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Universidade de Brasília Programa de Pós-Graduação em História O PROJETO PORTUGUÊS PARA A AMAZÔNIA E A COMPANHIA DE JESUS (1751-1759) REFLEXOS DO CONFRONTO ENTRE ABSOLUTISMO ILUSTRADO E PODER RELIGIOSO NA AMÉRICA EQUINOCIAL GUSTAVO FERREIRA GLIELMO Brasília 2010 GUSTAVO FERREIRA GLIELMO O PROJETO PORTUGUÊS PARA A AMAZÔNIA E A COMPANHIA DE JESUS (1751-1759) REFLEXOS DO CONFRONTO ENTRE ABSOLUTISMO ILUSTRADO E PODER RELIGIOSO NA AMÉRICA EQUINOCIAL Brasília - 2010 - Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade de Brasília, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em História Social. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Albene Miriam F. Menezes GUSTAVO FERREIRA GLIELMO O PROJETO PORTUGUÊS PARA A AMAZÔNIA E A COMPANHIA DE JESUS (1751-1759) REFLEXOS DO CONFRONTO ENTRE ABSOLUTISMO ILUSTRADO E PODER RELIGIOSO NA AMÉRICA EQUINOCIAL Brasília, 16 de julho de 2010 Banca Examinadora Prof.ª Dr.ª Albene Miriam F. Menezes Prof. Dr. Fernando da Silva Camargo Prof. Dr. Antonio José Barbosa Prof. Dr. Jaime de Almeida (Suplente) Aos meus pais, pelo apoio de sempre. AGRADECIMENTOS À Prof.ª Dr.ª Albene Miriam F. Menezes, pela paciência e ajuda dispensada, a quem eu devo o resultado desse trabalho. Aos professores que serviram e ainda servem de estímulo em meus estudos superiores: Prof. Dr. Rafael Jorge Soares Duarte Marques, Prof. Dr. Luiz Cláudio Machado dos Santos e, mais uma vez, à Prof.ª Dr.ª Albene Miriam F. Menezes. Aos professores doutores José Ribeiro Machado Neto; Antonio José Barbosa; Marcos Magalhães; Sérgio Ricardo Coutinho e José Carlos Brandi Aleixo, S.J., pelas preciosas sugestões. À minha família, pela solidariedade. Ao Departamento de História da Universidade de Brasília pela oportunidade de realizar esse curso. RESUMO A presente dissertação analisa o processo que determinou a expulsão da Companhia de Jesus do Estado do Grão-Pará e Maranhão na década de 1750, durante a Era Pombalina. Com a assinatura do Tratado de Madrid (1750) entre Portugal e Espanha, o Estado do Grão-Pará e Maranhão aumentou suas fronteiras, a qual passou a abranger espaço considerável da selva amazônica. Dessa maneira, o reino de Portugal concebeu um projeto de modernização do Grão-Pará e Maranhão para garantir sua soberania sobre os novos territórios adquiridos, a fim de integrá-los melhor ao sistema comercial luso-brasileiro. Para esse efeito, buscou-se a exploração do seu ainda subestimado potencial econômico e o aproveitamento dos povos nativos para defender as novas fronteiras. A realização das medidas que compunham o Projeto Português para a Amazônia ficou sob encargo do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado que, orientado pelas Instruções Secretas, pôs em marcha as reformas pensadas pelo gabinete pombalino. O Projeto Português para a Amazônia, que continha no seu bojo aspectos da Ilustração, entrou em choque com o poder dos missionários da Companhia de Jesus, os quais controlavam parte considerável da política daquele Estado, resultando na expulsão dos padres jesuítas do Estado Grão-Pará e Maranhão. Os desentendimentos entre o governador Mendonça Furtado e os jesuítas paraenses estenderam-se para o reino, contribuindo para a proscrição da Companhia de Jesus dos domínios do Império Português. Outro resultado significativo da contenda foi sua contribuição para a anulação do Tratado de Madrid, substituído pelo Tratado de El Pardo (1761). Palavras-chave: Estado do Grão-Pará e Maranhão, Tratado de Madrid, Instruções Secretas, Companhia de Jesus, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Marquês de Pombal. ABSTRACT The present study analyzes the process that determines the expulsion of The Society of Jesus from the state of Grão-Pará and Maranhão in the 1750s during Pombal era. Along with the signing of the Treaty of Madrid (1750) between Spain and Portugal, Grão-Pará and Maranhão increased its borders approaches to cover a considerable space from the Amazon jungle. This way, the kingdom of Portugal created a project of modernization of Grão-Pará and Maranhão to ensure its sovereignty and to integrate it in a better way to the Luso-Brazilian commercial system. For that purpose, the government sought the exploration of the economic potential, that was still underestimated and the exploitation of native people to defend the new frontiers. The Governor Francisco Xavier de Mendonça Furtado was in charge of the Portuguese project performance for the Amazon and guided by the Secret Instructions, set in motion the reforms thought by Pombal’s cabinet. The Portuguese Project for the Amazon, which contained, in its bulge, aspects of Illustration, clashed with the power of the missionaries from the Society of Jesus, who used to control a considerable part of that state’s policy, resulting in their expulsion from Grão-Pará and Maranhão. The disagreements between the Governor Mendonça Furtado and the Jesuits from Pará extended to the kingdom, contributing to the extermination of the Society of Jesus from all the Portuguese Empire. Another significant outcome of the contest was its contribution to the annulment of the Treaty of Madrid, replaced by the Treaty of El Pardo (1761). Keywords: State of Grão-Pará and Maranhão, Treaty of Madrid, Secret Instructions, Society of Jesus, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Marquis of Pombal. SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................................2 PARTE I – PORTUGAL, SEUS DOMÍNIOS E A COMPANHIA DE JESUS......................18 I. Portugal no Contexto Europeu e suas Circunstâncias Internas e Ultramarinas ....................19 II. A Companhia de Jesus em Portugal.....................................................................................44 III. A Companhia de Jesus na América Portuguesa..................................................................65 PARTE II – FORTALECIMENTO DO ESTADO PORTUGUÊS NA AMAZÔNIA: CONTENDAS ENTRE MENDONÇA FURTADO E OS JESUÍTAS....................................94 IV. Mendonça Furtado na Amazônia: Antecedentes da Modernização Pombalina................95 V. O Projeto Português para a Amazônia: as Instruções em Desafio.....................................112 VI. A Consolidação das Reformas Pombalinas e a Expulsão da Companhia de Jesus..........140 CONCLUSÃO........................................................................................................................178 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FONTES.................................................................................................................................187 BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................188 ANEXOS (P.196 - 230) ANEXO A (P.197 - 206) ANEXO B (P.207 - 230) 2 INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é analisar o processo de expulsão da Companhia de Jesus do antigo Estado do Grão-Pará e Maranhão no âmbito do Projeto Português para a Amazônia, sob o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Consideramos relevante na investigação do banimento dos jesuítas do reino de Portugal o estudo do caso do Estado do Grão-Pará e Maranhão, por entendermos que a expulsão desses religiosos de Portugal se desencadeou a partir das contendasentre o governador daquele Estado e os membros locais da Companhia de Jesus. Quanto à periodização, o ponto de partida foi o ano de 1751, quando o governador Mendonça Furtado tomou posse do governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão munido das Instruções Secretas – documento que norteou a aplicação do Projeto Português para a Amazônia. Nossa análise termina em 1759, ano que, além de marcar o fim da gestão de Mendonça Furtado, assegura também o cumprimento pleno das Instruções Secretas. Os conflitos desencadeados entre o governador e a Companhia de Jesus, em decorrência da execução das Instruções, já havia findado no ano de 1759. Os inacianos ainda presentes no Grão-Pará embarcaram para Portugal por causa da ordem de proscrição dos jesuítas de Portugal e dos domínios ultramarinos. Para a análise do tema em questão, centramos nossa atenção no antigo Estado do Grão-Pará e Maranhão. Naquele espaço, desencadeou-se um processo dramático e conflituoso entre a administração pombalina e a Companhia de Jesus (representantes de duas culturas de poder antagônicas). Não obstante a provável inevitabilidade daquele confronto, em razão da ascensão de uma nova mentalidade na gestão da política em Portugal, jazia, contudo, em “estado latente”, os primeiros atritos ocorridos no Grão-Pará e Maranhão. Desse modo, levantamos a hipótese de que no conflito Pombal-Companhia de Jesus, que também pode perfeitamente ser entendido como absolutismo ilustrado em contraposição ao poder religioso, o Grão-Pará e Maranhão contribuiu de forma fundamental para início do processo que levou à expulsão dos jesuítas de Portugal. No escopo da pesquisa realizada, com o intuito de embasar nossa análise, constatou-se que a temática da proscrição dos jesuítas no Grão-Pará é pouco abordada 3 pela historiografia e merece atenção devida. A trama é tratada como evento secundário, acessório, dentro de um contexto mais amplo. Em nossa hipótese, não obstante o entendimento das causas da expulsão da Companhia de Jesus do reino de Portugal ser impraticável sem a consideração das mudanças estruturais, colocar o Grão-Pará no centro dos embates entre a administração pombalina e os jesuítas pode contribuir, em particular, para a compreensão do processo da expulsão dos jesuítas da Amazônia, tendo em vista que esse acontecimento local contribuiu para a futura proscrição no Império português. No Estado do Grão-Pará, ocorrem os primeiros atritos entre os contendores em tela, que tinham suas causas vinculadas ao poder religioso ou ao absolutismo, culturas de poder que no Estado se mostraram incompatíveis. Ademais, o Estado amazônico serviu de laboratório para o ensaio de medidas típicas do absolutismo. A hipótese referida acima talvez não tenha sido suficientemente levada a sério pela historiografia. Quando mencionada na bibliografia especializada, alguns autores a abordam de forma marginal, em artigos ou em passagem de estudos sobre temas afins. Dessa forma, para ilustrar, citamos os autores Kenneth Maxwell, A Amazônia e o fim dos jesuítas (In: Mais Malandros: ensaios tropicais e outros), e Jorge Couto, artigo O poder temporal nas aldeias de índios do Estado do Grão-Pará e Maranhão no período pombalino: foco de conflitos entre os jesuítas e a coroa (1751-1759) (In: Cultura portuguesa na Ilha de Santa Cruz). Francisco Falcon, na obra A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada, também se refere ao papel que o Grão-Pará e Maranhão teve no estopim da contenda Pombal-jesuítas. O autor faz uma abordagem estrutural que não privilegia a contribuição dos espaços regionais específicos ou os eventos na compreensão da trama histórica. Por fim, é imprescindível comentar a obra que trata da história administrativa do período pombalino, do autor Hélio de Alcântara Avellar, História Administrativa do Brasil: Administração pombalina, em que o autor dá indicação da importância do entendimento da contenda Pombal-jesuítas, utilizando como chave interpretativa o estudo do governo de Mendonça Furtado no Pará-Maranhão, que está alicerçado na leitura das cartas publicadas entre o governador e o seu irmão, o Marquês de Pombal. Na presente dissertação, apoiamo-nos nas impressões, nas experiências e na autoridade dos historiadores citados para abordar o tema. Parece-nos bastante provável que haja trabalhos acadêmicos com hipótese semelhante a nossa. No entanto, desconhecemos teses ou dissertações que seguem tal linha de raciocínio. 4 Em relação ao tema dos jesuítas no Pará, recorte pouco privilegiado na historiografia, existe razoável quantidade de material documental publicado e grande parte trata-se de fontes primárias impressas, as quais tivemos pleno acesso. O mesmo podemos dizer sobre fontes secundárias específicas (não existem muitas) que, apesar da raridade (algumas são de editoras portuguesas), conseguimos ter acesso. Citamos como exemplo as obras de Serafim Leite, João Lúcio de Azevedo, José Caiero e Anselmo Eckart. A principal fonte utilizada foi a coleção documental organizada por Marcos Carneiro de Mendonça, que foi sócio do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), intitulada A Amazônia na era pombalina, publicada em três tomos. A coletânea consiste na organização de missivas enviadas por Mendonça Furtado, governador do Grão-Pará e Maranhão, para o marquês de Pombal, em que o assunto versava, quase que invariavelmente, sobre os desafios que encontrou no período de sua gestão – 1751 a 1759. Na citada coletânea, encontramos cópias de documentos que pertencem a importantes arquivos portugueses, como a Torre do Tombo, o Arquivo Histórico Ultramarino e, também, outras referentes ao Grão-Pará, que pertencem ao Museu Britânico. Para entender a contenda entre Pombal e os jesuítas no período em questão, exige-se do pesquisador que utiliza a obra do Autor Marcos Mendonça, uma leitura atenta e minuciosa de todos os textos, mesmo aqueles que tratam de questões que aparentemente são puramente administrativas. Isso por que os jesuítas aparecem sempre como o principal obstáculo na adoção das medidas reformistas para o Estado. A parte mais interessante da correspondência para o estudo da questão jesuítica são 183 cartas particulares que Mendonça Furtado enviou para Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal. Em sua grande maioria constam reclamações que o governador fazia da atuação dos jesuítas no Grão-Pará e Maranhão. Consta na coleção um precioso documento intitulado Instruções régias, públicas e secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, capitão-general do Grão-Pará e Maranhão, em que encontramos dezenas de parágrafos que delineavam as novas disposições para o governo do Estado do Grão-Pará, ou aquilo que poderíamos denominar de “projeto da coroa portuguesa para o Estado do Grão-Pará”. Ao analisarmos o conteúdo das Instruções, percebemos que afetavam direta e indiretamente a Companhia de Jesus. 5 Alguns documentos, que têm importância para o tema pesquisado, que não foram publicados por Marcos Carneiro de Mendonça, podem ser encontrados digitalizados no “Projeto Resgate” (http://www.cmd.unb.br). As declarações a que nos referimos são cartas que Mendonça Furtado enviou ao marquês de Pombal, bem como outros ofícios emitidos e recebidos pelo governador, em que faz referência ao seu trabalho de emancipação indígena, às dificuldades em aplicar o Tratado de Madrid e à insatisfação com o trabalho dos missionários (total de 26 ofícios e cartas, entre os anos de 1755 e 1758). Embora a tarefa de decifrar os documentos demande grande esforço do ponto de vista paleográfico, o contato quase que direto com a fonte primária original fornece para o pesquisador emoção e estímulo inenarrável. Outro recurso eletrônico para divulgação de documentação da História do Direito português é a página eletrônica intitulada “IusLusitaniae – Fontes Históricas de Direito Português” (http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/). Nesse endereço, são disponibilizadas mais de trinta mil páginas digitalizadas de cartas régias, alvarás, leis, etc., e é organizado pelo Departamento de História da Universidade Nova de Lisboa. Obtivemos documentos interessantes como o alvará de extermínio da Companhia de Jesus, muitas das legislações indígenas, normas da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, dentre outros. Outro documento significativo foi a Relação Abreviada da República, que conseguimos no anexo de livro do padre jesuíta José Caeiro, A história da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal (três tomos). O texto integral do opúsculo de autoria anônima foi o primeiro escrito de propaganda antijesuítica patrocinado pelo marquês de Pombal e teve ampla divulgação em toda a Europa. Mesclando acontecimentos reais com fantasiosos, sua intenção era responsabilizar a Companhia de Jesus pelo fracasso da demarcação dos limites decididos pelo Tratado de Madrid. Tal complô teria sido urdido tanto na zona do Prata quanto na região da bacia amazônica, porque a sua execução inviabilizaria o prévio plano jesuítico de estabelecer uma república independente dos poderes das coroas ibéricas. Na suposta república jesuítica, os padres espanhóis, em conluio com os de Portugal, planejavam se assenhorear de um amplo território, que ia do Rio da Prata ao Amazonas, para poderem governar um vasto território, auxiliados por indígenas submissos às suas vontades e, obviamente, à revelia do poder secular. O documento demonstrava que a Guerra Guaranítica – que de fato ocorrera entre 1754 e 1756 – teria sido incentivada pelos jesuítas espanhóis, que arregimentaram os índios missioneiros das Missões 6 Orientais do Uruguai e terminaram por entrar em guerra aberta contra uma combinação de tropas espanholas e portuguesas. Utilizamos também relatos do jesuíta alemão Anselmo Eckart, Memórias de um jesuíta prisioneiro de Pombal, detentor de vasta experiência na Amazônia e que passou por todas as etapas do processo de expulsão. O padre, que foi catequista de índios, sofreu graves acusações do governador Mendonça Furtado, o que resultou no seu banimento do Estado e, consequentemente, no encarceramento em Lisboa. Anselmo Eckart é mencionado no referido documento Relação Abreviada da República como um dos mais destacados organizadores das sabotagens que teriam sido articuladas pela Companhia de Jesus na Amazônia. Consta no documento que Eckart fornecia treinamento militar aos indígenas, e que na aldeia em que ele era missionário havia um canhão com algumas peças de artilharia. No entanto, em seus relatos, Eckart defendeu-se dessa acusação. É interessante comparar a versão do missionário com a apresentada no diário das viagens realizadas por Mendonça Furtado, que além de ocupar o cargo de governador, ficou também incumbido de representar o rei português na região norte, no trabalho de demarcação das fronteiras entre as coroas de Portugal e a de Castela. Após a leitura do diário do governador e das cartas de Mendonça Furtado, fica latente a hipótese de que o governador teve importante contribuição na feitura do documento: a publicação da Relação só viria à luz depois de marquês de Pombal reunir uma quantidade considerável de material contra a Companhia de Jesus. No caso amazônico, todas as acusações ali registradas refletem o ponto de vista de Mendonça Furtado, o que pode ser constatado pela leitura das cartas que enviava ao marquês. A versão da Relação Abreviada da República a qual tivemos acesso foi a publicada e traduzida do latim para o português pelo padre jesuíta José Caeiro (In: A história da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal), um dos maiores apologistas da Companhia de Jesus, anexada na obra mencionada. Contemporâneo de todos aqueles acontecimentos, o padre Caeiro escreveu parte de seu trabalho nos cárceres de São Julião da Barra, em Lisboa. Embora não atuasse nas missões, José Caeiro reuniu em sua obra depoimentos de jesuítas que atuaram nas missões brasileiras e permitiu-nos, assim, conhecer a perspectiva dos missionários da Amazônia. Na obra, dividida em três tomos, o primeiro sendo o de maior relevância para nosso estudo, não só por que há a publicação, anexada, de muitos documentos pertinentes à pesquisa, mas também por que apresenta minucioso estudo das intrigas 7 palacianas que ensejaram a formação do gabinete josefino e que permitiram a Pombal ascender até se tornar o ministro mais importante de D. José I. No primeiro volume também, o padre faz análise exaustiva do conteúdo da própria Relação Abreviada da República. Outro documento que tivemos acesso, não de somenos importância, é o Tratado de Madrid de 13 de janeiro de 1750, que foi integralmente publicado pelo historiador Jaime Cortesão em seu clássico estudo sobre Alexandre de Gusmão e as negociações que deram origem ao tratado de fronteiras: Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (dois tomos). O Tratado de Madrid é de suma relevância para percebermos que as medidas reformistas de Pombal para o Grão-Pará ou Projeto Português para a Amazônia eram a continuação de uma estratégia desenhada antes mesmo da ascensão do próprio ministro, o que sugere o início da construção do Projeto anterior à Era Pombalina. O Tratado de Madrid foi assinado levando-se em conta o argumento, que na prática tinha força de expressão jurídica, conhecido como uti possidetis. Na medida em que os portugueses tomaram posse de territórios que transpunham os limites previamente estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas, o governo da Espanha não teve outro remédio senão reconhecer a soberania portuguesa em terras que os lusitanos não só haviam ocupado como também engendrado sua colonização. Destarte, reconhecendo a impossibilidade de retirar os portugueses daqueles territórios, os espanhóis assinaram o Tratado de Madrid aceitando a soberania portuguesa sobre os espaços ocupados. À luz da leitura da documentação expedida pelo governador Mendonça Furtado para Lisboa, pode-se constatar que para o governador a Companhia de Jesus era a maior barreira a se transpor na aplicação das medidas reformadoras no Grão-Pará e também do Tratado de Madrid. De fato, nas suas missivas, ele praticamente constrói um inimigo interno a ser combatido. Foi o próprio Mendonça Furtado quem sugeriu a Pombal a criação de uma companhia de comércio monopolista para o desenvolvimento econômico do Estado do Grão-Pará e Maranhão. A aprovação da legislação que fundava a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, em 1755, causou alvoroço entre os padres da Companhia de Jesus e foi o estopim que desencadeou a luta aberta entre os jesuítas e a administração pombalina (1755). A fundação da Companhia de Comércio do Grão-Pará tinha como objetivo, além do fomento do comércio do Estado, inserir mão-de-obra escrava africana em 8 substituição dos escravos indígenas. A preocupação com a substituição da mão-de- obra deu-se por causa da maior valorização do contingente populacional indígena dentro do contexto das demarcações das fronteiras entre Portugal e Espanha. Os portugueses que conheceram os benefícios do uti possidetis nas negociações para assinatura do Tratado de Madrid procuraram, mesmo após o acordo, dar continuidade à política de povoação das fronteiras para assegurar a posse do território. Nesse contexto, os índios ganharam importância que sobrepujava tradicionais preocupações de ordem humanitária, das quais os eles eram comumente objeto. Doravante, a partir do novo projeto, os índios passaram a ser úteis, pois supriam os vácuos populacionais em territórios estrategicamente vulneráveis e contribuíam para assegurar a posse da coroa portuguesa em seus domínios americanos. Desse modo, deixava de serinteressante para o governo português a existência de índios na condição de escravos ou como catecúmenos tutelados pelas ordens religiosas, tornado- se imperativo promover sua emancipação para que estivessem aptos a cumprir com os aludidos objetivos da coroa portuguesa. Preocupação que levou a administração portuguesa a incentivar a miscigenação de brancos com índios que, por sua vez, deveriam ser instruídos no aprendizado da língua portuguesa. Para o entendimento do funcionamento das Companhias de Comércio são fundamentais os trabalhos de Antônio Carreira, que é autor de “As companhias pombalinas de Grão-Pará e Maranhão e Pernambuco e Paraíba”, bem como do tomo específico sobre o Grão-Pará, intitulado A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão: documentos. O essencial deste trabalho é a compilação dos documentos mais importantes produzidos ao longo da história da Companhia de Comércio, desde a apresentação oficial da instauração da Companhia até os pontos da sua legislação. No livro, constam informações sobre os principais acionistas da empresa, bem como as posteriores queixas apresentadas por todos aqueles interessados em fraudá-las. A maioria das reclamações era dos jesuítas e de outros comerciantes, que se sentiam prejudicados pelo funcionamento da Companhia de Comércio, que, segundo eles, levaria ao fim do livre comércio entre o Estado do Grão-Pará e Portugal. Como salientamos anteriormente, o tema Pombal e os jesuítas na Amazônia ainda é muito pouco estudado. A maioria dos autores quando trata da questão de Pombal e os jesuítas, embora sempre mencionem os acontecimentos do Grão-Pará, abordam-nos de forma marginal. O mais célebre estudo que se ocupa especificamente do papel dos jesuítas no Pará ainda é o trabalho de João Lúcio de Azevedo, intitulado 9 Os jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Publicada no início do século XX, continua a ser obra de referência obrigatória e, ainda hoje, é exaustivamente utilizada por todos aqueles que se ocupam do assunto. O estudo abrange mais de cem anos de trabalho dos jesuítas no Estado, mas termina por dedicar pouca atenção, já no epílogo, à gestão de Mendonça Furtado. Posteriormente, o mesmo João Lúcio de Azevedo produziu trabalho sobre o marquês de Pombal, O marquês de Pombal e sua época, em que dedica parte do estudo à influência dos acontecimentos no Grão-Pará que teriam influenciado na perseguição jesuítica em todo o reino de Portugal. É uma biografia política que tende a supervalorizar, na pessoa de Pombal, todas as decisões de sua gestão, negligenciando, talvez, outras personagens de importância naquele contexto e a própria mentalidade de uma época em Portugal. Como João Lúcio de Azevedo tem profundo interesse na contenda Pombal versus jesuítas, apresenta detalhes da crescente tensão entre ambos os partidos, dando destaque aos acontecimentos no reino e aos problemas no Grão-Pará, assim como no sul da América, que culminou na expulsão da Companhia de Jesus do mundo lusitano. Quiçá, nenhum outro autor contribuiu tanto para a história dos jesuítas no Brasil como o historiador e também padre jesuíta Serafim Leite. A obra A História da Companhia de Jesus no Brasil, um monumento historiográfico, é composta de dez volumes e abrange o trabalho dos jesuítas em todos os recônditos da América portuguesa, bem como o importante papel histórico que desempenharam durante período colonial. O autor dedicou dois tomos (3º e 4º) exclusivamente para o estudo dos jesuítas na Amazônia, desde a chegada dos seus primeiros missionários, seguida da passagem do padre Antônio Vieira, aquele que foi o mais destacado missionário da região, até os intermitentes conflitos com os moradores, a história das missões, e também a apresentação dos títulos e das datas das legislações indígenas. Muito embora seja uma obra seminal, o livro não registra de forma abrangente a temática Pombal, os jesuítas e a Amazônia. Leite preocupa-se em demonstrar a atuação positiva que os jesuítas tiveram na região, desde a educação e proteção aos índios, o ineditismo na produção de gêneros como o cacau e o café em suas fazendas, até o estabelecimento de algumas manufaturas, assim como o treinamento dos índios nos ofícios mecânicos. No que diz respeito à expulsão da Companhia de Jesus do Brasil, Leite posiciona-se de forma parcial na defesa da congregação e, nesse aspecto, sua obra tem um quê de apologética. O autor enumera as diversas acusações formuladas contra a atuação da ordem no Brasil durante o período pombalino e procura refutá-las. Dentre 10 as acusações, constam as supostas irregularidades que os jesuítas praticavam no comércio amazônico. Eles desempenharam papel negativo no momento em que as fronteiras entre Portugal e Castela estavam por ser definidas e opuseram-se à formação da Companhia Geral de Comércio de Grão-Pará e Maranhão. O monopólio da mão-de- obra indígena por parte das ordens religiosas foi considerado, desde sempre, a principal causa da antiga e persistente miséria do Grão-Pará e Maranhão. Por todas essas razões, os jesuítas entraram em choque com o governador do Grão-Pará, que passou a ver neles seu grande inimigo para levar a cabo medidas que visavam reformar o Estado. A linha de defesa que Serafim Leite apresenta para a questão do comércio ilegal da Companhia de Jesus é a repetição dos mesmos argumentos empregados pelos missionários jesuítas da Amazônia desde o século XVI. As fazendas da Companhia de Jesus geravam riquezas para um único intuito: o reinvestimento daqueles cabedais no aumento e no aperfeiçoamento das missões junto aos indígenas. Se as missões alcançaram maior prosperidade material em comparação com os negócios dos moradores, isso se devia pela exploração inteligente que faziam da terra e pelos melhores cuidados que tinham com a mão-de-obra indígena. Isentos do pagamento de impostos e taxas de exportação quando embarcavam o produto para o reino, os jesuítas justificam esses privilégios como necessários à manutenção do oneroso custo das missões. Para o autor, os religiosos jamais agiam fora dos ditames estabelecidos pelas suas Constituições (escritas por Inácio de Loyola). Além disso, todos os seus bens de raiz adquiridos, que eram fonte de polêmica, eram posses com respaldo legal. Serafim Leite admite que sua análise seja insuficiente quando o assunto são as causas que levaram à perseguição dos jesuítas pelo governador Mendonça Furtado. Afirmou que o tema, por ser matéria tão vasta, não pode ser pensado isoladamente, dado que englobaria muitas modalidades, desde o Amazonas até a Colônia do Sacramento, no Rio da Prata. A observação nos deu a entender que Serafim Leite não teve acesso a parte importante da documentação do pesquisador Marcos Carneiro de Mendonça para o estudo do tema. Provavelmente, ele referia-se à correspondência entre Mendonça Furtado e Pombal, que, quando citada, era por meio de excertos de fontes secundárias, quase sempre do livro de João Lúcio de Azevedo, Os jesuítas no Grão-Pará. Serafim Leite advoga a tese de que Pombal é o grande mentor do “sequestro” dos bens da Companhia de Jesus na Amazônia, quando a perseguição aos jesuítas já havia se tornado pública, e seu irmão, Mendonça Furtado, não representava 11 mais do que um executor de sua vontade – diferentemente do que aqui apresentamos, pois a leitura das fontes pesquisadas sugerem um protagonismo de Mendonça Furtado no processo. O motivo da apreensão dos bens seria a inevitável transferência do capital das fazendas dos jesuítas aos cofres públicos para sanar a ruína econômica em que jazia o Estado do Grão-Pará, e o meio usado foi a fraudulenta manipulação de documentos que provassem que os bens de raiz que a Companhia de Jesus explorava eram juridicamente ilegais. Serafim Leite afirmava que a apresentação de outros documentos deitava facilmente abaixo aquelas“meias-verdades”. Finalmente, o autor analisa os eventos ocorridos entre Mendonça Furtado e os jesuítas, mas sublinha que são questões menores e que o próprio governador já trazia a expulsão da Companhia de Jesus nas Instruções Secretas. A maioria dos historiadores, ao contrário, chama a atenção para o artigo 22º das Instruções, a qual orienta Mendonça Furtado a dar preferência aos padres da Companhia de Jesus sempre que precisassem do auxílio de eclesiásticos para fundar novas povoações em limites estratégicos, não obstante tendo a cautela de não lhes entregar poderes temporais. É fato que do outro lado do mar, na época, havia uma nova mentalidade em ascensão, que defendia o despotismo esclarecido e, pela sua lógica, o enfraquecimento do poder eclesiástico, que fora a principal causa da desgraça da Companhia de Jesus, e que culminaria na sua expulsão de Portugal pelo decreto de 3 de setembro de 1759. Percebemos que era necessário, de fato, dirigir nosso olhar às mudanças no reino de Portugal, as quais tiveram desdobramentos que atingiram o Grão-Pará e Maranhão. Mas cabe frisar que não concordamos inteiramente com Serafim Leite em sua minimização da importância dos eventos amazônicos. Acreditamos que a preocupação do marquês de Pombal em relação aos jesuítas do Pará fez com que ele adotasse medidas draconianas contra a Companhia de Jesus no Brasil. E em Portugal, tendo em vista que a questão paraense gerava problemas entre o Pará e o reino, o processo de expulsão dos jesuítas foi acelerado. A expulsão foi consequencia também da ascensão de novos fatores históricos, que falaremos a seguir. A argumentação de Serafim Leite, baseada nas normas da Companhia de Jesus, levou-nos a fazer leitura integral das Constituições da Companhia de Jesus e dos documentos de sua fundação, contidos no mesmo livro. Percebemos que conhecer a posição de Leite significa, provavelmente, ter a noção do raciocínio dos jesuítas do período colonial brasileiro, pois o autor apropriou-se da linha argumentativa dos religiosos do século XVIII e a reproduz em sua apologia. Por se assemelharem a 12 artifícios jurídicos, todos os argumentos construídos pelos jesuítas para tocar seus empreendimentos mercantis baseavam-se em argumentações que não feriam de forma direta as normas internas. É possível identificar a lógica interna do Instituto, sua vocação no seio da cristandade católica e o modo de ser e proceder dos seus membros. A aludida leitura constituiu exercício de considerável importância para a compreensão da trama envolvendo os jesuítas e o governo de Mendonça Furtado. Trabalho de suma importância para compreender as transformações que operaram no reino de Portugal em meados do século XVIII, vem a ser o de Francisco José Calazans Falcon: A época pombalina – política econômica e monarquia ilustrada. O autor faz abrangente estudo da legislação pombalina no período que ficou conhecido como auge do despotismo esclarecido em Portugal. Calazans Falcon ocupa- se do marquês de Pombal não como um fenômeno ímpar, ou um mito do seu tempo, mas como um porta-voz e principal agente catalisador de reformas que foram levadas a cabo pela ascensão de um grupo vanguardista que representava a ilustração portuguesa. Falcon analisa os escritos produzidos pelos pensadores, que considerou relevante, para justificar a existência de um movimento de ilustração tipicamente português e que fora preponderante no século XVIII. Os “estrangeirados” tinham como principal proposta reformar o Estado. Esse termo foi posteriormente adotado pela historiografia portuguesa para denominar os intelectuais portugueses que viveram no estrangeiro em contato com as idéias iluministas, em voga pela intelectualidade europeia, que eram pouco divulgadas em Portugal. O grande projeto dos estrangeirados consistia em trazer propostas para reformar o Estado. A nova intelligentsia era partidária da secularização de instituições do Estado português. Colocadas em prática as idéias dos estrangeirados, durante o período pombalino, o país experimentou mudanças significativas. Houve a tentativa de renovar os quadros burocráticos para que operassem de forma mais racional. No aspecto educacional, as instituições de ensino, em todos os níveis, que eram praticamente um monopólio do clero, mais precisamente da Companhia de Jesus, passaram por uma reforma curricular, que teve como objetivo favorecer a transformação de uma mentalidade considerada na época retrógrada na época. No campo econômico, as transformações foram dinamizadas pela criação de companhias comerciais monopolistas, com o intuito de fortalecer o Estado português para fazer frente à competição estrangeira, sanar as sangrias provocadas pelos contrabandistas e fortalecer os grupos comerciais que faziam o comércio de grosso 13 trato. Nesse contexto, como o Brasil exercia um papel fundamental no sistema comercial luso-atlântico, essas medidas afetavam diretamente a vida econômica e social na colônia, como aconteceu no Grão-Pará e Maranhão. Aparentemente, essas podem parecer questões marginais para a nossa pesquisa, mas fornecem nova perspectiva para o estudo do antijesuitismo do período pombalino, naquilo que afeta diretamente o Grão-Pará e Maranhão. Não podemos analisar o conflito no cenário amazônico entre os jesuítas e o grupo pombalino sem nos lembrarmos de que ele é, em certa medida, o reflexo dos conflitos que aconteciam na metrópole entre os mesmos grupos de poder. No entanto, percebemos no trabalho de Falcon, uma tendência em minimizar a importância das questões do Grão-Pará, que seriam como que um desdobramento inevitável de transformações mais amplas, as quais tinham origem em práticas reformistas previamente ensejadas na metrópole. Não obstante, neste trabalho, creditar importância aos acontecimentos do Grão-Pará justifica-se face às evidências identificadas nas fontes pesquisadas, em que encontramos provas de que este espaço joga uma importância relativa naquele embate Pombal-jesuíta. Perfilamo-nos ao lado dos defensores de no Grão-Pará, que acreditavam que o Estado serviu como laboratório para testar medidas reformistas engendradas pelo grupo pombalino. Em razão do seu resultado satisfatório, tais experiências foram analogamente aplicadas em outros espaços da colônia, a exemplo da criação da primeira Companhia de Comércio para o desenvolvimento e integração de espaços econômicos (Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão em 1755), que tinha sua versão para o Nordeste brasileiro, a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1756), bem como a invenção de uma legislação que pudesse por fim à antiga e irresoluta questão indígena. Todas essas inovações procuravam fortalecer a autonomia do poder público. No entanto, essas medidas receberam forte oposição dos religiosos, que costumavam influir em questões próprias da esfera civil, vendo nelas uma ameaça ao poder estabelecido. Ressaltamos que todas essas medidas, dentre outras mais, antes de serem aplicadas ao restante do Brasil, foram testadas no Grão- Pará e Maranhão. A futura guerra aberta que se desencadearia entre Pombal e a Companhia de Jesus em Portugal teve o seu estopim no mesmo Estado do Grão-Pará, onde os jesuítas se posicionaram contrários a todas aquelas decisões do grupo pombalino, ali representado pelo governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 14 O historiador inglês Kenneth Maxwell é autor de importante trabalho sobre Sebastião José de Carvalho e Melo: Marquês de Pombal – paradoxo do iluminismo, uma biografia da trajetória política de Pombal. A obra descreve a rede de contatos formada nos anos que ele desempenhou funções como diplomata, experiência fundamental à formação do ideário do futuro ministro e à aplicação das medidas mais marcantes ao longo de sua gestão. O trabalho inclui também a influência do pensamento ilustradona formação de uma nova mentalidade no reino de Portugal, a importância das reformas econômicas e educacionais naquela gestão e a situação de Portugal, no concerto europeu de nações, com maior destaque à dependência lusitana frente à Inglaterra. Maxwell acabou fazendo um balanço do legado pombalino. Dedicou considerável atenção à questão jesuítica e estabeleceu relação entre os acontecimentos do Grão-Pará com a futura perseguição da congregação no mundo lusitano. Centrado também em individualidades históricas, e não apenas em ideias e instituições, esse autor aponta o papel que os padres jesuítas desempenharam na crescente tensão entre a Companhia de Jesus e Pombal. Dentre outros nomes, cita o padre Ballester, que proferira em Lisboa sermão contra a formação da Companhia de Comércio do Grão- Pará e Maranhão, e, em especial, o padre Gabriel Malagrida, que foi missionário no mesmo Estado e incomodou os planos de Pombal após o terremoto. O padre aproveitou o acontecimento para proferir pregações públicas de sentido ambíguo, o que Pombal entendeu como mensagens subliminares contra a sua pessoa. Arthur Cezar Ferreira Reis dedicou o seu trabalho de historiador ao espaço amazônico. Ferreira Reis dá demasiada ênfase à geografia amazônica, o que nos leva a entender que para esse autor, o meio ambiente foi de fundamental influência para a história social da região e, seguindo a linha de Caio Prado Júnior e Celso Furtado, divide a história econômica colonial da Amazônia em ciclos. Primeiramente, o ciclo das drogas do sertão (XVI-XVII), em que os colonos coletavam as riquezas oferecidas espontaneamente pela natureza, seguido pelo segundo ciclo, o da experiência agrária (XVIII), em que o trabalho sistemático e racional da terra passa a ser valorizado. O segundo ciclo foi inaugurado no consulado pombalino, cujo início, para Reis, está registrado nas Instruções enviadas a Mendonça Furtado, cabendo a ele executá-la, o que levou o irmão de Pombal a reunir muitos esforços nesse sentido: “Para que à aventura da droga, sucedesse o cometimento agrário”. De fato, o artigo 6º das Instruções exorta o governador a incentivar a produção agrícola. A importância da 15 fundação de uma companhia monopolista, como fora a Grão-Pará e Maranhão, sugerida por Mendonça Furtado a Pombal, seria enlaçar o comércio amazônico ao europeu. Para Ferreira Reis, os resultados foram positivos, a despeito da insatisfação dos mercadores que não eram associados à Companhia de Comércio, porque ela teria alcançado aquele objetivo quando elevou o crescimento da produção exportável. No entanto, não encontramos nas análises de Reis, no tempo de Pombal, nada especificamente voltado à questão religiosa na Amazônia. Os autores acima citados são os que mais balizaram nossa abordagem. Isso se confirma pelo nosso tratamento em relação às diversas facetas do tema, tanto das políticas pombalinas quanto da questão jesuítica, conforme fica registrado na lista de fontes e na bibliografia apresentada neste estudo. Também utilizamos para o estudo especifico das políticas pombalinas, as pesquisas de Borges de Macedo; as cartas que Pombal escrevia para importantes jesuítas, que foram publicadas na coleção organizada por António Lopes; assim como a análise política do período pombalino sob a ótica de António Moreira. É importante salientar também os estudos sobre a ideologia pombalina, os aspectos econômicos e a influência de uma nova mentalidade relativa aquele período. Nesses aspectos, uma das obras mais elucidativas é o Testamento político de D. Luís da Cunha. Ainda sobre a influência jesuítica na dimensão mundana, destaca-se o trabalho de Paulo de Assunção sobre os negócios temporais da Companhia de Jesus no Brasil. Baêta Neves, por outro lado, chama atenção para um projeto jesuítico elaborado ainda antes do período por nós estudado, e que fora engenhado pelo padre Antônio Vieira. Mas é interessante notar que em relação a este tema, maiores informações advêm dos escritos produzidos pelos padres do Grão-Pará, na época de em que foram expulsos do Estado, bem como das cartas de Mendonça Furtado para o marquês de Pombal. Considerando que grande parte das polêmicas em torno da expulsão da Companhia de Jesus diz respeito ao enriquecimento da ordem no Estado do Pará- Maranhão e no Estado do Brasil, ficamos por dever uma análise quantitativa que mensure a riqueza da mencionada ordem religiosa. O presente trabalho é insuficiente nesse sentido. Apesar de reconhecermos a importância desse importante aspecto, os dados estatísticos sobre as entradas e saídas de riquezas não só das missões como também em relação aos comerciantes leigos, para Lisboa, ou o número de navios que 16 entraram e saíram do porto de Belém e São Luís não compõem o escopo desta pesquisa. A informação estatística ajudaria a avaliar o argumento das ordens religiosas e dos comerciantes universais, os quais consideravam o monopólio, que seria ensejado pela fundação da companhia de comércio, desnecessário e prejudicial aos negócios particulares e públicos. A administração pombalina, ao contrário, encarava o recurso ao monopólio como necessário para o fomento do comércio. Uma análise dos dados comerciais, antes do estabelecimento da Companhia Geral, poderia fornecer números que corroborassem ou questionassem alguns dos argumentos de Mendonça Furtado, o qual defendia a existência de uma companhia de comércio como instituição fundamental ao desenvolvimento econômico. Por outro lado, a informação estatística poderia contribuir para desvendar possível artifício engenhado pelo governador a fim de justificar a fundação da companhia de estanco com o objetivo de concentrar o comércio dentro dos interesses estatais de Portugal. A estrutura desta dissertação foi elaborada com o intuito de demonstrar o papel relevante da Companhia de Jesus no império colonial lusitano, para em seguida esclarecer sua incompatibilidade com uma nova mentalidade de poder em ascensão em Portugal. O consulado pombalino engendrou projetos reformistas que iam contra o antigo papel desempenhado pela Companhia de Jesus na América portuguesa. O Estado do Grão-Pará e Maranhão foi escolhido para ensaiar algumas das medidas típicas da Era Pombalina. No primeiro capítulo, contextualizamos Portugal no cenário europeu, ilustramos os desafios para manutenção de sua soberania e do seu Império Colonial no jogo da competição com os demais reinos do mesmo continente. A independência portuguesa se deve, em grande parte, ao alinhamento diplomático com a Inglaterra. No entanto, daquela aliança excessiva resultaram efeitos perversos para a administração portuguesa que exigiriam correções no futuro. As soluções originais para inúmeros problemas da vida política portuguesa, desde a dependência e fragilidade de sua política externa, ou mesmo da defasagem da intelectualidade nacional, partiu de um grupo que representava a ilustração em Portugal, denominados de “estrangeirados”, o qual fazia parte o marquês de Pombal. No capítulo posterior, discorremos sobre a fundação da Companhia de Jesus, o espírito da organização e os seus objetivos institucionais, para em seguida analisar o rápido poder que alcançaram em Portugal, em razão da união de interesses entre o seu 17 projeto e o da coroa portuguesa durante o amadurecimento da sua colonização ultramarina. No terceiro capítulo, partimos à análise da importância que os jesuítas tiveram na colonização portuguesa, desde os seus primórdios, e também como foram relevantes para o estabelecimento dos lusitanos na América portuguesa. Depois do enfoque abrangente do papel dos jesuítas na América portuguesa, evidenciamos aqui os trabalhos da Companhia de Jesus no Estado do Grão-Pará e Maranhão, que são de grande importância para os objetivos de nossa análise. No quarto capítulo da segunda parte da dissertação,apresentamos o Projeto Português para a Amazônia. Justificamos a existência de um projeto específico da coroa portuguesa para aquela região, baseando-nos em documentação emitida pelos reis de Portugal: as Instruções Secretas enviadas ao governador Mendonça Furtado e as cláusulas do Tratado de Madrid assinado entre Portugal e Espanha. As medidas sinalizavam a marca da gestão pombalina. A aplicação da proposta de modernização da Amazônia ficou na responsabilidade do novo governador do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. O governador, que era meio-irmão do marquês de Pombal procurou aplicar as medidas reformistas em obediência às Instruções Secretas, regimento que continha vontade expressa do monarca lusitano. No quinto capítulo, expusemos a tentativa de aplicação do Projeto Português para a Amazônia. Apesar de sua factibilidade, o Projeto esbarrou na oposição de vários setores da sociedade local e, aparentemente, também na má-vontade da Companhia de Jesus local. Isso por que, com o tempo, os jesuítas paraenses ganharam determinado poder e relevância, muitas vezes, superior ao poder dos funcionários burocráticos dentro do Estado. Eles perceberam nas reformas propostas alguns inconvenientes em relação ao funcionamento do seu projeto, o missionário, que caminhava paralelo ao estatal. Finalmente, no sexto e último capítulo, evidenciamos as consequências resultantes da consolidação das reformas pombalinas na Amazônia. A radicalização dos partidos antagônicos no Grão-Pará e também no reino de Portugal – entre representantes da ilustração, liderados Pombal, contra poderes conservadores, encabeçados pela Companhia de Jesus –, resultou em luta aberta em que o resultado foi a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal. 18 PARTE I – PORTUGAL, SEUS DOMÍNIOS E A COMPANHIA DE JESUS 19 I. Portugal no Contexto Europeu e suas Circunstâncias Ultramarinas Podemos dizer que o Estado português surgiu em sua forma embrionária ainda no século XI, se partirmos do pressuposto de que o seu nascimento é resultado da fundação do pequeno feudo denominado Condado Portucalense (1095). A autonomia do Condado, que nunca foi totalmente aceita por Castela, era alvo de constante ameaça, uma vez que qualquer desagregação do tecido social, ou conflito político mais sério, sinalizava para os castelhanos a possibilidade de tentar avançar contra o pequeno território, a fim de controlar a totalidade da península ibérica mediante sua anexação. De fato, essa perspectiva concretizou-se, por exemplo, durante a Revolução de Avis (1383-1385), deflagrada por uma crise dinástica em que parte da nobreza se posicionou em prol da união com os castelhanos. Eclodida a guerra aberta entre os dois reinos, o exército luso sai vencedor rechaçando Castela na Batalha de Aljubarrota (1385). Portugal teve parte de sua vitória graças a ajuda prestada pela nação inglesa que, no campo diplomático, prestou algum suporte durante o conflito bélico. Imediatamente após a guerra, as boas intenções entre ingleses e os lusos levou à assinatura do Tratado de Windsor (1386), que em substância previa reciprocidade em assistência militar e favores comerciais.1 Posteriormente, em 1580, pairou novamente a ameaça do domínio castelhano, mais uma vez em razão de nova crise sucessória. Dessa feita, as Cortes reunidas em Tomar deliberaram pela aceitação do domínio Habsburgo, que chegou a durar 60 anos (1580-1640) – período que interrompeu provisoriamente a aliança com a Inglaterra, que era inimiga da Espanha, e tornou os Países Baixos de antigos aliados em irrevogáveis rivais de Portugal no domínio pelo comércio do Brasil. Desse modo, observa-se a situação delicada do reino lusitano: cobiçado e carente de um exército satisfatório, administrava um Império Colonial de proporções normalmente inimaginável para as dimensões de suas forças política e militar. O trunfo à preservação de sua soberania esteve desde sempre articulado em estratégias formuladas no campo diplomático. Para Portugal, residiu justamente na 1 Cf. MARQUES, A. H. de Oliveira. Breve história de Portugal. 2. ed. Lisboa: Presença, 2001. p. 117. & NOVAIS, Fernando. Portugal e o Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Editora Hucitec, 1978. p. 20-21. 20 trama das relações internacionais a chave para a manutenção não só de sua fronteira europeia, mas também do seu império marítimo, o que depois da sua expansão no século XVI, tendia para o desaparecimento na Ásia ou África (em contraste, cabe ressaltar que na América suas possessões estavam em expansão). Em virtude das desvantagens de poderio bélico em relação aos seus concorrentes europeus, sua política externa pautava-se pela neutralidade e procura por alianças com nações mais poderosas para manter sua soberania. Essa estratégia de neutralidade por parte do reino lusitano ainda era mantida no século XVIII, século do despotismo esclarecido de Dom José I e seu mais destacado ministro, o marquês de Pombal. Em uma Europa dominada por Inglaterra e França, os demais Estados orbitavam ao redor destes dois pólos conforme seus interesses. Portugal manteve aliança com a Inglaterra. Esse cenário foi possível em face de um dos eventos mais significativos do século XVII, o declínio da hegemonia mundial espanhola; processo que se confirmou nos acordos celebrados em Utrecht e Halstaat (1713-1715), os quais modificaram o equilíbrio de poder entre as potências europeias, a partir de então lideradas por Inglaterra e França, à qual Espanha se aliou. Portugal há muito na condição de estrela de segunda grandeza no cenário internacional, aprofundou a disposição de reforçar a aliança com a Inglaterra, motivo pelo qual realizou acordos com os ingleses para manter a existência de seus domínios ultramarinos, – principalmente o americano – assim como a sobrevivência da metrópole constantemente ameaçada pelo fantasma de uma nova invasão espanhola. A independência de Portugal aceita pela Espanha em 1658 inaugurou um período de intensa procura da casa de Bragança por garantias na defesa da soberania nacional e proteção do território colonial. Portanto, um dos maiores alicerces da proteção portuguesa seria o recrudescimento das tradicionais relações externas com a Inglaterra, a exemplo da celebração do Tratado de Windsor (1386) com o fim da Revolução de Avis (1385). O primeiro tratado anglo-português após a restauração da autonomia do reino lusitano é celebrado em 1642, entre Carlos I, Stuart, e D. João IV. Nele, constava que Portugal, para obter apoio político e militar dos ingleses, abriria para eles seus portos na península e suas colônias na África e na Índia. Acordo emergencial em decorrência do fato de que ao fim da União Ibérica, Exército e Marinha portuguesa não se encontravam modernizados. Além disso, seus melhores generais tinham sido 21 voluntariamente incorporados por Castela.2 Também foram concedidos em Portugal privilégios especiais aos comerciantes ingleses lá residentes: ficou estipulada a obrigatoriedade de Portugal adquirir mercadoria inglesa em navios de mesma bandeira. Posteriormente, novo tratado celebrado em 1654 entre as mesmas nações, praticamente uma imposição de Oliver Cromwell, beneficiava os ingleses com o comércio, o transporte e também com a abertura do mercado brasileiro à exceção de alguns produtos, além de tolerância às práticas religiosas inglesas.3 Em 1661, por ocasião do casamento de Catarina de Bragança com Carlos II da Inglaterra, foram selados acordos que reforçaram tratados anteriores.4 Dom João IV, que havia assinado em 1641 uma trégua com os holandeses, antes que ela expirasse, apressou-se em oficializar o consórcio da filha com CarlosII, para assim obter maiores garantias defensivas contra aquela potência marítima que já havia arrancado grandes quinhões dos domínios ultramarinos portugueses. Mas o acerto das bodas, que ocorreria em 1661, custou para Portugal, como dote, o sacrifício da Ilha de Bombaim e da praça de Tânger, acrescidos de dois milhões de cruzados. Poucos meses depois do acordo, os castelhanos invadiram Portugal e chegaram a tomar o controle de Évora, mas o avanço foi repelido com a ajuda de soldados ingleses. Assim, a despeito da Paz de Vestfália (1648), que arquiteta uma nova ordem entre os Estados europeus, e na historiografia é apontada como marco inicial do sistema moderno do Estado-Nação, a ameaça castelhana continuava uma constante, com refregas frequentes entre os dois países no âmbito da península ibérica. Se tudo isso não bastasse, no ultramar persistia a ameaça batava na incansável luta pelo controle do comércio mundial do açúcar. Além disso, o Tratado Hispano-Holandês (um dos tratados que compõe a série de diplomas da Paz de Vesfália) libera a Espanha do esforço de guerra até então concentrado no palco da Europa Central, fato este que aumenta os receios portugueses em relação à investida espanhola intensificada contra sua independência. Concernente à Paz de Vestfália, Giovanni Arrighi ressalta ainda que: 2 Cf. MARQUES, A. H. de Oliveira. op. cit. p. 301. 3 Cf. AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004 p. 39-40. 4 Cf. MOREIRA, Antônio. Desenvolvimento industrial e atraso tecnológico em Portugal na segunda metade do século XVIII. In: SANTOS, Maria Helena Carvalho dos. Pombal Revisitado. Vol. II. Editorial Estampa. Lisboa, 1984. p. 16. 22 O sistema mundial de governo criado em Vestfália teve também um objetivo social. À medida que os governantes legitimaram seus respectivos direitos absolutos de governo sobre territórios mutuamente excludentes, estabeleceu-se o princípio de que os civis não estavam comprometidos com as disputas entre os soberanos. A aplicação mais importante desse princípio deu-se no campo do comércio. Nos tratados que se seguiram ao Tratado de Vestfália, inseriu-se uma cláusula que visava a restabelecer a liberdade de comércio (...). 5 Portugal respirou com duplo alívio em relação à Espanha e aos Países Baixos quando no dia 3 de fevereiro de 1668, Dom Afonso VI, o rei português, e Carlos II de Espanha assinaram o Tratado de Paz, em que o vizinho ibérico reconhecia a absoluta independência de Portugal. O mediador do concerto foi Carlos II da Inglaterra.6 Finalmente, em julho de 1669, foi firmado com os Países Baixos um tratado de paz, aliança e comércio, situação ratificada com o Tratado de Transação de 28 de novembro de 1692.7 Desse modo, pode-se afirmar, sem grandes exageros, que ao longo da História do seu Império Marítimo, desde o período dos Descobrimentos, Portugal, algumas vezes, viu-se na injunção de utilizar suas colônias como moedas de troca para preservar sua soberania ou seu domínio sobre a parte mais lucrativa do seu Império Ultramarino. Conforme assinalou Fernando Novais, "(...) no plano político internacional, a preservação do ultramar português se torna condição mesma da existência da metropolitana; é a sua moeda de garantia”.8 A mesma tese foi anteriormente defendida por Borges de Macedo, para quem “(...) a independência portuguesa – sem o contrapeso e o veículo marítimo de auxílio, estaria em perigo, num equilíbrio continental que lhe seria fatalmente desfavorável.” 9 Assim, a aliança inglesa foi a pedra angular dos esforços da diplomacia portuguesa para atingir aquele fim. Não de somenos importância na pauta estratégica da diplomacia portuguesa, foi o reconhecimento da fragilidade de Portugal, que urgiu pela manutenção da neutralidade nos conflitos europeus. Embora no geral, bem-sucedido na estratégia, o país não conseguiu passar incólume à Guerra de Sucessão Espanhola (1701 - 1713) e à Guerra dos Sete Anos (1756 - 1763). A França, muitas vezes, teve intenções de 5 ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. Rio de Janeiro: Contraponto. São Paulo: Editora UNESP, 1996. p. 43 6 Cf. SOARES, Álvaro Teixeira. O Marquês de Marquês de Pombal. Brasília: UnB, 1983. p. 22. 7 Ibid., p. 24. 8 NOVAIS, Fernando. op. cit. p. 55. 9 MACEDO, Borges de. A situação econômica no tempo de Pombal: alguns aspectos. 2. ed. Lisboa: Editores Moraes, 1982. p. 61. 23 sabotar a aliança luso-inglesa, na medida em que auferia, com a aliança espanhola, proveitos comerciais do Império Colonial Hispano-Americano, que poderiam ainda ser multiplicados em um hipotético alinhamento luso-francês. Na Guerra de Sucessão Espanhola, iniciada em 1701, Portugal, em primeira instância, reconheceu a ascensão de Felipe d’Anjou, um Bourbon e neto de Luís XIV, ao trono de Espanha (Carlos II, Habsburgo, por não deixar herdeiros indicou Felipe d’Anjou como seu sucessor). Desse modo, Portugal apoiou a situação, deixando a Espanha na condição de reino aliado e vassalo da França, o que geraria desequilíbrio no jogo de forças do contexto internacional. A precipitação de Dom Pedro II de Portugal foi uma resposta às calorosas promessas de cooperação de Luís XIV feitas a um reino lusitano já então sufocado pela aliança britânica. A França, que se articulava para uma esperada crise de sucessão na Espanha, esboçou uma estratégia de aproximação entre Portugal e o eixo franco-espanhol. Parecia se desenhar entre Portugal, França e Espanha a possibilidade real de se formar uma inédita coalizão. Dando continuidade à aproximação com os franceses, Dom Pedro II de Portugal, conforme acordado no Tratado Provisional de 4 de março de 1700, comprometeu-se em abdicar das suas pretensões no norte do estuário do Amazonas, garantindo a destruição dos fortes construídos e a evacuação dos colonos. Posteriormente em Lisboa, no dia 18 junho de 1701, as duas monarquias ibéricas assinaram um tratado de aliança mútua e, em contrapartida, a Espanha tinha de ceder definitivamente o litigioso território da Colônia do Sacramento aos lusitanos. Finalmente, no mesmo dia e cidade, Portugal e França subscrevem um tratado de aliança, que garantia o cumprimento do testamento do rei Carlos II da Espanha.10 Ainda em Lisboa, o embaixador da França em Portugal, Rouillé, conseguiu um projeto de aliança, em que Portugal se comprometeria a fechar seus portos aos inimigos franceses. Dividida a diplomacia portuguesa entre a manutenção da aliança inglesa e o ensaio de uma nova aliança francesa quando a neutralidade parecia inexequível, Dom Pedro II optou pela primeira. A aproximação com a França tinha como objetivo primordial reforçar a neutralidade e, portanto, a não-participação em conflitos. Assim, com a inevitabilidade da guerra generalizada na Europa, eclodida pela rivalidade anglo-francesa, os diplomatas portugueses, que perceberam da parte de Felipe V 10 Cf. SOARES, Álvaro Teixeira. op. cit. p. 25. 24 d´Anjou certo pendor hegemônico sobre seu país, além do perigo de uma guerra naval contra as duas maiores potências marítimas de então (Inglaterra e Holanda que eram inimigas declaradas de França e Espanha), conjeturaram a voltar ao velho e seguro alinhamento com os ingleses – principalmente por que as promessas de Rouillé, de que certo suporte naval seria fornecido aos portugueses, jamais foram cumpridas. Por outro lado, havia a promessa da parte dos aliados (composta principalmente pela Inglaterra, Países Baixos e Áustria) de entregar a Portugal, em caso de vitória, várias cidades espanholas na Galiza e Estremadura.11 Assim, os imperativos da conjuntura de então, recrudesceram a aliança anglo-portuguesa. Embora Portugal ainda tenha ensaiado um emparelhamentofrancês no intuito de se desvincular da excessiva dependência inglesa, a eclosão da guerra fez com que a Rainha Ana da Inglaterra despachasse para Lisboa, na condição de embaixador britânico, o antigo Chanceler da Irlanda, John Methuen, com o objetivo de trazer Portugal definitivamente para o seu lado. Dessa forma, foram assinados os “famigerados” Tratados de Methuen.12 O primeiro como aliança ofensiva e defensiva (maio de 1703) e o segundo com caráter econômico (dezembro de 1703). Tais tratados, no juízo severo de Lúcio de Azevedo, fariam de Portugal “(...) a mais excelente colônia da Grã-Bretanha”13, porque colocava definitivamente o comércio nacional nas mãos dos britânicos. Da parte dos ingleses, um dos objetivos do tratado era escoar para Portugal produtos de pano e outras manufaturas laníferas em troca de vantagens fiscais em relação aos vinhos portugueses, diminuindo assim a dependência da produção vinícola francesa. O Tratado de Methuen, como é largamente sabido, é acusado de desestruturar as manufaturas portuguesas, até então protegidas pelo governo, o qual impedia a entrada de produtos manufaturados laníferos estrangeiros.14 Portugal conseguiu manter a neutralidade na Guerra de Sucessão Austríaca (1740-1748), mas não evitou sua participação na Guerra dos Sete Anos (1756-1763). O conflito representou um choque de interesses continentais entre a Áustria e a Prússia, mas, sobretudo, uma luta entre França e Inglaterra, que disputavam as possessões coloniais atlânticas, questão que também era do interesse português. A 11 Acordo fixado em dois artigos secretos no tratado de aliança de maio de 1703 quando obteve, de fato, com o findar da guerra e a assinatura do tratado de Utrecht, o reconhecimento dos direitos de navegação e comércio do rio Amazonas, dos terrenos a norte do mesmo, e a restituição da Colônia de Sacramento. 12 Cf. SOARES, Teixeira. op. cit. p. 28. 13 AZEVEDO, João Lúcio de. op. cit. p. 220. 14 Cf. CORTESÃO. Jaime. Alexandre de Gusmão & o Tratado de Madrid. São Paulo: FUNAG, 2006. Tomo I. p. 45. 25 crise foi originada pelo “Pacto de Família” – assinado em agosto de 1761 pela França, Espanha e o Duque de Parma e representou a tentativa de unir as monarquias de sobrenome Bourbon, a qual Portugal foi intimado a participar. A contenda mais uma vez reafirmava a incapacidade portuguesa de se defender valendo-se de seus próprios meios, uma vez que o auxílio à sua defesa foi organizado pela Inglaterra que, apesar da parcimoniosa ajuda sob o comando de Lorde Tirawley (seis regimentos de infantaria, um de cavalaria e armas), desembarcou suas tropas em Portugal, onde o precário exército nacional era comandado pelo conde Lippe. 1.1 Domínios Sul-Americanos – Ocupação dos Territórios e os Tratados de limites Desde a Restauração (1640), a economia colonial portuguesa ficou cada vez mais dependente das riquezas do Brasil, fenômeno denominado pela moderna historiografia de “Atlantização” da economia ultramarina portuguesa.15 Depois da perda de entrepostos comerciais nas Índias e a tendente desvalorização das mercadorias ali obtidas, o comércio brasileiro ascendeu como componente privilegiado pelos interesses lusitanos. O complexo colonial brasileiro fornecia mercadorias como açúcar e tabaco, além de bons negócios com o tráfico de escravos e a extração de metais preciosos. Se os problemas comerciais oriundos da falta de regulamentação e de instituições públicas ineficazes assombravam as finanças no reino, o Brasil de forma análoga sentia seus reflexos. Entrementes, havia o problema adicional da ambigüidade dos limites fronteiriços na América do Sul. Com o fomento da competição colonial, Espanha e Portugal articulavam-se para definir oficialmente as linhas limítrofes daqueles espaços. Os primeiros tratados celebrados entre Castela e Portugal para demarcar o território americano aconteceram em 1493 e, posteriormente, foi assinando, em 1494, o Tratado de Tordesilhas, que anulou o anterior de 1493. O Tratado estipulava que as novas terras descobertas ficavam dividias entre Castela e Portugal, e, por convenção, uma linha divisória deveria restringir os portugueses no Ocidente, no limite de 370 léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde. Realizados numa época em que a cartografia, 15Cf. MATTOSO, José. op. cit. p. 98. 26 a astronomia e os instrumentos de medição eram ainda rudimentares para os padrões atuais, restaram muitas incertezas em relação ao exato ponto de passagem do meridiano latitudinal. Também foi urgente realizar o novo tratado, o de Saragoça (1529), para estabelecer o ponto de encontro oriental do meridiano, que se deslocava do Ocidente em direção àqueles confins do mundo. Desnecessário dizer que tais intentos não vingaram. Eles restaram em letra morta com a simples entrada de outros reinos na competição pelo controle comércio colonial marítimo, que ignoraram os tratados que não foram consultados ou que não fizeram parte durante as negociações. Além disso, o território americano era vasto demais para que as nações ibéricas pudessem fazer frente a tais investidas. No entanto, entre os remotos pactuantes, os tratados ainda eram evocados em casos pontuais, a exemplo dos frequentes litígios entre os colonos castelhanos e os lusitanos nas zonas fronteiriças, entre os dois impérios na América do Sul. Os luso-brasileiros em contínua expansão ocuparam e colonizaram a hinterlândia do continente. A interiorização resultou principalmente da necessidade de ocupar certos pontos do litoral além dos limites oficiais de Tordesilhas. Dessa forma, podemos dizer que são três os fatores que fizeram com que a fronteira do Tratado de Tordesilhas fosse desrespeitada pelos moradores do Brasil, são eles: a busca por metais precisos, a captura de índios, a prática da pecuária e a necessidade de ocupar territórios, que, a despeito de sua localização, estava fora dos limites estipulados entre Portugal e Espanha, obrigando, por razões estratégicas, que os moradores invadissem a parte que pertencia aos espanhóis. Os luso-brasileiros não encontraram entraves para ocupar, no Norte, a foz do Amazonas e os colaterais que compunham sua bacia. Para tanto, em 1616, fundaram a povoação estratégica de Santa Maria de Belém para tomar conta da entrada do Amazonas. No Sul, a expansão paulista culminou na fundação da Colônia do Santíssimo Sacramento, em 1680, com a finalidade de dar continuidade, após o fim da União Ibérica, ao desvio do fluxo da prata extraída desde Potosí, no vice-reino do Peru – sem mencionar, todavia, as ininterruptas incursões para o Centro-Oeste. Dessa maneira, controlavam, à margem dos dois mais caudalosos rios, os dois principais pontos de acesso ao interior do continente. Apesar da coroa portuguesa ocupar territórios que extrapolavam os limites do Tratado de Tordesilhas, permanecia a questão da legalidade duvidosa daquelas possessões. A maior e talvez a única zona de grande atrito tenha sido a região das Missões Orientais do Uruguai, localizada na província jesuítica no Paraguai, região da 27 bacia do Prata. As Missões fundavam-se em povoados onde viviam os índios que estavam sob a tutela dos padres jesuítas espanhóis. Os povoados eram um todo orgânico sofisticado, bem-sucedidos em sua gestão, auto-suficientes em termos econômicos e gozavam de autonomia administrativa. Foi justamente nessa pequena localidade, onde as fricções entre luso-brasileiros e espanhóis, mais especificamente os padres espanhóis da Companhia de Jesus, alcançaram o paroxismo. Não raro, sertanistas brasileiros efetuavam nos Sete Povos ou regiões adjacentes redes com o escopo de escravizar os habitantes indígenas das povoações. Para exemplificar, salienta-se o caso da Província do Guairá (atual Paraná), que apenas noséculo XVII sofreu inúmeras investidas. O território foi invadido em 1606 e 1612 pela bandeira dos irmãos Manuel, em 1612 por Sebastião Preto, em 1623 por Fernão dias Paes, em 1627 por Paulo do Amaral e Raposo Tavares e, novamente, em 1629 por Manuel Preto. Somente entre 1628 até meados de 1630 foram capturados, pelos padres espanhóis da Companhia de Jesus, no Guairá, aproximadamente 40 a 60 mil guaranis dos aldeamentos administrados.16 Ademais, a coroa espanhola incentivava o desenvolvimento missionário na América Meridional, na medida em que as povoações funcionavam no sentido duplo de ser uma continuidade da política também expansionista castelhana, ao mesmo tempo que detinham o avanço luso-brasileiro no território espanhol, conforme afirma Quevedo, para quem: “(...) a Missão funcionou geopoliticamente no sentido de coibir a tal expansão mercantilista, escravista e geopolítica (dos luso-brasileiros).” 17 Assim, surgia a “(...) a necessidade de disporem povoados próximos, para dar maior segurança e transformá-los numa barreira eficaz ante o perigo luso.” 18 Cabe lembrar que as missões receberam autorização para armamento dos índios para defesa de sua propriedade e do território espanhol. Os lusitanos astutamente utilizavam o Prata para práticas comerciais, de onde conseguiam razoáveis quantidades de prata contrabandeada. Aparte os conflitos entre os colonos, de ambos os Impérios coloniais, persistia a necessidade de ver definida e legitimada, diante da comunidade internacional, as fronteiras sul-americanas. Isso por que no século XVIII ninguém questionava se as 16 Cf. ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 192. 17 QUEVEDO, Júlio. As missões: crise e redefinição. São Paulo: Ática, 1993. Série Princípios. p. 37. 18 Ibid., p. 37. 28 nações ibéricas, i.e., Espanha e Portugal, tinham pleno direito à totalidade da America do Sul (à exceção das Guianas e Suriname). Por conseguinte, Castela e Portugal necessitavam assinar um tratado de caráter definitivo para pôr fim às ambigüidades de ordem territorial, sobretudo quando a economia e a estratégia diplomática de ambos dependiam cada vez mais das receitas coloniais. Exceto que, dessa vez, o ajuste seria embasado numa considerável quantidade de ordenações, que resultaram de convenções anteriores e que serviriam de base para a elucubração do que viria a ser praticamente o tratado definitivo, o Tratado de Madrid de 1750. Curiosamente, o Tratado, tão custoso em suas negociações e demarcações, acabou revogado em 1761, com a assinatura do Tratado de El Pardo. Porém, constatamos que acordos posteriores como o Provisional (1777) e o Tratado de El Pardo (1778) terminaram por restaurar, em linhas gerais, a anterior proposta do Tratado de Madrid. Daí o maior destaque histórico do Tratado de Madrid em comparação com os subsequentes.19 A Paz de Utrecht (Países Baixos) põe fim à Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1714), em que estava em jogo interesses de várias potências europeias. Derrotada a França de Luís XIV pela Inglaterra, à qual Portugal estava associado, a diplomacia portuguesa, tendo como chefes da negociação Dom Luís da Cunha e do Conde da Silva Tarouca, logrou oficializar o reconhecimento, por parte da França, da soberania portuguesa nas terras do Cabo do Norte (atual Amapá). Assim, conforme artigo VIII, do Tratado de Utrecht: Sua Majestade Cristianíssima desistirá para sempre, como presentemente desiste por este Tratado pelos termos mais fortes (...) qualquer direito e pretensão que pode, ou poderá ter sobre a propriedade das Terras chamada do Cabo do Norte, e situadas entre o Rio das Amazonas e o de Japoc ou de Vicente Pinsão, sem reservar, ou reter porção alguma das ditas terras, para que elas sejam possuídas daqui em diante por Sua Majestade Portuguesa.20 Logo, estabelecia-se o Rio Oiapoque como fronteira natural entre ele e a região francesa de Caiena. Por sua vez, o Artigo X reconhecia definitivamente o direito exclusivo dos portugueses sobre navegação e uso do Rio Amazonas. Posteriormente, coube aos Habsburgos, como ônus da derrota, assinar o acordo de Utrecht de 6 de fevereiro de 1715. Com o acordo, Portugal, além de anexar ao seu território alguns espaços no continente europeu, teve como vitória mais importante o compromisso de 19 Cf. GOES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas: um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. p. 205-208. 20 Tratado de Utrecht. Disponível em: < http://www.info.lncc.br/utrech1.html.> 29 Sua Majestade Católica, conforme artigo V e VIII, em ordenar o governador de Buenos Aires a entregar prontamente a Colônia do Sacramento dos lusitanos.21 Mas os moradores de Buenos Aires, indignados com a ideia de restituir Sacramento aos portugueses, impuseram-lhe rapidamente um bloqueio pelo mar e terra. Como afirmou Jaime Cortesão, “(...) o Tratado de Utrecht, de 1715, não era mais do que um compromisso dúbio e o adiamento, a prazo incerto, dum conflito real, dissimulado na letra do convênio”.22 Os eventos demonstravam a inevitabilidade de empreender nova negociação para superar irresolutas e antigas incertezas. O reinado de Dom João V (1701-1750) foi considerado o momento propício às maquinações de um novo acordo territorial. O longo reinado, que durou quase a totalidade da segunda metade do século XVIII, consolidou o já propenso absolutismo lusitano, conjunturalmente favorecido para pretensões do gênero. Não obstante Dom João V haver sido entronizado durante a Guerra de Sucessão Espanhola, o reinado viria a coincidir na maior parte de sua duração com período de relativa paz na Europa, sendo fartamente beneficiado com o descobrimento das minas auríferas e dos diamantes no Brasil. O período joanino terminou foi um reinado de opulência perdulária e afirmação do absolutismo lusitano, surgindo inevitáveis comparações de Dom João V com Luís XIV, o que o levou a ser cognominado de Roi Soleil português. Entretanto, seria errôneo pensar em Dom João V apenas como um rei frívolo. Embora somas exorbitantes do ouro brasileiro terminassem consumidas em futilidades festivas e edifícios religiosos – cujo símbolo foi o gigantesco convento de Mafra –, o rei encarava conscienciosamente os assuntos do Estado. O rei Dom João V operou uma reforma administrativa que reforçava o seu poder absoluto, concentrando nas mãos de poucos ministros a gestão do reino. Pelo alvará de 28 de julho de 1736, foram criadas as três Secretarias de Estado: a dos Negócios do Reino e Mercês, dos Negócios da Marinha e Ultramar, e a dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Uma de suas obras mais significativas de D. João V foi o investimento na ocupação e na colonização de espaços no Brasil, a exemplo de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. A medida, na observação de Jaime Cortesão, funcionou como uma “(...) sábia e metódica preparação do uti possidetis.”, o que serviria futuramente na requisição de Portugal de espaços estratégicos nas fronteiras coloniais.23 Ademais, 21 Ibid. 22 CORTESÃO, Jaime. op. cit. p. 179. 23 Ibid., p. 67. 30 parte das riquezas auríferas contribuiu à edificação de praças e às fortalezas ao longo da costa no Brasil, desde o Rio de janeiro até o Sul. 24 Dom João V não apenas enxergou a importância do comércio colonial luso-brasileiro, como também agiu na tentativa de solidificar o domínio português no Brasil. Outro aspecto fundamental a ser destacado no período joanino foi a promoção de certo desenvolvimento científico em Portugal. Dom João V importou alguns intelectuais europeus para a renovação da ciência. Em seu reinado, também, foi construídaa fundação da Academia Real de História Portuguesa (1720). Podemos dizer que D. João foi o grande mecenas da Academia. Nas renovadas Academias Militares, também fundadas no período, foram preparados engenheiros, geógrafos e cartógrafos que constituíram amplo quadro de profissionais, os quais se destacaram em suas respectivas especialidades e se adiantaram na realização de uma gama de experimentos nos espaços estratégicos na América, tanto na construção de fortificações quanto esboços cartográficos. De tal modo, que mesmo antes da execução do acordo de limites, Portugal havia se adiantado na realização de uma série de experimentos nos espaços estratégicos na América. Curiosamente, na esteira de algumas dessas inovações, constata-se alguma influência do pensamento iluminista em Portugal, tendo em vista que o país era apontado como o reino defasado na atualização de ideias na Europa. Assim sendo, aquelas decisões, de algum modo, forneceram instrumentos para a preparação do que seria o Tratado de Madrid, um dos feitos mais significativos do reinado de Dom João V.25 Ambas as coroas buscavam soluções pacíficas para resolver as divergências de fronteiras na América. Em 13 de janeiro de 1750, as coroas assinavam o Tratado de Madrid, composto de 36 artigos. Em primeiro lugar, as coroas anulavam o Tratado de Tordesilhas e o de Saragoça. Posteriormente, deixavam claro que a base do ajuste consistia no princípio do uti possidetis, que reconhece a soberania do território em 24 Ibid., p. 67. 25Coube a Alexandre de Gusmão a incumbência de ser principal artífice e negociador de um tratado de fronteiras com Espanha. Nascido em Santos, passou pela universidade de Coimbra, estudou Direito na Sorbonne, e era polivalente em conhecimentos que iam desde a literatura, matemática, mecânica ou a filosofia empirista, sendo grande apreciador de Newton. Sobre o Brasil, escreveu o tratado intitulado Resumo histórico, cronológico e político do descobrimento da América, obra na qual faz levantamento topográfico e descritivo das coisas da terra. A carreira de Gusmão diplomática deslanchou quando foi privilegiado com a nomeação de secretário do embaixador português na corte de Luís XIV. Futuramente seria embaixador do próprio rei em missão junto à Santa Sé em Roma para obter para sua majestade o honorifico título de Fidelíssimo. Bem-sucedido em sua missão, Gusmão voltou à corte em Lisboa para assumir o cargo de Secretário Particular de Dom João V e, posteriormente, ficou responsável pelo Conselho Ultramarino, daí sua nomeação como chefe responsável pelas negociações do tratado de limites. 31 litígio como um apanágio do Estado, que o ocupava na prática, “(...) cada parte há de ficar com o que atualmente possui (...)”. 26 De forma que no Oriente, Portugal abria mão das Filipinas. Na America, Espanha cedia à coroa de Portugal “(...) tudo o que tem ocupado pelo rio das Amazonas, ou Maranhão acima, e o terreno de ambas as margens deste rio [...] como também tudo o que tem ocupado no distrito de Mato- Grosso” 27 No artigo XIII, Sua Majestade Fidelíssima comprometia-se em ceder para sempre à coroa de Espanha “(...) a Colônia do Sacramento, e todo o seu território adjacente a ela, na margem setentrional do Rio da Prata (...)” 28, sendo que a margem oriental do Rio Uruguai era de posse portuguesa, que estabeleceu que os povos que ali moravam, precisamente os índios tutelados pela Companhia de Jesus, deveriam se retirar “(...) com todos os bens móveis, e efeitos, levando consigo os índios para os aldear em outras terras de Espanha (...)”.29 Em resumo, os portugueses permutavam Sacramento pelas terras que iam do norte, compreendendo a totalidade do Alto Paraguai, somando-se a vastidão da bacia amazônica. Restava, todavia, colocar o acordo em prática. Foi justamente no reinado seguinte, de Dom José I, que a política portuguesa sofreu substancial reviravolta. Nesse reinado, aconteceu a transferência de poderes concentrados em grupos tradicionais, nobreza e clero, retransmitindo-os para forças políticas que, até então, eram relativamente marginalizadas em relação às decisões palacianas, que passaram a gravitar proximamente deste monarca lusitano, que seria o mais absolutista da história portuguesa. 1.2 Estrangeirados, Regalismo e Oposição aos Jesuítas Um dos fenômenos mais interessantes do período josefino foi o protagonismo desempenhado por um grupo social denominado pela historiografia de “estrangeirados”, assim chamados por serem portugueses que residiram tempo substancial no exterior, geralmente empossados de cargos diplomáticos ou, até mesmo, exilados por conta de questões religiosos (caso de cristãos-novos ou de 26 Tratado de Madrid. In: CORTESÃO, Jaime. op cit. p. 366. 27 Ibid., p. 366. 28 Ibid., p. 369. 29 Ibid., p. 370. 32 indivíduos perseguidos pelo Santo Ofício, por conta de suas ideias), mas que não diminuíram seu interesse pela sociedade portuguesa e sua atualidade política. Esse grupo começou a ganhar espaço no reinado de Dom João V, mas se afirmou no primado josefino, galvanizados também por um estrangeirado, o marquês de Pombal. O marquês de Pombal, na condição de destacado ministro de Estado do rei Dom José I, consolidou os estrangeirados para o papel da nova intelligentsia nacional. A vivência no exterior havia dado aos estrangeirados a possibilidade de entrarem em contato com as idéias que, embora tivesse origem na Europa, eram essenciais. Porém, tais ideias eram censuradas pelo clero português. Os estrangeirados desenvolveram um “viés” crítico que fez com que se tornassem observadores contumazes da tradicional política e da mentalidade lusitana, que, substancialmente, em suas opiniões, estavam obsoletas a ponto de comprometer Portugal numa situação de defasagem intelectual e de dependência econômica. Para Francisco Falcon, os estrangeirados “(...) representam as novas ideias, têm uma visão ampla, criadora, são dotados de capacidades intelectuais que os fazem necessários à monarquia”. 30 Sobretudo, em seu cosmopolitismo e racionalismo, demonstram hostilidade “(...) ao provincianismo cultural e político ao império da escolástica e ao terrorismo inquisitorial”.31 Os estrangeirados inauguram um período em que o consulado pombalino representava as características do despotismo ilustrado – política secularizada resultante da afirmação do racionalismo moderno no mapa do Ocidente europeu na época moderna, e que na península ibérica teve o regalismo como corolário.32 Falcon ressalta que a principal característica do regalismo em Portugal foi o antijesuítismo; se o regalismo consistia na afirmação da autoridade real sobre todos os setores da vida 30 FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: mercantilismo e transição. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 321-322. 31 FALCON, Francisco José Calazans. op. cit. p. 204. 32 Em suas duas vertentes, política e religiosa, o regalismo apresentava vantagens para supremacia do Estado nacional e do poder régio sobre o primado do papa. Como a igreja, na prática, também representava um poder com funções seculares, para a monarquia a perspectiva de reforçar a supervisão tutelar da Igreja necessariamente resultava no fortalecimento do poder do Estado absoluto. Da perspectiva das igrejas nacionais, a descentralização do poder romano significava maior autonomia para a jurisdição episcopal. Dessa forma, na esfera religiosa, o regalismo tem afinidades declaradas com o conciliarismo (relativização do poder papal perante o corpo cardinalício e oposição ao dogma da infalibilidade) e o episcopalismo (recrudescimento da autoridade jurídica e maior independência dos bispos em suas dioceses). Longe de ser um fenômeno ibérico, teve sua vertente austríaca com o josefismo,na França com o galicanismo, na Inglaterra com o erastianismo e o jurisdicionalismo italiano. De forma análoga, visavam à reforma da Igreja dentro do próprio catolicismo, e estavam empenhados na luta política para reforço do poder régio. Cf. Dicionário de História Religiosa de Portugal. Direção de Carlos Moreira Azevedo. Apêndices J-P. p. 7-10; P-V p. 96-98. 33 social e instituições, invariavelmente se mostrava adversário da ordem religiosa mais influente no reino.33 A Companhia de Jesus, por sua vez, era também uma organização supranacional. Os estrangeirados procuraram protagonizar uma ruptura na vida política portuguesa.34 Os estrangeirados apontavam aquilo que consideravam as deficiências de Portugal. No plano político, acreditavam que a constante intromissão do clero nos assuntos de Estado era claramente maléfica para um bom governo, dado que representavam ideias defasadas em comparação com as novas possibilidades oferecidas pelo Movimento das Luzes, que começara a se manifestar no século XVII, cuja tendência era a formação, no plano político, de um despotismo ilustrado. Como ironizou o historiador Boxer, o Estado português, antes da ditadura pombalina, “(...) era dominado pelos padres mais do que em qualquer outro país, à possível exceção do Tibete (...)”.35 Dentre as figuras de proa da ilustração portuguesa, destacamos desde o início do século XVIII: os diplomatas D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão, o Conde de Tarouca; os pedagogos Luís Antônio Verney e Martinho de Mendonça de Pina e Proença; na medicina, os doutores António Nunes Ribeiro Sanches e Jacob de Castro Sarmento; no pensamento econômico, o Conde de Ericeira e o advogado e diplomata Duarte Ribeiro de Macedo; na Matemática e Engenharia, Manuel de Azevedo Fortes, o 4º Conde de Ericeira, e o bacharel José da Cunha Brochado. Poder-se-ia citar outros nomes. Como catalisador político do movimento, citamos o espírito pragmático do marquês de Pombal, que não era um intelectual, mas, indubitavelmente, um representante do movimento estrangeirado. Uma das figuras mais ilustres do movimento estrangeirado foi o diplomata Dom Luís da Cunha. Homem de larga experiência nos assuntos estrangeiros, que ocupou cargos diplomáticos na Inglaterra, na República Holandesa, na França, na Espanha e foi o negociador português no Congresso de Paz de Utrecht e Cambrai. O diplomata escreveu em seu Testamento Político, entre os anos de 1747 e 1749, uma série de conselhos concernentes ao príncipe do Brasil, Dom José e, sobretudo, o que considerava as diretrizes fundamentais para bem governar o reino. Analisar o pensamento de Luís da Cunha é apresentar uma síntese das ideias de uma geração 33 FALCON, Francisco José Calazans. Despotismo esclarecido. São Paulo: Ática, 1986. p. 28. 34 Ibid., p. 321. 35 BOXER, C. R. O império marítimo português. p. 202. 34 inconformada com os rumos da política portuguesa e com o atraso econômico e intelectual do reino, tal como o anticlericalismo de alguns setores. O pensamento de Cunha também representou a necessidade imediata de se tomar medidas emergenciais para desafogar o país. Logo no início do seu Testamento, o diplomata recomenda o nome de Sebastião José de Carvalho e Melo (marquês de Pombal) para formar o novo gabinete, em decorrência do seu “(...) gênio paciente, especulativo e ainda que sem vício, um pouco difuso, se acorda com o da nação; (...)”.36 Dom Luis da Cunha ainda advertia o rei para abolir o papel tradicional do confessor religioso para aconselhamento de questões políticas, porque estavam sempre propensos a abusar do cargo para obter informações valiosas e convenientes ao fortalecimento de suas congregações, parentes e amigos. Mas que na imperiosa necessidade de tranquilizar a consciência, “(...) que escolhesse de sua freguesia um cura desinteressado, prudente, de boa vida e costumes (...)”, evitando, sobretudo, os jesuítas, pois “(...) são os que mais estudam e por isso mais aptos para adotarem as opiniões que possam agradar ao confessado, se for príncipe e não um pobre lavrador.”37 Para Dom Luís da Cunha, o papel do clero e da Inquisição na vida pública era claramente oposto a qualquer tentativa de progresso e modernização da nação. Ele preocupava-se com a constante incorporação de bens de raiz pela Igreja que, segundo suas especulações, possuía “a terceira parte do reino”.38 A perseguição aos judeus também era alvo de suas observações, porque era comum encontrar no exterior hebreus que buscaram refúgio do inclemente tribunal do Santo Ofício e que perseguiam também todos aqueles que fossem suspeitos de possuir antepassados judaicos, os chamados cristãos-novos ou velhos (a depender do tempo decorrido desde a conversão da ancestralidade do individuo de origem israelita). O resultado direto da perseguição do Santo Ofício era criar uma “fábrica de judeus”, porque a própria força da instituição dependia de constantes descobertas de descendentes de hebreus no reino. Mas a perseguição aos judeus trazia um problema maior para Portugal, que era a evasão de capitais levados por eles para os reinos que concediam asilo político. Isso prejudicava as finanças do reino. 36 CUNHA, Dom Luís da. Testamento Político. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. p. 4. 37 Ibid., p. 2-3. 38 Ibid., p. 19. 35 Em outro escrito importante de D. Luís da Cunha, Instruções Marco Antônio de Azevedo Coutinho (1736), são expostas suas opiniões sobre economia. No texto, o autor critica o grande número de conventos no país, porque prejudicavam o bom uso da terra, e sugeria ao rei que assumisse o controle sobre os inúmeros benefícios eclesiásticos, tão onerosos para o reino. O excessivo número de celibatários prejudicava o aumento da população, porque era benéfico para o reino que os povos tivessem ocupações a fim de pagar tributos e também que fossem numerosos para defender a nação. Do mesmo modo, o autor lamentava o fracasso da política industrial do Conde de Ericeira e ainda salientava que era urgente desenvolver companhias de comércio nos moldes anglo-holandeses, como tentativa de sanar os problemas do comércio ultramarino com as diferentes colônias. Segundo Dom Luís da Cunha: Não há dúvida que tais companhias não são no fundo mais que uns monopólios defendidos pelas leis; porque tiraram ao povo a liberdade de fazer certos comércios (...) mas os príncipes e as repúblicas as permitem, quando não vêem que se nesta parte prejudicam os vassalos, em outras lhes procuram maior utilidade (...) e creio que em Portugal seria mais conveniente, porque os homens não têm onde possam empregar e fazer valer o seu dinheiro.39 Antes mesmo da ascensão de Dom José I, algumas figuras ligadas ao rei D. João V, como o cardeal da Mota, um dos ministros do rei, questionava a ausência de manufaturas no reino. Ele foi um dos defensores da ideia, futuramente praticada por Pombal, de instalar fábricas de seda no reino, elemento fulcral para amenizar a evasão das espécies de Portugal, quando parecia óbvio, segundo doutrina da época, que um país tinha de importar ou reter matérias-primas e dar proeminência à exportação de manufaturados. Dom Luís da Cunha e os demais estrangeirados também se queixavam das preocupações da sociedade em adquirir bens de luxo, porque Portugal não era produtor, mas sim importador de mercadorias de segunda necessidade – o que pesava de forma negativa no equilíbrio da balança comercial.40 Outra preocupação dos estrangeirados era com a censura intelectual. As novas ideias que circulavam nos países, em que havia liberdade intelectual, eram, em Portugal, automaticamente censuradas pelo clero e pelo Santo Oficio. A “Revolução Científica” do século XVII e os seus desdobramentos, naquilo que ficou conhecido39 CUNHA, Dom Luís da. Instruções Marco Antônio de Azevedo Coutinho. Apud. FALCON, Franciso J. C. op. cit. p. 95. 40 Cf. FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: mercantilismo e transição. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 235. 36 como passagem da transcendência para a imanência, pouco ecoou no país, dado que o clero dominante, apoiado pelo Santo Ofício, era refratário àquelas inovações, mantendo-se fiel aos ideais do Concílio de Trento (1545-1563), como arauto do espírito da Contra-Reforma, o que resultou num certo isolamento do país. Talvez, no bojo da Revolução Científica, não estavam apenas contidos elementos de deslumbramento científico, como a transformação da natureza, segundo os desígnios do homem, mas também uma nova visão de mundo, operado por um corpo técnico especializado e comprometido com a gestão eficaz, que, para o caso do Estado, traria consequências em sua reorganização, passando de “tradicional” para “racional- burocrático”. Acreditamos que tais transformações, que reconfiguram a organização do Estado, entraram em confronto com a postura tradicional do clero. Se os estrangeirados representavam o grupo mais “progressista”, os jesuítas, ao contrário, eram, para muitos, os fiéis representantes e defensores de uma tendência contrária a grandes e profundas renovações no reino. Além da prerrogativa de terem sido os tradicionais confessores dos reis e os nobres da dinastia de Bragança, comprovava-se a influência real dos padres da Companhia de Jesus nas questões de Estado, incumbidos, muitas vezes, da execução de funções público-administrativas. Igualmente, a Companhia de Jesus surgia como um entrave a qualquer mudança no plano pedagógico, dado que detinha o controle das únicas universidades portuguesas: Coimbra e Évora. Aparentemente, os jesuítas tinham postura pouco favorável à renovação dos estudos em seus estabelecimentos educacionais. Com ensino fundamentado nos princípios escolásticos e apoiado no humanismo cristão, eram criticados por não atualizar o seu método ratio studiorum, demonstrando pouca inclinação para a adoção das inovações que originaram o racionalismo moderno, desde então largamente difundidas pela Europa. A escola conimbricense baseava-se em uma perspectiva da teologia e repúdio a tudo o que era associado ao avanço do espírito matemático e natural. Eram rejeitados estudos de Locke, de Descartes, de Spinoza, de Newton, apenas para citar alguns pensadores inovadores, os quais se apoiavam na perspectiva racional e, geralmente, no método empírico, contrariando o pensamento tradicional – apoiado pelas ideias de algumas autoridades com reconhecimento. Possivelmente, os jesuítas perceberam que a adoção de tais interpretações do universo e da natureza era, invariavelmente, contrária aos seus dogmas mais estritos, pois contribuíam para a divulgação de ideias contrárias ao seu posicionamento teocentrista, isto é, para o 37 pensamento que transcendia a natureza física das coisas (místico e metafísico). Tal pensamento entrou em crise depois dos descobrimentos geográficos e científicos surgidos a partir do século XVII, em que a dimensão imanente, que valorizava os aspectos concretos, materiais e empíricos da realidade, parecia ganhar terreno e afirmar uma visão secularizada da natureza. Isso retirava a hegemonia do pensamento teológico na compreensão da realidade. A visão de Portugal como um país atrasado em comparação aos outros reinos europeus não ficava apenas circunscrita ao círculo dos estrangeirados, mas também ecoava no exterior. Dentre vários exemplos, o mais expressivo de todos foi a célebre obra Cândido, da autoria de Voltaire, que não poupou comentários cáusticos a Portugal de meados do século XVIII. O autor faz eloquente representação de como o país era encarado pela intelectualidade europeia. Na obra, o personagem homônimo aportou em Lisboa no momento que ocorria um terremoto. A cena foi inspirada na verídica hecatombe que devastou e deitou a cidade de Lisboa em 1º de novembro de 1755. Cândido reparou com horror na solução supersticiosa encontrada pela sociedade lisboeta como medida de urgência para controlar o caos e remediar futuras tragédias: a celebração de um auto-de-fé.41 Na representação de Voltaire, os lisboetas enxergavam o terremoto como fenômeno diretamente relacionado a forças sobrenaturais. O que, de certa maneira, estava bem 41 “Depois do tremor da terra que destruiu três quartas partes de Lisboa, os sábios do país não encontraram meio mais eficaz para prevenir uma ruína total do que oferecer ao povo um belo auto-de-fé; foi decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em grande cerimonial era um infalível segredo para impedir que a terra se pusesse a tremer”. Cf. Voltaire, Cândido ou o Otimismo p. 166. Exageros a parte, ficaram registros da profunda religiosidade portuguesa, aqui, no testemunho de ingleses que residiam em Lisboa: “Parece que a população estava toda absorta com a ideia de que era o Dia do Juízo Final; e desejando, portanto, empregar-se em boas ações, tinham-se coberto de crucifixos e santos; homens e mulheres sem distinção, durante os intervalos, estavam quer a cantar ladainhas, quer, num fervor de zelo, a atormentar os moribundos com cerimônias religiosas; e sempre que a terra tremia, bradavam: Misericórdia! Todos de joelhos, nos tons de voz mais dolorosa que se possam imaginar”. Carta anônima, Lisboa, 19 de novembro. 1755. In: O terremoto de 1755: testemunhos britânicos. p. 91. Apud PRIORE, Mary del: O mal sobre a terra: uma história do terremoto de Lisboa. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003. p. 152. Segundo Thomas Chase, os portugueses estavam “(...) completamente entregues a uma espécie de loucura religiosa, arrastando santos sem cabeças ou braços, dizendo uns aos outros, de uma maneira bastante lastimável, como sentiam tais infortúnios; e todo o seu clero afirmando tratar-se de um julgamento sobre eles pela sua maldade. Alguns diziam mesmo que era por terem mostrado tanta generosidade para com os hereges, De indo de maneira tumultuosa à Corte, declararam ser esta a causa do sofrimento do povo. Pensavam eles que era quase ímpio tentar tratar de si e muitos chamavam-lhe lutar contra o Céu!... Finalmente um milagre trouxe a população razoavelmente a si própria, levada a efeito, segundo supomos, por uma ordem secreta da Corte. A meio da noite, a Virgem Maria foi vista sentada entre as chamas de fogo das ruínas, acabadas de ser deitadas abaixo pelo terremoto, de uma igreja pertencente a um famoso convento a ela dedicado, do nome de Nossa Senhora da Penha de França, situado sobre o cimo de uma colina muito alta, acenando com um lenço branco para o povo. Isto foi imediatamente declarado ser um perdão por todas as suas ofensas passadas e uma promessa de vida”. Narrativa do Sr. Thomas Chase do terremoto de Lisboa”. In: Ibid., p. 152-153. 38 próximo da verdade, pois para muitos, sobretudo para o clero local, houve a tendência para a propagação da versão mística das causas do terremoto. Mas se Portugal precisava renovar sua mentalidade e a educação nacional, o reino carecia de um grupo de pensadores que pudessem levar adiante a necessária renovação. Curiosamente, a sinalização para a reformulação e atualização dos conhecimentos em Portugal veio do próprio clero, sendo conduzida pela Congregação do Oratório. A Congregação, considerada como sociedade de padres seculares submetidos à hierarquia episcopal, foi fundada em Roma, em 1550, e introduzida em Portugal, em 1668, pelo padre Bartolomeu de Quental, de origem ítalo-francesa. Além dos trabalhos filantrópicos, os oratorianos eram totalmente dedicados à educação. Em consonância às novas ideias, eles inclinaram-se para o platonismo, rejeitando a interpretação corrente do aristotelismo. Com otempo, os oratorianos abraçaram, em seus colégios, o cartesianismo, assim como outros conhecimentos modernos. Em Portugal, os eles tiveram, desde a entrada no reino, a boa sorte de receber a proteção régia. A presença dos membros da congregação do oratório em Portugal resultou em desentendimentos com a Companhia de Jesus. Segundo Francisco Falcon, os oratorianos entraram em choque com os jesuítas, porque o rei autorizou que os egressos das instituições de ensino dos oratorianos teriam os mesmos direitos dos estudantes que tinham saído das escolas jesuíticas42. A Congregação do Oratório findou com o monopólio pedagógico jesuítico, embora a balança, todavia, inclinava-se para a ampla influência da Companhia de Jesus, em Portugal. Uma das grandes contribuições do Oratório foi a introdução daquilo que os jesuítas demonstravam pouca disposição em adotar: as ciências experimentais e a filosofia moderna, em sua passagem de Descartes e Spinoza para Locke e Newton, e conjuntamente os estudos literários e linguísticos. Mas o grande golpe dos oratorianos contra a Companhia de Jesus seria a publicação do Verdadeiro Método de Estudar, de autoria do oratoriano Luís Antônio Verney (1713-1792), redigida entre 1746-1747. Verney, não obstante ser um religioso de nacionalidade portuguesa e ter sido aluno dos jesuítas em Évora, inclui-se no rol dos estrangeirados. Ele viveu grande parte de sua vida adulta na Itália, aonde chegou em 1736. Ficou amigo do enciclopedista italiano Ludovico Antonio Muratori (1672- 1750) e também tornou-se membro da Arcádia Romana. Verney defendia que a 42 FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: mercantilismo e transição. São Paulo: Brasiliense, 1981.. p. 208-209. 39 gramática deveria ser ensinada na língua nacional e não no latim. Do mesmo modo foi firme adepto da adoção dos métodos experimentais. Em consonância com as conquistas da idade da razão, criticava o método de ensino dos jesuítas, que para ele era baseado em uma escolástica peripatética, defasada, e apoiada em um sistema de debate pautado na autoridade.43 A biblioteca dos oratorianos no convento de Nossa Senhora das Necessidades possuía mais de 30 mil volumes. Havia também um laboratório experimental com instrumentos a fim de complementar o curso de física.44 A publicação do Verdadeiro Método, que, curiosamente, não deixou de incluir uma dedicatória à própria Companhia de Jesus, deu origem a debates polêmicos entre jesuítas e oratorianos sobre questões de método pedagógico. Os jesuítas perceberam que havia nas ideias oratorianas não só semelhanças com as doutrinas jansenistas, conformidades que vão além dos aspectos relacionados a posições teológicas, como livre-arbítrio ou predestinação, mas também, principalmente, por que discerniram, em seu posicionamento, críticas à histórica supremacia do poder papal perante o régio. Posicionamento totalmente contrário ao tradicional alinhamento da Companhia de Jesus ao poder romano, mas sumamente conveniente à doutrina regalista, que amadureceria no período do domínio pombalino.45 Verney declarou-se inimigo dos jesuítas, manifestando, assim, guerra aberta à Companhia de Jesus. Ele auxiliou Pombal junto à representação portuguesa em Roma, ocupando o cargo de secretário da legação portuguesa, sob o comando do embaixador Francisco de Almada e Mendonça, na campanha antijesuítica junto à cúria romana. 43 Cf. MAXWELL, Kenneth. O marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. 2. ed. Paz e Terra: São Paulo, 1996. p. 12. 44 Cf. MAXWELL, Kenneth. op. cit. p. 14. Maxwell nos lembra que a Companhia de Jesus, embora apegada a uma pedagogia mais tradicional, não era exageradamente obtusa às ideias modernas, dado que no inventário da biblioteca universitária de Évora, estavam trabalhos de Bento Feijó, Descartes, Locke, Wolff e, até mesmo, o exemplar do Verdadeiro Método de Estudar. Cf. Ibid., p.13 45 O jansenismo foi uma teologia fundada pelo monge holandês Cornélio Jansen. Na França, tiveram crescente importância ao defender posições polêmicas como o galicanismo, vertente francesa do regalismo, que defendia maior autonomia para a igreja francesa, em oposição ao ultramontanismo; e a predestinação absoluta, pedra de toque da religião apóstata de Calvino. No campo político, foram grandes adversários dos jesuítas, que defendiam o poder absoluto do papa e sua intromissão na política dos Estados europeus. As querelas teológicas entre as duas ordens ficaram imortalizadas, principalmente nas 18 cartas que compunham Les Provinciales (1656-1657) de Blaise Pascal, o renomado matemático, que se fizera porta-voz dos jansenistas, tudo em defesa de seu grande divulgador Antoine Arnauld, que estava a ser julgado pelos teólogos de Paris, contra as doutrinas teológicas defendidas pela Companhia de Jesus. Defensores da doutrina da predestinação, quando os jesuítas se digladiavam para afirmar o livre-arbítrio, ainda criticavam-nos pela sua defesa do casuísmo-probabilismo, o que para os jansenismo favorecia o laxismo moral. O jansenismo terminaria por ser proscrito da França pelo rei que ainda decidiu pela destruição do seu principal reduto, o convento “Port Royal”. Foram, sem sombra de dúvidas, os maiores rivais históricos da Companhia de Jesus, os que deixaram as piores marcas contra o Instituto de Loiola. O que teve influência para a futura dissolução da ordem em 1773. 40 Esse plano de Pombal trouxe consequências desastrosas para a congregação. Se a publicação do Verdadeiro Método teve impacto direto contra a Companhia de Jesus, não são de somenos importância outras propostas à renovação dos estudos portugueses. Dessa forma, destacamos a publicação de Martinho de Mendonça Pina Proença (1693-1743), que tentou adaptar para Portugal o pensamento de Locke. Proença é também autor de Apontamentos para a educação de um menino nobre (1734), obra que propõe a renovação dos métodos e do conteúdo de ensino. Ressaltamos também os escritos do cristão-novo, o Dr. Jacob do Castro Sarmento (1692-1762), o qual introduziu em Portugal o pensamento de Newton e de Francis Bacon. Ele divulgou e traduziu os trabalhos desses autores para a língua portuguesa.46 Do mesmo modo, destacamos as pesquisas do Dr. Antônio Nunes Ribeiro Sanches, cuja proposta era promover a renovação do ensino médico em Portugal, além de ter traduzido alguns dos trabalhos de Newton. O autor deixou Portugal em 1726 na condição de fugitivo da Inquisição. Em Viena, conheceu o marquês de Pombal, quando Pombal servia como diplomata na Áustria. A proposta de Sanches para a renovação educacional veio a lume com a publicação de Cartas para a educação da mocidade (1759). Todos os pensadores acima citados tinham alguma experiência fora do país e suas ideias jamais encontrariam possibilidade de execução enquanto os grupos tradicionais ocupassem os cargos de importância no Estado. 1.2 Dilemas na Seara Econômica As questões de ordem econômica também estavam na pauta das preocupações da administração portuguesa. A sólida relação comercial e diplomática entre Portugal e Inglaterra criou um vínculo de dependência em que as vantagens pesavam mais para o lado inglês, tornando-se, ao contrário, sumamente onerosas para Portugal. As razões que levaram o país com o passar do tempo a estreitar tais vínculos, não obstante as inconveniências que trariam para o desenvolvimento econômico e, até mesmo, para o orgulho nacional, não podem ser entendidas se nos esquecermos de que o Portugal restaurado, a partir 1640, estava tão desgastado pela União Ibérica que era possível 46 Cf. MAXWELL, Kenneth. op. cit. p. 10-12. 41 duvidar se o país não voltaria a ser conquistado pela já enfraquecida Espanha. Principalmente por que a parte mais lucrativa,que já tinha sido do império atlântico, estava nas mãos dos holandeses. Por mais evidentes que fossem os prejuízos da onerosa, porém necessária aliança luso-inglesa, ela ainda contrariava as teorias econômicas em voga na Europa, que eram de caráter mercantilista e absolutista, por excelência. O problema da dependência portuguesa em relação à Inglaterra seria uma das principais preocupações do marquês de Pombal. Durante sua permanência na Inglaterra, Pombal reuniu várias impressões sobre a política externa portuguesa e, sobretudo, pôs-se a analisar as causas do crescente poderio econômico dos britânicos. Mesmo antes do período pombalino, o Estado português sempre preocupou-se com as constantes remessas de ouro para fora do país. Mas foi logo no início do reinado josefino que foram atacadas a arrecadação de quintos e reintroduzidas a casas de fundição e o imposto da derrama. No tocante à balança comercial, persistiu o favorecimento das exportações desde que não fossem de materiais que pudessem ser fabricados no próprio reino; seguiram-se lenitivos para a produção manufatureira, aliás, um dos esforços mais significativos da política pombalina foi a criação das indústrias de base, como as manufaturas, exemplificada na indústria de tecidos da Real Fábrica de Sedas. O sistema colonial luso-brasileiro, como não poderia deixar de ser, tendo em vista a dependência econômica de Portugal em face de sua colônia, foi um dos principais alvos da política pombalina. Marquês de Pombal recrudesceu na relação Brasil-Portugal a noção de “exclusivismo colonial”. Para potencializar a exploração das riquezas coloniais brasileiras, foram criadas as chamadas “Companhias de Comércio”, que embora já existissem há muito tempo em Portugal, tiveram no reinado josefino o seu apogeu. As principais companhias responsáveis para regulamentar o sistema de frotas para o Brasil foram a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, criada em 1756, e a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, criada em 1755, com o objetivo específico de povoar e fomentar o desenvolvimento econômico do Estado. Mas as Companhias comerciais não restringiram sua ação apenas ao espaço colonial lusitano. Pombal também criou as companhias de comércio metropolitanas, como a Companhia da Agricultura dos Vinhos do Alto Douro (1756), a fim de resolver a constante desvalorização do vinho português no mercado inglês, e a Companhia Geral das Reais Pescas do Reino do Algarve (1773). É imprescindível mencionar também 42 que as pequenas empresas, no caso das colônias africanas, como a Companhia dos Mujaos em Moçambique, que faziam comércio com o Brasil e tinham livre acesso aos portos lusitanos em África. Curiosamente, um dos maiores defensores da instituição das companhias comerciais no século XVIII foi justamente um clérigo jesuíta, o padre António Vieira – mas não o único e sequer o primeiro. À época da Restauração, António Vieira foi o principal conselheiro do rei Dom João IV para várias questões. Para o jesuíta, a fundação de uma companhia de comércio tinha funções bem diferentes daquelas pensadas no período josefino. A fundação visava, sobretudo, defender os interesses da ordem religiosa na Amazônia. Com a fundação daquela companhia de comércio, esperava-se introduzir braços escravos africanos na região, com o intuito de amenizar a pressão dos colonos, que eram constantemente lesados pelo monopólio das ordens religiosas locais, no controle da única mão-de-obra escrava a que tinham acesso, a do indígena. Por outro lado, cabe lembrar que a instituição da Companhia Geral de Comércio do Brasil (1649) também teve, para muitos, a influência de Vieira. As companhias de comércio nos moldes mercantilistas e de fluxo comercial em larga escala, embora jamais tenham sido sustadas da vida econômica portuguesa, receberam, em meados do século XVIII, novo impulso, alcançando, assim, seu apogeu no período moderno. Nosso objetivo com a composição desse pano de fundo foi demonstrar a inadequação da Companhia de Jesus em Portugal e no Ultramar, na metade do século XVIII, quando novas disposições estavam em via de ser aplicadas. Concluímos, dessa forma, que havia no país, substancialmente, dois partidos que foram os principais agentes históricos do período por nós estudado: um “conservador” e outro “reformista”. Os conservadores faziam parte dos setores tradicionais da política portuguesa – a nobreza tradicional e, principalmente, o clero, o qual encontrava seu maior alicerce na Companhia de Jesus. Os reformistas constituem a incipiente burguesia, incluindo também parte da nobreza e, fundamentalmente, os estrangeirados. É evidente que centrado no problema de nossa análise, excluímos outros setores também importantes, porém menos relevantes para a compreensão do tema estudado. A Companhia de Jesus representou grande obstáculo às tentativas dos grupos engajados com a renovação da política portuguesa, não só por que ela defendia uma postura mais tradicional, mas também por que o seu poder na política e na sociedade 43 portuguesa impedia qualquer transformação, caso os grupos emergentes não negociassem ou partissem para luta aberta contra o Instituto de Loyola. Percebemos que na primeira fase do governo de Dom José I, antes do terremoto que devastou Lisboa em 1755, quando Pombal não era ainda ministro plenipotenciário, as decisões de gabinete não iam diretamente contra a Companhia de Jesus. As ações políticas visavam reformar problemas na esfera das relações externas e das questões de ordem econômica. Os atritos contras os inacianos surgiram na reformulação da política externa portuguesa de meados do século XVIII. Em síntese, a administração portuguesa enfrentava amplos desafios para solucionar problemas que, dentre os mais emergenciais, destacaríamos alguns, como a modernização da indústria precária, a correção da balança comercial deficitária, o controle ao contrabando das riquezas coloniais e a definição das fronteiras americanas. Dentro do contexto da América portuguesa, mais especificamente da realidade do Grão-Pará e Maranhão, percebemos a aplicação de medidas que caracterizam o pombalismo. No intuito de recrudescer o comércio luso-paraense, foi necessário criar no Grão-Pará, onde as potencialidades econômicas ainda eram mal-exploradas, condições para fomentá-lo, a fim de que ele pudesse funcionar, na medida do possível, à revelia do domínio inglês ou dos agentes contrabandistas. Todavia, era urgente povoar e fortificar o domínio português naquela região, mormente quando os franceses e outras nações adversárias possuíam bases próximas à foz do Rio Amazonas. A criação da companhia monopolista visava não só incentivar o comércio, como também fazer com que o enriquecimento da região servisse como atrativo para o estabelecimento de colonos, com objetivo de povoar e de proteger o Norte do Brasil. 44 II. A Companhia de Jesus em Portugal Neste trabalho, sustentamos a ideia de que a Companhia de Jesus era uma congregação religiosa voltada tanto para assuntos de caráter espiritual quanto para organização supranacional de abrangência global, cuja disciplina, espírito empreendedor e pragmatismo favoreceram a expansão do catolicismo no Novo Mundo. Em relação especificamente a Portugal, a instituição exerceu, dentre outras funções, a missão civilizadora, no papel de agente colonizador, proporcionando um sólido alicerce para a concretização de uma América Portuguesa. Nascida às vésperas do Concílio de Trento (1545-1563), considerada um dos três concílios fundamentais da Igreja Católica, convocada para assegurar a fé e a disciplina eclesiástica, a Companhia de Jesus é um dos símbolos da reação católica ao cisma representado pela Reforma Protestante. A ruptura da unidade cristã foi, em parte, consequencia de novas e profundas transformações, que provocaram rearranjosnas tradicionais estruturas sociais europeias, assim como a ascensão de novos grupos de poder. Pela Europa afora, alguns espíritos ousados, a exemplo de Lutero, Calvino e Erasmo, desafiavam os cânones e as práticas da Igreja Romana, e suas vozes podiam ecoar além dos púlpitos ou das praças públicas, com relativa velocidade, graças à invenção artesanal de Gutenberg. Na esteira daquelas profundas transformações sociais que engendraram uma nova visão de mundo, as concepções geográficas sofreram radical reviravolta em decorrência da expansão marítima europeia, o que possibilitou conhecer novos territórios. Para o filósofo escocês Adam Smith, “A descoberta da América e de uma passagem para as Índias Orientais pelo Cabo da Boa Esperança” constituía “os dois maiores e mais importantes eventos registrados na história da humanidade”.47 A Europa, cada vez mais urbana e ligada internamente pelo seu florescente comércio, recebeu renovado impulso com as trocas mercantis entre as duas metades do mundo. Os monarcas, em forte ascensão, ao reforçarem a autonomia dos reinos, gradualmente, passaram a desafiar o universalismo político romano nas questões de ordem internacional. Destarte, impôs-se, forçosamente, uma nova ética secular para o 47 SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo. Abril Cultural, 1983, vol.2, p.100. 45 jogo político baseada em interesses nacionais, definida como “razão de Estado”, que, no terreno da prática, vai superar, como afirmou Michel de Certeau, “a contradição entre razão e violência”48, amparada nos objetivos de negócio e poder. Assim sendo, “(...) reordena o país como empresa capitalista e mercantilista”.49 A América “descoberta” por Colombo desvelou a existência de outros povos que, para os cristãos europeus, viviam no abominável paganismo. Para os católicos, urgia retirá-los da cega ignorância, antes que “hereges” luteranos, calvinistas ou anglicanos o fizessem em seu lugar. Essa é também uma época de insegurança. O cisma religioso favoreceu certa desintegração política do Ocidente, resultando nas chamadas “Guerras de Religião”, que derramavam sangue pela Europa e dividiram reinos, a exemplo do Sacro Império Romano-Germânico e da guerra civil na França entre huguenotes e católicos, cuja violência e caos atingiram o paroxismo no episódio conhecido como Noite de São Bartolomeu (1572). Ademais, os turcos, em viril expansão, colocavam o Leste em intermitente Estado de alerta, a exemplo do Cerco de Viena (1529). Nesse contexto conturbado, e na esteira de tantas transformações, foi criada a Companhia de Jesus – filha dessa contemporaneidade. Para Serafim Leite, o mais destacado historiador da Companhia de Jesus no Brasil, o evento foi “(...) um dos fatos mais significativos do século XVI, e Santo Inácio, o seu fundador, um dos homens de maior influência espiritual no mundo moderno (...)”.50 Não obstante a veracidade da afirmação, em nada exagerada, convém ressaltar que o peso do Instituto de Loyola não ficou circunscrito ao terreno espiritual, como anteriormente aludido. A sua influência retumbou igualmente nos terrenos da imanência com um poder jamais antes visto na história de nenhuma outra ordem religiosa, tornando a Companhia de Jesus, sem sombra de dúvidas, a mais polêmica de todos os tempos. Mas o que foi a Companhia de Jesus? Como ela ingressou em Portugal? Mais importante, como alcançou tamanho poder a ponto de sua incômoda influência levar o Estado português a torná-la proscrita do seu império e a perseguir violentamente todos os seus membros? Para respondermos as duas primeiras questões, é imprescindível fazer breve apresentação do seu principal fundador e também apresentar a organização interna do 48 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 159. 49 Ibid., p. 160. 50 LEITE, Serafim. A história da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I, Livro I. Lisboa/Rio de Janeiro: Portugália/ Instituto Nacional do Livro, 1938-1949. p. 3. 46 seu Instituto e do seu ingresso em Portugal e no Brasil. Já a tentativa de entender o papel da Companhia de Jesus na política do Império português, a ponto de ser expulsa, é, dentro de alguns limites, o principal objetivo do presente trabalho. Aqui, o que entra em questão é a expulsão da Companhia de Jesus a partir do recorte regional – nominalmente do extinto Estado do Grão-Pará e Maranhão. A partir de uma perspectiva regional e circunscrita, pretende-se, ainda que modestamente, esclarecer algumas facetas da questão da expulsão dos jesuítas do Império português. Para tanto, parece-nos fundamental apresentar uma sinopse de como o poder jesuítico fez-se crescente no Brasil a começar pela chegada dos seus primeiros padres e também como enraizou-se desde o princípio da colonização na política local dos dois Estados que compunham a América portuguesa: o Estado do Brasil e o do Grão-Pará e Maranhão. Inácio de Loyola (1491 -1556), o principal fundador da Companhia de Jesus, nasceu no Castelo de Loyola, de propriedade familiar, localizado próximo à aldeia de Azpeitia, província basca de Guizpúzcoa, na Espanha. Membro integrante da nobreza rural, o jesuíta sentiu, ainda jovem, pendor pela vida militar e pelos prazeres mundanos, como a jogatina, a bebida e a volúpia, o que lhe causou problemas com a justiça. Entretanto, os motivos desses problemas nunca ficaram totalmente esclarecidos.51 Por volta dos 13 anos de idade, foi enviado por seu pai a Arévalo, para ficar sob custódia de Velázquez de Cuéllar, então tesoureiro-mor do rei Fernando de Aragão. A experiência proporcionou-lhe o contato com um mundo nobiliárquico superior ao seu próprio. Com o falecimento de Velázquez em 1517, Inácio tornou-se cavaleiro a serviço do vice-rei de Navarra, Antonio Manrique de Lara, duque de Nájera. Ele participou da defesa de Pamplona, quando os franceses invadiram a cidade para tentar reconquistar a região de Navarra, então possessão espanhola. Caiu ferido em 20 de maio de 1521, quando uma alabarda o atingiu nas duas pernas, sendo que uma delas ficou seriamente machucada. O acidente obrigou Inácio de Loyola a realizar repetidas e dolorosas cirurgias; embora tenha sobrevivido, ficou aleijado e jamais voltou a caminhar sem coxear.52 É no longo período de convalescença que ocorreu a “conversão” de Inácio. Para distrair-se do período de ócio causado pela imobilidade física, pediu que lhe conseguissem um exemplar das façanhas cavalheirescas de Amadis de Gaula. Na falta 51 Cf. LACOUTURE, Jean. Os jesuítas: a conquista. Vol. 1 Editorial Estampa: Lisboa, 1993. p. 19. 52 Cf. LACOUTURE, Jean. Op.cit. p. 98-99. 47 do livro, trouxeram-lhe a obra Vida de Cristo, de Ludolf, o Saxão, e uma coletânea de relatos hagiográficos – a Fábula Dourada, de Jacopo da Voragine. Aquelas leituras provocaram inquietações em Inácio, que, julgando que sua existência não tinha mais, até então, nenhum significado, interpretou sua angústia como um “chamado divino” e prometeu a si próprio dedicar a vida ao serviço de Deus. Em fevereiro de 1522, sem estar completamente recuperado, decidiu partir em peregrinação para Jerusalém. Durante o percurso, resolveu visitar importantes santuários europeus e ensaiou pregações públicas. Frugal, pedia esmolas para seu sustento. Nesse ínterim, quando chegou a Manresa, na Catalunha, retirou-se para uma gruta e impôs-se algumas austeridades, como jejuns prolongados, orações e autoflagelações. Durante o retiro, leu com muita devoção a Imitação de Cristo, livro que se tornou para ele fonte de inspiração. Nessas condições, semelhante a um eremita, viveu por quase um ano. Em seu fervor místico, experimentou algumas visões, que considerou revelações divinas e, inspiradonelas, deu início à redação dos Exercícios Espirituais, manual que, futuramente, seria a base da espiritualidade inaciana. Ainda obstinado em conhecer Jerusalém, foi a caminho da Cidade Eterna para obter do pontífice autorização e benção para se trasladar à Terra Santa. Feita a concessão, embarcou para a Palestina onde ficou por poucos dias (entre 3 e 23 de setembro de 1523). Inácio chegou a Jerusalém em um contexto desfavorável para a segurança dos peregrinos, e os franciscanos que o abrigaram, e em relação aos quais estava sob autoridade, obrigaram-no a partir de volta para a Europa.53 Já em Barcelona, quando retornou a Espanha, em 1524, e ainda devotado às coisas espirituais, pôs-se a pregar publicamente e a divulgar os seus Exercícios Espirituais. O pregador errante percebeu que a falta de uma educação formal era desvantajosa para alcançar seus intentos e, com quase 40 anos de idade, procurou adquirir estudo superior. Assim, logo que voltou da Terra Santa, começou a estudar latim na cidade de Barcelona. Dois anos depois, partiu para a Universidade de Alcalá e, em seguida, para a Universidade de Salamanca. A ousadia de suas pregações imediatamente chamou a atenção da Santa Inquisição, que cogitou ser Inácio um alumbrado ou “iluminado”.54 53 Cf. MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. I – O Perído da Reforma. São Paulo: Loyola, 1995. p. 229. 54 Cf. LACOUTURE, Jean. Op.cit. p. 41. 48 O movimento dos alumbrados teve grande repercussão na região de Castela na virada do século XV para o XVI. O termo era designado a indivíduos que praticavam e divulgavam isoladamente o cristianismo sem levar em consideração a hierarquia do clero romano ou das suas tradições. Inácio de Loyola levantou desconfianças causadas por suas pregações e pela divulgação dos seus Exercícios Espirituais. Essas denúncias resultaram no seu encarceramento por 42 dias. Depois de absolvido, passou pelo mesmo infortúnio quando viajou para Salamanca em busca do aprimoramento de sua formação. Novamente Inácio e seus Exercícios foram ilibados e, depois de 22 dias de encarcerado, ganhou a liberdade e recebeu autorização, até mesmo, para fazer suas pregações. Influenciado pelo currículo da Universidade de Alcalá, de caráter mais humanista, entrou em contato com o movimento do humanismo Renascentista. Assim, dirigiu-se para a Universidade de Paris, um dos principais centros de estudos humanistas da Europa, por causa do patrocínio dado pelo monarca Francisco I para a divulgação do movimento em seu reino. Logo, aproximou-se do humanismo. Em fevereiro de 1528, chegou a Paris. Nesse mesmo ano conseguiu ingressar no Colégio de Montaigu, onde alguns anos antes estudaram Erasmo de Roterdão e João Calvino. Posteriormente, mudou-se para o Colégio de Santa Bárbara. Em 1534, recebeu o grau de Mestre em Artes.55 No período em que estudou em Paris, Inácio travou conhecimento com jovens estudantes que junto a ele seriam fundadores da Companhia de Jesus. No Colégio de Santa Bárbara, por exemplo, conheceu Diego Laynez e Francisco Xavier, que foram seus companheiros de quarto. Alguns dos estudantes mais devotos sentiram o poder do carisma e a devoção cristã de Inácio, fazendo daquele veterano de longa experiência nas coisas espirituais o seu mentor. Muitos se tornaram praticantes dos seus Exercícios Espirituais. Desse cenáculo parisiense, surgiu o projeto da formação de uma ordem religiosa. Assim, a semente do que seria a Companhia de Jesus nasceu em agosto de 1534, quando Inácio de Loyola e o núcleo de seus seguidores, todos eles ainda leigos, realizaram, na capela de Nossa Senhora na colina de Montmartre em Paris, os votos de pobreza, castidade, administração de sacramentos, além da promessa de irem à Terra Santa para converter os moradores. Os dez companheiros, além do próprio Inácio, eram os sabóios, Pedro Favre e Cláudio Lê Jay; dois franceses, Brouet e João Cordure; 55 Cf. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I. Livro I. p. 4. 49 e quatro espanhóis, Francisco Xavier, Diogo Lainez, Afonso Salmeron e Nicolau Afonso de Bobadilla; e o controverso português, Simão Rodrigues.56 Embora tenham recebido autorização do papa Paulo III (1534-1549) para realizar a viagem, a peregrinação à Palestina foi impossibilitada em razão dos endêmicos conflitos naquela região. Obstinados em trabalhar pelo catolicismo romano, tendo em vista que Inácio e alguns dos companheiros de Montmartre já tinham sido ordenados sacerdotes, trocaram o plano anterior de viajar para a Palestina pela ideia de formar uma nova ordem religiosa. O projeto foi submetido à sanção do papa Paulo III em 1539 e logrou reconhecimento em 27 de setembro de 1540, oficializada na Carta Apostólica Regimi militantis Ecclesiae. Nas Fórmulas da Companhia, aprovadas e confirmadas pelos papas Paulo III e Júlio III, ficou declarado o que deveria ser a missão da nova ordem, à qual seus fundadores batizaram de Companhia de Jesus, cujo membro seria denominado jesuíta. A opção pelo nome causou antipatia no círculo das ordens religiosas, pois a apropriação do nome Jesus foi considerada demasiada audaz e arrogante. A base da organização dos padres estava assentada na disciplina e na obediência. A obediência era tão importante para a congregação que Loyola aconselhava aos jesuítas: (...) deixar-se guiar e dirigir pela divina Providência, por meio do Superior como se fossem um cadáver que se deixa levar seja para onde for, e tratar à vontade; ou como o bordão de mesmo velho que serve a quem tem à mão, em qualquer parte, e para qualquer coisa em que o quiser usar. Assim o obediente deve fazer com alegria tudo àquilo em que o Superior o que quiser ocupar para ajudar todo o corpo da ordem.57 Daí surgiu o afamado lema da ordem, geralmente pronunciado em latim, que afirmava ter o jesuíta de viver “perinde ac cadaver” ou seja, “tal como um cadáver”. Apesar da impressão causada pelo conteúdo enfático da assertiva, vale lembrar que o seu cumprimento era apenas de jesuíta para jesuíta. A obediência não anulou os talentos individuais de muitos religiosos que foram formados nos quadros da Companhia. A lista de padres inacianos que se destacaram pelos seus talentos e feitos individuais na política é volumosa, tanto nas letras quanto ciências. 56 Cf. DICKENS. A. G. A contra-reforma. Lisboa: Verbo, 1972. 57 Constituições da Companhia de Jesus e normas complementares. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 162. 50 Além dos três votos obrigatórios a todas as ordens religiosas: pobreza, castidade e obediência, alguns jesuítas realizavam um quarto voto, o de obediência exclusiva ao pontífice, no que dizia respeito ao deslocamento às missões. Entre os jesuítas, havia diferentes graus, como, por exemplo, o professo de quatro votos, o professo de três votos e o coadjutor temporal. Os dois primeiros eram padres, o último ingressava como irmão leigo, sem receber ordens sacras. Ao membro da Companhia de Jesus estava vetado ocupar qualquer cargo eclesiástico fora do quadro hierárquico da própria ordem. Jamais poderia ser bispo ou papa enquanto fosse membro da ordem. O quarto voto e a proibição de ocupar cargos seculares dentro da Igreja foram convenientemente interpretados pela Companhia de Jesus como Instituto que poderia agir livre da jurisdição episcopal, à qual, habitualmente, todos os católicos deveriam estar submetidos. Curiosamente, nas Constituições ou na bula de aprovação não havia nenhuma menção explícita a essa prerrogativa. Por consequência, vários desentendimentos com bispos e arcebispos foram registrados na história da Companhia de Jesus, em diferentes partes do mundo, quando eles tiveram a autoridade desafiadae ignorada pelo Instituto de Loyola. Um dos primeiros desentendimentos entre ambas as jurisdições aconteceu exatamente na América Portuguesa, palco onde o atrito se repetiu inúmeras vezes, como veremos adiante. O Instituto exortava os membros da congregação a observarem com rigidez os preceitos morais clericais, tais como o celibato e a pobreza individual, embora coletivamente pudessem possuir bens, desde que a aquisição atendesse à edificação da fé católica; a respeitarem o juramento de submissão e de obediência aos romanos pontífices; a responsabilizarem-se pela propagação da fé em regiões longínquas ou entre os gentios; a comprometerem-se pela catequese dos pagãos e pela renovação da Instrução dos já batizados; e, finalmente, no campo educacional, no qual a Companhia de Jesus tanto se destacou, permitiu-se à congregação fundar e gerir escolas e universidades, sendo que para sua fundação e manutenção, poderia receber doações de bens de raiz (bens imóveis), com autorização para produzir riquezas (a exemplo de fazendas produtoras de alimentos, gado, etc.), mas apenas para a manutenção daquele 51 propósito. Igualmente, o ensino seria gratuito e o reitor do colégio teria a obrigação de prover vestuário e alimentação para os alunos.58 Uma faceta interessante da Companhia de Jesus foi sua adequação, em muitos pontos, às transformações daquela contemporaneidade. A Companhia optou por uma espiritualidade mundana, atuante no espaço secular, impedindo seus membros de viver em mosteiros ou de levar uma vida contemplativa. Se os beneditinos ou cistercienses de tradição medieval e, portanto, de contemplação passiva, atuavam no meio rural, a Companhia de Jesus, ao contrário, teve predileção pelo espaço público, em conformidade com a proposta inaciana para o “(...) aperfeiçoamento das almas na vida e na doutrina cristãs, por meio de pregações públicas (...)”.59 Dessa forma, a instituição saiu do claustro e foi para as ruas. Na Europa, em que a urbanização era a tendência, parecia lógica a opção da Companhia de Jesus em privilegiar seu desenvolvimento nas urbes, de tal forma que atuaria junto aos indivíduos com um maior dinamismo, em seu serviço filantrópico (hospitais e presídios), tal como reforçar seu tendente controle sobre as instituições universitárias, todas elas, ordinariamente, citadinas. Logo, os jesuítas viviam em “casas” ou em “colégios”, evitando os mosteiros ou conventos – típicos de regiões bucólicas. Para se ter uma ideia da opção urbana da Companhia de Jesus, quando os jesuítas se deslocavam para os meios rurais, aldeias ou vilas, era geralmente em caráter de missão – uma das preocupações da Igreja pós-Tridentina era reafirmar uma versão oficial do catolicismo em detrimento de práticas religiosas populares no espaço rural europeu, que cresciam por conta da ausência de clérigos ou pela sua má- formação. Os jesuítas, a exemplo de outras ordens, divulgavam a catequese naquele meio. 60 É curioso reparar que na América portuguesa, onde o ministério missionário jesuítico era mais desafiador, aconteceu o fenômeno contrário, com o isolamento dos missionários e seus catecúmenos em locais afastados dos colonizadores. Loyola ainda lutou para criar uma ordem despojada de ornamentos. Cantar diariamente as Horas litúrgicas em coro, além da adoção de um vestuário padronizado era considerado por ele como embaraço para a boa execução dos ministérios da Companhia de Jesus, pautados na ação missionária. Nada obstante, o papa Júlio III 58 Cf. Fórmulas do Instituto da Companhia de Jesus. In: Constituições da Companhia de Jesus & normas complementares. p. 29-36. 59 Ibid., p. 29. 60 MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. II – O absolutismo. São Paulo: Loyola, 1995. p. 92. 52 (1487-1585), na carta apostólica de confirmação da ordem, a Exposcit Debitum, dada em 21 de julho de 1550, modificou a intenção original dos fundadores e exigiu a reincorporação dos aspectos supracitados, o que foi cumprido, mas houve alguma relutância. Em 1547, com o início da redação das Constituições da Companhia de Jesus, pelo próprio Inácio, foi reafirmada a missão inicial da ordem e também a definição da sua organização interna, assim como os papéis a serem desempenhados pelos membros da congregação, dependendo da posição hierárquica e da função para a qual foram admitidos. No mais, a Companhia tinha uma administração centralizada na autoridade do Geral da ordem. Eleito pelo voto dos representantes das várias províncias, em Roma, cidade-sede da ordem, o Geral detinha poder absoluto e o seu parecer era definitivo. Por unanimidade de votos, foi eleito o primeiro-geral da Companhia de Jesus, em 1541. Convém ressalvar que a Companhia de Jesus, nascida às vésperas do Concílio de Trento, não foi o resultado exclusivo de uma resposta à Reforma Protestante, como tornou-se comum afirmar, dado a época de sua fundação coincidir com o início do combate por parte dos católicos contra aquele movimento reformista. Tal tese é refutada por eminentes historiadores da Companhia e da Igreja.61 Percebe-se nas Fórmulas que a preocupação original era a execução de ministérios como a pregação e a caridade, com a disponibilidade de seus membros para auxiliar hospitais e ajudar aos mais necessitados. Contudo, é inegável que as circunstâncias históricas elevaram a instituição a um dos maiores baluartes da Igreja na Contra-Reforma. Talvez, indiretamente, Inácio de Loyola tenha dado uma resposta aos problemas do catolicismo de sua época. A Reforma Protestante desestruturou o cristianismo na Europa, e o seu eco ainda grassava pelo continente, minando a influência do clero romano. O movimento luterano, a exemplo de outros que surgiriam depois, deu publicidade ao relaxamento do clero com as questões morais. O movimento luterano denunciou a substância e a simplicidade da pregação dos textos evangélicos que se contrapunham com as práticas da Igreja, que eram bastante questionáveis, a exemplo da simonia e do comércio de indulgências – problemas que também foram percebidos por Inácio de Loyola. 61 Ver comentários de Jean Lacouture sobre as pesquisas do historiador jesuíta Pedro Letúria a respeito da questão. In: LACOUTURE, Jean. Os jesuítas: a conquista. Vol. 1 Editorial Estampa: Lisboa, 1993. p. 98-99. A mesma tese é defendida pelo historiador e também jesuíta Giacomo Martina. op. cit. p. 200. 53 Uma das consequências mais desagradáveis da reforma protestante para a Igreja foram os ataques ao cargo papal. Se os papas, de certo modo, eram os representantes da personificação da Igreja Católica, inevitavelmente tornaram-se o alvo vivo das críticas dos protestantes, de tal modo que o seu poder e a sua santa infalibilidade foram postos em xeque. É interessante perceber no texto Fórmulas uma estreita sintonia entre a razão de existir da ordem e a urgente busca de soluções para a crise do catolicismo romano do século XVI. Ainda em consonância com as injunções daquela conjuntura, Loyola, de certo modo, declarou posição favorável aos papas, tendo em vista que o jesuíta professo de quatros votos, incluindo o Geral, devia obediência inquestionável ao pontífice, novidade entre as ordens religiosas da época.62 Finalmente, um dos traços mais marcantes da Companhia de Jesus foi a sua organização interna disciplinada com vistas à evangelização europeia e mundial, cujo corolário foi a adaptação da sua regra aos espaços pertencentes aos impérios ultramarinos católicos. Foi justamente na Ásia, África e, principalmente nas Américas, que a Companhia de Jesus teve papel mais atuante. Se a península ibérica foi pioneira nos descobrimentos marítimos, imortalizando a façanha dos navegadores Cristovão Colombo e Vasco da Gama, o catolicismoviu-se beneficiado em razão de sua inabalável hegemonia religiosa nos dois reinos e com a possibilidade de expandir sua influência para novos territórios, sobretudo quando o ímpeto dos conquistadores, ou colonizadores, foi desde sempre auxiliado pela dedicação do clero. Cada qual, na busca de seus objetivos, de tal forma que no ultramar a união entre cruz e espada se fez notória, significando edificação espiritual e conquista temporal. Havia interesse romano (católico) de levar religião às terras descobertas, e da parte dos reis, buscar riquezas e poder. Ambos trabalhavam em conjunto, auxiliavam-se, embora procurando objetivos aparentemente diferentes. Longe de ter sido uma prática consuetudinária, o estreito vínculo entre Igreja e Estado estava juridicamente definido na península ibérica no conceito de Padroado português (jus patronatus), ou Patronato, para a nomenclatura de Espanha. No caso específico de Portugal, o padroado pode ser mais ou menos definido como “um direito honorífico, oneroso e útil sobre alguma Igreja ou renda eclesiástica que compete a alguém que, com o reconhecimento do Ordinário, erigiu uma igreja ou beneficio ou os 62 Cf. Fórmulas do Instituto da Companhia de Jesus. In: Constituições da Companhia de Jesus & normas complementares. p. 32. 54 dotou os (sic) que herdou esse direito de que (sic) o tenha feito dotado”.63 Ou seja, funções como a construção de edifícios religiosos, a organização da hierarquia eclesiástica e o pagamento das côngruas dos padres, que atuavam na condição semelhante a funcionários do Estado, ficavam sob responsabilidade dos monarcas ibéricos. Em contrapartida, dentre alguns dos direitos do rei, destacamos a prerrogativa na cobrança e na administração dos dízimos; as nomeações de clérigos para os cargos eclesiásticos de menor ou maior importância; e o envio de missionários para suas conquistas que, sem o régio beneplácito, não poderiam embarcar. Na prática colonial portuguesa, o Padroado terminou por significar “uma combinação de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa de Portugal como patrona das missões e instituições eclesiásticas católicas romanas em vastas regiões da África, da Ásia e do Brasil.” 64 Destarte, ficou selada a cooperação entre a esfera civil e a religiosa no Império português. Em Portugal o rei era o patrono da Igreja e tinha à sua disposição territórios, nos quais viviam súditos ainda pagãos, que no caso da America Portuguesa, dizia-se vulgarmente que viviam sem conhecer fé, lei ou rei 65 (acredita-se que o adágio surgiu da inexistência na língua tupi de fonemas derivados das consoantes F, L e R), e as ordens religiosas, inevitavelmente, encontraram uma vinha fértil para o trabalho de catequese. Dessa forma, o caráter proselitista da Companhia não permitiu que ela ficasse negligente às possibilidades de evangelização mundial resultantes da maior integração planetária – desdobramento, que no jargão da história é conhecido como “Era dos Descobrimentos”. Foi o próprio Loyola quem afirmou que “A Companhia entendeu que não foi feita para um lugar determinado, mas para ser dispersa pelas diversas regiões e países do mundo (...).” 66 A organização da Companhia de Jesus na Europa, para atender aos seus propósitos proselitistas, ficou “(...) repartida em províncias, e cada grupo de províncias, segundo critérios geográficos ou lingüísticos, constitui uma Assistência”.67 Até meados do século XVIII, existiram ao todo seis Assistências: Itália, Portugal, 63 HESPANHA, Antônio Manuel. História de Portugal moderno. p.138. Apud. ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: Edusp, 2004. p. 93 64 BOXER, Charles R. O império marítimo português (1415-1825). Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2002 p. 242. O mesmo autor esclarece que a primeira e última das sucessivas bulas e breves pontificais, que construiriam a noção de padroado, foram a Inter Coetera de Calisto III, em 1456 e a Praecelsae devotionis em 1514. 65 VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. Vol. I. p. 97. 66 Constituições da Companhia de Jesus e normas complementares. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 175. 67 Cf. LEITE, Serafim. op. cit. p. 12. 55 Espanha, Alemanha, França e Polônia. A Assistência de Portugal, adaptada à extensão do Império marítimo português, desdobrou-se em novas Províncias, como as de Goa, Malabar, Japão e a Vice-Província da China. A Assistência de Portugal ainda tutelou missões em Angola, Moçambique e Etiópia. Na América Portuguesa foi criada a Província do Brasil, além da Vice-Província do Maranhão.68 Destarte, os espaços coloniais portugueses tornaram-se também parte constituinte da organização administrativa da Companhia de Jesus. Em Portugal, a Companhia de Jesus viu-se muito beneficiada, tendo em vista que encontrou mais hospitalidade nesse país do que em outro reino europeu. Os loyolistas chegaram a Portugal em de abril de 1540, no reinado de D. João III (1521- 1557). O influente humanista português, o doutor Diogo de Gouveia (1471-1557), mestre em Artes e embaixador de D. João III no Concílio de Trento, recomendou ao rei que abrisse as portas do reino à nova congregação, que estava em pleno desenvolvimento. Gouveia foi professor e principal diretor do já mencionado Colégio de Santa Bárbara em Paris, importante centro de estudos humanistas, que funcionava por causa do generoso patrocínio do próprio D. João III. Em Paris, Gouveia teve contato com Inácio e seus companheiros. O humanista português notou o fervor daqueles indivíduos que pregavam o cristianismo não só com palavras, mas também com atos de caridade cristã. A aprovação da Companhia de Jesus pelo papa é atribuição, em parte, de D. João III. Quando Loyola tentou influenciar o papa Paulo III a aprovar o seu Instituto, ele procurou recorrer a algumas figuras importantes. Dentre as várias personalidades com poder político, e que demonstraram receptividade ao projeto de Inácio de Loyola, o rei D. João III foi quem lhe emprestou o maior suporte. Diogo de Gouveia, que já havia construído junto a D. João III uma opinião favorável em relação a Inácio de Loyola e aos seus seguidores, influenciou o monarca Dom João III a enviar uma missiva, no dia 4 quatro de agosto de 1539, a D. Pedro de Mascarenhas, seu embaixador em Roma, exortando-o a trabalhar pela aprovação da ordem.69 68 Ibid., p. 12. 69 Cf. ALDEN, Dauril. The making of an enterprise: the Society of Jesus in Portugal, its empire, and beyond (1540-1750). California: Stanford University Press, 1996. p. 25-26. Dentre outras personalidades que tiveram influência para a aprovação da ordem, podemos destacar Hercule D´Este, Margarida de Áustria (bastarda de Carlos V e esposa do sobrinho do papa, Ottavio Farnese, e a filha bastarda do próprio papa, D. Constanza Farnese, com quem Loyola se correspondeu. A grande oposição partia do cardeal Giudiccioni para quem a proliferação de ordens religiosas favorecia a fragmentação da unidade da Igreja. Cf. LACOUTURE, Jean. op. cit. p. 109-110. 56 A solicitação de Inácio de Loyola feita a D. João III veio em momento propício para ambos os desígnios; enquanto Loyola queria fundar uma ordem religiosa, o monarca lusitano demonstrava preocupação com a unidade religiosa do seu Império ultramarino. Conhecedor das intenções proselitistas de Loyola, D. João III, assim que soube da aprovação da Companhia de Jesus, pediu a D. Pedro de Mascarenhas que fizesse esforços para embarcar alguns jesuítas para o seu reino. Dessa forma, os jesuítas Simão Rodrigues e Francisco Xavier partiram para Lisboa para evangelizar o Oriente. Lisboa era o trânsito obrigatório paratodos os missionários que partiam para os domínios ultramarinos portugueses. Por ser a Companhia de Jesus uma congregação de índole carismática, os primeiros jesuítas que chegaram ao reino procuraram dar provas públicas de virtude, repetindo, em Portugal, os mesmos atos de caridade que praticaram em Paris e Roma. Os jesuítas rezaram missas, ouviram confissões e ajudaram os doentes nos hospitais; ofereceram assistência aos internos dos presídios e aos condenados a pena capital; e, junto à aristocracia, convidaram seus membros a praticarem os Exercícios Espirituais. Desse modo, a Companhia apresentou-se aos portugueses despojada dos vícios apresentados por algumas das ordens de presença histórica em Portugal, como, por exemplo, as carmelitas, os beneditinos e os cistercienses, acusadas de laxismo.70 A história do advento da Companhia de Jesus em Portugal é inseparável da contribuição pessoal daquele que foi também um dos principais fundadores da Companhia, o português Simão Rodrigues (1510-1579), que se tornou, ainda, o primeiro Provincial de Portugal, depois que o território foi constituído Província Jesuíta em 1546 – a primeira Província da história da Companhia de Jesus. Simão Rodrigues, que tinha intenção de fazer de Portugal apenas base de partida para a evangelização, teve, ao contrário de Francisco Xavier, sua viagem para o Oriente proibida por D. João III, que pretendia utilizar o jesuíta para outros projetos. Desse modo, D. João o reteve em Portugal. Simão Rodrigues ao lado de Antonio Vieira foram, talvez, as duas personalidades mais marcantes na história da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal. Enérgico, empreendedor, dono de uma personalidade voluntarista e complexa, Simão Rodrigues não poupou esforços para aumentar a importância do seu Instituto no reino e, de fato, conseguiu um rápido crescimento em Portugal beneficiado pelos generosos auspícios do monarca. Em 1541, 70 Cf. ALDEN, Dauril. op cit. p. 27. 57 Simão recebeu terrenos para a construção do Colégio de Coimbra. E em 1547, foi construída moradia adjacente no novo Colégio para abrigar o crescente número de neófitos que ingressavam na ordem. Oito anos depois, a congregação recebeu a administração do Colégio das Artes, anexo à Universidade de Coimbra. Mais tarde, Simão Rodrigues fundou o Colégio do Espírito Santo, em Évora, primeira medida rumo à fundação de uma universidade administrada diretamente pela Companhia de Jesus; a Universidade de Évora. Esses foram passos importantes que consolidaram o futuro monopólio dos loyolistas sobre o ensino em todos os âmbitos em Portugal. O maior estabelecimento do país, o Colégio de Santo Antão, alcançou, no século XVI, cerca de dois mil alunos.71 Ainda no reinado de D. João III, fundou-se, em 1553, a Casa Professa de São Roque. Convém ressaltar que sempre esteve nos propósitos de D. João III monopolizar o tribunal da Inquisição como instrumento de poder, colocando-o sob os cuidados da coroa, à semelhança do que acontecia na Espanha. Para tanto, ele pediu o apoio de Inácio de Loyola para interceder junto ao papa, prometendo à Companhia de Jesus a direção da Santa Inquisição no reino. O pedido foi seriamente considerado por Loyola, que contou com o voto favorável dos seus conselheiros. Mas terminou por não aceitar a embaixada, ao que tudo indica, para manter sua ordem voltada exclusivamente para seus próprios objetivos.72 A influência palaciana da ordem tornou-se crescente. O rei nomeou o jesuíta Luís Gonçalves da Câmara (1518-1575) como seu confessor – o padre tinha ainda influência pessoal sobre o rei D. Sebastião, o qual foi educado pelo jesuíta Amador Rebelo (1539-1622).73 O costume de nomear confessores de Companhia de Jesus tornou-se habitual na casa de Avis e repetiu-se, em grande parte, na dinastia bragantina. A ascensão vertiginosa dos inacianos não foi bem vista por alguns setores políticos e principalmente religiosos, mormente no que se refere às aquisições materiais. A Companhia de Jesus foi acusada de agir com ambição que contrariava o seu ideário religioso, maculando, assim, seu voto de pobreza. No entanto, Simão Rodrigues tinha como objetivo criar bases materiais sólidas para o bem-sucedido estabelecimento da Companhia de Jesus portuguesa. 71 Cf. BOXER, C. R. Salvador de Sá: a luta por Brasil e Angola. Companhia Editora Nacional, Editora da Universidade de São Paulo. Coleção Brasiliana, Vol. 353, 1963. p. 24. 72 Cf. O´MALLEY, John W. Os primeiros jesuítas. EDUSC. São Leopoldo, RS: Editora UNISINOS; Bauru, SP: Edusc, 2004. p. 479-480. 73 Luís Gonçalves da Câmara seria o jesuíta a quem Loyola ditaria sua autobiografia. 58 Entretanto, em Roma, as polêmicas de Simão Rodrigues desagradaram ao Geral Inácio de Loyola. As reclamações não estavam restritas apenas a questões de posses materiais. Muitas das atitudes do jesuíta, às vezes, eram tidas como excêntricas, e tornaram-no, aos poucos, personagem inconveniente junto à corte portuguesa. De tal modo que Loyola teve de substituí-lo no cargo de provincial e, posteriormente, remanejá-lo para Roma. Nos primórdios da Companhia de Jesus, ainda longe de ocupar posição privilegiada junto à nobreza, como veio a acontecer em Portugal, a facilidade com que Rodrigues se adaptou à corte foi muito criticada, pois tal atitude era um desvio em relação ao que se esperava ser o “modo de proceder” de um jesuíta. Todavia, Simão Rodrigues foi fundamental para o marcante papel desempenhado pela Companhia de Jesus na história do Império português. Historicamente, o advento da Companhia de Jesus em Portugal coincidiu com o problema da colonização da América Portuguesa. A necessidade e o desafio da colonização do Brasil como um empreendimento estatal e sério foram, talvez, as questões mais emergenciais a serem resolvidas no reinado de D. João III. Conforme crescia a competição comercial ultramarina entre os reinos europeus, assim como a tendência decrescente da lucratividade do comércio oriental para Portugal, o Brasil tornava-se um território cada vez mais importante para a coroa. Destarte, a opção escolhida pelo rei foi manter o maior controle político sobre o monopólio da exploração da América Portuguesa, medida consubstanciada na instalação do Governo-Geral (1549). Se os jesuítas foram chamados para fortalecer a unidade religiosa do Império português, a América portuguesa, em plena ocupação, era para eles um objetivo inadiável, dado a potencialidade da terra em fornecer futuros conversos, além da possibilidade de construir o catolicismo no Novo Mundo – a Companhia de Jesus pôde, assim, colocar em prática todos os aspectos da sua raison d´étre. Apesar das petições de Simão Rodrigues, junto ao monarca, para ser o fundador da missão do Brasil, a negativa do rei obrigou o jesuíta a procurar outro nome para realizar o empreendimento. A escolha recaiu sobre o experiente padre Manuel da Nóbrega (1517-1570), que terminou por ser o primeiro provincial da Companhia de Jesus naquela colônia. O grande legado de Simão Rodrigues foi o estabelecimento da Assistência de Portugal. Outro mérito também de Simão Rodrigues foi torná-la um corpo político influente dentro do reino, com ingerência nos negócios públicos, possibilitados pela instituição do padroado régio. 59 Com o pacto entre Companhia de Jesus e a dinastia de Avis, os loyolistas ficaram ligados à política portuguesa – interna e ultramarina – como importante e necessário instrumento para a concretização de suas estratégias de Estado. Desse modo, em Portugal, e nos domínios do seu Império, a Companhia de Jesus não teve pudores em tocar empreendimentos comerciais para concretizar seus objetivos. Destarte, mesmo na condição de ordem religiosa, a Companhia de Jesus não ficouapenas ocupada no domínio do espiritual. Ela foi a mais mundana de todas as ordens religiosas da história da talassocracia lusitana. Os jesuítas tiveram engenhos no litoral brasileiro, praticaram o extrativismo na Amazônia, exploraram o negócio da escravidão na África e das especiarias no Oriente, dentre outras operações de caráter mais mercantilista. A diversificação de suas atividades produtivas justificou-se pela busca de bases sólidas para a difusão da catequese e consequente civilização dos povos americanos, o que terminou por favorecer a expansão portuguesa no Novo Mundo. A vantagem da Companhia de Jesus portuguesa, em relação às outras ordens estabelecidas em Portugal, no aspecto da administração dos negócios mundanos, foi o fato de ser dotada de pragmatismo. Assim, segundo Jorge Couto, os padres jesuítas tiveram que “(...) optar entre expandir o ritmo da atividade missionária, o que implicava a aceitação de propriedades e a utilização de escravos, ou recusar essa via e, por conseguinte, abdicar dos objetivos de alastramento do seu âmbito de atuação”.74 Portanto, a Companhia de Jesus ensejou um modus operandi singular, consubstanciado numa praxe religiosa adequada a uma nova mentalidade mais adaptada ao período mercantil. Vale sempre lembrar que a Companhia de Jesus não foi ordem medieval e, portanto, em nada solidificada em valores que, diga-se de passagem, estavam em desintegração. Ao contrário, ela surgiu na Idade Moderna. Assim, na explicação de Assunção: A fusão da imagem dos jesuítas com a dos senhores de engenho não foi difícil de ser empreendida pelas práticas que os religiosos exerceram; um novo espectro surgira misturando fé, missionarismo, fortuna e poder, atributos de uma empresa cristã que os religiosos construíram. 75 Multifacetada, a Companhia de Jesus ainda consolidaria importante monopólio da educação em Portugal, sem precedentes na história de qualquer outro reino 74 COUTO, Jorge. O colégio jesuítico do Recife. p. 219. Apud. ASSUNÇÃO, Paulo de. op. cit.. p. 81. 75 ASSUNÇÃO, Paulo de. op. cit. p. 84. 60 europeu. A Companhia de Jesus controlou o ensino desde a esfera básica até superior, seja no reino ou no ultramar português, onde forneceu a maioria das oportunidades para os filhos dos colonos estudarem – ensino baseado no escolasticismo e amparado no seu método pedagógico por excelência, o ratio studiorum. Não seria exagero afirmar que o domínio na esfera da educação permitiu, por muito tempo, uma natural reafirmação e retransmissão de valores coadunados com os da própria ordem, forma de manutenção do seu status quo. As vantagens e os privilégios adquiridos com o rei Dom João III foram preservados e, em parte, ampliados aos reinados posteriores, a fim de favorecer os jesuítas, não só de Portugal, mas também do Brasil. Para esse efeito, isenções fiscais e favorecimentos reais foram prerrogativas que a Companhia de Jesus sempre almejou – as doações e as heranças faziam parte do patrimônio construído pela ordem. Posteriormente, em 1558, dona Catarina d’Áustria, viúva de D. João III, que ocupava o cargo de regente em razão da menoridade do príncipe e futuro rei, D. Sebastião, dotou a ordem do padroado sobre 18 igrejas, vinculando-as ao Colégio de Coimbra, e também todas as outras pertencentes ao acerbispado de Braga. Ademais, transferiu a renda dos mosteiros de outras ordens para a Companhia de Jesus, muitas vezes, sob o argumento de que beneditinos e agostinianos subaproveitavam as potencialidades dos recursos anteriormente concedidos.76 Apesar da própria rainha ter escolhido um confessor jesuíta, esteve nos planos da regente colocar um preceptor dominicano ou agostiniano para o infante Dom Sebastião. Mas o influente cardeal D. Henrique, tio-avô do príncipe, conseguiu renovar a influência do Instituto de Loyola, impondo o padre Luís Gonçalvez da Câmara, ex-confessor de D. João III para a função. Quando o próprio cardeal assumiu a regência, entregou, no curto período de sua governança (1578-1580), certo poder burocrático aos inacianos, que exerceram, em algumas situações, papel de tabeliães públicos e judiciais.77 No segundo reinado de D. Henriques, que assumiu o trono depois da morte de D. Sebastião, manteve-se a política de favorecimentos aos jesuítas, concedendo-lhes a invejável prerrogativa de isenção no pagamento de sisas sobre bens de raiz comprados, vendidos ou permutados. O privilégio, como nos lembra Paulo de Assunção, foi a base jurídica que possibilitou e também incentivou os jesuítas a circularem mercadorias entre as varias unidades 76 ASSUNÇÃO, Paulo de. op. cit. p.118 77 Ibid., p. 120. 61 jesuíticas espalhadas pelo mundo.78 Foi sem dúvida esta integração produtiva que possibilitou à Companhia de Jesus criar um circuito econômico paralelo ao estatal, em que, talvez, o exemplo mais flagrante foi aquele que se desenvolveu no Grão-Pará e Maranhão. Ligados diretamente a Lisboa, os jesuítas do Grão-Pará eram legalmente isentos de prestar contas ao Estado. O período filipino não foi desvantajoso para a Companhia de Jesus, que recebeu parcela considerável da culpa pelo desastre de Alcácer-Quibir (nome da batalha que levou o ainda solteiro e sem herdeiros rei D. Sebastião à morte, gerando uma crise dinástica em Portugal) por não haver controlado o ímpeto cruzadístico do rei, na condição de tutora daquele monarca. Em Roma, Mercurian que era o atual Geral da ordem, exigiu que a Companhia de Jesus portuguesa favorecesse o partido espanhol na sucessão ao trono português. No entanto, a Companhia de Jesus portuguesa expôs oficialmente sua posição contraria àquele pedido, manteve-se partidária à candidatura da casa de Bragança.79 Segundo o historiador Dauril Alden, o braço português da Companhia de Jesus manteve, no geral, postura sempre contrária à União Ibérica, sendo, até mesmo, um dos grandes divulgadores do mito sebastianista. Esse posicionamento político desacelerou o crescimento da ordem, mas não aboliu privilégios anteriormente conquistados. Porém, durante o interlúdio filipino, as ordens religiosas, em geral, não encontraram possibilidade de enriquecimento, em razão da orientação política de Madri, cuja principal preocupação foi a grande crise econômica que minava o Império espanhol, impondo, dessa forma, uma política austera sobre o rendimento eclesiástico. Com a independência portuguesa e o início da dinastia bragantina, a Companhia de Jesus viu-se favorecida pelo seu apoio à entronização de Dom João IV. Se na cultura política portuguesa as ordens religiosas proporcionavam forte apoio ao rei, os jesuítas retomavam assim a função que tinham adquirido desde sua chegada a Portugal. O padre João Nunes foi designado confessor da rainha Dona Maria Ana de Áustria, e o próprio D. João IV teve como principal conselheiro, para os mais variados assuntos, até mesmo para temas estratégicos, como o de política externa, o jesuíta Antônio Vieira. Apesar da falta de recursos que grassava a economia portuguesa depois da independência, a Companhia de Jesus, do ponto de vista ideológico, foi significativamente beneficiada pela representatividade desempenhada por Vieira no 78 Ibid., p. 120. 79 Cf. ALDEN, Dauril. op. cit. p. 89. 62 paço real, de tal modo que o poder jesuítico no controle dos ameríndios e na difusão da catequese esteve mais do que assegurado nas colônias. Vieira, que ao longo de sua vida intercalou o papel de missionário (na Amazônia) com o de estadista, sempre se aproveitou de sua ascendência como principal conselheiro do monarca para defender os interesses da Companhia no Brasil, principalmente na questão do controle e da liberdade dos indígenas. Na Amazônia, onde residiu por muitosanos na condição de missionário e onde teve inúmeras desavenças com moradores e governo local (chegou mesmo a ser embarcado à força para Portugal), conhecia profundamente os problemas da exploração da mão-de-obra indígena. Assim, as petições que o padre enviou à corte, como solução para o problema da disputa pelo índio, valeram-lhe o direito de elaborar, a próprio punho, o chamado Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Pará, de 1º de dezembro de 1686, publicado no reinado de Dom Pedro II. A confecção do Regimento das Missões, apesar de essencialmente inspirado no caso específico do Maranhão-Pará, foi publicado como norma válida para todo o Brasil. O objetivo do Regimento consistia em regular a exploração do trabalho do índio que, de acordo com a lei, ficaria sob a tutela exclusiva das ordens religiosas. A legislação, na prática, concedeu o controle da mão-de-obra indígena aos missionários, fato que aumentou o poder dos jesuítas no Brasil. A questão da mão-de-obra era um grande problema nos lugares em que o tráfico negreiro não chegava e, consequentemente, também para os menos abastados, que encontravam no índio fonte de trabalho mais barata. Logo, as condições para a obtenção do braço indígena e a quantidade de tempo e de trabalho que eles seriam submetidos dependiam das regras estipuladas pelo Regimento das Missões, assim como da boa vontade dos missionários em disponibilizá-los aos colonos. O realista Vieira parecia perceber que não bastava a mera aplicação de um regimento para sanar a falta de mão-de-obra e aliviar a pressão da população sobre os índios, razão pela qual defendeu a introdução de companhias de comércio no Brasil, a exemplo da do Maranhão e Grão-Pará, engenhada por ele mesmo, com o intuito de introduzir o trabalho de escravos africanos a preços mais acessíveis. Os seguintes reinados, de Dom Afonso VI (1643- 1683) e de Dom Pedro II de Portugal (1648-1706), apesar de antecederem as descobertas das riquezas auríferas no Brasil, não frearam o crescimento econômico das ordens religiosas na América portuguesa ou, ao menos, não conhecemos dados que contrariem a tendência. 63 Heranças e doações ainda representavam possibilidades para dilatar o patrimônio da Companhia que já havia adquirido um cabedal considerável de bens de raiz, o que possibilitava a produção de riqueza nos próprios reinvestimentos na atividade produtiva – há muito auto-suficiente. O posterior reinado de Dom João V (1689-1750) coincidiu em sua inteireza com o reerguimento econômico português, em razão da produção aurífera. Mas foi no reinado joanino, principalmente em sua etapa final, que aconteceram algumas alterações na política portuguesa, o que afetou direta e sensivelmente o poder religioso no reino. Embora Dom João V tenha sido, no começo, um perdulário na construção e remodelação de igrejas, além dos dividendos enviados a Roma – o que lhe valeu o título de “Sua Majestade Fidelíssima” – redirecionou de alguma forma essa tendência a partir da revogação das isenções fiscais concedidas a religiosos, quando eles procuravam adquirir edifícios religiosos. Como era de praxe na dinastia de Bragança, D. João V recebeu educação da Companhia de Jesus e sempre fora cercado de confessores jesuítas. No entanto, no crepúsculo do seu reinado, em idade avançada, dispensou os padres da Companhia, inclinando-se pelos oratorianos (Congregação do Oratório de São Felipe de Nery), uma congregação de padres seculares sem ainda grande tradição em Portugal. Sintomática ou não, esta decisão do rei apontava para o fato de que no final do período joanino surgiu a tendência pelo fortalecimento do absolutismo. Se os religiosos católicos estavam naturalmente divididos entre duas autoridades como o papa romano e o monarca do Estado nacional, os Padres da Companhia de Jesus ainda subdividiam em outros graus a hierarquia à qual obedeciam, porque antes de prestarem satisfação ao papa ou ao rei, deveriam, em primeiro lugar, obedecer diretamente ao geral da ordem. Por razões ainda pouco conhecidas, sabemos que D. João V proibiu os jesuítas portugueses de se comunicarem com o geral da ordem Miguel Ângelo Tamburini, pedido mais do que infactível. Dauril Alden sustenta que a decisão se deveu à tentativa de cessar com o habitual envio de recursos da Companhia de Jesus portuguesa para o quartel general da ordem em Roma. 80 Com a morte de D. João V e a posterior entronização de D. José I, a situação reverteu-se definitivamente contra o clero e, também, a Companhia de Jesus. Portanto, o enfraquecimento do clero começou no final do reinado de Dom João V. Os religiosos detinham um poder de influência nas decisões de Estado que não 80 Cf. ALDEN, Dauril. op. cit. p. 607. 64 necessariamente atendia apenas ao interesse monárquico, mas também algumas vezes ao de Roma. É natural que a Companhia de Jesus terminasse afetada por certo desprestígio em relação aos mais destacados representantes da Igreja no reino, ainda que em fase bastante incipiente. O reinado de D. José I inaugurou um ciclo de novos desafios que urgia por soluções e havia sido negligenciado desde o reinado anterior. As índias portuguesas, que há muito não abasteciam o reino de riquezas, fizeram com que a coroa voltasse sua atenção para o Brasil que, mesmo assim, já no final do reinado anterior, não oferecia as riquezas em metais preciosos como outrora. Todavia, se o Brasil afirmava- se como a mais importante colônia portuguesa, havia problemas emergências como a resolução da indefinição das fronteiras americanas entre Portugal e Castela. Se no final do reinado joanino o declínio das rendas auríferas era flagrante, o problema chamava atenção para a questão do contrabando, em nada circunscrito ao extrativismo mineral, mas que se manifestava em outros setores da economia portuguesa, que sofria com a sangria de dividendos para fora do reino, consubstanciada no contrabando controlado por grupos mercantis portugueses ou estrangeiros. Outro problema sensível enfrentado por Dom José I foi a presença asfixiante de clérigos como componentes do aparelho burocrático e sua influência real na política de Portugal. Curiosamente, esse que parecia um desafio menor, representou um dos episódios mais dramáticos do reinado josefino, e faz parte do tema deste trabalho. 65 III. A Companhia de Jesus na América Portuguesa O ingresso da Companhia de Jesus no Brasil e o crescimento de sua importância é evento larga e exaustivamente mencionado na historiografia brasileira, e objeto de estudo multifacetado, abordado a partir de diversas perspectivas. Os primeiros jesuítas desembarcaram na América portuguesa precisamente no dia 29 de março de 1549. Liderados pelo padre Manuel da Nóbrega (eram ao todo seis jesuítas) acompanhavam aquele que foi o primeiro Governador-Geral das possessões portuguesas, Tomé de Souza.81 O Regimento que D. João III entregou a Tomé de Souza, que instalou administração por parte do Governo-Geral, tinha como escopo instaurar o Estado burocrático português com vias à centralização do domínio lusitano, para a efetiva exploração comercial em seu quinhão americano. No Regimento constava a exigência de catequizar os ameríndios, o que explica a vinda das ordens religiosas para o Brasil, tendo em vista que os nativos tinham papel crucial naquele projeto.82 Os missionários podiam negociar alianças com os povos autóctones numa etapa em que o domínio português no Brasil ainda era desafiado por outros reinos. A historiografia registra que era objetivo dos jesuítas fazer com que os indígenas se tornassem dóceis, pois conjecturavam sua utilização como principal fonte de mão-de-obra para tocar os empreendimentos agrícolas. Manuel da Nóbrega foi o primeiro difusordos costumes, dos povos e das características do Brasil. Manuel da Nóbrega fazia sempre referência ao escândalo que o clero secular lhe causou por causa da baixa instrução, “Cá há clérigos, mas é a escória que de lá vem”, 83 além da conivência com os maus costumes dos colonos, a exemplo daqueles moradores que viviam amancebados com as índias: “Nesta terra há um grande pecado (...) que é terem 81 Eram os Padres Leonardo Nunes, João de Azpilcueta Navarro e Antonio Pires; e os irmãos leigos Vicente Rodrigues e Diogo Jacome. Cf. VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus no Brasil. 3. ed. Vol. I. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 185. 82 Cf. CARVALHO, Laerte Ramos de. Ação missionária e educação. In: História Geral da civilização brasileira. 13. ed. Tomo I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 156. 83 Carta de Manuel da Nóbrega ao Padre Mestre Simão Rodrigues. ?/?/1549. In: NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil, 1549-1560. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988 p. 77. 66 muitas mulheres”.84 Ao mesmo tempo, Nóbrega punha em execução ministérios como a aplicação de sacramentos entre moradores e nativos, aos quais ainda teve de combater o hábito da antropofagia. Esses podem ser considerados os primeiros prenúncios de uma “missão civilizadora” dos jesuítas. O historiador Serafim Leite entende que desde o princípio Manuel da Nóbrega demonstrou ter grandes projetos em relação ao Brasil. Tais planos deixavam a Companhia de Jesus em sintonia com os desígnios da coroa portuguesa em relação as suas possessões americanas – ocupar e colonizar os povos nativos e o território. O inaciano, que logo conjeturou a expansão das missões, não perdeu tempo em pedir a Simão Rodrigues que enviasse mais jesuítas, que de fato chegaram a meados de 1550, acompanhados de sete meninos órfãos para auxílio dos padres.85 Assim, escreveu Manuel da Nóbrega para Simão Rodrigues: “Esta terra é a nossa empresa, e o mais Gentio do mundo”. 86 A palavra “empresa” tem sido interpretada pela moderna historiografia, talvez com algum exagero, com duplicidade de sentido, embora Manuel da Nóbrega faça referência a um empreendimento catequético, comumente faz-se emprego do termo para identificar intenções de caráter mercantilista nos projetos da Companhia de Jesus na América portuguesa. No entanto, é inegável que Manuel da Nóbrega reuniu imensos esforços para que a Companhia de Jesus tivesse sólida presença no Brasil, baseada na exploração econômica de suas propriedades, bens de raiz, tendo como principal mão-de-obra os escravos africanos ou os indígenas. Da perspectiva da “missão civilizadora”, os jesuítas lutaram pela educação dos colonos e catequese indígena. E por isso, os religiosos da Companhia de Jesus foram autorizados a construir e a administrar escolas, igrejas e aldeamentos indígenas. O objetivo era que a conversão e a catequese do indígena não fossem apenas nominais. Por conseguinte, os inacianos tornaram-se tão colonizadores quanto o Estado português ou os grupos mercantis. Para entendermos o rápido e bem-sucedido desenvolvimento da Companhia de Jesus na América portuguesa em termos de poder espiritual e temporal, é necessário analisar as estratégias que os jesuítas lançaram mão para aumentar o seu poder. Os jesuítas gozaram de favorecimentos como a aquisição de bens de raiz e lograram se afirmar como Instituto fundamental para ensejo da colonização 84 Carta de Manuel da Nóbrega ao Padre Mestre Simão Rodrigues de 9 de agosto de 1549. In: Ibid., p. 79. 85 LEITE, Serafim. op. cit. p. 34. 86 Carta de Manuel da Nóbrega ao Padre Mestre Simão Rodrigues de 9 de agosto de 1549. In: Ibid., p. 82. 67 portuguesa. Desse modo, os benefícios, ao longo do período colonial, foram mantidos e ampliados. A colaboração estreita entre Nóbrega e Tomé de Sousa trouxe resultados positivos à Companhia. Logo de início, o governador-geral entregou à Companhia sua primeira sesmaria no Brasil e como esmola vieram agregados mais três escravos da Guiné. Dádiva irrisória comparada aos futuros e maiores benefícios que a Companhia ainda receberia.87 Tomé de Souza ainda privilegiou de forma inusitada os inacianos ao pôr à disposição dos jesuítas os armazéns da fazenda real, a fim de que os padres encontrassem o necessário para o seu sustento. Nóbrega fundou uma escola de alfabetização a pedido dos moradores, ademais do Colégio dos Meninos de Jesus, com fins catequéticos, para os órfãos, nos mesmos moldes que o da ordem em Lisboa. Isso por que os jesuítas utilizavam os meninos como tradutores na comunicação com os nativos e como exemplo de virtude para os demais catecúmenos. O colégio teve vida curta e foi abandonado a pedido do próprio Inácio, porque a aquisição começou a trazer problemas políticos para a Companhia de Jesus. Sob os auspícios da coroa e auxiliada pela boa relação com o governo- geral, a Companhia de Jesus teve à sua disposição o direito de dispor do erário régio para conseguir sustento e manutenção na América Portuguesa e ainda conseguiu favores adicionais. Com a entronização de D. Sebastião (1557- 1578), a Companhia de Jesus alcançou novos benefícios. Apesar do curto reinado, Dom Sebastião não poupou aos inacianos dádivas, como privilégios, isenção fiscal e dotação de terras no Brasil. Também foi elaborada a primeira das legislações indígenas que visavam proteção dos ameríndios. O reconhecimento dos indígenas estava juridicamente em sintonia com a política romana para o Novo Mundo, conforme documento publicado pelo papa Paulo III, em junho de 1537 (Altitudo divini consilii), que ratificava a dignidade e humanidade dos povos americanos nativos.88 A resolução emitida por Dom Sebastião, em sete de novembro de 1564, foi dada com o intuito de facilitar a “(...) conversão das gentilidades das partes do Brasil e instrução e doutrina dos novamente convertidos (...).” 89 A ordem reforçava, além da prerrogativa de tutela dos missionários de todas as ordens religiosas que atuavam no Brasil, o direito dos religiosos disporem de 87 LEITE, Serafim. op. cit. tomo I p.23-24. 88 Cf. AGNOLIM, Adone. Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séculos XVI-XVII). São Paulo: Humanitas Editorial, 2007. p. 136. 89 LEITE, Serafim. op. cit. tomo I p.131. 68 autoridade moral para combaterem o ímpeto escravagista dos colonos. Dom Sebastião ainda autorizou os missionários da Companhia de Jesus a dotar e aplicar: (...) uma redízima de todos os dízimos e direitos que tenho e me pertencem e ao diante pertencerem, nas ditas partes do Brasil, assim na capitania da Bahia de Todos os Santos, como nas outras capitanias e povoações delas; para que o dito Reitor e Padres do dito Colégio tenham e hajam a dita redízima. 90 Aquela determinação foi considerada beneficente para a manutenção e o engrandecimento da Companhia de Jesus, dotando, com recursos financeiros, o recém- fundado Colégio da Bahia. Esse benefício estendeu-se depois, em 1568, para os colégios do Rio de Janeiro, e em 1576, para o de Olinda.91 Embora as fórmulas do Instituto (as Constituições, cuja redação estava em andamento, só seriam publicadas em 1556) falassem em pobreza absoluta e exortassem os padres a viverem de esmola, os jesuítas no Brasil logo perceberam que a “empresa” sonhada por Manuel da Nóbrega jamais poderia acontecer com tão parco auxílio. Ao estilo dinâmico de um Simão Rodrigues, e com a adaptabilidade exigida pelo cenário e especificidades da América Portuguesa, não restam dúvidas de que Nóbrega teve de reconsiderar, ainda que intimamente, aquela proposta de humildade material tão valorizada pelos fundadores da Companhia de Jesus. Assim, Manuel da Nóbregapôs em prática uma política de maior realismo nos trabalhos de evangelização na América portuguesa. Dessa maneira, chegamos a uma questão que desde sempre foi fonte de polêmica na história da presença dos inacianos no Brasil: a da legalidade e da moralidade de suas possessões na colônia.92 Apoiados na instituição do padroado, os jesuítas forçosamente exerceram papel na administração política do Brasil colonial. Por outro lado, ficou estabelecido nas fórmulas da Companhia de Jesus que a incorporação de bens materiais ao patrimônio da congregação estava expressamente vetada. De fato, as Constituições da Companhia de Jesus, que só foram publicadas menos de uma década depois da chegada dos jesuítas ao Brasil, reforçaram a proibição 90 Ibid., p.131 91 Ibid., 124. 92 Cf. ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: Edusp, 2003; LEITE, Serafim. A História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo IV. Lisboa/Rio de Janeiro, Portugália/ Instituto Nacional do Livro, 1938-1949. Rio de Janeiro, 1943. ; AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Porto, 1901. 69 de aquisições de fazendas e de escravos, bens que a congregação não abriu mão da posse, contrariando as normas do seu Instituto. Assim, ficou flagrante uma contradição intrínseca entre a proposta evangelizadora do Instituto de Loyola e o veto à possessão de riquezas materiais. Embora o texto das Constituições faça menção ao problema da manutenção dos Institutos de ensino da Companhia, ela silencia a questão da sustentação econômica das missões. O problema ficou evidenciado na América portuguesa, onde os inacianos se defrontaram com as potencialidades econômicas tentadoras da terra, pois havia a dificuldade em manter a catequese sem a produção de riquezas. Um projeto tão ambicioso não poderia negligenciar as injunções de ordem econômica. Assim, por conta das circunstancias, formou-se uma Companhia de Jesus com uma organização e um modus operandi peculiares no espaço luso-brasileiro. Assim, concordamos com a asserção de Paulo de Assunção que estudou a fundo o papel temporal da congregação no Brasil. Para ele, “Ao chegar à terra dos brasis, algumas práticas dos membros da Companhia de Jesus se modificaria segundo a necessidade da integração colonial”. Ainda salienta que: Na América Portuguesa não era possível obter rendas de mosteiros ou e terras coutadas, condição que exigia um empenho maior quanto à criação de formas alternativas de obtenção de bens para manutenção [apenas] dos religiosos”. Assim, “Os missionários designados para a América portuguesa ficavam praticamente isolados do seu contexto europeu, sendo obrigados, pelas circunstâncias que o meio revelou, a se incorporarem e a interagirem junto aos novos valores culturais e às estruturas políticas e econômicas coloniais. 93 Segundo depreende-se da leitura das Constituições, os jesuítas não poderiam justificar, pelas normas do seu Instituto, a aquisição de bens de raiz, que foi acumulado deliberadamente no Brasil. O argumento da Companhia tinha sempre por base que as suas práticas se justificavam pelas prerrogativas que historicamente receberam dos monarcas lusitanos, o que fazia com que fossem amparados na instituição do padroado régio. No mais, os jesuítas explicaram que sempre mantiveram a pobreza individual e procuravam argumentos que os respaldassem nas Constituições, porque tudo que possuíam era coletivamente. Mesmo assim, eles só poderiam possuir coletivamente bens que fizessem funcionar seus estabelecimentos de ensino. Quando 93 ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: Edusp, 2003. p. 93. 70 interpelados sobre essa questão, dado que possuíam fazendas que comportavam cabeças de gado, manufaturas, ferramentas e escravos, responderam que todas essas riquezas eram extensões dos Colégios juridicamente a eles ligadas. Segundo eles, os bens constituíam uma continuidade dos Colégios, embora diversificados na forma de fazendas ou de engenhos, tendo um único fim: manter os colégios e os alunos, sendo que os catecúmenos – número majoritário de indivíduos sob a tutela da Companhia – estavam no rol de estudantes que, pela lei da Companhia de Jesus, deveriam ser sustentados com gratuidade em relação à alimentação, moradia e vestimentas. Destarte, o fato de possuírem muitos bens justificava-se pela quantidade de prosélitos que traziam para o seio da Igreja e também pelo trabalho de edificação da fé. O fato é que essa argumentação, empregada por jesuítas da antiga Companhia de Jesus e posteriormente por uma historiografia leniente para com a ordem, jamais impressionou seus mais severos críticos, no passado e atualmente. Talvez o advento da Companhia de Jesus na América portuguesa tenha ido além do planejado por Inácio de Loyola, assim como a rapidez com que operaram no continente, escapando a situação do controle dos inacianos mais próximos ao fundador. Os jesuítas criaram, portanto, uma Companhia de Jesus com uma organização e um modus operandi peculiares no espaço luso-brasileiro. Eles perceberam desde o início que os índios seriam o alvo principal para realização da evangelização da América. Essa opção pelos índios desencadeou graves e continuados atritos com os moradores que dependiam da mão-de-obra indígena. Entretanto, a Companhia de Jesus que sempre precisou dar provas da legitimidade de sua luta contra o cativeiro indígena, procurou, frequentemente, influenciar papas e reis para reforçar a ilegalidade daquelas práticas. A quase inutilidade daqueles esforços foi constatada pela copiosa legislação indígena que procuravam reforçar leis anteriormente emitidas, mas que não fizeram surtir os efeitos desejados.94 É necessário sublinhar que a postura da Companhia de Jesus em relação aos indígenas jamais foi unívoca e variava no tempo em resposta às injunções das novidades conjunturais – e foi modificada continuamente, como comprova a farta legislação indígena, cujas alterações eram inevitavelmente influenciadas pela Companhia de Jesus. Em Portugal, o rei D. Sebastião (1557-1578), pela lei de 20 de 94 Cf. NEVES, Luiz Felipe Baêta. Vieira e a imaginação social jesuítica – Maranhão e Grão-Pará no século XVII. Rio de Janeiro: TopBooks, 1997. p. 253-270. O autor apresenta compilação das principais legislações indígenas portuguesas. 71 março de 1570, tentou restringir a escravização indígena, limitando-a a situações de “Guerra Justa”. Embora a legislação tenha deixado inúmeras brechas para interpretações, sem fazer surtir grandes efeitos, sinalizou um primeiro esboço de um sem-número de leis que ainda seriam publicadas no período colonial. Antes, em 1537, o papa Paulo III, por meio da bula Sublimus Dei (23 de Maio) e da encíclica Veritas ipsa (9 de Junho), lembrava aos cristãos que os índios “(...) das partes ocidentais, e os do meio-dia, e demais gentes (...) eram seres livres por natureza”. O papa Gregório XIV (1590-1591) publicou a Cum Sicuti (1591). Nos séculos seguintes, contra a escravidão e o tráfico, pronunciam-se também os papas Urbano VIII (1623-1644), na Commissum Nobis (1639) e Bento XIV (1740-1758), no breve Immensa Pastorum (1741). No século XIX, no mesmo sentido, o papa Gregório XVI (1831-1846) pronunciou-se ao publicar a bula In Supremo (1839).95 Quando se fala em cativeiro indígena é recorrente a menção ao termo “guerra justa”, cuja definição foi primeiramente trabalhada por Tomás de Aquino em sua Suma Teológica. Na América portuguesa, o conceito de guerra justa aplicava-se em alguns casos específicos, são eles: quando a nação a ser atacada havia anteriormente declarado guerra aos portuguesesou a nações aliadas dos portugueses; no caso de determinada nação indígena não aceitar a conversão ao cristianismo após algumas tentativas fracassadas por parte dos missionários; ou caso o índio fosse “resgatado”, ou seja, estivesse destinado a sacrifício pelo grupo indígena que o capturou, mas foi resgatado antes de receber o suplício. Nesses casos, considerava-se a escravização legal. De início, conjecturava-se que Manuel da Nóbrega, logo que ensaiou o primeiro contato com os indígenas, estivesse longe de acreditar em uma conversão satisfatória. O historiador norte-americano Stuart B. Schwartz, estudioso da colonização na Bahia, defende a teoria de que os jesuítas tentaram, embora sem grande sucesso, transformar os indígenas num campesinato submisso e disciplinado para tocar os empreendimentos agrícolas na capitania da Bahia, mais do que simplesmente em catecúmenos ociosos. Segundo a exegese que Eduardo Hoornaet fez do tratado teológico de Manuel da Nóbrega, Diálogo sobre a Conversão do Gentio (1556), a 95 Cf. CUNHA, Marta Carneiro da (Org). História dos índios no Brasil. São Paulo: Editora Schwarcz, 2008 p. 529 & FLORES, Moacy. Dicionário de história do Brasil. Porto Alegre: Edipucrs, 1996. p. 321. 72 submissão irrestrita do índio à cultura ocidental – neste caso, à ideia de “trabalho” – era imprescindível para sua completa conversão.96 Entretanto, Manuel da Nóbrega deu ensejo aos propósitos da ordem no Brasil que, em resumo, consistiam em construir escolas para a educação dos colonos; catequizar os indígenas; prover os religiosos da Companhia de posses como escolas e igrejas que viabilizassem a continuidade do trabalho de catequese, para que a conversão do indígena não fosse apenas nominal; promover a fundação de aldeias para povoar o Brasil e organizar as missões. Também foi Manuel da Nóbrega quem colocou a questão de se inaugurar a primeira diocese brasileira em Salvador. Ele defendia ser importante a presença de um vigário-geral para facilitar o trabalho de conversão e moralização dos costumes na terra. As influências de Simão Rodrigues e da diplomacia portuguesa junto à Santa Sé lograram que o pedido conseguisse resposta satisfatória, conforme a bula Super specula militantis Ecclesiae de 5 de fevereiro de 1541, que também confirmou D. Pedro Fernandes Sardinha como o primeiro bispo do Brasil, quando tomou posse da diocese em 22 de junho de 1552.97 Ele e Manuel da Nóbrega tiveram sérios desentendimentos em decorrência de questões de método de conversão e poder. A heterodoxia dos inacianos causava estranheza ao bispo Sardinha, que reprovou a prática de usar crianças como intérpretes nas confissões junto aos indígenas.98 Para o bispo, os jesuítas tendiam para gentilismo, porque aceitavam alguns dos costumes indígenas. Em relação a isso, somava-se também a esquisitice comum dos padres da Companhia de Jesus de autoflagelar-se em público ou diante dos seus alunos, cujo objetivo era dar provas ostensivas de humildade. O bispo ainda criticava as prerrogativas que os jesuítas dispunham de usufruir das verbas do rei e do rápido enriquecimento que alcançaram no Brasil. Para conturbar ainda mais as tensas relações entre os regulares e a eminência, Manuel da Nóbrega recebeu instruções da cúpula da Companhia de Jesus em Roma e do próprio Inácio de Loyola, que, como prelado regular, não estava submetido ao bispo, em consonância com as Constituições da Companhia de Jesus; posicionamento que só 96 Cf. HOORNAET, Eduardo. A igreja católica no Brasil colonial. Petrópolis: Editora Vozes, 1990. p. 554. In: BETHELL, Leslie (org). História da América Latina. Vol. I. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2004. p. 97 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. A instituição do Governo-Geral. In: História Geral da civilização brasileira. 13.ed Tomo I. p. 129. 98 Cf. AGNOLIM, Adone. op. cit. p. 101. 73 reforçou recíprocas intransigências.99 Esse foi o primeiro dos muitos atritos entre jesuítas e poder episcopal no Brasil. Logo a seguir, Nóbrega deu início ao alastramento da Companhia no restante do Brasil. O padre viajou com Tomé de Souza e cumpriu as determinações do regimento de visitar as capitanias “de baixo”, dando início à jornada para reforçar o poder do governo-geral. Manuel da Nóbrega, que precisava arrefecer as tensões com o bispo, aproveitou aquela oportunidade para acompanhar o governador e, quiçá, fortalecer a presença da ordem no Brasil. Por outro lado, o jesuíta desejava tomar conhecimento do gentio da terra. Ele foi seduzido pelas histórias sobre os guaranis, aparentemente diferentes dos demais índios. De fato, a viagem trouxe resultados positivos. Nesse percurso, eles partiram de Salvador, em 1552, e perpassaram todas as capitanias até o sul de São Vicente. Manuel da Nóbrega procurou criar condições para o estabelecimento da Companhia de Jesus nas capitanias em que visitou, edificando estabelecimentos, algumas vezes precários, para garantir o início dos trabalhos da ordem em cada uma delas. É sabido que em algumas capitanias os resultados foram mais proveitosos que em outras, mas o jesuíta tinha o cuidado de esclarecer o objetivo de não abandonar nenhuma das zonas de importância estratégica na América portuguesa, mesmo quando, ao invés de fundar importantes colégios, apenas inaugurava pequenas escolas de alfabetização. Em algumas das capitanias mais prósperas, Manuel Nóbrega fundou colégios, conforme privilégio adquirido mediante dotação régia, como já mencionamos. Dentre as capitanias litorâneas, destacam-se, por exemplo, a de São Jorge de Ilhéus que teve os padres Leonardo Nunes e o irmão Diogo Jacome como um dos primeiros jesuítas. Em decorrência das dificuldades com os índios, como a hostilidade deles, por exemplo, o trabalho desses padres sofreu alguns reveses. Em Ilhéus, o Colégio da ordem foi construído em 1565 e a igreja em 1569, com ênfase na catequese dos índios. Os padres da capitania de Ilhéus ficaram ligados e submetidos à capitania da Bahia. Os padres que foram para a capitania de Porto Seguro, fizeram-no apenas como trânsito para as capitanias do Sul. A ida dos jesuítas para aquele território partiu da iniciativa dos próprios moradores, os quais pediram a Nóbrega que estabelecesse padres inacianos e escola para educação dos seus filhos, o que de fato aconteceu em 99 Cf. LEITE, Serafim. op. cit. tomo II. p. 517. 74 1552. A Companhia de Jesus, no entanto, só por volta de 1563 é que retomou os trabalhos de forma continuada. A colonização do Espírito Santo, empreendimento que mais apresentou dificuldade no sistema das capitanias, foi recuperada por Mem de Sá e Manuel da Nóbrega, o que abriu caminho para a vinda de outros padres da Companhia, liderados pelo padre José de Anchieta. Os primeiros jesuítas a atuarem no Espírito Santo foram o padre Afonso Braz e o coadjutor temporal Simão Gonçalves. Eles chegaram um ano antes que Nóbrega, que também passou pela cidade em 1552, juntamente com Tomé de Souza. Eles incentivaram a construção do Colégio de Santiago para a Companhia, quando já estava em atividade a Confraria dos Meninos de Jesus, nos moldes da baiana e da vicentina. O Colégio foi inaugurado apenas em 1589. A análise do desenvolvimento da capitania de São Vicente é extremamente interessante, pois serve como esboço histórico sobre o papel dos jesuítas no Brasil, par excellence. Eles lutaram pela repressão do cativeiro indígena, o que levou a frequentes atritos com os moradores, tão dependentes da mão-de-obra nativa. Para efetuar a catequese do indígena, os jesuítas desenvolveram também o sistema dos aldeamentos. Nele, os índios ficavam separados dos moradores, servindo de mão-de-obraem quantidade e tempo determinados pelos padres, sistema semelhante ao adotado no Pará-Maranhão, e que levavam sempre a grandes e insolúveis desentendimentos entre colonos e jesuítas. Quando Nóbrega passou por São Vicente, em 1553, os trabalhos da catequese estavam bastante adiantados pelo padre Leonardo Nunes. Reunindo esforços com Leonardo Nunes, eles tiveram o cuidado de fundar São Paulo de Piratininga. O Colégio dos Meninos de Jesus de São Vicente foi inaugurado em 1553, na presença de Nóbrega. Lá, os trabalhos da Companhia deram bons resultados, eles chegaram a receber incentivos do poder civil em dotação de terras naquela que foi capitania de Martim Afonso de Sousa. Há várias discussões sobre as razões que levaram Nóbrega a incentivar a fundação de São Paulo, transferindo para lá posses e moradores que viviam em Santo André. Acreditava-se que o jesuíta tentou fazer da vila um centro de partida para os sertões do Brasil, em razão da existência de vias terrestres e fluviais naquele ponto, o que talvez colocou o Sudeste brasileiro em contato com os guaranis nas proximidades com a região que hoje conhecemos como Paraguai. Isso facilitou o comércio, mesmo que ilegal, com o Vice-reinado do Prata. Por outro lado, considerando os guaranis 75 mais receptivos, Manuel da Nóbrega tentou obter autorização de Tomé de Sousa, em vão, para ficar nas proximidades da capitania de São Vicente, no intuito de tentar pôr em prática a catequese entre São Vicente e o Paraguai. Manuel da Nóbrega, ao que tudo indica, muitas vezes, demonstrou pouco otimismo em uma conversão satisfatória dos nativos na região nordestina. A sua provável incredulidade, no que dizia respeito a uma conversão sincera daqueles ameríndios, tarefa tão difícil e ingrata, ficou relatada no ensaio Diálogo sobre a conversão do gentio. No relato, demonstrou as dificuldades em se conseguir bons resultados na conversão do gentio ao cristianismo, o que podia gerar problemas adicionais como um indesejável ceticismo na prática da catequese por parte dos missionários.100 No entanto, aqueles guaranis, como Leonardo Nunes havia relatado, pareciam mais desenvolvidos na agricultura e raramente caíam na antropofagia. Outrossim, demonstravam maior capacidade de organização, e isso levou os jesuítas a acreditarem nas potencialidades dos guaranis. Apesar das tentativas de Nunes e de Nóbrega de partir para o Paraguai, Tomé de Sousa vetou veementemente a aspiração dos padres. Foi com muita relutância que aceitaram a decisão do governador, de modo que os padres da Companhia de Jesus, pelo menos no século XVI, fizeram de São Vicente ponto limite de suas ambições. No Rio de Janeiro, a ocupação portuguesa significou luta contra os Tamoios e os huguenotes. Nóbrega e o padre Paiva dirigiram-se para a capitania vizinha para organizar a luta contra a Confederação dos Tamoios, que representava ameaça a São Vicente. Nóbrega e Anchieta ainda serviram como embaixadores para apaziguar as hostilidades e romper aquela aliança dos indígenas com os calvinistas franceses. Resolvida a questão, deu-se impulso à construção de um Colégio da Companhia na capitania que teria Nóbrega como primeiro reitor. Resta-nos comentar os resultados obtidos pelos jesuítas em parte do Nordeste brasileiro, que são pouco satisfatórios, pelo menos no século XVI. Embora saibamos que a colonização portuguesa não ficou restrita ao sul de Salvador, no norte as coisas foram muito mais difíceis e houve pouco progresso, principalmente em decorrência da hostilidade dos índios daquelas redondezas. Os jesuítas fundaram igrejas, a partir de 1575, nas capitanias que hoje são os Estados de Sergipe e de 100 NÓBREGA, Manuel da. Diálogo sobre a conversão do gentio. In: op. cit. p. 77. 76 Alagoas, mas nunca chegaram a construir colégios. Nóbrega chegou a Pernambuco em 1551, que na época era governada por Duarte Coelho. E em 1576, fundaram um importante Colégio. A Paraíba, que foi reconquistada pelos franceses em 1584, quando vigorava a monarquia dual ibérica, teve ocupação antecedida pelos franciscanos. A competição com os franciscanos na dotação de rendas e na disputada dos métodos catequéticos foram cruciais para frustrar os progressos da Companhia na capitania. Posteriores desentendimentos com os franciscanos levaram os jesuítas a abandonar a Paraíba, onde eles ficaram quase uma década. A Companhia voltou mais tarde, comandada principalmente pelo jesuíta Francisco Pinto, importante incentivador do estabelecimento da Companhia de Jesus na Amazônia. Deslocamo-nos, finalmente, para a atuação da ordem no extremo-norte da América Portuguesa, cuja realidade particular também está toda inserida em uma conjuntura própria – o período final da União Ibérica (1580-1640) – e que exige um salto cronológico do século XVI para o XVII. Nesse período, tiveram princípio os trabalhos da catequese jesuítica, assim como a colonização tardia daquele recôndito da América. Na Amazônia, o papel da congregação não foi diferente do efetuado no restante do Brasil, ainda que em alguns aspectos, teve desafios semelhantes aos enfrentados pela Companhia em São Vicente. A Companhia de Jesus teve presença marcante na Amazônia e assumiu funções que iam muito além da mera catequese indígena. A colonização da Amazônia era, sem exageros, em grande parte, obra dos jesuítas. O Instituto de Loyola, em determinadas conjunturas, foi a instituição mais influente na história política e social da Amazônia no período colonial. A união nominal das coroas de Castela e de Portugal trouxe uma mudança significativa para a história administrativa da Amazônia. Pela Carta Régia de 13 de junho de 1621 era criado o Estado do Maranhão (que compreendia as capitanias do Maranhão, Pará e Ceará). Logo a seguir, em 1623, outro decreto régio repartiu a América portuguesa em duas áreas administrativamente autônomas e diretamente submetidas ao controle da metrópole: o Estado do Brasil (com sede em Salvador) e o Estado do Maranhão (com sede inicialmente em São Luís).101 101 Cf. AVELLAR, Hélio de Alcântara. História administrativa do Brasil: a administração pombalina. 2. ed. Brasília, Fundação Centro de Formação do Servidor Público – FUNCEP/Ed. Universidade de Brasília, 1983. P. 55. 77 O Estado era formado pelas capitanias reais do Maranhão, do Pará, do Gurupá, do Ceará (até 1656) e pelas capitanias privadas (donatárias) de Tapuitapera, de Cametá, de Caeté, do Cabo do Norte e da Ilha Grande de Joanes. O Piauí juntou-se ao Maranhão e Grão-Pará no início de 1700. E em 1755 foi criada a capitania de São José do Rio Negro (futuro Amazonas) também submetida ao Estado. A tendência, até meados do século XVIII, foi a Coroa incorporar as capitanias privadas existentes. De 1751 até 1772, a região passou a ser denominada de Estado do Grão-Pará e Maranhão, com capital sediada em Belém. Em 1772, desmembrou-se em dois: Estado do Grão- Pará e Rio Negro e Estado do Maranhão e Piauí. Somente em 1811, as capitanias do Maranhão e do Piauí separaram-se. A capitania do Pará nem sempre esteve subjugada à administração do Maranhão. Entre 1653 e 1655, elas estiveram separadas, ficando Belém oficialmente como capital do Pará. Em 1680, a capital do Estado foi por um tempo sediada em Belém. A fundação das principais cidades do Grão-Pará e Maranhão, as capitais das capitanias do Maranhão e Pará, foram primordialmente uma empresa de franceses. Durante o período da monarquia dual ibérica, os inimigos do reino de Castela, principalmente os franceses – além de holandeses e ingleses – aproveitaram-se daquela rivalidade para estabelecer fortificações no norte da América portuguesa e ensaiar um novo empreendimento colonial. Nesse período, foi fundado pelos franceses um fortim que deu origemà cidade de São Luís (1612) na capitania do Maranhão, e que foi tomada por Portugal. A conquista de São Luís obrigou os luso-brasileiros a fundarem o Forte do Presépio (1616), origem de Santa Maria de Belém na capitania do Pará – com o objetivo estratégico de fechar a entrada do estuário do Amazonas ao contrabando e invasões estrangeiras. Assim, ficou selado domínio regional pelos luso- brasileiros a leste da Amazônia. A separação da América Portuguesa em dois Estados não aconteceu apenas por condições geográficas, cujas contradições eram e são flagrantes. As comunicações das capitanias do norte, muitas vezes, chamadas capitanias da costa “leste-oeste”, com as capitanias que se estendiam do cabo se São Roque ao Rio da Prata, da costa “norte-sul”, eram malogradas pelas correntes marítimas desfavoráveis, e o conhecimento das técnicas de navegação à vela não permitiam uma ligação fluida entre os dois Estados. Condição que dificultou a realização de viagens em direção ao Sul, embora não em sentido contrário. Conforme explicação de Caio Prado Júnior, as ligações fluidas entre o Nordeste, Sul e Centro conformavam uma unidade, excluindo 78 a Amazônia do restante da colônia. Desse modo, a Amazônia, no período colonial, teve contexto histórico peculiar. Assim, segundo Caio Prado Júnior: “(...) a sua história se contará sem necessidade de apelar para a deste último. Forma-se e evoluirá por contra própria”. Dado que: Mesmo as ligações entre os dois grupos de capitanias brasileiras são ainda mais que tênues; os ventos na costa sopram desfavoravelmente e orientam as linhas de navegação amazonense diretamente para o Reino, sem atenção ao sul da colônia. Por terra, veda as comunicações, o inextrincável da floresta equatorial que envolve todo o território das capitanias setentrionais. É só pelos rios que elas se poderão fazer. E de fato, por aí se farão. Mas ainda aí, quantos obstáculos. Num certo trecho, todos eles se encachoeiram e interrompem a passagem que se tem de fazer ‘varando’ por terra; e as dificuldades para atravessar centenas de léguas por florestas insalubres e desertas a não ser de índios hostis e agressivos?102 O grande desafio da colonização amazônica foi de ordem econômica. Logo após a conquista do Norte, foi preciso iniciar o desenvolvimento econômico. A experiência ensinava que em terras americanas a simples ocupação sem a construção de defesas militares adequadas ou o incentivo ao povoamento, o que dependia de um alicerce econômico, era estrategicamente desvantajoso e oneroso. Mas esse foi, então, o grande desafio do período colonial naquela região. A base da economia, que era o extrativismo vegetal – coleta das chamadas “drogas do sertão” ou produtos da floresta (algodão selvagem, salsaparrilha, cravo selvagem, cacau e outras mercadorias semelhantes) –, não fomentava um comérico rentável e de grande importância para ligar comércio amazônico ao europeu. Conforme salientou Eduardo Hoornaert: A Amazônia portuguesa ficou sendo uma area predominante militar e geopolítica, menos aproveitável economicamente: as drogas do sertão nunca conseguira rivalizar com a cana-de-açúcar do Nordeste brasileiro, por exemplo, ou mesmo com a nascente economia do gado no interior nordestino.103 A região enfrentaria o desafio de não receber investimento econômico, dado que era exatamente onde tinha início a capitania do Rio Grande que a colonização portuguesa havia sido interrompida. Justamente nessa região terminava o solo do tipo massapé, tendo início a formação do solo tipo arenoso, que se estende no sentido oeste perpassando o Ceará, e que termina apenas depois do Rio Jaguaribe. A partir daí 102 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Brasiliense: Publifolha, 2000. p. 60-61. 103 HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja na Amazônia. CEHILA (Comissão de estudos da história da Igreja na América Latina). Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1990. p. 53. 79 começava-se a vicejar a floresta e a reaparecer os solos férteis para o desenvolvimento de engenhos, assim como madeiras de qualidade. Contudo, ao contrário do Nordeste, as condições geográficas não favoreceram uma exploração efetiva e rentável para a coroa lusitana. O litoral nordestino apresentava as condições objetivas para a reprodução de práticas e técnicas, que em Portugal tinha um domínio histórico: agricultura baseada na lavoura açucareira com base no trabalho escravo, nos moldes da que era praticada nas ilhas atlânticas portuguesas; geralmente a produção do valioso açúcar. O empreendimento açucareiro rapidamente espalhou-se pelo litoral, tendo como principais centros Pernambuco e Bahia, favorecidos pelo clima tropical úmido e solos do tipo massapé. Mas era precisamente na região do Rio Grande do Norte, limite oriental do Estado do Maranhão que: (...) desaparecem os solos férteis, que são substituídos por extensões arenosas impróprias para qualquer forma de agricultura. Somente pequenos núcleos de importância mínima vão surgir esparsos na costa setentrional do Brasil: no Maranhão, na foz do rio Amazonas.104 A despeito da esterilidade do solo, a movimentação das forças fluviais de comportamento imprevisível correspondeu a mais um fator complicador que contrariou o desenvolvimento de uma agricultura extensiva e regular para exportação. Segundo Caio Prado Júnior: (...) as condições naturais lhe são desfavoráveis. Na mata espessa e semi-aquática que borda o grande rio; em terreno baixo e submetido a um regime fluvial cuja irregularidade, com volume enorme de águas que arrasta, assume proporções catastróficas, alagando nas cheias áreas imensas, deslocando grandes tratos de solo que são arrancados às margens e arrastados pela correnteza; nesta remodelação fisiográfica ininterrupta de um território longe ainda do equilíbrio, o homem se amesquinha, se anula. Além disso, a pujança da vegetação equatorial não lhe dá tréguas. A luta exige esforços quase ilimitados se quiser ir além da dócil submissão às contingências naturais. E tais esforços, a colonização incipiente não os podia fornecer. A agricultura, que requer um certo domínio sobre a natureza, apenas se ensaiou.105 Somavam-se às dificuldades de ordem natural, o problema conjuntural da colonização tardia do Norte, que, na análise de Celso Furtado, jamais poderia ser viabilizada em grande escala econômica, porque enfrentou, sobretudo, problemas 104 PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 32. ed. Editora Brasiliense: São Paulo, 1988. p. 39. 105 Ibid., p. 69. 80 como a crise do mercado do açúcar e das ocupações estrangeiras. Ainda, segundo Caio Prado Júnior: (...) a desorganização do mercado do açúcar, fumo e outros produtos tropicais, na segunda metade do século XVII, (...) impediu aos colonos do Maranhão dedicarem-se a uma atividade que lhes permitisse iniciar um processo de capitalização e desenvolvimento. As suas dificuldades eram as mesmas que enfrentava o conjunto das colônias portuguesas na América, apenas agravadas pelo fato de que eles tentaram começar numa etapa em que os outros consumiam parte do que haviam acumulado anteriormente. (...) Os maranhenses tentaram o mesmo caminho, mas logo tiveram de enfrentar o isolamento provocado pela ocupação de Pernambuco pelos holandeses e, mais adiante, a própria decadência da economia açucareira.106 Criado por necessidades estratégicas e políticas, era flagrante a ausência de um projeto econômico para a região. A crise do século XVII prejudicou o desenvolvimento maranhense, região que sobreviveu precariamente nos moldes de uma colônia de povoamento. O Maranhão permaneceu com uma região periférica à margem das prioridades de Portugal. Assim, (...) a inexistência de qualquer atividade que permitisse produzir algo comercializávelobrigava cada família a abastecer-se a si própria de tudo, o que só era praticável para aquele que conseguia pôr as mãos num certo número de escravos indígenas.107 A desfavorável conjuntura internacional, a falta de investimentos por parte do reino, a inexistência de mão-de-obra escrava regular e numerosa e as vicissitudes do meio envolvente estagnaram o desenvolvimento do Estado, que estava fadado a conviver com os mesmos e insolúveis problemas resultantes da falta de investimento por quase duzentos anos. O extrativismo vegetal e animal eram a fonte de sustento da população, que recorriam à escravização indígena para realização da coleta dos gêneros naturais. A escravidão africana era rara, pois não existiam rotas comerciais para aquelas localidades, tampouco existia um mercado de compradores, em decorrência da inexistência de uma atividade produtiva lucrativa, regular e em larga escala. Para se ter noção aproximada da situação, podemos salientar a precariedade econômica local, que de tão primitiva, desprezava a circulação de moedas. A inexistência de moedas tinha 106 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Editora Nacional. 24. ed. 1991. p. 66. 107 Ibid., p. 67. 81 relação com a dispersão da baixa densidade populacional, que habitava o território excessivamente vasto para conseguir promover encontros regulares com compradores e mercadores. Ainda mais quando a obtenção das mercadorias, geralmente extraídas da natureza e, portanto, sempre exposta às intempéries do meio, não era regular o suficiente para realização de qualquer planejamento para o estabelecimento das feiras. Nesse sentido, as contingências tornaram as moedas obsoletas e vigoravam as trocas diretas, conforme necessidades imediatas. A única mercadoria que fazia, por vezes, a função de moeda para facilitar as trocas eram os rolos de pano. Ademais, do ponto de vista econômico, era pouco provável que os índios, como maioria da população (os brancos raramente passavam de 800 moradores) e principal fonte de obtenção de mercadorias, incentivassem a utilização de moedas que, para o universo cultural indígena, era objeto desprovido de valor. Pelo menos até o século XVIII, todas as tentativas para fazer circular a moeda resultaram infrutíferas. Para melhor compreendermos a situação econômica local, principalmente no que se refere aos desafios de se encontrar mão-de-obra, convém citar o testemunho cenário social descrito pelo padre Antônio Vieira: Na vida dos índios consiste toda a riqueza e remédio dos moradores e é muito ordinário virem a cair em pouco tempo em grande pobreza os que se têm por mui ricos e afazendados, porque a fazendo não consiste nas terras, que são comuns, senão nos frutos ou indústrias com que cada um os fabrica e de que são os únicos instrumentos os braços dos índios.108 Fosse para tocar uma roça ou remar grandes distâncias em busca de gêneros de extrema necessidade, o índio contratado ou escravizado – o segundo mais habitual – era elemento essencial. Porém, a escravização dos índios era sempre dificultada pela má-vontade das ordens religiosas, que dava a última palavra para autorização e legalização dos cativeiros. Depois da restauração portuguesa, foi criada a Junta das Missões, conforme lei de 7 de abril de 1681. A Junta era composta pelo governador, bispo, ouvidor-geral, provedor da fazenda e os prelados das ordens religiosas.109 A Junta era convocada, geralmente, para declarar guerra justa aos indígenas, autorizar descimentos, resgates ou para resolver litígios sobre a licitude de alguns cativeiros. Os índios, depois de serem capturados, para serem registrados como escravos lícitos, tinham de ser apresentados perante a Junta para receber parecer 108 DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2004.Vol. II. p. 80. 109 Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da; SALZANO, Francisco M. op. cit. p. 442-443. 82 favorável e ter registro na chancelaria, que, todavia, ainda estabelecia a sua distribuição entre as partes que, conforme a lei, poderiam solicitá-los. A lei garantia que eles poderiam ser requisitados por moradores, pelo poder público e pelas ordens religiosas, sempre por prazos determinados pela lei. As ordens religiosas, enquanto membros integrantes da Junta, e por isso com poder decisório de peso, sempre foram acusadas de levar vantagens diante dos moradores no momento das repartições e nas quantidades estabelecidas entre religiosos e moradores, além de reprovar a escravidão de alguns índios após exame. Observe o argumento utilizado por Vieira, segundo o registro de um dos moradores que escreveu em representação contra o padre, quando ele examinava a legalidade de escravização em guerra justa: Posto em juízo este caso, votou o Padre Antônio Vieira que estes índios não eram absolutamente cativos, conforme a lei de sua Majestade. Primeiro porque a lei proíbe todo o gênero de cativeiro, tirando e quatro casos, um dos quais é se forem tomados em guerra justa: [ao que haveria respondido o Padre] estes índios não se prova que fossem tomados em guerra justa, porque eles só disseram que foram tomados em guerra, e nem eles, nem outra alguma pessoa disse se a tal guerra fora justa: logo, conforme a lei, não são, nem se podem julgar por cativos os tais índios.110 Outro fator complicador para os moradores, na luta para adquirir escravos, estava relacionado às próprias ordens religiosas, principalmente à Companhia de Jesus, que participava, em Lisboa, da elaboração da legislação para regulamentar os cativeiros e condicionar o cotidiano dos indígenas sob ampla tutela dos missionários. Os padres das ordens religiosas mantinham os indígenas em seus aldeamentos, procurando, sobretudo, dar-lhes catequese e mantê-los isolados da população em geral. Cabia aos indígenas trabalhar para a manutenção dos aldeamentos religiosos, como coletores, caçadores ou artesãos. A liberdade deles era cerceada pelo controle dos missionários. A conquista do Maranhão partiu de interesses particulares e foi geralmente comandada por donatários das capitanias de Paraíba e Pernambuco, projeto incentivado pelo governo-geral do Brasil. Uma das fontes mais utilizadas para conhecimento dos eventos, que descrevem o avanço dos luso-brasileiros no Grão-Pará, são os Anais históricos do Estado do Maranhão, de autoria de Bernardo Pereira de 110 GIORDANO, Cláudio (org). VIEIRA, Antônio. Escritos instrumentais sobre os índios. In: Informação que deu o Padre Antônio Vieira sobre o modo com que foram tomados e sentenciados por cativos os índios no ano de 1655. São Paulo: EDUC; Loyola; Giordano, 1992. p. 33. 83 Berredo, que foi o governador do Estado do Maranhão (1718 – 1722). Compulsando os manuscritos dos arquivos públicos do Maranhão, e em seguida os de Portugal, Berredo reconstruiu em estilo épico a incorporação da Amazônia nos domínios lusitanos, desde a descoberta do caudaloso “Rio das Amazonas” até o início da própria administração portuguesa.111 Bernardo Berredo reservou o sucesso da conquista da Amazônia ao voluntarismo e ao heroísmo de homens como Pedro Teixeira, primeiro português a navegar o rio em sua totalidade. E também a Castelo Branco, Bento Maciel Parente e Jerônimo de Albuquerque, exploradores responsáveis pela expulsão dos franceses da capitania do Maranhão. A obra é muito criticada, porque é pobre em informação econômica e social. De acordo com Gonçalves Dias, crítico de seus trabalhos, Berredo “(...) não escrevia a história do Maranhão, escrevia uma página das conquistas de Portugal, daí seu principal defeito”.112 O autor ainda apresenta os religiosos das distintas congregações como coadjuvantes na conquista do Norte. No entanto, existea versão diferente de alguns historiadores e, principalmente, dos cronistas da Companhia de Jesus, que destacaram o protagonismo dos religiosos como agentes responsáveis pela moral dos combatentes e embaixadores junto aos indígenas, a fim de convencê- los a fornecer apoio aos índios guerreiros. A primeira missão que avançou sobre São Luís, em 1615, foi liderada em terra por Alexandre de Moura, enquanto o capitão Castelo Branco ficou incumbido de ocupar o restante da região pelo mar, o que favoreceu a fundação da cidade de Belém, em 1616, para fechar o estuário amazônico a outras nações. Entre 1616 e 1647, os portugueses ainda lutaram contra a tentativa holandesa de estabelecer feitorias na região ao mesmo tempo em que combatiam ingleses e irlandeses.113 As ordens religiosas sempre estiveram presentes nestas conquistas. Um dos principais líderes da conquista do Maranhão, Jerônimo de Albuquerque, viajou acompanhado de franciscanos, que ficaram estabelecidos na região desde 1617. 111 Cf. BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais históricos do Estado do Maranhão. Rio de Janeiro: Tipo Editor, 1988. p. 14-15. 112 DIAS, Gonçalves. Reflexões sobre os Anais Históricos do Estado do Maranhão, por Bernardo Pereira Berredo. In: Guanabara (Rio de Janeiro, tomo I. 1849, 25-28, incompleto, e reproduzido completo como introdução à 2ª edição dos Anais Históricos do Maranhão, 1849). Apud RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil. 1ª parte. Historiografia Colonial. São Paulo: Nacional-MEC, 1979. p. 93. 113 Cf. HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja na Amazônia. CEHILA (Comissão de estudos da história da Igreja na América Latina). Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1990. p. 52. 84 A armada de Alexandre de Moura, que auxiliou na conquista do Maranhão, trazia dois padres jesuítas: o superior da missão de Pernambuco, Manuel Gomes e Diogo Nunes. Ambos foram úteis ao chefe da expedição, pois ajudaram nas tarefas de conquista, levando com eles índios guerreiros de seus aldeamentos. E, no interregno da viagem rumo ao Maranhão, quando arribaram no Ceará, recrutaram outros mais. Os padres, no entanto, não ficaram na região. Coube ao padre Luís Figueira afirmar as missões da Companhia no Estado do Maranhão e Grão-Pará. De pouca idade e sem ter, todavia concluído seus estudos, partiu de Portugal para o Brasil, região entre as capitanias do Gurupá e Maranhão, acompanhando o padre jesuíta Francisco Pinto, chefe da missão. Vale ressaltar que ele também participou da expedição à Serra do Ibiapaba. Em janeiro de 1607, ambos saíram de Pernambuco escoltados por índios aliados. No entanto, no caminho para o Maranhão, o grupo foi atacado e, embora Luís Figueira tenha se salvado, o padre Francisco Pinto não teve a mesma sorte. O padre voltou para Portugal, porém o estabelecimento da Companhia de Jesus na Amazônia ficou temporariamente adiado. No tocante à questão do estabelecimento das missões no Estado do Maranhão, Luis Figueira e Antônio Vieira são os dois grandes nomes na concretização dos projetos jesuíticos. Depois de fracassada a missão a Ibiapaba, Luís Figueira trabalhou em Portugal durante algum tempo com foco no estabelecimento definitivo da Companhia de Jesus no Maranhão. Luís Figueira retornou ao Estado do Maranhão somente em 1636, data que é considerada um marco no arranque do empreendimento missionário da Companhia na Amazônia. Do mesmo modo, desembarcou no Estado o jesuíta siciliano Benedito Amodei, acompanhado pelo governador-geral do Maranhão-Pará Diogo de Mendonça Furtado, o que causou grande alvoroço na sociedade local, a qual via nos padres uma ameaça ao controle da mão-de-obra indígena. Os membros das instituições públicas tentaram impedir o desembarque dos religiosos. Antônio Moniz Barreiras, capitão- mor, intermediou a contenda e solicitou ao padre que assinasse um termo de compromisso, em que ele abdicava tratar das questões indígenas, justa ou injustamente escravizados, sob pena de ser expulso e de ter os bens alienados. Amodei assinou a petição com a ressalva de que cumpriria as exigências, exceto nas situações, segundo uma das cláusulas, “em que a consciência ou a obrigação assim o requeresse”. A ambigüidade do acordo abriu brechas para interpretações subjetivas e não satisfez os 85 moradores. A despeito das oposições, o capitão-mor declarou solenemente junto ao Senado da Câmara: Quanto aos inconvenientes, que o povo propõe, para que não fiquem na terra, não têm mais fundamento que os remorsos das consciências de alguns, que lhes parece que os padres lhes não aprovarão o seu modo de viver, porque o que apontam em particular, de que os padres lhes tirarão os índios de seu serviço e ficarão pobres e sem o seu remédio, não tem fundamento pelo termo que os mesmos padres têm feito; nem pretendem mais que fabricar casa nesta cidade e reduzir todos à nossa fé. (...) E quando estas minhas razões não bastem, protesto por todos os tumultos, e desobediências que sucederem na expulsão dos padres, e o des-serviço de Deus, e de El-Rei ser tudo por culpa de Vossas Mercês.114 As palavras do capitão-mor ilustram situação recorrente nos mais de cem anos da presença dos jesuítas no Estado do Maranhão: insatisfação dos colonos com os jesuítas que foram acusados de proibir o usufruto da mão-de-obra indígena sem, no entanto, obstarem-se de utilizá-la em benefício próprio. Mas as tentativas dos colonos em sabotar a vinda dos inacianos justificavam- se, à luz da experiência anteriormente conhecida, pelas dificuldades que os jesuítas impunham à obtenção do servilismo indígena em terras carentes de mão-de-obra escrava. A situação vicentina, no que dizia respeito aos atritos dos moradores contra os inacianos pelo controle da mão-de-obra indígena, era inegavelmente conhecida pelos colonos amazonenses, por ser mais antiga. As semelhanças entre os dois espaços na questão do trabalho indígena, forçosamente, trazia preocupação para os moradores. Em São Vicente, as consequências oriundas da edificação das missões jesuítas em terras deficientes na obtenção de mão-de-obra indígena havia resultado em rusgas entre religiosos e moradores. A Companhia de Jesus mais de uma vez foi expulsa de São Vicente como aconteceu em 1632, quando os colonos liderados por Antonio Raposo Tavares expulsaram os padres de Barueri, acusando os jesuítas de dificultar, entre moradores, a repartição dos índios dos seus aldeamentos.115 Como não concordavam com essa situação, os jesuítas revidaram em 1640, depois de conseguir pressionar Roma com a publicação do breve de 3 de dezembro de 1639, o qual reforçava a bula de 1537, que proscrevia a escravidão dos índios nas Américas. Os jesuítas divulgaram com grandiloquência o conteúdo das instruções papais, mas não esperavam que as Câmaras Municipais de São Vicente se articulassem 114 São Luís do Maranhão, 2 abril de 1622. Carta assinada por Antônio Barreiros. 115 Cf. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 142. 86 contra o cumprimento da lei. As Câmaras foram pressionadas pela população a expulsar de forma incondicional os padres. O argumento utilizado era pautado no excessivo e abusivo poder dos inacianos, que representava naquela altura uma fonte de transtornos para a ordem pública. A Companhia de Jesus também teve suas propriedades e os índios dos seus aldeamentos distribuídos entre os moradores. Contudo, foram readmitidos na capitania treze anos depois.116 Analogamente, as mesmas contendas ocorreram no Maranhão-Pará. As disputas entre jesuítas e Senado da Câmara das capitais do Estado sempre foram mediadas por governadores, geralmente favoráveis aos trabalhos da ordem. Porém, mesmo quando os governadores atuavam comoêmulos dos jesuítas, eles, até a época do reinado de D. José, sempre encontraram nos reis de Portugal seus melhores aliados. Mesmo conturbadas, as disputas terminavam, muitas vezes, favoráveis ao Instituto de Loyola. Curiosamente, a história da região no período colonial tem sido explicada essencialmente como uma tensão entre dois protagonistas: religiosos e colonos que a disputavam o controle do trabalho indígena e os choques daí decorrentes. A aparente simplificação não foi superada e, até o momento, desconhecemos a existência de novas abordagens que possam superar este convencionalismo. A edificação do projeto missionário, depois das visitas de Luís Figueira e de outros padres, precisou ainda de mais alguns anos para ser firmemente iniciada até receber a dedicação daquele que foi o mais marcante missionário da Companhia de Jesus no Estado, o padre Antônio Vieira. Antes do seu desembarque, antecederam-no os jesuítas Gaspar Fragoso e João de Souto Maior, acompanhados pelo capitão-mor Inácio do Rego Barreto, que chegou a Belém em dezembro de 1652. Os moradores, sabendo dos problemas causados pela presença dos padres, exigiram, mais uma vez, a assinatura de um termo, em que os padres assumissem o compromisso de não se meterem na questão dos escravos indígenas ou com a administração dos forros. As exigências deixavam claro que eles podiam apenas cuidar da catequese de índios e da educação dos filhos dos brancos. Astuto, não se eximiu Souto Maior em assinar os tratados, conforme a proposição de seus rivais, jurando somente pregar a palavra de Cristo. No entanto, bastava apenas um alvará régio com o poder para autorizar o trabalho missionário nos moldes conhecidos. Dessa forma, qualquer documento elaborado por instâncias inferiores era derrubado. O que interessava a Souto Maior, de 116 Ibid., p. 145-146. 87 antemão, era o estabelecimento da Companhia no Pará, empresa difícil, que não era vantajosa em sua fase incipiente receber aberta oposição das massas. Aproveitando-se do armistício com os moradores, os jesuítas conseguiram inaugurar o seu colégio no Pará, naquele mesmo ano de 1652. Assim, ficou lançado no Estado do Maranhão e Grão-Pará o antagonismo entre jesuítas e colonos, embates pela única mão-de-obra local, a indígena. Ambos a reclamavam para objetivos aparentemente distintos: exploração pelos colonos e proteção e liberdade, da parte dos jesuítas. A disputa na localidade mais pobre da América portuguesa justificava-se, do ponto de vista dos colonos, por não haver recursos suficientes para iniciar o comércio negreiro. Eles acreditavam que os ameríndios eram a solução para os problemas econômicos. Em janeiro de 1653, Antônio Vieira chegou ao porto de São Luís. O padre conseguiu desembarcar porque concordou que as leis de emancipação indígena, recentemente publicadas, mas ainda sem cumprimento, fossem temporariamente suspensas. Vitória parcial dos colonos. Sabemos, em análise retrospectiva, que, com ou sem lei a vigorar, a presença de Vieira significou um cavalo de Tróia nos planos dos colonos. Ainda assim, as missões entraram em franco crescimento e rapidamente superaram os franciscanos, que foram os primeiros missionários portugueses na Amazônia, ultrapassando também, em importância, outras ordens que por lá atuavam como mercedários, carmelitas, dentre as mais importantes. As relações entre colonos e religiosos, geralmente tensas, cresciam ou diminuíam dependendo da situação de maior ou menor empobrecimento da população. O perigo de alvoroço era uma constante. Durante o governo Pedro de Melo (1658 - 1662), depois de sucessivos governadores coniventes com os jesuítas, houve um novo quadro de hostilidades contra a Companhia de Jesus. A Câmara Municipal de Belém, em representação junto ao povo, exigia maior frequência na prática de resgates ou na autorização para efetuar guerras justas após longo período de proibição. Os vereadores de Belém conseguiram solidariedade de seus homólogos em São Luís. Bem articuladas, as duas câmaras levantaram a voz contra os religiosos da Companhia de Jesus, dando início a motins nas respectivas cidades. A maioria dos padres jesuítas, incluindo Vieira, terminou embarcado à força para o Lisboa. Os colonos, liderados pelo procurador Jorge de Sampaio, enviaram seus representantes para o reino, na tentativa de justificar a ação 88 hostil contra organização sabidamente privilegiada junto à corte. Apesar dos debates entre Sampaio e Vieira, promoveu-se uma anistia geral para os moradores e religiosos. Entretanto, Jorge de Sampaio regressou com duas excelentes notícias para os seus pares. Vetou-se o retorno de Vieira ao Estado do Maranhão e ainda entrou em vigor a Provisão de 12 de setembro de 1663, que retirava das ordens religiosas a administração temporal dos nativos.117 No entanto, os colonos não conseguiram manter os inacianos longe do Grão-Pará-Maranhão, os quais receberam autorização para voltar. Desde então, Vieira trabalhou incansavelmente no paço real para o fortalecimento da Companhia de Jesus na Amazônia. Menos fortalecido na corte depois da morte de D. João IV, do qual era valido e conselheiro, o que lhe retirou o prestígio de outrora, conseguiu ainda sua última vitória para a Sociedade de Jesus, pelo Decreto de 1º de abril de 1680. A nova lei declarava a liberdade dos índios que deveriam viver em aldeias católicas.118 Outrossim, restituía à Companhia de Jesus o controle temporal das aldeias. Na prática, os jesuítas conseguiam o monopólio e o controle da distribuição do trabalho indígena a partir dos seus aldeamentos. Assim, coube aos jesuítas a supervisão da repartição dos índios entre moradores e o serviço público, segundo norma estabelecida pela lei, e a terça parte dos índios aldeados ficou sob domínio permanente e exclusivo da Companhia de Jesus. Todo o processo foi supervisionado pela Junta das Missões, e os jesuítas ainda dispunham do direito de voto nas deliberações como membros representantes do conselho. Dessa vez, Vieira calculou que para a lei semelhante não voltar a amotinar moradores, uma companhia monopolista nos moldes mercantilistas (das quais era grande apreciador) deveria ser criada para fomentar o comércio e subsidiar a compra de escravos africanos por parte dos moradores, o que diminuiria consideravelmente a pressão sobre os índios. Proposta ao rei, a companhia de estanco recebeu aprovação com promessas de funcionar a partir de 1682, conforme alvará de 12 de fevereiro do mesmo ano, com o nome de Companhia de Comércio do Estado do Maranhão. Entrando em vigor a companhia de estanco, os moradores só poderiam importar ou exportar por intermédio da companhia, sempre com valores tabelados, tornando, desse 117 AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Porto, 1901. p. 107. 118 Cf. NEVES, Luís Felipe Baêta. Vieira e a imaginação social jesuítica: Maranhão e Pará no século XVII. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 264. 89 modo, possível o pagamento pelos escravos que desembarcavam a preços acessíveis aos compradores. Posta em prática, a companhia de comércio não durou dois anos. Os desmandos e a má-administração por parte dos agentes do monopólio, somados aos escravos prometidos que nunca chegaram, levaram à insurreição popular contra a empresa. Na falta de escravos africanos, as pressões sobre os índios, cuja obtenção estava vetada pela lei de 1680, canalizou a ira popular contra as religiões, principalmente contra a Companhia de Jesus. A revolta estourou em São Luís em 1684. A população, liderada por Manuel Beckman, deteve os funcionários das duas companhias, a de Comércio e a de Jesus. Depois do encarceramento, receberam deportação para o reino. A reação dos revoltos teve efeito inverso.É fato que a Companhia de Estanco foi abolida, mas a Companhia de Jesus, a principal ordem perseguida pelos revoltosos, e expulsa de São Luís (Belém não aderiu), retornou mais fortalecida do que antes para o Estado. Jorge de Sampaio, antigo inimigo da Companhia de Jesus e representante dos moradores na primeira expulsão dos inacianos do Maranhão-Pará, na condição de cúmplice e co-autor do levante recebeu, da mesma forma que Manuel Beckman, pena capital a ser executada em Lisboa. Depois de evento tão dramático, a Companhia protelou sobre a sua permanência na Amazônia, mas mesmo assim continuaram. Poucos anos depois, uma nova e definitiva legislação foi criada até a última expulsão da Companhia. Os jesuítas adquiriram um poder que os tornaram a corporação mais poderosa do Estado, por um período de quase setenta anos: o Regimento das Missões de 1686. O rei Pedro II assinou, em 21 de dezembro de 1686, o Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará. A principal participação jesuíta na criação do Regimento recaiu sobre Luís Felipe Bettendorff, experiente missionário na Amazônia. O documento foi integralmente publicado pelo historiador Serafim Leite. Nele, ficava acertado que os padres da Companhia “terão o governo, não só espiritual, que antes tinham, mas o político, e temporal das aldeias de sua administração, e o mesmo terão os padres de Santo Antonio, nas que lhes pertencer administrar (...)”.119 Pelo regimento, os índios teriam procuradores nas cidades de São Luís e Belém. Os jesuítas iam auxiliá-los na escolha dos nativos e enviariam um número de 119 LEITE, Serafim. op. cit. Vol. IV. p. 368. 90 candidatos para que o governador fizesse a escolha definitiva. Vetava-se a entrada ou a permanência de indivíduos estranhos nas aldeias (4º artigo), até mesmo de altos funcionários do Estado ou clero sem autorização da Companhia de Jesus. Retirar os índios para serviços dependia da aquiescência dos padres, que estabeleciam o prazo pelo qual seriam emprestados, sob ameaça de penas severas como prisão somada à multa, em caso de não cumprimento do Regimento das Missões. Pelo documento, ficava determinado que o tempo de serviço prestado pelo indígena não podia extrapolar o máximo de seis meses no Pará. No Maranhão, o tempo de serviço era de apenas quatro meses. Caso os moradores que usufruíssem do índio o casassem como escravo, estratégia comum para mantê-lo em sua propriedade, seriam penalizados com a alforria do casal. Aos padres era exigido aumento do número de aldeias e catecúmenos de modo que os índios pudessem ser fartamente repartidos entre as diferentes ordens religiosas, moradores e serviço público, norma explícita no artigo 15º.120 Essa exigência nada mais fazia do que incentivar os descimentos (deslocamento consentido pelos índios desde seu habitat natural para os aldeamentos construídos pelos religiosos), muito a gosto dos jesuítas. O descimento constituía uma maneira menos dramática de submissão do índio em comparação com as outras modalidades abertamente compulsórias, como o resgate e a guerra justa. Depois de descidos, exigir-se-ia dos índios um tempo mínimo de dois anos de permanência nas aldeias para receber devidamente a catequese antes de sua distribuição para o trabalho. Constatou-se que o Regimento das Missões deveras fortaleceu o trabalho missioneiro e sua expansão. A multiplicação das missões entre as ordens religiosas levou à publicação da Carta Régia de 19 de março de 1693, que tinha por objetivo organizar os espaços de atuação dos religiosos na Amazônia, evitando conflitos de atuação. Segundo a jurisdição, confiava-se aos jesuítas a catequese no distrito sul do Rio Amazonas até a fronteira com as colônias espanholas; aos religiosos da Piedade e de Santo Antônio, a margem esquerda do dito rio. Aos da Companhia de Jesus cabiam os trabalhos ao Sul do Amazonas até as incertas fronteiras da Coroa Espanhola, aos Franciscanos da província brasileira de Santo Antônio e da portuguesa de Nossa Senhora da Piedade, a margem esquerda do Amazonas até o Rio Urubu.121 120 Ibid., p. 372. 121 NEVES, Luís Felipe Baêta. op.cit. p. 267. 91 A Companhia de Jesus pediu alterações do decreto em razão da enormidade do que lhe coube. Em reposta, a Carta Régia de 29 de novembro de 1694 entregava aos mercedários as localidades adjacentes ao Rio Urubu, e os carmelitas ficavam com a administração dos povos do Rio Negro, anteriormente sob jurisdição dos jesuítas.122 De modo a tornar flexível o Regimento das Missões e inclinar um pouco a balança para o lado dos moradores, publicou-se o alvará de 28 de abril de 1688, que sancionava cativeiros dentro das situações comumente justificadas, como guerras justas e resgates. Contudo, tais entradas só podiam ser autorizadas pelos religiosos que tinham o direito de acompanhar as expedições. No essencial, o Regimento das Missões inaugurava um inconteste monopólio sobre o trabalho indígena, na Amazônia, pelos franciscanos e jesuítas, as únicas ordens às quais a legislação contemplava, com alguma vantagem para os jesuítas que dispunham de maior número de aldeias sob sua custódia. Curiosamente, durante os pouco mais de setenta anos em que vigorou o Regimento das Missões, não foram registrados conflitos marcantes entre moradores e religiosos. Talvez por temor das autoridades coloniais, os moradores tenham percebido a inutilidade de brigar com a Companhia de Jesus e, provavelmente, preferiram negociar, pois as ordens religiosas detinham o exclusivismo na intermediação do fornecimento de braços para o trabalho. Mas, ainda que velada, a contenda continuou em aberto. Dessa vez, a estratégia apoiou-se naquilo que Lúcio de Azevedo chamou de “campanha dos libelos”. Os moradores, por intermédio de representantes, e em nome do Senado da Câmara das capitais do Estado, enviavam um sem-número de reclamações contra os religiosos, no que consideravam desmandos por eles praticados. Em um futuro próximo, sabemos que aqueles protestos aparentemente infrutíferos resultaram num acúmulo de reclamações que, no período pombalino, foram utilizados contra todas as religiões do Estado – em especial contra a Companhia de Jesus. Dentre as reclamações, destacam-se as formuladas pelo procurador dos moradores em Lisboa, Paulo da Silva Nunes. Inimigo acérrimo da Companhia, o procurador dedicou os últimos anos da sua vida a combater o poderio jesuítico na Amazônia. Como destacou o jesuíta, José Caeiro, perseguido pelo governo do marquês de Pombal: 122 Cf. REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989. p. 72. 92 (...) no reinado de Dom João V, a Câmara do Maranhão organizou com sumo cuidado e emprenho um libelo em que figurassem as acusações [contra a Companhia de Jesus] (...). Como procurador oficial da Câmara, foi enviado a Lisboa Paulo da Silva Nunes, no ano de 1734. Dirigiu-se ele em pessoa, muitas vezes a El-Rei; recorreu frequentissimamente a ministros poderosos e nada favoráveis aos jesuítas,e por palavra e por escrito espalhou em toda a parte inúmeras acusações contra os Padres. Nem faltaram pessoas que de bom grado apoiavam os esforços daquele homem contra os jesuítas do Maranhão.123 Durante o consulado pombalino, o meio-irmão de Sebastião José, o então governador do Estado, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, surpreendeu-se ao descobrir, em Belém, a existência no Conselho Ultramarino, de toda uma quantidade de material que poderia fornecer argumentos contra a Companhia de Jesus. Assim, durante sua campanha antijesuítica, Mendonça Furtado lembrou ao marquês de Pombal da existência de Paulo da Silva Nunes, antigo procuradordos moradores do Estado, quando o tema era o comércio praticado pelos padres: “(...) houve no tempo do governador Alexandre de Sousa Freire, e à queixa que nele fez contra o comércio dos padres um Paulo da Silva Nunes que se dizia procurador das Câmaras deste Estado (...)”. Queixas “(...) contra o grosso comércio que estes padres aqui fazem (...)”.124 Em 1756, atendendo à solicitação do irmão, Pombal recopilou aquelas acusações que jaziam esquecidas no Conselho Ultramarino e as publicou com o título “Terribilidades”.125 O governador Mendonça Furtado ainda afirmou que a aplicação do Tratado de Madrid e o enlaçamento do Grão-Pará na economia luso-brasileira não poderiam ser feito enquanto o Regimento das Missões fornecesse aos padres o controle sobre o indígena. Os padres impediam a ocupação de vácuos populacionais num Estado que precisava ser estrategicamente ocupado e prejudicavam a economia ao impedir a oferta de trabalho. Para Mendonça Furtado, a aplicação do tratado de fronteiras recebia oposição das ordens religiosas, as quais faziam de tudo para frustrar as demarcações. Para o governador e os moradores, a Companhia de Jesus aproveitava-se do dever de cuidar e de zelar dos índios, subvertendo aquela prerrogativa em abuso de poder, dispondo-os a trabalhar para seu interesse particular. Dessa forma, a Companhia criava riquezas, que circulavam dentro das unidades jesuíticas, mas permanecia isenta do 123 CAEIRO, José. História da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal (século XVIII). Vol I. p. 230. 124 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Papel no qual Francisco Xavier de Mendonça Furtado mostra em 100 itens que o negócio que os Padres fazem não é lícito nem necessário. Tomo II. p. 137-138. 125 AZEVEDO, João Lúcio de. O marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004. p. 140-141. 93 pagamento de impostos. Assim, o Estado perdia em progressos econômicos e dividendos na arrecadação fiscal, justamente numa época em que Mendonça Furtado necessitava de fundos para construção de fortificações em pontos estratégicos, reforço das forças armadas, para a fundação de vilas e povoados. Mas, para sua grande consternação, encontrou os almoxarifados do Estado totalmente sem recursos. Para o governador, as receitas não entravam nos cofres públicos, porque o controle do comércio pelos religiosos exauria o Estado. Reclamações desse teor foram exaustivamente remetidas para o marquês de Pombal. As mudanças estruturais que operavam no reino, que precisavam urgentemente de reformas, tiveram espaço privilegiado no Grão-Pará, servindo, dessa forma, de laboratório de experiências. As medidas consistiam na criação de uma nova companhia monopolista de comércio, como remédio para erradicar o contrabando, a emancipação indígena, para viabilizar ocupação do interior brasileiro, e a exclusão dos clérigos das decisões de Estado, à secularização da administração pública. Esse conjunto de decisões, que foram operacionalizadas no reino, foi aplicado primeiramente pelo marquês de Pombal na Amazônia. O projeto pombalino, em alguns aspectos, entrou em choque com o jesuítico na Amazônia – a Companhia de Jesus foi sinônimo de expansão missionária do catolicismo, baseada na conversão do índio e na conquista dos povos nativos para torná-los leais e submissos aos reis de Portugal. 94 PARTE II – FORTALECIMENTO DO ESTADO PORTUGUÊS NA AMAZÔNIA: CONTENDAS ENTRE MENDONÇA FURTADO E OS JESUÍTAS 95 IV. Mendonça Furtado na Amazônia: Antecedentes da Modernização Pombalina Os governadores ou vice-reis dos domínios ultramarinos lusitanos, quando partiam de Portugal para tomar posse do seu cargo, quase sempre traziam em sua bagagem documentos geralmente chamados de “Instruções Régias”. Os Regimentos ou Instruções eram documentos que consistiam em ordens, as quais deveriam ser cumpridas pelos governadores ultramarinos. Os regimentos ou instruções eram documentos de conteúdo extenso e tinham o objetivo de instruir os governadores, numa linguagem clara e direta. Como representantes pessoais do rei, os governadores deveriam esforçar-se para cumprir o programa contido nas instruções régias.126 Nas Instruções Régias, Públicas e Secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão (doravante Instruções), documento datado de 31 de maio de 1751, encontramos aquilo que poderia ser definido como um Projeto Português para a Amazônia.127 No aludido documento, exortava-se Francisco Xavier de Mendonça Furtado, como governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, a colocar em execução medidas que tivessem o objetivo fundamental de incorporar um território habitualmente esquecido e pouco explorado pela coroa portuguesa, no sistema mercantil luso- brasileiro. O objetivo das Instruções não foi combater diretamente nenhuma forma de poder estabelecido no Grão-Pará e Maranhão. No entanto, a ousadia das medidas tomadas em obediência ao conteúdo das Instruções afetou a vida dos moradores, além de modificar a estrutura local de poder, o que, neste trabalho, é aspecto de primordial interesse. No mesmo período que Mendonça Furtado recebeu suas Instruções, Dom Rolim de Moura, na condição de governador da capitania do Mato Grosso, também auferiu um regimento com instruções que deveriam orientá-lo no exercício da sua 126 Cf. HESPANHA, António Manuel. Antigo Regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do Império colonial português. p. 60-61. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 127 Instruções Régias, Públicas e Secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Lisboa, 31 de maio de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. Tomo I. p. 67-80 96 função.128 A leitura de ambas as Instruções permitiu perceber a relação de complementaridade proposta nos documentos, o que sugeriu a existência de um Projeto Português para a Amazônia, na medida em que demonstram uma nova orientação da geopolítica portuguesa para territórios, ainda, por colonizar no Oeste e no Centro-Oeste da América portuguesa. As Instruções recebidas por Mendonça Furtado consistiam na parte essencial daquele projeto, enquanto as do governador Dom Rolim de Moura formavam parte complementar de um projeto, nos quais medidas de maior importância irradiavam do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Francisco Xavier de Mendonça Furtado, meio-irmão do marquês de Pombal, ficou incumbido da aplicação do projeto português para a Amazônia, substancialmente contido nas Instruções Secretas. Pouco se conhece da biografia de Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769) até o seu ingresso na vida pública como o décimo nono governador de Estado do Grão-Pará. 129 Sabemos que ele detinha o título honorífico de Comendador de Santa Marinha de Mata de Lobos da Ordem de Cristo e alcançou o posto de Capitão-Tenente da Real Marinha portuguesa.130 Era filho de Francisco Luís da Cunha e Ataíde, renomado jurista e chanceler-mor no reinado de D. João V, e de Dona Teresa de Mendonça. É mais do que provável que ele trafegasse com maior frequência nas rotas atlânticas do sistema mercantil português, nas ligações entre Portugal, África e Brasil, do que nas da Ásia portuguesa, o que talvez o tivesse levado a conhecer de antemão o Estado do Grão-Pará. Presume-se satisfatória a experiência de Mendonça Furtado nos assuntos ultramarinos portugueses na medida em que participou no socorro enviado em 1736 à Colônia doSantíssimo Sacramento. Ele nunca se casou e também não registrou descendentes. Mendonça Furtado faleceu em Vila Viçosa, em 15 de novembro de 1769, por conta de um abscesso no peito.131 Para Lúcio de Azevedo, a nomeação de Mendonça Furtado era consequência do favorecimento crescente de seu meio-irmão materno Sebastião José de Carvalho e Melo (futuro marquês de Pombal), junto à corte. O mesmo autor ainda destaca que Mendonça Furtado não era mais do que “(...) um obscuro oficial de marinha sem 128 Cf. Instruções dadas pela rainha D. Mariana D’ Áustria, mulher de Dom João V, ao governador da nova capitania de Mato Grosso Dom Antônio Rolim de Moura em 19 de janeiro de 1749. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. Tomo I. p. 55-65. 129 VAINFAS, Ronaldo (Direção). Dicionário de Brasil colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 388. 130 BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compêndio das Eras da Província do Pará. Org. Ferreira Reis. Universidade Federal do Pará, 1969.p. 159. 131 ECKHART, Anselmo. Memórias de um jesuíta prisioneiro de Pombal. Braga, São Paulo: Livraria A.I.- Braga e Edições Loyola, 1987. p. 176. 97 antecedentes para tão elevado cargo [governador do Estado do Grão-Pará] o recomendassem.” 132 No entanto, foi justamente naquela governança que Mendonça Furtado despontou o seu talento mais do que satisfatório para assuntos de Estado. No quase decênio em que ocupou o cargo de “governador e capitão-general” do Estado setentrional do Brasil (entre 1751 e 1759), acumulou um poder que, considerado em visão retrospectiva, foi inigualável na história administrativa do Estado por qualquer outro governador no período colonial. Mendonça Furtado ocupou também a função de chefe plenipotenciário da equipe portuguesa, a qual colocou em execução do Tratado de Madrid de 1750. Também foi nomeado governador para realizar modificações na estrutura do Estado. Durante sua gestão, encaminhou novas propostas para Lisboa, influenciando diretamente nas reformas do Estado. Mendonça Furtado promoveu uma dramática reviravolta na tradicional estrutura do Estado do Grão-Pará. Emancipou irrestritamente os indígenas (com publicação de leis de 6 e 7 de junho de 1755); foi responsável pela fundação da capitania do Rio Negro (1755) e inaugurou pessoalmente vilas no interior da selva para colonizar a Amazônia; também contribuiu para a criação de uma companhia de comércio monopolista estatal (1755); lutou para reorganizar o Exército; investiu na reforma e na construção de fortes militares; e instituiu o Regime do Diretório dos Índios (1755) para secularizar a administração dos aldeamentos religiosos. A ousadia trouxe grandes inimizades para Mendonça Furtado, principalmente da Companhia de Jesus. As reformas atingiram a congregação, a qual Mendonça Furtado foi infatigável em denunciar. Como interlocutor do marquês de Pombal, tornou-se um dos mais importantes incentivadores da propaganda contra a Companhia de Jesus, embora tal contribuição raramente seja evocada – foi importante eminência parda no fomento do antijesuitísmo no Portugal do século XVIII. Neste trabalho, consideramos seriamente a hipótese de que o maior de todos os algozes da Companhia de Jesus da história de Portugal, o marquês de Pombal, tenha alimentado parte de sua aversão aos jesuítas a partir da contribuição de Mendonça Furtado. Como admitiu o jesuíta José Caeiro, contemporâneo de todos aqueles acontecimentos, e vítima da perseguição pombalina, “(...) o incêndio rebentou abertamente, primeiro no Maranhão [Grão-Pará e Maranhão] e depois em 132 AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004. p. 128. 98 Portugal.”133, culminando na expulsão da ordem dos domínios lusitanos com a publicação do alvará régio de 3 de setembro de 1759. Falcon parece corroborar com tal perspectiva, ao afirmar que os primeiros atritos entre jesuítas e administração pombalina, “(...) tiveram início com as dificuldades surgidas no Grão-Pará e Maranhão a partir da chegada ali, como capitão-general, de Francisco Xavier de Mendonça Furtado [...] cujas providências administrativas chocaram-se quase sempre com a reação dos inacianos.”134 Mendonça Furtado foi, por casualidade e em brevidade, louvado pela literatura luso-brasileira no antijesuítico poema O Uraguai (1768), de Basílio da Gama. O autor que chegou a ser preso e acusado de nutrir simpatias pelos jesuítas publicou o poema para evitar o degredo para Angola. O desesperado Basílio da Gama, logo no início do poema, pede que seus versos sejam protegidos por Mendonça Furtado, a quem recorda ter o mérito da emancipação indígena no Brasil: E Vós, por quem o Maranhão pendura Rotas cadeias e grilhões pesados, Herói, e irmão de heróis, saudosa e triste Se ao longe a vossa América vos lembra, Protegei meus versos.135 Ainda na esteira do crescente poder do seu meio-irmão, somado aos resultados obtidos durante sua estadia no Brasil, Mendonça Furtado retornou para Portugal para ocupar o cargo de adjunto da Secretaria de Estado da Marinha e dos Negócios Estrangeiros e, posteriormente, o de Secretário da Marinha e Ultramar. Na correspondência entre os irmãos, salta à vista a cálida afeição mútua. Não raro, segundo Lúcio de Azevedo, “(...) no meio dos assuntos mais árduos, a expressão carinhosa vem contrastar com a gravidade própria do discurso político. Paternal e sentencioso, Sebastião José, como primogênito, e pela sua elevada posição e superiores talentos, é o chefe venerado da família.136 A afeição fraterna ainda pode ser confirmada no afresco intitulado Concordia Fratrum, que ilustra Sebastião José e Mendonça Furtado, além do terceiro irmão, 133 CAEIRO, José. História da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal (século XVIII). Vol I. p. 41. 134 FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Editora Ática, 1982. p. 379. 135 GAMA, Basílio da. O Uraguai. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 21-22. 136 AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. p. 234. 99 Paulo de Carvalho, representados num abraço triplo. A indicação do irmão de Carvalho para o governo do Grão-Pará não aconteceu unicamente pelo inegável favorecimento do novo ministro de Dom José I. Nada obstante à crescente afirmação de Carvalho na política portuguesa, só após 1755, ano do terremoto, é que o ministro se tornou figura de poder incontestado no reino. A aclamação de Mendonça Furtado para o cargo, além de alicerçada na considerável influência que ele gozava na corte, também demonstrava que, por convívio familiar e social, ele estava invariavelmente em sintonia ideológica com o novo grupo de poder que começava a tomar espaço na corte.137 Longe de ser mero executor das decisões do reino, Mendonça Furtado propôs ousadas reformas para a Amazônia, todas elas levadas em consideração no paço e, em sua maioria, postas em prática. Tomar posse do cargo de governador do Grão-Pará representava para Mendonça Furtado um grande desafio, na medida em que o Estado português punha em prática, logo no início do reinado josefino, um projeto específico para minar graves incertezas econômicas e administrativas que imperaram por muito tempo na Amazônia e territórios adjacentes. Uma das preocupações geopolíticas portuguesas no século XVIII estava relacionada à valorização da América Portuguesa em decorrência do declínio do comércio asiático, em contraste com certa prosperidade no Brasil, o qual oferecia cobiçadas riquezas, como metais preciosos, açúcar, tabaco, etc. Para tanto, era urgente reafirmar o poderio português sobre um vasto território americano quenão dispunha satisfatoriamente de defesas terrestres e, para piorar, ainda havia incertezas e falta de acordos internacionais que pusessem fim à ambigüidade na delimitação do território pertencente à Espanha, Holanda, França e Inglaterra, no Norte e Sul da América. Mas com a assinatura do Tratado de Madrid (1750), principiou-se a oportunidade para erradicar aquelas incógnitas, o que permitia dar início ao povoamento e consequentemente explorar o território. 137 Mendonça Furtado era sobrinho do influente Marco Antônio de Azevedo Coutinho, que influenciou na sua nomeação para recebimento do título do conselho de Estado, assinada por ele junto ao Secretário de Estado dos Negócios do Reino Pedro da Mota e Silva em 24 de abril de 1751. A Carta Patente de Governador e Capitão- General do Estado do Maranhão vinha com assinatura do Secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte-Real e conforme atesta o próprio documento, a confecção teve participação do seu próprio pai, Francisco Luís da Cunha e Ataíde. Mais tarde, as instruções em que constavam as diretrizes da missão que deveria executar na posse do governo do Estado vinham mais uma vez assinadas por Diogo de Mendonça Corte-Real, figura da geração do reinado de João V. 100 Como anteriormente frisamos (capítulo I), o Tratado estipulava, grosso modo, a permuta da bacia do Prata pela Amazônica, que, doravante, pertenceria a Portugal. Mas o assenhoreamento do território punha alguns desafios para a coroa portuguesa. Se a obtenção da região amazônica, somada ao território atualmente entendido como Centro-Oeste brasileiro, foi facilitado pelas incursões de sertanistas, de missionários e de bandeirantes, que povoaram aqueles quinhões, de modo a fornecer a Portugal o argumento jurídico baseado no uti possidetis. A implementação do acordo de fronteiras também dependia da formação de povoados sedentários, com habitantes em proporções que preenchessem satisfatoriamente as vastas dimensões do território. Por outro lado, a ocupação real, ou seja, em bases sólidas, dependia do fomento econômico em território relativamente desconhecido. Destarte, a preocupação com o contingente populacional, mais do que componente do ideário mercantilista então em voga, era no Brasil uma preocupação de ordem prática, sendo imperativo povoar para explorar economicamente os territórios, adquiridos por Portugal, de forma legal. A noção de um projeto português para a Amazônia também pode ser encontrada extra-oficialmente nos comentários escritos que circulavam entre personagens influentes da administração josefina. O marquês de Pombal escreveu para Gomes Freire de Andrade (futuramente o chefe português responsável pelas demarcações do Tratado de Madrid no Prata) uma carta “secretíssima”, datada de 21 de janeiro de 1751, em que dizia: “Como o poder e riqueza de todos os países consistem principalmente no número e na multiplicação das pessoas que os habitam, esse número e multiplicação de pessoas é mais indispensável agora nas fronteiras do Brasil, para suas defesas”.138 Pombal ainda sublinhava que o aumento do contingente populacional no Brasil não seria possível por meio da migração de portugueses do continente ou das ilhas atlânticas, sob pena de convertê-los em “completamente desertos”, o ministro demonstrava ser importante, também na América meridional, abolir “todas as diferenças entre índios e portugueses”, para que eles se retirassem das comunidades missioneiras e se casassem com os luso-brasileiros.139 Ainda, em 1752, o duque da Silva Tarouca, diplomata e estrangeirado, escreveu, desde Viena, para Pombal, dizendo que “Os reis de Portugal podem vir a ter no Brasil um Império como 138 “Carta secretíssima [do marquês de Pombal] a Gomes Freire de Andrade (...)”, Lisboa, 21de setembro de 1751. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Pombal e o Brasil, p. 188. Apud. MAXWELL, Kenneth. Op. cit. p. 53. 139 Ibid., p. 53. 101 a China. (...) Mouros, brancos, negros, mulatos ou mestiços, todos servirão, todos são homens e são bons, se bem governados. (...) A população é tudo, muitos milhares de léguas de desertos são inúteis.”140 Outro comentário significativo sobre o problema da baixa densidade populacional do Brasil foi feito pelo estrangeirado e renomado diplomata Luís da Cunha. O influente crítico do Estado português, um dos principais responsáveis pela indicação do marquês de Pombal para o cargo de ministro de D. José I, alertou o rei para o gravíssimo problema da povoação do Brasil. Luís da Cunha propôs medidas ousadas, como, por exemplo, o ingresso, até mesmo, de estrangeiros católicos ou, na pior das hipóteses, “hereges” estrangeiros. O Brasil não sangra menos a Portugal. (...) O modo de poder povoar aquelas imensas terras, de que tiramos tantas riquezas, sem despovoar Portugal, seria permitir que os estrangeiros com as suas famílias se fossem estabelecer em qualquer das suas capitanias que escolherem, sem examinar qual seja a sua religião, recomendando aos governadores todo o bom acolhimento, e arbitrando-lhes a porção de terra que quiserem cultivar. De que se seguiria que sé lá casariam e propagariam, e em poucos tempos os seus descendentes seriam bons portugueses e bons católicos romanos em o caso que seus avós fossem protestantes.141 Destarte, território e população eram encarados como quesitos complementares para a administração portuguesa e havia nos vastos territórios recém-adquiridos uma flagrante desproporcionalidade que precisava ser sanada. Tais preocupações com o Brasil, embora não fossem antigas, certamente começaram a aumentar desde a assinatura do tratado de fronteiras, quando se tornou notória a existência de pontos estratégicos limítrofes sensivelmente vulneráveis e, portanto, de forte inconveniência à garantia da soberania portuguesa. Assim, o governador Mendonça Furtado, em obediência ao cumprimento das Instruções Secretas, ficou responsável por encarar o desafio de realizar a ocupação do território adjacente ao vale do Rio Amazonas. Se compararmos as instruções públicas recebidas por Dom Antônio Rolim de Moura, quando nomeado para o cargo de governador da nova capitania do Mato Grosso (datada de 19 de janeiro de 1749), 142 com as Instruções entregues a Mendonça 140 Carta de Silva Tarouca a Sebastião José de Carvalho e Melo. Viena, 12 de agosto de 1752. Anais da Academia Portuguesa de História. p. 323-329 Apud. MAXWELL, Kenneth. Op. cit. p. 54. 141 CUNHA, Dom Luís da. Testamento Político. JANOTTI, Maria de Lourdes M.; PESSOA, Reynaldo Xavier Carneiro; WITTER, José Sebastião. São Paulo: Alfa-Omega, 1976. 142 Cf. Instruções dadas pela rainha D. Mariana D’ Áustria, mulher de Dom João V, ao governador da nova capitania de Mato Grosso Dom Antônio Rolim de Moura em 19 de janeiro de 1749. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. Tomo I. p. 55-65. 102 Furtado, são notórias semelhanças que, em substância, obedeciam a um objetivo maior: expandir o domínio de Portugal em terras já habitadas, embora precariamente, pelos lusos. Os territórios compreendiam duas áreas de importância estratégia para afirmação de Portugal no Brasil, como o extremo-oeste (capitania do Mato Grosso) e o extremo noroeste brasileiros (Estado do Grão-Pará). Nas instruções entregues a Rolim de Moura percebemos as bases para coordenação de uma estratégia que manteria e expandiria aqueles territórios a partir da capitania do Mato Grosso. Quando o acordo de Madrid ainda era ensaiado, pediram ao governador do Mato Grosso que reforçasse a argumentação portuguesa do uti possidetis. Como constam nas Instruções a Rolim de Moura, composta de 32 parágrafos, a capitania de Mato Grosso era instituída por conta da sua situação fronteiriça, mais especificamentepor ser o “propugnáculo do sertão do Brasil pela parte do Peru”143 e, por esse motivo, considerava-se necessário “que naquele distrito se faça população numerosa”.144 O governador Rolim de Moura deveria fundar a vila (seria Vila Bela, com o status de capital do Mato Grosso), próxima ao Rio Guaporé, ou outro rio, desde que navegável. Isenções e privilégios deveriam ser entregues aos povoadores para crescimento e desenvolvimento rápidos. A força militar também era preocupação, esperava-se que uma Companhia de Dragões fosse imediatamente arregimentada. O governador tinha a incumbência de manter nas fronteiras a boa convivência entre luso-brasileiros e castelhanos, reprimindo e punindo sertanistas que atacassem as missões religiosas espanholas, como as de São Miguel e de Santa Rosa, ambas localizadas naquelas imediações e administrativamente subordinadas ao governo de Santa Cruz de La Sierra. As instruções enviadas a Dom Rolim de Moura lembravam- no de que mesmo que os padres castelhanos tivessem fundado a missão de Santa Rosa, nas margens do Rio Guaporé, muito provavelmente em razão de fortes suspeitas de abundantes jazidas de ouro de aluvião, ou talvez também para controlar a navegação fluvial, o governador deveria, por enquanto, contentar-se em dominar apenas uma das margens, assim como deter conflitos de posse de minas auríferas entre os vassalos das duas coroas naquela fronteira. O governador deveria doar sesmarias aos luso- 143 Instruções dadas pela rainha D. Mariana D’ Áustria, mulher de Dom João V, ao governador da nova capitania de Mato Grosso Dom Antônio Rolim de Moura em 19 de janeiro de 1749. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. Tomo I. p. 56. 144 Ibid., p. 56. 103 brasileiros para que os índios espanhóis não se aproximassem do local. Portanto, o interesse da coroa era garantir aquelas terras, povoando-as mediante fundação de vilas e lugares. No tocante à questão indígena, o governador tinha, por exigência, de estimular na população um tratamento respeitoso em relação aos índios. Curiosamente, a Instrução deixava explícito que à Companhia de Jesus deveriam ser entregues todos os capturados ilegais que demonstrassem ser de “nações mansas”, i.e., de temperamento pacífico e, portanto, passíveis de adaptação ao meio e à rotina de vida das missões jesuíticas. Rolim de Moura também deveria doar sesmarias para que as missões avançassem e progredissem economicamente. A exclusividade e o controle dos jesuítas em relação aos índios eram demasiados, chegando ao extremo da Companhia proibir, durante muito tempo, a entrada de seculares nas missões. No entanto, os padres da Companhia de Jesus tinham de se habituar a receber côngruas, precisamente quarenta mil-réis ano per capta e por conta dos cofres da Fazenda. As Instruções enviadas a Dom Rolim de Moura recebeu, dentre outras assinaturas, a de Marco Antônio de Azevedo Coutinho, tio de Pombal, e de Mendonça Furtado. Por outro lado, as medidas para a reforma política e social da Amazônia estavam substancialmente contidas nas Instruções Secretas enviadas a Mendonça Furtado, governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Lúcio de Azevedo, autor de Os jesuítas no Grão-Pará, que publicou o documento na mesma obra, salienta que antes da análise do conteúdo das Instruções Secretas, é imprescindível ressalvar um dado aparentemente singelo, porém de grande significado. O autor esclarece (em discreta nota de rodapé na última página dos apêndices da obra) que descobriu, ao compulsar documentação na Biblioteca Nacional de Lisboa, Coleção Pombalina, a existência de dois exemplares das Instruções para Mendonça Furtado: um secreto e outro público – o que, aliás, é sugerido no próprio título. Os documentos eram, aparentemente, semelhantes entre si. Contudo, Lúcio de Azevedo percebeu que a documentação pública omitia as Instruções 13, 14, 24, 25 e 26 que, curiosamente, diziam respeito diretamente ao poder dos padres jesuítas. Mendonça Furtado só recebeu a nomeação de governador e capitão-general do chamado Estado do Maranhão em junho de 1751, mas as Instruções a ele dirigidas datavam de maio do mesmo ano. A primeira novidade contida nas Instruções era relativa à divisão do Estado num duplo governo e com relativa autonomia para o governador do Maranhão, que 104 ficou submetido ao do Pará, em razão de sua maior prosperidade comercial no Estado Grão-Pará e Maranhão. Destarte, São Luís deixava de ser a capital, como aconteceu na maior parte do tempo da história do Estado. A Instrução nomeou Luís de Vasconcellos Lobo como governador do Maranhão. Curiosamente, o indicado faleceu em 11 de dezembro de 1752, e o posto ficou vacante, mas sob domínio de Mendonça Furtado, sendo frequentemente visitado pelo bispo do Pará, frei Miguel de Bulhões, maior aliado do governador no Estado. Nas Instruções, há menção a uma questão que é considerada problema central e endêmico do Estado: a liberdade indígena. Acreditava-se que “(...) a decadência e ruína do mesmo Estado, e as infelicidades que se tem sentido nele, são efeitos de se não acertarem ou de se não executarem minhas reais ordens [no sentido de libertar o índio] que sobre estes tão importantes negócios se tem passado”.145 Segundo as Instruções, as leis indígenas nunca eram satisfatoriamente executadas. Isso era consequência não apenas da falta de interesse da população, mas também do poder abusivo que a Junta das Missões se outorgou para “(...) estender suas faculdades, a mais do que lhe era permitido.” 146, cujo efeito foi aumentar a emissão de licenças para o cativeiro. Posteriormente, o texto das Instruções dedicava algumas linhas para fazer suscinta retrospectiva do histórico das legislações indígenas e do fracasso de todas as leis, até as que ainda vigoravam no Estado: como, por exemplo, a de 1º de abril de 1680, que instituiu a Junta das Missões, e o alvará de 21 de abril de 1688, que voltou a permitir cativeiros em alguns casos excepcionais. Conforme o sexto parágrafo do documento, o governador deveria pôr em ação o decreto de 28 de maio de 1751, aprovado pelo Conselho Ultramarino, que colocou fim à escravização do índio no Pará-Maranhão (mas que tão cedo não seria publicada). Pelo decreto, acabava-se com a escravização, obrigando os moradores a utilizar o trabalho indígena apenas mediante contrato remunerado, “(...) pagando a estes os seus jornais e tratando-os com humanidade, sem ser, como até agora se praticou com injusto, violento e bárbaro rigor.”147 Para resolver o problema da falta de mão-de-obra, o governador deveria averiguar, segundo pedidos das Instruções, junto aos moradores, as possibilidades dos domiciliados adquirirem escravos negros, conforme a Resolução de 27 de maio de 145 Instruções. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Op. cit. p. 68. 146 Ibid., p. 69. 147 Ibid., p. 69. 105 1750. Essa medida seria o primeiro passo do governo josefino para tentar sanar o antigo problema do Grão-Pará, que era a ausência do fluxo de escravos provocada pela pobreza dos moradores. Em tese, as medidas apontavam para o aberto favorecimento da inserção do índio ao projeto português para a Amazônia. Livres, eles ocupariam os vácuos populacionais e também prestariam serviços públicos nas zonas urbanas. Portanto, para auxiliar na concretização do objetivo, o traslado dos índios, ainda “selvagens” para as aldeias religiosas, seria incumbido aos padres. Assim, os religiosos deveriam: (...) descer e atrair voluntariamente (para as aldeias religiosas), pelo cuidado dos missionários que os exortarão (aos índios) a virem cultivar as terras, propondo-lhes para esse fim conveniências nos jornais e comodidades que hão de perceber no dito exercício, prometendo-lhes, ao mesmo tempo,o uso da sua liberdade e conveniências com uma fé inalterável, que vós fareis executar e cumprir, de sorte que a experiência confirme a estes índios, em tudo e por tudo o que com eles se ajustar.148 Não seria necessário, em alguns casos, retirar os índios das aldeias religiosas, ficando a Fazenda Real comprometida em fornecer amparo necessário para administrar a vida da comunidade.149 Mais uma vez, repetiu-se o que antes ficou acertado para nova capitania do Mato Grosso: o deslocamento de contingentes populacionais, principalmente indígenas, para zonas fronteiriças, a fim de garantir a posse da terra. Novamente, repetia-se o que dantes ficou acertado para nova capitania do Mato Grosso: o deslocamento de contingentes populacionais, principalmente indígenas, para zonas fronteiriças para garantir a posse da terra. Outra vez os religiosos ficavam como auxiliares daqueles planos. Uma das medidas mais emergenciais era a fundação de aldeias no Cabo do Norte (atual Amapá) com o objetivo de frear a expansão francesa e, em parte, holandesa, a partir de Caiena (atual Guiana Francesa). Em obediência a essa exigência, os religiosos, especialmente da Companhia de Jesus, deveriam cooperar com o governador: (...) preferireis (informava-se ao governador) sempre os Padres da Companhia, entregando-lhes os novos estabelecimentos [...] por me constar que os ditos Padres da Companhia são os que tratam os índios com maior caridade e os que melhor sabem formar e conservar aldeias (...).150 148 Instruções. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Op. cit. p. 70. 149 Cf. Instruções. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Op. cit. p. 73. 150 Ibid., p. 75 106 Nesse sentido, as Instruções serviam de alertava ao governador para não permitir que aqueles religiosos extrapolassem suas funções religiosas e ficassem subordinadas ao poder civil, “(...) e cuidareis no princípio destes estabelecimentos em evitar quanto vos for possível o poder temporal dos missionários sobre os mesmo índios, restringindo-o quanto parecer conveniente.”151 Assim, mesmo dentro do novo contexto político, os regulares continuariam cooperando com a formação espiritual do índio. Em sua função espiritual, os missionários ficariam com papel circunscrito à cristianização do indígena, i.e., no intuito de promover uma doutrinação para tornar o índio aproveitável para os objetivos do reino de Portugal. Todavia, um dos pontos mais delicados da ocupação eram os lindes com os domínios espanhóis. No vastíssimo território amazônico, era preciso que se “(…) estabelecessem aldeia no rio das Amazonas, seus colaterais, e nos confins e limites dos meus domínios, para aumento da cristandade nos índios, como também para a conservação dos domínios (…)”. 152 Para a concretização desse objetivo, governador tinha de contatar o vice-provincial da Companhia para estabelecer aldeias em territórios mais a leste, em direção à fronteira com Espanha, para conseguir assegurar a “(...) conservação dos índios, como também, para a conservação dos meus domínios por aquela parte do sertão (...)”.153 Os jesuítas surgiam como figura-chave para auxiliar a coroa na ocupação dos territórios, desde a publicação da lei de 19 de março de 1693 (ver página 84), que entregou oficialmente aos inacianos todo o território à margem sul do Rio Amazonas até os limites ocidentais com Espanha. Isso favoreceu o estabelecimento de aldeamentos jesuítas afixadas em locais estratégicos, que viriam a ser úteis na nova conjuntura, para os esforços de demarcação fronteiriça por parte da administração portuguesa, que via nas missões uma base estratégica para que se “(...) cultivem, povoem e segurem os vastíssimos países do Pará e Maranhão (...).”154 Sobretudo por que os jesuítas controlavam os territórios contingentes populacionais indígenas, e suas missões passaram a ser vistas como instrumento útil para cumprimento dos objetivos religiosos. 151 Ibid., p. 75 152 Ibid., p. 75 153 Ibid., p. 74. 154 Ibid., p. 73. Grifo nosso. 107 Os jesuítas e os religiosos de outras ordens não desconfiaram que todos os povoados por eles anteriormente construídos e os demais que vieram a fundar, brevemente, teriam sua administração transferida para o poder civil e foram renomeadas, em alguns casos, com nomes de cidades portuguesas. Mas a menção à fundação de vilas nos leva a uma questão colateral ao projeto português para a Amazônia: a das reformas urbanas. Ao longo do período colonial brasileiro, as cidades não tinham grande importância em razão do predomínio da economia rural, e os núcleos urbanos existentes careciam de planejamento, pois não nasciam de planos abstratos, mas de um planejamento insuficiente que mais os fazia parecer construções espontâneas, em alguns aspectos. Na colônia, e curiosamente também na metrópole, as cidades não eram geométricas, abstratas, conforme as concepções romanas de Vitrúvio, como acontecia em algumas cidades da hispano-américa. Uma das consequencias dessa espontaneidade era a insalubridade que gerava surtos de epidemias e a desorganização dos espaços públicos, “(...) as ruas quase sempre se acomodando ao terreno acidentado, eram irregulares, tortuosas e estreitas.” 155 Como os portugueses construíam cidades encima de pontos altos, convivia-se incomodamente com ladeiras íngremes a exemplo de Salvador e do Rio de Janeiro, onde o plano de urbanização modelou-se às linhas topográficas. No entanto, durante o período pombalino, foram realizadas as chamadas reformas urbanas. Na metrópole, após o terremoto, houve a remodelação de Lisboa. Dessa vez com muito planejamento urbano e arquitetônico, cujo maior expoente foi a baixa pombalina. Nas cidades fronteiriças com Espanha, podemos mencionar Vila Real de Santo Antônio, também obra da política urbana de Pombal, que impressiona por destoar do aspecto comum às outras cidades portuguesas, porque foi metodicamente planejada – exemplo de cidade racional e iluminista: construída em território plano, suas ruas consistem em linhas retas de grande apuro geométrico, cujo centro é uma praça que funciona como núcleo administrativo-político. 156 Assim sendo, os territórios adquiridos pelos lusitanos depois da assinatura do Tratado de Madrid também foi alvo de medidas no mesmo sentido. Mas a remodelação urbana na Amazônia e nas adjacências era preocupação colateral do novo 155 ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. p. 43. 156 As impressões acima referidas chamaram a atenção do autor que conheceu cidade de Vila Real de Santo Antônio. Somente anos depois, ao estudar o pombalismo, chegou ao entendimento de que as características urbanas previamente observadas estavam circunscritas a um contexto histórico tão peculiar. 108 projeto, e os resultados ficaram longe de ser satisfatórios. Houve recomendações enviadas a Dom Rolim de Moura para edificação do novo centro político da capitania do Mato Grosso, que passou a ser a cidade de Vila Bela. Dessa vez, chama-se a atenção para a salubridade do terreno base que deveria evitar espaços insalubres. As ruas deveriam ser traçadas “(...) direitas e largas, o mais que vos parecer conveniente, para que a mesma vila desde o principio se estabeleça direção.”157 A cidade de Belém aparentemente foi construída fora das concepções tradicionais ao modo lusitano. Como notou o famoso cientista francês Charles de La Condamine, por volta de 1743, (quando viajava pela Amazônia em missão científica a realizar observações astronômicas), depois de ter permanecido meses no interior da selva. O cientista sentiu-se na Europa ao vislumbrar a cidade de Belém “(...) uma grande cidade [com] ruas bem alinhadas,casas risonhas, a maior parte construídas desde trinta anos em pedra e cascalho, igrejas magníficas”. 158 No entanto, Belém passou por remodelações em sua arquitetura. A figura de destaque é Giuseppe Antonio Landi, enviado ao Grão-Pará na função de desenhista de história natural, junto à da comissão científica responsável pelas demarcações das fronteiras acertadas pelo Tratado de Madrid, na condição de auxiliar de outro italiano, o astrônomo Angelo Brunelli. Além de desenhista, geógrafo, astrônomo, Brunelli também foi exímio arquiteto e urbanista. O reconhecimento da competência de Antônio Landi por parte de Mendonça Furtado valeu-lhe trabalhos como a remodelação do Palácio dos Governadores, da Capela de São João Batista, da Igreja de Santana e de alguns prédios de Belém; obras iniciadas no final da gestão de Mendonça Furtado e continuadas no governo seguinte.159 Com a necessidade de melhor colonizar a Amazônia, o governador erigiu inúmeras vilas e lugares. O artifício do uti possidetis foi a pedra basilar do Tratado de Madrid, e os portugueses conheciam perfeitamente a eficácia de se ocupar e povoar 157 Instruções dadas pela rainha D. Mariana D’ Áustria, mulher de Dom João V, ao governador da nova capitania de Mato Grosso Dom Antônio Rolim de Moura em 19 de janeiro de 1749. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. Tomo I. p. 57. 158 LA CONDAMINE, Charles de. Viagem na América meridional descendo o Rio das Amazonas. Brasília: Senado Federal, 2000. P. 112. 159 O projeto urbano esteve longe de ser bem-sucedido. Um balanço posterior realizado pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, que percorreu a capitania de São José do Rio Negro entre 1785 e 1787, deixa a impressão de que não houve desenvolvimento satisfatório do ponto de vista urbano e comercial, alcançando aquelas vilas e lugarejos uma condição em nada superior á obtida na época dos Padres missionários, inclusive na administração da vida do índio. Segundo o naturalista, “Sem gente, sem lavoura e sem comércio, não sei para que servem mIlhares de povoações” In: FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica ao Rio Negro. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, s.d. apud. ARAÚJO, Emanuel. op. cit. p. 43. 109 territórios dentro das suas fronteiras ou em regiões litigiosas. Desse modo, para avançar a colonização da Amazônia, mantiveram aquela política de povoação durante o governo de Mendonça Furtado, como a fundação de vilas e lugares em zonas limítrofes, para garantir vantagens na incorporação de territórios. Outra medida para assegurar um contingente populacional necessário, para efetuar a ocupação do território, além da construção de novas aldeias missionárias que foram incumbidas aos religiosos, consistiu na vinda de casais da Ilha dos Açores. Esse plano foi previamente ensaiado na história amazonense, a exemplo do que aconteceu em 1618, quando aproximadamente trezentos colonos açorianos imigraram com direito a terras e escravos. Os benefícios de que gozaram na chegada não evitou que largassem mão do trabalho sistemático, ao qual estavam culturalmente habituados, lançando-se, igual aos sertanistas, na coleta das drogas do sertão.160 A importação de casais açorianos como recurso para o povoamento deveria ser novamente ensaiada, segundo exigência das Instruções. Ainda assim, alertava-se para o problema ocorrido no início do século XVII que, dessa vez, não poderia se repetir. Como os moradores não tinham o hábito de trabalhar, os colonos serviram de exemplo para os antigos habitantes. Desse modo, Mendonça Furtado era instruído: (…) quando os estabelecerdes, cuideis muito que eles [os açorianos] sigam a sua condição, acostumando-os ao trabalho e cultura das terras na forma que praticavam nas Ilhas; porque, não sendo diferente o gênero de trabalho e indo acostumados a ele, não há motivo para que não cultivem pelas suas mãos as terras que se lhes repartirem, evitando-se assim uma ociosidade muito prejudicial (…).161 Mendonça Furtado foi alertado alertou pelas Instruções sobre o antigo problema do Brasil colonial, que era a predisposição social contra o trabalho: (…) e da minha parte declarareis aos ditos povoadores que cultivarem as suas terras por suas mãos, que este exercício nas suas próprias lavouras os não inabilitará para aquelas honras a que, pelo costume do pais, pudessem aspirar, antes para este mesmo efeito poderão ter a preferência que merecem, pelo serviço que me tiverem feito e ao público, na referida cultura das suas terras.162 Do ponto de vista defensivo, exigia-se a construção de fortes para a defesa da Amazônia. Primeiro, deveria ser emergencialmente construída defesas nas missões do 160 AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará, suas missões e a colonização. Porto, 1901. p. 130. 161 Instruções. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Op. cit. p. 71. 162 Ibid., p.71. 110 Cabo do Norte, localizadas na costa do Macapá, enquanto que no Maranhão, as já existentes, deveriam ser reformadas. Segundo as Instruções Secretas, cabia ao governador observar que as fortalezas deveriam ser construídas: (…) de forma e modo que não pareça receio dos nossos confinantes, havendo ao mesmo tempo a cautela precisa para que eles não nos surpreendam para que, pelos meios de fato não renovem pretensões antigas, e não queiram impossibilitar-nos para lhes disputarmos em todo o tempo por força.163 O governador também deveria prestar séria atenção na renovação dos contingentes militares em equipamento e na conservação da disciplina. O último desafio para a coroa portuguesa na reforma do Estado do Pará-Maranhão, talvez o maior de todos, consistia em ressuscitar, ou mesmo dar à luz, ao praticamente inexistente comércio regional. A falta de mão-de-obra, a ausência de moeda e a escassez de mercados tornavam aquela zona portuária rota pouco explorada no sistema mercantil luso-brasileiro. Mais do que boa-vontade, o fomento comercial dependeria de uma investigação sobre as riquezas que poderiam ser produzidas no Estado. Geralmente, a economia do Estado dependia do comércio das chamadas drogas do sertão, produtos de obtenção irregular em suas quantidades e de disponibilização incerta para os mercados. Dentro do novo contexto, exortava-se o governador à pesquisa dos produtos da terra e da realização de experimentos agrônomos para conhecimento do que poderia ser produzido e em que qualidade e também em sua utilidade mercantil, (…) para servirem ao mesmo comércio, e de quais a mais fácil, mais barata e mais fértil a sua produção; e na informação que dareis sobre esta matéria, imporeis o vosso parecer, ouvindo as pessoas mais peritas no comércio e cultura dos ditos gêneros, para se facilitar e favorecer o aumento e a cultura deles.164 Assim, Mendonça Furtado deveria incentivar os fazendeiros a trabalhar e a manter uma produção disciplinada e abundante para facilitar as experiências agrônomas com a promessa de que receberiam ajuda régia mediante a Secretaria de Estado do Conselho Ultramarino. A ausência de moedas no Estado também era um problema a ser considerado pela nova administração. A moeda, como a conhecemos, era inexistente na medida em que não havia mercados regulares e, mesmo assim, sua 163 Ibid., p. 77. 164 Instruções. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Op. cit. p. 78. 111 importância não era sentida pela população. Estranhamente, a moeda corrente consistia na utilização de panos e novelos de algodão, e o seu valor nominal era taxado pelas Câmaras; serviam até mesmo como instrumento de pagamento para índios forros ou para transações comerciais.165 Esperava-se que desta vez o governador superasse aquele problema. Todas as medidas tomadas para o Pará deveriam também alcançar oMaranhão não obstante a nova cidade-sede ser Belém, e os moradores deveriam ficar a par da preocupação da coroa para com os maranhenses. Finalmente, ficava esclarecida a proibição de extrair metais preciosos das minas do Estado. Como a experiência ensinava, o comércio aurífero impedia o desenvolvimento de alguns setores econômicos do Estado, o que não era do interesse da coroa. Ainda, as Instruções alertavam ao governador da importância de se iniciar a comunicação por meio de estradas com a capitania de Mato Grosso. A exigência de segredo sobre o conteúdo das Instruções, como reforçado no parágrafo final, lembrava a Mendonça Furtado que mesmo o governador do Maranhão, Vasconcelos Lobo, só deveria ser comunicado em alguns dos pontos das instruções apenas quando inevitavelmente necessário. Destarte, acreditamos ter demonstrado que o projeto português para a Amazônia estava assente no tripé território, população e comércio. A administração portuguesa via os três quesitos como complementares e de aplicação sincrônica; de fato Mendonça Furtado operou os três pontos em grau equacionado. Alguns historiadores se perguntam se as Instruções seriam, no seu bojo, hostis contra a Companhia de Jesus (como declarou Serafim a partir da interpretação das Instruções 13 e 14) 166 ou pelo contrário, se não favoráveis, pelo menos isentas (posicionamento de Lúcio de Azevedo, em interpretação amparada na Instrução 22).167 De certo modo, as Instruções denotam certa ambigüidade quanto ao tema das ordens religiosas e sinalizavam, para uma provável oposição deles às suas determinações. Isso porque as ordens religiosas agiam de forma independente do poder civil. Ao mesmo tempo, era flagrante a exigência da subordinação dos religiosos ao poder laico. De toda forma, é pouco provável que se previsse a guerra que ali eclodiu. 165 Cf. AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará, suas missões e a colonização. Porto, 1901. p. 134. 166 Cf. LEITE, Serafim. A História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VII, Livro IV. p. 338. 167 Cf. Cf. AZEVEDO, João Lúcio de. O marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004 p. 136. 112 V. O Projeto Português para a Amazônia: as Instruções em Desafio Se o conteúdo formal do Projeto Português para a Amazônia foi extraído das Instruções Secretas, dirigidas a Mendonça Furtado, os passos e os desafios para sua execução são constatados nas cartas que o governador enviava ao marquês de Pombal. É a partir da leitura das missivas entre os irmãos Mendonça Furtado e marquês de Pombal, que constatamos o confronto entre a Companhia de Jesus e os representantes do consulado pombalino no Grão-Pará e Maranhão. A aludida correspondência é o principal substrato de análise daquele embate. Em cinco de junho de 1751, Mendonça Furtado recebeu a nomeação de Governador e Capitão-General do Estado do Maranhão. No dia 12 de junho, ele embarcou em Lisboa, aportando em São Luís no dia 26. A primeira medida administrativa tomada por ele foi dar posse ao novo governador do Maranhão, Luís de Vasconcelos Lobo. A partida de Mendonça Furtado para Belém foi adiada por problemas com a embarcação. No entanto, Furtado aproveitou a oportunidade para viajar, por terra, até Belém. Segundo ele, a viagem iria permitir-lhe conhecer melhor o Estado do Grão-Pará e Maranhão.168 Pouco antes de iniciar a viagem, Mendonça Furtado fez sua primeira acusação ao laxismo do clero no Estado, censurando o abandono de certa aldeia às margens do Rio Turiaçu, sob a jurisdição da Ordem do Carmo. Chegou ao conhecimento do governador que, há quatorze anos, os moradores da aldeia não participavam de missas e nem recebiam os sacramentos. Por esse motivo, ainda em Belém, Mendonça Furtado admoestou o prior a enviar missionários à povoação e garantiu, em sua viagem para Belém, que se deslocaria até o local para ter certeza do cumprimento dos ofícios religiosos junto à população. E caso não encontrasse nenhum sacerdote lá, permaneceria no local até que aparecesse algum religioso, o que terminou por não ser necessário.169 168 Cf. Carta de Mendonça Furtado a Diogo de Mendonça Corte Real de 10 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. Tomo I. p. 144. 169 Cf. Carta de Mendonça Furtado a Pedro da Mota e Silva de 2 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. Tomo I. p. 57. 113 A viagem para Belém demorou 21 dias. Mendonça Furtado chegou no dia 20 de setembro e tomou posse do governo no dia 24 do mesmo mês.170 O novo governador assumiu o cargo no lugar de Francisco Pedro de Mendonça Gurjão. O tempo previsto para a execução do mandato de governador no Estado durava geralmente três anos, mas as prorrogações eram frequentes, como aconteceu com Mendonça Furtado. A cidade de Belém, doravante, passou a ser não só a capital da capitania, mas também de todo o Estado do Grão-Pará, em razão de sua crescente produção comercial, que havia superado a de São Luís. Também por estar geográfica e estrategicamente melhor localizada, o que facilitava a aplicação das novas diretrizes do Estado português para a Amazônia. A chegada do novo governador ao Grão-Pará e Maranhão foi bem conturbada. A partir da leitura da correspondência de Mendonça Furtado, foi possível identificar a ideia que ele fazia de si próprio. O governador considerava-se um homem assumidamente temperamental e colecionador de desafetos, mas que lograva, em contrapartida, contrabalançar e frear a própria pusilanimidade, consciente de que para um homem público o mais sensato era que o cálculo e a cautela se sobrepusessem ao feitio. Contudo, o historiador João Lúcio de Azevedo trouxe à luz o episódio que contradiz o suposto comedimento que o governador sugeriu impor a si próprio. O historiador relata que Mendonça Furtado, logo ao chegar a São Luís, teve um desentendimento com o Ouvidor-Geral do Estado, o bacharel Manuel Luís Pereira de Melo. João Lúcio conta que o ouvidor foi ao gabinete de Mendonça Furtado para tratar da delicada questão dos índios. Na ocasião, os dois desentenderam-se e trocaram desaforos. Dos crescentes desentendimentos, os dois partiram para as agressões físicas, sendo necessária a intervenção da criadagem para pôr fim ao triste espetáculo. Ainda assim, depois que Manuel Luís foi embora, o governador continuou a discussão da janela de sua sala, dizendo impropérios contra o bacharel, que, por sua vez, respondeu como um desvairado pela rua. Depois dessa cena, Mendonça Furtado passou, obsessivamente, a falar mal de Manuel Luís, em suas correspondências para amigos e familiares. Em uma das correspondências, o governador informou a seu irmão que o ouvidor era “(...) mui curto de talento, sumamente malcriado e proporcionalmente atrevido, soberbo, e 170 Cf. BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compêndio das Eras da Província do Pará. p. 159. 114 incivil, com o pior modo que eu via a homem nenhum (...)”.171 Manuel Luís Pereira de Melo ainda demonstrou sua oposição a Mendonça Furtado quando, de passagem por São Luís, aproveitou a ocasião para desacatar Vasconcelos Lobo, governador da capitania do Maranhão.172 Contudo, Mendonça Furtado recebeu autorização para mandá-lo a uma fortaleza na condição de prisioneiro. Posteriormente, o governador enviou o ouvidor para o reino como cativo, onde foi exonerado de seu cargo público e banido das proximidades da corte.173 Em comentário sobre a personalidade de Mendonça Furtado, o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis asseverou que ele era um “Grosseiro, irascível”, que por abusar de sua “(...) condição de mano de Carvalho e Melo, o governador não enxergava obstáculos à sua vontade e por isso se cercavade animosidade pública”. Desse modo, “(...) os seus partidários não se contavam em número elevado”.174 Um traço marcante da personalidade do governador e capitão-general do Grão-Pará foi sua tendência obsessiva e infatigável em perseguir os seus desafetos, deixando o marquês de Pombal exaustivamente a par de suas amarguras. O governador dedicou muitas linhas para criticar todos os seus adversários. Às vezes como método catártico, noutras, apenas para ver os agravos recebidos dos seus inimigos, devidamente justiçados. Mas Mendonça Furtado teve no Estado seus próprios partidários, ademais conhecia personalidades influentes que o respaldavam no Grão-Pará. Dentre essas figuras, destacamos o bispo Dom Miguel de Bulhões. O bispo foi um dos grandes expoentes do regalismo no período pombalino. Ora, absolutismo e regalismo tinham objetivos semelhantes, pelo menos em parte, como a independência das decisões tomadas nacionalmente, à revelia da intromissão de Roma, i.e., o papa. E, de fato, marquês de Pombal rompeu durante longos anos relações diplomáticas com o papado, de 1760 a 1769. O bispo, que tomou posse antes do governador, terminou por ser o maior aliado de Mendonça Furtado no Estado e chegou a ocupar interinamente o governo do Maranhão, depois do falecimento de Vasconcelos Lobo, em 11 de dezembro de 1752. Posteriormente, o bispo Bulhões foi governador interino de todo 171 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Francisco Luís da Cunha e Ataíde. Pará, em 22 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit. Tomo I. p. 183.. 172 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 6 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 161-162. 173 Cf. AZEVEDO, João Lúcio de. Os Jesuítas no Grão-Pará. Porto, 1901. p. 236. 174 FERREIRA REIS, Arthur Cézar. História do Amazonas. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989. p. 105. 115 Estado do Grão-Pará e Maranhão por causa da longa ausência de Mendonça Furtado, no período em que participou das demarcações das fronteiras e fundação de vilas. Mendonça Furtado, em terras americanas, além de secretário do governo, João Antônio Pinto da Silva, levou apenas em consideração o ouvidor da capitania do Maranhão, o bacharel João Antônio da Cruz Diniz Pinheiro. Embora jamais tenha conhecido o bacharel pessoalmente, ambos correspondiam-se e partilhavam afinidades em relação aos assuntos do Estado. Mendonça Furtado sempre demonstrou profunda reverência ao Diniz Pinheiro, chegando mesmo a lamentar o descompasso entre os dois mandatos: “Com grande mágoa minha se recolhe para essa Corte o bacharel João da Cruz Diniz Pinheiro, ouvidor que acabou na Capitania do Maranhão, Ministro que eu nunca conheci (...)”.175 O novo governador baseou-se em relatório do bacharel para formar conceito sobre as coisas do Estado. É da autoria de Diniz Pinheiro o escrito intitulado Notícia do que contém o Estado do Maranhão em comum, e em particular sucintamente dentro no seu distrito, preciosidade documental publicada por Lúcio de Azevedo.176 O bacharel voltou para Lisboa como peça-chave da propaganda antijesuítica. Tempo depois, o governador pediu ao marquês de Pombal que o testemunho do ouvidor fosse seriamente considerados no paço. Quanto ao aludido relatório, em um texto descritivo e conciso, seu autor procurou deixar claro o panorama político e social do Grão-Pará na época em que Mendonça Furtado tomou posse do governo do Estado. O documento apresenta, de forma geral, informações didáticas sobre o que é o Estado, contabilizando o número de capitanias e sua condição de régia ou privada, bem como a quantidade de rios e suas características. O relatório aponta também o número de ordens religiosas atuantes e faz um inventário do cômputo de seus edifícios por capitanias, dos índios forros e escravos ali residentes sob tutela dos missionários. Diniz Pinheiro enumerou os engenhos de açúcar e as cabeças de gado existente no Estado, destacando quais, entre os bens existentes em cada uma das capitanias, estavam vinculados às instituições religiosas, as quais alguns destes bens pertenciam. O autor calculou o número das aldeias existentes, deixando flagrante a desproporção entre o maior número de povoações religiosas em relação às civis. Por fim, o bacharel encerrou o escrito com a preocupante e acusatória consideração “Nenhuma desta gente que se compreende em 175 Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 6 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 164. 176 AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará. Porto, 1901. p. 343-347. 116 aldeias, doutrinas e fazendas dos padres paga dízimos, por serem todos participantes dos privilégios ou abusos que eles inculcam para também os não pagarem”.177 Esse ponto, em particular, o da isenção tributária, era o principal alvo da reflexão e da denúncia de Mendonça Furtado apresentado na sua correspondência ao marquês de Pombal. No Maranhão, Mendonça Furtado levantou informação sobre a condição da capitania e tomou conhecimento da alarmante situação. Mendonça Furtado explicava, em carta para Gonçalo José da Silva Preto, em 4 de dezembro, a quantidade de problemas que defrontou desde o começo do seu governo.178 A Fazenda Real da capitania era pura desordem, e o comércio maranhense além de ínfimo, era também precário. Mendonça Furtado apontava que o pouco comércio existente estava em poder dos comerciantes particulares que faziam o trânsito Maranhão-Lisboa, prejudicando, assim, o sustento dos moradores. Segundo o governador, o comércio autônomo gerava dois graves problemas: extorquia o que deveria ser dos moradores e estimulava o aumento do preço dos gêneros. Os comerciantes particulares ou “comissários volantes”, como também eram conhecidos, muitas vezes, adulteravam valor e medida das mercadorias. Como é sabido, os comissários volantes eram figuras detestadas pela administração pombalina na condição de agentes provocadores de sangrias nos cofres públicos. Tabela – Notícia do que contém o Estado do Maranhão em comum, e em particular sucintamente dentro no seu distrito.179 ORDEM RELIGIOSA Conventos Hospícios Engenhos de Açúcar Fazendas de Gado Aldeias Administradas Carmelitas 4 3 2 7 18 Mercedários 4 – – 4 2 Franciscanos 3 3 1 – 26 Jesuítas 4 3 2 44180 30 Total 15 9 5 55 76 177 PINHEIRO, João Antônio da Cruz Diniz Pinheiro. Notícia do que contém o Estado do Maranhão em comum, e em particular sucintamente dentro no seu distrito. In: AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará. Porto, 1901. p. 343-345. 178 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Gonçalo José da Silva Preto. Belém, 4 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 144-150. 179 Fonte: AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará. Porto, 1901. p. 343-345. 180 O número não é preciso: apesar de afirmar número de fazendas nas demais capitanias do Estado, afirma-se que “Na capitania do Piauí [ao menos] pertencem vinte e tantas [fazendas] à administração dos Padres da Companhia da Bahia”. De tal modo que, segundo o relator, o número seria superior às 44 por ele registradas. Cf. AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará. Porto, 1901. p. 346. 117 Mendonça Furtado acreditava que era a partir da organização da Fazenda Real da capitania que ele poderia ensaiar a defesa do patrimônio régio, ao exercer controle sobre gastos públicos, assim como das entradas e saídas de gêneros comerciais. Dessa forma, lançou arrematação sobre o controle dos dízimos da alfândega e, posteriormente, pôs em execução a Provisão de 13 de março de 1751, queexigia tributo de 10% encima de todas as fazendas que entrassem na alfândega. O governador colocava-se, destarte, em prática, um dos componentes do que viria a ser a doutrina pombalina para a América portuguesa, o fiscalismo como medida controladora da administração do comércio. O governador percebeu, logo de entrada, que a execução das medidas secretas que trazia em sua bagagem resultaria num gigantesco desafio, cujo maior obstáculo estava tanto na mentalidade quanto nos antigos hábitos arraigados entre os moradores. Mendonça Furtado sentia estranhamento, por exemplo, pelo fato de que a moeda corrente para as transações comerciais eram rolos de pano, o que facilitava falsificações e confundia a medida precisa do valor.181 O pagamento dos “filhos da folha”, como eram chamados os funcionários régios, também dependia dessa moeda oficiosa. Porém, os funcionários permaneciam com soldo em permanente atraso, negligência bastante habitual com os servidores na colônia. O pagamento dos funcionários de escalões mais baixos, como os soldados, chegava a ser feito em farinha ou sementes de cacau, como avisou Mendonça Furtado em missiva a um dos ocupantes das três secretarias do reino, o ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, Diogo de Mendonça Corte-Real.182 Essa situação era decorrente da má administração e desmandos dos administradores do erário público local. As tropas militares eram inexistentes, e os poucos militares ativos formavam, a partir da percepção do governador, uma “Gente miserável, sem outra cousa de soldados mais do que estarem alistados nos livros da Vedoria, sem disciplina, ordem ou forma de militar, digo de milícia, e em tal desprezo, que se tinha por injuriado aquele homem a quem se mandava sentar praça de soldado”.183 Ademais, como percebeu o governador, além do despreparo e da falta de recursos para equipar os soldados, o ingresso na tropa recebia bastante resistência dos 181 Cem varas de pano equivaliam a “um rolo”. 182 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Corte Real, de 20 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 106-107. 183 Carta de Mendonça Furtado para o Conde de Atalaia. Pará, em 20 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 180. 118 moradores, que não queriam se alistar. Um dos motivos da oposição estava relacionado ao tempo de serviço exigido, aos salários que não eram pagos e ao sentimento de desonra que representava servir às forças militares. Os mais abastados, por exemplo, enviavam solicitação de dispensa para a metrópole. Ainda em São Luís, ao passar mostra às ordenanças, o governador percebeu que muitos dos cidadãos não portavam armas, recusando-se a carregá-las sob o privilégio de serem “Cidadãos do Porto”, argumento que, muitas vezes, também servia de pretexto para receberem exoneração do serviço militar. Alguns dos moradores mais abastados sequer aceitavam servir à Companhia dos Nobres, que foi especialmente criada para vencer resistências da nata local. O desenvolvimento do comércio esbarrava em outros desafios. Os poucos engenhos existentes, longe de produzir açúcar, tinham sua atividade restrita à produção de aguardente, na medida em que requeria menos esforços de investimento e trabalho em relação à indústria açucareira. A prática gerava duas situações indesejáveis: não desenvolvia o comércio em larga escala e disseminava o alcoolismo entre a população. Assim, Mendonça Furtado pediu ao rei que lhe permitisse pôr em execução a lei de 10 de julho de 1748, que há tempos restava em letra morta, a qual proibia a entrega de licenças para a produção da bebida nos engenhos. Todavia, o governador solicitou a emissão de decreto régio a fim de destruir todos os molinetes em atividade.184 A medida tinha por finalidade dar cumprimento à Instrução 32, conteúdo das Instruções Secretas, que determinava o desenvolvimento das potencialidades agrícolas do Grão-Pará. De fato, o governador realizou experiências agrônomas com vários produtos da terra para produzir gêneros do interesse da metrópole. Os produtos eram cacau, canela, café, tabaco, arroz, anil, azeites, cravo, etc.; tintas extraídas do carajuru e do urucu, e também almíscar e âmbar. Podemos citar também outros produtos de primeira necessidade, como a estopa para calafetar os navios, a cera para fabricação de velas e as madeiras para a construção naval. Talvez a mais curiosa de todas as experiências tenha sido a tentativa de plantar amoreiras para alimentar o bicho-da-seda. O objetivo era desenvolver fios que seriam levados para a Real Fábrica de Sedas, empreendimento têxtil que o marquês de Pombal levou adiante 184 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Dom José I, de 9 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 105. 119 para tentar criar um surto manufatureiro em Portugal, diminuindo, dessa forma, a necessidade de panos ingleses.185 A pecuária parecia atividade promissora. Mas, na recorrente fórmula do discurso do governador, a grande lástima era o fato de todas as fazendas criadoras do maior número de cabeças de gado pertencerem às ordens religiosas. Mendonça Furtado estimou o número de cabeças de gado vacum das principais fazendas dos religiosos. Os dígitos oferecidos pelo governador, apesar de não conhecermos a fonte em que baseou o cálculo, devem ser conhecidos, pois sua impressão foi tida como oficial pela administração de Dom José I. Mendonça Furtado afirmava que os padres mercedários detinham algo aproximadamente entre 60 a 100 mil cabeças de gado bovino. Os jesuítas ficavam atrás com algo em torno de 25 a 30 mil cabeças; e, finalmente, os carmelitas, aos quais era creditado o controle de açougues públicos no Pará, eles teriam oito mil reses.186 Por outro lado, o desenvolvimento econômico do Estado também esbarrava na dependência dos moradores em relação ao trabalho escravo do indígena. A obtenção do trabalho manual era dificultada pelas ordens religiosas. Tal situação era agravada por estar dentro de uma conjuntura desfavorável à obtenção de mão-de-obra indígena. É que no Grão-Pará e Maranhão, principalmente na capitania do Pará, uma epidemia de varíola grassou entre o período transcorrido de 1743-1749,187 vitimando, principalmente, os indígenas. Tais moléstias acirraram a competição em relação ao índio. Mendonça Furtado percebeu que as ordens religiosas exerciam um poder provavelmente superior ao poder civil no Estado, o qual era baseado no controle do trabalho indígena, legalmente amparado na legislação do Regimento das Missões. A legislação era tão favorável às ordens religiosas, que levou o governador a perceber nela a base de um poder despótico dos religiosos dentro do Estado ou, como ele próprio dizia, os religiosos formavam no Estado um “Corpo Poderoso”.188 Em carta ao 185 Cf Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 22 de janeiro de 1752. Ibid., p. 164. 186 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Diogo de Mendonça Corte Real, de 22 de dezembro de 1751 Ibid., p. 190. 187 Cf. ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. p. 55. 188 Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 21 de novembro de 1751. Ibid., p. 121. 120 marquês de Pombal, datada de 29 de novembro, o governador dizia que a legislação indígena em vigor consistia no “mais forte inimigo que temos que vencer”.189 Se os comissários volantes eram vistos pela a administração pombalina como fraudadores dos interesses comerciais régios, as ordens religiosas apresentavam-se como um problema imensamente maior. Mendonça Furtado apontou para uma ideia bastante difundidaentre os colonos, a de que os regulares monopolizavam o comércio do Grão-Pará e Maranhão, excluindo a população leiga e o Estado português. As impressões levam-nos a formular a hipótese de que principalmente os jesuítas, em conjunto com as outras ordens religiosas, formavam no Estado um circuito comercial fechado. Tal hipótese baseia-se no fato de que os jesuítas eram donos de todos os índios, controlavam e administravam inúmeras missões religiosas que funcionavam como centros econômicos ativos com mercadorias e valores a circular dentro das mesmas unidades. Desse modo, criava-se uma situação em que moradores e o poder público terminavam excluídos de qualquer favorecimento na produção das riquezas. Os religiosos, geralmente, não comercializavam seus produtos no Grão-Pará e Maranhão. As mercadorias eram diretamente depositadas nos armazéns dos conventos ou, a exemplo da Companhia de Jesus, no seu colégio em Belém, para depois serem prontamente transportados para a Província portuguesa da Companhia de Jesus. Acusavam-se os jesuítas de transformarem sazonalmente os armazéns dos colégios em feiras que vendiam produtos a preços superfaturados. Para agravar o quadro, a Companhia de Jesus e demais Institutos religiosos gozavam da prerrogativa de isenção no pagamento dos tributos ao Estado, de modo que a coroa não obtinha dessas negociações quaisquer dividendos. Essa situação de prosperidade no seio das missões religiosas, em contraste com o empobrecimento geral, desde sempre, foi motivo de ressentimento contra os religiosos, situação que se tornou cada vez menos aceitável, sobretudo na nova conjuntura, quando o governador precisava de recursos. Porém, a Fazenda Real estava falida. Na carta ao conde de Atalaia, Mendonça Furtado comentou a condição das rendas reais das capitanias do Grão-Pará, em que havia encontrado muitas “desordens”. E, dessa forma, via o “Estado na última ruína”.190 Outra situação delicada 189 Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 29 de novembro de 1751. Ibid., p. 208. 190 Carta de Mendonça Furtado para o Conde de Atalaia. Pará, em 20 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 181. 121 era as suspeitas de que as ordens religiosas praticavam contrabando entre elas e com suas homólogas castelhanas. Tal impressão, bastante difundida pelo governador, nunca chegou de fato a se comprovar. Contudo, com o descrédito que ele próprio derramou em cima das ordens religiosas, é inegável que ela chegou a ser levada a sério pelos inimigos da Companhia de Jesus. Desse modo, desenhou-se um cenário desfavorável para a execução do projeto do qual o governador foi incumbido. Para Mendonça Furtado, a situação era bastante óbvia: os jesuítas sangravam os cofres públicos. Nada obstante as inúmeras críticas que fez à Companhia de Jesus, sua maior preocupação foi retirar-lhes as amplas vantagens, do ponto de vista econômico, que usufruíram no Grão-Pará e Maranhão. Assim, Mendonça Furtado comentava, em sua primeira carta ao marquês de Pombal, impressões que reuniu desde que chegou ao Estado. O tema versou substancialmente sobre as ordens religiosas, principalmente a Companhia de Jesus. A aludida carta é quase uma síntese completa de todas as acusações futuramente feitas contra os jesuítas. Alarmista, Mendonça Furtado asseverava: É preciso assentar que cada Religião desta forma, em sim mesma uma República; nela se acha toda a casta de oficial; nela há pescadores; nela há os grandes currais e, por conseguinte, são senhores das carnes, e das pescarias, tanto de peixes como de tartaruga, porque todas são feitas pelas canoas e pelos seus índios, sem que haja uma só canoa que sirva ao público neste útil trabalho. As manteigas das mesmas tartarugas são também feitas por ordem dos missionários. Finalmente, todos os viveres são das Religiões, à exceção de alguma pequena parte que algum morador, ainda que raro, manda fabricar. 191 Ainda, na mesma carta, Mendonça Furtado continuou com um sem-número de críticas ao poder religioso, sempre com maior destaque para a Companhia de Jesus, a fim de justificar o lastimável estado de coisas no Grão-Pará-Maranhão. Todavia, o governador fez digressão sobre a história do estabelecimento da Companhia de Jesus no Grão-Pará e Maranhão, desde sua fundação em 1652. Mendonça Furtado lamentava que a tendência das legislações indígenas fosse entregue aos religiosos “(...) o governo espiritual e temporal [e] total soberania de todos os gentios (...) e infinitos homens que nascem nestes sertões.” 192 Por conseguinte, acreditava-se que o favorecimento dado aos religiosos, no tocante ao controle dos índios, engendrou inúmeras desordens e 191 Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 21 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 110-111. Grifo nosso. 192 Ibid., p. 110-111. 122 injustiças para toda a população do Estado. Isso por que os religiosos terminaram por fazer monopólio do serviço dos índios, “(...) em total ruína das fazendas dos moradores e da conservação do Estado”. 193 Segundo Mendonça Furtado, os religiosos se fizeram: (...) senhores absolutos desta gente e das suas povoações; como se foram fazendo senhores das melhores e maiores fazendas deste Estado, vieram a absorver naturalmente todo o comércio, assim dos sertões como o particular desta cidade [Belém], e vieram a cair os direitos reais e dízimos, e em consequencia a cair o Estado, sem remissão.194 O governador Mendonça Furtado acrescentou, ainda, a questão do desenvolvimento manufatureiro, de grave importância aos olhos dos homens do Estado português. O governador percebeu irregularidades no Grão-Pará: a existência de manufaturas, que embora estivessem vetadas aos colonos, existiam dentro das missões religiosas. Para Mendonça Furtado, parecia um absurdo que os conventos religiosos abrigassem oficiais mecânicos: (...) não só para se servirem a si, mas aos particulares, sem que haja algum que possa fazer obra que não seja com socorro das comunidades, largando-lhes por grossos jornais os obreiros, vindos de toda a sorte a ficar dentro dos claustros o cabedal que deveria girar na República, e que devera sustentar nela o grande corpo de oficiais, que é uma das partes principais que a constituem e que a animam.195 O governador Mendonça Furtado enfatizava as consequencias óbvias daquelas prerrogativas, que faziam “(...) carregar sobre o povo a quantidade de pobres que o monopólio dos padres tem feito, e que deveriam ser homens ricos e de importância ao público.”196 Do ponto de vista mercantilista, o monopólio econômico é apanágio do Estado, objetivo a ser alcançado para sua própria prosperidade. Porém, no então quase desvalorizado Grão-Pará e Maranhão, o Estado português, que pouco havia demonstrado sua presença, procuraria, assim, reverter a situação, buscando o fortalecimento do poder do Estado. O governador acreditava que o comércio maranhense não deveria sequer entrar em contato com o do Estado do Brasil, porque as trocas efetuadas eram grosseiramente desvantajosas para o Grão-Pará, e ele chegou 193 Ibid., p.110-111. Grifo nosso. 194 Ibid., p. 119. 195 Ibid., p. 122. 196 Ibid., p.122. 123 mesmo a solicitar a Dom José I que vetasse as trocas entre os dois Estados; tamanho era sua fé nas vantagens do protecionismo comercial.197 Retomando o Regimento das Missões de 1686, se o domínio sobre o indígena teve como corolário a influência do comércio para as ordens religiosas, a aludida legislação era a inconteste base jurídica daquela prerrogativa dos religiosos sobre os nativos. A legislação representava, de certa maneira, a expressão do padroado reale demonstrava a interdependência entre o religioso e o político. Assim, habitualmente, os religiosos não prestavam satisfação ao poder político local, porque antes havia um canal direto de comunicação entre as ordens religiosas e o soberano, prática que estavam acostumados. Doravante, parecia notório que o Regimento das Missões e o projeto contido nas Instruções, francamente disposto a minimizar o poder religioso, não poderiam, por diversas razões, coexistir. O Regimento das Missões permitiu aos padres administrar as aldeias com base nos seus próprios valores, porque a lei permitia-lhes isolar os nativos do contato com os moradores, sob o argumento de que tal feita era fatalmente nocivo para os índios. O poder dos religiosos nas missões era, sem exageros, absoluto, e, para muitos, abusivo e despótico. As autoridades episcopais não podiam interferir com o trabalho dos regulares dentro das missões, mesmo em caso de discordância com os métodos de evangelização por eles aplicados – e eram muitas as críticas feitas contra os missionários nesse sentido. Nem mesmo governadores poderiam dar ordens aos religiosos ou tentar controlar o rumo da administração das missões religiosas. Nesse caso, a Lei do Regimento das Missões tomava o poder civil do governador nulo, dentro do espaço missioneiro. Nenhum morador ou tipo de autoridade, não importando o segmento ou status, poderia permanecer nas aldeias sem autorização prévia dos padres que, comumente, não outorgavam a permanência por prazo superior a um ou dois dias. Por essa razão, Mendonça Furtado denominou o Regimento das Missões de “poder tirânico” administrado com “soberania e despotismo”,198 porque os padres tinham em suas mãos, não só “(...) o governo espiritual das aldeias, mas também o temporal e político” e, por conseguinte, governavam uma “tão grande república”.199 Em comentário lapidar, Mendonça Furtado advertia o marquês de Pombal: 197 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Dom José I. Pará, em 7 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 104. 198 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 21 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 112. 199 Ibid., p. 117. 124 Já V. Excelência está informado do grande poder dos regulares neste Estado, que o tal poder o tem arruinado, que os religiosos não imaginam senão o como o hão de acabar de precipitar, que não fazem caso de rei, tribunal, governador ou casta alguma de governo, ou justiça que se consideram soberanos e independentes, e que tudo isto é certo, constante, notório e evidente a todos os que vivem destas partes.200 Os missionários detinham amplo controle sobre o indígena. Nesse regime tutelar, terminavam por transmitir, consciente ou indiretamente, valores em harmonia com os propósitos do projeto missionário, sendo que o clero secular sequer poderia interferir no controle dos regulares dentro das missões. Daí ser conhecida a antipatia dos bispos contra as ordens religiosas no Estado do Grão-Pará e Maranhão, em relação às quais não tinham controle, enquanto os governadores, mais precavidos, procuravam fazer aliança com elas, principalmente com a Companhia de Jesus, que era a mais poderosa. O passado havia ensinado que a celeuma contra as ordens religiosas resultava ser desastrosa para os administradores civis. Havia um ditado popular, que se aplicava a governadores e vice-reis do Império português, que, geralmente, não governavam por tempo superior a um triênio: “Vice-rei vá, vice-rei vem, padre jesuíta sempre tem.” 201 No entanto, tal situação viria a ser, pela primeira vez, radicalmente modificada, justamente onde o poder jesuíta era inigualável – e muito provavelmente por ser tão nítidas as contradições entre os dois poderes – no Estado do Grão-Pará e Maranhão. Da perspectiva do governador, uma grande incoerência dentro das missões religiosas consistia numa espécie de hibridismo cultural que os padres tinham desenvolvido no bojo do espaço missioneiro, ao invés de divulgar aspectos da cultura ibérica propriamente dita entre os nativos. Causou estranheza ao governador o fato de missionários e indígenas se comunicarem numa língua inventada pelos padres, o nheengatu, como era chamada a língua geral amazônica.202 Mendonça Furtado também considerou uma aberração que a catequese fosse ministrada na língua geral. O governador citou alguns vocábulos inventados pelos padres para construir conceitos da 200 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 29 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 203 200 Ibid., p. 117. 201 BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português (1415-1825). Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2002 p. 89. 202 Assim como a língua falada nas missões jesuíticas no Estado do Brasil e na zona do Prata, também o “nheengatu” foi adaptado pelos jesuítas. 125 doutrina católica. Por exemplo, juntava-se o vocábulo “Tupana” (Deus) com outro, “Açu” (Grande), portanto a expressão “Tupana Açu” designava “Deus”. Ainda, para se dizer “Santo”, agregava-se ao vocábulo “Tupana” o sufixo “Mirim” (pequeno), de modo que de “Tupana Mirim” se obtinha a palavra que designava “Santo”. O isolamento do índio impedia que aquele estado de coisas se modificasse, mas pelo amparo legal do Regimento das Missões, pouco poderia ser feito, porque os jesuítas, de praxe, não prestavam contas diretamente aos bispos locais, como já referimos. Com efeito, toda aquela indignação se justificou à luz da Instrução 16, que exigia precisamente a civilização do índio em semelhança com os valores e costumes portugueses. Desde o princípio, Mendonça depositou muita fé nas potencialidades do índio. Em algumas passagens dos seus escritos, demonstrou crença na bondade natural do indígena e no seu potencial para receber aprendizado, i.e., ser facilmente aculturado. O governador afirmava que caso fosse dispensado um bom tratamento ao índio e sobre eles aplicada uma educação que levasse em conta que eram seres racionais, o Grão- Pará e Maranhão estaria destinado a se transformar, em breve, numa “República civil e polida”. 203 Não se tem notícia da familiaridade de Mendonça Furtado com o pensamento de Michel Eyquem de Montaigne ou de Jean Jacques Rousseau. Mas da epístola daquele endereçada ao marquês de Pombal, datada de 28 de novembro de 1751, depreende-se que o governador considerava que os índios estivam na situação equivalente à de uma tábula rasa (segundo a crença de que não conheciam fé, lei ou rei), estando prontamente aptos para que lhes inculcassem novos valores. Embora as questões de ordem antropológica fujam do foco de nossa pesquisa, é tentador comentar o otimismo ingênuo do governador em relação ao índio. Sabemos que alegoria e catequese constituem esforços complementares. Para o missionário levar ao índio a mensagem católica, ele deveria necessariamente adaptar os significados ao esquema mental dos nativos, mediante emprego de recursos alegóricos, porque os missionários não poderiam jamais apagar o imaginário preexistente.204 Ademais, o método de evangelização pela inculturação controlada e consciente dos padres era ratificada por Roma. 203 Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 28 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 129. 204 Cf. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 65 126 É pouco provável que a preocupação de Mendonça Furtado com o método catequético dos jesuítas dissesse respeito a desvios contra a ortodoxia romana. Parece- nos mais provável que o próprio Mendonça Furtado percebeu o grande inconvenienteno método de evangelização adotado pelos missionários na Amazônia, que consistia na manutenção da herança cultural indígena. Do ponto de vista dos interesses lusitanos expressos nas Instruções entregues a Mendonça Furtado, uma das consequências nefastas daquela prática era o distanciamento do índio da cultura portuguesa, enfraquecendo o vínculo deles com a autoridade civil, quando segundo o novo projeto, os índios deveriam se sentir portugueses e defender fronteiras e interesses de Portugal. O sentimento pátrio, para esses fins, costuma ser fundamental. Para piorar, os moradores, para estabelecer comunicação com os nativos, viam-se, segundo Mendonça Furtado, com a necessidade de aprender o nheengatu, o que sem dúvida diminuiu ainda mais a importância do idioma português no Grão-Pará. Aliás, a cafrealização (tendência dos lusos em adquirir costumes dos povos nativos conquistados) era problema antigo e temido pela administração portuguesa nos recônditos do seu Império colonial. Quanto à língua indígena, registraram-se ainda outros problemas de ordem prática. As autoridades públicas desconheciam a tal gíria e, sendo assim, perdiam para os missionários na disputa pelo controle e autoridade sobre os povos aldeados. Destarte, Mendonça Furtado percebeu na perpetuação do nheengatu uma estratégia dos padres no intuito de dificultar a comunicação dos índios com os moradores, para assim controlarem o nativo e auferirem vantagens no comércio. Além do mais, os índios preferiam negociar com os regulares, em quem depositavam mais confiança no cumprimento dos acordos – como admitiu o próprio Mendonça Furtado. Mas a utilização da língua geral serviu de pretexto, sincero ou inventado, de que subjacente à manutenção da língua havia mais um sintoma que comprovava a suspeita para as autoridades portuguesas de que os padres, em geral, e principalmente os jesuítas formavam um Estado dentro do Estado, alicerçando, com o tempo, uma nova República. Nas cartas de Mendonça Furtado para o marquês de Pombal, o governador utiliza com tanta redundância o termo república, em relação aos projetos dos inacianos, que não temos aqui dúvidas que suas contribuíram para a construção de um dos libelos mais significativos da propaganda antijesuítica dentro do mundo lusitano: a 127 Relação Abreviada (ver anexo B). 205 No essencial do seu conteúdo, consta a acusação de que os padres procuraram, por meio da manipulação e da doutrinação dos índios, construir uma república independente das coroas de Portugal e Castela, motivo pelo qual os índios, instigados pelos padres, entraram em guerra contra os poderes públicos de Portugal e da Espanha, na região dos Sete Povos (a chamada Guerra Guaranítica que, de fato, aconteceu entre 1753-1756), período em que na Amazônia tentaram abertamente sabotar a missão demarcatória. Desse modo, permaneceram as suspeitas de que os jesuítas contribuiram para o fracasso da execução do Tratado de Madrid – que realmente não se realizou, talvez mais pela falta de vontade e pela desconfiança mútua de ambos os reinos, a despeito dos desentendimentos realmente existentes com os jesuítas. O Regimento das Missões também trazia o que era considerado um grave obstáculo para o enriquecimento público no Grão-Pará. Um dos fatores era a regra de repartição dos índios entre moradores e utilidade pública. As ordens religiosas controlavam a escassa e cobiçada mão-de-obra indígena no Estado e não disponibilizavam para os moradores um excedente entre os índios aldeados que, segundo a lei, estavam de fato isentos de oferecer. Desse modo, os índios terminavam trabalhando, na maior parte do tempo, nas propriedades religiosas. Conforme os ditames legais, segundo explicou o jesuíta e missionário no Grão- Pará, João Daniel, contavam-se os índios de qualquer “missão de repartição” – isto é, missão de índios especificamente voltada para distribuir índios para servir de mão-de- obra – em três partes iguais. A primeira parte era para os moradores, a segunda deveria permanecer na missão e a última era repartida entre os demais interessados: geralmente um cômputo de 25 índios a serviço dos missionários para manutenção do organismo das aldeias, ou seja, alimentar mulheres e crianças; outros 25 para os prelados episcopais; e os últimos 25 iam diretamente para o serviço público. Todos os índios fornecidos para serviços deveriam ter entre 13 e 50 anos. Os índios recebiam como pagamento um valor estimado em duas varas de algodão mensais, e só podiam trabalhar com os brancos em anos alternados e por prazos não superiores a três 205 Título completo: Relação abreviada da república que os religiosos jesuítas das Províncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias, e da guerra que neles tem movido e sustentado contra os exércitos espanhóis e portugueses. Formada pelo registro das secretarias dos dois respectivos e plenipotenciários e por outros documentos autênticos. Reproduzido em anexo a partir da publicação de José Caeiro: História da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal. Volume I. p. 315-330. 128 meses.206 A requisição do índio era dificultada por tramitações legais e burocráticas. Existia uma chancelaria que emitia as chamadas “portarias”, que autorizavam requisição dos índios nas aldeias, mas se o morador não estivesse munido do documento, ele não poderia fazer qualquer solicitação. Em defesa do seu Instituto, o jesuíta João Daniel declarou que a lei procurava se ajustar à defesa e à proteção do indígena “(...) atendendo a que eles são os verdadeiros senhores daquelas terras (...).” 207 No entanto, Mendonça Furtado escreveu ao marquês de Pombal queixando-se profundamente do sistema de repartições. O governador lembrou que na contagem dos índios, os missionários não colocavam na divisão os tecelões, os barbeiros e todos os oficiais mecânicos, sobretudo quando havia aldeias como a de Maraçu no Maranhão ou Gonçari no Pará, dentre outras, que não eram de repartição e, portanto, não deveria emprestar índios, o que deixava os aldeados à margem do sistema de repartição e, como já foi mencionado, prontamente disponíveis aos padres. Outro método que utilizavam para manter os índios sob controle dentro das aldeias, segundo acusação do governador Mendonça Furtado, era o artifício dos casamentos contra a vontade dos índios para vinculá-los às missões. O próprio Mendonça Furtado contava casos de índios que foram até ele pedir pela liberdade negada pelos padres. Para termos melhor noção dos benefícios que o domínio dos índios auferia a quem os controlasse, é preciso lembrar que o indígena era fundamental para remar nas embarcações do principal meio de transporte da rede fluvial amazônica, as canoas, pelo prazo de vários meses. Os índios ficavam responsáveis durante a viagem pela coleta dos gêneros selvagens, as chamadas drogas do sertão, e a pouca agricultura praticada dependia, do plantio de gêneros de subsistência, ou seja, do braço indígena. O problema decorrente do controle do trabalho no Grão-Pará gerava outros efeitos perversos que iam muito além do conflito social proporcionado pela falta de trabalhadores. Mendonça Furtado, preocupado em sanar a deficiência dos cofres públicos, deparou-se com a incapacidade de obter receitas, pela simples razão de que o comércio, por ser praticamente inexistente entre os moradores brancos, não gerava receita para o Estado. Não obstante, o polpudo comércio praticado pelos religiosos ficou à margem de qualquer forma de tributação nas alfândegas, por causa da isenção 206Cf. DANIEL, João. Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas. V. 2. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p. 70-71. 207 Ibid., p. 71. 129 gozada pelos religiosos. Para Mendonça Furtado, osmissionários retiravam o comércio dos leigos e o praticavam em benefício próprio. Pelo princípio antitético mercantilista, para existir lucro da parte de um agente, é certo que deve haver prejuízo para o outro. Assim, as missões enriqueciam e o Estado soçobrava. Mas a teoria do governador, na prática, parecia bastante acertada, tendo em vista o fato dos religiosos desenvolverem um circuito econômico fechado no Estado, como explicado anteriormente. Para reforçar a tese da existência de certa autonomia econômica por parte dos religiosos, Mendonça Furtado alertou as autoridades portuguesas para o fato de que era dentro das missões religiosas que parte considerável da moeda local era produzida: os rolos de pano – produzidos para os padres, que sabiamente se utilizavam das notáveis habilidades manuais dos indígenas na tecelagem e no artesanato. No entanto, Mendonça Furtado observou que os índios eram incentivados pelos religiosos a consumirem bens dentro das próprias missões para evitar extorsões comumente praticadas pelos moradores brancos, no ato da permuta dos panos por produtos – e tudo indica que essa era a preferência dos nativos. Dessa forma, a própria moeda local também acabava canalizada para dentro do espaço das missões, que controlavam e concentravam parcela altamente significativa da economia do Estado. Em cálculos feitos por Mendonça Furtado e apresentados ao marquês de Pombal, os regulares levavam uma vantagem de 80%, consideradas as vantagens de entrada e de saída dentro das alfândegas de seus produtos isentos de taxação, monetariamente estimados em 80 milhões de cruzados anuais, em detrimento dos moradores e em prejuízo da Fazenda Real.208 O governador estimava que nas aldeias da Companhia de Jesus no Pará havia 475 índios/homens disponíveis para o trabalho apenas para os padres, além dos que permaneciam temporariamente nas aldeias para cumprir prazo de descanso obrigatório (segundo norma do Regimento das Missões), depois de período de trabalho. Mendonça Furtado calculava que em todo o Estado do Grão-Pará e Maranhão existiam 12 mil almas indígenas sob o monopólio dos padres missionários. Os números, na questão do conflito entre consulado pombalino e jesuítas, é sempre objeto de discussão. Contudo, a querela pode ser considerada irrelevante, o importante é nos apegarmos mais à proporcionalidade do comércio praticado pelas ordens religiosas e 208 Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 21 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 121. 130 pela população leiga. Sem dúvida, apesar de não arriscarmos fazer cálculos precisos, parece fato que uma porcentagem significativa era controlada pelos regulares. Por seu turno, a falta de verbas era sentida em inúmeros aspectos no projeto que deveria ser executado. Mesmo os recém-chegados açorianos, na escassez de recursos, tiveram de esperar pela autorização do governador para partirem para o distrito de Mearim, no intuito de fundar a vila de Macapá. Mendonça Furtado reclamava que não existiam verbas para a manutenção dos ilhéus por conta da Fazenda Real, mas os jesuítas preparavam vivendas e agricultura que só deram resultado no ano posterior. Outra questão perturbadora para o governador foi a construção e a reforma de algumas fortificações militares, quando não havia cabedais disponíveis para este fim. Uma das principais preocupações do governo de Mendonça Furtado era a aplicação da sexta Instrução, que dizia respeito à emancipação irrestrita do indígena com a exploração da sua força de trabalho por meio do pagamento de salários. Porém, o governador percebia que a dependência do trabalho indígena não permitia uma emancipação irrestrita e absoluta dentro do sistema de servidão praticado pelos padres, ou a escravidão propriamente dita levada a cabo pelos moradores. Mendonça Furtado chegou ao Estado pouco depois da grande epidemia de varíola, que em sete anos seguidos provocou número considerável de óbitos entre os índios. O governador sabia que a emancipação resultaria em sublevações populares, problema constante que assolava o Estado do Grão-Pará – fato semelhante que ocorreu em 1652 com o governador Baltasar Teles. O governador comentou com o marquês de Pombal que em caso de motim, sequer os militares serviriam de grande ajuda, uma vez que também eram donos de escravos indígenas. Um sintoma da falta de braços disponíveis para os moradores foi a diminuição do número de canoas pertencentes ao serviço público, que eram enviadas como tropas de resgate ou para coletar drogas dos sertões nos últimos anos. Mendonça Furtado informava ao marquês de Pombal que em 1726 partiram, em média, 150 canoas para buscar as drogas do sertão; número que caiu drasticamente ao longo dos anos, até que no fim de 1751, apenas três canoas pertencentes ao serviço dos interesses públicos 131 saíram para buscar gêneros, para a população civil, ao passo que os missionários Capuchos enviaram, no mesmo ano, 24, e os da Companhia, em torno de 28 canoas.209 Assim, o governador começou a apressar o esboço do que viria a ser a futura legislação indígena do Estado do Grão-Pará, o “Diretório dos Índios”, com o intuito de emancipar os nativos da tutela dos missionários, criando uma mão-de-obra regular e assalariada para o serviço dos moradores, porém vivendo em igualdade jurídica, baseada na noção de Direito Natural. Com a instauração do Diretório dos Índios, a meta foi retirar o poder decisório dos missionários entregando-o aos “diretores”, que seriam, de preferência, os líderes indígenas das aldeias, diretamente supervisionados pelo governador do Estado. O missivista confessava ainda ao marquês de Pombal que era necessário, ao menos, se educar o indígena para que ele tivesse como sobreviver sem a tutela de missionários. O índio jamais ficaria livre da manipulação dos religiosos e dos maus tratos dos moradores. No “Diretório dos Índios”, cujas diretrizes surgiram com otimismo e entusiasmo dos próprios punhos de Mendonça Furtado, os caciques ou principais, como chamavam os líderes tribais, eram os diretores das aldeias antes controladas pelos missionários, que doravante, em substituição aos padres, tinham autoridade para administrar o cotidiano e as querelas da comunidade. Muito entusiasmado, o governador avisou ao marquês de Pombal que sua proposta chegou aos ouvidos do rei, mas lembrava ao ministro que a matéria precisava ser ponderada com o devido sigilo, pois ele desconfiava do poder das ordens religiosas no paço real, que comumente respaldava os jesuítas em questões relativas às legislações indígenas.210 Parte considerável do Diretório foi embasada no tratado intitulado Política Indiana, de Juan de Solórzano y Pereira, que foi ouvidor no vice-reino do Peru no século XVII.211 Cotejando os dispositivos do Diretório com o pensamento de Solórzano, encontramos além da preocupação com tratamento mais humanitário ao indígena, uma reorganização da vida social e cotidiana pautada no trabalho metódico na agricultura e justamente remunerado, também com a obrigatoriedade no pagamento de tributos ao rei. Igualmente, exigia-se a utilização da língua do colonizador e o 209 Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 21 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 121. 210 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo, de 28 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 127. 211 Cf. Carta de Mendonça Furtado para o Marquês de Pombal , de 8 de novembro de 1752. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 357. 132 incentivo ao matrimônio entre nativos e brancos, além da oferta de educação privilegiada às elitesindígenas.212 Todos esses pontos foram postos em prática pela lei do Diretório que, ademais, previa vantagens na contratação para serviços de administração pública para os que desposassem indígena. Acertadamente, Mendonça Furtado sabia que a emancipação indígena seria a mais dramática decisão da sua administração, e, portanto, uma das últimas resoluções a ser tomada. Em suma, a emancipação era medida de grande importância no projeto de secularização do Estado e de inserção do indígena na vida civil, para que tivessem igualdade de direitos com os outros moradores. No entanto, o Diretório colocado em prática fracassou. Um dos problemas foi a falta de escrúpulos dos diretores, que, muitas vezes, não eram indígenas. É imprescindível salientar que nem todos os índios demonstravam interesse em seguir a nova e, talvez do seu ponto de vista, artificial legislação. Em cumprimento da Instrução número 11, que pretendia acabar com a escravização do índio em substituição pela do africano, Mendonça Furtado levou adiante maiores investigações para efetivar aquele desígnio. O governador reuniu os comerciantes paraenses e os moradores mais influentes que contribuíam na formação de opinião, para averiguar a vontade e a possibilidade da aquisição de escravos. O prospecto foi desolador. Mendonça Furtado sugeriu a Corte Real que desejava ver os moradores abastecidos de escravos africanos, porque “os negros são melhores trabalhadores do que os índios”, mas lembrava ao Secretário de Estado que os moradores respondiam, em relação à possibilidade de abrir rota de tráfico negreiro entre o Pará e a África, que não tinham “(...) meios para comprar negros, que custam muito mais que dinheiro; que ainda que lhes dêem fiado, que depois não os poderão pagar (...).”213 Se o governador rapidamente detectou os desafios de sua administração, tampouco demorou em propor soluções. Nesse sentido, a fundação de uma companhia de estanco surgiu como desdobramento lógico dentro de um quadro de injunções que exigiam fomento comercial e liberdade indígena. Se não havia capital entre os 212 Cf. FLEXOR, Maria Helena Ochi Flexor. Repovoamento e reurbanização: as relações entre o Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão e o direito indiano. In: Territórios e fronteiras. Revista do Programa de Pós- Graduação em Historia da Universidade Federal do Mato Grosso. Vol. 4n. 2 jul-dez/2003 - Cuiabá- MT. p. 65- 66. 213 Carta de Mendonça Furtado para Diogo de Mendonça Corte Real, de 30 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 136. 133 moradores, a empresa monopolista poderia fazer tais empréstimos com certa segurança, pois seria ressarcida, porque o comércio dos moradores seria controlado. Ora, uma companhia de comércio era instituição não só valorizada pelo marquês de Pombal, como também parecia ser a única solução conhecida para driblar todos os desafios que se colocavam para a aplicação do projeto português para a Amazônia. Isso por que a Instrução número 11 determinava a introdução de escravos africanos para desenvolver a economia, medida que também tinha como escopo auxiliar no cumprimento da Instrução número 6, que previa a emancipação indígena em substituição do aumento do número de braços africanos. A fé na eficácia das companhias de comércio monopolistas foi uma das marcas da administração pombalina, como comentamos na primeira parte deste trabalho. Mendonça Furtado naturalmente conhecia a predileção do irmão pelas companhias de comércio, e ele próprio percebeu na medida um ponto de partida para solucionar alguns entraves. A emergência de tentar, pela segunda vez, o estabelecimento de uma empresa monopolista no Pará foi proposta pelo próprio governador, que viu na medida a única solução para colocar de uma vez por todas o comércio dos religiosos sob controle do Estado português: Entre diversas ideias que me têm ocorrido para se poder reparar em parte o lastimável estrago a que estas duas capitanias se reduziram, nenhuma me pareceu melhor do que estabelecer aqui uma Companhia Geral de Comércio, que pudesse introduzir neste Estado tal quantidade de negros que os senhores de engenho e das mais fazendas achassem uma feira pronta, onde os comprassem por preço competente e se pudessem assim remir da última ruína em que se acham. 214 Com acidez, avisou Pombal que a existência da companhia de comércio do Estado ainda poderia ser ameaçada pela companhia de comércio das ordens religiosas.215 Enquanto refletia sobre seu funcionamento e esquadrinhava de próprio punho os estatutos,216 lutava por persuadir os burocratas do reino e os comerciantes do Grão-Pará e Maranhão de que o estanco consistia na melhor e única solução para florescer o comércio local. 214 Carta de Mendonça Furtado para marquês de Pombal, de 29 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo II. p. 68. 215 Carta de Mendonça Furtado para o marquês de Pombal, de 29 de novembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 206. 216 Cf. Condições com que se deve fundar a nova Companhia que os moradores da capitania do Pará intentam estabelecer para com ela fornecerem negros ao Estado do Maranhão e Minas do Mato Grosso. Pará, 15 de fevereiro de 1754. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. Tomo II. p. 94. 134 O primeiro desentendimento aberto entre o governador e a Companhia de Jesus surgiu com a aplicação da Instrução número 21, que determinava a fundação de novas aldeias na hinterlândia amazônica, observando a ressalva da Instrução 22, que restringia o papel dos religiosos à esfera espiritual, isto é, aldeamentos secularizados. Desde o princípio, a Companhia de Jesus demonstrou pouca disposição para trabalhar na fundação de novas aldeias, em que o governador estipulava a participação dos missionários apenas na observação do espiritual, restringindo a administração secular ao Estado. O governo havia feito poucos progressos para transladar os açorianos e alguns outros portugueses vindos de Mazagão (Norte da África) para o sítio que deu lugar à povoação e à fortaleza de São José do Macapá. A responsabilidade recaiu sobre a Companhia de Jesus. O jesuíta Antônio Machado, que obviamente não tinha conhecimento da Instrução 22, demonstrou boa colaboração com o governador que, por outro lado, culpava outros religiosos inacianos pelo atraso na fundação da povoação no Cabo do Norte – havia dificuldades na remoção dos mais de quinhentos ilhéus, porque o Estado não só não tinha canoas para transporte, como também dependia da pouca disposição dos jesuítas em emprestar as embarcações. Até então, Mendonça Furtado só havia despachado 68 pessoas para a nova povoação que precisava de mantimentos, gado e equinos para subsistir. O governador expôs a Tomé Joaquim da Costa Corte Real, (futuro secretário de Estado da Marinha e Ultramar em lugar de Diogo de Mendonça Corte Real que se tornaria desafeto de Pombal) com indignação, que ainda deveria adquirir os mantimentos necessários dos únicos fornecedores existentes – os padres.217 Havia grande esperança naquela povoação, que era a semente da nova mentalidade imposta ao Estado, na qual seriam valorizados os trabalhos sistemáticos e sedentários. Mendonça Furtado, em comunicação com o vice- provincial da Companhia de Jesus (autoridade máxima da Companhia no Estado do Grão-Pará), José Lopes, deixou esclarecida a intenção de Dom José I de contar com a cooperação dos inacianos na fundação de novas e estratégicas povoações no interior da selva amazônica, nas fronteiras com os limites das possessões de Castela; duas próximas aos Rios Javari, e outra no Rio Japurá – em conformidade com a exigência da Instrução número 21. 217Carta de Mendonça Furtado para o marquês de Pombal. Pará 19 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 175. 135 Contudo, o vice-provincial respondeu falando da incapacidade de se fundar mais um povoado no prazo de um ano, porque as paragens eram inóspitas e requeriam trabalho em longo prazo. A recusa levantou suspeita contra a Companhia de Jesus, pois o governador acreditava que aqueles rios já eram utilizados há muito tempo para contrabando entre castelhanos e portugueses. A aldeia faria parte de uma estratégia velada de aproveitamento do adiantamento dos missionários para transformá-la em vila ou, até mesmo capital, para uma nova capitania que se planejava inaugurar ao Oeste do Pará. Embora as ordens reais exigissem a fundação das povoações, Mendonça Furtado aproveitou-se da situação para alarmar as autoridades no reino. O governador afirmava que certamente os padres abusariam da falta de fiscalização naqueles recônditos da selva para fazerem comércio ilegal com os castelhanos, o que causaria prejuízo aos cofres públicos. Para melhorar a supervisão dos supostos negócios ilícitos dos padres, Mendonça Furtado acreditava ser importante deslocar os militares e o ministro de justiça para aquela localidade. A grande preocupação do governador era em relação ao ouro de Mato Grosso ou, quem sabe, na possibilidade de que as ordens religiosas já estivessem a explorar as reservas auríferas. A Instrução 30 vetava a abertura de minas auríferas, o que obrigou o maior controle em um lugar tão difícil de fiscalizar. Mendonça Furtado sugeriu a Pombal que aconselhasse o rei, estipulando que futuramente todas as novas aldeias funcionariam com o controle do Estado dentro dos ditames da Instrução 22.218 A fundação de aldeias era tema sumamente delicado. O desígnio era fazer com que as povoações construídas nas linhas da fronteira legal assegurassem a validade do Tratado de Madrid e, caso restasse em letra morta, ainda salvaguardariam um argumento de força, o uti possidetis. Aparentemente, as ordens religiosas dificultaram o estabelecimento de aldeamentos que minassem sua influência e poder na Amazônia. O estopim aconteceu com a troca de missivas entre governador e vice-provincial José Lopes. Ignorando que o pedido do governador era na verdade ordem do rei, o vice- provincial questionou a exigência dos jesuítas fundarem um aldeamento sem poder exercer nele a jurisdição secular, prerrogativa contemplada no Regimento das Missões. O vice-provincial recusou-se a aceitar aquelas condições, porque as considerava lesivas. 218 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Diogo de Mendonça Corte Real, de 20 de janeiro de 1752. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 261-262. 136 A situação complicou-se depois que o jesuíta italiano Gabriel Malagrida começou a se manifestar contrário às medidas do governo do Pará. Este jesuíta, com fama de clarividente, evangelizou os índios maranhenses por trinta anos.219 Malagrida voltou à Amazônia no mesmo navio que trouxe o governador Mendonça Furtado ao Estado do Grão-Pará. Houve certa prevenção contra o jesuíta, que, em pouco tempo, voltou para Portugal, porque a rainha mãe, Dona Mariana de Áustria, o fez este pedido de retorno. Isso comprova que ele era, de fato, muito ligado à rainha, como diziam alguns. Mendonça Furtado demonstrou preocupação quando soube que Malagrida começou a espalhar boatos no Maranhão de que ele desejava acabar com o cativeiro do índio. As Instruções mencionavam especialmente o clérigo no seu desejo de fundar seminário em Cametá, como dantes acordado, para a instrução dos jovens. Havia a ressalva de que o prédio e a manutenção dos seus moradores seriam realizadas pelas redízimas do erário régio, vetando a participação do capital oriundo das missões dos jesuítas. A medida tinha por objetivo, em primeiro lugar, esclarecer a verdade que muitos clérigos na colônia e em Portugal geralmente se esqueciam: as terras em que viviam ou produziam pertenciam, antes de tudo, ao rei; sua utilização pelas ordens religiosas consistia em uma benesse do monarca – somava-se a isso a exigência para que os novos clérigos, do novo estabelecimento, recebessem côngruas para sua manutenção. Para esclarecer os parâmetros que normatizariam o funcionamento do novo seminário, Mendonça Furtado reuniu-se em assembleia com o vice-provincial, o reitor do Colégio do Pará, o padre Julio Pereira e com o missionário Gabriel Malagrida. Em discordância com as exigências do governo civil, Malagrida reivindicou a continuidade das prerrogativas tradicionais das ordens religiosas no Estado, que mediante a exploração fundiária de terras que possuíam, conseguiam manter o funcionamento das propriedades da Companhia de Jesus. Malagrida desejava que o seminário também funcionasse sem depender das redízimas: que era geralmente de pagamento incerto e, sem dúvida, menos vultosas que a exploração da terra da parte dos jesuítas que, diga-se de passagem, era feita de forma inteligente e com resultados positivos. 219 Cf. CHANTAL, Suzanne. A vida cotidiana em Portugal ao tempo do terramoto. Lisboa: Edição “Livro do Brasil”. 1965. p. 29. 137 Mendonça Furtado acusou o padre Malagrida de ostentar, durante as negociações, ter proximidade com o poder em Lisboa, alegando que lutaria pelo interesse dos Institutos religiosos, provavelmente mediante intersecção dos jesuítas José Carbone e José Ritter, o confessor da rainha-mãe. É fato que o apoio da rainha- mãe foi um dos últimos alicerces da Companhia de Jesus na corte, e o seu falecimento fortaleceu o processo de afastamento dos jesuítas começado por Dom João V, e que não foi revertida por D. José I antes mesmo da perseguição contra os inacianos. Depois da desventurada reunião com o vice-provincial, Mendonça Furtado declarou nas cartas estar em guerra contra a Companhia de Jesus. O conflito, desde então, começou a crescer e as partes antagônicas, com o passar do tempo, radicalizaram sua postura de intransigência. Daí em diante, o governador ficou atento a todos os deslizes dos religiosos e tudo foi colocado no papel, correspondendo-se sobre o tema com as pessoas mais influentes do reino.220 Desde então, todas as altercações menores entre as duas facções passaram a ser tratadas como assunto de Estado na correspondência oficial de Mendonça Furtado e foram interpretadas por ele como resistência dos padres em obedecer ao poder civil. O governador não demorou a pedir ao marquês de Pombal a expulsão dos jesuítas mais rebeldes para Portugal, a fim de que o governo civil demonstrasse sua força diante das instituições religiosas: “A mim cá de longe, se S. Maj. for servido reformar isto, não me lembra outra coisa mais do que mandando ir com modo, e debaixo de algum pretexto, alguns destes padres de todas as religiões, que aqui são mais orgulhosos e perturbadores.”221 Na esteira do crescente poder do irmão que se afirmava na corte, Mendonça Furtado recebeu notícia, ao que tudo indicava inesperada, de que Sua Majestade, Dom José I, honrava-o como seu “Principal comissário e plenipotenciário com amplíssimos e ilimitados poderes”. Assim, Mendonça Furtado passou a chefiar a expedição 220 A partir de então o governador ficaria atento a todos os deslizes dos religiosos e tudo colocaria no papel, correspondendo-se sobre o tema com as pessoas mais influentes do reino. Disputaria pedras com os Padres para a construção da calçada do palácio do Estado, afirmaria ter visto religioso capucho vestido como bandeirante a portar mesmo uma arma de fogo, e insistiria na má vontade dos Padres em emprestar canoas. Todas estas mazelas seriam divulgadas; a tudo encontrou matéria para lutar contra o detEstadopoder das religiões no Grão- Pará. Os jesuítas também levariam suas queixas do Grão-Pará para a corte e os acontecimentos teriam grande repercussão em Lisboa. A contenda naquele espaço esquecido da América portuguesa se desdobraria e continuaria na metrópole. 221 Carta de Mendonça Furtado para Sebastião José de Carvalho e Melo. Pará, 29 de dezembro de 1751. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit.. Tomo I. p. 207-208. 138 demarcatória que selaria os acordos de territoriais ibéricos.222 Desse modo, o governador teve de organizar os preparativos para organizar a comissão portuguesa, a qual se encontraria com a do comissário espanhol Dom José de Iturriaga.223 A partir de então, o poder e a influência de Mendonça Furtado no Estado do Grão-Pará e Maranhão consolidaram-se. A missão demarcatória, que seria realizada num futuro próximo, acabou sendo um desastre, e toda a culpa foi descarregada nos religiosos da Companhia de Jesus. Mesmo antes, quando a companhia de comércio foi posta em prática, a reação contrária e ativa dos jesuítas ao projeto, na colônia e no reino, deu ensejo à perseguição dos religiosos no espaço do Império português. Assim, os desentendimentos nascidos na periferia começaram a ecoar na metrópole. Apesar do anticlericalismo típico das figuras de poder do período pombalino, não temos conhecimento de ter existido desavenças abertas entre Pombal e os jesuítas até a primeira metade da década de 50, do século dezoito. Mas no Grão-Pará e Maranhão eclodiu o primeiro grande atrito que deu fundamental contribuição para o dramático e emblemático embate entre Pombal e a Companhia de Jesus.224 Não obstante a inevitabilidade do choque entre aqueles dois poderes, quando dois projetos entravam em contradição, a Companhia de Jesus ainda gozou, durante certo tempo, de uma posição bastante tranquila no paço real. Em Portugal, os jesuítas ainda eram confessores da família real portuguesa e transitavam confortavelmente na 222 A Nomeação de Mendonça Furtado para o cargo data de 30 de abril de 1753. 223 Cf. FERREIRA REIS, Arthur Cézar. História do Amazonas. 2ª. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989. p.104. 224 O próprio marquês de Pombal abusou da amizade de padres jesuítas influentes na corte e pediu abertamente seus favores para conseguir desde ajuda de custo, ou então para tentar por meio daqueles clérigos influentes modificar sua imagem antipática perante Dom João V. O futuro ministro recorreu exaustivamente aos favores do jesuíta austríaco José Ritter no intuito de favorecer as suas bodas com a também austríaca condessa de Daun, que de fato veio a ser sua esposa. Junto aos jesuítas José Celle e Rafael Mendes, Pombal buscou ajuda na resolução de pendências jurídicas e de ordem familiar. Mas foi com o inaciano italiano João Batista Carbone que encontramos a maior quantidade de missivas trocadas. Carbone era pessoa bem quista por Dom João V a ponto de o monarca vetar sua ida para o Brasil. Destinado a ser missionário no Maranhão, o monarca intercedeu contra a sua partida e fez do jesuíta matemático oficial da corte e preceptor dos infantes Dom José e Dona Maria Bárbara. O marquês de Pombal procurou continuamente reforçar vínculos fraternos com o mencionado Padre, a quem habitualmente denominava “Meu amigo, e muito meu Senhor”, numa aparente estratégia de aproximação para encontrar no valido de Dom João V apoio que modificasse sua condição desfavorável junto ao monarca. Recorreu também ao jesuíta Carbone para esclarecer que sofria perseguições do embaixador português junto à Santa Sé, Manuel Pereira de Sampaio, quando enviado como diplomata para Viena enquanto mediador português para resolver desavenças entre Áustria e o papado.224 Posteriormente, no reinado de Dom José I, encontrou uma conjuntura francamente favorável para sua participação nos negócios de Estado e ademais da indicação de Dom Luís da Cunha, o próprio jesuíta José Moreira, confessor do novo rei, segundo muitos, deu voto favorável na escolha de Pombal para integrar o gabinete de Dom José I.224 Cf. LOPES, Antônio. Marquês de Pombal e a Companhia de Jesus: correspondência inédita ao longo de 115 cartas (de 1743 a 1751). Cascais: Principia, 1999. 139 corte, posição que foram gradualmente perdendo na medida em que as tensões entre o partido pombalino e a Companhia de Jesus tomavam rumo cada vez mais radical. 140 VI. A Consolidação das Reformas Pombalinas e a Expulsão da Companhia de Jesus A entronização de Dom José I coincidiu com o momento histórico em que Portugal lutava para reformar e controlar a administração pública e o comércio do reino, que funcionavam com uma burocracia ineficiente, superada e com os negócios do Estado nas mãos de particulares ou estrangeiros. Uma das particularidades da nova administração foi contrariar as formas de manifestação de poder autônomo – como o dos jesuítas no Grão-Pará. Assim, as diretrizes traçadas pela direção pombalina, quando postas em prática, inevitavelmente, levantaram oposições de inúmeros grupos sociais influentes, principalmente do religioso. A participação massiva do clero na política portuguesa foi combatida com o objetivo de secularizar o Estado para torná-lo mais racional e eficiente. A reforma na educação desafiou o poder religioso, principalmente a Companhia de Jesus, a qual era detentora das universidades portuguesas e privilegiava um ensino considerado defasado. A expulsão da Companhia de Jesus da Amazônia foi consequência da execução das reformas pombalinas para o Estado do Grão-Pará e Maranhão. A proscrição da Companhia de Jesus do Império português teve início precisamente no Grão-Pará que, à semelhança das reformas que viriam a ser aplicadas no reino, tiveram na Amazônia uma espécie de laboratório para medidas que caracterizaram o consulado pombalino, e que posteriormente foram aplicadas em Portugal e no seu Império. É surpreendente notar que naquele recôndito da América portuguesa apareceram, pela primeira vez, ou pelo menos de forma mais nítida, os contrastes entre as novas diretrizes, preparadas pelo governo de Dom José I, e a existência das facções tradicionalmente estabelecidas na política portuguesa (quase todas as que encontraríamos no reino como clérigos, comerciantes universais, etc., com exceção da nobreza), que serviram como oposição a algumas medidas, como a secularização do Estado e a instauração de companhias monopolistas de comércio. Dessa forma, como o Estado do Maranhão, por injunções geográficas e pela própria organização administrativa, estava mais atrelado a Portugal do que ao Estado do Brasil, também as questões pertinentes à Vice-Província do Maranhão, da Companhia de Jesus, repercutiam diretamente em Portugal. Desse modo, o início da crise entre Pombal e os jesuítas deu-se justamente pela emulação entre a Companhia 141 de Jesus e a administração pombalina no Grão-Pará e Maranhão, governada então por um legítimo representante da mentalidade de estado que então geria Portugal. A aplicação das reformas no Grão-Pará e Maranhão, contidas nas Instruções Secretas, provocaram uma reviravolta radical num sem-número de itens da administração pública local, que terminaram por reorganizar a sociedade paraense. Por conseguinte, a execução das Instruções Secretas deslocou o poder que os governadores dividiam com as ordens religiosas, tornando-o exclusivamente apanágio civil. Dessa forma, o intuito da Instrução era fazer com que os governadores não tivessem limites em relação ao exercício do seu poder. Os religiosos viviam amparados por uma sólida legislação, que foi construída para defender seus próprios interesses. Assim, as ordens religiosas tornaram-se poderosas e influentesno governo do Estado, limitando o exercício de poder dos funcionários civis na vida pública do local. A plena execução das Instruções orientou a aplicação de novas medidas, que não estavam previstas na proposta inicial do projeto. A emancipação do indígena demonstrou ser inexorável sem substituição por outra mão-de-obra servil ou escrava. Essa constatação levou a administração pombalina a ponderar a fundação de uma companhia de comércio majestática como solução ao problema, ideia que foi incentivada pelo governador Mendonça Furtado, o qual acabou convencendo o monarca e o seu ministério a levar aquele ideia adiante. Por outro lado, o Grão-Pará-Maranhão ainda seria um dos espaços de aplicação do tratado de limite de 1750. Em 24 de junho de 1752, os representantes das cortes de Madri e de Lisboa assinaram o “Tratado de instruções dos comissários da parte do Norte”, com a novidade de que o próprio capitão-general e irmão do marquês de Pombal, Mendonça Furtado, chefiariam a comitiva portuguesa, que deveria se encontrar com a espanhola nos confins do Rio Negro, para a realização das medições que ratificariam o acordo. Assim, duas preocupações-chave orientavam a política do governo português para o Grão-Pará e Maranhão: conseguir aplicar as Instruções Secretas e efetivar o diploma de Madrid de 13 de janeiro de 1750. Destarte, como jamais havia acontecido, aquela área até então periférica, e ainda por colonizar, do Império marítimo português, passou a ser acompanhada com grande interesse pela monarquia lusitana. Curiosamente, ambas diretrizes tiveram sérios confrontos na colônia, repercutindo também na orientação da política metropolitana. 142 A Companhia do Comércio nasceu da sugestão do governador Mendonça Furtado para o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, o marquês de Pombal. A solicitação feita a Dom José I foi consentida, embora com a ressalva de que deveria ter a aprovação popular ou de uma classe empresarial nas capitanias do Grão-Pará e do Maranhão, a adesão tinha de estar comprometida com o funcionamento do pedido225. Ora, uma companhia de comércio naqueles moldes exigiria, tanto em Portugal quanto no Grão-Pará, que tivessem grupos, nos dois lados do oceano, como vendedores- compradores, que viabilizassem o projeto. Para grande decepção do governo do Pará, os moradores interessados não conseguiram reunir soma superior a trinta mil cruzados de fundos para a Companhia de Comércio.226 Todavia, não houve esmorecimento no Pará. Mendonça Furtado trabalhou sofregamente pela fundação da Companhia. O governador sensibilizou pessoas influentes em Lisboa e no Estado do Grão-Pará explicando a importância daquele empreendimento. Entrementes, Mendonça Furtado desenhava os estatutos da companhia de comércio, para normatizar o fluxo entre o Estado do Maranhão e Portugal, e as regras para enquadramento dos acionistas locais e para o braço português da empresa. O governador estudava também o número e o respectivo valor das ações que deveriam ser lançadas na praça, bem como o justo preço que fixaria para a exportação das drogas do sertão, como cacau, algodão, café, salsa e cravo, com o intuito de evitar prejudiciais especulações.227 Em cumprimento da Instrução 31, que exigia pesquisa dos produtos naturais da terra para comércio, o governo paraense comprovou a existência de atrativos para Companhia de Estanco, o que ensejou cultura organizada do cacau, canela, algodão, arroz, dentre outros. Mendonça Furtado também pôs em prática experiências como o cultivo do tabaco de Maryland e Virgínia e fez todos os esforços para plantar amoreiras no Grão-Pará; empreendimento que de tão bem-sucedido passou para etapa seguinte, que era trazer o bicho-da-seda, o qual se alimentava daquela planta, para produzir os fios. Lourenço Kaulen, um irlandês radicado na capitania do Maranhão, e interessado no negócio da fabricação dos fios, recebeu incentivo do governo do Pará 225 Cf. Carta de Dom José I para Mendonça Furtado. Lisboa, 22 de novembro de 1752. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. Tomo I. p. 399-400. 226 Cf. Carta de Mendonça Furtado para Diogo de Mendonça Corte Real. Pará, 18 de janeiro de 1754. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op.cit. Tomo II. p. 67. 227 Cf. Condições com que se deve fundar a nova companhia que os moradores da capitania do Pará intentam estabelecer para com ela fornecerem de negros o Estado do Maranhão e minas do Mato Grosso. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op.cit. Tomo II. p. 88-94; Cf. Carta de Mendonça Furtado para o Marquês de Pombal. Belém, 9 de novembro de 1752. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op. cit. Tomo I. p. 364. 143 para produzir a matéria-prima fundamental para a indústria têxtil no reino. O bem- sucedido empreendedor recebeu nacionalidade portuguesa e o título da Ordem de Cristo – atitude típica da administração pombalina que contratava ou naturalizava técnicos estrangeiros para desenvolver setores fabris estratégicos. Mendonça Furtado também pensou em trazer outros irlandeses para produzir tabaco com qualidade semelhante ao das Treze Colônias Inglesas. Mendonça Furtado via nos estrangeiros a oportunidade de uma boa parceria e sugeriu a Pombal dar preferência à naturalização dos holandeses ou franceses encontrados no território amazônico, ao invés proceder a uma expulsão hostil. Curiosamente, o marquês de Pombal, para levar a cabo o projeto do desenvolvimento têxtil no reino, em gesto emblemático, chegou a incentivar o plantio das amoreiras em Lisboa. Como nos lembra a historiadora Suzanne Chantal, “Ele próprio [marquês de Pombal] plantou a primeira das trezentas e trinta amoreiras que haviam de dar o seu nome ao bairro [Bairro das Amoreiras] e que, de certo modo, eram simbólicas.”228 O governador Mendonça Furtado, em outro gesto também repleto de expressão simbólica e de conteúdo irônico, comentou ter achado dentro do colégio dos padres da Companhia de Jesus: (...) uma [amoreira] que estava quase morta, e dando-me a notícia de que naquele sítio havia uma tão preciosa árvore, fui com as minhas mãos cortar-lhe umas poucas de estacas que pus no quintal do Palácio da residência governadores. [...] (...) bastou-me aquela experiência, para ver que aquela terra produz estas utilíssimas árvores, e se davam excelentemente bem nestas terras, e que poderíamos aqui lavrar sedas, que não só provêssemos quantas fabricas quiséssemos estabelecer no reino, ma que nos muito sobejaria se considerasse que era útil, fazer-se com ela um grosso ramo de comércio afora.229 Na falta de recursos para viabilização da companhia de comércio, surgiu, para angariação expediente discutível do ponto de vista ético, mas indubitavelmente tentador para uma administração pública abertamente anticlerical, a estatização dos bens das ordens religiosas. Uma das grandes polêmicas que envolvia a Companhia de Jesus dizia respeito à questão da legalidade dos seus bens imóveis, como fazendas e engenhos. Legalmente, a Companhia de Jesus não possuía e não podia possuir bens de raiz, e tudo o que pertencia às ordens religiosas era explorado como benefício régio, 228 CHANTAL, Suzanne. A vida cotidiana em Portugal ao tempo do terramoto. Lisboa: Edição “Livro do Brasil”. 1965. p. 215. 229 Carta de Mendonça Furtado para o Marquês de Pombal. Arraial de Mariuá, 14 de outubro de 1756. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op.cit. Tomo III. p. 187-188. 144 que poderia ser imediatamente revogado. Os jesuítas, pelos critérios do seu regimento interno (Constituições da Companhia de Jesus), poderiam possuir bens imóveis desde que estivessem vinculados aos colégios e que fossem para a manutenção dos mesmos, tal prática não feria o voto de pobreza individual. É provável que mesmo uma análise exaustiva das Ordenaçõesportuguesas não nos permita chegar a um parecer satisfatório sobre tão polêmica questão. Mas é fato que os religiosos não podiam comprar bens de raiz sem licença expressa do rei, e a Companhia de Jesus parecia ter feito uso deliberado de tal expediente, provavelmente pela falta de supervisão do Estado sobre seus atos.230 Aproveitando-se das controvérsias jurídicas sobre os bens das ordens religiosas, o governo do Grão-Pará deu início ao registro das riquezas dos padres, conjeturando uma possível estatização como artifício para arrecadação de fundos para os inúmeros empreendimentos reformistas. Com autorização do marquês de Pombal, Mendonça Furtado começou a inventariar as propriedades dos regulares para informar o rei do “(...) valor e do rendimento das fazendas que neste Estado possuem (...)”, porque “(...) seria mais conveniente para a subsistência do Estado tirar todas as fazendas dos regulares e dar-lhes S. Maj. uma côngrua suficiente para a sua sustentação (...)”. Desse modo, além de conseguir dividendos para as reformas, esvaziar-se-ia o poder dos regulares, que era para Mendonça Furtado, “(...) o inimigo mais poderoso do Estado (...)”.231 Para realizar a dita estatização seria fundamental uma ação de propaganda no reino que espalhasse notícia duvidosa daquelas posses, para que tudo não parecesse ser ato de injustificada violência. Por conseguinte, se os regulares permanecessem no Estado, sem a administração temporal dos bens que geriam, teriam de administrar as aldeias recebendo as côngruas, sendo que o produto econômico das comunidades indígenas tinha de ser distribuído entre população e governo. Outras hipóteses levantadas pela administração do Grão-Pará e Maranhão, em relação aos negócios dos jesuítas, eram de que os inacianos andavam a contrabandear ouro com os jesuítas de Castela na Amazônia. Logo, a administração especulava que o 230 Marcos Carneiro de Mendonça teve a agudeza de publicar na coleção de cartas trocadas entre Mendonça Furtado e Marquês de Pombal, por nós exaustivamente utilizada, os excertos mais importantes de algumas das “Leis Extravagantes” de Portugal, ajudando a iluminar a questão do controverso litígio pelos bens religiosos da Companhia de Jesus. Cf. op. cit. tomo I. p. 303-311. 231 Carta de Mendonça Furtado para o Marquês de Pombal. Pará, 18 de fevereiro de 1754. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op.cit. Tomo II. p. 113 145 sequestro dos bens dos religiosos traria surpresas adicionais, como tesouros escondidos dentro de suas propriedades. Mendonça Furtado, em relação aos jesuítas, dizia que eles “Têm certíssimamente em Lisboa uma soma considerável de dinheiro, fora o muito que aqui tem entesourado (...).”232 Do mesmo modo, como a antiga tendência do Estado português era adquirir as capitanias particulares ainda existentes no Estado do Brasil, no Grão-Pará e Maranhão parecia óbvio que o passo seguinte seria a tomada do poder civil das aldeias controladas pelos religiosos.233 De tal sorte que, também, a secularização das aldeias religiosas seria levada a êxito, processo que pode ser entendido como forma de centralização do poder do Estado português. A partir da intenção de sequestrar os bens das ordens religiosas, automaticamente, o poder religioso era substituído pelo civil. Embora as Instruções exigissem das novas aldeias apenas que o poder temporal não fosse entregue aos missionários, certamente aconteceria grande confusão na definição dos papéis dos religiosos nas aldeias, às quais habitualmente eram governadas com base no artigo primeiro do Regimento das Missões, que garantia o poder espiritual e temporal aos missionários. Com efeito, dizia o governador: (...) tirarem-se as fazendas aos regulares, dando-se-lhes côngruas suficientes para a sua subsistência, julgo que toda a eficácia deste meio ficaria sendo totalmente inútil e infrutífera conservando os regulares o domínio temporal das aldeias: porque, depois nada importava privar os regulares dos rendimentos das suas fazendas, se tendo eles a administração dos índios ficava, como agora estão, senhores de todas as preciosas drogas do sertão. 234 O próprio governador exortava Pombal a efetuar não só a incorporação mediante pagamento pelas capitanias dos donatários, mas também sublinhava que o mesmo gesto contra as posses dos missionários não seria em nada dispendioso, porque nenhuma indenização deveria ser paga, pois não existia legislação que resguardasse suas reclamações. As propriedades e as aldeias religiosas, a depender do número de 232 Carta de Mendonça Furtado para o Marquês de Pombal. Pará, 18 de fevereiro de 1754. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op.cit. Tomo II. p. 101. 233 Ainda no consulado pombalino, as últimas capitanias privadas seriam revertidas para a coroa, como as de Cumá, Cumã, Tapuitapera, Marajó (Ilha grande de Joanes), Caité, Gurupá, Cabo do Norte e Cametá. Tendência que levou em 1763 à erradicação de todas as capitanias privativas da América portuguesa. Cf. AVELLAR, Hélio de Alcântara. História administrativa do Brasil; a administração pombalina. 2.ed. Brasília, Fundação Centro de Formação do Servidor Público – FUNCEP/Ed. Universidade de Brasília, 1983. P. 52. 234 Carta de Mendonça Furtado para o Marquês de Pombal. Pará, 18 de fevereiro de 1754. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op.cit. Tomo II. p. 117. 146 habitantes, seriam elevadas a vilas ou lugares. Assim, o mais apropriado parecia convencer o rei para: (...) transformar e reduzir aquelas fazendas a povoações que se farão popularíssimas, declarando por livres todos os escravos que nelas existem, e mandando distribuir por eles as terras de que se compõem as tais fazendas, do mesmo modo que se pratica com os novos povoadores, onde em cada uma destas povoações um oficial de guerra que as governe e ordenando aos seus ministros que todos os anos sindiquem dos tidos oficiais para se saber se observam exatamente as ordens que se lhes devem dar, respectivas àqueles importantíssimos estabelecimentos.235 A substituição do controle das aldeias pela administração civil resolveria imediatamente dois problemas sumamente desagradáveis para aquela administração: extinção do poder religioso sobre os índios e missões e o favorecimento do povoamento das zonas estratégicas da Amazônia. O marquês de Pombal expressou sua satisfação ao projeto apresentado pelo irmão. O ministro aceitou todas as sugestões e autorizou Mendonça Furtado a inventariar prontamente os bens dos jesuítas e o número de religiosos no Estado, com a finalidade de calcular o montante necessário para pagamento de côngruas – já existia, nesse sentido, desde 17 de maio de 1751, uma lei de pagamento de côngruas aos religiosos, mas ainda não tinha sido publicada. Pombal ainda ressaltava que tudo estava sendo articulado com sumo segredo na corte.236 Assim sendo, constatou-se o amadurecimento do plano de perseguição às ordens religiosas, mas não ainda não estava em voga o plano de expulsão dos jesuítas. No entanto, havia dúvidas sobre como os religiosos reagiriam ao tomar conhecimento das novas regras. Nesse ínterim, outra questão sumamente importante preocupava o governo do Pará: o cumprimento do Tratado de Madrid. A confirmação da efetivação das demarcações ficou acertada no Tratado das Instruções dos Comissários, assinado em 24 de junho 1752. Como consequência do crescente poder do irmão e ministro, Mendonça Furtado recebeu, em 30 de abril de 1753, a carta régia assinada pelo próprio marquês de Pombal nomeando-o à posição de “Principal Comissário e Plenipotenciário com amplíssimos e ilimitados poderes” da comissão portuguesa.237 Assim, Mendonça Furtado deveria deslocar-se para o Rio Negro, nas proximidades do 235 Ibid., p. 116. 236 Cf.Carta do Marquês de Pombal para Mendonça Furtado. Belém [Portugal], 4 de agosto de 1755. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op.cit. Tomo II. p. 471-472. 237 Carta do Marquês de Pombal para Mendonça Furtado. Belém [Portugal], 6 de julho de 1752. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op.cit. Tomo I. p. 318. 147 arraial de Mariuá, em que seria o ponto de encontro com o comissário espanhol D. José de Iturriaga, o qual ostentava o título de Cavaleiro da Ordem de São Tiago e Chefe de Esquadra da Armada Real.238 Entrementes, na zona do Prata, outras duas comissões, lideradas pelo português Gomes Freire de Andrade e pelos espanhóis marquês de Valdelírios e D. José de Andonaegui, iam efetuar as demarcações no Sul do continente. Mas Pombal salientava ao governo do Pará que a realização das demarcações necessitava de uma preparação rápida. Marquês de Pombal sublinhou a Mendonça Furtado, que ele tinha, imediatamente, de recrutar índios ao serviço público e ao auxílio militar, ele frisava também que o irmão deveria organizar mantimentos para sustentar os espanhóis, a equipe técnica portuguesa e os militares que chegariam de Lisboa. Pombal considerava importante a construção de uma fachada que causasse impressão positiva aos olhos estrangeiros, de modo que a fragilidade do controle português, na Amazônia, não parecesse tão flagrante. Ele também ressaltava a necessidade de reunir copiosa informação com os práticos do país, porque desejava considerar a opinião que os entendidos faziam do Tratado, a fim de saber como proceder para levar vantagens no ato das demarcações. 239 Mais uma vez, os religiosos surgiam como peça fundamental na efetivação do Tratado de Madrid. Mendonça Furtado dependia da cooperação dos religiosos para auxiliar no deslocamento da comitiva pela selva, e, principalmente, para conseguir abastecer sua equipe de mantimentos e oferecer mão-de-obra para auxiliar a comissão. O governador suspeitava que a excessiva dependência local do trabalho indígena poderia malograr o curso da expedição, porque eram frequentes as debandadas de índios refratários a trabalhos duradouros. Por outro lado, de alguma maneira, Mendonça Furtado desconfiava de pouca vontade dos missionários em emprestar os índios, que eram fundamentais para remar e pilotar canoas, bem como buscar alimento para a equipe durante o deslocamento pela selva. Com os preparativos para organização da expedição, muitas dificuldades foram notórias. Em primeiro lugar, um dos entraves foi em relação à condução, porque as canoas, principal meio de transporte para aquela missão, eram insuficientes. Não havia 238 Cf. REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas. 2.ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989. p. 104. 239 Cf. Carta do Marquês de Pombal para Mendonça Furtado. Belém [Portugal], 6 de julho de 1752. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op.cit. Tomo I. p. 318-319. 148 recursos, tempo e obreiros suficientes para prepará-las dentro do prazo esperado. Também não houve ação de coagir a população ou religiosos para que eles fornecerem as próprias embarcações, porque ninguém possuía mais do que o número necessário para custeio de famílias ou aldeias, nem mesmo os religiosos. Entretanto, esperava-se que as religiões cooperassem com o poder civil na oferta de mantimentos como a farinha, para manutenção dos membros da expedição. As exigências em quantidade de alimentos seriam elevadas, considerando as possibilidades reais da contribuição do Estado e das missões religiosas. A comitiva era de aproximadamente mil membros. Com a longa espera pelos espanhóis, quase dois anos (1754-1756), parte vultosa do encargo recaiu, de fato, sobre os religiosos. Outro fato a ser levado em consideração, contrário aquelas exigências, era a diminuição da população indígena, que foi dizimada pela epidemia de varíola, o que prejudicou bastante o potencial produtivo das missões religiosas. Evidentemente que para a empobrecida população do Pará e o seu falido governo, quaisquer que fossem as desculpas dos religiosos, considerados abastados, justificadas ou não, dificilmente soariam convincentes. Desse modo, o capitão-general, que via nas missões religiosas a causa da decadência e da pobreza do Grão-Pará, achou razoável submeter os religiosos e suas missões ao financiamento de parte considerável da expedição. Além disso, alguns eventos de pequena gravidade, envolvendo missionários jesuítas, chegaram ao Palácio dos Governadores. O governador logo suspeitou que os padres planejavam oposição ao Tratado. Quando os quartéis da fortaleza dos Pauxis pegaram fogo, um dos tenentes pediu ao missionário jesuíta da aldeia de Tapajós, Joaquim de Carvalho, empréstimo de dois índios para ajudar na reedificação, contudo o tenente teve resposta negativa. A fortaleza, ademais de ser edifício público, era o tipo de construção que o governo do Pará desejava preservar e multiplicar nas selvas, a fim de defender o território. Para piorar, outro missionário jesuíta, Lourenço Kaulen, da aldeia de Sumaúma, não só negou um carpinteiro indígena, que deveria trabalhar para a construção das embarcações da expedição, como também o puniu com castigos físicos severos, por ter o índio partido para o estaleiro sem autorização do padre.240 Vale ressaltar que, nesse contexto, grande parte dos índios enviados para a fundação de Macapá fugia. O governador e capitão-general, que ficou de março a maio de 1752 240 Cf. Carta de Mendonça Furtado para o Marquês de Pombal. Pará, 11 de novembro de 1752. In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. op.cit. Tomo I. p. 376. 149 na nova fundação, tomou conhecimento que dos sessenta índios enviados para a povoação, pouco mais de um terço havia fugido. A apatia com que os missionários, responsáveis em Macapá pelos índios, encararam as fugas, fez levantar a desconfiança de que os indígenas escapavam instigados pelos missionários. Assim, o governador demonstrou certo alarmismo, contudo lembrou-se de que a Companhia de Jesus era a instituição da qual o governo do Estado mais dependeria para organizar a viagem. No entanto, era notório que tal parceria se mostrava arriscada. Este procedimento dos religiosos na Amazônia era um sintoma do modo de proceder dos jesuítas no Estado do Grão-Pará, tradicionalmente voluntarioso e negligente com outras formas de autoridade. Em virtude do ocorrido, Mendonça Furtado tomou a iniciativa de pedir a intersecção de Pombal para sanar possíveis problemas. Primeiro, o governador sugeriu que ao marquês de Pombal que fizesse uma reunião com os provinciais das ordens religiosas em Lisboa para que admoestassem os missionários residentes no Grão-Pará e Maranhão para reprimir as fugas. Em seguida, Mendonça Furtado sugeriu a Pombal pedir ao rei emissão de ordem, para que tornasse oficial e obrigatória a cooperação e o auxílio dos missionários com a empresa demarcatória, dando ao governador amplos poderes para requisitar o número de índios que fosse necessário, até mesmo, de índios escravos dentro das aldeias religiosas,241 revogando provisoriamente, para esse efeito, as prerrogativas do Regimento das Missões. A resposta não tardou a chegar. Em 18 de maio de 1753, o próprio rei autorizou o ministro Joaquim Corte Real a obrigar os prelados de todas as ordens religiosas a dar suporte à comitiva, que seria alimentos e índios, conforme a necessidade da comissão, não importando justificativas dos religiosos. Surpreendentemente, o rei autorizou literalmente a retirada dos índios à força, no caso de negativa dos religiosos.242 Enquanto o aludido respaldo oficial não chegava ao Pará, Tomé Joaquim da Costa Corte Real cuidou em emitir uma carta circular a todas as ordens religiosas do Estado, informando-lhes que deveriam doar para o