delatar, afinal, o entendimento do Procurador da República Manoel Pastana é que “o passarinho para cantar, precisa estar preso”.21 A quarta e última hipótese em que cabe a prisão preventiva diz respeito à possibilidade de decretar preventiva como forma de assegurar a aplicação da lei penal. Aqui, o que se analisa na maioria das jurisprudências é que essa hipótese existirá quando houver indícios de fuga por parte do acusado. Entretanto, conforme observa Dezem (2016) a previsão genérica de fuga do acusado não é o bastante. O autor cita ainda o exemplo do acusado possuir dupla nacionalidade ou ser rico (justificativas muito utilizadas nos julgados) como sendo insuficiente para que se decrete a prisão preventiva. É preciso que existam atos concretos que sirvam de evidência de que o acusado está em fuga e não meras hipóteses genéricas. É esse inclusive o entendimento do STF: [...] No caso, em razão da existência de um inquérito policial instaurado em 2011, o Juízo de origem decretou a prisão preventiva por suposto risco de fuga do acusado, em contrariedade à orientação no sentido de que, inexistindo dados concretos a respeito do comportamento processual do acusado, não é possível justificar a prisão preventiva para a aplicação da lei penal apenas na presunção de que o acusado pode vir a fugir.22 20 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal: livro eletrônico. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, não paginado. 21 STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, Andre Karam. "O passarinho pra cantar precisa estar preso". Viva a inquisição! 2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-nov-29/diario-classe- passarinho-pra-cantar-estar-preso-viva-inquisicao. Acesso em: 29 fev. 2017. 22 STF, HC 122.572/SP, j. 10.06.2014, rel. Min Roberto Barroso. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 41 Já o art. 313 do CPP lista as condições de admissibilidade da prisão preventiva pelo que é necessária a presença de pelo menos uma das condições listadas nos três incisos do referido artigo, sendo prescindível a cumulatividade. Aqui é importante ressaltar que só se admite prisão preventiva para crimes dolosos e ela não será cabível quando se tratar de cometimento de contravenção penal. O inciso I do art. 313 dispõe que será admitida a decretação da prisão preventiva em crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos. Dezem esclarece que “trata-se da pena máxima em abstrato, segundo o parâmetro do CPC e, neste parâmetro de pena, incidem as causas de aumento (pelo valor máximo) e as causas de diminuição de pena (pelo valor mínimo), mas não as agravantes e atenuantes”.23 O inciso II, por sua vez, trata da reincidência e dispõe que cabe preventiva “se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado”. Nesta hipótese há uma ressalva que trata do chamado período depurador, disposto no inciso I do caput do art. 64 do Código Penal.24 Assim, cinco anos após o cumprimento ou extinção da pena, a condenação pretérita não poderá ser utilizada como condição de admissibilidade da prisão preventiva. Já o inciso III trata de cabimento de preventiva “se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”. Por fim, o parágrafo único do art. 313 dispõe que será admitida a prisão preventiva “quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.” 2 CRIMINOLOGIA MIDIÁTICA Os meios de comunicação de massa, como a televisão e a recente consolidação da Internet, são hoje os principais formadores de opinião da 23 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal: livro eletrônico. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, não paginado. 24 Art. 64 - Para efeito de reincidência: I - não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação; V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 42 coletividade, atuando como o prisma que os sujeitos enxergam o mundo. Engana-se quem acredita que esse fenômeno não reverbera na esfera judiciária, vistoque atualmente cresce entre juristas o debate sobre o impacto da mídia no Poder Judiciário e o quão alarmante pode ser essa influência. Nesse sentido, é importante ressaltar o papel da criminologia midiática que, segundo o entendimento de Zaffaroni (2013, p. 160), sempre existiu e apela para uma criação da realidade através de informação, subinformação e desinformação, calcada em uma etiologia criminal simplista. Sendo assim, as informações passadas pela imprensa, principalmente aquelas ligadas à ordem penal e processual penal, ecoam e fixam-se na consciência coletiva, que, por sua vez, passa a clamar por um maior rigor penal a qualquer custo, inclusive em detrimento de garantias constitucionais. Sobre essa questão, Ana Lúcia Menezes Vieira assevera que: Na justiça midiática não há tempo para nada, nem sequer para a apresentação detalhada dos fatos. Quanto mais velocidade mais verossímil se torna a notícia. O processo é ultrassumário, acelerado. Tudo é sintético e o tom preponderante é o da imagem, que fala por si só; com a difusão da internet a relação entre quem produz e quem consome notícia foi profundamente alterada; as pessoas já não têm tempo nem sequer para ver os detalhes de uma notícia.25 Vale ressaltar aqui que não se questiona o importante papel da imprensa numa democracia, tampouco se anseia a volta da censura, conforme Odone Sanguiné: Quando os órgãos da Administração de Justiça estão investigando um fato delitivo, a circunstância de que os meios de comunicação social proporcionem informação sobre o mesmo é algo correto e necessário numa sociedade democrática. Porém uma questão é proporcionar informação e outra realizar julgamentos sobre ela. É preciso, portanto, partir de uma distinção entre informação sobre o fato e realização de valor com caráter prévio e durante o tempo em que se está celebrando o julgamento. Quando isso se produz, estamos ante um juízo prévio/paralelo que pode afetar a imparcialidade do Juiz ou Tribunal, que, por sua vez, se reflete sobre o direito do acusado à presunção de inocência e o direito ao devido processo.26 25 VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 109 26 SANGUINÉ, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento de prisão preventiva. In: SHECARIA, Sérgio Salomão (Org.). Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva (criminalista do século). São Paulo: Método, PP. 257-295, 2001, p. 268. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 43 Quando se fala em Lava Jato, percebe-se com clareza solar a construção da realidade supracitada. Assim, a narrativa dada pela imprensa transforma o juiz em herói nacional27, com a mesma aura infalível daqueles das revistas em quadrinhos, o policial em galã28 e os acusados em vilões, cuja lei deve ser enrijecida para garantir o quanto antes a punição desses indivíduos.29 É inegável a espetacularização em torno dos eventos ligados à operação, existindo uma forte pressão para que os juristas punam o quanto antes os acusados envolvidos, sob o risco de serem também transformados em inimigos da nação. É nesse momento que o Direito passa a ter uma relação perigosa com a imprensa, buscando acalmar os ânimos da população - já descrente do poder Judiciário - acaba cedendo ao apelo das vozes externas aos fatos do processo e adota uma conduta que desrespeita o direito do sujeito a um processo justo. 3 DIREITO PENAL DO INIMIGO Com o crescente frenesi acerca dos fatos ligados à Operação Lava Jato, a partir do inflamável encontro de uma sociedade em cólera diante desse faraônico esquema de corrupção, e uma imprensa sedenta pela criação de um espetáculo, instaurou-se no cenário nacional um crescente clima de caça às bruxas – onde vale tudo para queimá-las, que trouxe à tona o traiçoeiro fantasma do “Direito Penal do Inimigo”. O “Direito Penal do Inimigo”, termo cunhado por Gunter Jakobs em 1985, afirma que determinados indivíduos perdem o status de cidadãos e passam a ser tratados como inimigos. 27 Ver mais em “Sérgio Moro é exaltado como herói na Paulista”. Disponível em: http://www1. folha.uol.com.br/poder/2016/03/1749519-sergio-moro-e-exaltado-como-heroi-nacional-na- paulista.shtml. Acesso em: 26 mar. 2017. 28 Ver mais em “Saiba quem é o agente federal gato que escoltou Eduardo Cunha” Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/brasil/saiba-quem-o-agente-federal-gato-que-escoltou-eduardo- cunha-20316683.html. Acesso em: 26 mar. 2017. 29 Em 2014, ao se manifestar contra um pedido de Habeas Corpus, o procurador da República Manoel Pastana afirmou que “o passarinho para cantar precisa estar preso”. Disponível em: http:// www.conjur.com.br/2014-nov-27/parecer-mpf-defende-prisoes-preventivas-forcar-confissoes. Acesso em: 25 mar. 2017. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 44 Para elaborar sua teoria, Jakobs debruça-se sobre as obras de grandes filósofos como Rosseau30, Hobbes31 e Kant,32 buscando tornar ainda mais sólidos os seus argumentos. Diante disso, advoga pela existência de dois tipos de direito: o primeiro destinado para o cidadão, que ainda que viole alguma norma, é punido mantendo todas as suas garantias constitucionais preservadas, e o segundo para cuidar “de maneira própria o infiel ao sistema, aplicando-se lhe não o Direito, „vínculo entre pessoas que, por sua vez, são titulares de direitos e deveres‟, mas sim a coação, repressão necessária àqueles que perderam o seu status de cidadão” (CUNHA, 2016, p. 188). Os três pilares que fundamentam o Direito Penal do Inimigo são: Em primeiro lugar, constata-se um amplo adiantamento da punibilidade, isto é, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), no lugar de – como é o habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionalmente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é considerada para reduzir, correspondentemente a pena cominada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou inclusive suprimidas.33 30 Para Rousseau: “qualquer malfeitor, atacando o direito social, pelos seus crimes torna-se rebelde e traidor da pátria, deixa de ser um seu membro ao violar suas leis e até lhe move guerra. A conservação do Estado é então incompatível com a sua, sendo preciso que um dos dois pereça, e, quando se faz que um culpado morra, é menos como cidadão do que como inimigo. (ROSSEAU, 1973, p. 58). 31 O pensamento de Hobbes é que: “no estado de natureza, os homens, fundamentalmente egoístas e tendo necessidades dos mesmos bens, são fatalmente inimigos entre si (homo homini lupus), em luta perpétua e universal (bellum omnium contra omnes), em que nem sequer a vida está segura.” (PADOVANI, 1974, p. 320). 32 Citado por Jakobs: “ [...] Em seu escrito „Para a Paz Perpétua‟, ele dedica uma longa nota de rodapé ao problema de quando se está autorizado a proceder de modo hostil contra uma pessoa: „o homem, ou o povo, no simples estado natural priva-me [...] dessa segurança (necessária) e lesa- me já por se encontrar ao meu lado nesse estado, ainda que não efetivamente (facto), mas sim pela ausência de lei de seu estado (statu iniusto), que é uma constante ameaça para mim; e eu posso forçá-lo a entrar comigo num estado comunitário-legal ou a afastar-se do meu lado‟. Assim sendo, aquele que não participa de uma vida num „estado comunitário-legal‟ deve se afastar, o que significa que será expulso ou que, em todo caso, não há que ser tratado como pessoa, podendo-se, como observa expressamente Kant, „tratá-lo como um inimigo‟. Como acaba de citar-se, em Kant, não se trata como pessoa quem me ameaça ... constantemente‟, quem não se deixa coagir ao estado de civilidade.” (JAKOBS,2008, p. 6). 33 MELIÁ, Manuel Cancio. “Direito Penal” do inimigo. In: CALEGARI, André Luís; GIACOMOLLI, Nereu José (org.). Direito penal do inimigo: noções e críticas. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 67. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 45 Dessa forma, trata-se de uma teoria bastante problemática, uma vez que em sua própria gênese confronta direitos e garantias historicamente conquistados, “da perspectiva de um entendimento da pena e do Direito Penal, com base na prevenção geral positiva, a reação que reconhece excepcionalidade à infração do „inimigo‟, mediante uma troca de paradigma de princípios e regras de responsabilidade penal, é disfuncional”.34 Logo, “na doutrina brasileira prevalece o entendimento de que o Direito Penal serve, efetivamente, para assegurar bens, sem desconsiderar a sua missão indireta: o controle social e a limitação do poder punitivo estatal.”35 Portanto, é inadmissível que num Estado Democrático de Direito como o Brasil, cuja Constituição Federal deve ser o norte, se permita a violação de direitos fundamentais atribuídos à toda pessoa humana. Se se faz isso com quem é poderoso e rico, pense o que se pode fazer com quem é colocado à margem da sociedade. 4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL Conforme foi exposto acima, a análise jurisprudencial desta pesquisa foi baseada na busca dos termos “mandado e prisão preventiva e operação lava jato”. Ademais, após a filtragem dos resultados obtidos foram analisadas 63 jurisprudências, de forma que 37 delas são do TRF-4; 22 são do STJ e quatro são do STF. Das jurisprudências analisadas, obtivemos: a) No TRF-4: 27 HC; um EDHC; um RCSE; quatro EXIMCR; dois AgRg no HC e dois EDACR. b) No STJ: quinze HC; seis RHC; um AgRg no HC. c) No STF: dois HC e duas MCHC. No que diz respeito ao provimento ou não das classes processuais listadas acima, temos que, dentro da amostra que analisamos, apenas dois Habeas Corpus foram deferidos (pelo TRF-4) o que representa um percentual de somente 3% de decisões favoráveis aos réus na operação. Não se quer dizer que basta o réu recorrer que tem que ser solto, porém estamos diante de um índice muito baixo, que indica que a manutenção das preventivas nas instâncias superiores da Lava Jato é certa, conforme tabela acima. Vale destacar, que na fundamentação de um dos Habeas Corpus negado, foi encontrado o seguinte trecho: 34 Ibidem, p. 79. 35 CUNHA, 2016, p. 35 V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 46 A complexidade e as dimensões das investigações relacionadas com a denominada "Operação Lava Jato", os reflexos extremamente nocivos decorrentes da infiltração de grande grupo criminoso em sociedade de economia mista federal, bem como o desvio de quantias nunca antes percebidas, revela a necessidade de releitura da jurisprudência até então intocada, de modo a estabelecer novos parâmetros interpretativos para a prisão preventiva, adequados às circunstâncias do caso e ao meio social contemporâneo aos fatos.36 Ou seja, trata-se de um claro flerte com a vertente do Direito Penal do Inimigo, uma vez que claramente se advoga por uma nova hermenêutica jurídica, visando um maior rigor penal para lidar com aqueles acusados ligados à Operação Lava Jato, que é tratada como um caso excepcional.37 Em outro Habeas Corpus, dessa vez concedido38, torna-se evidente como a narrativa da mídia influência o judiciário. Nele o juiz proferiu um decreto de prisão preventiva, baseado na notícia que dizia que advogados de empreiteiras, incluído aquela que pertence ao acusado em questão, foram conversar com o Ministro da Justiça, e tal fato caracterizaria tentativa política de pressionar o Poder Judiciário. O Habeas Corpus acabou sendo concedido, pois mesmo que existisse alguma tentativa de influência, a solução não seria a decretação de nova prisão cautelar, porque essa solução não guardaria relação de fim e meio. 36 Em complemento ao Ofício n.o 8473552 - Gab22, oficie-se ao Ministro Félix Fischer, relator do HC no 364.474/PR, dando conta do julgamento do presente habeas corpus e encaminhando cópia do inteiro teor. (TRF-4 - HC: 50295937820164040000 5029593-78.2016.404.0000, Relator: JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, Data de Julgamento: 12/08/2016, OITAVA TURMA). 37 Sérgio Moro afirma que “estamos em tempos excepcionais” ao defender preventivas. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/10/04/estamos-em-tempos-excepcionais- diz-moro-ao-defender-prisoes-preventivas.htm Acesso em 08 de janeiro de 2017. 38 PROCESSUAL PENAL. "OPERAÇÃO LAVA JATO". HABEAS CORPUS. PRISÃO DECRETADA DE OFÍCIO PELO MAGISTRADO. CABIMENTO. REQUISITOS DO ARTIGO 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NÃO PREENCHIMENTO. CONCESSÃO DA ORDEM. 1. Não há óbice à decretação da prisão de ofício pelo magistrado, a quem cumpre zelar pela legalidade da ação penal e, nessa linha, a quem incumbe decretar medidas cautelares, dentre elas a prisão, sempre que presentes os requisitos exigidos pela lei, quais sejam o risco à ordem pública, à aplicação da lei penal ou à instrução do processo. 2. Não havendo nenhum ato concreto capaz, efetivamente, de prejudicar a aplicação da lei penal, o novo decreto de prisão preventiva deve ser revogado, mantendo-se, porém, íntegro o decreto anterior. 3. Ordem de habeas corpus concedida. (TRF-4 - HC: 50062066820154040000 5006206-68.2015.404.0000, Relator: JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, Data de Julgamento: 15/04/2015, OITAVA TURMA, Data de Publicação: D.E. 16/04/2015). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 47 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Operação Lava Jato entrará para a história do Brasil pelo combate ao maior esquema de corrupção do país. Porém, o seu desdobramento acabou se tornando um espetáculo39 e as autoridades responsáveis pela condução do caso, bem como os indiciados, personagens de uma narrativa construída pela imprensa, com preocupante influência no Judiciário. Sem dúvidas, o combate aos crimes de corrupção é urgente e indubitavelmente necessário, mas ele não deve ocorrer ao custo das instituições democráticas. A larga utilização da prisão preventiva na Operação Lava Jato, com 89 prisões expedidas na primeira instância40, uma média de 2 prisões preventivas por fase, a opção preferencial pela prisão preventiva ao invés de outras medidas cautelares, os fundamentos simplistas, genéricos e muitas vezes absurdos em que se baseiam e se mantém as preventivas mostram que essa medida cautelar tem sido utilizada de forma abusiva na operação. Como bem asseverou Dezem, a forma com que determinado sistema se relaciona com a presunção de inocência pode ser medida pelo termômetro da utilização das prisões preventivas. O uso desenfreado deste instituto processual mostra que a Lava Jato tem uma tremenda dificuldade de se relacionar com a presunção de inocência, instaurando um clima de Direito Penal do Inimigo e marcando como condenados e inimigos públicos aqueles que ainda estão sendo alvo de inquérito policial. Ademais, o que se observa na Lava Jato é uma punição antecipada dos investigados e o uso da prisão preventiva como forma de forçar a delação premiada. A lógica é clara e o recado que se quer mandar é o seguinte: “colabore e delate, ou corra o risco de ficar preso preventivamente”.41 Diante do exposto, é mister a salvaguarda do ordenamento jurídico brasileiro, impedindo que o Judiciário seja refém do frenesi social, e passe a pôr em risco a Democracia e a solidez de suas instituições, em prol de uma solução imediatista e falha. 39 Filme inspirado na Lava Jato começa a ser rodado em Curitiba Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/filmes/filme-inspirado-na-lava-jato-comeca-ser-rodado-em- curitiba-20513742. Acesso em: 10 mar. 2017. 40 Quantidade de prisões preventivasexpedidas na primeira instância da Lava Jato. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/prisoes-preventivas-decretadas-lava-jato.pdf. Acesso em: 15 mar. 2017. 41 Fases da Operação Lava Jato. Veja mais em: http://www.pf.gov.br/imprensa/lava-jato/fases-da- operacao-lava-jato. Acesso em: 16 mar. 2017. 41 Lava Jato: Justiça brasileira é severa com suspeitos e leniente com condenados, diz 'Economist'. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151211_pressreview_ economist_lavajato_hb. Acesso em: 20 mar. 2017. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 48 REFERÊNCIAS BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso em: 10 jan. 2017. BRASIL. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.Acesso em: 11 jan. 2017. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm. Acesso em: 20 fev. 2017. CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal. (arts. 1 o ao 120). 4. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2016. DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal: livro eletrônico. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau. 2005 MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo. In: CALEGARI, André Luís; GIACOMOLLI, Nereu José (org.). Direito penal do inimigo: noções e críticas. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. OEA. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. Disponível em:https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana. htm. Acesso em: 30 fev. 2017. PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. 10. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1974. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato Social. São Paulo: Victor Civita, 1973. SANGUINÉ, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento de prisão preventiva. In: SHECARIA, Sérgio Salomão (Org.). Estudos Criminais em Homenagem a Evandro Lins e Silva (criminalista do século). São Paulo: Método, PP. 257-295, 2001; VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 49 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. 1940-A questão criminal. Tradução Sérgio Lamarão. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 51 EVOLUÇÃO JURÍDICO-PENAL DO COMBATE AO TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO NA ARGENTINA: ANÁLISE À LUZ DA INFLUÊNCIA DA LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL Luiz Henrique Garbellini Filho* Paulo César Corrêa Borges** INTRODUÇÃO Em 2012, a Lei n. 26.842 modificou a o panorama penal argentino de combate ao crime de redução a condição análoga à escravidão: houve a inclusão de novos quatro núcleos penais na redação do artigo 140 do Código Penal, tipificando novas ações. Sendo assim, deu-se a melhor especificação das condutas delituosas, uma vez que o dispositivo que antes criminalizava somente o ato de reduzir outrem a “servidumbre o a otra condición”, passou a tipificar, também, “esclavitud” e “cualquier modalidad”, bem como “trabajos o servicios forzados” e “matrimonio servil”. Essa nova roupagem do dispositivo jurídico-penal da Argentina dinamizou o conceito de trabalho escravo1 contemporâneo na ordem doméstica argentina, de modo que houve uma ampliação da tutela penal dos direitos humanos: sob o prisma dos bens jurídicos tutelados e assegurados constitucionalmente, houve a expansão e consolidação da ideia de que essa norma penal objetiva proteger, num olhar dogmático, a liberdade,2 elemento que também é objeto de normas internacionais, ampliadoras da esteira de interpretação acerca desses direitos, bem como do compromisso do Estado-parte em defendê-lo e protegê-lo no seu âmbito doméstico. Sendo assim, o problema de pesquisa se refere à dimensão da interferência, na atualização da norma penal de combate ao trabalho * Graduado, mestre e doutor pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Realizou pós-doutoramento pela Universidade de Sevilha. Professor de Direito Penal da UNESP Franca. ** Discente do curso de graduação o em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Franca. Bolsista de iniciação científica PIBIC 1 Ao longo do trabalho, o termo não será utilizado no sentido de instituto jurídico positivado no ordenamento jurídico argentino, mas como uma forma de labor contemporâneo. 2 Considerando-se o debate doutrinário acerca dos bens jurídicos tutelados pelo artigo 140 do Código Penal argentino, o trabalho, em consonância com a internacionalização dos direitos humanos a partir dos tratados e princípios internacionais referentes à temática de trabalho escravo contemporâneo, considera a liberdade como bem protegido pelo dispositivo, mas que não se desvincula da dignidade e da personalidade como elementos fundamentais da pessoa humana (PAZ; LOWRY, 2013, p. 5). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 52 análogo ao escravo, da legislação internacional ratificada pela Argentina, notadamente em relação às normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos e às convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nesse sentido, é imperativo que a legislação argentina de combate à escravidão contemporânea foi considerada, até o advento da Lei 26.842 de 2012, restrita e desatualizada em relação aos padrões combativos internacionais (BORGES, 2015, p. 45), afinal, o artigo 140 dispunha de uma redação pouco específica, o que desembocava em diferentes interpretações pela jurisprudência. (PAZ; LOWRY, 2013, p. 19-21). Partindo-se desse raciocínio, a justificativa do estudo reside no fato de que a inclusão de novos tipos penais ao dispositivo, como resultado da influência de um processo de interação entre o Direito Internacional e o Direito Penal doméstico, amplia o fundamento e a base jurídico-penal para o Estado empreitar ações de persecução penal e de políticas públicas, dentre outras de resguardo aos direitos humanos e de combate a esse fato delituoso, que torna vítima cerca de 160 mil pessoas na Argentina, segundo um estudo da Walk Free Foundation (2016). O estudo compreende também dois objetivos basilares: compreender a relação entre a modificação legislativa de 2012 na Argentina e a ratificação das normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos e da Organização Internacional do Trabalho, além de mensurar e esmiuçar a ampliação da tutela penal dos bens jurídicos pelo artigo 140 do Código Penal, partindo-se do pressuposto de que a interpretação da relação entre trabalho escravo contemporâneo e violação à liberdade pessoal e locomotora passou por processo de ampliação pelas legislações internacionais. Acerca da metodologia utilizada, foi empregada revisão bibliográfica de doutrinadores argentinos acerca do panorama penal de combate ao trabalho análogo ao escravo, utilizando-se como base o Código Penal da Argentina, mais especificamente o dispositivo citado anteriormente. Ainda, houve estudo da doutrina latina acerca do Direito Internacional dos Direitos Humanos e da Organização Internacional do Trabalho para revelar, num prisma genérico, a relação entre essas normas internacionais e o Direito interno dos países ratificadores. Nessa perspectiva, estruturou-se a revisão bibliográfica de diversos tratados e normas internacionais que versam sobre o trabalho escravo contemporâneo, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 6ª), Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 8º), Convenção V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas erespostas jurídicas diante da crise das instituições” 53 Suplementar para Abolição da Escravatura (art. 1º), Convenções n. 29 e n. 105 da OIT, entre outros. Sendo assim, empregar-se-á o método dialético para a análise da realidade penal argentina diante das transformações na temática, o que criará condições para a análise das normas jurídicas, possibilitando criticá- las perante a insuficiência do fenômeno jurídico doméstico argentino em relação ao ordenamento internacional, e com isso, para o enfrentamento das violações dos direitos humanos das vítimas do trabalho análogo ao escravo, tecer a relação entre legislação interna da Argentina e externa na busca de ampliação da tutela penal da liberdade. 1 OS PRINCÍPIOS DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS EM RELAÇÃO AO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO Partindo-se do pressuposto de que o Direito Internacional dos Direitos Humanos tem como escopo e fundamento a proteção da dignidade da pessoa humana (PIOVESAN, 2010, p. 15), o panorama do trabalho escravo contemporâneo é objeto de diversos tratados e convenções do Direito Internacional, de modo que se ampliou progressivamente concepção internacional acerca dessa forma labor, bem como sua relação intrínseca e direta com a violação a diversos direitos humanos. Nesse sentido, é imperativo afirmar que o Direito Internacional atribui, a esse fato delituoso contemporâneo, o caráter multifacetado e pluriofensivo. Destarte, percebe-se que é multifacetado em virtude da diversidade de formas contemporâneas de trabalho escravo: em razão de seu caráter qualificador abrangente, não é possível formular a sua conceituação a partir de somente um núcleo caracterizador, isto é, para sua definição, é necessário elencar uma gama de ações que imputam na redução do indivíduo à condição análoga à de escravo. Tal cenário é evidente quando se analisa a vigente concepção internacional sobre tal forma de labor, abarcando, a título de exemplificação, o trabalho forçado e servidão por dívidas3, não somente a ideia de que essa forma de labor se pauta na relação de propriedade e posse entre indivíduos.4 3 A Organização Internacional do Trabalho (OIT) postula a conceituação de trabalho forçado na Convenção n. 29, de 1930. 4 A Convenção Complementar de Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura (1956) é responsável pela atribuição conceitual à servidão por dívidas. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 54 Dessa forma, consolida-se a compreensão de que a escravidão contemporânea é formada por uma pluralidade de facetas, que podem ser resumidas na oposição ao trabalho decente e digno, possuindo diversos núcleos caracterizadores. Seguindo essa linha de raciocínio, o caráter pluriofensivo conferido pelo Direito Internacional se fundamenta na ampla violação que o trabalho escravo contemporâneo promove a vários direitos humanos.5 À luz disso, tendo em vista que os direitos humanos, fundamentados na dignidade da pessoa humana, são concebidos como uma unidade indivisível e entrelaçada (PIOVESAN, 2010, p. 13) pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, é fato notório que tal forma de trabalho atenta contra o direito à liberdade pessoal e locomotiva, o trabalho digno e, sobretudo, contra a dignidade. Sob essa perspectiva, é destacável a razão pela qual o Direito Internacional, assumindo notória importância na proteção dos direitos humanos, confere, à proteção contra o trabalho escravo contemporâneo, o caráter de jus cogens.6 Isto é, o combate a essa forma de labor é norma imperativa do Direito Internacional Público, a qual exige cumprimento obrigatório7 por parte dos Estados, uma vez que abarca valores fundamentais para a comunidade internacional (RAMOS, 2014, p. 152). Na medida em que a tutela dos direitos humanos e da dignidade é diretriz essencial do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a característica jus cogens de uma norma atribui responsabilidades ao Estado perante o contexto internacional e doméstico. Assim, de acordo com André de Carvalho Ramos (2014, p. 169) “o conceito de jus cogens exige que o Estado se comporte de modo a respeitar seu conteúdo, não o derrogando com sua conduta omissiva ou comissiva”, o que revela a forte indissociação entre Estado-parte e ação de compromisso com a norma internacional. 5 A Convenção sobre Escravatura (1926) rege a conceituação da escravidão propriamente dita. 6 Antonio Cassesse (1990, p. 39) expõe que a Declaração Universal dos Direitos Humanos possui, dentre nos arts. 22 a 27, vários direitos exercidos nos planos sociais e econômicos, dentre eles: direito ao trabalho, livre escolha de emprego, justas condições de trabalho, direito ao descanso e ao lazer, o direito à saúde, ao igual pagamento para igual trabalho. Nesse olhar, tece-se a direta relação entre o ato de reduzir alguém à condição de escravidão contemporânea e a violação a esses direitos garantidos internacionalmente a todos os homens, via processo de internacionalização dos direitos humanos. 7 Apesar do artigo 53 da Convenção de Viena não elencar as normas que englobam a gama do jus cogens, percebe-se que a Carta das Organizações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, influenciam na sua construção. Nessa toada, tem sido potencialmente reconhecido perante a jurisprudência internacional como integrante do jus cogens, a proibição contra a escravidão e de práticas similares, como apontado na sentença de 20 de out. de 2016 sobre caso trabalhadores da fazenda Brasil Verde vs Brasil. (2016, p. 65). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 55 Isto é, revela-se que o jus cogens imputa em obrigação erga omnes, no sentido de que as condutas do Estado que violem ou que omitem a defesa de “princípios e regras concernentes aos direitos básicos da pessoa humana” (RAMOS, 2014, p. 91-92) sejam atribuídas como ilícitas perante ao compromisso internacional. Afinal, os Estados-parte firmam diversos tratados8 que delineiam o caráter consuetudinário de combate ao trabalho escravo, com consequente defesa do trabalho digno. Tal cenário edifica a indissociabilidade entre a proteção desses direitos humanos e ação do Estado no âmbito jurídico interno. Como plano basilar disso, tem-se que os tratados internacionais de direitos humanos, frente à possibilidade de sanções internacionais, obrigam o Estado a fomentar a melhora das condições básicas das vítimas de trabalho escravo contemporâneo e a proteger seus direitos fundamentais, notadamente por meio de medidas positivas, como adaptação da legislação penal para tutelar bens jurídicos garantidos constitucionalmente, notadamente a liberdade. No âmbito de obrigatoriedade à proteção desse princípio erga omnes e dos direitos humanos tutelados pelos tratados de combate a esse tipo de labor, consagra-se que esses elementos estabelecem o compromisso do Estado-parte em instalar o miniun core obligation, isto é, parâmetros protetivos mínimos aos direitos fundamentais, com fundamento na dignidade da pessoa humana. Em complementaridade, Piovesan (2010, p. 241) ratifica que cabe ao Estado ultrapassar, na sua ordem jurídica interna, tais padrões mínimos de proteção firmados pela ordem internacional, nunca regredir esses parâmetros, isto é, deve estar além, não aquém aos padrões. Então, num paralelo com a escravidão moderna, elabora-se a ideia de que tal concepção protetiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos fomenta o fato de que o combate a essa forma de labor degradante deve abarcar uma tutela dos direitos humanos maior do que a mínima exigida pela ordem jurídica internacional, ultrapassando, pois, o modelo mínimo de proteção à dignidade do homem. Nessa toada, a tipificação penal de condutas que reduzem outrem à condição análoga à de escravo deve, à título de elucidação,perpassar, ao mínimo, pelo campo do trabalho forçado, da servidão por dívidas e da servidão propriamente dita, uma vez que são formas de trabalho degradante diretamente abordadas pela legislação internacional. 8 O caráter obrigatório e vinculante do combate ao trabalho escravo contemporâneo encontra respaldo no fato de que o sistema de proteção internacional aos direitos humanos possui o power to embarass, isto é, a capacidade de constranger e aplicar sanções perante a comunidade internacional. Desse modo, Flávia Piovesan (2010, p. 362) ressalta que “a ação internacional constitui, portanto, importante estratégia para o fortalecimento da sistemática de implementação dos direitos humanos”. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 56 Torna-se claro, então, que o Direito Internacional dos Direitos Humanos se torna um mecanismo subsidiário ao Direito doméstico dos Estados, de modo que não tem como escopo a substituição da ordem interna de combate ao trabalho análogo à escravidão, mas a suplementação da ordem jurídica interna ao estabelecer, para o país ratificador, metas, compromissos e defesa aos direitos humanos elencados nos tratados. Dessa forma, Flávia Piovesan (2010, p. 241) cita que o Direito Internacional dos Direitos Humanos tem ação no sentido de permitir que sejam superadas as omissões e deficiências do direito doméstico. Tal posicionamento, aliado à perspectiva de padrões mínimos de proteção contra o trabalho escravo contemporâneo, promove mudanças no arcabouço jurídico do Estado- parte, com consequente ampliação da tutela dos bens jurídicos violados por esse fato delituoso, uma vez que diversos tratados foram responsáveis por conferir não só maior interpretação à conceituação da escravidão moderna e aos seus elementos, mas também aos direitos violados. À luz disso, Cançado Trindade (1993, p. 53) corrobora a perspectiva de associação entre Direito doméstico e externo como fonte de proteção da dignidade, na medida em que se fomenta a implementação de um cenário de maior proteção ao povo do Estado-parte. Nesse olhar, tem-se que: Com a interação entre o Direito Internacional e o Direito interno, os grandes beneficiários são as pessoas protegidas. [...]. No presente contexto, o Direito Internacional e Direito interno interagem e se auxiliam mutuamente no processo de expansão e fortalecimento do direito de proteção do ser humano. Assim, edifica-se o embasamento para a ação positiva do Estado no sentido de legislar sobre normas penais de combate à escravidão moderna, modelando novos núcleos tipificadores a fim de atualizar o arcabouço jurídico interno com os compromissos e tutela internacionais de combate a essa forma de labor. Nessa toada, linha de raciocínio semelhante à de Cançado é articulada por André de Carvalho Ramos (2014, p. 267) quando, reconhecendo a autonomia e soberania do Estado por expressar sua vontade a partir de atos normativos, afirma que tais atos devem estar em consonância com seu compromisso e engajamentos internacionais estabelecidos. Isto é, transpondo-se tal pensamento para o contexto da ação positiva do Estado no cenário da escravidão contemporânea, a formulação de normas deve V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 57 coincidir necessariamente com o plano jurídico internacional para findar omissão ou negação estatal, pavimentando os fossos entre a legislação doméstica e internacional. À luz dessa ótica, considerando-se a existência sistema jurídico internacional que já consolidou seu processo de internacionalização dos direitos humanos, Piovesan (2010, p.353-354) ressalta que o sistema jurídico interno e externo se interagem e se complementam, adotando a primazia da pessoa humana. Vê-se, então, a conjugação dessas duas ordens como finalidade de construir e promover estruturas jurídicas de “maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais”. Inclusive, há instituição de proteção adicional desses direitos a partir de mecanismos de regulação do Estado, quando este se revela omisso ou falho na positivação de direitos e liberdades fundamentais, pautados na responsabilização perante a comunidade internacional. 2 O DISPOSITIVO PENAL ARGENTINO DE COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO E SUA RELAÇÃO COM OS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS RATIFICADOS PELA ARGENTINA Para compreender a influência dos tratados internacionais de direitos humanos sob a ordem penal, é imprescindível reconhecer que, no ordenamento jurídico argentino, a Carta Magna, no artigo 75, inciso XXII, garante que esses tratados possuem hierarquia constitucional, devendo, assim, reger as normas hierarquicamente inferiores, como as leis ordinárias. No tocante ao Direito Penal argentino, como abordado anteriormente, o panorama penal argentino de combate ao trabalho escravo contemporâneo sofreu modificações pela Lei n. 26.842/2012, que, abrangendo a redação do dispositivo e a tutela penal, tipificou novos quatro núcleos penais: “esclavitud” e “cualquier modalidad”, bem como “trabajos o servicios forzados” e “matrimonio servil”. Como indica a doutrina argentina, embora não haja uma efetiva concepção unitária sobre o entendimento acerca do elemento jurídico liberdade, o artigo 140 do Código Penal da Argentina traz a tutela penal desse bem jurídico, que deve interpretado “en el sentido que establece el artículo 15 de la Constitución V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 58 Nacional9 y los tratados internacionales que tiene jerarquía constitucional.” (PAZ; LOWRY, 2013, p. 4). Nesse sentido, portanto, o trabalho considerará que a liberdade engloba una amplitud de definiciones y puede ser utilizado en una pluralidad de sentidos, a efectos de configurar el bien jurídico protegido por la norma consideramos que la nota definitoria está dada porque en una sociedad civilizada la dignidad, la personalidad y la libertad se consideran atributos esenciales de la persona humana, por lo que la esclavitud y la servidumbre sólo pueden ser interpretadas como degradantes. (PAZ; LOWRY, 2013, p. 5). Isto é, o entendimento acerca da liberdade tutelada deve permear não só campo constitucional, com destaque à inadmissibilidade da vedação legal da liberdade a partir proibição de contratos de compra e venda de pessoas, mas também o campo internacional de compreensão dinâmica, relacionada à dignidade humana, o qual atinge tanto a esfera locomotiva quanto a pessoal. À luz disso, considerando-se que o Direito Penal ergue-se no sentido de proteção de bens jurídicos essenciais assegurados constitucionalmente10, consolida-se a relação entre a interpretação internacional acerca dos bens jurídicos violados pelo trabalho escravo contemporâneo e a ampliação da tutela penal doméstica em relação a esse crime; afinal a ratificação de tratados internacionais traz consigo extensos compromissos do Estado- parte, no sentido de monitoramento das violações de direitos humanos, formulação de relatórios, implementação de normas, entre outros. Dessa forma, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), que traz expressa no, art. 8º, a proibição à escravidão, à servidão e aos trabalhos forçados, aborda também uma série de compromissos que o Estado argentino tem que empreitar. Flávia Piovesan (2010, p. 165) corrobora essa ideia ao afirmar que cabe ao Estado-parte estabelecer um sistema jurídico capaz de reagir com eficácia às violações de direitos civis e políticos, de modo que devem ser estabelecidas obrigações de natureza negativa e positiva. 9 Por exemplo, Declaração Universal de Direitos Humanos, 1948, art. 4; Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, 1956, art. 1; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, 1966, art. 8; Convenção Europeia de Direitos do Homem,1950, art. 4; Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional, 1998, art. 7; Convenção no 182 da Organização Internacional do Trabalho, 1999, art. 3; Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, 1981, art. 5; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969, art. 6. 10 Luiz Regis Prado (2005, p. 76) concebe que bem jurídico “é um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como essencial à coexistência e desenvolvimento do homem e, por isso, jurídico-penalmente protegido” V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 59 Na mesma linha de raciocínio, encontra-se a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), que impõe compromissos à Argentina, de modo a solidificar uma observância aos direitos humanos. Em seu art. 2º, é expresso que, caso o exercício de liberdades e direitos elencados pela Convenção, o Estado-parte deve adotar medidas legislativas ou de outra natureza com o intuito de torna-los efetivos. A fim de esmiuçar tal raciocínio, a exploração de cada núcleo tipificador presente no artigo 140 facilitará a compreensão da influência das normas internacionais no combate penal ao trabalho escravo contemporâneo. 2.1 Núcleo “esclavitud” No tocante ao núcleo “esclavitud”, a doutrina argentina (PAZ; LOWRY, 2013, p. 6) a qualifica como uma forma de trabalho forçado, de modo a vítima é obrigada a realizar qualquer tarefa, econômica ou não, por tempo indeterminado, sendo, portanto, objeto de controle absoluto por um indivíduo ou por um grupo. A definição atribuída pela doutrina traz consigo uma perspectiva muito semelhante à caracterização da escravidão pela Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições Práticas Análogas à Escravatura (1956), no artigo 7º, parágrafo 1º: “Escravidão, tal como foi definida na Convenção sobre a Escravidão de 1926, é o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou parte dos poderes atribuídos ao direito de propriedade, e "escravo" é o indivíduo em tal estado ou condição”. Isto é, a existência de uma relação de posse e propriedade entre o autor e a vítima do delito preconiza necessariamente uma relação de controle, que desemboca na obrigação da vítima em realizar atividades outorgadas. 2.2 Núcleo “servidumbre” A respeito do núcleo “servidumbre”, não obstante estar vinculado à redação do dispositivo desde sua instituição desse Código Penal, sua interpretação atual, no âmbito jurídico argentino, pauta-se numa visão construída pela consolidação da internacionalização dos direitos humanos. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 60 Assim sendo, levando-se em consideração a ratificação de tratados protetores de direitos relacionados ao campo laboral, interpreta-se que […] de acuerdo a lo previsto en la Declaración Universal de Derechos Humanos y el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, que el término servidumbre engloba las condiciones de trabajo o la obligación de trabajar o prestar servicios de que la persona en cuestión no puede escapar y que no puede modificar. (PAZ; LOWRY, 2013, p. 7).11 2.3 Núcleo “bajo qualquer modalidade” Com destaque, uma importante interpretação evolutiva acerca da liberdade tutelada pelo núcleo “bajo qualquer modalidad”, o qual faz referência às práticas análogas à escravidão e servidão, refere-se ao fato de que essas práticas são definidas como […] la explotación económica de otra persona sobre la base de una relación real de dependencia o coerción, conjuntamente con la privación grave y de largo alcance de los derechos civiles fundamentales de esa persona, y esas prácticas abarcan la servidumbre por deudas, la servidumbre de la gleba, el matrimonio forzado o servil y la explotación de niños y adolescentes. (PAZ; LOWRY, 2013, p. 7). Sendo assim, tal definição evidencia a ausência de necessidade de restrição à liberdade locomotiva para configurar o tipo penal, de modo que a violação à liberdade pessoal do indivíduo e a outros direitos fundamentais -vida, saúde, trabalho digno, entre outros - basta para qualificar a conduta como o crime, nos termos do artigo 140. Evidencia- se, nessa toada, que a redução à condição análoga à de escravo abrange uma dinamização interpretativa do bem jurídico liberdade, no sentido de que essa conduta desemboca na limitação da pessoa humana em razão de relação de dependência ou coerção da vítima, não única e exclusivamente em virtude da restrição locomotiva. Nesse raciocínio, fruto de uma relação jurídica entre Direito doméstico argentino e Direito Internacional, a ampliação semântica acerca 11 Esse dispositivo aborda a proibição constitucional à escravidão. Nesse sentido, tem-se: “art. 15º - En la Nación Argentina no hay esclavos: Los pocos que hoy existen quedan libres desde la jura de esta Constitución; y una ley especial reglará las indemnizaciones a que dé lugar esta declaración. Todo contrato de compra y venta de personas es un crimen de que serán responsables los que lo celebrasen, y el escribano o funcionario que lo autorice. Y los esclavos que de cualquier modo se introduzcan quedan libres por el solo hecho de pisar el territorio de la República.” V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 61 da liberdade tutelada pelo dispositivo, desembocou na compreensão de que a submissão voluntária às figuras reprimidas pelo art. 140 do Código Penal não exime os autores, cooperadores e outras figuras humanas das suas responsabilidades penais advindas do ato criminal. Isto é, Cierto sector de la doctrina sostiene que la reducción no implica necesariamente la privación de libertad física de la víctima, pues el tipo penal no resguarda la incolumidad de la libertad de desplazamiento de la persona sino que el ámbito de tutela proporcionado por esta norma alcanza la condición de dignidad y libertad inherente a ella.. (PAZ; LOWRY, 2013, p. 8) 2.4 Núcleo trabajos o servicios forzados Sobre o núcleo “trabajos o servicios forzados”, nota-se intensa influência do ordenamento jurídico internacional na sua interpretação e materialização penal, principalmente em virtude do fato de que não há, na legislação argentina, a definição de trabalho ou serviço forçados, o que “demanda el análisis de varios convenios internacionales para poder interpretar dichos conceptos”. (PAZ; LOWRY, 2013, p.10) Diante disso, segundo a Convenção n. 29 da Organização Internacional do Trabalho (1930), a expressão trabalho forçado faz referência ao trabalho ou serviço exigido e obrigatório para o qual a vítima não se oferece voluntariamente e pelo qual está sujeita a qualquer sanção caso houver descumprimento da ordem (art. 2ª, I). Tem-se, nesse sentido, que a concepção acerca do trabalho forçado abarca dois núcleos caracterizadores: ausência de voluntariedade e violação à liberdade do indivíduo. À luz disso, o trabalho forçado é proibido pela OIT no sentido de particulares imporem tal condição a outrem, mas a Organização abre margem para a imposição dessa forma de labor pelo Estado, nas condições do art. 2º, II, e da Convenção n. 105. Isto é, a imposição de um labor forçado pelo Estado é legitimada para fins públicos, a título excepcional, pelo qual deve-se receber uma remuneração adequada. Nessa perspectiva, então, […] la figura típica prevista por el artículo 140 de nuestro ordenamiento represivo debe ser interpretada en el sentido de que lo que se castiga es la reducción a la esclavitud o servidumbre de quien fue obligado a realizar los trabajos o servicios forzados y no su mera imposición.. (PAZ; LOWRY, 2013, p.10). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 62 O trabalhoforçado também é alvo de tutela da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) no art. 6ª a partir da sua proibição, apesar de reconhecer a legalidade da imposição dessa forma de labor acompanhada ao cumprimento de pena privativa de liberdade, mas postula que não se deve violar a dignidade e a capacidade física e intelectual do indivíduo preso. CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de internacionalização dos direitos humanos trouxe à tona diversos tratados que tinham como objetivo inculcar, nos Estados- partes, uma efetiva observância aos direitos humanos nacionais ao combater violações a partir de implementação de medidas legislativas, políticas públicas, entre outros meios de efetivação da cidadania das vítimas do trabalho escravo contemporâneo. A tutela internacional desses direitos humanos trouxe consigo a implementação, no arcabouço constitucional e jurídico argentino, a positivação de liberdades e de direitos fundamentais, de modo que criou terreno fértil para a dinamização do artigo 140 do Código Penal da Argentina, via Lei 26.842 de 2012. Desse modo, tal modificação encontra raízes na compreensão de que essa forma de labor ultrapassa a fronteira da violação à liberdade locomotiva e pessoal, atingindo-se também a afronta a diversos outros direitos fundamentais; fato que qualifica a proibição da escravidão como princípio erga omnes, isto é, norma imperativa do Direito Internacional. Sendo assim, adotando-se o princípio da primazia da pessoa humana, os sistemas internacional e doméstico se complementaram na Argentina, de modo a construir e ampliar mecanismos que proporcionam maior efetividade à proteção e promoção dos direitos humanos. Nesse sentido, a Argentina se responsabiliza, perante a comunidade internacional, por implementar maiores tutelas ao artigo 140 do Código Penal em consonância com o Estado Democrático de Direito, a partir da tipificação de novas condutas. É imprescindível, entretanto, que as medidas legislativas de ampliação dos fundamentos para a persecução penal do crime de redução à condição de escravidão contemporânea acompanhem políticas públicas eficazes para o combate desse delito, a fim de aplicar a norma penal de maneira adequada, seguindo princípios constitucionais garantistas e direitos fundamentais. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 63 REFERÊNCIAS ARGENTINA. Código penal. Disponível em: http://servicios.infoleg. gob.ar/infolegInternet/anexos/15000-19999/16546/texact.htm#19. Acesso em: 20 jan. 2017. ARGENTINA . Constitución nacional. Disponível em: http://www. senado.gov.ar/Constitucion/capitulo1. Acesso em: 20 jan. 2017. ARGENTINA . Lei 26.842, de 26 de dezembro de 2012. Disponível em: http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/ anexos/205000-209999/206554/norma.htm. Acesso em: 20 jan. 2017. BORGES, Paulo César Corrêa. 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V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 65 APLICABILIDADE DA TEORIA DA CONTINUIDADE DELITIVA NAS INFRAÇÕES AMBIENTAIS Marilia Rodrigues Mazzola1* 2 Priscylla Gomes de Lima** Roberto Alves de Oliveira Filho3*** INTRODUÇÃO A proteção do meio ambiente é essencial para assegurar a qualidade de vida dos indivíduos. Para tutelar o direito de todos a um meio ambiente sadio, o direito, tanto penal quanto administrativo, contêm previsão de ilícitos e infrações, e impõem sanções na medida dos descumprimentos e violações verificadas. Tal proteção, ainda que necessária, finda por cumular na aplicação de sanções múltiplas incidentes sobre o mesmo fato, configurando lesão ao princípio non bis in idem, que dispõe que não haverá dupla aplicação de sanção pelo mesmo ilícito. Diante dessa problemática, é de se questionar a necessidade da aplicação da Teoria do Crime Continuado na seara das infrações ambientais administrativas. Este apontamento se faz necessário diante do atual cenário de fiscalizações e formalização dos procedimentos administrativos, que mesmo identificando a existência do requisito “continuidade” nas infrações ambientais cometidas, não garante ao infrator a aplicação de apenas uma penalidade ou punição no caso concreto. A caracterização da infração administrativa segundo os ditames penais é consequência de uma interpretação harmônica e coerente dos dispositivos legais, o que deveria ser destacado especialmente quando for aplicada a punição pela prática de infrações ambientais, de modo que se * Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina; Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania – IDCC Londrina; Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Advogada em Araraquara-SP. ** Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Estadual de Londrina; Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Advogada em Londrina-PR. *** Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca; Especialista em Direito Contratual pela Universidade Pontifícia de Salamanca; Pós-graduando lato sensu em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – FDRP USP; Mestrando em Direito Civil pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho - FCHS UNESP Franca. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 66 possa permitir a aplicação de medidas eficientes, que busquem, mais que apenas a penalização do agente infrator, também a resolução do problema. No desenvolvimento dos estudos da problemática apontada, foi realizada pesquisa bibliográfica de doutrina especializada e consulta à jurisprudência pátria, de forma a fundamentar a hipótese lançada, de aplicação da Teoria do Crime Continuado aos casos de infrações ambientais continuadas. Estas pesquisas auxiliaram na compreensão dos conceitos de infração ambiental, procedimento administrativo e crime continuado, segundo os seus requisitos objetivos necessários, de forma a permitir a verificação da possibilidade de aplicação da referida teoria às infrações ambientais continuadas, corroborando a tese lançada neste trabalho.1 DO MEIO AMBIENTE: CONCEITO, TUTELA E PODER DE POLÍCIA O meio ambiente, de acordo com Édis Milaré (2015, p. 139), pode ser distinto em duas perspectivas principais: uma concepção estrita, que considera ser o meio ambiente a expressão do patrimônio natural e as relações com e entre os seres vivos, desprezando tudo que não diga respeito aos recursos naturais; e uma concepção ampla, que considera que o meio ambiente abrange toda a natureza natural e também a natureza artificial, bem como os bens culturais correlatos. José Afonso da Silva considera que o meio ambiente é a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais, que propiciam o desenvolvimento equilibrado da vida humana (1981, p. 435). Seja ele natural ou artificial, o meio ambiente é um bem jurídico transindividual, classificado como direito de terceira dimensão, de modo que toda a coletividade pode dele usufruir, e tem, ao mesmo tempo, o dever de protegê-lo, especialmente através do Poder Público (Ministério Público, Associações, Estado). A proteção do meio ambiente está consolidada em diversos dispositivos da Constituição Federal de 1988, com destaque para a disposição contida no Art. 225, § 3º, que dita que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais ou administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. O Art. 23, inciso VI, disciplina que a proteção do meio ambiente é competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 67 No que tange ao estabelecimento de regras, leis e normas gerais, a competência é cabível à União Federal, com competência suplementar dos Estados, pelo que se depreende que, as entidades federadas consequentemente têm o dever conjunto de fiscalização das condutas dos agentes e de possíveis danos ao meio ambiente, o que configura um dos modos de atuação do poder de polícia. Os danos causados ao meio ambiente serão tutelados por diversos instrumentos jurídicos, a depender da esfera pública que irá supervisionar sua proteção. Nesse sentido, no âmbito do Direito Administrativo, a proteção ambiental será exercida por meio do poder de polícia. Nos termos do Art. 78 do Código Tributário Nacional – CTN, considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, e m razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Segundo o mestre Toshio Mukai (apud LAUS, 2004, p. 421) o poder de polícia, “é a faculdade, inerente à Administração Pública, que esta detém, para disciplinar e restringir as atividades, o uso e gozo de bens e de direitos, bem assim as liberdades dos administrados, em benefício da coletividade”. É um poder administrativo que atua de modo a prevenir infrações, sendo uma forma de observação de comportamentos referentes ao meio ambiente e ainda atua de maneira a reprimir atos lesivos. Poder de polícia é o poder que tem como formas de atuação, entre outras, a fiscalização e também a aplicação da sanção de polícia. Segundo Lazzarini (1997, p. 1684), o poder de polícia é um conjunto de atribuições da Administração Pública, como poder público e indelegável aos entes particulares, embora possa estar ligado àquela, tendente ao controle dos direitos e liberdades das pessoas, naturais ou jurídicas, a ser inspirado nos ideais do bem comum, e incidente não só sobre elas, como também em seus bens e atividades. O implemento de medidas legais pelo Poder Público com vistas à proteção ambiental só se torna possível administrativa, civil e penalmente, pelo regular exercício do poder de polícia. Lazzarini (1997, p. 170) ainda preceitua que o ato de polícia administrativa goza de atributos que são o discricionarismo, a auto- V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 68 executoriedade e a coercibilidade, e explana que O Poder de Polícia há de ser exercido dentro dos limites impostos pela lei, pela realidade e pela razoabilidade, sob pena de resvalar para a arbitrariedade a autoridade que não observe tais limites, com a consequência jurídica decorrente do seu abuso de autoridade, por excesso ou desvio de poder (Lazzarini, 1997, p. 170). As sanções administrativas originadas do poder de polícia devem estar expressamente previstas em lei, sob pena de recair o administrador em desvio do poder. Além do princípio da legalidade, deve haver correspondência entre as tipologias de medidas acautelatórias com as espécies de sanção. As sanções administrativas, para que sejam eficazes, devem ser proporcionais, a fim de evitar um excesso de punição aos infratores. Além dos requisitos trazidos pela lei (gravidade do fato, antecedentes do infrator e situação econômica do autuado), devem ser considerados também os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e do devido processo legal, garantidos constitucionalmente. 2 AS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS Tratando-se de normatização da responsabilidade por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, disciplinou as infrações administrativas no Capítulo VI, em seus Arts.70 a 76, tendo sido regulamentada pelo Decreto no 3.179/99. Trata- se de lei federal que poderá ser suplementada pelos Estados (Art. 24, § 2º, da Constituição Federal de 1998) e pelos Municípios (Art. 30, II, da Constituição Federal de 1998). Vladimir Passos de Freitas (2005, p. 79-80) pontua que, devido às leis que tratam do meio ambiente serem redigidas de maneira pouco clara, nem sempre é tarefa fácil distinguir um ilícito penal de um ilícito administrativo: para que haja a distinção correta, deve-se observar se o tipo penal refere-se a crime ou contravenção; se há referência à penalidade de prisão, a figura é criminosa, mas se há referência à penalidade de multa, suspensão de atividade ou outra medidas análogas, a infração provavelmente será administrativa. Mesmo assim, é possível delimitar um conceito para a infração administrativa. Entende-se por infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 69 proteção e recuperação do meio ambiente, cuja consequência é a punição através de sanções. As sanções são os meios coercitivos de que o ordenamento jurídico dispõe para impor sua ordem, para que seja dado fiel cumprimento à defesa dos bens jurídicos positivados na legislação. Segundo Lazzarini (1997, p. 170) a pena de polícia, limitada à esfera administrativa e prevista taxativamente na legislação de regência da atividade policiada, tem sentido de castigo, ainda que por imposição pecuniária, revelando-se como intervenção punitiva do Estado sobre as atividades e as propriedades particulares dos administrados, sendo aplicada, unilateral e imperativamente aos infratores16, por quem tenha competência legal para tanto. Assim, sanção administrativa ambiental é a pena imposta administrativamente quando violada norma de regência da situação ambiental policiada (LAZZARINI, 1997, p. 170-171). As sanções administrativas ambientais podem ser classificadas em (a) sanções pecuniárias, como as multas aplicadas em razão da não-observância das normas de proteção ambiental; e (b) sanções objetivas, como as que envolvem bens e/ou serviços como apreensões, cancelamento do registro, cancelamento de matrículade pescador profissional, interdição do barco, embargos de iniciativas particulares, etc. A sanção administrativa ambiental deve estar expressamente prevista em lei, aplicando-se, analogicamente, o princípio da reserva legal do Direito Penal, disposta no Art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal.1 Qualquer sanção, por se tratar de uma punição, deve ser precedida de regular procedimento legal, onde devem ser respeitados os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Segundo Lazzarini (1997, p. 171), a acusação será formulada formalmente mediante Auto de Infração Ambiental, que será motivado com a narração circunstanciada da infração verificada e seu enquadramento na legislação ambiental, de tudo notificado o acusado para que possa produzir, no prazo legal, sua ampla defesa, contraditando a acusação – esta, sendo ato administrativo, tem o atributo da presunção de veracidade e de legitimidade (princípio da veracidade e da legitimidade dos atos administrativos), só podendo ser infirmada por prova cabal em sentido contrário a ser produzida pelo acusado –, seguindo-se a fase probatória 1 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 70 se pertinentemente requerida, sob pena de cerceamento de defesa, e, finalmente, a decisão final que a autoridade ambiental competente entenda de dar à hipótese examinada no procedimento administrativo ambiental, sempre com o recurso previsto em lei e que o caso comporte. Da mesma forma, a punição deve ser razoável e respeitar os princípios constitucionais. Afinal, se o Direito Penal, ramo mais severo do direito, cujo objetivo em apertada síntese é proporcionar a proteção os bens jurídicos fundamentais e proibir determinadas condutas, sob ameaça de sanção penal, deve seguir as premissas constitucionais para respeitar os direitos daqueles que serão sancionados, da mesma forma o Direito Administrativo, no que tange a seu Poder de Polícia deve manter as mesmas diretrizes. Assim, tem-se que a aplicação de sanções, no âmbito do procedimento administrativo, deve ser motivada, sob pena de anulabilidade. 3 CRIME CONTINUADO E APLICABILIDADE DA TEORIA DA CONTINUIDADE DELITIVA NAS INFRAÇÕES AMBIENTAIS A observância do princípio da proporcionalidade na Administração assume especial relevância quando se trata das sanções administrativas no âmbito do direito ambiental, pois vão se confrontar, nesse plano, direitos individuais e coletivos. Isso porque, com a utilização do poder de polícia, os órgãos estatais, sob o fundamento de proteger direitos coletivos, muitas vezes afrontam direitos individuais. Apesar da proporcionalidade das penas e a observância dos direitos individuais não estar claramente tratada na mencionada lei ou em outra legislação que trate das infrações ambientais, a sua aplicação em face das sanções administrativas ambientais deve levar a uma interpretação que consiga, ao mesmo tempo, salvaguardar o bem jurídico tutelado (meio ambiente), sem lesar desarrazoadamente o infrator. Se o administrador se defronta com um fato que pode ser punível por outro meio menos oneroso ao particular, deverá necessariamente escolhê-lo. E é justamente a problemática trazida por este trabalho. Diante de uma situação de continuidade de infração, cabe ao administrador, em face do princípio da proporcionalidade e da interpretação analógica, a aplicação do referido instituto, pois será esta a resposta mais adequada para a proteção eficaz do bem jurídico, sem lesividade extrema ao particular, de modo a não lhe malferir direitos individuais. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 71 No sistema americano de common law, a continuidade delitiva é justificada em razão da eficiência administrativa. Segundo a regra criminal 8 de Ohio, a continuidade delitiva pode ser assim definida (GIANNELLI, 1997, p. 1): Rule 8(A) provides that two or more offenses may be charged together in one indictment, information, or complaint if the offenses (1) are of the same or similar character, (2) are based on the same act or transaction, (3) are based on two or more acts or transactions constituting parts of a common scheme or plan, or (4) are part of a course of criminal conduct.2 Apesar da legislação federal concernente à ação punitiva administrativa já ter incorporado o conceito de infração continuada, o instituto deveria ser interpretado e conceituado à luz da legislação pátria como um todo. Afinal, se a própria legislação ambiental federal (Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998) dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e ainda, em seu art. 79 afirma que há a ela se aplica subsidiariamente as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal, de certo que a aplicação de um instituto definido no Código Penal não só é razoável, como possível. Neste sentido, considerando ainda o princípio da isonomia, caberia ao ente fiscalizador a imposição de punição menos gravosa ao infrator, pois, no que tange à caracterização da infração administrativa, deveria ser dado tratamento igualitário, sopesando o contido no Art. 71 do Código Penal.3 A caracterização da infração administrativa segundo esses ditames é, na verdade, consequência de uma interpretação harmônica e coerente 2 Em tradução livre: A regra 8 estabelece que duas ou mais ofensas podem ser perquiridas em um único indiciamento, informação ou reclamação se as infrações (1) sejam as mesmas ou de características similares (2) sejam baseadas no mesmo ato ou infração (3) sejam baseadas em dois ou mais atos ou transações constituindo partes de um plano ou esquema comum ou (4) sejam parte do curso de uma conduta criminosa. 3 Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. (Redação dada pela Lei no 7.209, de 11.7.1984). Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.(Redação dada pela Lei no 7.209, de 11.7.1984). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 72 dos dispositivos legais, principalmente quando se considera a aplicação de sanção a um ato infracional. Segundo a doutrina de Cezar Roberto Bitencourt. (2007, p. 594): Ocorre crime continuado quando o agente, mediante mais de uma conduta (ação ou omissão), pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, devendo os subsequentes, pelas condições do tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, ser havidos como continuação do primeiro. São diversas ações, cada um em si mesma criminosa, que a lei considera, por motivos de política criminal, como um crime único. A regra do crime continuado deve ser aplicada tendo em vista o caso concreto e sob inspiração das mesmas razões da política criminal que o inspiram. Consoanteos ensinamentos de Rogério Greco. (2003, p. 662), [...] Não há, portanto, como determinar o número máximo de dias ou mesmo de meses para que se possa entender pela continuidade delitiva. Deverá, isto sim, segundo entendemos, haver uma relação de contexto entre os fatos, para que o crime continuado não se confunda com a reiteração criminosa. Em que pese a impossibilidade de ser delimitado objetivamente um tempo máximo para a configuração do crime continuado, o STF já decidiu: 'Quanto ao fator 'tempo' previsto no art. 71 do Código Penal jurisprudência sedimentada do Supremo Tribunal Federal é no sentido de observar-se o limite de trinta dias que, uma vez extrapolado, afasta a possibilidade de se ter o segundo crime como continuação do primeiro. Precedentes - Habeas Corpus no 62.451, relatado pelo Min. Aldir Passarinho perante a Segunda Turma, cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça, de 25 de abril de 1985, à página 5.889, e Habeas Corpus no 69.305, do qual foi Relator o Min. Sepúlveda Pertence, cujo acórdão, na Primeira Turma, restou veiculado no Diário da Justiça de 5 de junho de 1992.' (STF – HC 69.896- 4 - Rel. Marco Aurélio - DJU 2/4/1993, p. 5.620). No que tange à delimitação temporal do crime continuado (com aplicação analógica na infração continuada) verifica-se que o Egrégio Supremo Tribunal Federal4, em paradigma jurisprudencial, adotou como razoável o prazo de 30 (trinta) dias para o reconhecimento do crime continuado, de forma que uma vez extrapolado este período, haveria 4 Precedentes – HC no 62.451, Relator Min. Aldir Passarinho, 2ª Turma, acórdão publicado no Diário da Justiça, de 25/04/1985, p. 5.889, e HC no 69.305, Relator Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, veiculado no Diário da Justiça de 05/06/1992. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 73 o afastamento da possibilidade de se ter uma segunda infração como continuação da primeira. Destaque-se que o poder público concede um elastério abrangente para os crimes continuados, e a jurisprudência tem se posicionado favoravelmente ao fixar prazo de 30 (trinta) dias como caracterizador de continuidade da primeira infração. Assim, quando estão presentes todos os demais requisitos de caracterização da infração continuada, por certo que sua adoção é acertada, e a aplicação de somente uma multa é medida justa a ser adotada. Apesar do pequeno reconhecimento pela Administração, o Poder Judiciário já adotou posicionamento favorável à aplicação da teoria da continuidade às infrações administrativas. Neste contexto, o Poder Judiciário só deve fazer controle posterior ao ato administrativo punitivo e, mesmo assim, se provocado pelo destinatário do ato. Partindo dessa premissa, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: Ementa: Administrativo. SUNAB. Lei Delegada no 4/62. Infrações Continuadas. Multiplicidade de Autos. 1. As infrações sequenciais, violando o mesmo objeto da tutela jurídica, guardando afinidade pelo mesmo fundamento fático constituindo comportamento de feição continuada, estão sujeitas à uma única sanção, aplicada e graduada conforme a sua intensidade, reiteração e consequências danosas à economia popular. Tipificação que deve ser demonstrada em um só auto de infração. 2. Precedentes jurisprudenciais iterativos. 3. Recurso não provido. (Primeira Turma, REsp n. 131. 644/ SE, relator Ministro Milton Luiz Pereira, DJ de 22.5.2000). Também é assim o entendimento, por exemplo, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, de que os atos da mesma natureza, praticados com o mesmo desígnio, com intervalos exíguos de tempo, devem ser considerados uma única conduta e não infrações autônomas: ADMINISTRATIVO. SUNAB. INFRAÇÃO CONTINUADA. CUMULAÇÃO DE MULTAS. DESCABIMENTO. RECURSO PARCIAL PROVIMENTO. 1. Insurge-se a recorrente contra sentença que reconhecendo a natureza de infração continuada reduziu a aplicação da multa, anteriormente fixada individualmente para cada uma das cinco infrações autuadas, para 1/5 do valor inicialmente excutido. 2. Reputa-se incensurável a assentada monocrática no que pertine à caracterização do caráter continuado das infrações, mercê das circunstâncias materiais em que se V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 74 perpetraram as infrações autorizarem a ilação dessumida. 3. Deveras, a constatação de se tratar de infrações da mesma espécie conjugada à evidência de terem sido praticadas no mesmo local, com idêntica maneira de execução e com intervalos exíguos de tempo, concorrem de forma inexorável para a configuração, por analogia à regra inserta no artigo 71, caput, do CP, de hipótese de infração continuada. Precedentes do STJ e desta Corte Regional. 4. Carece de reparos a sentença fustigada apenas quanto à exasperação da pena, porquanto, tratando-se de infração de cunho continuado, aplica-se, em analogia ao disposto no art. 71, caput, do CP, a punição de uma só das infrações acrescida de um sexto a dois terços. 5. Deste modo, e considerando o número de infrações (cinco), declara-se como devido o valor de 1.872,50 UFIR, correspondente a punição de uma só das infrações acrescida do percentual de um terço. 6. Recurso parcialmente provido. (TRF-5 - AC: 429935 PE 2006.83.05.000257-2, Relator: Des. Federal Francisco Cavalcanti, Julgamento: 13/12/2007, 1ª Turma, Publicação Diário da Justiça: 28/02/2008 - Página: 1246 - No: 40 - Ano: 2008). Grifo nosso ADMINISTRATIVO. FISCALIZAÇÃO DO CONGELAMENTO DE PREÇOS. SUNAB. MULTIPLICIDADE DE AUTUAÇÕES PARA UM MESMO ILÍCITO, REITERADAMENTE PRATICADO. INFRAÇÃO CONTINUADA. REDUÇÃO DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS ANTE A SIMPLICIDADE DA CAUSA. ART. 20, PARÁGRAFO 4º, DO CPC. 1. A reiterada prática de atos ilícitos de idêntica natureza, impulsionados pelo mesmo desígnio, e praticados dentro de curtos intervalos de tempo, caracteriza infração continuada, a ensejar uma única autuação. Aplicação, por analogia, da teoria do crime continuado, desenvolvida no direito penal. 2. Ante a simplicidade da causa, há muito enfrentada pelos Tribunais do país em sentido favorável ao Autor/Apelado, mister a redução dos honorários advocatícios, com fulcro no art. 20, parágrafo 4º, do CPC. Apelação improvida e Remessa Oficial parcialmente provida. (TRF- 5 - AC: 393418 PE 0044439 13.2006.4.05.0000, Relator: Des. Federal Geraldo Apoliano, Julgamento: 30/11/2006, 3ª Turma, Publicação: Diário da Justiça - 13/03/2007 - Página: 581 - No: 49 - Ano: 2007). Grifo nosso. Verifica-se que a caracterização da infração continuada deveria ser suficiente para anular os autos que descrevem a segunda infração, e ensejar a aplicação de multa singular. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 75 Afinal, segundo Carvalho et al (2013, p. 432), ninguém pode ser sancionado duas vezes pela mesma infração, pois a aplicação de outra sanção pelo mesmo ramo do direito importaria em uma reação exagerada do ordenamento jurídico, o que significaria uma autêntica ruptura da proporcionalidade. Por isso, em se tratando de mesmas condições de tempo, lugar, forma de execução, espécie, entre outros fatores, ainda que sejam registradas em infrações administrativas ou autos diversos, não se poderia tratar estas infrações como isoladamente praticadas e puni-las separadamente, sob pena de configuração de bis in idem, pois a suposta infração subsequente é na verdade continuação da primeira, e deveria assim ser considerada. 4 DO PRINCÍPIO NO BIS IN IDEM NA APLICAÇÃO DE SANÇÕES REFERENTES À INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS AMBIENTAIS A não aplicação da teoria da infração continuada pode levar ao bis in idem, princípio geral de direito que veda a duplicidade de sanções. O bis in idem é a repetição (bis) da punição sobre a mesma conduta faltosa (in idem), o que é vedado e torna nulo o ato sancionadorrepetitivo. (LAZZARINI, 1997, p. 171). O princípio do non bis in idem é interligado com o princípio da proporcionalidade, na medida em que se deduz que a aplicação de uma sanção como forma de punição pela realização de uma infração, esgotaria a reação punitiva: ocorreu uma infração, aplicou-se uma sanção correspondente. Como destaca Fábio Medina Osório (2010, p. 128), esse princípio "está constitucionalmente conectado às garantias da legalidade, proporcionalidade e, fundamentalmente, ao devido processo legal, implicitamente presente, portanto, no texto da CF/88". Assim, tem-se que ninguém deveria ser punido duas vezes pelo cometimento da mesma infração, pois a aplicação de dupla sanção caracterizaria uma reação exagerada do ordenamento jurídico, rompendo com a proporcionalidade almejada. Neste sentido, Luiz Regis Prado (2013, p. 95) pontua que [...] a proteção de bens jurídicos não é função exclusiva do Direito Penal, e, neste último sentido, o Direito Administrativo desempenha um papel de suma importância, especialmente no que V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 76 tange à tutela jurídica do ambiente. Dessa forma, a norma administrativa não visa apenas integrar a norma penal ambiental, em uma relação de acessoriedade, mas também instituir os ilícitos administrativos. Na seara do direito ambiental, a discussão acerca de existência de bis in idem no que concerne à aplicação de sanções múltiplas para o mesmo fato gerador encontra-se pacificada nos seguintes termos: se as sanções aplicadas foram exaradas por ramos distintos do ordenamento jurídico, tais como o direito penal e o direito administrativo, não restaria caracterizado o bis in idem. (CARVALHO et al, 2013, p. 453). Porém, no presente trabalho está-se diante da hipótese de aplicação de sanções múltiplas oriundas da esfera administrativa, o que implica na configuração do instituto. Neste sentido, Mello (2007, p. 210) assevera que o princípio em comento "impede a Administração Pública de impor uma segunda sanção administrativa a quem já sofreu, pela prática da mesma conduta, uma primeira (sanção)", de maneira que não seria possível a aplicação de nova sanção pelo mesmo fato gerador. Questão muito relevante é a similaridade das condutas infracionais dispostas tanto na Lei no 9.605/98 quanto no Decreto 6.514/08, que acabam por levar ao duplo sancionamento quando verificadas as condutas ali descritas, importando em punição excessiva ao agente infrator, em clara violação aos princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade. Desta feita, há que se considerar a adequação na conduta fiscalizadora e punitiva dos órgãos da administração pública, de modo a evitar a configuração de abuso do poder regulatório do Estado. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para a regularidade de desenvolvimento do processo administrativo e justiça das decisões é essencial o bom emprego dos princípios jurídicos sobre ele incidentes, aí devendo ser considerados, especialmente, os princípios constitucionais. Afinal, representa um direito fundamental do cidadão frente a uma possível reação punitiva desproporcional. Sob este prisma, a condução do processo administrativo exige das autoridades julgadoras observância às garantias inalienáveis (devido processo legal, com todos seus consectários) que, se negligenciadas, poderão acarretar nulidade absoluta do procedimento e até mesmo das sanções aplicadas, pois se assim não for feito, decerto haverá ofensa a lógica jurídica e à interpretação sistemática da Constituição. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 77 Deste modo, as infrações ambientais administrativas, em face da interpretação analógica, bem como da regra da subsidiariedade, trazida na Lei no 9.605, alcançam todas as normas e princípios que regem o Direito Penal Brasileiro, inclusive o Art. 71 do Código Penal, que trata de crimes continuados, chegando-se à figura da infração ambiental continuada. Assim, quando se tratam de duas ou mais infrações administrativas que, em decorrência das condições de tempo, lugar, forma de execução e outros fatores, podem ser consideradas de mesma espécie, deveriam ser vistas como continuações da infração original, sendo, portanto, as infrações posteriores estimadas como agravantes ou qualificadoras da infração administrativa inicial. Desta forma, não é possível tratar estas infrações como incidentes isolados, praticados de forma separada, com a consequente aplicação de múltiplas punições individualizadas, sob pena de se estar dispensando um tratamento mais gravoso ao infrator, em flagrante desrespeito ao disposto no Código Penal Brasileiro e ao princípio da proporcionalidade, da Constituição Federal. REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. CARVALHO, Érika Mendes de; CARDOSO, Sônia Letícia de Méllo; SANTIAGO, Nestor Araruna. Duplicidade de sanções ambientais e o princípio non bis in idem. Revista Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 2, p. 431- 469, mai./ago. 2013. FREITAS, Vladimir Passos de. Direito administrativo e meio ambiente. 3 ed. rev. e ampl. Curitiba: Juruá, 2005. GIANNELLI, Paul. Joinder & serverance of offenses. Public Defender Reporter. v. 19, n. 3, 1997, p. 1-6. Disponível em: http://scholarlycommons.law.case.edu/cgi/viewcontent. cgi?article=1324&context=faculty_publications. Acesso em: 28 mar. 2017. LAUS, Audrey dos Santos. A sanção administrativa ambiental e o princípio da proporcionalidade. Novos Estudos Jurídicos, v. 9, no 2, p. 471-434, Mai/Ago. 2004. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 78 LAZZARINI, Álvaro. Sanções administrativas ambientais. Revista de Inf. Legislativa. Brasília, ano 34 n. 134, 1997. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/233/r134-14. PDF?sequence=4. Acesso em: 24 mar. 2017. MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 79 A VINCULAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DOS ESTADOS DEMOCRÁTICOS SOCIAIS DE DIREITO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS Dailson Soares de Rezende1* Maria Eugênia Ugucione Biffi2** INTRODUÇÃO Apesar dos avanços históricos na aplicação dos direitos humanos, ainda persistem divergências quanto à vinculação das políticas públicas dos Estados Democráticos Sociais de Direito aos direitos fundamentais sociais. O que se percebe é a utilização das políticas públicas como meio de obtenção de interesses particulares e compra de apoio político. Assim, pesquisar sobre a temática da vinculação das políticas públicas dos Estados Democráticos Sociais de Direito aos direitos fundamentais sociais demanda necessariamente analisar a história do próprio Estado e da afirmação histórica e eficácia dos direitos fundamentais sociais. Nesse diapasão, a problemática do presente estudo reside na análise da vinculação das politicas públicas no Estado Democrático Social de Direito aos direitos fundamentais sociais, sob o enfoque de efetivação dos direitos humanos como um sistema jurídico de proteção a todos os membros da sociedade, por meio de análise bibliográfica sobre a temática,levando-se em conta as limitações próprias de extensão e profundidade do presente estudo, não sendo a pretensão esgotar a temática abordada, mas aclarar e auxiliar nos debates e estudos de pesquisadores e demais interessados. * Advogado, mestrando em ciências jurídicas pela UNIBE, especialista em licitações e contratos administrativos pelo Centro Universitário UNISEB, membro do Conselho Regional de Prerrogativas – 6ª Região - OAB - Seção São Paulo e autor de livros jurídicos pela editora Jus Podivm. ** Advogada, mestre em Cooperação Internacional e Gestão de Políticas Públicas, Programas e Projetos de Desenvolvimento pelo Instituto Universitário Ortega y Gasset – Madrid, especialista em Processo Civil pela USP- Ribeirão Preto, membro da Comissão de Diversidade Sexual da 12ª Subseção da OAB/SP. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 80 1 A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA, EFICÁCIA JURÍDICA E EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS Após as transformações ocorridas no século XVIII, percebeu- se que de nada adiantaria a liberdade e igualdade formais (denominada primeira geração dos Direitos Humanos) se não houvesse um aparato mínimo para o exercício real dos direitos fundamentais individuais, que limitassem a exercício do poder em detrimento dos mais fracos. Daí, num processo de exigência dos grupos sociais marginalizados, os direitos sociais ganharam seu espaço. Para Carlos Weis (2012, p.49): A chamada segunda geração dos direitos humanos surge em decorrência da deplorável situação da população pobre das cidades industrializadas da Europa Ocidental, constituída, sobretudo, por trabalhadores expulsos do campo e/ou atraídos por ofertas de trabalho nos grandes centros. Como resposta ao tratamento oferecido pelo capitalismo industrial de então, e diante da inércia própria do Estado Liberal, a partir de meados do século XIX floresceram diversas doutrinas de cunho social, defendendo a intervenção estatal como forma de reparar a iniquidade vigente. Complementa Fábio Konder Comparato (2015, p.66), O reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que a humanidade recolheu do movimento socialista, iniciado na primeira metade do século XIX. O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização. Os socialistas perceberam, desde logo, que esses flagelos sociais não eram cataclismos da natureza nem efeitos necessários da organização racional das atividades humanas, mas sim verdadeiros dejetos do sistema capitalista de produção, cuja lógica consiste em atribuir aos bens de capital um valor muito superior ao das pessoas. A partir dessa necessidade, foram confeccionados diversos diplomas normativos pioneiros na introdução dos direitos sociais a garantir o mínimo existencial dos seres humanos, tais como a Constituição da França (1848), a Constituição do México (1917), a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador (1918), o Tratado de Versalhes (1919 – melhorias das V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 81 condições dos trabalhadores e criação da Organização Internacional do Trabalho), a Constituição da República de Weimar (1919), a Constituição da Espanha (1931) e a Constituição do Brasil (1934), dentre outros. Assim, com a inserção dos direitos sociais em diplomas normativos formais resta agora analisar a força vinculativa de tais direitos perante o Estado e a sociedade como um todo. 1.1 Eficácia jurídica e efetividade dos direitos fundamentais sociais O carácter supranacional aos direitos humanos sociais adveio de sua afirmação histórica concretizada em normativas internacionais e nacionais (principalmente Constituições). Em virtude disso, há necessária conformação dos direitos fundamentais sociais sobre o ponto de vista da dogmática constitucional, de modo que é salutar abordarmos a classificação das normas constitucionais quanto às suas eficácia e aplicabilidade. Os direitos fundamentais sociais são considerados a base e o fundamento da Constituição de um Estado Democrático Social de Direito, por delimitarem o exercício do poder de grupos (Estado ou particulares) que buscam a hegemonia, ao possibilitarem a concreção dos ideais de justiça e dignidade humana, bem como a efetivação dos demais direitos fundamentais dos seres humanos enquanto integrantes de um corpo social em desenvolvimento constante, como bem leciona Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p.63): [...] além da íntima vinculação entre as noções de Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais, estes, sob o aspecto de concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores da igualdade, liberdade e justiça, constituem condição e existência e medida de legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito, tal qual como consagrado também em nosso direito constitucional vigente. Sob o prisma da supremacia da Constituição do Estado Democrático Social de Direito, alguns conceitos jurídicos merecem ser delimitados, para contribuírem com a pesquisa proposta. Eficácia jurídica é a possibilidade de a norma produzir efeitos coercitivos. E eficácia social ou efetividade consiste na aceitação social do comando coercitivo contido na norma jurídica. Explica Ingo Wolgang Sarlet (2015, p.248), V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 82 [...] podemos definir a eficácia jurídica como sendo a possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma vigente (juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de – na medida da sua aplicabilidade – gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social (ou efetividade) pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma (juridicamente eficaz), quanto o resultado concreto decorrente – ou não – desta aplicação. Essa vinculação normativa do Estado e dos membros da sociedade, devido à eficácia jurídica da norma constitucional, possui maior ou menor aplicabilidade, sobretudo quanto à existência de todos os elementos necessários à sua efetivação social. Especificamente sobre a eficácia dos direitos fundamentais sociais, convém relembrar que seu conceito abarca as prestações positivas materiais (saúde, educação, lazer, esporte etc.), e as prestações positivas normativas (disposição de arcabouço jurídico destinado à garantia de direitos individuais necessários à vida social, como, por exemplo, garantir o direito sindical, o direito de greve etc.). No caso brasileiro, via de regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais sociais e econômicos possuem eficácia limitada, de princípios programáticos e aplicação mediata ou indireta. (SILVA, 2013, p.182). Bem resume José Afonso da Silva (2012, p.160), que os efeitos mínimos das normas constitucionais de eficácia limitada, princípio programático e aplicação mediata são: I – estabelecem um dever para o legislador ordinário; II – condicionam a legislação futura, com a consequência de serem inconstitucionais as leis ou atos a que ferirem; III - informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação de componentes do bem-comum; IV – constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; V – condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário; VI – criam situações jurídicas subjetivas, de vantagem ou de desvantagem, o que será visto no capítulo seguinte. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 83 Issosignifica que para a efetividade dos direitos sociais é necessária a abordagem por meio de instrumentos que incluam os elementos faltantes na norma constitucional abstrata, ou seja, todo e qualquer ato estatal deve, obrigatoriamente, complementar os requisitos necessários para a efetividade dos direitos fundamentais sociais, sob pena de afronta à supremacia da Constituição. Assim, mesmo sendo o conteúdo aberto e indeterminado dos direitos fundamentais sociais, os membros da sociedade possuem o direito de exigir a efetivação concreta de um direito fundamental social como pressuposto necessário e mínimo para a efetiva de sua liberdade constitucionalmente prevista, sempre evitando o esvaziamento do direito de seus pares ou mesmo a aniquilação dos valores de organização do Estado. Nesse sentido, faz-se necessário um diagnóstico inicial das reais condições jurídicas e fáticas das demandas sociais. Com isso, o Estado deve formular e estruturar suas ações, estabelecendo metas e objetivos específicos, bem como realizar avaliações periódicas para verificar o alcance e reflexos das suas condutas. As políticas públicas, projetos e estratégias de desenvolvimentos são os instrumentos pelos quais o Estado Social Democrático de Direito concretiza seu dever de efetivar os direitos sociais. Essa temática, contudo, será melhor abordada em tópico específico oportuno. 2 A CONCEPÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO SOCIAL DE DIREITO Nesse sentido, antes de adentrarmos à problemática vigente sobre a elaboração das Políticas Públicas, é de extrema importância compreender como ocorreu a formação do atual Estado Democrático Social de Direito considerando, especialmente, as diversas transformações que o Estado de Direito sofreu ao longo de sua história. Sem desconsiderar as demais classificações e abordagens feitas por diversos estudiosos da teoria geral do Estado, adotaremos as lições atuais do renomado Paulo Bonavides em seu livro Teoria Geral do Estado de 2015. O Estado Moderno, concepção adotada considerando a situação contemporânea, passou por diversas etapas históricas até sua atual roupagem. A própria estrutura e importância do Estado ainda estão em foco e constante mutação. Na antiguidade, o Estado era sinônimo de cidade, enquanto condensação de todos os poderes expressos pelas imposições de vontades nas relações comerciais, sociais e políticas das pessoas e instituições existentes. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 84 Na Idade Média, a ideia de entidade concentradora de poder fora amenizada com a ruína do império romana e a expansão dos feudos, mas ainda sim persistiu a justificação da sobreposição de vontade de um (senhor feudal) sobre os demais seres humanos. Na Renascença, com o termo da Idade Média, a ideia de soberania evidenciou-se, sobretudo, com embate entre o direito de autodeterminação local (soberania dos povos) e a liberdade do mercantilismo globalizador (soberania dos mercados). Esta expansão do poder foi importante para a conversão de um Estado Absoluto ao Estado Constitucional enquanto instituição de poder delimitada e limitada pela Constituição e leis. (BONAVIDES, 2015, p.37-39). O Estado de Direito, ou Estado Constitucional, ainda passou por três modalidades essenciais: Estado Liberal (Estado constitucional da separação de poderes), Estado Social (Estado constitucional dos direitos fundamentais) e Estado Democrático (Estado constitucional da democracia participativa). Não ocorreu ruptura temporal entre as três modalidades essenciais de Estado de Direito, mas sim, metamorfose. (BONAVIDES, 2015, p.47). A terceira modalidade de Estado de Direito ainda está em processo de afirmação, sob o dilema no reforço das ideias liberais, de um capitalismo selvagem, ou no avanço dos direitos fundamentais, na concretização da justiça, igualdade e construção do contínuo desenvolvimento social. “Vive-se nessa terceira idade do constitucionalismo a época constitucional do pós-positivismo, que faz a legitimidade imperar sobre a legalidade, os princípios sobre as regras, a jurisdição sobre a discrição, o valor sobre o fato, a certeza sobre a indeterminação”. (BONAVIDES, 2015, p.148). O dilema desse terceiro Estado de Direito constitui-se na vedação do retrocesso e na concretização da dignidade humana, com vistas ao desenvolvimento da humanidade. Com o constante aperfeiçoamento e legitimidade da terceira modalidade do Estado de Direito, nasce o Estado Democrático Social de Direito, enquanto Estado de Direito que prima pela materialização dos direitos fundamentais sociais, bem como eleva a democracia ao status de direito fundamental. “Em suma, o terceiro Estado de Direito outra coisa não significa senão o Estado social da democracia direta, em que a democracia se concebe, ao mesmo passo, como um direito fundamental da quarta geração”. (BONAVIDES, 2015, p.547). Nesse contexto, bem ressalta Paulo Bonavides (2015, p.547): Com efeito, nesse sentido caminha, em sua derradeira manifestação de perfeiçoamento e legitimidade, o sistema político das sociedades vocacionadas para a legítima V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 85 democracia direta, que não pode ser outra senão aquela indissoluvelmente associada ao conceito de democracia como o mais novo e fundamental direito da pessoa humana, direito síntese, cuja essência consiste em compendiar, numa união inviolável, a justiça, a liberdade e a igualdade. Assim, a partir da premissa atual do papel central dos direitos fundamentais, incluindo a democracia, como elementos constitutivos e fundamentos de legitimidade do Estado Democrático Social de Direito, é possível afirmar que as condutas estatais e ações públicas (políticas públicas) devem estar regidas por normas e estatutos, nacionais ou internacionais, que tenham a finalidade última de garantir e proteger os direitos mínimos existenciais da população, respeitando sempre o princípio da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais. 3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS Dessa forma, torna-se indispensável estudar como estão sendo implantados e elaborados os meios e instrumentos estatais utilizados para a proteção e satisfação dos direitos sociais no atual Estado Democrático Social de Direito. Como bem leciona Marta M. Assumpção Rodrigues (2011, p.78): Jogar o jogo da política democrática, ética, e da justiça social é o desafio que os gestores de políticas públicas têm de enfrentar para planejar, administrar e extrair recursos e formatar políticas redistributivas que busquem promover sociedades mais iguais e mais livres, num contexto mundial de profundas mudanças econômicas, demográficas e ideológicas. Por isso, sabendo a complexidade e profundidade do tema abordado e não pretendendo esgotar as discussões a respeito, como forma de delimitar o assunto eleito, considerando as limitações constitucionais próprias correspondentes aos direitos humanos, conforme já abordado anteriormente, apresentaremos uma síntese da história sobre as políticas públicas e sua atual formulação, analisando, especialmente, sua efetividade quanto à garantização dos direitos humanos, inclusive os direitos fundamentais sociais. Assim, partindo da ideia da consagrada divisão dos poderes segundo Montesquieu, o executivo, possuindo a responsabilidade dos V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 86 atos da gestão pública, e o legislativo, que deve formular normativas coerentes e respeitosas aos princípios gerais de direito, exercem seus papeis adequadamente ao formularem políticas públicas apropriadas para garantir os direitos sociais. Nesse sentido, a construção de um verdadeiro Estado Democrático Social de Direito, resulta, sem dúvida, na formulação e elaboraçãode políticas públicas que garantam o mínimo existencial dos direitos fundamentais. Por isso, a subscrição aos tratados internacionais que regulam e determinam normativas dos Direitos Humanos (DDHH) concebe responsabilidades e obrigações aos Estados em planejar suas políticas públicas internas de maneira a assegurar minimamente as quatro dimensões básicas dos direitos: acessibilidade, disponibilidade, aceitabilidade e adaptabilidade. Isso significa que as obrigações de proteções e amparo aos DDHH devem estar presentes em todo o processo de decisão estatal, sendo necessário considera-los de maneira integral e completa em todas as Políticas Públicas. Contudo, vale ressaltar que a reserva do possível sob a ótica da necessidade de custeio financeiro específico, o conteúdo aberto e indeterminado dos direitos fundamentais sociais e a legitimação do judiciário em interferir nas políticas públicas, são alguns óbices para a máxima efetividade dos direitos fundamentais sociais. Quanto às dimensões da reserva do possível, bem resume Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p.296): [...] a assim designada reserva do possível apresenta dimensão tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilidade fática para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade. Todos os aspectos referidos guardam vínculo estreito entre si e com outros princípios constitucionais, exigindo, além disso, um equacionamento sistemático e constitucionalmente adequado, V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 87 para que, na perspectiva do princípio da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, possam servir não como barreira intransponível, mas inclusive como ferramental para a garantia também dos direitos sociais de cunho prestacional. O conteúdo aberto e indeterminado dos direitos sociais é resultante da necessária afirmação histórica dos direitos fundamentais, tendo como pressuposto o desenvolvimento pleno da sociedade e construção contínua da consciência ética universal. O direito se dinamiza de acordo com o desenvolvimento do ser humano, o que resulta na conclusão lógica de inviabilidade de tornar estática a política pública necessária à efetivação dos direitos fundamentais sociais, o que legitima o exercício jurisdicional do Estado. Assim, não há que se falar em violação aos princípios da separação de poderes e da democracia quando há intervenção do judiciário em desfavor do Estado administrativo ou legislativo para exigir a observância dos dever de efetivação dos direitos sociais nas políticas públicas. Como vimos o Estado Democrático Social de Direito (Executivo, Legislativo, Judiciário) e os particulares que o integram estão umbilicalmente vinculados na busca da efetividade máxima dos direitos fundamentais sociais. As políticas públicas devem estar em consonância com o sistema jurídico protetivo dos direitos fundamentais como um todo, especialmente os direitos sociais, para possibilitar o pleno desenvolvimento dos membros do corpo social. 3.1 Elaboração de políticas públicas Na atualidade, a principal questão consiste na análise das perspectivas políticas no processo decisório na elaboração de estratégias voltadas à resolução de problemas públicos. “Políticas públicas são um conjunto de ações e decisões do governo, voltadas para a solução (ou não) de problemas da sociedade [...]”. (CARVALHO, 2008, p.5). Para tanto, é necessário considerar que a elaboração de uma política pública passa por fases dentro de um dinâmico processo de construção própria. Isso significa que para uma política pública existir, ter eficácia e que seja possível determinar seus efeitos na solução de um problema, é necessário passar por um sistema de construção, validação e ponderação de sua eficiência. Neste ciclo, ao elaborar uma política pública é possível identificar pelo menos 5 fases que determinam sua estrutura: definição da agenda V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 88 política, formulação de alternativas, tomada de decisão, implementação e avaliação. A primeira grande decisão na elaboração das políticas publicas consiste em determinar quais serão os objetos tratados na agenda política, o que significa dizer que a formulação dessa agenda dependerá sobretudo da decisão governamental de quais serão os problemas trabalhados naquela gestão pública. Nesse sentido, considerando que o objeto de agenda política consiste em definir quais são os problemas sociais no contexto analisado e entender sua real extensão, é indiscutível a necessidade de definir o que se considera, então, problema público. Ensina Secchi (2010, p.7-8): A definição do que seja um “problema público” depende da interpretação normativa de base. Para um problema ser considerado “público”, este deve ter implicações para uma quantidade ou qualidade notável de pessoas. Em síntese, um problema só se torna público quando os atores políticos intersubjetivos o consideram problema (situação inadequada) e público (relevante para a coletividade). A situação pública que passa a percebida de maneira insatisfatória para uma coletividade é considerada como problema público, ou pelo menos, de relevância pública e, por isso, demanda atenção. Nesse diapasão, conforme já exposto anteriormente, o Estado é obrigado a elaborar suas políticas públicas com o fito de efetivar os direitos sociais, assim, quando o Legislativo e/ou o Executivo deixam de incluir quaisquer problemáticas públicas em suas estratégias de desenvolvimento, há uma flagrante omissão inconstitucional, sendo de rigor a atuação do judiciário, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Mandado de Injunção 721, de relatoria do Ministro Marco Aurélio. No julgamento do Mandado de Injunção 721, o Ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal (2008, p.11-23) externou novo olhar sobre a função do Judiciário com relação às omissões inconstitucionais que inviabilizam o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, consignando que cabe ao judiciário declarar a omissão inconstitucional e determinar providências necessárias para efetivação dos direitos. Esse entendimento foi acompanhado pelos demais Ministros do Supremo Tribunal Federal, conforme demonstra a ementa do referido julgamento: V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 89 MANDADO DE INJUNÇÃO - NATUREZA. Conforme disposto no inciso LXXI do artigo 5º da Constituição Federal, conceder-se-á mandado de injunção quando necessário ao exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Há ação mandamental e não simplesmente declaratória de omissão. A carga de declaração não é objeto da impetração, mas premissa da ordem a ser formalizada. MANDADO DE INJUNÇÃO - DECISÃO - BALIZAS. Tratando-se de processo subjetivo, a decisão possui eficácia considerada a relação jurídica nele revelada. APOSENTADORIA - TRABALHO EM CONDIÇÕES ESPECIAIS - PREJUÍZO À SAÚDE DO SERVIDOR - INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR - ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor,impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral - artigo 57, § 1º, da Lei no 8.213/91. Nesse sentido, após estabelecer o objeto de uma política pública, a segunda etapa do ciclo baseia-se na analise das viabilidades de cada alternativa e os objetivos que se deseja alcançar. Deve-se definir um cronograma com diretrizes e estratégias, identificação de fontes de recursos, analise orçamentaria, proposição de parceria, entre outros. Na sequência ocorre a implantação da política pública eleita, quando todo controle das atividades ficam a cargo de um corpo administrativo que normalmente executa a política através de ações diretas ou aplicações de medidas de monitoramento. É nessa fase que todas as escolhas realizadas anteriormente são postas em práticas. Segundo o enfoque top down que estuda a eficácia e eficiência das políticas públicas na fase da implementação, as ações de atores públicos ou privados dirigidas ao cumprimento de objetivos definidos em decisões políticas anteriores são indispensáveis para um resultado final positivo. Em contraponto a essa visão, a teoria do enfoque bottom up considera que a implementação é uma simples continuação da formulação e por isso supõe (no limite) que a implementação carece de uma intencionalidade (racionalidade) determinada àqueles que detêm o poder. Considerando a necessidade, até agora abordada, sobre a efetivação real dos direitos sociais por meio de políticas públicas, o enfoque top down é o que nos parece mais adequado ao controle (inclusive jurisdicional) da concretização dos objetivos almejados nas estratégias eleitas. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 90 Por fim, é deve realizar uma avaliação final quanto à eficiência e eficácia dos resultados alcançados por meio da política pública implantada. Investigar e pesquisar os efeitos de uma política é indispensável para a legitimação da estratégia eleita para a resolução/minimização do problema público objeto da política pública. O enfoque baseado na garantia mínima dos Direitos Sociais propõe uma nova orientação na análise dos problemas sociais, eis que se ampliam os objetos e objetivos das políticas públicas, não se admitindo que sejam escolhidos os problemas e as soluções voltadas à obtenção de interesses particulares e compra de apoio político, como comumente ocorre. Mais precisamente o enfoque nos Direitos Sociais estabelece uma nova forma de analisar as relações humanas, determinando a partir disso as ferramentas capazes de asseverar os direitos fundamentais. Por esse motivo, ao conceber a ideia de construção de uma política pública através desse enfoque, se pressupõe uma postura política mais abrangente e contemplativa, no sentido de entender que a ideia de uma política pública é conseguir alcançar o desenvolvimento humano sustentável e não apenas satisfazer uma necessidade. Essa postura estabelece uma relação direta entre a eficiência de uma política pública e as estratégias de desenvolvimento de um Estado Social Democrático de Direito. Por esse motivo, é imprescindível uma transformação sobre o enfoque de suas políticas públicas. Pontualmente, em sentido estrito, o fato de se formular uma política pública sob o prisma dos direitos sociais, e não puramente das necessidades, não retira a legitimidade do cidadão cobrar seu cumprimento efetivo, seja via manifestações públicas seja, e principalmente, através do Judiciário. Desse modo, ao estabelecer a relação entre a eficácia social das políticas públicas e o enfoque nos direitos sociais, se permite a efetivação dos direitos fundamentais como um sistema jurídico de proteção ao mínimo existencial. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como vimos anteriormente, não restam dúvidas quanto à vinculação das políticas públicas dos Estados Democráticos Sociais de Direito aos direitos sociais, pois sendo os direitos fundamentais considerados normas constitucionais deve-se aplicar a premissa de máxima efetividade da Constituição. Assim, os direitos fundamentais sociais V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 91 devem ser observados por todos os membros que integram o corpo social, sobretudo o próprio Estado, desde a formulação até a implementação das políticas públicas. Isso evita a utilização das políticas públicas como meio de obtenção de interesses particulares e compra de apoio político. Não obstante, a efetivação dos direitos sociais como um sistema jurídico de proteção a todos os membros da sociedade, mesmo que não estejam elencados expressamente no rol de direitos fundamentais na Constituição dos Estados Democráticos Sociais de Direito, decorre do caráter supranacional dos direitos humanos, sendo exigíveis com base na consciência ética coletiva, independentemente do reconhecimento interno dos Estados. Vimos, também, que o judiciário possui relevante papel no Estado Democrático Social de Direito, pois velam pela observância de todos os direitos sociais (previstos na Constituição ou nas normas internacionais) enquanto parâmetro de validade de todos os atos administrativos e políticos do Estado, inclusive as políticas públicas. Assim, com relação especificamente à vinculação das políticas públicas aos direitos fundamentais sociais no Estado Democrático Social de Direito, podemos afirmar que há necessária relação de conformidade e complementariedade entre direitos humanos sociais e direitos fundamentais sociais, pois, desde a formulação até a implementação, as políticas públicas devem observâncias às normas de direito internacional e às normas internas como diretrizes obrigatórias nas estratégias de desenvolvimento socioeconômico de um Estado Democrático Social de Direito. REFERÊNCIAS AURÉLIO, Marco. Relatório e Voto acolhido por unanimidade no julgamento do Mandado de Injunção, julgado em 30/08/2007. In: Revista trimestral de jurisprudência. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-. Trimestral, jan.-mar. 2008, v. 203, p.11-23. BONAVIDES, Paulo. Teoria geral do estado. 10. ed. revista e aumentada. São Paulo: Malheiros, 2015. CARVALHO, Edson Ferreira de. Meio ambiente e direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2008. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 92 RODRIGUES, Marta M. Assumpção. Folha explica: políticas públicas. 1.ed. 2.reimp. São Paulo: Publifolha, 2011. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. SECCHI, L. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise e casos práticos. São Paulo: Cengage Learning, 2010. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2013. WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. 2. ed. 3. tir. São Paulo: Malheiros, 2012. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 93 PRIMEIROS DELINEAMENTOS SOBRE A INCONSISTÊNCIA DO MODELO CONSTITUCIONAL DE REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS PELO PRISMA DA PROTEÇÃO AMBIENTAL NOS MUNICÍPIOS - O PAPEL MARGINAL DOS ENTES LOCAIS. Marcel Britto1* INTRODUÇÃO A ineficiência do Direito, especialmente o Direito Ambiental, desponta como realidade sensível e a expressão ‘crise ambiental’ torna-se encontradiça e inescapável nas pesquisas sobre o tema. A ineficácia do Direito Ambiental manifesta-se no descontrole da crise ambiental, pois são mantidos padrões econômicos de produção extremamente insustentáveis, gerando consequênciassocioambientais nefastas como concentração de renda, mudanças climáticas, esgotamento de recursos, desastres ambientais etc como aponta Navarro (2015, p.21). A falta de efetividade do Direito Ambiental, portanto, se comprova pelo cenário de crise, bem delineado nas premissas de Leff (2009, p. 27), para quem: A racionalidade econômica que se instaura no mundo como o núcleo duro da racionalidade da Modernidade, se expressa em um modo de produção fundado no consumo destrutivo da natureza que vai degradando o ordenamento ecológico do planeta Terra e minando suas próprias condições de sustentabilidade. A proposta aqui é inquirir sobre a ineficácia do Direito Ambiental tendo como uma das prováveis causas a configuração estrutural do Estado brasileiro que implica na diminuta atribuição de competências que a ordem constitucional delega aos municípios. De há muito, o Direito Ambiental é tido como expressão de direito humano, integrando o extenso e sempre dilatável rol dos direitos da personalidade. Essencial componente da dignidade humana e, como tal, * Doutorando em Ciências Ambientais (UFSCAR – PPGCam). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 94 fundamento do próprio Estado brasileiro (consoante exprime a Constituição Federal, art. 1º, III), o tratamento dispensado às questões ambientais e tutela desses direitos difusos não apresenta o mínimo grau de efetividade esperado. Verdadeiro direito fundamental, o “direito ao meio ambiente equilibrado” se apresenta como norma constitucional de aplicabilidade plena e imediata (Constituição Federal, art. 5°, §1°), ou seja, possui, desde sempre, aptidão para produzir seus efeitos. Todavia, abundam graves e recorrentes violaçõesa à legislação ambiental, quer pelos particulares, quer pelo próprio Estado. A ineficácia das disposições constitucionais e legais sobre a defesa ambiental deve ser combatida e, se não eliminada, ao menos mitigada o que, portanto, pressupõe o entendimento das origens e manifestações da inoperância. A compreensão da(s) condicionante(s) que determina(m) a baixa efetividade das normas ambientais remonta a várias, profundas e complexas causas, mas aqui a proposta é verificar que, o próprio modelo constitucional estabelecido não contribui para a implementação da Política Nacional do Meio Ambiente, notadamente pela desproporção na distribuição de competências entre os entes federados, pelo que a Constituição alijou os municípios – como instâncias locais – de atribuições essenciais à implantação e cumprimento de normas protetivas do meio ambiente. Como objetivo a pesquisa propõe inaugurar a discussão sobre a distribuição da competência em matéria ambiental dada pela Constituição à União, aos Estados (também ao Distrito Federal) e aos Municípios. Como é cediço, essa repartição de competência ambiental segue as regras gerais de distribuição de competência entre as entidades federais, estaduais e municipais. Para tanto, é de capital importância discorrer sobre as regras de competência ambiental que, conforme Sirvinskas (2011, p 144), classificam-se em: competência material exclusiva; competência legislativa exclusiva; competência material comum; e competência legislativa concorrente, encotradas nos arts. 21 a 24 e 30 da Constituição. Competência material resulta em poder de execução ao passo que a competência legislativa implica na possibilidade de criar leis, manifestação de poder soberano. Sobre as competências são duas as espécies de competências ambientais, quanto à natureza e quanto à extensão, explica Oliveira (2013, item 2.3, p. 1-2): Quanto à natureza é dividida em competência executiva, manifestada através da execução de ações dos entes federativas em matéria ambiental; e competência legislativa, V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 95 ocorrendo na forma de criação de normas ambientais, também pelos entes federativos. Quanto à extensão, elas são divididas em exclusiva (a cargo de somente um ente, impossibilitando o exercício pelos demais entes federativos); privativa (embora também destinada a somente um ente, mas permite a este a delegação ou suplementaridade), comum (possibilitando a participação de todos os entes federativos), concorrente (embora estabeleça primazia de somente a União para legislar sobre normas gerais, possibilita aos demais entes federativos em caso de preenchimento de lacunas e mesmo como forma a complementar a matéria); e finalmente, a suplementar (que possibilita aos outros entes federativos o poder de detalhar as normas gerais criadas pela União, seguindo os mandamentos gerais ditados por este ente. A análise teórica da repartição constitucional de competências indica além da forte assimetria do federalismo brasileiro o fato de que os municípios foram relegados a uma posição de coadjuvância em matéria ambiental. O contraste das competências dos municípios com as dos demais entes federados permite identificar, na própria arquitetura constitucional do Estado-Nação, uma inversão de poderes que compromete a efetiva criação e aplicação das normas ambientais (sejam legais ou administrativas). Ademais, no campo da executoriedade, fiscalização e implementação das políticas ambientais – expressas nas normas – a composição e funções dos órgãos integrantes do SISNAMA revela a tibieza da esfera local, refletindo e perpetuando a perversão que marca a estrutura federativa brasileira. Portanto, o modelo constitucional de defesa do meio ambiente, ele próprio, estruturalmente, representa um óbice à efetivação da Política Nacional do Meio Ambiente. A inconsistência do próprio sistema com seus sombreamentos e sobreposições, com suas lacunas e complexidade, bem como pela distribuição desequilibrada de competências é óbice à efetividade do Direito Ambiental. Questões como a assimetria da federação brasileira, a natureza dos Município (remanescendo dúvidas quanto à sua genuina feição como entes federativos), a profusa, confusa e, por vezes, antinômica legislação (perfazendo o emaranhado impenetrável e ininteligível dos atos administrativos normativos) contribuem para o agravamento da crise ambiental, eis que tais fatores determinam alto grau de ineficiência ao Quanto aos procedimentos metodológicos, dada a natureza básica e teórica da investigação, houve abordagem qualitativa, com objetivos V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 96 descritivos e explicativos com revisão bibliográfica, tanto das normas constituintes atinentes a Meio Ambiente quanto à estrutura e funcionamento do Poder Público no que pertine à Política Nacional do Meio Ambiente, incorporando o estudo de obras acerca das categoriais centrais de análise, especialmente sobre Teoria Geral do Estado, bem como de obras que fornecessem o panorama de desenvolvimento do tratamento legal e jurídico sobre o ambiente. Outrossim, foi coletado material versando sobre os componentes do Sistema Nacional do Meio ambiente–SISNAMA suas competências, e atuações. Na consecução dos objetivos, especialmente para fornecer o embasamento teórico, a lei e a doutrina foram as fontes da pesquisa. 1 DESENVOLVIMENTO Sendo o ambiente ecologicamente equilibrado um bem de uso comum do povo, dada sua essencialidade, a obrigação de defesa e preservação é inderrogável, seja por parte da coletividade, seja – especialmente – por parte do Poder Público. A fim de que o Poder Público desempenhasse tal mister, a Constituição da República outorgou a todos os entes da federação competência comum para a defesa do meio ambiente. Antes de avançar sobre a distribuição de atribuições procedida pela CF/88, convém a seguinte observação: Assim como ocorre com o conceito de jurisdição, que é, em tese, e por excelência, uno e indivisível, o conceito de administração, notadistintiva da autonomia que caracteriza os entes integrantes do pacto federativo, também não admite divisões. Aceita-se, o que é diferente, a repartição do exercício de competências administrativas, para que, na prática, seja viável a sua prestação. (FARIAS, 2014) Todavia, a competência repartida constitucionalmente, pelas razões supra, não consiste em mera faculdade posta em abstrato para que, discricionariamente, cada esfera de governo se decida sobre o que, como, quando e o que fazer no tocante ao ambiente. A federação brasileira nasceu por desagregação (centrífuga), pelo que o ente central – a União – detém posição oprevalente e concentradora, tanto das competências legiferantes (legislativa) quanto administrativas (executiva), a despeito de, em tese, inexistir hierarquia entre os entes federados. Conquanto caiba crítica ao grau de autonomia de que gozam cada um dos entes federativos, extravazaria o âmbito preliminar do V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 97 presente estudo, pelo que, já há evidência sobejantes de que o federalismo brasileiro padece de forte assimetria. Por federalismo simétrico pode-se entender a nação que, conquanto descentralizada em unidades (federadas), conserva características dominantes, apresenta homogeneidade de características (notadamente culturais e de desenvolvimento) constantes e regulares que permitem a existência de representação teórica e formal do ordenamento jurídico (enquanto manifestação do poder soberano) em dimensões centrais e parciais. O fundamental é que há uma base identitária mínima capaz de manter a coesão, sobretudo em torno de princípios que imprimirão grau considerável de efetividade às políticas públicas. Porquanto no federalismo assimétrico, nota-se exatamente o contrário dos elementos supra, contribuindo para que haja um divórcio fático/material que obsta a adoção e implementação de políticas relativamente uniformes – eis, justamente o caso brasileiro. Inescapável em qualquer abordagem sobre ambiente referir aos contornos constitucionais dados à matéria. No caso brasileiro, a ordem constitucional ambiental – encerrada em único artigo (225) recepcionou vários diplomas normativos infraconstitucionais, dentre os quais, o de maior destaque, a Lei no 6.938, de 31 de agosto de 191 que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente – LPNMA – e institui o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), seus fins e mecanismos de formação e aplicação, e dá outras providências. Conquanto anterior cornologicamente à Constituição, trata-se da lei que a segue em importância, posto que traça toda a estrutura e dinâmica necessária à aplicação da política ambiental. Justamente na LPNMA que estão contidos os conceitos fundamentais, objetivo, rpincípios, objetivos, diretrizes, instrumentos órgãos, responsabilidades etc. Exatamente no delineamento da estrutura do SISNAMA, no elenco de seus órgãos e na especificação de suas funções respectivas (arts. 6ª e 8º) se encontra a hipertrofia da esfera federal em detrimento do poder público local (municípios). Cuida-se de gritante discrepância com o ideal estatuído para que o município seja protagonista do ordenamento territorial, elaborador do planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, como expresso nos arts. 182 e 183 da CF/88 e regulamentados pela Lei no 10.257/2001 – Estatuto das Cidades. Além de condicionar o município aos ditames gerais – o que se justificaria em prol de certa uniformidade geográfica – há mesmo uma V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 98 restrição quanto aos assuntos legislados e fiscalizados pela entidade municipal. Todavia, a posição marginal do município não resulta apenas e tão somente das disposições legais, pois, como visto, a própria Constituição – seguindo a regra geral de alijar o poder local, como velho legado dos idos de colônia e império – reserva grandemente das prerrogativas para a União. A opção da Constituição foi em enumerar os poderes da União e dos Municípios, com os remanescentes aos Estados (e ao Distrito Federal) (AMADO, 2011, p. 27). Outra questão que se põe é no tocante à cooperação entre os as pessoas políticas. Consagrado internacionalmente, a cooperação – enquanto princípio, permeia e informa também a ordem jurídica interna, pelo que, longe de atuação autônoma dos entes federados, o que se busca é integração de suas ações, sempre objetivando à máxima proteção deste macro-bem. Firme em tal fundamentol a Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981, a par de dispor sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, tracejou os contornos do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA e estabelece de forma conjunta entre as esferas públicas a tutela ambiental, todavia, com absoluta desporporção. Cuida-se de flagrante indisposição com as próprias diretrizes a que se obrigou o país por ocasião dos célebres tratados sobre meio ambiente. Padilha (2010, p. 215) invoca as ações recomendadas pela Agenda 21 Brasileira, Objetivo 17 – Descentralização e pacto federativo: parcerias, consórcios e o poder local, dentre elas: fortalecer o federalismo cooperativo e definir competências entre o Governo Federal, os Estados e Municípios, levando em conta o seu tamanho, renda e condições institucionais na configuração espacial brasileira; instituir o princípio de subsidiariedade que determina prioridade para ações de interesse da sociedade civil e, pela ordem, a ação municipal, estadual e federal quando o ente situado em nível espacial inferior não for capaz de exercer suas funções adequadamente; regulamentar o art. 241 da Constituição para fortalecer a cooperação intermunicipal. Em homenagem a tal demanda, a E. C. no 19/1998 permitiu às pessoas políticas disciplinar por meio de lei convênio e consórcio de cooperação. Neste sentido, é importante destacar que os Tribunais Superiores (STF - AC 981/BA – BAHIA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence e STJ - REsp 588022/SC, Rel. Min. José Delgado), provocados sobre a efetivação do Princípio da Cooperação, diante de conflito entre os entes federativos no exercício da competência (nos casos julgados para o licenciamento ambiental), decidiram que não deveria haver o exercício pleno de apenas V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 99 um dos entes da federação no procedimento de licenciamento ambiental, mas sim, a complementaridade deste procedimento, pela atuação de todos os que de alguma forma possam ser atingidos pela atividade potencialmente poluidora, contemplando duplicidade do licenciamento ambiental por entes federativos diferentes. Excertos jurisprudenciais, alterações do texto magno (como com a E. C. no 53/2006 que imprimiu nova redação ao parágrafo único do artigo 23) ou mesmo o advento de novas leis (v.g.: L. C. no140/2011 em complementariedade aos termos do art. 23 da CF/88), longe de auspiciosos, revelam a má formação congênita do Brasil como medidas paliativas à assimetria federativa. Nesse sentido: [...] a dimensão local precisa ser também profundamente considerada e refletida no constitucionalismo, para que os desenhos institucionais e conteúdos jurídicos sejam permeados pela faticidade do lócus sobre o qual desenvolve sua força normativa (MORAIS, VIEIRA e SALDANHA, 2015, p.78) CONSIDERAÇÕES FINAIS No contexto mais amplo e agravado hodiernamente de crise institucional do Estado brasileiro, assunto de destaque tem sido as questões ambientais. Ao passo em que as preocupações ambientais pautam os debates – não apenas acadêmicos – a busca pelo equacionamento entre desenvolvimento sócio econômico e ambiental parece distanciar-se de um resultado satisfatório e mais condizente com a acepção de sustentável. Conquanto a defesa ambiental seja imposta simultânea e conjuntamenteao Poder Público e à coletividade (nos termos do art. 225 da Constituição Federal de 1988), incumbe precipuamente ao Estado tal mister. Seja pelo monopólio das funções legislativa e jurisdicional, seja pelo dever de ofício de implementar as normas jurídicas. Portanto, impossível tratar do Direito Ambiental – como de qualquer ramo – sem atentar para as disposições constitucionais. Especialmente em matéria ambiental, com forte carga principiológica, é justamente na Constituição que se tem o ponto de partida e o de chegada. Como é cediço, por força da fundamentação e derivação das normas jurídicas, é da Carta Política que partem todas as normas V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 100 infraconstitucionais com o objetivo de fazer cumprir a regra matriz prevista no caput do art. 225 da CF. Assim, a ordem constitucional determinou as incumbências do Poder Público (no §1º do mesmo art. 225) que, somadas à estrutura federativa do Estado brasileiro, especialmente diante da repartição constitucional de competência, desaguou no Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, desenhado pela Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981. Salienta Antunes (2006, p. 75): A definição das competências é extremamente importante, para que se possa saber quais são as entidades responsáveis pela fiscalização de determinados setores da vida social. O sistema federativo adotado por nosso País, contudo, cria situações que não são, juridicamente, muito claras e que precisam de estudo cuidadoos para a sua correta compreensão. A crise ambiental não só se manifesta na destruição do meio físico e biológico, mas também na degradação da qualidade de vida, tanto no âmbito rural como no urbano. Pelo caráter incontrolado do processo de urbanização, grande parte da população vive sem os serviços básico de saneamento, habitação e saúde (LEFF, 2009, p.47). Portanto, o agravamento ambiental não se expressa apenas no ambiente natural, mas também no construído. Nesse contexto, o município – como sendo a esfera local do Poder Público – deveria ser dotado de maiores atribuições e autonomia, eis que é onde há uma agudização das mazelas ambientais. Todavia, engessado pelo delineamento constitucional de competências, a esfera municipal nega efetividade aos desideratos do Direito Ambiental. Tal fato decorre, como visto, da profunda assimetria na configuração federativa brasileira, tanto assim que a importância dos municípios é marginal, não só, mas também em matérias de cunho ambiental. Rios (2001) constata que o Brasil é a cena de um Estado autoritário, centralizador e supressor dos direitos representativos de seus entes, em que a representatividade e autonomia configuram-se como um adorno político administrativo. Assim, o documento máximo do pacto fica posto como um modelo de falsa representação políticoadministrativa. O diminuto relevo da esfera local representa verdadeiro óbice a muitos dos princípios informadores da tutela constitucional e legal sobre V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 101 meio ambiente, sobremodo porque o âmbito que favoreceria uma maior efetividade popular seria justamente o das cidades. Portanto, o arranjo institucional do próprio Estado acaba por contingenciar o fórum por excelência dos debates e deliberações de questões de relevo das quais, em última análise depende a própria continuidade da sociedade. Cuida- se de uma (mais uma) perversão das estruturas de poder, decorrentes da Política e para as quais o Direito há de oferecer respostas mais adequadas e consentâneas, primando por uma interpretação teleológica. Como a própria questão ambiental revela uma contradição potencialmente mortal à espécie humana ao opor padrões civilizatórios ao caos e barbárie (MORIN, 2009), ao permitir avanços tecnológicos e retrocessos históricos (HOBSBAWN, 2004), assim também o arranjo assimétrico da federação brasileira, que concentra poderes, esparge normas sem organicidade e rarefaz sua efetividade, encerra em si a solução potencial do problema, notadamente através dos princípios. Fundamental para uma interpretação e aplicação teleológicas das normas – inclusive e especialmente constitucionais – os princípios, para além de fundamento axiológico de criação das leis, devem funcionar como vetores hermenêuticos. Dentre os princípios ambientais assentes, a participação democrática (OLIVEIRA, 2016) (cuja premissa é outro princípio – o da educação ambiental) pode projetar-se no tema em estudo (especialmente no que tange à federação), no pensamento síntese: A regra de ouro poderia ser a seguinte: nada será exercido por um poder de nível superior, desde que possa ser cumprido pelo inferior. Isto significa dizer que só serão atribuídas ao governo federal e ao estadual aquelas tarefas que não possam ser executadas senão a partir de um governo com esse nível de amplitude e generalização. Em outras palavras, o Município prefere ao Estado e à União. O Estado, por sua vez, prefere à União. (BASTOS, 1988, v. 1, p. 416). Inegável que o locus que favorece o exercício efetivo dessas ideias nucelares é o município. Em reforço a tese de que o papel dos municípios é determinante para a efetividade de direitos e a consecução das políticas públicas, rebrilha novel ramo do Direito, o Urbanístico. Como salienta Oliveira (2016, p. 9): O recém-criado ramo do Direito – Direito Urbanístico – tem forte influência na tentativa de se olhar quais são os Direitos V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 102 do Meio Ambiente Urbano, pois é na cidade que as pessoas vivem, o que coloca em discussão a participação das pessoas para a melhoria na qualidade de vida Nesse contexto, o Direito Urbanístico – garantindo o direito à cidade – revela-se importante alternativa para dilatar a atuação municipal no contexto da regulação territorial, permitindo inclusive emprestar mais efetividade ao próprio Direito Ambiental a medida em que autonomiza o município enquanto ente da federação. REFERÊNCIAS AMADO, Frederico Amtunes Di Trindade. Direito ambiental esquematizado. 2. ed. São Paulo: Forense, 2011. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. BASTOS, Celso Ribeiro. 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V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 103 OLIVEIRA, Celso Maran. et al. Democracia participativa no direito urbanístico. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2016. OLIVEIRA, Celso Maran. Direito ambiental descomplicado. 2. ed. São Carlos, SP, 2013. PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do direito ambiental brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. RIOS, Ricardo Bahia. Resgatando a origem do federalismo moderno: o caso brasileiro e seus reflexos na gestão municipal. Caminhos da geografia- São Paulo em Perspectiva. 2001, v. 15, n.4, p. 23-31. SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 105 A APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE E OS RESULTADOS BENÉFICOS E PREJUDICIAIS DE SUA APLICABILIDADE EM TEMPOS DE CRISE INSTITUCIONAL DOS PODERES EXECUTIVOS MUNICIPAIS. Juliana Balbino dos Reis1* Ricardo Nunes de Oliveira2** Willian Albano Rocha*** INTRODUÇÃO Não é de hoje que o processamento dos feitos se dá com um olhar cuidadoso, porém superficial, ao instituto da prescrição intercorrente que, desde os primeiros momentos em que a humanidade, por bem, instituiu um conjunto de regras práticas para regular a convivência social, pensou, da mesma forma, em não eternizar as pendências ou suas exigências, num sentido de dar segurança à aqueles que, “per fas et nefas”, litigam buscando a solução de um determinado problema de ordem pública ou particular. Os autores deste trabalho reconhecem a existência desta ocorrência processual e, como operadores e acadêmicos, reconhecem que há muito pouco que se falar de obras dedicadas à sua interpretação precisa e suas vantagens e desvantagens, no momento de sua aplicação, tanto para a parte ativa, como passiva ou, ainda, de terceiros interessados. Desta forma, este trabalho tem o intuito, não somente de analisar a sua aplicabilidade temporal, a sua correta utilização, o momento do pedido e, ainda mais criticá-lo. O objeto encontra-se assentado em um momento de crise institucional em que somente pelo cuidadoso processamento poderemos, quando interessante, evitá-lo, e quando, também interessante, deixá-lo ocorrer evitando, assim, o desperdício tanto de valores dos cofres * Mestranda da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (UNESP) – Campus de Franca – SP, Advogada e Procuradora Jurídica ** Graduando em Direito, matriculado nas Faculdades Integradas Padre Albino de Catanduva - SP e Servidor do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo *** Mestrando da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (UNESP) – Campus de Franca–SP, e Advogado V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 106 públicos, como de tempo do agremiado funcional do ente federativo que, muitas vezes, encontra-se em situação prejudicial com a eterna manutenção do feito executivo fiscal. Da mesma forma, este trabalho busca trazer a baila uma reflexão acerca da viabilidade da manutenção do titulo executivo fiscal no judiciário e a real necessidade e viabilidade do direito em receber aquele valor em aberto que, infelizmente, neste momento triste da economia brasileira transformou-se em Certidão da Dívida Ativa. 1 OBJETIVO Este trabalho busca impor uma reflexão junto aos poderes instituídos focada em um melhor aproveitamento da estrutura das dos Executivos Municipais, Varas de Fazenda Pública e dos Anexos de Execuções Fiscais através de uma melhoria dos mecanismos de cobrança, ora extrajudicial, ora judicial, que, por muitas vezes acabam sendo vitimados pelo instituto da prescrição intercorrente, sendo este último benéfico, somente, para contribuintes inadimplentes, cuja localização seja até é conhecida, e que dispõem, muitas vezes, de patrimônio suficiente visando que os créditos, expressivos, e não prescritos sejam atingidos. Em outro giro temos a benéfica prescrição que retira do cofre municipal a brigatoriedade de investir em elementos infrutíferos. Sempre será bem vinda a aceleração e eficiência dos procedimentos administrativos de cobrança dos créditos municipais, evitando-se, além da prescrição, outros problemas hoje comuns: a) A propositura política irresponsável de milhares de processos executivos fiscais na véspera da prescrição, apenas para evitá-la, resultando em outra quantidade de autos com várias execuções fiscais certas do insucesso, tudo contrariando a possibilidade de arrecadação municipal e em benefício dos grandes e pequenos devedores. b) O ajuizamento destes débitos, sem qualquer critério, para evitar a certa prescrição, tem um efeito antieconômico, ou seja, gerará despesas de processamento superiores aos respectivos valores que a regra legal ou racional repudia. Vamos obter, da mesma forma, prejuízos à municipalidade em razão das ações ajuizadas com créditos já prescritos, tudo para atravancar a marcha processual de outros feitos, na contramão de execuções sadias, com possível resultado de arrecadação eficaz e certa. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 107 Para isso impõe-se a necessidade de combater o desinteresse do Executivo Municipal, em especial, e a impossibilidade técnica ou material das lançadorias, controladorias, onde houver, e procuradorias, que dão andamento às execuções fiscais, em sua maioria inexpressiva ou inviável, ou passiva de insucesso. Estes feitos congestionam as unidades judiciais e demonstram o claro desinteresse da administração pública em implantar os dispositivos técnicos adequados, materiais e recursos humanos necessários para eliminar tais entraves e melhorar a qualidade da cobrança, judicial, administrativa ou extrajudicial, e racionalizar o emprego da via forense evitando prejuízos evitando assim a ocorrência da prescrição, nesse sentido maléfica. 2 METODOLOGIA Para desenvolvimento deste trabalho foi utilizada a seguinte metodologia: Estudo de Caso: Este trabalho foi desenvolvido através da coleta de dados junto às municipalidades, em especial a de Monte Alto e Pirangi no Estado de São Paulo, serviram de modelo experimental para análise de experiências. A coleta complementar foi realizada junto ao Poder Judiciário fazendo, também, o uso de um Setor de Conciliação, Mediação e Arbitragem que serviu, também, como modelo experimental deste trabalho no intuito de aferir o resultado e corrigir frações do processo a ora desencadeado. Pesquisa de Campo: Foram coletadas informações dos cidadãos ora inadimplentes, preservando a sua identidade, captando dados acerca da sua condição financeira, social e profissional, buscando entender o que ocorreu para que surgisse tal débito em aberto. Levantamento bibliográfico: Serão usadas, para este estudo autores, que poderão compor o quadro base da pesquisa. 3 DESENVOLVIMENTO A ação de Execução Fiscal é o procedimento especial para que a Fazenda Pública exija de seus contribuintes inadimplentes o crédito devido, formalizado por um contrato, ou por imposição tributária, utilizando-se da via Judiciária. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 108 Por esta via, a Procuradoria, órgão do ente credor, busca, junto ao patrimônio do executado, bens que satisfaçam o crédito que está sendo cobrado por meio desta dita execução fiscal. O processo executivo fiscal esta alicerçado em um título executivo de origem extrajudicial, contabilmente conhecido como Certidão de Dívida Ativa ou, popularmente, pela sigla C.D.A., que será fundamento para a cobrança da dívida existente e que nela está representada. Constituída esta C.D.A. temos a existência, agora, de um titulo real que possui liquidez e condições de exigibilidade. Mas para chegarmos a expedição desta C.D.A. um caminho deverá ser percorrido. A exigência de quitação desta peça exequível terá que ter, em primeiro lugar, uma formação Legal que, certamente, poderá, com segurança, ser objeto de exigência. A maioria destes instrumentos tem sua origem nos tributos, formados impostos, taxas de expediente ou de serviços contratados, dentre outros marcos, que deveriam ser liquidados pelo contribuinte, com pagamento posterior. A primeira ocorrência de ineficácia encontra-se nos próprios órgãos do Ente Municipal com função cadastraldos contribuintes defeituosa ou imprestável. O Procurador Municipal, responsável pelas execuções, esbarra na ausência de dados palpáveis e seguros para subsidiar a execução. Esses títulos são ineficazes pela formulação de constituição ou pela falta ou erro, muitas vezes inescusável, para, pasmem, a simples qualificação do devedor e sua localização. No final do ano de 2013, início de 2014, na cidade de Monte Alto, interior de São Paulo, das aproximadas 1.500 (mil e quinhentas) Execuções Fiscais que adentraram na Segunda Vara Cumulativa, cerca de aproximadas 350 foram extintas por possuírem um valor de exigibilidade menor que 1 (um) salário mínimo nacional vigente. Foram aproximados R$ 70.000,00 (setenta mil reais) que deixaram de ser convertidos aos cofres públicos por infeliz manobra que dispensa comentários. Destas mesmas 1.500 (mil e quinhentas) Execuções houve cerca de 300 que permaneceram em curso e razão da não localização do réu, ausência de qualificações precisas para a sua localização como a mera inscrição do CPF. Tais execuções tiveram oportunidades de obter um titulo sadio no cadastro inicial da inscrição ou por operações de recadastramento comuns. O que chama a atenção foi que as 900 ações restantes tiveram suas citações e intimações focadas, em um primeiro momento, no convite inicial de uma composição que seria proveitosa e interessante para que, além de sanar V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 109 o débito existente com a municipalidade teriam, em contrapartida, sua cidadania resgatada sob a forma serviços prestados com qualidade, em face da possibilidade maior de investimento. A outra problematização sanada veio através de um Projeto de Lei de autoria de um Vereador da mesma cidade que, de maneira inovadora, analisou, sob um perfil socioeconômico, o programa de recuperação fiscal conhecido popularmente como REFIS ou, em algumas cidades o PROFIS, que, antes desta visão do nobre vereador, eram cópias dos mesmos projetos dos anos anteriores e tinham como o valor mínimo da parcela 10% do Salário Mínimo Nacional. Sob a ótica social, o legislador observou o tributo devido, transformado em CDA, que tem maior origem na cobrança do IPTU, cumulada com a parcela atual do mesmo imposto, gerava novo endividamento. Considerando que à época do texto do REFIS originário a parcela mínima era elevada, que passava, em razão da melhoria do Salário Mínimo, muito acima do índice inflacionário, a criar em outra ponta, um problema social. Dessa forma resolveu desvincular o impasse financeiro pontual dos programas de REFIS vindouros dando nova oportunidade aos devedores com o ajustamento social. O Projeto diminuiu o valor da parcela mínima e tinha como novo fator gerador do acordo a Unidade Fiscal Municipal, a Condição Social e Econômica do Assistido, e a formalização da exigência após estes critérios serem atingidos. Tal projeto foi vitima de veto do executivo e, o mesmo veto foi vítima da desconsideração legislativa gerando uma ADIN, sanada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, considerando que a criação de despesas tem caráter inconstitucional mas, por outro lado, viam com bons olhos a hidratação dos cofres públicos com iniciativas de captação de receita que considerem não somente a questão financeira delicada do Município mais, também, o interesse social coletivo daqueles menos abastados. Outra razão do sucesso foi o convite judicial para que os credores, psicologicamente tocados com a cobrança judicial, se dirigissem a municipalidade antes da audiência de composição para regularização dos débitos. Tanto na vinda do executado ao Judiciário como ao Executivo, provocada pela judicialização, assustadora em tese humilde, do título, quando encontrados, era feita uma atualização de todo um cadastro para que, em eventos futuros, a ineficácia cíclica seja diminuída. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 110 Outra problemática detectada junto às municipalidades foi a impossibilidade de exigibilidade dos títulos prescritos, não executados junto ao judiciário. Estes títulos, lamentavelmente, deixam de ser exigíveis pelo fator demora na sua cobrança e eventual judicialização. Esta ocorrência tem sua decretação de ofício em razão das diretrizes do Código Tributário Brasileiro. O Artigo 174 prevê a prescrição do título executivo, contado de sua constituição definitiva, em cinco anos. Esta regra deve ser observada pelos operadores para que não ocorra o prejuízo ao erário mas, todavia, isso infelizmente não ocorre pois, ou pela falta de cuidado, ou pela impossibilidade de cumprir um invencível número de trabalho deixando estas execuções no rol das impossibilitadas de percepção. Assim, as municipalidades devem se atentar à possibilidade de deslocamento de funcionários, de setores menos importantes, para atuar junto ao lançador e procurador na organização e remessa diária destas Certidões fomentando um setor que possibilite uma composição, administrativa no momento critico de falta de receita, analisando, sob o crivo da condição social e econômica do devedor e, também, para um processamento rápido e eficaz, estes títulos, seja na via administrativa, seja na via judicial. Podemos verificar que o instituto da prescrição ao examinarmos de perto o artigo 156, inciso V, no direito tributário, o transcurso do prazo prescricional não só alicerça a perda do direito de exigir a obrigação tributária. Ele extingue, também, referida obrigação. Por outro lado, analisando a prescrição com os elementos que compõem o crédito, chegaremos à idéia de que decurso do prazo prescricional extingue não só o direito de ação mas o próprio crédito tributário. Impossibilitados de exigir o direito, por quaisquer motivos verificamos que não há mais o que se fazer quanto a percepção mas, por outro lado, o investimento desnecessário na busca da satisfação creditícia é deixado de lado para que se possa cumular valores. Deixar de socorrer ações inviáveis, evitando a sua extinção é, muitas vezes, catastrófico, se formos levar em conta o absurdo custo de manutenção do processo judicial executivo-fiscal. Por essas e outras a ocorrência prescricional é de certo modo, salutar. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após esta análise observamos que a recuperação dos valores convertidos em Dívida Ativa são vitimados, em sua maioria, por decisões políticas dos agentes que, per faz et nefas, acabam protelando o envio V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 111 destes títulos ao setor responsável para a cobrança extrajudicial e judicial ou, em alguns casos, dificultando a cobrança. Este atentado, ocasionado pela falta de conhecimento administrativo e legal, gera um custo elevado na administração com a produção de execuções, até rápidas em sua emissão que, diga-se de passagem, já é tardia, e sem critérios, eivados de ineficácia, e, certamente, fadadas ao insucesso em sua maioria, por institutos prescricionais ou desinteressantes para processamento. Não obstante nas decisões políticas para o andamento desta cobrança foram identificadas imperícias, negligências e desatenção dos agentes públicos desde um simples cadastro de contribuinte que, em eventual execução, impossibilita a cobrança, até atos de improbidades que potencializam o prejuízo ao já sofrido cofre público. As ações de cobrança devem ser fiscalizadas pelo legislativo constantemente, com responsabilidade, promovendo indicações acerca da melhoria deste trabalho evitando, assim, perdas, em sua maioria, catastróficas, para aqueles que utilizam do serviço público, comumente carente de investimentos. Sistemas eficazes de cobrança de tributos, cadastro, processamento, composição, execução e elaboração de Projetos de Leis, com observância social e econômica, como os programasde recuperação fiscal, tendem a melhorar a forma de percepção e, consequentemente, a arrecadação dos valores de maneira equalizada e positiva. Um programa de recuperação fiscal, sem este cuidado, somente gera mais despesa uma vez que, para tudo, como é, ou deveria ser, sabido se tem um gasto e este gasto deve ser compensado na sua eficácia. A utilização dos centros judiciais de solução de conflitos, ou setores de conciliação é uma excelente ferramenta para tal exigência uma vez que se dá a imagem de possível intervenção judicial àqueles que acreditam estar agraciados pela demora e pelo valor irrisório do débito inscrito. Pessoas ligadas ao processo de exigibilidade devem, também, estar isoladas do contexto político e, por isso, devem estar investidas de cargo para que a possibilidade de fuga do foco laboral seja inexistente e a atividade a mais rentável e inequívoca possível. Neste giro de ideias a racionalização para exigência de títulos da Dívida Ativa deve estar afastada do conteúdo político, ora prejudicial, e atrelada, mais do que nunca, à uma atividade mecânica e ágil, e de certo modo fria (desprovida de quaisquer sentimentos humano) para sim, cumprir seu papel social e resgatar a cidadania dos menos favorecidos, V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 112 inscritos e eventualmente executados por programas de recuperação fiscal dissonantes com a realidade. Um setor, seja ele de controladoria, de tributos, rendas, ou qualquer que seja seu nome, deverá, sempre, primar pela eficácia e pelos resultados positivos para que o mínimo das certidões de dívida ativa chegue até ao Judiciário permitindo, que este poder, se ocupe ações realmente relevantes a sociedade. O Novo Código de Processo Civil brinda a possibilidade de composição, existente no diploma anterior. É certo que a receita pública é um direito indisponível mas, o próprio poder público, tem a obrigação, dentro de um contexto constitucional, de tutelar o cidadão não somente na questão de saúde e educação e outros direitos, sejam eles personalíssimos ou fundamentais em especial, mas deve, ao detectar a ausência de receita por parte daquele devedor, procurar resgatá-lo à sua condição de bom pagador através de meios adequados à sua realidade e, quanto aos maus pagadores crônicos, utilizar-se da Lei, fria, para abastar o erário. O poder público deve ser implacável com aqueles que se recusam a contribuir em face de rendimentos e bens que possuem, não cabendo justificar tal conduta, seja do devedor, seja de funcionário ou agente público. Tanto as crises empresariais privadas como as crises do poder público, devem ser contidas pelo planejamento de atitudes eficazes e sérias, acompanhadas, perenemente, por setores que agreguem receita e planejem investimentos, bem como por outros órgãos que solucionem as pendências reais de maneira exemplar, seja fiscalizando, seja agindo. A única diferença é que, infelizmente, as empresas privadas podem lançar mão de uma satisfação de débito catastrófica, na via judicial enquanto valores, pertencentes aos cofres públicos têm, em um contexto lógico, caráter de direito indisponível, em razão da pouca idoneidade moral de uma minoria de corruptos que, jamais, poderiam ter o livre poder decisório de abrir mão de dívidas, sejam elas ilíquidas ou prejudiciais. Desta maneira “o público paga pelos maus administradores”. REFERÊNCIAS CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. 3. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2009. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 113 CRETELLA NETTO, José. Curso de Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2004. FANUCCHI, Fábio. A decadência e a prescrição em direito tributário. 2 ed. São Paulo: Resenha Tributária, 1971. GRINOVER, Ada Pelegrini; WATANABE, Kazuo; LAGRASTA NETO, Caetano, (Coord.). Mediação e Gerenciamento do Processo. 2. reimpr. São Paulo: Atlas, 2008. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários ao código tributário nacional. Coord. de Carlos Valder do Nascimento. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. MORAIS, Roberto Rodrigues. Reduza dívidas previdenciárias. 2008, on-line, Portal Tributário. VEZZULLA, Juan Carlos. Teoria e Prática da Mediação. Paraná: Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil, 1998. VILELA, Marcelo Dias Gonçalves. Métodos Extrajudiciais de Solução de Controvérsias. São Paulo: Quartier Latin, 2007. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 115 A ANTIGA PEC LEI DA MORDAÇA: UMA RESTRIÇÃO A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO OU UMA COIBIÇÃO AO ESTRELISMO EXAGERADO E SUA POSSÍVEL SEMELHANÇA COM AS EMENDAS À LEI ANTICORRUPÇÃO Letícia Filgueira Bauab1* Daniel Fernandes Nato2** INTRODUÇÃO A Transparência Internacional (TI, 2014) define corrupção como “o abuso do poder confiado para fins privados e pode ser classificada como grande, pequena ou política, dependendo da quantidade de dinheiro perdido e dos setores em que ocorre”. De acordo com a matéria veiculada em 2016 pelo G1, o Brasil é o 76ª colocado em ranking sobre a percepção de corrupção no mundo, o estudo é realizado pela Transparência Internacional (2014): “em 2014, quando o país ficou em 69º lugar [...] Naquele ano, 175 países foram analisados –, ou seja, o Brasil piorou tanto sua posição quanto sua nota. Foi o pior resultado de uma nação no relatório 2015 comparando com o ano anterior” (G1, 2016). A TI (2014) enumera o escândalo na Petrobras, os problemas na economia e o crescimento do desemprego como alguns motivos para a posição assustadora do Brasil no ranking. O país divide a 76ª posição com mais seis nações: Bósnia e Herzegovina, Burkina Faso, Índia, Tailândia, Tunísia e Zâmbia. “Não é surpreendente que o Brasil, afetado pelo maior escândalo de corrupção de sua história pelo caso Petrobras, tenha sido o país da América que mais caiu no índice este ano” é o entendimento da Transparência Internacional (2014). No relatório sobre a situação da corrupção no Brasil, a Transparência Internacional (2014) relaciona como maiores desafios para o combate à corrupção no Brasil: 1- a corrupção no governo e nos partidos (partidos políticos e o Poder Legislativo são percebidas como as instituições mais afetadas pela corrupção); 2- o setor privado, submetido a * Discente do curso de Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG – Frutal. ** Discente do curso de Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG – Frutal. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 116 agências regulatórias, que aumentam a propensão a tentativas de suborno; 3- o financiamento de campanhas políticas; 4- a corrupção no níveis estadual e municipal; 5- contratações para grandes obras públicas. Por outro lado, de acordo com matéria divulgada pelo Politize (2015) sobre o tema, a TI destacou alguns pontos de evolução: 1) Em 2013, o Senado aprovou uma nova lei que responsabiliza empresas que praticam a corrupção com o pagamento de multa, que pode variar de 0,1% a 20% do faturamento anual da empresa. 2) A política nacional tem sido vigiada mais de perto pela opinião pública, como ficou evidenciado no julgamento do mensalão, o maior julgamento relacionado à corrupção política já realizado no país; 3) Participação social: a aprovação da Lei da Ficha Limpa, fruto de iniciativa popular, demonstra que a sociedade civil tem condições de se organizar e participar da política do país. Além disso, o governo tem criado campanhas e mecanismos para aumentar a participação social; 4) Acesso à informação e transparência: a Lei de Acesso à Informação, aprovada em 2012, trouxe a garantia de que todo cidadão terá acesso facilitado a informações públicas de seu interesse, o que fomenta a transparência do setor público. Alémdisso, o Portal da Transparência é apontado como uma ótima ferramenta para rastrear o uso do dinheiro público. A justificativa consiste, na existência, no atual cenário brasileiro, de leis (ou tentativas de leis) extremamente polêmicas e incertas em suas aplicações. Por isso o estudo se divide na abordagem do que era/seria a antiga “Lei da Mordaça”, passando após pelo conceito de Estrelismo e Corrupção, entrando também na liberdade de informação tutelada pela Constituição Federal; após tais conceitos o estudo se direcionará para a Lei Anticorrupção e as emendas a ela propostas para posteriormente traçar as semelhanças entre essa e a “Lei da Mordaça”. O presente trabalho limita-se a estruturar um breve estudo sobre os intuitos da denominada tentativa da antiga PEC 37 “Lei da Mordaça”, que visava impedir juízes e promotores de revelar informações de processos ou permitir que informações fossem reveladas, comparando-a com os dispositivos que a Câmara tentou emendar, adicionando expressamente o abuso de autoridade recentemente à Lei n. 7.347/85 e Lei n. 8.429/92. Constitui um objetivo parcial do trabalho, uma breve demonstração de que os meios de divulgação de notícias, como sites, jornais e rádios V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 117 (a mídia no geral) são de extrema importância para a percepção e combate à corrupção (se manterem a devida imparcialidade), visto o alto teor de detalhes nas informações acima expostas, de forma a gerar um questionamento implícito. O objetivo geral e final é afirmar se essa antiga PEC 37 (Lei da Mordaça) era de fato para coibir um estrelismo exagerado de figuras do judiciário (juízes e membros do Ministério Público) ou se suas intenções eram restringir a liberdade de informação para que a corrupção pudesse ser “livre” e respeitando sempre o Ordenamento Jurídico Brasileiro e visando o estabelecimento da paz e harmonia social, prosseguir com uma associação dessa conclusão com o pacote da lei anticorrupção, que ao que tudo indica é uma lei da mordaça “ás avessas”. Para a realização do estudo e melhor delimitação do tema, a metodologia do trabalho será comparativa e contará, de forma qualitativa, com o amparo de propostas de emendas, legislação constitucional e infraconstitucional brasileira, compreendendo abordar desde seus textos legais até diversas opiniões e interpretações doutrinárias sobre os respectivos intuitos e impactos das leis. 1 A LEI DA MORDAÇA A ultrapassada Proposta de Emenda Constitucional n. 37 de 2011, abreviada como PEC 37, foi um projeto legislativo brasileiro que se aprovado proibiria investigações pelo Ministério Público, acrescentaria o § 10 ao art. 144 da Constituição Federal para definir a competência para a investigação criminal pelas polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal. Seu autor foi o deputado Lourival Mendes então PT do B do Maranhão, que declarou à época da proposta que as CPIs não ficariam prejudicadas pela alteração, por terem outro trecho da Constituição tratando delas. A revista VEJA (2001), em 10 de janeiro de 2001, divulgou a matéria intitulada de “Mordaça de novo, pela terceira vez, o governo tenta conter a atuação desabrida dos procuradores”. Segundo tal matéria, não seria a primeira tentativa, dessa forma, vale expor, apenas a título de reminiscência: Quando o governo mandou para o congresso um projeto que previa multa, perda de cargo e até prisão para os procuradores que divulgassem processos em tramitação [...] quase todo mundo já percebeu - inclusive a imprensa, que prefere silenciar sobre o assunto com receio de perder o acesso às informações - que os procuradores têm tido uma atuação V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 118 leviana em alguns casos. Há vezes em que apresentam denúncia à justiça apenas com base em uma notícia em jornal, que eles mesmo trataram de deixar vazar por baixo do pano. É comum um jornal divulgar uma denúncia hoje e, no dia seguinte, publicar a notícia de que um procurador vai 'investigar o assunto', num círculo de compadrio entre repórteres e procuradores que, muitas vezes arrasa reputações com base em indícios frágeis. Se a 'denúncia' é fraca, esquece-se dela dias depois, mas o 'denunciado' já passou pelo constrangimento de ter o nome vinculado a uma tramóia (VEJA, 2001). Como resultado das Jornadas de Junho de 2013, a PEC foi rejeitado por ser antidemocrática. Para os procuradores da República, era a "PEC da Impunidade" ou “Lei da Mordaça”, uma retaliação ao trabalho do Ministério Público no combate à corrupção da época e que ainda é presente nos dias de hoje. Assim, visivelmente uma tentativa de retirar a autonomia do Ministério Público, vale expor matéria veiculada, dessa vez já a época dos fatos: O direito estendido ao MP de promover diligências não implica retirar essa prerrogativa das polícias. Apenas acaba com o monopólio policial das investigações criminais, perigoso porque tais corporações, ligadas diretamente ao Poder Executivo, nem sempre são blindadas contra pressões de grupos que não respeitam os limites entre interesses pessoais (ou de governos) e as soberanas razões de Estado. Não faltam exemplos disso no país. Sem dúvida, procuradores e promotores estão sujeitos a cometer excessos. Mas deslizes não são da natureza da função. Não se justifica condenar o todo por eventuais abusos de uma parte que atue em desconformidade com o que é claramente definido por regras funcionais. Ademais, desvios de conduta, seja no MP, nas polícias ou em outros organismos do poder público, são passíveis de ações correcionais, pelo Conselho Nacional do MP. Que deve ser mais atuante, é verdade. A PEC 37 ainda passará pelos plenários da Câmara e do Senado. Nessas instâncias é crucial que seja derrotada a proposta, uma tentativa de contrabandear para a Constituição, de forma perigosa, porta aberta para a impunidade. Bastam as que já existem (GLOBO, 2012). A PEC possuía apoio dos delegados, bem como do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e possuía parecer favorável de V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 119 jurisconsultos como Ives Gandra Martins, José Afonso da Silva, Guilherme de Souza Nucci, Régis Fernandes de Oliveira e Luiz Flávio Borges D'Urso. Para finalizar a explicação de tal conceito, identifica-se necessário a exposição de outra matéria, visto que a mídia possui grande importância na retratação dos conceitos e do artigo geral em questão: Projeto de impunidade, datado de abril de 2013: Perde-se, de saída, a independência desse órgão nas investigações, um trunfo nada desprezível. Basta lembrar que os chefes das polícias sempre estão submetidos ao Poder Executivo, não raras vezes alvo dos inquéritos. Se não se pode negar que o Ministério Público comete alguns abusos, que se implementem balizas para manter a atuação do órgão dentro de limites razoáveis. Não é aceitável que, a fim de corrigir excessos, se sacrifique a experiência acumulada pelo Ministério Público com o trabalho ora internacionalmente reconhecido. O despropósito só faz dar mais razão ao apelido de PEC da impunidade (FOLHA, 2013). 2 PACOTE DA LEI ANTICORRUPÇÃO E O ABUSO DE AUTORIDADE Oriundo de uma iniciativa do Ministério Público Federal (MPF), respaldada por mais de 2 (dois) milhões de assinaturas, o Projeto de Lei n. 4.850/16 recentemente teve sua votação aprovada pela Câmara dos Deputados. Popularmente conhecida por “Dez medidas contra a Corrupção”, o projeto inicial sofreu diversas alterações na própria comissão especial que debatia sobre o tema, que contava com relatoria do Deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS). No plenário da Câmara, o projeto sofreu 12 emendas e algumas abolições, distorcendo o sentido proposto pelo MPF. Nas palavrasdo próprio Deputado Relator, Lorenzoni (2016) afirmou que “fizeram picadinho” do relatório que havia sido aprovado por 450 (quatrocentos e cinquenta) votos contra apenas 1 (um). Em seu texto original, enviado pelo Ministério Público Federal à Câmara, a proposta apresentava dez medidas, entre elas a criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos, aumento de penas e crime hediondo para corrupção de altos valores, reformas no sistema de prescrição penal, responsabilização dos partidos políticos e criminalização do “caixa dois”, prisão preventiva para assegurar a devolução do dinheiro desviado e recuperação do lucro derivado do crime. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 120 Contudo, segundo o relator, das dez medidas enviadas, apenas quatro delas foram mantidas e com modificações. Após a sessão, em matéria vinculada no portal G1 (2016), Lorenzoni lamentou o resultado e afirmou que os deputados agiram movidos “por sede de vingança” contra o Ministério Público (MP) e o Judiciário e ainda afirmou: O parecer não era meu, era da sociedade brasileira que tinha depositado as suas esperanças na Câmara dos Deputados. Lamentavelmente, o que a gente viu aqui foi uma desconfiguração completa do relatório, ficando de pé, objetivamente, apenas as medidas de estatísticas e a criminalização do caixa 2. E prosseguiu: [...] trouxeram essa famigerada situação de ameaça, de cala-boca, de agressão ao trabalho dos investigadores brasileiros. Creio que a Câmara perdeu a chance de prestar um serviço ao Brasil. E, movidos por uma sede de vingança contra o MP e contra o Judiciário, acho que começaram uma crise institucional que deve se agravar nos próximos meses (LORENZONI, 2016). A principal emenda, proposta pelo Deputado Federal Weverton Rocha (PDT-MA), acrescentou ao Projeto de Lei de modo a deixar expressa a responsabilização de Procuradores, Promotores e Juízes em caso de abuso de autoridade, prevendo uma sanção penal, sujeitos a pena de reclusão de seis meses a dois anos e multa. Segundo o Deputado, a emenda visa responsabilizar quem ajuíza ação civil pública e de improbidade temerárias, com má-fé, manifesta intenção de promoção pessoal ou visando perseguição política. Como se percebe, o texto de tal emenda deixa de forma ampla tais requisitos passíveis para a punição dos magistrados e membros do MP. Ainda em plenário da Câmara, Rocha (2016) afirmou que “A primeira medida deste pacote deveria ser o fim dos privilégios e abusos de poder da categoria deles. Não pode haver castas”. Durante as votações, parlamentares se revezaram na tribuna com discursos contra e a favor da emenda. A Deputada Clarissa Garotinho (2016) (sem partido/RJ) opinou: “O caso do meu pai talvez seja um dos mais emblemáticos de abuso de autoridade, está claro que o juiz agiu por motivação político-partidária”, citando a alegórica prisão do ex-governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho. Ao final, o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ao ser questionado por jornalistas, afirmou apenas que a votação foi “resultado democrático do plenário” (G1, 2016). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 121 Em nota divulgada pelo site G1, a força-tarefa da Lava Jato (2016), maior operação anticorrupção que se noticiou no Brasil, condenou a possibilidade de a Câmara dos Deputados “atentarem contra a independência do Ministério Público e do Poder Judiciário”. A punição contra a categoria foi classificada de “tentativa de aterrorizar procuradores, promotores e juízes em seu legítimo exercício da atividade de investigação, processamento e julgamento de crimes, especialmente daqueles praticados nas mais altas esferas do poder”. Com a aprovação no Plenário da Câmara dos Deputados por 328 votos a 32 contra, o PL 4.850/16 foi enviado para o Senado Federal e está aguardando apreciação. 3 CONCEITO DE CORRUPÇÃO Segundo Gianfranco Pasquino (1998), no livro Dicionário de Política, organizado pelo ilustríssimo Norberto Bobbio, corrupção é o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troca de recompensa. E continua: Corrupção significa transação ou troca entre quem corrompe e quem se deixa corromper. Trata-se normalmente de uma promessa de recompensa em troca de um comportamento que favoreça os interesses do corruptor; raramente se ameaça com punição a quem lese os interesses dos corruptores. Esta reciprocidade negativa é melhor definida como coerção. A Corrupção é uma alternativa da coerção, posta em prática quando as duas partes são bastante poderosas para tornar a coerção muito custosa, ou são incapazes de a usar (PASQUINO, 1998). Entretanto, o conceito de corrupção abrange diversas definições possíveis, como cita Zani Andrade Brei, em seu artigo Corrupção: dificuldades para a definição e para um consenso: O termo corrupção inclui uma enorme diversidade de atos: trapaça, velhacaria, logro, ganho ilícito, desfalque, concussão, falsificação, espólio, fraude, suborno, peculato, extorsão, nepotismo e outros. Isso cria razoável dificuldade para se chegar a uma definição consensual. O fenômeno pode ser observado numa gradação quase infinita. Vai de pequenos desvios de comportamento à total impunidade do crime organizado, por parte das várias áreas e níveis governamentais (BREI, 1995). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 122 Como se percebe, o termo corrupção é de difícil conceituação, visto que, através de diversas óticas é possível conceituar de modos distintos. Temos conceitos pela ótica do mercado, do interesse público, nas leis e na opinião pública. É certo que, todo e qualquer desvio de comportamento da ótica do homem médio, sendo para beneficiar a si ou a terceiros, implicará em algum tipo de corrupção. Esse tipo de atitude, escancarado pelas mídias atuais, é cada vez mais malvisto pela sociedade brasileira, diante de diversos escândalos envolvendo políticos e empresários. 4 CONCEITO DE LIBERDADE DE INFORMAÇÃO E CONSTITUIÇÃO FEDERAL Em um mundo globalizado, o acesso às informações são cada vez mais importantes, úteis e necessárias para se viver em sociedade. Desta forma, diante de sua importância para o Estado Democrático de Direito, a liberdade de informação adquiriu na Carta Magna brasileira status de direito fundamental. O conceito de liberdade de informação nasceu juntamente com os direitos individuais, corroborado pelo conceito de liberdade, introduzido pelos movimentos revolucionários do século XVIII. A liberdade de informação, segundo Barroso (2004), “diz respeito ao direito individual de comunicar fatos e ao direito difuso de ser deles informados”. É certo que, apesar de constituir um direito individual, sua amplitude atinge o coletivo, sendo direito de toda a sociedade o acesso a informações. Assim explana Farias (2000): Apesar de possuir um sentido constitucional de liberdade, a liberdade de informação não constitui pura e simplesmente um direito pessoal ou mesmo profissional, mas um direito coletivo, o de ser informado. Noutros termos, àquela dimensão individualista-liberal foi acrescida uma outra dimensão de natureza coletiva, a de que a liberdade de informação contribui para a formação da opinião pública (FARIAS, 2000). O doutrinador José Afonso da Silva (um dos juristas favoráveis à antiga “Lei da Mordaça”), discorre de forma esclarecedora sobre a liberdade de informação e meios de divulgação de informações em massa, o qual segue: O direito de informar, como aspecto da liberdade de manifestação de pensamento, revela-se um direito individual, mas já contaminado de sentido coletivo, em virtude das V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostasjurídicas diante da crise das instituições” 123 transformações dos meios de comunicação, de sorte que a caracterização mais moderna do direito de comunicação, que essencialmente se concretiza pelos meios de comunicação social ou de massa, envolve a transmutação do antigo direito de imprensa e manifestação do pensamento, por esses meios, em direitos de feição coletiva (SILVA, 2001). Atualmente, a liberdade de informação ganhou grande importância, conforme José Afonso da Silva (1998): Nesse sentido, a liberdade de informação compreende a procura, o acesso, o recebimento e a difusão de informações ou ideias, por qualquer meio, e sem dependência da censura, respondendo cada pelos abusos que cometer. Sendo assim, ao lado do direito de informar e ser informado existe uma terceira vertente da liberdade de informação, tratando-se do direito de se informar, ou seja, o direito do indivíduo ir em busca da informação, como preconiza os estudiosos Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2008): O direito de se informar traduz igualmente uma limitação estatal diante da esfera individual. O indivíduo tem a permissão constitucional de pesquisar, de buscar informações, sem sofrer interferências do Poder Público, salvo as matérias sigilosas, nos termos do art. 5°, XXXIII, parte final (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2008). Diante de tamanha importância para o Estado Democrático de Direito e a formação da sociedade e dos cidadãos nela inseridos, a Constituição Federal de 1988 abarcou a liberdade de informação como decorrência direta do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo essa essencial para o indivíduo, ganhando status de direito fundamental. Além disso, em seu artigo 5º, incisos XIV e XXXIII, a Carta Magna abrangeu o direito coletivo à informação, assim sendo: XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (BRASIL, Constituição Federal, 1988). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 124 Por fim, outro ponto importante, exposto pelo notável jurista e, atualmente ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso (2004), impõe que toda informações a que se refere tal direito fundamental deve ser dotada de veracidade, de forma subjetiva, ou seja, com fontes confiáveis e verificada a idoneidade e seriedade da notícia veiculada. Assim expõe: A informação que goza de proteção constitucional é a informação verdadeira. A divulgação deliberada de uma notícia falsa, em detrimento do direito de personalidade de outrem, não constitui direito fundamental do emissor. Os veículos de comunicação têm o dever de apurar, com boa fé e dentro dos critérios da razoabilidade, a correção do fato a qual darão publicidade. É bem de ver, no entanto, que não se trata de uma verdade objetiva, mas subjetiva, subordinada a um juízo de plausibilidade e ao ponto de observação de quem a divulga (BARROSO, 2004). 5 CONCEITO DE ESTRELISMO O conceito de estrelismo parte da premissa que o “protagonismo” do Judiciário é um perigo. Considera que os operadores do direito (juízes e promotores), ao informar a sociedade sobre casos de grande repercussão em trâmite, devastariam a vida de inúmeros inocentes e injustamente conseguiriam o título de “heróis nacionais”. Segundo o honorável doutrinador Hugo Nigro Mazzilli, em seu livro intitulado “Direitos Difusos” (2015), quando aborda a Lei da Mordaça: De um lado, os defensores desses projetos dizem querer impedir o estrelismo de delegados, juízes, promotores e procuradores que devassam a vida de acusados, expondo-os indevidamente na mídia, mesmo quando depois declarados inocentes, terão prejuízos insuperáveis para o resto da vida (MAZILI, 2016). Nesse mesmo liame, a avaliação do ex-presidente da Colômbia e atual Secretário-Geral da Unasul (União das Nações Sul-Americanas), Ernesto Samper, para a BBC Brasil é a que segue: É preocupante juízes que fazem política abertamente [...] trata-se de um fenômeno crescente na América do Sul, que afeta a continuidade democrática e ao qual todos devem estar V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 125 alertas [...] não só no Brasil, mas no resto da região, temos visto juízes e promotores que viraram estrelas e se prestam à judicialização da política. Atuam politicamente mas sem responsabilidade política. E de alguma maneira afetam a governabilidade democrática (SAMPER, 2016). Tal conceito torna-se extremamente simplista e raso, ao considerar que a crítica principal constitui o método de abordagem e de divulgação dos casos, visivelmente maquiados, parciais e sensacionalistas. Dessa forma, seria o poder judiciário quem devasta a vida dos “inocentes” ou seria a mídia que falha em sua função de transmissão imparcial de notícias? A mídia é a principal influenciadora da sociedade, ignorância seria acreditar que ela não interfere em fatos relevantes no aspecto jurídico, sobretudo nos casos de maior repercussão, como os escândalos de corrupção. A história jurídica brasileira está marcada pelo estrelismo... mas não o do Judiciário e sim o midiático. Torna-se “sofisticado”, torna- se assunto de extrema importância e temperado de sensacionalismo, algo que naturalmente seria banal. Infelizmente, não é cabível nesse trabalho uma abordagem mais ampla sobre mídia e ética, pois foge ao objetivo primordial do tema, mas o questionamento acima continua válido. 6 SEMELHANÇAS DAS PROPOSTAS Pelo que já foi visto no presente artigo, um problema, senão “o problema” do Brasil é a corrupção. Os tempos atuais são de crise, em todos setores, a corrupção atingiu dimensões catastróficas e o cidadão, o leigo em temas jurídicos, sente-se totalmente desamparado nesse cenário caótico. Juízes e promotores possuem uma obrigação com a sociedade, pois eles atuam em prol desta, são funcionários pagos por esta. A antiga PEC “Lei da Mordaça”, como já abordado, abrangia o conceito simplista de estrelismo para no final, algemar e amordaçar o Poder Judiciário. Constituía uma retaliação disfarçada, principalmente com relação ao Ministério Público. A recente tentativa de emenda ao Pacote Anticorrupção, adicionando “abuso de autoridade” possui diversas semelhanças e de acordo com o Senador Rondolfe Rodrigues (REDE/AP): O Congresso está tentando impor uma mordaça no Ministério Público e nos juízes do país. Foi provada na calada da noite a construção de uminstrumento acessório da impunidade. [...] Abuso de autoridade existe nessepaís há muito tempo V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 126 contra pobres. Aqueles que padecem nos presídios e nãotêm dinheiro para pagar grandes advogados sempre precisaram de projetoscontra abusos de poder, e o Congresso nunca lhes deu [...] Debater isso no momento em que se processa o maior combate à corrupção é tentar estancar a sangria (RODRIGUES, 2016). O presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, Ângelo Fabiano Farias da Costa (2016), discorre "é um verdadeiro tapa na cara da sociedade brasileira, tornaram as dez medidas contra a corrupção um projeto pró-corrupção". Certeiro é a opinião do promotor de Justiça Leonardo Quintans (2016), ao afirmar: “nós queremos chamar a população para esta luta e mostrar que o Ministério Público e o Judiciário não estão preocupados consigo mesmo, mas com a sociedade”. Talvez a tentativa de calar o poder judiciário seja mais visível nessa recente Emenda de Abuso de Autoridade do quena antiga “Lei da Mordaça” de um passado não tão distante, visto o cenário caótico de corrupção proporcionado pelos mesmos que tentam alterar o recente projeto. Pode-se afirmar que tais projetos possuem o mesmo intuito, o de legalizar a impunidade, punindo os operadores do direito. Dessa forma, a atual emenda é sim, uma Lei da Mordaça “às avessas”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do breve artigo é possível constatar que as semelhanças entre os projetos são inúmeras, em ambos vislumbra-se a tentativa de limitar a autonomia do Poder Judiciário, de amedrontar juízes e promotores que apenas estão cumprindo com a digníssima missão de defender a sociedade e para efetivar tal tarefa, são eles obrigados a dar satisfação e esclarecimentos para que a mesma sinta-se amparada. O papel da mídia com relação às satisfações dos operadores do direito, não vem ao caso, entretanto é perceptível que conceito de estrelismo utilizado nas emendas é no mínimo superficial e debilitado, só servindo para que não se demonstre, descaradamente, a monstruosidade da “mordaça” que tentam impor ao Poder Judiciário e seus operadores, legalizando a impunidade e garantindo a perpetuação da doença quase intrínseca ao Brasil, a corrupção. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 127 REFERÊNCIAS ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008. BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 1, n. 235, 2004. BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. 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São Paulo: Malheiros, 2001. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 131 PARLAMENTO JOVEM COMO INSTRUMENTO DE EDUCAÇÃO CIDADÃ DAS CASAS LEGISLATIVAS: UMA ANÁLISE DA ATIVIDADE NA CÂMARA MUNICIPAL DE JABOTICABAL-SP Denise Cardozo1* Silvia Cristina Mazaro Fermino2** Marcela Francine Garavello3*** INTRODUÇÃO Considerando o atual cenário político e os conflitos sociais e jurídicos que cercam as instituições, discutir boas possibilidades de contribuição educacional para a sociedade, em especial das casas legislativas se faz mister. A falta de conhecimento da sociedade acerca da organização e funções do Estado acarreta a debilidade da participação política e do fortalecimento e eficiência dos órgãos públicos. A educação como base formadora, suas práticas pedagógicas e seus fundamentos, pode ser utilizada como mecanismo e ação do poder público, em especial do Poder Legislativo, para promover uma formação politizadora e transformadora da sociedade? A proposta de pesquisa tem o objetivo de analisar as prerrogativas do Poder Legislativo, como ação facultativa, de natureza principiológica, em desenvolver políticas públicas educacionais a fim de fomentar nos jovens o exercício da cidadania. A participação popular é critério basilar para o fortalecimento dademocracia. Uma nação forte desenvolve-se com a ajuda de cidadãos livres, iguais e conscientes, que fazem parte do processo governamental e de seu funcionamento, sendo os autores de seus, princípios fundamentais. O teórico Paulo Freire (2014), entre outros títulos, contribui com seus ensinamentos na obra Educação como Prática da * Licenciatura em Letras- Faculdade de Educação São Luís - Especialista em Gestão Pública- UNISUL. Graduanda em Direito- Faculdade de Educação São Luís ** Graduada em Direito – UNIARA - Especialista em Gestão Pública- UNISUL Pós-graduanda em Direito Econômico – USP Ribeirão Preto *** Graduada em Direito – UNIP. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 132 Liberdade, afirmando que a transformação educacional é a transição da sociedade brasileira fechada para a sociedade em trânsito, aberta e crítica. Tais reflexões podem ajudar na análise do projeto Parlamento Jovem como instrumento de iniciativa das casas legislativas nas diferentes esferas, no trabalho e articulação entre a educação e os valores imprescindíveis para o desenvolvimento do indivíduo. O presente trabalho se justifica pela importância da introdução de uma educação de qualidade, com parcerias e ações planejadas, procedimentos pedagógicos que envolvam setores públicos e privados e contribuam para a formação politizadora da juventude. Tendo como objetivo analisar as prerrogativas do Poder Legislativo em desenvolver programas educacionais para o exercício da cidadania e como as ações e políticas públicas legislativas, na área educacional, podem refletir na sociedade brasileira, examinando o programa Parlamento Jovem através das Casas e Escolas do Legislativo de diferentes esferas, tendo como estudo de caso o projeto desenvolvido na Câmara Municipal de Jaboticabal-SP, seus enfoques e mecanismos pedagógicos, e se respondem à proposta social da educação democrática. Assim, o presente estudo pretende contribuir para uma pesquisa na área da Ciência Política que fomente as ações pertinentes de políticas públicas e auxilie na base educacional do indivíduo, sua interação social e formação democrática. Para o trabalho, o método utilizado foi o teórico-empírico. Da perspectiva teórica, através de pesquisa em legislação e referencial bibliográfico, realizamos uma análise quanto: a função do Poder Legislativo e suas prerrogativas; a educação como base formadora do cidadão e da sociedade; as políticas púbicas e os atores e instituições envolvidos em suas implementações; o desenvolvimento histórico e normativo dos valores de ordem social. Do ponto de vista empírico fizemos, em especial, a análise do programa Parlamento Jovem do município de Jaboticabal-SP, suas práticas e reflexos na sociedade em que se inserem. 1 EDUCAÇÃO: AS REGRAS DE UM DIREITO REGRADO A educação é um direito humano, previsto desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que formalmente reconheceu em seu texto que "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 133 e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uBrittons para com os outros em espírito de fraternidade" (Art. 1°). Tutelado constitucionalmente pela “Constituição Cidadã”, de 1988, trouxe no processo histórico nacional da legislação educacional avanço da legislação brasileira com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o Plano Nacional de Educação (decenal), entre outras ações, como a criação de fundos de desenvolvimento para o ensino fundamental e básico, Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), e, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), além da criação de programas de acesso ao ensino superior, como Programa Universidade para Todos (PROUNI). Mesmo com esta recente construção histórica de tutela legislativa que cerca a educação brasileira, os números parecem não prosperar, tanto que enfrenta o 60o (sexagésimo) lugar no ranking mundial que avalia o nível de educação, índice analisado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP ) e apresentado na publicação anual da Education at a Glance 2015 da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com dados do Brasil e de mais 40 países. No Brasil, portanto, a educação é um direito que possui um arcabouço jurídico que regra (no sentido de disciplinar) a atuação do Poder Público, responsável por sua promoção, porém vemos também que este é um direito regrado (no sentido de comedido/moderado) em sua efetividade. A história política de dominação, exploração e autoritarismo no Brasil, mesmo com conquistas democráticas alcançadas com o texto constitucional e a legislação infraconstitucional vigente, reflete ainda tais amarras arraigadas aos ideais políticos. Ações educacionais podem ser instrumentos que possibilitem mudar a civilização de forma a conceder uma expressão democrática completa e livre. Para isso, são necessárias iniciativas dos sujeitos capazes de promover projetos que atendam a esta real expectativa. 2 CONHECIMENTO FAZ DO CIDADÃO UM SUJEITO ATIVO. Conforme já afirmamos, a falta de conhecimento da sociedade acerca da organização e funções do Estado acarreta uma ínfima participação política e, consequentemente, deficiência da efetivação nas ações dos órgãos públicos. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 134 Num cenário atual de desmonte das instituições democráticas, seja pelas incongruências ou pelo escárnio das decisões, a crise política cerca a sociedade de incertezas, fazendo com que esta atividade educacional do Poder Legislativo, em parceria com as instituições de ensino, mostre-se como uma arrojada alternativa de credibilidade institucional na formação do indivíduo para a cidadania. Dentre as regras do jogo, do pesquisador (BOBBIO 2009), está o dever do Estado, tutelado constitucionalmente em seu artigo 37 através do LIMPE, conhecidos princípios de Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência. Tais regras se contrapõem aos princípios democráticos quando decisões são tomadas sem o pleno conhecimento da grande maioria dos cidadãos nas muitas instituições que compõem o Estado. Neste sentido o estudioso disserta: Nenhuma decisão pode ser tomada sem o conhecimento anterior e posterior de todos, não podendo o governo agir secretamente, sem divulgar os seus atos. Desta delimitação do problema resulta que a exigência de publicidade dos atos de governo é importante não apenas, como se costuma dizer, para permitir ao cidadão conhecer os atos de quem detém o poder e assim controla-los, mas também porque a publicidade é por si mesma uma forma de controle, um expediente que permite distinguir o que é lícito do que não é. (BOBBIO, 2009, p. 42). O pesquisador trata da existência hoje em dia de um duplo estado, ou seja, ao lado do estado visível existiria sempre um estado invisível. Por isso, ao não cumprimento dos preceitos acima elencados, deslegitimam os poderes constituídos e enfraquecem as instituições. Exigem-se transparência e visibilidade, qualidades imprescindíveis para a constituição do regime democrático. Diante desta situação nebulosa, ensinar o jovem que o conceito moderno de cidadania depreende àquele que vive na cidade, que age socialmente, coletivamente, participa dos problemas, das oportunidades e condições impostas por este ambiente social, tornando-o parte do contexto, permite o entendimento da sua participação em direitos e deveres políticos, civis e sociais. Tal conceito deve ser encarado não somente na afirmação dos direitos e deveres dos indivíduos, mas como um conjunto de valores e práticas paraa vida. Portanto, se o indivíduo não tem uma definição do que seja a V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 135 cidadania, dificilmente poderá exercê-la de forma plena. Em conseguinte, quando não se tem acepção deste conceito, a democracia também não se confirma, uma vez que ela se faz na participação dos cidadãos. A questão da representação política, atributo da democracia moderna, em que os representantes são eleitos pelo povo, cuja legitimidade compete aos eleitos gerir, executar, estabelecer e defender os interesses da coletividade faz com que a formação para a cidadania deva ser pensada como condição fundamental para a existência, justiça e o desenvolvimento da sociedade. 3 PARLAMENTO JOVEM, UMA INICIATIVA PROMISSORA DAS CASAS LEGISLATIVAS. As Casas Legislativas Estaduais desenvolvem o Parlamento Jovem como um grande programa educacional. Alcançam grandes números de cidades, através do convite feito para as Diretorias de Ensino Estaduais, envolvendo especialmente jovens da rede pública de ensino. Com sede nas Assembleias Estaduais, o programa recebe das escolas de diversas cidades os projetos desenvolvidos pelos jovens alunos (geralmente das séries finais do ensino fundamental ou inicial do ensino médio), que finalizam a apresentação com a participação destes alunos nas capitais. Grandioso evento que requer, inclusive, um trabalho de investimento e logística para receber tantos educandos. Esta parceria entre as instituições (Casas Legislativas e Escolas) consegue propor temas e introduzir discussões que não estão previstos nos currículos das escolas, esclarecendo os jovens sobre sua posição na sociedade, enquanto cidadão de direitos e deveres, promovendo, assim, conhecimento sobre direitos humanos, fundamentais e educação cidadã. À luz dos pensamentos de FREIRE (2001), tal atividade contribui para a construção de uma cultura para os direitos humanos, tendo a educação papel primordial, por meio de uma pedagogia libertadora das amarras da sociedade opressora, e também problematizadora no enfrentamento, compromisso e formação do indivíduo, das instituições e da sociedade com a prática dos direitos humanos. Vale incluir brevemente neste contexto o seguinte conceito de democracia: [...]definição mínima de democracia, segundo a qual por regime democrático entende-se primariamente um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 136 coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados.” (BOBBIO, 2014, p.12) O programa Parlamento Jovem também trata de orientar sobre “as regras do jogo”, ou seja, o conjunto de regras acerca de quem e de quais procedimentos devem guiar a tomada de decisões coletivas. Dado ao fato de que pertencemos a uma democracia representativa, sendo este um sistema complexo, Bobbio (2014) também nos esclarece: A expressão democracia representativa significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aquele que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade. [...]. Em outras palavras, um Estado representativo é um Estado no qual as principais deliberações políticas são tomadas por representantes eleitos, importando pouco se os órgãos de decisão são o parlamento, o presidente da república, o parlamento mais os conselhos regionais, etc. (BOBBIO, 2014, p. 56- 57). Embora haja a pretensão de uma soberania que emane do povo, aponta o estudioso que mesmo nos regimes democráticos, decisões de grupo são tomadas por indivíduos orientados por regras quer escritas, quer consuetudinárias, que os autorizam para tal e delimitam procedimentos a serem empregados. Partindo dos ensinamentos freireanos de que a escola tem uma responsabilidade social em promover a democracia e a ampliação da cidadania, mas reconhecendo também as falhas do sistema educacional brasileiro, a parceria do projeto Parlamento Jovem com as escolas reafirmam o compromisso social das instituições em educar para transformar o indivíduo e promover uma sociedade na qual todos devem ser tratados de forma igualitária, com respeito à dignidade humana, demonstra sua luta na busca de garantir, proteger e promover os direitos humanos, através da educação problematizadora como um processo crítico. Neste sentido libertador o autor afirma: [...] a educação para os DH, na perspectiva da justiça, é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da “briga”, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do Poder. (FREIRE, 2001, p. 99). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 137 Esta educação para a liberdade tem objetivo de formar cidadãos que possam defender seus direitos e ajudar os que não possuem tal desenvolvimento, fazendo dela instrumento para suas vidas e ações. Assim como as perspectivas do contemporâneo filósofo SAVANI (2014), que trouxe em seus ensinamentos a reflexão e os questionamentos das mudanças do eixo da prática pedagógica mostrando a inquietude da substituição dos conteúdos (escola tradicional, cuja figura titular é o professor) pelos procedimentos (escola nova, pautado no aluno), o programa Parlamento Jovem espera transformações políticas, e uma educação de qualidade, propondo despertar no jovem seus interesses e motivações. 4 O PARLAMENTO JOVEM EM UM PRISMA LOCAL, O ESTUDO DE CASO DA ATIVIDADE NO LEGISLATIVO DE JABOTICABAL-SP O Parlamento Jovem é desenvolvido pela Escola do Legislativo, que foi instituída na Câmara Municipal de Jaboticabal-SP através da Resolução no 324, no ano de 2012, e tem como uma de suas principais metas, desenvolver programas políticos educacionais objetivando a integração da Câmara Municipal de Jaboticabal à sociedade civil organizada. O programa visa aproximar os estudantes do cotidiano da Casa Legislativa, estimular a participação política e fortalecer o processo democrático no município. Os membros da escola são funcionários efetivos, que são presididos por vereadores desta Casa Legislativa, conforme disciplinou o ato da Mesa diretora no 05 do ano de 2013. No cronograma anual do projeto, primeiramente a equipe visita as escolas públicas e particulares de ensino médio de Jaboticabal-SP, ministra palestras que levam informações sobre as divisões e as funções dos poderes constituídos, esclareceram dúvidas sobre a iniciativa, procedimento e legalidade das propostas apresentadas pelos parlamentares e abrem temas para reflexão e discussão entre os jovens sobre cidadania. Nesta etapa, conforme informado pela instituição, a atividade atinge mais de 1.000 (mil) alunos, de 06 instituições de ensino público e 09 privadas, com a finalidade de enriquecer a formação do indivíduo e auxiliar no desenvolvimento de uma consciência crítica e cidadã, por meio do diálogo entre poder público e a sociedade, e em particular, entre o poder público e a instituição escolar. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 138 Os jovens parlamentares, após um processo interno nas instituições de ensino, de apresentação de ideias e propostas de projetos, supervisionado pelos professores que são parceiros no projeto, elegem seus representantes pelos próprios estudantes. Este é um momento em que os jovens também refletem sobre o mais importante instrumento de participação popular, direito político e pressuposto da cidadania: o voto. Em outra etapa, os jovens eleitos pelos estudantes, representando as unidades educacionais e professores por elas indicados, quesão parceiros nos projetos, reúnem-se em oficinas na Câmara Municipal para apresentar os projetos e indicações. Esta fase compreende, segundo os organizadores, o conhecimento do processo legislativo, as pertinências de iniciativa e constitucionalidade das propostas e a importância de ensinar aos participantes a magnitude das discussões, da pluralidade de ideias necessárias para a construção democrática e para a tomada de decisões de interesse coletivo. Haja vista que é ali, na sede do Poder Legislativo (parlamento) que se parla, do verbo parlare em italiano (palco das discussões), para que os legisladores possam, através das discussões, exercer a função legislativa, fiscalizatória e representativa. Depois disso, em uma sessão ordinária dos jovens parlamentares, todas as propostas apresentadas por eles, são discutidas e votadas. A penúltima etapa se dá na sede do Poder Executivo, para as considerações pertinentes à tripartição dos poderes. Como etapa final do projeto, a Escola do Legislativo propõe, como incentivo e vivência, uma viagem para a cidade de São Paulo. Lá os jovens parlamentares conhecem a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e museus da cidade, com o intuito de finalizar a atividade com uma viagem política-cultural. As propostas, de acordo com a instituição, versam sobre diferentes temas: saúde, educação, esporte, lazer, segurança pública, assistência social, infraestrutura urbana, entre outros, refletem o olhar atendo dos jovens sobre os problemas locais, aferindo como a inteligênica e a ideologia dos jovens são importantes para o fortalecimento da democracia. 4.1 A proximidade e a efetividade dos resultados obtidos No programa denominado Parlamento Jovem de Jaboticabal-SP, com suas especificidades pedagógicas e público alvo: jovens do primeiro ano do ensino médio, de escolas públicas e privadas do município, em geral V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 139 são abordados conteúdos que usualmente não são tratados no cotidiano do cidadão ou nas atividades escolares dos educandos. Esses conteúdos são ministrados por funcionários efetivos capacitados pela Escola do Legislativo, através de palestras feitas nas escolas, cujas abordagens buscam levar conhecimentos sobre: legislação, processo legislativo, prerrogativas do poder executivo e legislativo, tripartição dos poderes, participação popular e, em especial, conceitos básicos sobre cidadania e democracia. Para a análise deste trabalho foram observadas as propostas dos Parlamento Jovem feitas nos anos da última legislatura (2013/2016), textos desenvolvidos pelos alunos com o apoio de professores de diferentes áreas, que depois de eleitos são enviadas para a segunda fase do projeto. As propostas variam de acordo com o as instituições que aderem ao programa, em torno de 15 propostas apresentadas anualmente, também informações prestadas pela instituição. Cumprindo as atribuições de legislador, os jovens elaboram os textos de variados temas e trazem em seus bojos propostas para a solução de problemas enfrentados pelo município. As propostas são feitas através de Projetos de Leis e Indicações, constituídas de determinações para o cumprimento pelo Poder Público ou pela sociedade. Entre eles, destacaram-se as propostas de diferentes escolas no ano de 2014, que propuseram a revitalização da rodoviária do município. Já no ano de 2015, mais de uma escola tratou do tema de revitalização do bosque municipal, informações cedidas pela própria instituição estudada. Importante salientar que quando jovens de diferentes instituições de ensino, inclusive de escolas públicas e particulares (o que pressupõe diferentes classes sociais envolvidas) têm o mesmo olhar sobre um problema, isso significa que este é gritante, urgente. Dada à relevância, publicidade e importância atingida pela atividade, o Poder Executivo, através de seu representante, costuma receber anualmente os jovens parlamentares e as propostas, na etapa final do projeto, num ato que configura a harmonia entre os poderes e o ato final de sansão e execução das normas, parte legalmente conferida ao Poder Executivo. De acordo com o relato feito pelos organizadores, é de que isso gerou iniciativas tanto dentro da Casa Legislativa (quando os vereadores utilizam as ideias e encaminham indicações ao Poder Executivo) quanto por parte do Poder Executivo, que nos dois exemplos destacados acima, constatou-se ações efetivas de revitalização da rodoviária e do bosque V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 140 municipal, após as propostas apresentadas, o que conferiu ao programa credibilidade da sociedade e interesse dos participantes. Comparando este a outros programas, diferentemente do que acontece no âmbito local, a atividade quando oferecida pelas casas legislativas estaduais ou de cidades maiores muitas vezes, apesar dos eventos educacionais serem mais abrangente e extremamente importantes, não galgam resultados tão significantes e diretos como os de menores proporções, dado ao desenvolvimento limítrofe. Constata-se que toda esta dinâmica política e pedagógica que caracteriza o programa Parlamento Jovem na esfera municipal conferem uma positiva proximidade e eficiência nas relações entre os sujeitos envolvidos. De acordo com os relatos dos profissionais, educadores, agentes políticos e até a mídia (que dá ampla publicidade à atividade), envolvem-se em seu desenvolvimento, pois consideram relevante para o município seus objetivos propostos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o propósito de responder à interrogação inicial se a educação como base formadora, suas práticas pedagógicas e seus fundamentos, pode ser utilizada como mecanismo e ação do poder público, em especial o Poder Legislativo, para promover uma formação politizadora e transformadora da sociedade, depois de todas as considerações pesquisadas, cabe finalmente afirmar que sim. O Parlamento Jovem é um programa educacional, que, por meio de ação facultativa do Poder Legislativo, tem eficiência em promover como base formadora, práticas pedagógicas próprias e parcerias com instituições de ensino públicas e particulares, uma promissora educação para o desenvolvimento e para a democracia, que se envolve com profundidade na interpretação dos problemas sociais, com a necessária e urgente responsabilidade social e política. Pode, desde que o faça com comprometimento e isenção, iniciar uma atividade educacional que possibilite ao jovem a reflexão e a discussão frente sua problemática, inserindo-se nela, advertindo-o sobre as angústias do seu tempo, para que de forma consciente, seja capaz de lutar. Inclusive, no prisma da atual vulnerabilidade das instituições, programas como esses servem para preparar a sociedade e os futuros agentes políticos para a posteridade, a fim de que estes estejam preparados para os desafios e possam não cometer os mesmos erros dos que operam as instituições na atualidade, gerando esta crise institucionalizada. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 141 REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. Uma defesa das Regras do Jogo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1997. FREIRE, Paulo. Educação Como Prática da Liberdade. 34. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2014. FREIRE, Paulo. Política e educação. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2001. JABOTICABAL. Resolução no 324/2012, de 17 de dezembro de 2012. Cria, no âmbito da Câmara Municipal de Jaboticabal, a Escola do Legislativo, cria seus objetivos, sua estrutura organizacional e a elaboração de seu Regimento e dá outras providências. Disponível em: http://sapl.jaboticabal.sp.leg.br/sapl_documentos/norma_juridica/10907_ texto_consolidado.pdf. Acesso em: 10 de mar. 2017. JABOTICABAL. Ato da Mesa Diretora no 05/2013, de 25 de fevereirode 2013. Dispõe sobre o Regimento Interno da Escola do Legislativo. disponível em: http://www.nbsnet.com.br/pdoc/ documentos/10/88/2013/02/CD3608A6D829322235518E56DA5B073F. pdf. Acesso em: 10 de mar. 2017. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://www.amde.ufop.br/arquivos/Download/Declaracao/ DeclaracaoUniversaldosDireitosHumanos.pdf. Acesso em: 10 de mar. 2017. PANORAMA DA EDUCAÇÃO. Destaques do Education at a Glance 2015. Disponível em: http://download.inep.gov.br/acoes_internacionais/ estatisticas_educacionais/ocde/education_at_a_glance/eag2015_ panorama_educacao.pdf. Acesso em: 08 de mar. 2017. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da educação. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Autores Associados, 2012. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 143 AS REFORMAS DO ESTADO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL REPUBLICANO (1937-1998) Caio César Vioto de Andrade1* INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende traçar um panorama das reformas do Estado, principalmente no âmbito da administração pública, durante parte do século XX. O período abarca quatro grandes iniciativas reformadoras, que representaram mudanças significativas na concepção e tratamento do aparelho estatal. A primeira delas foi a criação do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) em 1938, durante o Estado Novo; a segunda trata-se do Decreto-Lei no 200, de 1967, durante o regime militar; em seguida, ainda durante a ditadura, a instituição do Programa Nacional de Desburocratização, em 1979, que engendrou a criação de um Ministério Extraordinário para sua implementação; por fim, em 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, a criação do MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado), comandado por Luiz Carlos Bresser-Pereira. A justificativa do trabalho reside no fato de que, a partir das referidas iniciativas de reforma do Estado e da administração pública no Brasil ao longo do século XX, é possível analisar as concepções de Estado de cada momento político em questão, os problemas detectados e as alternativas propostas para sua resolução. Ao mesmo tempo, ao traçar a trajetória das reformas, é possível compreender o processo de “construção” do aparelho estatal no Brasil durante todo o período, bem como aspectos de ruptura e permanência. O objetivo é elucidar como se deu o interesse dos governos de cada período na questão da reforma do Estado, salientando os problemas detectados e as soluções propostas em cada situação, ressaltando como foram justificadas e legitimadas as medidas reformadoras, de forma a tratar do assunto em seus aspectos políticos e não meramente técnicos. * Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da UNESP-Franca. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 144 O referencial teórico-metodológico deste trabalho será ancorado na análise de Max Weber sobre a burocracia enquanto característica distintiva do tipo ideal racional-legal de dominação, salientando também, em especificidade, os elementos que conferem legitimidade a esta configuração político-institucional. Weber (2004) distingue três tipos ideias de dominação, que estabelecem as relações entre governantes e governados com base na crença na legitimidade do poder, e engendramtipos específicos de administração. A dominação tradicional – que se subdivide entre feudal e patrimonial – é baseada no tempo, no costume e na sacralidade, bem como em elementos de arbitrariedade do soberano e de seus funcionários, principalmente no subtipo patrimonialista; a dominação carismática é baseada em qualidades especiais de um líder, entretanto, é especialmente instável e volúvel; a dominação racional-legal é fundamentada nas leis promulgadas, racionalmente elaboradas, de forma que contenham elementos de impessoalidade e previsibilidade, que constituem o tipo de administração burocrática. Conforme o sociólogo alemão, dominação e administração são estruturas duradouras e interdependentes, que servem aos propósitos dos governantes. Da mesma forma, é necessário haver, por parte dos dominados, uma crença na legitimidade da dominação. Especificamente, o tipo racional-legal resulta de um processo gradual, visto que o “império da lei” não é baseado em “heróis” carismáticos, nem em tradições sagradas, é o produto da deliberação humana. Diante disso, o Estado moderno, enquanto comunidade política, é caracterizado, entre outros aspectos, pela existência de uma ordem administrativa e jurídica sujeita a modificações por meio da legislação e por um aparato administrativo incumbido de conduzir os assuntos oficiais de acordo com a regulamentação legislativa. Do mesmo modo, a crença na legitimidade da dominação legal é baseada, conforme observa o autor Reinhard Bendix (1986), um dos mais importantes analistas da obra weberiana, numa circularidade: a dominação existe em função de um estatuto, e as normas legais podem ser criadas ou alteradas desde que por meio de uma promulgação processualmente correta, assim, as leis são consideradas legítimas se forem promulgadas, ao passo que a promulgação é legitima se acontecer conforme as leis que determinam os procedimentos a serem observados. Em síntese, a burocracia é fundamentada na condução dos “negócios oficiais” em bases contínuas. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 145 Ao funcionalismo são atribuídas funções específicas e autoridade necessária para seu exercício, a execução das tarefas é impessoal e os funcionários não são donos dos recursos necessários para o desempenho de suas atribuições. Weber (2004) reconhecia a superioridade da burocracia em relação a outras formas de administração, mas também observava possíveis obstáculos em sua execução, como a influência de favores pessoais, a arbitrariedade e a tentativa de funcionários em preservar e fortalecer seu poder. No entanto, considerava a administração burocrática tecnicamente superior pela sua orientação impessoal, que aumenta a calculabilidade e a confiabilidade do funcionamento da administração. Ainda, afirmava o caráter insubstituível e até “indestrutível” da burocracia, no sentido de sua necessidade para o funcionamento de arranjos políticos e sociais cada vez mais complexos. Isso não significa, porém, uma característica estática do modelo. O autor coloca que o sistema de dominação legal também é sujeito a transformações, que ocorrem quando a crença em sua legitimidade e suas práticas administrativas são modificadas, através da luta pelo poder, que permite que o Estado moderno possa alterar o sistema burocrático sem extirpá-lo. Na relação entre burocratização e liderança política, Weber ressalta que o político compete com outros não somente por votos, mas também no processo legislativo e na supervisão da execução das leis. Desse modo, a liderança é disputada também na burocracia, que, na dominação legal, é o âmbito do exercício diário da autoridade. Assim, o sucesso eleitoral e legislativo pode não ter resultado algum, caso não se traduza em implementação administrativa. Entretanto, existe uma diferença de responsabilidade entre o burocrata e o político. O primeiro usa de suas habilidades a serviço de uma autoridade superior, sendo responsável por funções que lhes são atribuídas. O político, por sua vez, é inteiramente responsável pelo que faz, não podendo “repassar” sua responsabilidade, além disso, deve ser partidário e não impessoal e imparcial. Como complemento teórico-metodológico também faremos uso das observações colocadas por Frederico Lustosa da Costa (2016), em recente artigo sobre a história da administração pública no Brasil, já citado na introdução deste projeto. O autor ressalta que a história da administração pública devese situar no âmbito da “compreensão do Estado (e seu aparelho) como ordem social (legítima), instituição e representação” (p. 217). Ainda, observa a necessidade de adequar as abordagens acerca do V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 146 tema a fim de evitar as mesmas críticas outrora dirigidas à história política (elitista, subjetivista, voltada para fatos isolados, etc.). De qualquer forma, o autor também enfatiza a necessidade da diferenciação entre história da administração pública e história política, no sentido de que a primeira pertence a um campo autônomo, o que remete ao fato de que a administração também é política, seus agentes operam politicamente, configurando uma instância relativamente autônoma do poder. Outro aspecto abordado é que o Estado é um objeto polimorfo, formado pelas câmaras legislativas, aparato judicial, burocracia pública, ordenamento jurídico, forças militares e policiais, etc., não podendo ser analisado como um todo monolítico. Diante disso, Costa aponta quatro “imperativos metodológicos”, baseados no autor francês Pierre Rosanvallon (1990), que possibilitam tratar o objeto com mais precisão e singularidade: 1) Desglobalização: evitar tratar o Estado como um todo coerente, um bloco unificado; 2) Hierarquização: integrar e hierarquizar os diversos níveis de apreensão do fenômeno, procurando dar conta das especificidades nacionais; 3) Articulação: diante do fato de que o Estado não é apenas um aparelho administrativo, mas também uma forma política abstrata, é necessário articular questões “objetivas” com ideias e representações sociais; 4) Totalização: consiste em evitar o tratamento da história do Estado como a soma das histórias de suas partes (Ministérios, esferas de poder, etc), mas dar-lhe sentido a partir da análise dentro de um conjunto. 1 A TRAJETÓRIA DAS REFORMAS: CONCEPÇÕES, CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES Edson Nunes (2003), em A Gramática Política do Brasil, analisa o processo de construção institucional do Brasil, a partir das relações entre sociedade e instituições políticas formais, em que quatro padrões são estruturantes: o clientelismo, o corporativismo, o insulamento burocrático e o universalismo de procedimentos. Com a revolução de 1930 inicia-se um processo de statebuilding, caracterizado pela intervenção dirigista na economia e por uma centralização administrativa e política, acirrada após o Estado Novo. Nos quinze anos do primeiro governo Vargas, três formas de relação entre Estado e sociedade foram tentadas. Através das novas agências e regulamentos foram criadas legislações e instituições corporativistas e buscou-se o insulamento burocrático, com novas agências V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 147 e empresas estatais. Também foram dados os primeiros passos em direção ao universalismo de procedimentos, com a tentativa de reforma do serviço público e criação, para este, de um sistema “meritocrático”. Tais processos, chamados pelo autor de “gramáticas modernizantes”, ainda não conseguiram extirpar as relações clientelistas, que foram redimensionadas através de um sistema político que procurava abranger os grupos locais residuais da República Velha. A grande “inovação” do governo federal em relação a isso foi que o Estado, cada vez mais forte e centralizado, “nacionalizou” o clientelismo (NUNES, 2003, p. 47). Houve também, a partir do DASP, o início de um processo de insulamento burocrático, característico e simbólico da busca de racionalidade e modernização do período. Para racionalizar, era preciso estabelecer três objetivos: centralização, padronização e coordenação. Segundo Nunes, o DASP era “paradoxal”, porque “combinava insulamento burocrático com tentativas de institucionalização do universalismo de procedimentos”, este último mais relacionado com a contratação e promoção do serviço público. Assim, o DASP, representou uma fração modernizadora de administradores profissionais (NUNES 2003, p. 53). Dessa forma, grande parte do “cenário” institucional, relativo à burocracia e à administração pública federal foi consolidada na Era Vargas e seguiu sem grandes mudanças significativas até os primeiros anos do regime militar pós-1964. Lustosa da Costa (2008) traça um panorama das transformações históricas da administração pública brasileira, desde 1808, enfatizando as “mudanças planejadas”, de 1930, 1967 e 1995. No âmbito da “modernização autoritária”, a partir da ditadura militar, o autor coloca que o Decreto-Lei no200, de 1967, foi um projeto sistemático e ambicioso para a reforma da administração federal, constituindo-se como uma espécie de “lei orgânica”, determinando princípios, conceitos, estruturas e providências. De acordo com o Decreto, a administração pública deveria basear-se em princípios de organização, planejamento, coordenação, descentralização e delegação de competências e controle. Também estabelecia a diferença entre administração direta (Ministérios e órgãos submetidos ao Executivo Federal) e indireta (fundações, autarquias e afins). Ainda, dispunha sobre funcionalismo, auditoria, orçamento, entre outros. Apesar de avanços, principalmente no sentido de procurar romper com o tipo de burocracia que existia desde a Era Vargas, o Decreto fracassou V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 148 e ficou pela metade, uma vez que não conseguiu articular a administração direta e indireta, nem profissionalizar o serviço público. Ainda, diante de uma situação de crise econômica e política no regime militar a partir de meados da década de 1970, a burocracia estatal passou a ser identificada com o autoritarismo. Diante disso, se empreendeu o Programa de Desburocratização e Desestatização, a partir 1979, que tinha por objetivo simplificar os procedimentos, enxugar a máquina estatal e focar-se no usuário do serviço público, além de ter caráter social e político, o que se constituiu como elemento de ineditismo em relação a outras tentativas de reforma. Luciano Martins (1985), ao tratar do regime militar, ressalta que um fator que contribuiu para o protagonismo do Estado foi a “situação capitalista” do Brasil, com características das sociedades dependentes e em desenvolvimento marcadas por uma grande autonomia do político em relação ao econômico e ao social, criando condições para a auto- expansão do Estado. Desta forma, a esfera estatal tem um papel “estruturante” na sociedade, em processo conturbado de transformação e, na economia, se comporta enquanto gestora e produtora. Fernando Henrique Cardoso (1979), se referindo à política do período, observa que em função da fragilidade das organizações intermediárias, como partidos, sindicatos, associações, e até mesmo os proprietários, o Estado, o governo e a burocracia, especialmente a militar, funcionavam como catalisadores. Ainda sobre a questão dos interesses de determinados setores e suas fragilidades, o autor chama a atenção para a permeabilidade maior do governo do que da burocracia, no sentido de que as classes não sedimentaram estruturas intermediárias ao nível de Estado. Martins (1985, p. 81) observa que o Estado se apresenta como um “universo em expansão” e que suas partes internas passam a ter existência própria e agem como “confederadas”, mais do que como subordinadas, dessa forma, o Estado se expandiria a partir das “lógicas particulares” de suas agências e o grau de importância de cada uma seria gerado pelas suas próprias condições internas, mais do que pela delegação a partir do poder público. Além disso, conforme Cardoso (1975, p. 182), ao tratar do autoritarismo político da ditadura militar, os mecanismos auto-reguladores não eram eficientes, bem como não existia controle externo, devido ao tipo de regime, o que gerava mais distorçõese desequilíbrios na forma de expansão, e as alianças estabelecidas entre alguns setores da sociedade, principalmente o empresariado, e a burocracia se dariam de forma heterogênea, o que fazia V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 149 com que as agências substituíssem os partidos políticos no sentido em que agregavam interesses e os transformavam em políticas públicas, portanto o pluralismo se daria no âmbito do Estado e não na sociedade, em que a expansão da burocracia e da tecnocracia, em oposição à sociedade civil, se tornava um aparato a serviço de interesses políticos. Silva (2008) observa, em relação à iniciativa do Programa Nacional de Desburocratização, que o modelo adotado pelas reformas é diretamente ligado a uma imagem de povo e de nação, e que desde 1930, especialmente, com as inovações institucionais inseridas por Vargas e pela motivação de intelectuais como Oliveira Vianna e Azevedo Amaral, adotou-se no Brasil o pressuposto de que o povo não possuía “motivação política” e que, portanto, necessitava do Estado para o desenvolvimento e para incutir um “sentido público” na massa. Porém, isso acabou resultando num excesso de formalismo e no fortalecimento do clientelismo, seguindo até a década de 1960 com a administração burocrática travando o desenvolvimento do país. A partir de 1967, procurou-se superar este modelo institucional e descentralizar a administração pública no Brasil. Hélio Beltrão era um personagem importante nesse contexto, porém, somente em 1979 seu grupo conseguiu chegar a um local de poder que permitisse tentar colocar em prática seus pressupostos, que incluíam mudar a forma como o Estado pensava a sociedade brasileira e a relação entre ambos, buscando, agora, uma adequação do primeiro às necessidade e especificidades da última. Bresser-Pereira (2008) observa que o Decreto-Lei no 200 pode ser considerado o primeiro passo em direção à reforma gerencial no Brasil, e que contou com a participação de Hélio Beltrão, que no Ministério da Desburocratização, em 1979 viria a ser um “arauto das novas idéias” com suas críticas ao formalismo, centralização e desconfiança em relação ao público. Para Beltrão, referência no assunto da dinamização do aparelho de Estado desde a década de 1940 haveria no Brasil um descompasso entre Estado e sociedade, aspecto salientado por vários autores que tratam desta relação no país, em especial no regime militar, observando que as mudanças que ocorreram entre o fim do regime e o início da redemocratização obedeciam a uma lógica “incrementalista”, mais do que uma ruptura de padrões em relação aos segmentos da elite e das organizações populares, além do fato do aperfeiçoamento da capacidade de organização não se traduzir automaticamente em absorção satisfatória pelo sistema político- institucional, criando um “hiato” entre Estado e sociedade, nos dois sentidos do fluxo de relações (DINIZ; CAMARGO, 1989). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 150 Beatriz Wahrlich (1984) trata da trajetória de concepção e implementação dos Planos Nacionais de Desburocratização e Desestatização, respectivamente, de 1979 e 1981, empreendidos no governo Figueiredo, na fase derradeira da ditadura militar brasileira. De acordo com a autora, os dois programas eram interligados e visavam objetivos complementares: “aumentar a eficiência, e eficácia e a sensibilidade da administração pública e fortalecer o sistema de livre empresa”. O Decreto-Lei que instituiu o Programa Nacional de Desburocratização tinha como objetivo a melhoria dos métodos de trabalho do serviço público, dispensando exigências redundantes, para o benefício de clientes e servidores, além de evitar a criação de novas empresas públicas ou de econômica mista para integrar a estrutura governamental. Para a condução do Programa, foi nomeado um Ministro Extraordinário, conforme o Decreto-lei no 200, de 1967. A autora ainda ressalta que a proposta de Hélio Beltrão ia além da reorganização e racionalização técnica e administrativa da máquina burocrática, mas era de natureza política, visando à transformação de comportamento em relação à forma com que a administração, de forma geral, tratava seus usuários. Os objetivos do projeto seriam descentralizar decisões, diminuir regulações e valorizar a presunção de inocência dos usuários. Tais metas não poderiam ter êxito pela via estritamente técnica. Ainda, segundo Wahrlich, Hélio Beltrão, criador do Programa, se lançou numa “cruzada” pela desburocratização, através de palestras, conferências, entrevistas, debates vinculados pela impressa e demais meios de comunicação. O ministro sempre ressaltava em suas falas uma “tendência histórica” do Brasil ao crescimento da burocracia, ao formalismo, à regulamentação e à centralização decisória, que geravam ineficiência do Estado. A autora conclui observando que a desestatização, ao mesmo tempo em que tinha entusiastas, enfrentava opositores abertos, que se contrapunham ideologicamente ao Programa, expressando o temor, principalmente, em relação ao fato de que as empresas multinacionais poderiam ser favorecidas, em detrimento das nacionais. A desburocratização não sofria oposição aberta, uma vez que ninguém se manifestava claramente contrário aos objetivos do empreendimento, porém, enfrentava inimigos velados, como os intermediários que se beneficiavam, pela via legal ou não, do excesso de trâmites do serviço público. Outro aspecto eram as alegações de V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 151 desemprego que o Programa poderia causar, no entanto tal empecilho poderia ser solucionado com a alocação para funções mais úteis e com carência também alegada por parte de outros setores da máquina estatal. O advento da Nova República trouxe a promessa de uma ampla Reforma do Estado, que envolvia, além da administração pública, a efetividade do império da lei, a reforma tributária e a descentralização, bem como reformas na saúde, educação e previdência. Os efeitos do Decreto- Lei no 200 ainda eram sentidos. Apesar de ter sido um passo em direção à reforma gerencial, pelo objetivo de romper com a rigidez burocrática, a contratação de funcionários sem concurso público perpetuou práticas clientelistas e fisiológicas. Dessa forma, caberia ao governo reformar o aparato administrativo, buscando sua redução, eficiência e adequação às novas demandas da sociedade. (COSTA, 2008; MARCELINO, 2003) O governo Sarney instituiu uma comissão incumbida de redefinir o papel do Estado, delinear as bases da administração pública, reformar o Poder Executivo Federal, racionalizar e modernizar procedimentos e traçar metas e prioridades. Ainda, no início da gestão, estavam em vigência os projetos de desburocratização e privatização oriundos do governo Figueiredo. Conforme Marcelino (2003), a Comissão Geral da Reforma estabeleceu propostas para o rearranjo da administração pública, que incluíam: efetivação da cidadania, por meio da universalidade e do acesso irrestrito a direitos; democratização da administração em todas as esferas, através da dinamização, redução do formalismo e transparência; descentralização e desconcentração administrativa; melhoria do serviço público e alocação eficiente dos recursos. No entanto, a Comissão, que esteve em vigência entre agosto de 1985 e fevereiro de 1986, suspendeu seus trabalhos, devido à concentração dos esforços para a realização do Plano Cruzado. Em setembro, foi lançado outro programa de reformas, que visava à racionalização administrativa, formulação de uma política de recursos humanos e diminuição dos gastos públicos. O foco era fortalecer a administração direta, enfraquecida pelo Decreto- Lei no 200. Para isso, criou-se a Lei Orgânica da Administração Pública Federal. Alémdisso, foram criadas a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e o Centro de Desenvolvimento da Administração Pública (Cedam), vinculados à Secretaria de Recursos Humanos. Estes empreendimentos, porém, não atingiram seus objetivos, pelo fato da desarticulação entre planejamento, modernização e recursos humanos e pela falta de integração entre as instituições responsáveis pela reforma. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 152 Concomitantemente, em 1987 iniciaram-se os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. No que se refere à administração pública, a Constituição de 1988, que buscava mitigar as disparidades entre os níveis central e descentralizado, dirimiu a flexibilidade da administração indireta, responsável pela dinamização administrativa. O regime jurídico único (RJU) transformou os servidores celetistas em estatutários, criando obstáculos previdenciários e orçamentários. Apesar disso, alguns avanços foram realizados, principalmente em relação à democratização da esfera pública, com maior controle social da gestão do Estado, além da descentralização político-administrativa e do resgate da função do planejamento (COSTA, 2008). O governo Collor tinha como objetivo a redução do Estado na vida social, porém de uma forma mal planejada, com desmantelamento de vários órgãos e demissões em massa. Os efeitos e críticas a essa postura, segundo Costa (2008), fizeram com que a perspectiva de consenso antes da posse do presidente - que passava pela redefinição do papel do Estado e pelo redimensionamento do governo - fosse perdida. O processo de reforma administrativa foi, então, invertido, isto é, a prática precedeu à justificativa. Torres (2007) coloca que a passagem de Collor pela presidência gerou uma desagregação e efeitos culturais e psicológicos nefastos. Desde sua campanha, atacava a administração pública, acusando-a de corrupção, de ineficiência e de ser responsável por altos gastos com salários, sem a prestação devida dos serviços. O governo Itamar, vice-presidente que assumiu em decorrência do impeachment de Collor, não contou com iniciativas específicas em relação à reforma da administração pública, dado o seu caráter excepcional e a prioridade em garantir a estabilidade política e promover a estabilização econômica. Para compor politicamente, recriou ministérios extintos por Collor e continuou discretamente o processo de privatização (COSTA, 2008). Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, num ambiente político e econômico de maior estabilidade, a questão da reforma do Estado e da administração pública voltou a ser prioridade na agenda governamental do Executivo federal, com a criação do MARE. Além disso, o redimensionamento das relações internacionais do Brasil também teve peso significativo, a partir da adesão aos preceitos do Consenso de Washington e às recomendações do Banco Mundial e do FMI. Luiz Carlos Bresser-Pereira foi nomeado ministro e intentou a formulação de todo um arcabouço teórico que explicasse a questão da V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 153 administração pública. Dividiu, historicamente, o processo em três fases: patrimonialista, no Império e na República Velha; burocrático, a partir da Era Vargas; e gerencial, que deveria vir com a reforma então pretendida. Bresser se baseou nas principais tendências internacionais sobre o tema, e em reformas empreendidas na Nova Zelândia e na Grã-Bretanha. Além disso, também se incumbiu de divulgar a necessidade da reforma para a sociedade e trazê-la para a política (BRESSER-PEREIRA, 1998). A autora Ana Cláudia Niedhardt Capella (2004), em tese sobre o MARE, coloca que a questão central para a compreensão do processo de agenda-setting, ou seja, de como um assunto é trazido para a pauta governamental e social, é o entendimento da maneira pela qual um problema é definido. Tal definição faz com que processos sociais existentes, mas sem apelos para ação governamental, se transformem em problemas dignos de serem tratados concretamente por um governo, que recorre a um conjunto simbólico de representações. Assim, estabelece-se um mecanismo de valores e comparações que procuram expor de forma mais direta possível as visões sobre uma determinada política. O ministro Bresser-Pereira definiu o problema central como a “crise de Estado”, análise mais ampla que vai se especificando ao longo do tratamento da questão pelo Ministério, passando a ser vista como “crise da administração pública”, “crise do modelo burocrático” e, finalmente “crise do modelo burocrático instituído pela Constituição Federal de 1988”. Ainda, a “crise de Estado” foi desmembrada em três subitens ou crises setoriais, que seriam uma crise fiscal, uma crise do modelo de intervenção do Estado na economia e uma crise da administração pública. (CAPELLA, 2004, p. 67-68) Abrúcio (2007) observa a trajetória da administração pública brasileira desde a Nova República, passando pelo governo Collor, FHC – com a reforma de Bresser – até o governo Lula, salientando aspectos de modernização e novidades, bem como “erros” de condução e problemas de gestão ainda persistentes. O autor ressalta o pioneirismo de Bresser em perceber as mudanças internacionais da administração pública, mas que falhou, parcialmente, em adequá-las politicamente à realidade brasileira. O ministro, porém, teria sido responsável por disseminar as ideias da reforma no plano federal, o que influenciou estados e municípios. A ideia central e mobilizadora de Bresser foi a gestão por resultados, chamada de “modelo gerencial”, o que, segundo o autor, representou um “choque cultural”. Ainda, o ministro propôs uma “engenharia institucional” que V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 154 fosse capaz de estabelecer um “espaço público não-estatal”, através de organizações sociais (OSs) e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips). Estas, porém, tiveram melhor êxito nos estados do que na União, sendo alvos de resistências no plano federal durante a gestão de Bresser. Ainda, o legado negativo de Collor fez com que a reforma no governo FHC fosse vista como continuidade do modelo “neoliberal” e o próprio termo “reforma de Estado” fosse ideologizado na disputa política e na produção acadêmica. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise proposta das quatro iniciativas de reforma se dá numa perspectiva de trajetória, ou seja, de ressaltar as especificidades de cada período, em seus contextos político, econômico e social, mas também observando elementos de permanência na condução do Estado, bem como de rupturas, principalmente no que se refere às respostas dadas por cada iniciativa ao que havia sido feito anteriormente e ao que já existia em termos de aparato estatal e práticas administrativas. Diante disso, é possível notar que a Era Vargas, principalmente a partir do DASP, foi o marco de “construção” do Estado, em termos de uma burocracia mais racional e profissional, algo que respondia às necessidades do período, mas que acabou por gerar um processo de saturação, em função do excesso de centralismo e formalismo burocrático. Na ditadura militar, principalmente a partir de 1967, nota-se uma preocupação em aperfeiçoar o aparato administrativo, através, especialmente, da descentralização e delegação de funções, numa tentativa de “modernização autoritária”, mas que não teve o êxito pretendido, pelo fato de não ter conseguido romper com o modelo anterior, bem como por ter reforçado práticas clientelistas. Já no final regime, com o esgotamento do modelo burocrático instituído e diante de uma crise econômica, o último governo do período, já com vistas à redemocratização, criou um Ministério específico para tratar da questão burocrática. A grande inovação de entãofoi o tratamento da administração pública e do aparelho estatal enquanto um problema político e não meramente técnico, bem como a íntima associação do Programa Nacional de Desburocratização à figura do ministro Hélio Beltrão, encarregado de divulgar e fortalecer a ideia da necessidade política do empreendimento. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 155 Finalmente, após a questão ter sido tratada de maneira secundária durante os governos Sarney, Collor e Itamar, muito em função da prioridade dada a outras questões como a própria transição democrática, a promulgação de uma nova Constituição e a solução da crise econômica, a questão da reforma do Estado e da administração pública volta à agenda no governo FHC, de uma forma mais organizada e planejada, novamente com a criação de um Ministério específico, o MARE, que, principalmente pela atuação de Bresser-Pereira, se baseou em iniciativas de reforma feitas em outros países, bem como numa teorização do problema no Brasil, a fim de diagnosticar as dificuldades enfrentadas e propor soluções. Enfim, diante do exposto, é possível perceber que a questão do funcionamento burocrático do Estado brasileiro no período em recorte foi, em muitos momentos, considerada um problema central. Da mesma forma, as transformações no modo em que os próprios atores políticos enxergavam suas atribuições permitem observar como, num primeiro momento, a ênfase residiu na necessidade técnica e estritamente administrativa do tratamento do problema e, posteriormente, ressaltou-se o fato de que a administração pública também necessita de propostas de soluções políticas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRUCIO, Fernando Luiz. Trajetória recente da gestão pública brasileira: um balanço crítico e a renovação da agenda de reformas. RAP, Rio de Janeiro Edição Especial Comemorativa, p. 67-86, 1967-2007. BENDIX, Reinhard. Max Weber: um perfil intelectual. Brasília: UnB, 1986. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Burocracia pública na construção do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. 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V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 157 FINANCIAMENTO ILÍCITO PARTIDÁRIO Cauê Varjão de Lima1* INTRODUÇÃO, COM DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA DA PESQUISA, JUSTIFICATIVA, OBJETIVOS E METODOLOGIA Nossa sociedade se encontra em pleno desenvolvimento democrático e nesse trajeto é perfeitamente natural que venham momentos de crise; buscando o sentido etimológico da palavra crise, esta deriva do grego krisis que significa decisão, juízo ou julgamento, termo que se encaixa perfeitamente na ideia deste trabalho, pois nossa sociedade se encontra em crise, no qual é necessário realizar um julgamento sobre qual caminho nos direcionar e assim abrir margem para melhorias em nossa forma de ver, reger e viver o mundo. Entretanto, o que não é natural é a ruptura com o Estado Democrático de Direito, pois é neste que reside o modelo de Estado constitucional que tem por fim em si mesmo promover e assegurar todo o rol de direitos fundamentais, baseados no princípio maior que é o da dignidade humana; e reconhecendo que nas democracias de partido e sufrágio universal as eleições tendem a ultrapassar a pura função designatória, para se transformar num instrumento pelo qual o povo adere a uma política governamental e confere seu consentimento – e, por consequência, legitimidade – às autoridades governamentais. (SILVA, 2007, p. 41) Portanto, é fundamental que as ciências jurídicas tenham imensas preocupações sobre em qual modelo ocorre o funcionamento dos processos eleitorais dos representantes do povo, no caso em questão o modelo é o de financiamento partidário. O povo brasileiro se encontra caloroso ao pensar em política, de uma forma geral, e ao mesmo tempo se encontra desgostoso com as práticas feitas pelos nossos governantes e esse sentimento se intensifica quando se torna público que diversas agremiações partidárias e partidos das mais variadas cores ideológicas são financiados por dinheiro de fonte duvidosa e de intuito mais duvidoso ainda. A realização do financiamento * Discente do 3º ano da graduação em Direito, pela FCHS da Unesp, câmpus de Franca. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 158 ilícito dos partidos políticos é talvez o momento em que se pode considerar o surgimento do germe da corrupção política. Neste ponto, é interessante frisar que o trabalho irá sustentar o debate sobre o financiamento ilícito partidário em que é palpável o suposto liame do financiamento com a corrupção, onde diversas pessoas jurídicas e naturais financiam diversos políticos que possuem a capacidade de decisão ou de influenciar decisões governamentais que favoreçam estes financiadores, ou seja, uma troca de favores. O ordenamento jurídico vigente, supostamente, consegue prevenir e combater essas situações conflitivas referentes ao financiamento partidário, todavia o debate sobre o “caixa dois” está em voga. Sendo que no dia 29 de novembro de 2016 a redação final da PL 4.850 de 2016 que tipifica o “caixa dois eleitoral” foi aprovada pela Câmara dos Deputados, e no dia 14 de dezembro o Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu liminar no Mandado de Segurança (MS) 34.530, que suspendeu os atos referentes à tramitação do projeto de lei de iniciativa popular de combate à corrupção, sob a alegação de “multiplicidade de vícios”. Ou seja, a nossa sociedade se encontra em uma panela de pressão para debater e encontrarqual é a melhor decisão possível para regularizar o que é chamado de “caixa dois”, interessante ressaltar que este conceito, de forma resumida, pode ser considerado como a movimentação irregular de recursos de campanha. Portanto, a partir do reconhecimento da realidade fática e do entendimento do Supremo Tribunal Federal, irei analisar a forma como nosso ordenamento jurídico entende o financiamento partidário lícito e a sua forma mais preocupante que é a ilícita, sendo este o âmago do trabalho se relacionando diretamente com o eixo temático que é o Direito Penal. Pois, uma solução jurídica para a questão do financiamento ilícito partidário pode contribuir positivamente para a saída dessa crise institucional, e esta preocupação com o financiamento ilícito nos força verificar se o ordenamento jurídico brasileiro possui algum fulcro legislativo suficiente para coibir essa prática e na suposta carência de nosso ordenamento saber se a solução apropriada estaria à caminho, referência à PL 4.850/16, ou seria o caso de nos atentarmos as tendências normativas estrangeiras. 2 DESENVOLVIMENTO Antes de contextualizar em qual tempo e espaço estamos analisando, que de formaprévia já foi feita na introdução, é extremamente V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 159 importante fazermos uma análise sociológica, pois como já dizia o ilustre Carlos Maximiliano (2011, p. 161) “não é possível isolar as ciências jurídicas do complexo de conhecimentos que formam a cultura humana: quem só o Direito estuda, não sabe Direito. O preparo geral, e especialmente o relacionado com a Sociologia, contribui para esclarecer o espírito da lei”, por isso é fundamental, mesmo que de forma ligeira, nos atentarmos à sociologia para compreendermos a nossa realidade. Neste debate estamos tratando sobre as influências do poder econômico1 que podem vir a se manifestar na força estatal através da “compra” direta de seus integrantes e de suas funções, o que se classificaria no artigo 317 e 333 do Código Penal como corrupção passiva e ativa ou, como nosso trabalho pretende estudar, a “compra” de partidos políticos antes mesmo deles se tornarem representantes do povo, ou seja, durante a campanha eleitoral, ou até mesmo antes da campanha, durante a manutenção do partido. Não irei debater neste trabalho a crítica marxista sobre o Estado, no entanto Engels e Marx nos ajudam a compreender a realidade na sua obra Manifesto Comunista (2003, p.28): [...] a burguesia, desde de estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa. Portanto, partirei da ideia de que as forças econômicas influenciam e abusam com e do seu poder, e consequentemente acabam se aparelhando ao Estado, utilizando-se da força estatal para que tenham os seus interesses defendidos acima do interesse público, quebrando com o princípio administrativo do interesse público sobre privado e deturpando com a finalidade do Estado que, de acordo com Dalmo Dallari (1995, p.91), deve ser um “meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam atingir seus respectivos fins particulares”, ou seja, é finalidade do Estado atender a todos e se o Estado é aparelhado por um determinado grupo ou força econômica isso irá resultar no detrimento de outros grupos podendo ser estes, inclusive, a maioria, maculando a finalidade do Estado, por exemplo, de acordo com a prestação de contas do Tribunal 1 Art. 14, § 9º da CF: Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 160 Superior Eleitoral (TSE) em 2014 a Construtora Norberto Odebrecht doou legalmente R$ 39.500.000,002 para os mais variados partidos de PC do B, PT até PMDB e PSDB, ou seja, não foi motivado por alguma ideologia que a empresa ou seus dirigentes poderiam ter. Para ser mais concreto nessa mesma prestação de contas é possível observar que a construtora mencionada doou cifra que bate a casa de milhões para os dois candidatos presidenciais que foram para o segundo turno, ou seja, qualquer dos dois candidatos que ganhasse as eleições teriam sido com o financiamento, não exclusivo, da Construtora Norberto Odebrecht. A nossa Constituição não permite que o poder econômico venha a influenciar as eleições, conforme já exposto no seu art. 14, §9º. Este foi um dos motivos pelo qual o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional por 8 votos a 3 na ADI 4.650, julgada em 17 de setembro de 2015, a doação de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais, sob o argumento de que essas doações por pessoas jurídicas, por mais que não estejam vedadas expressamente na Constituição, ferem diversos princípios constitucionais. Exponho aqui parte da fundamentação do voto do Ministro Dias Toffoli: [...] as doações realizadas, direta ou indiretamente, por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais ou a partidos políticos violam os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito e da República (art. 1º, caput, CF/88), da cidadania (art. 1º, II, CF/88), da igualdade (art. 5º, caput, e art. 14, CF/88) e da proporcionalidade (art. 5º, LIV, CF/88.)3 A visão do Supremo segue linha perfeita em sua hermenêutica, pois é incabível pensar que as grossas doações realizadas por pessoas jurídicas não ferem o princípio da isonomia. Isso coloca o eleitor ou militante comum como um mero participante sem significância, o que não coincide com o cenário democrático e o exercício da cidadania. O voto vencido tendo Teori Zavascki, Celso de Mello e Gilmar Mendes como seus representantes, defendeu duas ideias cruciais para o debate, uma que não cabe neste trabalho discutir, que é se o financiamento partidário deve se encaixar dentro dos direitos da cidadania, e outro importante questionamento levantado, em especial pelo ilustre Ministro Gilmar 2 Disponível em: http://inter01.tse.jus.br/spceweb.consulta.receitasdespesas2014/ resumoReceitasByComite.action. Acesso em: 21 jan. 2017. 3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.650. Relator Luiz Fux. Acórdão, 17 de set. 2015. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 161 Mendes, é que a mera proibição de doação por pessoas jurídicas não evita que sejam realizadas as tais doações. Seu exemplo recai principalmente sobre o período Collor ter vivido sob a égide da Lei 5.682 de 1971, que em seu artigo 91 vedava aos partidos receber qualquer contribuição, auxílio ou recurso procedente de empresa privada, de finalidade lucrativa, entidade de classe ou sindical. Ou seja, mesmo se proibindo que empresas privadas doassem a partidos isso não evitou que acontecesse de fato, pois o primeiro presidente eleito diretamente pelo povo após o governo militar foi justamente o Fernando Collor que esteve envolvido com financiamento eleitoral com o “Esquema PC Farias”, que de forma extremamente resumida era o esquema no qual se captava recursos de empresas privadas com o argumento de que no futuro essas tais empresas poderiam precisar de alguns favores do governo, como fica claro no Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que apurou os fatos referente às atividades do Paulo César Cavalcante Farias, capazes de configurar ilicitude penal.4 Interessante é ressaltar que após um impeachment tempestuoso o Ministro SepúlvedaPertence proferiu um voto na ADI 1.076/DF em 15 de julho de 1994 com o seguinte posicionamento frente ao financiamento privado de campanhas eleitorais no Brasil: Dispensa comentários o rotundo fracasso dessa tentativa ingênua de expungir do financiamento das campanhas eleitorais o dinheiro da empresa privada: além da ineficácia notória, a vedação gerou o efeito perverso do acumpliciamento generalizado dos atores da vida política com a prática das contribuições empresariais clandestinas, fruto, na melhor das hipóteses, da sonegação fiscal. Hoje nosso ordenamento jurídico permite que os partidos políticos angariem recursos através de doações de pessoas naturais, meios próprios e pelo Fundo Partidário, a discussão sobre se o teto das doações por pessoas naturais e como o Fundo Partidário divide os seus recursos entre os partidos não é pauta de aprofundamento deste trabalho, pois não se relaciona no eixo temático do Direito Penal, portanto, será deixando para um futuro e eventual trabalho. Resumindo, hoje é considerado inconstitucional a doação de pessoas jurídicas aos partidos políticos e campanha eleitoral, sendo que toda e qualquer doação feita por pessoas jurídicas com o fito de fraudar esse 4 Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/88802/CPMIPC. pdf?sequence=4. Acesso em 21 jan. 2017. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 162 entendimento será considerado uma movimentação irregular de recursos, porém qual consequência teria tal pessoa jurídica e partido político se viesse ocorrer tais financiamentos? Portanto, apenas essa proibição não é o suficiente para resgatar a credibilidade do sistema político e quando muito é o ponto de partida para que a confiança nos representantes do povo se restabeleça, pois a mera proibição de nada acrescenta se não vier com formas de prevenir e retribuir os modos de se fraudar a lei. Refiro-me aqui à prática do financiamento ilícito partidário, pois uma pessoa jurídica pode financiar um partido ou diversos partidos através de meios ilícitos, sendo necessário então uma forma de combater essa prática, por isso, como dito na introdução, é fundamental verificar se nosso ordenamento jurídico possui alguma previsão legal para essa eventual situação. Logo de início é preciso frisar que o Código Eleitoral em seu art. 350 abrange a realização de “caixa dois”, pois ele trata da falsidade ideológica, já que a prática do “caixa dois” nada mais é do que a omissão de receita e despesas e essa omissão na prestação de contas é uma maneira de se inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita. Abaixo o que rege art. 350 do Código Eleitoral. Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dêle devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais: Por essa razão é um absurdo se pensar que não existe a previsão legal no qual se encaixa a prática da realização do “caixa dois” no ordenamento jurídico brasileiro, a própria Justiça Eleitoral já possui algumas condenações nesse sentido. Exponho um exemplo do Tribunal Superior Eleitoral: RECURSO ESPECIAL EM APELAÇÃO CRIMINAL ELEITORAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA ELEITORAL (CE, art. 350). OMISSÃO DE DOAÇÕES RECEBIDAS EM PRESTAÇÃO DE CONTAS. CONDUTA POSTERIOR AO PLEITO ELEITORAL. IRRELEVÂNCIA. CARACTERIZAÇÃO DOS «FINS ELEITORAIS" EXIGIDOS PELO TIPO PENAL. TIPICIDADE. 1. É firme o entendimento jurisprudencial de que não existe vício na decisão judicial que, embora não responda a cada um dos argumentos lançados pelas partes, esclarece aqueles que fundamentam o seu convencimento. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 163 2. Candidata a deputada estadual que, em sua prestação de contas, omite o recebimento de valores em favor de sua campanha Conduta praticada posteriormente ao pleito eleitoral. Irrelevância. Caracterização do elemento subjetivo especial consistente na busca de "fins eleitorais". 3. Inquéritos policiais e processos em andamento não podem ser valorados negativamente na fixação da pena-base, a título de maus antecedentes, sob pena de ofensa ao princípio da presunção de inocência (art. 50, LVII, CF). Entendimento do STF. Súmula 444 do STJ, segundo a qual "é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base". 4. A pena de multa deve guardar proporcionalidade com a pena privativa de liberdade, mas não há correlação direta entre o valor do dia-multa consignado para aquela e o montante estabelecido a título de prestação pecuniária estabelecida como pena substitutiva. A fixação do valor do dia-multa em 1 (um) salário-mínimo é, em princípio, adequada á situação econômica de ré professora universitária. 5. Recurso especial parcialmente provido. (REspe n° 5835-46.2010.6.13.0034/MG, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sessão de 3.3.2015) E tendo a Justiça Eleitoral condenações nesse sentido, temos como consequência a resposta positiva para a pergunta inicial de que se o nosso ordenamento jurídico possui alguma previsão do “caixa dois”, porém com uma fundamental ressalva, visto que ela não abrange todas as possibilidades e não possui um limite certo, já que o art. 350 do Código Eleitoral se atenta exclusivamente para os “fins eleitorais” como é possível ver no caso julgado acima. No entanto, o questionamento surge para as outras diversas possibilidades, por exemplo, doações fora do período eleitoral ou sem finalidade eleitoral, ou seja, o financiamento partidário para a manutenção do partido podendo se ter das mais variadas opções, desde o pagamento de despesas custeio ou despesas de capital. Ao meu ver essas possibilidades não são abrangidas pela tipificação contida no Código Eleitoral. Uma outra possibilidade, que é o surgimento de esquema de doações por “laranjas”, de financiamento ilícito partidário que foi levantada inclusive pelo ilustre Ministro Gilmar Mendes. Transcrevo aqui sua fala na ADI 4.560 V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 164 Tendo em vista que o barateamento do custo de campanhas parece ser ideia ainda longe de ser implementada com alguma efetividade, é possível dizer que a restrição das doações às pessoas físicas acarretará, sem nenhuma dúvida: i) a clandestinidade de doações de pessoas jurídicas, por meio do caixa 2; e ii) estímulo à prática sistemática de crimes de falsidade, com o uso de CPF de “laranjas”. A primeira hipótese pode ser abrangida pelo Código Eleitoral no que tange às doações com finalidade de campanha. Quanto a segunda hipótese, de estímulo à prática sistemática de crimes de falsidade, com o uso de CPF de “laranjas”, simplificarei com a utilização do termo de doações indiretas, já que é plausível essa ideia, na possibilidade de um enorme magnata ou pessoa jurídica com o fito de realizar mais doações, porém já tendo realizado o seu limite, doe outras quantias, dentro do limite permitido para pessoas físicas, em nome de alguma determinada pessoa física, o que se caracteriza como uma doação indireta, que não é abrangida pelo nosso ordenamento jurídico. Encontrando-se aqui outra suposta carência legislativa. Nem mesmo o Projeto de Lei 4.850 de 2016 abrange tal possibilidade já que sua redação final pela Câmara dos Deputados foi a seguinte: Caixa dois eleitoral Art. 354-A. Arrecadar, receber ou gastar o candidato, o administrador financeiro ou quem de fato exerça essa função, ou quem atuar em nome do candidato ou partido, recursos, valores, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela lei eleitoral: Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa. Primeiro que ela só abrange as possibilidade eleitorais e apenas se preocupou em frisar aprática de doações de bens ou serviços estimáveis em dinheiro que sejam paralelos à contabilidade exigida pela lei eleitoral e não faz absolutamente nenhuma menção à doações indiretas. Por isso que ao meu ver o nosso ordenamento jurídico hoje não possui a total abrangência e limite certo que se deveria ter, entretanto possui sim uma tipificação que aborda, relativamente, o “caixa dois” ou em certa medida o financiamento ilícito partidário, visto que o dispositivo legal é previsto apenas em caso de fins eleitorais. Já que numa busca de um sistema penal garantista e contra o arbítrio é fundamental o respeito ao princípio da legalidade e de máxima V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 165 taxatividade, é necessário que as normas penais sejam específicas, “não se permite estendê-la, por analogia ou paridade, para qualificar faltas reprimíveis, ou lhes aplicar penas” (MAXIMILIANO, 2007, p. 261). Sendo fundamental a crítica de Zaffaroni (1991, p. 239), onde fora desse princípio: [...] resulta claramente inconstitucionais os tipos penais sem limites certos, as escalas penais com máximos indeterminados e pressupostos penais administrativizados, que não conhecem a tipicidade legal, nem como os que, pertencendo à órbita judicial, ficam entregues à tipicidade de construção judicial. O princípio, ora em exame, implica a proscrição de qualquer integração analógica de lei penal, impondo sua interpretação rigorosa como regra geral. Para um estudo sistemático do direito é de importância extrema que nos atentemos às normas e que os fatos se encaixem perfeitamente a elas, conforme Bobbio (2016, p.112). É característico da teoria normativa o reenvio do critério distintivo do direito do fato à norma, em outras palavras, de seu conteúdo – pelo qual, por exemplo, um fato pode ser econômico, social, moral – a sua forma, pela qual só pode ser ou comandado, ou proibido, ou permitido. Aqui, “forma” é entendida no sentido mais comum de “recipiente”, ou seja, de continente que não muda quando o conteúdo se altera. Atos humanos e fatos naturais, relações e instituições tornam-se jurídicos desde o momento em que ingressam nos esquemas normativos fornecidos por determinados ordenamento. Por isso é necessário atenção para que o legislador tenha o cuidado de tipificar penalmente o “caixa dois” de forma a estabelecer um limite certo da previsão legal ao fato. Não obstante, é necessário nos atentarmos à distinção entre direito efetivo e direito válido, referindo-me neste ponto sobre a questão que levantei ao analisar o art. 350 do Código eleitoral, que seria se ele possui devida efetividade, visto que no ano de 2016, ano de eleições municipais e após a decisão da ADI 4.560 pelo STF, o Tribunal Superior Eleitoral julgou apenas quatro casos referentes ao art. 350, número supostamente baixo quando é de conhecimento de todos que a prática de “caixa dois” é recorrente. Pois, “o que significa de fato que uma lei existe ou está em vigor? Significa apenas que está expressa por um texto legislativo não anulado e pode ser portanto aplicada mediante providências válidas relativamente a ela” (FERRAJOLI, 2006 p. 805), por isso não é suficiente para coibir a prática do financiamento ilícito partidário se encaixando o fato à mera previsão legal de um dispositivo V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 166 que relativamente possui um limite certo e estrito, é necessário que os órgãos jurisdicionais se utilizem dela, as tornem efetivas. Por essas conclusões chegadas até aqui é importante lembrar da lição do filósofo iluminista Voltaire (2015, p.46) “é preciso sempre partir do ponto onde se está, e daquele onde as nações chegaram”, por isso como uma referência legislativa na área do direito penal é interessante nos atentarmos ao Código Penal Espanhol, que é considerado um dos mais atualizados sobre este tema, incluindo-se uma recente reforma legislativa por meio da Lei Orgânica 5/2010, além da enorme importância acadêmica que a doutrina espanhola possui em matéria de direito penal. Em especial o seu artigo 304 bis que trata dos delitos de financiamento ilegal dos partidos políticos, darei maior importância à primeira parte do artigo, pois se trata da norma penal incriminadora primária: Artículo 304 bis. 1. Será castigado con una pena de multa del triplo al quíntuplo de su valor, el que reciba donaciones o aportaciones destinadas a un partido político, federación, coalición o agrupación de electores con infracción de lo dispuesto en el artículo 5. Uno de la Ley Orgánica 8/2007, de 4 de julio, sobre financiación de los partidos políticos. E a referência ao artículo 5. Uno da la Ley Orgánica 8/2007, de 4 de julio, sobre financiación de los partidos políticos: Artículo 5 Límites a las donaciones privadas Uno. Los partidos políticos no podrán aceptar o recibir directa o indirectamente: a) Donaciones anónimas, finalistas o revocables. b) Donaciones procedentes de una misma persona superiores a 50.000 euros anuales. c) Donaciones procedentes de personas jurídicas y de entes sin personalidad jurídica. Se exceptúan del límite previsto en la letra b) las donaciones en especie de bienes inmuebles, siempre que se cumplan los requisitos establecidos en el artículo 4.2, letra e). Com uma análise prévia é possível constatar que o ordenamento espanhol se encontra mais abrangente, com limite certo e sem dilatar demasiadamente a sua tipificação penal, ao imputar àqueles que realizem o financiamento de partidos políticos de forma ilegal, ou seja, o fato contrário V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 167 ao ordenamento se encaixa perfeitamente na norma penal. Sendo que a Ley Orgânica 8/2007 é expressa ao vedar a doação direta e indireta por qualquer fonte anônima; por pessoas jurídicas e por entes sem personalidade jurídicas; e por pessoas naturais acima dos 50.000 euros anuais. Essa última observação é extremamente importante, pois a quantidade máxima permitida na doação por pessoas físicas foi pauta de discussão da ADI 4.650 declarando-se a constitucionalidade do art. 23, § 1º, I e II, da Lei no 9.504/97 e do art. 39, § 5º, da Lei no 9.096/95. Legislação que permite a doação e contribuição por pessoas físicas para campanhas eleitorais até o limite de 10% dos rendimentos brutos auferidos pelo doador no ano anterior à eleição. Porém a decisão do Supremo manteve a ressalva de que é necessário haver maiores deliberações dentro do âmbito do Legislativo, com o objetivo de encontrar um sistema de financiamento por pessoas naturais que não seja tão dependente da renda bruta, visto que isso abre margem para que pessoas com alto poder financeiro acabem se prevalecendo e dessa maneira confrontando o princípio republicano e da isonomia. Interessante ressaltar como o Código Penal Espanhol é expresso ao vedar doações anônimas; por parte de pessoas jurídicas; e entes sem personalidade jurídica, sendo mais precisa e clara do que a PL 4.850 de 2016 que não faz menção à proibição de doações por estes sujeitos referidos, mesmo que tal doações sejam consideradas inconstitucionais, apenas coíbe a doação paralela pela lei eleitoral. Reiterando, é de fundamental importância que a lei penal seja clara e didática em seus termos, pois isso resulta em consequência direta na sua aplicação e exegese: [...] deve ser criteriosa, discreta, prudente: estrita, porém não restritiva. Deve dar precisamente o que o texto exprime, porém tudo o que no mesmo se compreende; nada de mais, nem de menos. Em uma palavra, será declarativa, na acepção moderna do vocábulo. (MAXIMILIANO, 2011, P.264) CONSIDERAÇÕES FINAIS Podemos concluir após a análise do sistema de financiamento partidário a partir do entendimento recente do Supremo Tribunal Federal, que hojenão é mais possível a doação por pessoas jurídicas, porém também é necessário ver o arcabouço jurídico no que diz respeito ao enfrentamento das práticas delitivas que visam infringir o entendimento constitucional V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 168 de que as doações por pessoas jurídicas ferem o princípio da isonomia, o republicano, o democrático e da cidadania. A partir do reconhecimento dos fatos de como o poder econômico esteve estritamente presente nas últimas eleições por motivos seriamente duvidosos, sendo por diversas vezes atrelados à corrupção política; e do reconhecimento do entendimento do Supremo Tribunal Federal após a ADI 4.560, foi necessário analisar se o ordenamento jurídico brasileiro possui alguma lacuna ou incoerência legislativa, e foi constatado que possuímos o art. 350 do Código Eleitoral que trata sobre a falsidade ideológica, ou seja, tem a possibilidade de abranger a movimentação irregular de ativos com finalidade eleitoral, e tal artigo possui relativa eficácia como é possível verificar com as poucas decisões da Justiça Eleitoral após a decisão da ADI 4.560. No entanto, por não ser específico, ele acaba por não abranger determinados modos de financiamento partidário, por exemplo, as doações que não possuem fim diretamente ligado às eleições, e não se trata de uma norma jurídica com abrangência suficiente para se coibir a fraude de “laranjas”. Por essa razão, pode-se concluir que atualmente o nosso ordenamento jurídico não é capaz de fornecer os instrumentos necessários para coibir todas as formas possíveis ilícitas de financiamento partidário. E nem mostra a perspectiva de que irá se ter, visto que a PL 4.850/16 tipificará, se aprovada, no Código Penal a figura do “caixa dois eleitoral”, não fazendo nenhuma menção à doações indiretas e não goza de total clareza, como é necessário para as leis penais. Portanto, nosso ordenamento ainda necessita seguir mais alguns passos em direção do aperfeiçoamento legislativo, e como sugestão, seria de extrema valia nos atentarmos às legislações estrangeiras com o devido cuidado, pois como já queria Carlos Maximiliano (2011, p.134) é necessário sim consultarmos repositórios do Direito estrangeiro tendo como “a idéia adotada pelas coletividades colocadas no mesmo nível de civilização, em iguais condições de cultura, e cujas legislações espelhem tendências análogas”. Sendo o Código Penal Espanhol uma referência no assunto, tendo que a doutrina penal espanhola é uma referência mundial e possui determinada sincronia e troca cultural com os países latino americano, incluindo o Brasil, assim a referência merece a atenção dos juristas e do Poder Legislativo federal, pois se trata de uma norma jurídica que possui uma especificidade com precisão cirúrgica que visa coibir as práticas delitivas que podem vir a macular todo o processo democrático, eleitoral e político, afetando diretamente na crise de representatividade no país5, 5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.650. Relator Luiz Fux. Acórdão, 17 de set. 2015. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 169 criando um distanciamento entre a sociedade civil e a classe política, que ao passar do tempo afeta diretamente o funcionamento das instituições. REFERÊNCIAS BARBOSA, Walmir. Estado e poder político em Marx. Disponível em: http://www.goiania.ifg.edu.br/cienciashumanas/images/downloads/ artigos/estado_poderpolitico_marx.pdf. Acesso em: 19 jan. 2017. BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo e Positivismo Jurídico. São Paulo: Editora Unesp, 2016. BORGES, Paulo César Corrêa. A autoanistia dos crimes ligados ao ‘caixa 2’. Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/blogs/tudo-em-debate/a- autoanistia-dos-crimes-ligados-ao-caixa-2/. Acesso em: 19 jan. 2017. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal. BRASIL. Projeto de Lei no 4.850, de 2016. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.650. Relator Luiz Fux. Acórdão, 17 de set. 2015. CAGNI, Patrícia. Prática de caixa dois já é criminalizada, mas tipificação em lei é necessária, dizem juristas. Disponível em:http:// congressoemfoco.uol.com.br/noticias/pratica-de-caixa-dois-e-criminalizada- mas-tipificacao-de-lei-e-necessaria/. Acesso em: 19 jan. 2017. COUTINHO, Carla de Morais. 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V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 173 DIREITO E PODER POLÍTICO: A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA OPERAÇÃO LAVA JATO Luiz Antonio Martins Cambuhy Júnior1* INTRODUÇÃO 1 DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA Analisar o papel e a atuação do Supremo Tribunal Federal na Operação Lava Jato tendo em vista a relação entre direito e poder político. 1.1 Introdução ao problema Ao longo do desenvolvimento da teoria jurídica, muitos debates de fundamental importância se deram, principalmente pela complexidade que é inerente ao Direito, o que faz com que muitos conceitos permaneçam em constante mudança e adaptação, sujeitos a inúmeros fatores, como o próprio caminhar histórico ou o surgimento de uma nova visão doutrinária, não antes observada por outros juristas. Entretanto, certamente um dos maiores e mais controversos temas já abordados pela doutrina jurídica diz respeito à relação do Direito com o poder político, questão que, embora tenha acompanhado todo o desenvolvimento da teoria jurídica, tendo sido tratada pelas mais importantes e diversas doutrinas e nomes jurídicos, permanece em fundamental discussão até hoje. Este debate já se inicia complexo pelas inúmeras conceituações possíveis que se pode fazer de política e de poder e das relações entre os mesmos, ainda dentro da esfera da Ciência Política e da Teoria de Estado. * Discente do curso de graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP – FRANCA. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 174 Nesse sentido, destacam-se as definições de Max Weber1, David Held2 e Norberto Bobbio3 que, salvo pequenas ressalvas, convergem no sentido de considerar a política como o ambiente de conquistar, manter, influenciar, transformar ou simplesmente exercitar o poder que se tem. Definidos os conceitos iniciais que serão essenciais para a nossa análise, observa-se que, ainda que as referidas palavras de Barroso datem da contemporaneidade, onde vigora o neoconstitucionalismo e o pós-positivismo jurídico, essa discussão – apresentada pelo constitucionalista como “crença mitológica” de distinção entre os dois temas aqui abordados – se inicia na teoria jurídica pioneira, a Teoria Tradicional do Direito ou Teoria Jurídica Tradicional, que dá início a uma tradição objetivista do direito. Essa tradição permanece no Positivismo Jurídico, que, com a emergência de uma forte ordem cientificista, aprofunda ainda mais a visão do Direito como neutro e objetivo, que fora materializada principalmente na teoria pura kelseniana4. Assim, o Direito, observado enquanto ciência, distancia-se ainda mais de qualquer forma de visão que possa considera-lo para além de enquanto parte de um conjunto puramente dogmático. Ainda na metade inicial do século XX, já apontando para algumas das mudanças que passariam a se concretizar principalmente em matéria constitucional com a ocorrência das duas guerras mundiais,5 pela primeira vez se foge da teoria meramente normativa do direito, passando-se a considerar que ele pode, factualmente, apresentar intersecções com o poder político, não sendo assim completamente neutro e imparcial e nem puramente objetivo e dogmático. Essa visão vem do jurista Carl Schmitt que, embora rejeite a sua ocorrência,6 tem contribuição crucial para o debate, principalmente no tocante a atuação das cortes e tribunais constitucionais, uma vez que sua análise tem em vista o Tribunal Constitucional do Reich.7 Neste mesmo período histórico, começa a se desenvolver nos Estados Unidos uma teoria que influenciaria de forma definitiva o direito 1 FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. 5. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2006. 2 HELD, David. Models of democracy. 3. ed. Redwood City: Stanford University, 2006. 3 BOBBIO, Norberto. A Política. In: SANTILLÁN, José Fernandez (org.). Norberto Bobbio: O Filósofo e a Política: Antologia. Trad. César Benjamin e Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003. 4 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 5 Sobre o tema, vejam-se: Luís Roberto Barroso, Curso De Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo, 2013, p. 264; e José Duarte Neto, Rigidez e Estabilidade Constitucional: estudo da organização constitucional brasileira, 2009, p. 109-111. 6 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 446. 7 SCHMITT, Carl. La defensa de la Constitucion. Madri: Tecnos, 1983. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 175 e principalmente o nosso objeto de estudo: o realismo jurídico. Tendo seu principal referencial teórico na figura do juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes Jr., defendia-se que as decisões de um juiz podem ser influenciadas por múltiplos fatores e não somente pela lei, sendo esta muitas vezes nem mesmo um dos principais.8 Concisa, ainda que precisa definição do pensamento de Holmes se dá pelo professor Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, em seu estudo sobre o movimento nos Estados Unidos e o juiz em específico, onde diz que “Holmes insistia que os parâmetros de uma decisão são puramente práticos, e que jamais poderiam ser apreendidos da gramática ou da lógica” (2006, p. 100). Embora já se torne perceptível uma quebra de paradigma no direito com o rompimento de visões meramente formalistas e uma abertura para análises que o consideravam suscetível a pressões ou influências políticas – tratando em especial dos juízes ou cortes constitucionais -, esse movimento só começa a ocorrer de forma mais sólida após a Segunda Guerra Mundial, com a formação de um novo modelo constitucional a partir do desenho de uma Nova Ordem Mundial em meio a Guerra Fria e a emergência de governos autoritários, como se deu no Brasil com o Regime Militar. Esses eventos provocam em um vasto conjunto de juristas e teóricos uma perspectiva crítica do direito, que passa a ser visto como reprodutor dos interesses do Estado e do modo de produção vigente9 ou como um instrumento que deva ter uma função combativa,10 que ultrapasse o dogmatismo puro. Assim, se antes somente se reconhecia a disciplina jurídica como uma esfera abstrata a par da realidade social em que se vive, agora passa a se reconhecer o direito especialmente enquanto motor ou reprodutor de visões e interesses que superam o normativismo, adentrando diretamente em aspectos do que conhecemos enquanto política. Neste sentido, pode-se apontar três principais movimentos, diferentes entre si, mas todos oriundos da mesma raiz crítica: a Teoria Crítica do Direito, presenteno Brasil principalmente por meio da obra de Luiz Fernando Coelho;11 os “critical legal studies” norte-americanos, que tiveram como expoente o professor Roberto Mangabeira Unger;12 e 8 Ibidem, p. 431. 9 UNGER, Roberto Mangabeira. The critical legal studies movement: another time, a greater task. 3. ed. Londres: Verso Books, 2015, p. 28. 10 MELO, Osvaldo de Ferreira. Fundamentos da política jurídica. 1. ed. Porto Alegre: Fabris, 1994, p. 76. 11 COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 2ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. 12 UNGER, op. cit V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 176 a Política Jurídica, apresentada pelo jurista Osvaldo Ferreira de Melo.13 Uma síntese desse momento do pensamento jurídico é bem representada pelo movimento do qual participava Unger e que alega assertivamente que “direito é política” (GODOY, 2007, p. 3), encontrando assim o ponto comum que caracteriza todas as vertentes críticas do período. Paralelamente, se por um lado este debate se fazia de forma bastante pungente e complexa, por outro era muito claro que direito e política certamente se atingiam mutuamente em um determinado sentido, nunca havendo dúvidas ou questionamentos em relação a isso, uma vez que “em um Estado de direito, a Constituição e as leis, a um só tempo, legitimam e limitam o poder político” (BARROSO, 2013, p. 418). Entretanto, dois dos poderes previstos constitucionalmente – o Executivo e o Legislativo, a saber – são poderes eleitos pela via democrática, ou seja, estão sujeitos ao pleito popular para ocuparem seus cargos e os ocupam na qualidade de representantes do povo. Assim, considerando principalmente o nosso sistema eleitoral e os vícios históricos que se manifestaram em nosso país por meio do processo eletivo - mas que são na verdade produtos de nossa cultura política14 -, estes dois poderes estariam conectados principalmente a práticas e linguagens da disputa política majoritária, embora sua atuação devesse ser obrigatoriamente guiada pelo nosso conjunto normativo, em especial pela Constituição, que guarda a supremacia deste. Dessa forma, restava delegar a um dos poderes, este que não passaria pelo processo democrático, ou seja, não seria eleito, a tarefa principal de zelar pelo nosso conjunto legislativo, sem sofrer a influência ou pressão do jogo político majoritário. No Brasil e nos demais países presidencialistas, quem exerce esta função é o Poder Judiciário, para o qual inclusive são previstas determinadas garantias ou proteções para que sua função seja preservada. Enquanto instância máxima do Poder Judiciário, essa função tecnicista sempre foi potencializada na figura do Supremo Tribunal Federal, historicamente conhecido como “guardião da Constituição” pela sua atribuição de resolução de litígios constitucionais.15 Embora seus membros sejam indicados pelo Poder Executivo, podendo assim sofrer um certo grau de influência política – embora ainda assim essa indicação seja norteada por critérios constitucionais -, essa 13 MELO, op. cit. 14 SILVA, José Afonso da. A governabilidade num Estado Democrático de Direito. Disponível em: https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/libros/4/1648/4.pdf , p.7. Acesso em: 13 fev. 2017. 15 BARROSO, op. cit., p. 446. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 177 influência cessa no exato momento da indicação, já que, posteriormente, os ministros da Suprema Corte podem agir com independência e passam a usufruir das garantias e proteções do Judiciário mencionadas anteriormente. Recentemente, a atuação do STF em respeito a essa função já vinha sendo discutida, mais precisamente pela tomada de decisões em processos que são levados à Corte pela população em meio à crise de representatividade e que muitas vezes acabam usurpando a competência dos outros Poderes, em um presente e atual debate sobre ativismo e autocontenção judicial.16 Essas decisões – ou a necessidade de toma-las -, entretanto, ainda não expunham diretamente a nossa Suprema Corte a características do processo político majoritário, como tem acontecido mais recentemente por meio da Operação Lava Jato. Deflagrada em 2014 e perdurando até hoje, a Lava Jato iniciou-se como uma operação para averiguar um esquema de lavagem de dinheiro no Paraná, embora posteriormente tenha desvendado um grande sistema de propina por parte de políticos e empresários do alto escalão brasileiro para a manutenção de cargos da diretoria e administração da Petrobrás. Hoje, recém-completados 3 anos de sua primeira ação e sem um indicativo para seu fim, tamanha a abrangência e a violência com que atingiu principalmente a classe política de nosso país, a Operação acabou se tornando, indubitavelmente, o fator decisivo da agenda política brasileira. O fato de ser um evento muito recente e em andamento faz com que ainda não sustente uma base bibliográfica muito extensa, mas em seu livro “Lava Jato – o juiz Sergio Moro e os bastidores da Operação que abalou o Brasil”, publicado em 2016, o jornalista Vladimir Netto já a definiu como a operação que “de março de 2014 a março de 2016, passou de uma perseguição a um conhecido doleiro para a definição de quais seriam as regras do exercício do poder no Brasil” (NETTO, 2016, p. 6). Por ser uma operação que tem atingido em especial políticos, tanto congressistas quanto membros do poder Executivo, como ministros de Estado, boa parte das ações mais importantes da Operação – referentes a políticos no atual exercício de seus cargos e mandatos – são delegadas ao Supremo Tribunal Federal (para que se determine o seu andamento) por meio do foro especial por prerrogativa de função. Dessa forma, superando definitivamente sua função tradicional de mero intérprete constitucional, o STF se torna responsável pelo andamento de ações que podem afetar de 16 BARROSO, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista Atualidades Jurídicas, n. 4, jan/fev-2009, Brasília: OAB Editora. Disponível em: http //www.oab.org.br/ oabeditora. Acesso em: 22 mar.2017. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 178 maneira direta e decisiva a relação com os outros poderes e principalmente a crise institucional que o país atravessa, seja abrandando ou agravando-a. Assim, a análise da atuação do Supremo Tribunal Federal no âmbito da Operação Lava Jato acaba se tornando um verdadeiro estudo acerca de como tem se dado a relação entre direito e poder político no Brasil ao observar como o tribunal responsável pela guarda da Carta que carrega consigo a supremacia formal e material do nosso ordenamento jurídico tem decidido em ações que, por si mesmas, já trazem um forte peso de responsabilidade e influência política, levando determinadas práticas e vícios do jogo político majoritário a nossa Suprema Corte, como o lobby para que se acorde decisões, principalmente em meio a ações que determinam o futuro de Presidentes das casas do Congresso, de Ministros de Estado ou até mesmo de boa parte dos políticos a medida que trata de suas doações eleitorais, como as que serão aqui analisadas. Ao abrir o capítulo sobre o Poder Judiciário em seu “Curso de Direito Constitucional”, o notório jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho dizia, em 1996: Terceiro dos poderes do Estado na lição clássica, o Judiciário costuma ser considerado o menos importante deles. Ele o é, sem dúvida, se o encararmos do ponto de vista político. (p. 211) Entretanto, pouco mais de 20 anos depois, o órgão máximo do Poder Judiciário se encontra no centro de uma das maiores crises políticas já enfrentadas pelo Brasil, buscando atravessar mais uma vez, e dessa vez na prática, o delicado liame que liga o direito ao poder político, cruzando as linhas que por séculos os maiores juristas e doutrinadoresdo direito tentaram, em meio a muita discrepância, determinar. 1.2 Justificativa É sabido que o Brasil atravessa uma crise possuidora de várias facetas, em que é difícil precisar uma forma específica pela qual ela se manifesta, dada sua amplitude, assim como uma data exata de seu início, já que, a depender do ponto de vista sob o qual se observa, ela pode significar somente a eclosão de um acúmulo de problemas políticos já sofridos pelo país há tempos. Entretanto, um fator definitivo para o seu estopim certamente fora o surgimento da Operação Lava Jato. Com o envolvimento de grande parte da classe parlamentar brasileira na Operação e a previsão constitucional do chamado foro privilegiado, que passa até a ser questionado em meio a todo esse V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 179 processo,17 o Supremo Tribunal Federal se torna responsável por boa parte das ações da operação, especialmente no que diz respeito a “processar e julgar”, como prevê o dispositivo constitucional.18 Assim, por analogia: se a crise política brasileira tem como fator decisivo as ações da Operação Lava Jato e as mais influentes destas, do ponto de vista do equilíbrio e estabilidade institucional, tem seu proceder determinado pelo Supremo Tribunal Federal, as ações do STF na Lava Jato se encontram como fator determinante para que se possa, no mínimo, acompanhar os rumos da crise. Dessa maneira, torna-se imprescindível o estudo destas ações, seja como forma de garantir o princípio da previsibilidade, apresentado enquanto fator jurídico fundamental por Holmes Jr., ligado diretamente ao conceito de segurança jurídica – em especial o subjetivo, consolidado pela doutrina de Miguel Reale19 - e até política, de certo modo. Para além disso, existe também a responsabilidade social para com a população como um todo, sempre a mais atingida por uma crise de qualquer natureza, uma vez que se deve buscar meios e alternativas para a saída da crise atual e, uma das necessidades básicas do início da realização dessa tarefa – a qual esse trabalho se dispõe – é a de estudo dos fatores mais relevantes e decisivos que influenciam a mesma. Analisar a atuação do Supremo Tribunal Federal na Operação Lava Jato, por toda a explanação acima apresentada, também é uma forma de contribuir para debate constitucional histórico e de suma importância, como é o da relação entre direito e poder político, desta vez não por um viés puramente teórico – como se apontou pela introdução deste trabalho que tem sido construído ao longo dos tempos no Brasil e no mundo -, mas sim por um viés prático, que pode confirmar visões consolidadas pela doutrina, mas também apresentar novos caminhos sobre como pode proceder não só o Poder Judiciário, mas qualquer jurista em ação que o conecte diretamente e até em rota de colisão com o poder político, a título de exemplo do que acontece no Brasil atual por meio da Lava Jato, em situação sem precedentes em nossa história jurídica. 17 AP 937/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, 10 fev. 2017; O ESTADO DE SÃO PAULO. Senadores articulam ‘filtro’ e ‘vara especial’ em caso de fim de foro privilegiado. Disponível em: http:// politica.estadao.com.br/noticias/geral,senadores-articulam-filtro-e-vara-especial-em-caso-de-fim- de-foro-privilegiado,70001709641. Acesso em: 23 mar. 2017. 18 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988, arts. 53, § 2º; art. 102, I. 19 Um sentimento, a atitude psicológica dos sujeitos perante o complexo de regras estabelecidas como expressão genérica e objetiva da segurança mesma. (REALE, 1994, p. 86, apud CASALI, p.6273). V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 180 1.3 Objetivos O principal objetivo do presente trabalho é, por meio da análise jurisprudencial, ler, de forma crítica, como têm se dado as principais decisões do Supremo Tribunal Federal no âmbito da Operação Lava Jato, para assim se realizar, por meio da comparação bibliográfica com estudo doutrinário histórico, uma profunda apreciação sobre como se dá a relação entre Direito e poder político no Brasil atual, em tempo de crise, a qual é diretamente afetada pelas mesmas decisões que aqui serão estudadas. Por meio da análise, também se torna inevitável a discussão de relevantes conceitos para o Direito Constitucional, como acerca das competências do STF, de segurança jurídica, do mandado de segurança coletivo impetrado por partido político para defesa de interesses difusos, do princípio da moralidade, da licitude de provas em processo, das responsabilidades do Presidente da República e de sua analogia à linha sucessória, do conceito de “delinquência no poder”, de separação e harmonia entre os poderes, do “periculum in mora”, da legalidade das doações eleitorais, da presunção de inocência e do peso da opinião pública na decisão jurisdicional. 1.4 Metodologia O presente trabalho, enquanto pesquisa de natureza qualitativa, terá como metodologia a análise jurisprudencial de decisões do Supremo Tribunal Federal combinada, por meio do método comparativo, com a análise bibliográfica referente às principais escolas teóricas jurídicas que exerceram estudo sobre o debate em torno da relação entre direito e poder político, ambos feitos de forma crítica. De forma prévia, como parte da elaboração do projeto inicial, foi feita uma delimitação do recorte temático da pesquisa, de forma a tornar o projeto mais preciso, uma vez que se tratava de assunto muito vasto, com inúmeras possibilidades e vertentes de abordagem. Assim, delimitou- se quais teorias jurídicas seriam estudadas por meio da análise acerca de quais delas haviam se dedicado ao debate entre direito e poder político – tema aqui discutido -, sendo escolhidas as escolas tradicionalistas – a Teoria Tradicional do Direito e o Positivismo Jurídico -, a teoria de Carl Schmitt, o realismo jurídico norte-americano e as escolas críticas – a Teoria Crítica do Direito, os Critical Legal Studies e a Política Jurídica. Também V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 181 foi necessário determinar quais decisões do Supremo Tribunal Federal no âmbito da Lava Jato seriam utilizadas, uma vez que, além do total decisório do colegiado no processo somar inúmera quantidade de documentos, nem todas estas decisões contribuíam para o debate a que se propõe. Assim, foram estabelecidos os seguintes critérios para determinação das decisões: a capacidade de interferência na relação com os poderes, a influência na crise atual e a geração de precedente judicial, assim como decisões em processos que, mesmo não pertencentes a Lava Jato, eram capazes de gerar importante precedente para esta. Expostos os critérios, as decisões que se encaixavam nestes e que foram escolhidas para análise nesta pesquisa foram as que se encaixavam nos seguintes casos: a investidura do ex-Presidente Lula e de Moreira Franco para ministros de Estado, objetos dos mandados de segurança 34070 e 34609, respectivamente; o pedido de afastamento de Eduardo Cunha e Renan Calheiros das respectivas casas congressuais que presidiam, objetos da ação cautelar 4070 e da arguição de descumprimento de preceito fundamental 402, que versa sobre a possibilidade de réus ocuparem a linha sucessória da Presidência da República; e a aceitação de denúncia contra o senador Valdir Raupp, feita por meio do inquérito 3982 do Ministério Público Federal. A partir deste ponto, inicia-se o processo de levantamento bibliográfico e documental para utilização na pesquisa, com a determinação dos principais autores e obras, de fundamental contribuição, das teorias jurídicas a serem abordadas, além da coleta das decisões do Supremo Tribunal Federal necessárias, extraídas do próprio site do colegiado.20Além disso, deverão ser utilizados também documentos que ajudem a esclarecer de quais contextos emergiam as decisões aqui analisadas e quais consequências tiveram, por meio do próprio portal de notícias eletrônico do STF, contido em seu site oficial, mas também através notícias publicadas em variados meios de comunicação e análises feitas por jornalistas políticos. Posteriormente, há de se efetuar a leitura crítica da bibliografia teórica selecionada, com o levantamento dos principais elementos de cada teoria acerca do debate entre direito e poder político e também daqueles que os diferenciam entre si. Da mesma maneira, analisar-se-á os documentos jurisprudenciais, estes já feitos de forma comparada. Assim, serão comparados em termos de contexto, argumentação jurídica e decisão final os casos análogos de Lula e Moreira Franco e Eduardo Cunha e Renan Calheiros – com a questão dos réus na linha sucessória da 20 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp . Acesso em: 20 abr. 2017. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 182 Presidência da República de fundo –, sendo analisado de forma isolada somente o caso Valdir Raupp. Exercidas isoladamente ambas as análises documentais mencionadas, será aplicado o método comparativo para ver como ambas se interseccionam, naquele que é o principal objetivo da presente pesquisa. Assim, por meio da comparação entre os principais elementos levantados por ambas as análises, será possível responder as perguntas por este trabalho objetivadas. Com as respostas das perguntas objetivadas, dar-se-á início ao processo de análise dos resultados. 2 DESENVOLVIMENTO Ao longo do estudo do debate entre direito e poder político na doutrina jurídica, é possível se perceber uma gradativa mudança de concepção a respeito de como os dois podem se relacionar. Se nas primeiras conceituações, ambos eram colocados em espaços completamente distintos e opostos pelas visões mais tradicionalistas, que consideravam o direito como isolado em uma esfera abstrata e avesso a qualquer influência que, em contato com a realidade prática, pudesse deturpar suas normas e princípios, as visões realistas e críticas buscaram o compreender enquanto uma ciência humana efetivamente aplicada, ou seja, observando os diversos motivos – para além do universo dogmático – que influenciam suas resoluções e as circunstâncias ideológicas que fomentam – ou deveriam fomentar, como no caso da Política Jurídica - o seu nascimento e a sua utilização. Entretanto, tais escolas não ganharam suficiente espaço na discussão ampla acerca da construção e da aplicação do direito, o que fez com que as visões tradicionalistas ainda hoje vigorassem com força, como afirma de forma categórica Luís Roberto Barroso. Essas visões, porém, passam a ser questionadas pela sociedade por meio da atuação do Supremo Tribunal Federal na Operação Lava Jato, onde ganha atenção o aspecto do direito que é suscetível às pressões do poder político em momentos politicamente sensíveis. A primeira situação a colocar tal visão à prova fora justamente o pedido de indeferimento da investidura do ex-presidente Lula como Ministro-Chefe da Casa Civil, sob a alegação de desvio de finalidade, pedido este que fora aceito pelo Ministro Gilmar Mendes, o qual, utilizando provas de licitude questionada, contrariara próprio voto anterior em questão. Meses depois, semelhante pedido fora rejeitado pelo Ministro Celso de Mello que, após a exigência de explicações ao Poder Executivo, V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 183 rejeitou a acusação de desvio de finalidade na indicação de Moreira Franco para ocupar a Secretária-Geral da Presidência da República, mesmo tendo desde o princípio rejeitado a possibilidade de propositura de mandado de segurança coletivo para proteção de interesses difusos por partidos políticos, a qual fora anteriormente aceita por Mendes. Em meio a este caso, figurava também a ação que julgava a constitucionalidade da ocupação de cargos na linha sucessória da Presidência por réus em processos judiciais, que afetara diretamente a situação do então Presidente da Câmara Eduardo Cunha e do Presidente do Senado Renan Calheiros. Ambos réus em processos judiciais, Cunha, sob a argumentação de empregar a delinquência no poder, foi afastado da Presidência da Câmara e teve seu mandato cassado, enquanto Calheiros, após desrespeitar decisão monocrática de Marco Aurélio de Melo, permaneceu na Presidência da casa, apenas não podendo ocupar o Executivo em caso de vacância, com a decisão sendo tomada pelo Plenário após a reunião a portas fechadas com outros membros do Legislativo e a preocupação com a aprovação de pautas do Executivo pelo Congresso Nacional, embora se valesse fundamentalmente da alegação da ausência do “periculum in mora”. Em fato mais recente e que deve se constituir em importante precedente para a elaboração de futuras denúncias dentro do contexto da Operação Lava Jato, o Supremo também aceitou acusação contra o senador Valdir Raupp, o qual teria recebido doação eleitoral – ainda que devidamente registrada – em forma de propina. Tal decisão, discutida em meio ao debate sobre o caixa dois, a influência da opinião pública nas decisões judiciais e até mesmo acerca das competências do STF, provocou reação imediata no Congresso Nacional, que retomou, em seus bastidores, discussões como acerca da anistia ao caixa dois e o fim do foro por prerrogativa de função. CONSIDERAÇÕES FINAIS A necessidade do STF de tomar decisões relativas à classe política envolvida na Operação Lava-Jato em um momento delicado para o país como é o da crise institucional, aproximou a sua postura da dos outros poderes no que se refere à manutenção do poder político, entendido aqui principalmente como capacidade de se manter o ambiente de atuação política ou de cooperação e negociação.21 21 HELD, id. V Seminário de Direito do Estado: “alternativas políticas e respostas jurídicas diante da crise das instituições” 184 Este processo de manutenção do poder político envolveu historicamente no Brasil práticas clientelistas, uma das principais causas da crise de governabilidadebrasileira.22 Estas práticas, entretanto, sempre mantiveram uma certa distância da Suprema Corte de nosso país, principalmente por esta ser um poder não investido através do voto. Porém, decisões importantes como as que podem afastar, cassar e até prender Presidentes do Congresso ou indeferir a investidura de Ministros de Estado movimentaram a disputa do jogo político para o STF, que passou a sofrer diretamente a influência e pressão de agentes políticos externos, permitindo a jornalistas políticosinclusive o uso do termo “trânsito no supremo” para designar políticos cujas pressões na Corte surtiam mais efeito. Seja em prol de uma manutenção da “harmonia entre os poderes” – e neste caso o sentido constitucional haveria sido distorcido23 – ou de um abrandamento da crise conforme ela aumentou suas proporções, este tipo de busca por influência no Supremo parece ter surtido efeito no sentido de causar grandes alterações na postura do colegiado, a ponto de permiti-lo aceitar reuniões extraoficiais com envolvidos – direta ou indiretamente - em ações na véspera destas serem julgadas (caso Renan Calheiros), tomar decisões contraditórias em situações praticamente análogas em um curto período de tempo (caso Lula/Moreira Franco e Eduardo Cunha/ Renan Calheiros), adiar o julgamento de processos relevantes por meio do pedido de vistas (julgamento dos réus na linha sucessória da Presidência) e costurar acordos inconsistentes juridicamente (caso Renan Calheiros). Com todas as críticas recebidas em meio ao processo e buscando atenuar o descontentamento popular, o Supremo também fez pequenas concessões à opinião pública, muitas vezes para