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Universidade de Brasília Departamento de Antropologia Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social "Objetos intangíveis": Ufologia, ciência e segredo Rafael Antunes Almeida 2015 2 "Objetos intangíveis": Ufologia, ciência e segredo Rafael Antunes Almeida Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social, Departamento de Antropologia, da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social. Orientador: Guilherme José da Silva e Sá Brasília, 2015 3 "Objetos intangíveis": Ufologia, ciência e segredo Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Departamento de Antropologia, da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social. Aprovada por: __________________________________________________________________________ Prof. Dr. Guilherme José da Silva e Sá PPGAS/ Departamento de Antropologia – UnB __________________________________________________________________________ Profa. Dra. Marcela Stockler Coelho de Souza PPGAS/Departamento de Antropologia - UnB __________________________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Emanuel Sautchuk PPGAS/Departamento de Antropologia – UnB __________________________________________________________________________ Dr. Jayme Moraes Aranha Filho Pesquisador Independente __________________________________________________________________________ Prof. Dr. Emerson Alessandro Giumbelli PPGAS/ Departamento de Antropologia - UFRGS ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Fabrício Monteiro Neves PPGS/Departamento de Sociologia -UnB (Suplente) 4 Antunes Almeida, Rafael "Objetos intangíveis": Ufologia, ciência e segredo/ Rafael Antunes Almeida. Brasília, PPGAS, Departamento de Antropologia, Universidade de Brasília. 508 pp. Tese de doutorado – Universidade de Brasília , Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Antropologia Social. 2 Antropologia da Ciência. 3. Antropologia da ufologia. 4. Título. Brasília, 2015 5 Para os pesquisadores e pesquisadoras em ufologia que me receberam em suas casas, que dividiram as suas trajetórias comigo e que me acolheram nos espaços onde discutiam com intensidade o tema da vida extraterrestre. Para Ana Flávia Bedin, muito mais que amiga. Para Silvana Antunes, Omar Almeida e Henrique Antunes. 6 Agradecimentos Os agradecimentos que ora vos dirijo destacam no tempo não só as contribuições efetivas a este trabalho, mas também dão conta daqueles que, em tempos passados, deram-me condições para que pudesse me inclinar a um ou outro assunto da maneira mais confortável possível. Assim, agradeço ao Prof. Guilherme José da Silva e Sá, por acolher a minha pesquisa e por ter se empenhado de modo tão diligente na orientação do trabalho. Agradeço-lhe também pela amizade, incentivo, sensibilidade e por partilhar comigo um interesse pelos outros mundos possíveis além-Terra. Agradeço à Profa. Debbora Battaglia, com quem partilhei no inverno de Massachusetts tantas tardes de conversas e trocas. A Profa. Battaglia foi e continua sendo uma influência intelectual significativa e, acima de tudo, uma companheira neste já não mais tão solitário mundo da outer space anthropology, que tanto nos apraz coabitar. Agradeço ao Professor Eduardo Viana Vargas. Devo-lhe os cursos iniciais em Antropologia da Ciência e reputo o inicio do interesse pela disciplina à sua influência. Agradeço ao Prof. Renan Springer de Freitas, que há dez anos atrás iniciou-me no tema da sociologia, da filosofia e da história da ciência. Agradeço aos membros que aceitaram o convite para compor a banca formada para a avaliação desta tese. Desta feita, agradeço à Profa. Marcela Coelho, ao Dr. Jayme Aranha, ao Prof. Carlos Sautchuk, ao Prof. Emerson Giumbelli e ao Prof. Fabrício Monteiro Neves. 7 Gostaria de expressar a minha gratidão aos professores do Departamento de Antropologia da UNB, em especial àqueles que ministraram cursos dos quais tomei parte como aluno. Em particular, agradeço às professoras Marcela Coelho, Lia Zanotta, Soraya Fleischer e ao professor Carlos Sautchuk. Estendo os referidos agradecimentos aos demais funcionários da Universidade, pela gentileza e dedicação: Adriana, Branca, Cristiane, Jorge e Rosa. Agradeço o apoio financeiro concedido pelo CNPQ, que me forneceu uma bolsa de doutorado durante três anos e seis meses. Igualmente agradeço o apoio da CAPES, instituição que financiou a minha pesquisa durante o período de doutorado sanduíche nos Estados Unidos. Aos amigos que passaram pelo mesmo percurso que o meu, ofereço também os meus agradecimentos. Em especial, agradeço ao estímulo intelectual e pessoal de Márcio Adriano de Paula, Raoni da Rosa, Hugo Loss, Guilherme Moura e Potyguara Alencar. O caminho ficou mais interessante na companhia de vocês. Aos demais amigos do PPGAS estendo também os votos de gratidão: Graciela Froehlich, Aline Alcade Balestra, Carolina Perini, Chirley Mendes, Rosana Castro, Daniela Lima, Paulo Henrique Duques, Eduardo Nunes, Denise da Costa, Felipe Areda, Fabiano Souto, Mariana Lima, Sandro Almeida, Júlia Brussi, Gretel Echazú, Mariana Guimarães, Paula Balduíno, Fabíola Gomes, Yoko Souza, Fabiano Bechelany, Pedro Stoeckli, Simone Soares, Martiniano Neto, Paloma Maroni, Isabel Naranjo, Caio Csermak, Rodrigo Rocha, Rayssa Martins e Thaís Brayner. Ao Departamento de Sociologia e Antropologia da Mount Holyoke College, por ter me acolhido entre setembro de 2013 e março de 2014. Em especial, agradeço ao Professor Joshua Roth, que me forneceu todo o apoio necessário para realizar a pesquisa. Ao departamento de Letras Clássicas, agradeço pela cessão do escritório. De igual modo, agradeço aos amigos 8 Alessandro Angelini e Nicole Labruto, que fizeram a minha estada em South Hadley mais fácil e agradável. Agradeço também aos amigos do Laboratório de Antropologia das Controvérsias Sociotécnicas, na UFMG: Levindo Pereira, Daniel Alves de Jesus, José Cândido, Flora Gonçalves, Briza Toti e Eduardo Ferreira. Aos Profs. Luiz Abrahão, Tiago Ribeiro Duarte e Fabrício Neves, muito mais do que espectadores dos meus primeiros passos na filosofia e na sociologia da ciência, obrigado. Aos ufólogos e ufólogas sem os quais esta tese não poderia ser imaginada. O maior entre os meus agradecimentos se dirige a vocês, aos quais esta tese é dedicada. Citarei alguns nomes em seguida, e aqueles que não se encontrarem listados aqui, perdoem-me a displicência e sintam que a vocês também dispenso enorme gratidão. A Alberto Francisco do Carmo, pesquisador de inteligência arguta, companheiro de conversas nos últimos anos e meu orientador em matéria de ufologia. Agradeço as muitas horas de dedicação que você me emprestou e aos inumeráveis insights que, de algum modo, tentei trazer para este texto. A Ademar Gevaerd, que dispõe das virtudes do diplomata e do representante da ufologia brasileira, que com enorme gentileza me instruiu neste tema que para ele é toda uma vida. A Daniela Gevaerd (in memoriam), com quem me encontrei pouco, mas que nos contatos com a Revista UFO sempre me tratou com absoluta cortesia e eficiência. A Fernando Ramalho, pelo seu competente trabalho pela desclassificação de documentos militares e pela gentileza de ter me ajudado com a produção capítulo seis. A Fábio Gomes, pela delicadeza no trato e por me ajudar a me sentirfamiliar com os temas que lhe ocupam. A Fabio Jed, Marcelo Bonfim, Max Diniz, Dalila, Patrícia e aos demais membros do grupo EBE-ET, que me acolheram em suas reuniões. A Mônica Medeiros, por ter me recebido na Casa do Consolador e por ter me encantado com as 9 suas palestras. A Paulo Aníbal, ufólogo especialista em pesquisas de campo, que em um momento de grande turbulência não se importou em dividir comigo as suas preocupações. A Daniel Conrado, com que muito aprendi. A Rafael Amorim, quem me instruiu sobre os modos de operação da ufologia gaúcha. A Ernesto Bono, por sua perspicácia. A Toni Inajar, por ter recebido em seu trabalho para falar de ufologia e por ter me instruído no mundo das imagens ufológicas. A Wilson Geraldo, por ter escrito o belo relatório sobre o Caso Papuda e por ter me dispensado bastante cortesia. A Ubirajara Franco Rodrigues, por ter me apresentado uma entrada alternativa na ufologia. A Teresa Miranda, à época Secretária de Cultura do Município de Colares, que não só partilhou a sua experiência sobre os eventos ufológicos ocorridos na Ilha na década de 70, como me forneceu acomodação durante a minha estada no Pará. De igual maneira, agradeço a Dona Benevenuta, Seu Bacaba, Dona Maria, Hilberto Freitas, Juraci, Seu Diquinho, Maria Benedita, Moacir Santos, Profa. Terezinha, Dona Maria Nazaré, Seu Fernando, Tia Alda e Tio Chico, pelas entrevistas concedidas relativas aos ataques das luzes chupa-chupa. Aos companheiros Leonardo Martins, Daniel Pícaro, Rodolpho Santos e Arthur Maccdonal pela partilha do interesse pelo tema e por me salvarem de um monólogo. Agradeço à minha mãe, Silvana Antunes, e ao meu pai, Omar Almeida. Não fosse por vocês, eu não estaria escrevendo estas linhas. Esta tese é dedicada a vocês. Ao meu irmão, Henrique Antunes, por ser alguém com quem eu possa falar de qualquer coisa sem me preocupar em ser mal entendido. Aos queridos amigos Patrícia Mattar, Luciano Mattar, Tiago Moreira, Carolina Ilídia, Ivanildo, Cláudio, João Nicolato, João Ayub, Luís Barros, Nelissa, Bruno Soares, Anabelle Lages, Daniel Pondé, Ruy Harayama, Daniel Toledo, Nelissa, Luana Marota, Gustavo 10 Mangualde, Rodrigo Nippes, Rafael Barbi, Ely Jr., Leonardo Penna, Diogo Caminhas, Juliana Anacleto, Juliana Vasconcelos, Daniela Tartari, Alex, Marina Casaril, Alison Roberto, Simone Valentini, Jeimy e Robison. A Ana Flávia Bedin, companheira de exílio e de Desterro. Não fosse por seu apoio, companheirismo e gentileza esta tese não seria completada. 11 "Deus me livre de um dia completar algo. Este livro todo é apenas um esboço - não! Apenas um esboço de um esboço" Moby Dick, Herman Melville “Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?” O Alienista, Machado de Assis. 12 Resumo A presente tese consiste em um estudo etnográfico junto a um coletivo de ufólogos brasileiros. A etnografia acompanha os seus processos de construção de conhecimento, as relações destes pesquisadores com os seres extraterrestres e a luta pela desclassificação de documentos em posse do Estado. Os eixos mais significativos deste trabalho são a descrição dos processos de conhecimento forjados em relação a uma imagem particular de Ciência, a temática do segredo e o problema da desinformação. Argumenta-se que aquilo que define a ufologia, enquanto uma "disposição de relações" particular, é o fato de que para que ela perdure, o seu objeto, o seu tema principal, deve se manter nos confins da invisibilidade. Este texto constrói-se enquanto uma narrativa na qual se discutem o problema da “crença”, os processos de construção de evidência levados a cabo pelos ufólogos brasileiros e o modo como apresentam os seus dados. 13 Abstract This dissertation is the result of an ethnographical study of a Brazilian UFOlogists collective. The ethnography follows their processes of knowledge construction, the relation between the researchers and the extraterrestrials and the activism towards the disclosure of UFO documents possessed by the State. The main topics of this work are the way UFOlogists build their knowledge in relation to a certain image of Science, their elaborations on secrecy and the problem of disinformation. It claims that what defines Ufology, as a specific set of relations, is the fact that in order to persist, its objet, its main theme, must remain invisible. This work discusses the problem of "belief", the processes of evidence construction undertaken by the Brazilian UFOlogists and the ways they present their data. 14 Nomenclatura e siglas utilizadas “Fenômeno UFO”- Em diversas ocasiões valho-me da expressão fenômeno UFO, que é empregada de modo corrente pelos ufólogos para dar conta da variedade de eventos que estudam. Desta feita, a expressão concerne a toda gama de interações com extraterrestre que os pesquisadores se ocupam de estudar. Abdução- Transporte de um humano para dentro de uma nave extraterrestre. As descrições sobre aquilo que ocorre durante o processo e logo que ele termina contêm variações. Há propostas de substituição do termo por “sequestro”, para dar conta da feição violenta do evento. Agroglifos (em inglês: Crop Circles) - Desenhos de grandes dimensões feitos em plantações, visíveis a partir da visão aérea. Avistamento -Termo usualmente empregado pelos ufólogos para designar o contato visual com um óvni. CBPDV - Centro Brasileiro de Pesquisas de Discos Voadores CBU - Comissão Brasileira de Ufólogos CICOANI - Centro de Investigação Civil dos Objetos Aéreos Não Identificados CINDACTA -Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo COREG: Coordenação Regional do Arquivo Nacional EBE-ET - Entidade Brasileira de Estudos Extraterrestres NASA – National Space Agency NEUS - Núcleo de Estudos Ufológicos de Santa Cruz do Sul OVNI - Acompanho esta grafia quando o termo assim ocorre em documentos, livros ou recortes de jornais. Óvni - Objeto voador não identificado. (Os dicionários dão conta de que a palavra foi incorporada ao nosso idioma e figura como um substantivo masculino. Como "paroxítona" terminada em "i", a palavra é acentuada) UFO - Unidentified Flying Object 15 Sumário Introdução 18 Sobre como fui capturado pelos extraterrestres e nunca mais retornei para casa 18 Sobre o que fiz com os extraterrestres quando com eles passei a ter maior intimidade 34 Trabalho de campo 41 Organização dos capítulos 55 Capítulo 1 – Observações sobre um evento em ufologia 60 O aliciamento das redes virtuais 63 Um congresso temático 65 O local e a estrutura de apoio do congresso 70 Comercialização de Souvenires e profissionalização dos produtos 72 Mecenato 76 Impressões sobre o público e a noção de “experiência ufológica” 77 Abertura 82 As comunicações durante a convenção 83 O domínio do testemunho 84 O regime da comparação 96 Congressos ufológicos: rearticulação 101 Capítulo 2 - No itinerário dos congressos ufológicos 109 Acusações de plágio 110 Notas sobre as diferenças entre os congressos 117 7º Encontro Ufológico de Peruíbe 121 II Encontro de Ufologia Avançada do Distrito Federal 139 IV UFOPAX 146 Ufologia mística, ufologia científica e ufologia holística 153 Capítulo 3 – Estudo de um grupo ufológico: Os UFOs e a sua parcial visibilidade 158 A Entidade Brasileira de Estudos Extraterrestres: seus rastros e a sua oficialidade 168 Encontros com a EBE-ET 179 Parcial visibilidade 200 Capítulo 4 – Linhas de propagação: etnografia de uma revista ufológica 204 Grupos? 206 Mão dupla 208 Multiplicação de aliados209 As operações de redução 230 O trabalho de diferenciação 237 Aumento do fluxo de casos 245 Capítulo 5 – Os meandros de um caso ufológico: A operação Prato 249 Informe 255 “Combate-se melhor nas sombras” 261 Luzes e aparelhos 265 A Operação Prato 277 Um laboratório natural 284 16 Sobre pinguins e ursos polares: os experimentos extraterrestres 286 A médica da Unidade Sanitária de Colares 289 As relações entre a Doutora Wellaide e o Capitão Hollanda 293 As circunstâncias da morte do comandante da Operação Prato: outros elementos 294 As fotos da Operação Prato e a polêmica sobre as ampliações intencionais 299 Outros desdobramentos: a Operação Prato nunca terminou? 301 Capítulo 6 – A pragmática do segredo 307 Acobertamento ufológico: duas perspectivas 309 Efeito Miragem 310 O governo detém informações sobre extraterrestres 315 Alianças com extraterrestres 317 As naves alienígenas expõem a fragilidade dos sistemas de defesa aérea dos governos 320 Pânico: o efeito Orson Welles 322 Acusações de silenciamento no interior da ufologia 324 Abertura ufológica 330 O problema da “desinformação” 350 Contatados e desinformação 351 A pragmática do segredo 356 Capítulo 7 – “Não são produto desta lógica, são produto desta mágica” 360 Três instâncias de recusa 360 Ciência – (x) 372 Outras pesquisas 376 Ufologia e ciência: notas a partir do campo 390 Ufologia e o devir ciência 390 Ufologia, efedrina e o tio chinês: “Science is not always what scientists do” 394 Pasteur, os micróbios e os UFOs: a analogia com a história das ciências 400 Mímesis e diferença: da semelhança à “similitude” com a Ciência 402 Agroglifos: notas sobre um relatório de pesquisa 414 Vigílias 419 A pesquisa a partir das imagens ufológicas 423 Mariposas, ontologias alienígenas e seus quefazeres terrestres 431 Conclusão - “Radar[es] não têm crença” 445 Breves observações sobre uma pergunta 445 A noção de crença: um dispositivo de relação 454 Radar[es] não têm crença: um antropólogo entre ufólogos e cientistas 462 Ontologias alienígenas 473 Referências bibliográficas 477 Anexo I – Mapas 494 Anexo II – Fotografias 496 Anexo III – Documentos ufológicos – Mídia impressa 505 17 Lista de Figuras Figura 1 - Tipologia dos seres extraterrestres ............................................................................. 126 Figura 2 - Box informativo da Revista UFO .............................................................................. 157 Figura 3- Deslocamento do óvni avistado no Presídio da Papuda - DF ..................................... 175 Figura 4- Box de divulgação de um curso em Ufologia - Revista UFO ..................................... 225 Figura 5 - Convite aos tradutores - (Revista UFO) ..................................................................... 226 Figura 6 - Box informativo sobre a lista de e-mails da Revista UFO ......................................... 228 Figura 7- Carta de Brasília ......................................................................................................... 359 Figura 8 - Retrato falado de um extraterrestre (Alberto F. do Carmo) ....................................... 406 Figura 9 - Destaque para o recipiente usado pelo extraterrestre (Alberto F. do Carmo) ............ 407 Figura 10 - Reprodução em papel do recipiente (Alberto F. do Carmo) .................................... 408 Figura 11 - Amostra de solo que entrou em contato com um óvni. ............................................ 412 Figura 12- Foto de Óvni - Operação Prato .................................................................................. 429 Figura 13 - Foto de Óvni - Operação Prato (Depois do tratamento da imagem) ........................ 430 Figura 14 - Paulo Aníbal em Programa da Rede Record ............................................................ 433 18 Introdução Sobre como fui capturado pelos extraterrestres e nunca mais retornei para casa “Before they could even look at it, it was gone. So, I was thinking: by the time I get close to it, it would be gone. But the closer I got, I could see it wasn’t leaving. And I was becoming more and more fearful. And the guys in the truck were getting more and more scared. The closer I got... And they would yell at me to get away from them. Swearing at me to get back in the truck. I got close and I was looking at it, at about 45 degrees, and it was making a strange sound: a mixture of high frequency sounds and low frequency off the range of human hearing. A sound you could kind of feel rather than hear. The guys in the truck said: ‘it seems that something is about to happen’. And it wasn’t because I was getting dangerously close to this thing; it was also because, I think, there was some sort of electrical charge building up in the air that you could kind of sense. It got louder and started to move. I moved forward a little bit. The crew was yelling at me to get back to the truck. That was when my head was closed to the craft. And I think what happened next was some kind of charge that jumped from the craft through my body to the ground. And it was much more violent than you see in the movie. [...] The crew said it was more like I have stepped on a land mine, a grenade. It was a blast of energy that was so violent, that they immediately yelled at each other that it had killed me. [...] My body went flying to the air into this blast of energy.” (Depoimento do abduzido Travis Walton durante o II Fórum Mundial de Contatados – Curitiba, maio de 2014) A passagem anotada acima consiste em um trecho da palestra do lenhador e abduzido1 Travis Walton2, proferida no II Fórum Mundial de Contatados, ocorrido em Curitiba nos mês de maio de 2014. Nela, Travis descreve o exato momento em que, pela primeira vez, teria tido contato com seres alienígenas, que com a mesma violência que uma mina terrestre leva ao céu aquele que nela pisa, conduziram o abduzido para dentro da nave. Como se nota, não se tratava de um avistamento de pequenas proporções, tampouco estavam os condutores daquela nave dispostos a apenas deixarem-se fotografar. Ao contrário, o que se passou naquela floresta do Arizona, onde o lenhador trabalhava em tempo integral, foi 1Na economia conceitual da ufologia a abdução, – tradução para o português do termo em inglês ‘abduction’ – diz respeito à retirada de um ou mais humanos do local onde estavam e a sua permanência junto aos alienígenas. Vigoram entre os ufólogos diferentes explicações para os eventos desta classe, as quais, de modo geral, respondem à variabilidade empírica dos relatos. 2Travis Walton narra o episódio de sua abdução no livro Fire in the sky: The Walton Experience (Walton, 1996). O mesmo foi base para o roteiro de um longa metragem de mesmo nome. 19 aquilo que os ufólogos chamam de um “contato imediato de quinto grau”.3 Isto é, uma abdução levada a cabo por extraterrestres, que, de maneira não usual, ocorreu na presença de outras testemunhas humanas. A partir daquele momento, Travis, já desacordado, foi dado como morto e encontrado cinco dias depois em uma cabine telefônica. Diferentemente do que ocorrera com Travis Walton e com outros abduzidos como Betty e Barney Hill4, Antônio Vilas-Boas5, Debie Jordan6, e o casal Hermínio e Bianca, a minha captura seu deu de maneira menos abrupta. De modo diverso do que se passou com as pessoas citadas, cujos relatos são marcados por experiências de perda da dimensão do tempo (missing time), por lembranças sobre os eventos que ocorrem sob a forma de pesadelos, por visitas constantes dos abdutores e, em um dos casos, pela imposição de ter relações sexuais com umser alienígena, a ação dos extraterrestres sobre mim se deu de modo mais ameno. Se digo que fui capturado, isto não ocorreu porque eu tenha tomado parte em um caso abdução, no qual fosse eu o abduzido. Tampouco uso aqui a palavra captura em sentido alegórico, ou valho-me do termo como uma analogia. Se fui capturado pelos extraterrestres, ou melhor, pelo que posteriormente chamarei de ontologias alienígenas, o digo em referência à capacidade que estas tiveram de me aliciar para dentro de seus contornos – sempre abertos – , 3“Contato imediato” é a tradução do termo “close encounters”, cunhado por J. Allen Hynek (Hynek,1974) para categorizar as modalidades de interação com os extraterrestres.Segundo Hynek, seriam três as categorias para definir o encontro: “close encounters of the first kind”, quando não há interação entre o UFO e o “observador”; “close encouters of the second kind”, quando o UFO deixa registros do seu encontro com o “observador”; close encounters of the third kind”, são aqueles nos quais se reporta a presença de criaturas animadas. As categoria “encontro imediato de quinto grau” foi forjada posteriormente e diz respeito às situações nas quais um humano é conduzido para dentro de um aparato alienígena, com ou sem o seu consentimento. 4A abdução de Betty e Barney Hill é narrada no livro The Interrupted Journey: the lost hours“aboard a flying saucer”, assinado por John Fuller. (Fuller,1966) 5A abdução de Antônio Villas-Boas é considerada pelos ufólogos o primeiro caso do gênero na dita “Era Moderna dos Discos Voadores”. O evento se passou em 15 de outubro de 1957. 6Debie Jordan apareceu com o pseudônimo de Cathy Davis no livro Intruders: The incredible visitations at copley woods (Hopkins, 1987) 20 instando-me a produzir uma tese que, em relação a esta miríade de coisas, máquinas, seres e textos, ganha tons de mais um agenciamento7. Fosse comparado a Travis Walton, ou a qualquer uma das outras pessoas que citei acima, sob certo ponto de vista – afora a truculência empregada em certos casos – nossas diferenças de engajamento com o que doravante chamarei de “fenômeno UFO”8 permanecem aqui como como distintas em grau, mas não em natureza. Se de modos muito diferentes fomos abduzidos para dentro da ufologia, isto não impede que se afirme que dela, de algum modo, ambos tomamos parte. Ele, interpelado por uma nave aos 22 anos, enquanto dava conta de uma extenuante empreitada em uma floresta americana. Eu, aos 24, interessado pelos temas dos monstros, dos bestiários, dos cinocéfalos, dos centimanos9, dos dispositivos produtores de bestas, dos espaços limítrofes. Não quero aqui ocupar-me da reconstrução das origens do meu interesse pelo tema, mas devo notar que nos anos que antecederam a pesquisa sobre a ufologia eu havia trabalhado com o tema da produção da ciência – durante a graduação – e, posteriormente, durante o mestrado, empreendi uma discussão a respeito das fronteiras do humano a partir de duas controvérsias separadas no tempo e no espaço por quase quinhentos anos.10 7Defino o trabalho que agora se apresenta como um agenciamento, atendendo ao desdobramento que Gilles Deleuze e Félix Guattari fazem do termo no primeiro capítulo do livro Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (Deleuze & Guattari,1995) “Um livro tampouco tem objeto. Considerado como agenciamento, ele está somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que o livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender um livro, perguntar-se-á como ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora." (Deleuze & Guattari, 1995:3) 8A expressão “Fenômeno UFO” é usada de modo corriqueiro pelos ufólogos para designar desde as experiências de avistamentos de Objetos Voadores Não Identificados no céu, até casos de abdução. É um termo genérico para dar conta do conjunto de eventos abrigados na ufologia e, em relação aos quais, ela se constrói. 9Em Dom Quixote, Miguel de Cervantes faz referência a esta classe de bestas de cem mãos. 10 ALMEIDA, Rafael Antunes. O que é um humano? Anotações sobre duas controvérsias.2010.Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 21 Na primeira ocasião, lembro-me muito vividamente de ter me impressionado com os escritos do naturalista francês Geoffroy Saint-Hilaire relativos ao tema da teratologia, sobre a qual quem ignora o Livro das Maravilhas de Marco Polo ou os escritos de Plínio, o velho, diz que ele foi o “criador”11. Alguns anos mais tarde eu me via inundado com descrições de seres fantásticos e de viagens por paisagens povoadas por seres não-humanos. É que naquele tempo, por ocasião da pesquisa de mestrado eu me ocupava da leitura dos escritos de Bartolomeu de Las Casas e Juan Ginés Sepúlveda, que se digladiaram na primeira metade do século XVI sobre a questão de saber se os índios americanos eram humanos e se era justa a guerra para convertê-los. Sepúlveda, em particular, valia-se de um arsenal de autores para corroborar a tese de que os habitantes dos trópicos eram bárbaros por natureza e, para referendá- la, preenchia o texto com muitas descrições de historiadores da Índias Ocidentais nas quais toda a sorte de monstruosidades tomavam lugar. Se digo que o que me atraía nestas descrições não era a feição pitoresca dos relatos, não estarei mentido. De outra feita, interessava-me o fato de que, nestas máquinas de guerra montadas em salões e bibliotecas, se figurasse o outro como monstro, seja por meio de um retrato daquilo que lhe faltava – em relação a um humano (espanhol) – , seja pelos excessos – extremamente vis, extremamente bons, extremamente inconstantes – , seja pelas faltas, que podiam se manifestar nas virtudes, na inteligência ou na razão. Restava ainda o espaço das combinações, das formas parcialmente bestiais e parcialmente humanas, como é o papagaio sobre o qual Locke testemunha. (ver Agamben, 2004) Se a princípio restei impressionado com o tema da figuração do outro como monstro, logo me dei conta de que perseguir esta linha de investigação não me levaria muito longe. Isto é, 11À época eu vinha trabalhando há mais de dois anos com a controvérsia entre Georges Cuvier e Geoffroy Saint- Hilaire relativa à noção de bauplan, ou "planos de composição", sob a orientação do Prof. Renan Springer Freitas. 22 para pensá-la, de modo quase necessário, teria eu de ser socorrido pela noção de imaginário e com ela acatar a distinção moderna entre um baixo mundo – dos quefazeres mundanos, portanto, sociológico – e o universo das representações simbólicas 12 . Simplifico demais, dirão os partidários nesta noção, mas não o faço menos que os seus defensores apaixonados quando traduzem tudo ao domínio das representações. Estimo que caso cedesse à noção de imaginário, estaria então capturado pelo dilema que Jorge Luís Borges percebe no monstro Baldanders, o “Já outro”. [...] a estátua lhe diz que é Baldanders e assume formasde um homem, de um carvalho, de uma porca, de um salsichão, de um prado coberto de trevos, de esterco, de uma flor, de um ramo florido, de uma amoreira, de um tapete de seda, de muitas outras coisas e seres e depois, novamente, de um homem. Finge instruir Simplicissimus na arte de “falar com as coisas que por sua natureza são mudas, como as cadeiras e os bancos, as panelas e os jarros” ( Borges,2011:39) O monstro polimorfo Baldanders encerra em si um tropo. Trata-se de um ser multiforme, um polimorfo, capaz de se transformar em diferentes formas, mas ao fim da demonstração, volta à forma original. É, mais uma vez, o monstro que tudo pode ser, mas, “outra vez”, homem. O artifício da noção de imaginário não opera de modo dessemelhante ao proceder de Baldanders: a multitude de formas de existência sobre a qual se elabora, ao final, é reduzida a um traço humano, a uma projeção. Ainda que agora recuse este movimento, devo dizer que durante o processo de captura pelas ontologias alienígenas, queria fazer delas material para o tema das alteridades radicais, ou melhor, das alteridades extraterrestres. Eis a suma deste argumento que, se um primeiro momento figurou como uma inspiração para a pesquisa que ora vos apresento, à medida que 12Para ver uma das mais bem acabadas críticas à noção de representação ver “Lines: a brief history” (Ingold,2007). Alternativamente, ver a conclusão de Diferença e Repetição (Deleuze,1998). Quando se adere a uma tipo de agenda que coloca a representação simbólica como matriz para a interpretação das afirmações de nossos interlocutores, estamos transformando estas noções, ou melhor, estes dispositivos com os quais operamos, em ferramentas de análise. (Ver Strathern,1988). A noção de um mundo de símbolos que gravita sobre nós, portanto, tem melhor “caimento” como uma antropologia do mundo euro-americano, do que como ferramenta heurística que nos permitiria entrar em diálogo com outros modos de existência. 23 passei a tomar parte do universo ufológico terminei dele me distanciando: tudo se passaria como se a figura do extraterrestre não fosse outra coisa que a expressão moderna de um sujeito hiper tecnológico, que ou bem resultava das ansiedades do mundo pós-guerra, ou prestava-se a figurar como uma unidade de um par de oposições entre o selvagem e o civilizado. A figura do extraterrestre não seria nada além de um outra forma de imaginar a alteridade, uma vez que projetava a imagem de um ser que era dotado de aparatos mais rápidos e mais precisos do que aqueles dos quais dispõem os euro-americanos – e, por isto, precisa ter a sua origem fora da Terra – , em compasso com outra alteridade moderna, qual seja, o bárbaro, o homem do neolítico. Nesta versão, esta forma de alteridade se manifestaria na imagem do “excessivo” que recai sobre os extraterrestres – em particular, no domínio das técnicas – passível de ser contrabalanceada pela ausência de um senso moral. Caso desejássemos colocar as imagens do bárbaro e do alien em oposição, bastaria apontar para a ausência de tecnologia combinada a um arguto senso moral. O argumento que aqui acabo de balizar foi confeccionado por Jean-Bruno Renard, no artigo intitulado The wild man and the extraterrestrial: two figures of the evolucist fantasy (Renard,1984) Renard observa que: “The thrust of our argument is that the image of the Extraterrestrial is an inverse image of the image of the Wild Man, and that both share the attribute at this point in time of belonging to the same mythology: the mythology of evolution.” (Renard,1984:64) Nos termos do autor, portanto, o selvagem e o extraterrestre, dispõem-se como figuras inversas, mas que ocupam posições em um mesmo contínuo, uma vez que “[t]hey are the two limiting figures to Werstern man: the wild man representing the inferior limit and the extraterrestrial representing the superior limit”. (Renard,1984:74) Tudo se passaria como se a partir do estudo destas “figuras”, pudesse o pesquisador “ler” certo modo como se conforma na 24 cosmologia ocidental a noção de evolução. Isto só seria possível, no entender do autor, porque “... extraterrestrial societies are projections in celestial space of inhabitants of paradisiacal islands.” (Renard,1984:77), representações que desenham no horizonte extremos, a caminho dos quais, figura então o humano. Tomei contato com o artigo de Jean-Bruno Renard a partir de uma referência que a ele faz Jayme Aranha, em sua dissertação de mestrado.13 Em relação ao artigo do sociólogo francês, entretanto, tenho uma relação ambivalente. Se por um lado, Renard demonstra grande erudição, pois cita com proficiência obras clássicas e de ficção científica nas quais as figuras do selvagem e do extraterrestre ocorre, ao mesmo tempo em que constrói um argumento bem desenhado, por outro lado, o autor de The Wild Man and The Extraterrestrial, em suas interpretações, não faz do extraterrestre outra coisa que um elemento de uma mitologia moderna. Deste modo, se a leitura de seu texto serviu-me de gatilho para estabelecer uma ponte entre os interesses que eu vinha alimentando e o tema da vida extraterrestre, a quadratura na qual ele se inscrevia, para mim, resultava em certo desconforto. Não o digo apenas pela ausência de uma explanação sobre aquilo que, naquele texto, se compreendia como “mitologia", mas também pela construção de todo o seu argumento sobre a noção de representação social. Guardadas as diferenças, trata-se de movimento homólogo àquele que Roland Barthes, no comentário que tece sobre os marcianos, anota nas Mitologias: Provavelmente, se um dia desembarcássemos em Marte tal como o construímos, não encontraríamos senão a própria Terra, e perante estes dois produtos de uma mesma História, não saberíamos reconhecer o nosso. Pois para que Marte tenha alcançado o saber geográfico, é preciso que tenha tido também o seu Estrabão, o seu Michelet, o seu Vidal de la Blanche, e por conseguinte, também, as mesmas nações, as mesmas guerras, os mesmos cientistas e os mesmos homens que nós.”(Barthes, 2001:33) Barthes prossegue: 13ARANHA, Jayme. Inteligência extraterrestre e evolução: As especulações sobre a possibilidade de vida em outros planetas no meio científico moderno. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, 1990. 25 Marte não é apenas a Terra, é a Terra pequeno-burguesa, é o pequeno domínio da mentalidade cultivado (ou expresso) pela imprensa ilustrada. Mal acabara de se forma no céu, Marte foi assim alinhado pela mais forte das apropriações, a da identidade. (Barthes,2001:34) Não fosse este desconforto, era a ufologia um pasto límpido para que eu pudesse estender e elaborar estes tipos de considerações. Não tivesse atinado para aquilo que o argumento de Renard deixa implícito, dos extraterrestres teria feito uma forma dos modernos imaginarem a si mesmos sob a forma de monstros: sem pelos, com largas caixas cranianas, minorados em suas funções físicas, integrados completamente às máquinas, em suma, tratar-se-ia sobretudo de uma forma de organizar o futuro sem sair do presente. Os extraterrestres seriam, em última análise, a forma como encontraram para pensar a si mesmos e, de modo complementar, a via de acesso para que se fizesse deles uma antropologia: suas imagens, seus projetos, suas obsessões, resultariam em expressões de tantas outras coisas. Aprendi com Guimarães Rosa, que o mundo é um rio com mais de duas margens. Estimo que seja possível entãohabitar estas outras, ou ainda, nelas permanecer sem maiores prejuízos. Antes de apresentar como tentei fazê-lo, cumpre dizer que, interessado no tema dos monstros, vi na discussão concernente à vida extraterrestre a possibilidade de prolongá-la, fosse por meio do estudo do modo como a ficção científica – na literatura e no cinema – produz esta classe de quimeras; fosse pelas descrições dos ufólogos, especialistas no tema alienígena, sobre a maneira segundo a qual o além-Terra é povoado por criaturas de raças, feitios e intenções dirigidas aos humanos muito diversas entre si. Como já observei, estimei desde muito cedo que por um outro caminho, eu correria o risco ser capturado pela intenção de pesquisar as equivalências entre figuras extraterrestres e as ditas projeções humanas. Inicialmente, tateava um modo de conseguir enquadrar o tema extraterrestre dentro daqueles interesses que eu havia nutrido: os estudos sociais da ciência e a temática da produção 26 dos monstros. Tratei de proceder com a leitura da bibliografia disponível sobre o tema. Entre os trabalhos, proliferavam muitos estudos que, ou bem se auto classificavam no domínio das pesquisas de folclore ou, de maneira diversa, eram destes arremedos não confessos. Estes artigos pouco ou nada me inspiravam. Eram, via de regra, feitos à maneira de interpretações genéricas acerca do “fenômeno UFO”. Ocupavam-se de tentar rastrear a origem das “histórias” sobre visitantes extraterrestres e, sobretudo, de comparar as narrativas que em relação a eles se faziam com outras narrativas do dito folclore, anotando as regularidades e também as diferenças. Este é o caso, por exemplo, do texto On the nature and origin of flying saucers and little green men (Saranov,1981), que declara que “...flying saucers and little green men do not exist in reality” (Saranov,1981:165) e que era necessário pensar os extraterrestres e as suas naves como símbolos, todavia não explicados. Via de regra, a maior parte do corpo de trabalhos produzidos a respeito da questão extraterrestre, se não enunciava os seus postulados de modo tão peremptório como fez Saranov, de algum modo partia do princípio de que aquilo que importava era o fato das narrativas sobre estes seres, suas naves e seus modos de proceder, configurar um tipo de mitologia moderna que era preciso descrever.14 Era, na visão destes autores, necessário rastrear as origens do “fenômeno UFO”, anotando em seus capítulos cada passo que terminaria desaguando na configuração atual. A obra Watch de Skies: A chronicle of the Flying Saucer Myth (Peebles,1994), conquanto tenha-a tomado como uma referência em diversas partes desta tese – pois se configura como um estudo acurado e atencioso às fontes documentais – , é a realização exata das observações que fiz no parágrafo acima. Cada um dos capítulos do livro se desenha de tal forma a mostrar não só como a ufologia resulta de uma composição de elementos heteróclitos, como contém, em suas 14Este é o caso, por exemplo, do livro Angels and Aliens: UFO’s and the mythic imagination. (Thompson,1993) 27 últimas páginas, um resumo de cada elemento da dita “mitologia viva”. A proposta de Peebles se configura como uma tentativa de produzir uma história social dos discos voadores.15 A assunção de fundo que organiza este e outros estudos, é que a questão extraterrestre deve ser alvo de um extensivo estudo que, rastreando-lhe as origens, é capaz de mostrar como ela é uma construção social. Assumem, de antemão, que a tarefa do pesquisador é fornecer ao caráter furtivo do fenômeno – como se verá nas linhas seguintes – uma explicação, seja pelo traçar de homologias como eventos que reputam de natureza similar, seja por uma sócio-história. Para estes estudos, o trabalho de Carl Gustav Jung, intitulado Um mito moderno sobre coisas vistas no céu (Jung,1988) é uma referência quase incontornável. Jung não nega a priori que os testemunhos individuais possam ter uma base causal equivalente, no entanto reconhece nos diversos avistamentos que enchiam os jornais na década de 50, não a operação das máquinas extraterrestres, mas a possível resposta à tensão emocional diante da situação de calamidade coletiva vivida na Guerra Fria. Tal tensão, dificilmente poderia ser integrada conscientemente, o que resulta na criação de boatos universais das massas (Jung,1988), matizados em um frenesi de observações de objetos redondos, em formato de disco. Os objetos extraterrestres evocam, na qualidade de representações, a imagem arquetípica da mandala, do redondo, símbolo da totalidade psíquica, que trabalha no sentido de “unir opostos internos” (Jung,1988). A mandala, descobre Jung depois de analisar um sem número de casos de sonhos, é um tipo de arquétipo ordenador de situações caóticas, o que resulta as visões de discos voadores em forma redonda.16 15Há trabalhos acadêmicos no Brasil que se dedicam a uma empreitada similar àquela que desenvolve o americano, como é a dissertação de mestrado de Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos, intitulada A invenção dos discos voadores. Guerra Fria, imprensa e ciência no Brasil (1947-1958), e a também dissertação de mestrado de Milton José Giaconeti, intitulada As luzes no céu e a Guerra Fria: do limiar do conflito ao imaginário dos discos voadores (1945-1953). 16Leonardo Breno Martins descreve do seguinte modo o teor da interpretação fornecida pelo texto de Jung: “Jung (1958/1988) salienta que, na ausência de um símbolo integrador mundano (dado o interesse político na manutenção da Guerra Fria) ou metafísico (com a fé esquecida pelo racionalismo), criar-se-iam condições para o surgimento, alimentado pela tensão psíquica, de um símbolo de integração ‘novo’ e estranho à consciência. O símbolo emergiria 28 Cristopher Patridge (Patridge,2004) passa com muita proficiência em revista a demonologia cristã, comparando as imagens que aí tem lugar àquelas dos aliens, que passam a aparecer a partir de certo período. O autor consegue entrever nas narrativas o processo de emergência de um tipo de demônio tecnológico. Digno de nota é que se o trabalho de comparação das similitudes entre as imagens não entrevejo qualquer obstáculo, quando as associações passam a ser usadas para conduzir o leitor à percepção de que elas tem por base os mesmos fenômenos – quando se fala de aliens e discos voadores, nunca se poderá estar falando realmente deles – já não posso mais acompanhá-lo. Observações como “ What aliens stories do show – loud and clear – is that we need something to scream out” (Patridge,2004:11), terminam esvaziando as ontologias alienígenas, na medida em que nelas tenta-se perceber nada além de identidades. Some-se ao tratamento da ufologia e da pesquisa sobre vida extraterrestre tentativas de reduzir todas as descrições sobre os seres, encontros e movimentos, a outras variáveis. Antes de tudo o que se faz é impor uma lógica da redução à diversidade matizada nas ontologias alienígenas. O trabalho de David Drysdale, que leva o título Alienated histories, Alienated futures (Drysdale,2008), o faz a partir de uma espécie de rediscussão de um dos mais famosos casos de abdução na história da ufologia, envolvendo o já mencionado casal Betty e Barney Hill. De acordo com o autor, o evento da abdução, quando estes retornavam de uma viagem de férias no Canadá, não seria outra coisa além de um modo de tematizar as relações raciais – Barney era negro e Betty era branca –, tendoem vista que quando as raças de Ets apareceram, as diferenças entre raças terrestres teriam sido borradas. de forma não integrada, não reconhecido pela consciência como uma conteúdo psíquico, mas projetado como um evento externo. (Martins,2011) 29 Michael Sturma, em Aliens and Indians: A Comparison of abduction and Captivity Narratives (Sturma, 2002) repete o mesmo procedimento, também lidando com narrativas colocadas sob comparação. Mas desta vez o que se faz é analisar as coincidências entre narrativas de cativeiro de pessoas raptadas por nativo-americanos no século XVIII – que mais tarde se desenvolvem em um gênero literário –, e as narrativas sobre abdução que emergiram a partir de 1947, com vistas a verificar que tipo de elementos elas evocam: The central metaphor of both Indian captivity and Alien Abduction narratives concerns crossing frontiers and forced experience of another culture. (Sturma,2002:321) Note-se que aqui, além de comparar narrativas que por vezes têm o status abertamente declarados de ficcionais com relatos de experiências de dor e sofrimento – como via de regra aparecem nas incisões operatórias seguidas de implantes alienígenas, raptos no meio da noite e experiências com material reprodutivo – Sturma faz delas metáforas. As histórias concernentes aos encontros com extraterrestres manteriam a sua validade no campo metafórico, mas, quando sobre elas se debruça o pesquisador, seria preciso então ancorá-las na Terra. Vale lembrar que esta operação, ainda que guarde a mesma tentativa de reduzir tais fenômenos a elementos subjacentes – por vezes, o motivo da comparação – se difere da posição de alguém como Ronald Grunloh, que em artigo publicado na revista da Royal Anthropological Institute no ano de 1977 (Grunloh,1977), procede com uma inversão da tese atualmente conhecida como “Hipótese dos alienígenas do passado”, segundo a qual inúmeros eventos históricos, desde a “Carruagem de Fogo” do profeta Ezequiel, até a construção das pirâmides egípcias, tiveram a participação de seres alienígenas, ou resultaram de sua aparição. Desta forma: What I propose is a counter-argument: rather than ascribing ancient religious phenomena to the land of flying saucers, to explain the sighting of flying saucers as experiences of a kind similar to the religious visions of the past. (Grunloh,1977:1) 30 Ora, de acordo com o autor, as visões de discos voadores, da mesma forma que as experiências religiosas, não resultariam da participação de qualquer tipo de entidade alegada, mas sim de estados alterados de consciência, causados por um dos elementos a seguir: cansaço, meditação, consumo de psicotrópicos, privação do sono ou stress severo. (Grunloh,1977). Afora estas abordagens que, de uma ou outra forma, se voltaram para o tema da vida extraterrestre tratando-o como um campo discursivo, quando comecei a tatear o tema da ufologia, havia ainda outras matrizes na academia que se dedicaram a pensá-lo. Eu me refiro àqueles estudos que se debruçavam sobre o tema da pesquisa científica sobre a vida extraterrestre, isto é, sobre as iniciativas que, levadas a cabo por agências de pesquisa do governo americano, valiam-se de meios como mensagens enviadas a bordo de naves (Aranha,1990), a captura de emissões de rádio do espaço (Aranha,1990; Dorneles Barcelos, 1993; Dick,2006) e, mais recente, do estudos dos extremófilos17. (Helmreich,2009) Ainda no domínio das ciências sociais, grande parte da literatura que se dedicara ao tema ocupou-se de estudos sobre os Novos Movimentos Religiosos ou das science-based religions. Susan Palmer escrevera uma etnografia sobre o movimento Raeliano (Palmer,2004), tema que também foi alvo de artigos assinados por Debbora Battaglia (Battaglia, 2005; 2007). Desconsideradas as dissonâncias teóricas, a relação com o trabalho de campo e armação destas pesquisas, elas se inscrevem na linha inaugurada pelo livro When prophecy fails (Festinger et al, 1956), na medida em que o seu objeto principal são grupos religiosos. Somam-se a estes casos a pesquisa de Diana Tumminia relativa ao grupo Unarius Academy of Science (Tumminia,1998).18 17Stephan Helmreich, que escreveu uma etnografia sobre a pesquisa de biólogos marinhos com os extremófilos, define-os como “lovers of extremes” (Helmreich,2007:1), isto é, microrganismos que habitam ambientes cujas condições de temperatura, pressão ou salinidade são extremas. 18No capítulo três entabulo uma discussão com o tema das “science-base religions” e comparo as suas descrições com o caso de um grupo ufológico. 31 Em outro diapasão, encontramos os trabalhos de Susan Lepselter (2005) e Jodin Dean (1998).19 A obra da primeira talvez seja um dos melhores textos etnograficamente informados relativo ao “fenômeno UFO”. Em seu trabalho, que resulta de uma etnografia junto aos grupos de suporte e apoio mútuo às pessoas abduzidas e, paralelamente, de uma cidade nas proximidades da Área 51, a autora segue as conexões que os seus interlocutores em campo fazem entre grandes narrativas sobre os UFOs e diversas teorias conspiratórias, aos aspectos ditos “banais” da vida. Não tão banais, comenta a autora, desde o ponto de vista dos sujeitos que narram sensações de deslocamento e desempoderamento em relação ao que chama de “powers-that-be” (Lepselter, 2007). Não tão banais porque as pistas sobre o acobertamento20, que alimentam a intuição de que algo lhes escapa, vivem nos detalhes. “Detalhes” que a autora nos conta em um texto absolutamente poético e que se matizam na impossibilidade de se conseguir uma carteira de motorista, na perda de parentes ou em uma doença inesperada. O que torna este trabalho interessante, merece dizer, é que autora não reduz as experiências com UFOs ou os casos de abdução a epifenômenos destas circunstâncias. Os UFOs, na obra de Lepselter, não são “apenas” a linguagem através da qual estes sentimentos de deslocamento ganham expressão: In the stories I tell later, the uncanny occurs not as an articulated response to oppression in any specific historical moment or against any specific group. Instead it speaks of the hair-raising feeling of a creeping hegemony, a forgotten trauma distilled into the air, the terrible conviction that something isn’t right. (Lepselter, 2007:35) Digo “apenas” porque, uma leitura cuidadosa de sua tese, mostra que se em alguns trechos a autora afirma que “I am not suggesting that UFO abduction is a symptom for a more 19Nos capítulos que seguem em mais de uma ocasião entro em diálogo com os trabalhos das autoras. Desta feita, entendi que para efeitos da introdução deveria fazer uma exposição mais econômica. 20Dediquei um tópico completo no capítulo seis ao tema do acobertamento.32 real trauma, like child sex abuse” (Lepselter,2007:56), em outros, termina fazendo o que, em algumas páginas antes, havia renunciado: At UFO abductee meetings it’s as if all the hurts of a life have collected into this one gigantic unbelievable trauma of alien abduction and become organized there, under its name: abduction, the biggest imaginable rip-off in the whole wide universe. (Lepselter,2007:110) O trabalho de Jodi Dean, intitulado Aliens in America: Conspiracy Cultures from outerspace to cyberspace se insere mais fortemente no campo dos estudos culturais do que propriamente na antropologia. Segundo Dean a ufologia e os episódios de abdução que se tornaram populares nos Estados Unidos, são uma espécie de veículo para pensar a paranoia e a desconfiança. * Ao passar em revista a literatura supracitada, embora encontrasse muitos elementos com os quais, durante a escrita da tese terminei entrando em diálogo, eu ainda ressentia da leitura de um trabalho que fizesse o nexo entre a pesquisa em ufologia e a antropologia da ciência.21 Por certo, muitas das pesquisas citadas, obrigatoriamente, continham notas sobre o modo como o conhecimento em ufologia é construído. Entretanto, foi só no conjunto de artigos assinados por Pierre Lagrange (Lagrange,1988;1990:2005) e na tese de doutorado defendida por Anne Cross (Cross,2000) que encontrei a ocasião para desenvolver meu projeto de pesquisa. Lagrange, contornava completamente o problema da representação social e, atencioso ao evento mais clássico que a ufologia já conheceu – o episódio envolvendo Keneth Arnold, em 1947 – colocava-se a questão concernente ao problema de como se constrói um caso ufológico. 22 Anne Cross, por seu turno, havia produzido um estudo etnograficamente informado acerca da 21Nesta época eu ainda não havia tomado contato com a dissertação de mestrado de Daniel Pícaro (Pícaro,2007), que também versa sobre o tema. 22"Que se passe-t-il dans une affaire d'ovni, quelles sont les stratégies mises en place par leurs passionnés, et leurs détracteurs, pour construire, ou déconstruire la réalité de cet objet ? ”(Lagrange,1990:3) 33 comunidade ufológica nos Estados Unidos dando especial ênfase às relações entre este domínio e a Ciência. 23 Como mostrarei no capítulo sete, embora Cross tivesse produzido uma pesquisa repleta de insights sobre a relação entre os ufólogos e aquilo que ela designa por mainstream science, seu trabalho assumia em alguns momentos que a ufologia e a Ciência eram “instituições” com fronteiras definidas, ademais, congelava uma imagem de Ciência que, embora não resultasse do desconhecimento da literatura nos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, parecia desconsiderá-la. Ainda assim, a partir de seu trabalho e dos textos de Pierre Lagrange, decidi-me por desenhar um projeto de pesquisa que, de fato, se baseasse no trabalho de campo junto aos ufólogos brasileiros e que não fosse, simplesmente, um estudo do modo como os ufólogos se organizam. Neste ponto a formação que tivera anos antes nos estudos de ciência, de certa forma, motivou um tipo de detour em relação às pesquisas que se desenhavam com o objetivo de descrever a ufologia enquanto mitologia moderna, sinalizando para uma mudança destes aspectos para a própria prática dos ufólogos. Isto é, seguindo a pista de Lagrange, eu passei a me interessar pela questão relativa à forma como os ufólogos constroem a ufologia e, atencioso aos comentários de Cross, estimei que o tema da “evidência” da ufologia teria bom rendimento. A partir destes dois trabalhos, portanto, consegui amarrar o interesse pela pesquisa relativa à ufologia ao domínio dos estudos da ciência e da tecnologia. O movimento mostrava-se não apenas possível, como aparentemente profícuo, considerando que o volume de pesquisas sobre as ditas paraciências no próprio campo da Antropologia da Ciência e da Tecnologia era, e estimo que ainda continue sendo, pequeno relativamente a outras áreas de concentração. 24 23Neste momento eu já havia tomado contato com o texto de Ron Westrum, intitulado Social Intelligence about anomalies (Westrum,1977) mas não lhe dispensei muita atenção. 24No capítulo sete esboço alguns motivos que suspeito participarem nesta espécie de desinteresse pelo tema. 34 Sobre o que fiz com os extraterrestres quando com eles passei a ter maior intimidade As observações que forneci nas linhas acima, feitas ao modo de um esboço de trajetória de pesquisa, almejam dar ao leitor os subsídios para compreender aquela que seria a atitude que eu adotaria em momentos futuros em relação às pesquisas sobre o tema da vida extraterrestre e, em particular, da ufologia. Devo notar que as alterações que a ela se impuseram, resultam, como é de se esperar, não só dos encontros no bojo da academia que nos anos passados se fizeram, mas também do aumento da intensidade do contato com os ufólogos em campo. Originalmente, escrevi uma proposta que, reconhecendo a impossibilidade – teórica, mas também pragmática – de definir o campo como o estudo da ufologia como um grupo25, acatava a observação de Bruno Latour (Latour,2005) segundo a qual importava menos definir um grupo de antemão, do que estar atento “aos seus processos de formação”. (Latour,2005)26 Desta feita, o projeto se definia como uma tentativa de seguir na prática os esforços rotineiros de investigação sobre o “fenômeno UFO”. Definia assim o campo menos como um espaço localizado a partir do qual eu trabalharia, mas, sobretudo, pelos encontros com os ufólogos que se dariam durante o seu próprio trabalho de campo. Naquele momento, o nexo que eu havia encontrado entre a pesquisa que faria e a antropologia da ciência não era outro senão a tentativa de descrever como um grupo de paracientistas constrói pragmaticamente as suas evidências e provas, movimento que eu percebia como homólogo ao trabalho que o domínio dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia vinha realizando com cientistas desde a década de 70. Havia, entretanto, uma 25 Abordo este ponto com maior profundidade no tópico seguinte. Ademais, em vários momentos da tese elaboro a questão de modo mais detido. 26“To sum up, whereas for sociologists the first problem seems to settle on one privileged grouping, our most common experience, if we are faithful to it, tells us that there are lots of contradictory group formations, group enrollment—activity to which social scientists are obviously crucial contributors. The choice is thus clear: either we follow social theorists and begin our travel by setting up at the start which kind of group and level of analysis we will focus on, or we follow the actors’ own ways and begin our travels by the traces left behind by their activity of forming and dismantling groups.” (Latour, 2005:29) 35 diferença: os coletivos com os quais eu me envolveria, embora falassem da Ciência em diversas ocasiões, nem sempre se definiam, ou ainda, eram tomados como científicos. Posteriormente, submeti o projeto original a uma reformulação, pois desde o início de 2011 eu já vinha trabalhando junto aos ufólogos27 e durante a pesquisa encontrei na expressão “É real?” um tipo de imagem a partir da qual organizaria o meu trabalho. Naquelemomento eu me interessava fortemente pelo tema das experiências extraordinárias na antropologia – fossem elas experimentadas pelo pesquisador ou pelos seus interlocutores em campo – e, seguindo a pista de Susan Lepselter, reconheci nesta expressão a pergunta que inaugurava as condições de possibilidade do saber ufológico. Logo, na medida em que os ufólogos se colocavam diante um evento ufológico – fosse ele uma abdução ou um avistamento – terminavam colocando para si a referida pergunta “É real?”. Esta terminava agindo como um dispositivo, na medida em que comportava uma injunção à explicação. Ora, diante deste argumento entendi que a minha tarefa na tese deveria se desenvolver de tal modo que eu contornasse o problema da realidade dos discos voadores e seguisse as “explicações” que resultavam deste questionamento primeiro. Para tanto, eu me apoiava na discussão que Eduardo Viveiros de Castro fizera no artigo O Nativo Relativo (2002), no qual importava menos saber se eram os pecaris humanos, mas, de acordo com o autor, “[e]m que agenciamentos ela pode entrar? Quais são as suas consequências?”28 (Viveiros de Castro,2002:136) Também foi fundamental para que eu me engajasse com o trabalho a partir desta matriz, a observação que Debbora Battaglia fazia na introdução do livro E.T Culture: Anthropology in outerspaces (Battaglia, 2005), segundo a qual as pesquisas referentes ao tema da vida extraterrestres colocar-se-iam em melhor posição se seguissem o que a autora chama de “E.T effect” (Battaglia, 2005). A atenção ao “E.T effect” sugere uma mudança 27No tópico seguinte dedico-me a descrever as situações de campo a partir das quais esta tese foi escrita. 28Na conclusão retomo este texto para discutir o tema da crença. 36 de posição das representações sociais sobre a vida fora da Terra para aquilo que os extraterrestres provocam ou ensejam. Convém aqui resumir a mudança de posição que esta reformulação do desenho primeiro da pesquisa implicava: se antes o mote do trabalho, na esteira da discussão de Pierre Lagrange, era a tentativa de discutir de que forma as noções de prova e evidência são construídas na ufologia, neste novo momento o problema assumia outros contornos, na medida em que se definia pela tentativa de pensar de que modo a pergunta “É real?” permitia aos ufólogos construírem a sua disciplina.29 Esta segunda solução me parecia bastante conveniente. Com ela era possível passar ao largo da questão da crença, que de modo implícito ocupava grande parte das abordagens sobre o tema extraterrestre e, de modo correlato, livrava-me de escrever mais uma tese sobre as “representações sociais dos ufólogos”. A questão que eu perseguia, embora parecesse promissora, deixava entrever duas dificuldades. Na forma como estava formulada, a tese se esquivaria de fornecer “explicações sobre o fenômeno extraterrestre”, fossem elas de qualquer natureza. Mas, por outro lado, se há algo que se configura como um traço absolutamente central na ufologia é exatamente o trabalho rotineiro de oferecer as referidas explicações. Estimo que esta tenha sido a dificuldade central daquela última formulação da pesquisa que, não fosse pelas observações de Marcela Coelho, Jayme Aranha e Guilherme Sá teria passado sem percebê-la. Estas apontavam para uma disjunção entre o argumento que me conectava à ufologia e, em 29Ao qualificar a ufologia valho-me de forma intercambiável dos termos disciplina, domínio do saber e campo do saber. As expressões, sem nenhuma dúvida, dispõem de significados totalmente diferentes e sei que o seu uso alternado evidentemente causa confusões. Peço ao leitor(a), entretanto, que os leia sem neles imputar a carga conceitual que carregam, seja porque aparecem nos trabalhos de Michael Foucault ou Pierre Bourdieu. Estas ocorrências diversas de qualificativos não correspondem, desta forma, à abordagem que desenvolvo ao longo de minha pesquisa. De modo totalmente diverso daquilo que os termos compreendem, talvez a expressão que melhor qualifique a ufologia, nos termos que esta tese com ela se relaciona, seja uma "disposição de relações". O termo acompanha a expressão "assemblage of relations", empregada por Axel Morten Pedersen no artigo "Islands of Nature: insular objects and frozen spirits at Mongolia" (Pedersen,2013) 37 última análise, a própria descrição do trabalho dos ufólogos. Em uma palavra, a recusa em responder à questão de saber o que os UFOs são entrava em atrito com o desejo dos meus interlocutores de descobrir, em definitivo, não só a natureza das naves, mas também as formas e intenções dos ufonautas. Ao limitar o objetivo do trabalho a uma antropologia da ufologia, eu terminava ignorando que aquilo que interessava aos ufólogos, em certa medida, era uma exoantropologia.30 Remoí esta questão por um longo tempo e a cada novo encontro com os ufólogos, fosse nos congressos ou nas entrevistas, tornava-me mais ciente de que precisaria alterar o “enquadramento” que daria ao trabalho. Havia ainda um segundo aspecto que tornou-se visível com o passar dos meses. Ao concentrar a discussão em torno da injunção à explicação contida na pergunta “é real?”, eu me mantinha nos confins do problema relativo à forma como se produz conhecimento na ufologia. E ainda que os termos fossem modificados, no fim das contas sobraria uma tese que em pouco se separaria dos trabalhos que, nas linhas anteriores, pontuei operarem um processo de redução. Apenas quando já tinha em mãos grande parte do material etnográfico consegui dar uma solução mais ou menos satisfatória às duas dificuldades que o problema da tese, como vinha sendo formulado, comportava. De fato, procedi uma completa inversão daquela abordagem.31 Ao contrário de me perguntar, como fizera antes, sobre como os ufólogos constroem os discos voadores, sobre como definem o que conta como uma evidência, estimei que a questão, de 30Este ponto tornou-se particularmente visível durante a partilha da escrita de um artigo com o ufólogo Alberto Francisco do Carmo. Na ocasião eu havia modificado o documento e incluído o subtítulo: “Protótipos de um exoantropologia”. Alguns dias depois recebi de Alberto a cópia do trabalho e nela encontrei algumas alterações. Uma delas dizia respeito exatamente ao subtítulo proposto: ele havia aberto uma nota de rodapé com os seguintes comentários: “Tudo o que estudamos e sabemos é baseado no “homo sapiens”, cujas variedades tem o mesmo genoma. Mas alienígenas, embora morfologicamente similares, podem ter capacidades diferenciadas em relação a nós.[...] Isto pede que tenhamos, futuramente, noções de que tenham uma psiquê um tanto diversa da nossa, à qual não podem ser extrapoladas características da psiquê humana “in totum”. Daí, no caso, uma exoantropologia pode ser pensada como o estudo destas diferenças, que não são apenas biológicas, mas também psicológicas e sociais”. (Violência extraterrestre e violência científica: protótipos de uma exoantropologia – Mimeo) 31Em parte esta mudança de curso da pesquisa tem que ver com a análise do material etnográfico que fiz sob a orientação da Professora Debbora Battaglia durante o período do doutorado sanduíche. 38 maneira alternativa, gravitava em torno do problema de sabercomo os UFOs criam as socialidades32 ufológicas. Decerto que para seguir o curso deste argumento era necessário não só uma outra linguagem para descrever os coletivos de extraterrestres e humanos que conformam a ufologia, como se impunha um deslocamento que tirasse o foco de certa “epistemologia ufológica” (Pícaro, 2007) – ainda que orientada para as definições pragmáticas dos agentes ali envolvidos – para o que decidi chamar de ontologias alienígenas. Os UFOs e os extraterrestres não restariam apenas como objetos sobre os quais sobreviriam elaborações dos meus interlocutores mas, neste enquadramento alternativo, tomariam parte de uma assemblage (Latour, 2005), onde figurariam não como objetos passivos, mas como o gatilho para a própria concepção da ufologia. As inspirações para este detour, que me levou da questão concernente ao problema de “como os ufólogos constroem o conhecimento”, para a descrição das ontologias alienígenas, provém dos trabalhos de Bruno Latour, Michel Serres, Eduardo Viveiros de Castro, Martin Holbraad e, de modo muito substancial, no apontamento de Debbora Battaglia, segundo quem os Raelianos tornavam-se visíveis “[...]as a legitimate knowledge community” (Battaglia,2005:163) na relação com os agroglifos que, nos seus termos, “makes visible claims to an invisible truth that is “out there”, always partially hidden” (Battaglia, 2005:163). Combinei este argumento, que estimo como fundamental para que eu pudesse organizar o material etnográfico, com alguns 32Ao usar a noção de socialidade, acompanho o emprego que Marilyn Strathern faz da expressão. No artigo intitulado "The concept of society is theoretically obsolete - (For the motion 1) (Strathern,1996), Strathern nos lembra que o conceito de socialidade constitui uma alternativa à noção de sociedade. O primeiro compreende a perspectiva segundo a qual "[s]ocial relations are intrinsic to human existence, no extrensic." (Strathern,1996:55) Tim Ingold, ao comentar o referido artigo, observa que: "Their plea is for an alternative conceptual vocabulary, anchored on the concept of "sociality", that would enable us to express the way in which particular persons both come into being through relationships and forge them anew, without relegating both personhood and relationship to a domain of reified abstraction - epitomized by the concept of society - which, in a certain strand of contemporary political rhetoric, is but a prelude to their dismissal as illusory." (Ingold, 1996:47) 39 elementos de teoria etnográfica de tal modo a reformulá-la para os meus propósitos33. Se os UFOs eram os responsáveis pela criação das socialidades ufológicas, só o eram porque restavam “parcialmente visíveis” – uma pequena modificação em relação à noção de partially hidden. E esta qualidade, que os tornava furtivos, raramente nítidos nas fotos, difíceis de serem captados pelas medidas humanas, instava os ufólogos a formarem, em relação a eles, domínios de proximidade.34 No decorrer desta tese, mostrarei como este processo se faz, na medida em que articularei a questão da impossibilidade de ver completamente com o tema do segredo. Os UFOs, passei a concluir a partir do encontro com os meus interlocutores, são máquinas de fazer segredo. Em última análise, se são eles o motivo para a criação das sociabilidades ufológicas, só o fazem na medida em que circulam encriptados, gerando documentos, pareceres, relatos e fotos, que partilham desta mesma propriedade. Diante disso as obras de Michel Serres e Annemarie Mol tiveram para mim grande valor. A partir do ensaio do ensaio de Serres sobre o tema dos parasitas fui capaz de pensar a noção de grupo ufológico menos como o resultado da partilha de disposições, características ou os ditos valores. Não foi sem a sua ajuda que consegui delinear que aquele coletivo se definia antes pela circulação dos UFOs pelos seus canais do que propriamente sobre uma “construção social sobre o tema extraterrestre”. Neste ponto, socorreu-me a noção de coreografia, aportada por Mol. Foi lendo-a que fui capaz de me proteger da ideia de que os UFOs eram objetos em relação aos quais se acumulavam representações, a partir de sua indicação de que os objetos se modificavam na 33Mais uma vez as contribuições Debbora Battaglia foram centrais neste ponto. Lembro-me com muita clareza que, ao discutirmos o material que será apresentado no capítulo cinco, contava-lhe que os habitantes da Ilha de Colares que aí viviam quando as luzes Chupa-Chupa começaram a aparecer, raramente viam os objetos emissores dos raios que os atingiam. Debbora então comentou que aquilo que podiam ver não era outra coisa senão “the shell of technology”. 34Como se verá no capítulo três, a noção de “proximidade” provém da economia conceitual do autor de um relatório sobre um óvni avistado nas imediações do presidio da Papuda, no Distrito Federal. Devo a sua formulação a Wilson Geraldo de Oliveira. No capítulo 7, recupero a ideia de "proximidade" por via diversa, a partir da obra de Martin Heidegger. 40 medida em que circulavam por diferentes “bundles of practices” (Mol, 2002). Apesar deste trabalho ser aqui uma referência importantíssima, as falas dos meus interlocutores apontavam para o fato de que os UFOs, ainda que se articulassem em relação aos ufólogos, podiam ter uma existência fora destas mesmas relações. Na maioria dos relatos os óvnis e os seres que os ocupam, não só podem aparecer como anteriores aos humanos, como podem figurar como os seus criadores. De certo modo, o material etnográfico me dirigia a perceber que as ontologias alienígenas se concebiam na medida em que os UFOs não podiam ser completamente integrados aos coletivos ufológicos. Em última análise, a sobrevivência dos últimos dependia exatamente do seu caráter furtivo, da recusa em deixarem-se ser capturados com nitidez nas imagens, nas mensagens interrompidas aos abduzidos, nos segredos contidos nas imagens nas plantações. Ainda assim, conservam algumas modalidades de ação, reconhecíveis pela sua capacidade de produzir segredos, aos quais, atribuo o status daquilo que, paradoxalmente, busca-se revelar mas, neste mesmo movimento, termina-se alimentando os seus aparelhos secretores. Foi através do trabalho de Roy Wagner, em particular no artigo Our very Own Cargo Cult (Wagner, 2000) que encontrei a formulação segundo a qual aquilo que caracteriza o tema dos UFOs era a questão de saber "quem está “desinformando” quem? (Wagner,2000:363)35. Este apontamento coincidia com o material etnográfico sobre o qual eu trabalhava. Mais tarde entendi que, de certa forma, ele poderia ser acoplado à observação de Martin Holbraad de acordo com a qual uma antropologia que, de fato, fosse capaz de promover a emancipação dos objetos, deveria ser capaz de pensar como os objetos produzem os seus próprios contextos (Holbraad, 2011). O nexo entre estes dois elementos não podia então ser outro além da ideia de que os UFOs 35Alternativamente,"It is, or was, or will be only a trick, but who could tell who was tricking whom?" (Wagner,2000:362) 41 produzem os seus próprios contextos na medida em que se recusam a permitir que se veja, completamente, como o fazem. Dito de outro modo, a maneira
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