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©2015 Michel Silva (Org.) Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. S5861 Silva, Michel Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade/Michel Silva (Org.). Jundiaí, Paco Editorial: 2015. 280 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-8148-876-9 1. Maçonaria 2. Processos históricos 3. Contribuição social I. Silva, Michel. CDD: 360 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal Índices para catálogo sistemático: Serviço social. Associações e instituições 360 Maçonaria 366.1 Conselho Editorial Profa. Dra. Andrea Domingues Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna Prof. Dr. Carlos Bauer Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha Prof. Dr. Fábio Régio Bento Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins Prof. Dr. Romualdo Dias Profa. Dra. Thelma Lessa Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt Av. Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21 Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 11 4521-6315 | 2449-0740 contato@editorialpaco.com.br Sumário Apresentação.......................................................................................5 Capítulo 1 Michel Silva Por uma história da Maçonaria no Brasil........................................7 Capítulo 2 Françoise Jean de Oliveira Souza Organização, Preceitos e Elementos da Cultura Maçônica: fundamentos para a introdução aos estudos da Maçonaria.......17 Capítulo 3 Bruna Melo dos Santos Hipólito José da Costa, a sociabilidade maçônica e a (re) construção da memória...................................................................39 Capítulo 4 hiago Werneck Gonçalves A imprensa maçônica da Corte imperial brasileira na década de 1870: alguns apontamentos........................................................57 Capítulo 5 Berenice Abreu de Castro Neves A Maçonaria no Ceará: “Os intrépidos romeiros do progresso”...........................................................................................75 Capítulo 6 Luaê Carregari Carneiro Ribeiro A Maçonaria e a formação do Partido Republicano Paulista............................................................................................103 Capítulo 7 Milena Aparecida Almeida Candiá “A instrução do povo pelo povo”: a Maçonaria e o movimento associativista pela expansão da educação popular no Brasil (1870–1889)...................................................................................137 Capítulo 8 Marcelo Freitas Gil Trabalhadores, Maçonaria e Espiritismo em Pelotas (1877-1937).....................................................................................167 Capítulo 9 Marcos José Diniz Silva “A democracia liberal em face das ideologias dissolventes”: a Maçonaria cearense frente à Aliança Nacional Libertadora e ao Integralismo em 1935...............................................................189 Capítulo 10 Tatiana Martins Alméri A Maçonaria na ditadura militar brasileira (1964)....................211 Capítulo 11 Luiz Mário Ferreira Costa A Maçonaria e a antimaçonaria no interior de Minas Gerais: o “Culto ao Dever” em Rio Novo.................................................235 Referências......................................................................................251 Sobre os autores..............................................................................275 5 Apresentação Este volume reúne um conjunto de textos que sistematizam as mais recentes pesquisas acerca da Maçonaria realizadas em âmbito acadêmico no Brasil, especialmente nas áreas de His- tória, Educação e Sociologia. De forma geral, compõem a co- letânea artigos que se utilizam dos resultados de pesquisas re- alizados em dissertações de mestrado e teses de doutorado, em diferentes estados do país, abordando temas como a relação da Maçonaria com diferentes governos, a atuação da instituição na imprensa, suas possíveis relações com movimentos sociais, entre outras temáticas. O volume procura, principalmente, ser uma forma de difusão dessas pesquisas, que guardam enorme importância para a histó- ria social e política do Brasil, na medida em que abordam as ações de uma das mais antigas instituições atuantes no país. Por outro lado, os textos evitam fazer uma propaganda ufanista da Maçona- ria e, principalmente, estão longe de reproduzir os discursos que demonizam a instituição. Os autores, em sua maioria, são jovens pesquisadores que, ao longo de sua atuação acadêmica, enfrentaram todos os problemas possíveis em relação à pesquisa sobre a Maçonaria, seja a dii- culdade em acessar documentos ou pessoas, seja o olhar curioso de colegas e amigos que acreditam que falar em Maçonaria se resume a investigar conspirações ultrassecretas que supostamen- te visam à tomada do poder mundial. Se este volume contribuir para ajudar as pessoas a olharem a Maçonaria como um fenôme- no sociopolítico inerente à sociedade moderna, e não como uma seita ultrassecreta, terá cumprido um papel fundamental. Michel Silva (Org.) 6 Este volume constitui-se em uma pequena contribuição que tenta lançar algumas luzes para compreender essa complexa ins- tituição, que, embora controversa, tem papel fundamental para a História do Brasil. Michel Silva Blumenau, junho de 2014. 7 Capítulo 1 Por uma história da Maçonaria no Brasil Michel Silva Na década de 1990, as pesquisas acerca da Maçonaria ganha- ram força, devido ao crescimento na quantidade de trabalhos rea- lizados e à qualidade apresentada por estes, geralmente de caráter regional, procurando utilizar como fontes ou jornais ou outros documentos produzidos pela Maçonaria que estivessem com acesso livre em acervos públicos. Assim, se na década de 1990 as pesquisas buscaram identiicar a participação da Maçonaria no interior dos movimentos de mudança política no século XIX, na década seguinte, os pesquisadores procuraram analisar o papel da Maçonaria como agente político público em diferentes espaços de sociabilidade, como a imprensa, o movimento operário ou mes- mo a política institucional do século XX1. O período também está marcado pelo surgimento de historiadores dentro da própria Ma- çonaria, mesmo que não tenham alcançado expressão acadêmica2. No Brasil, entre os escritores maçons que se dedicaram à nar- rativa histórica, destaca-se nome de José Castellani, autor de uma vasta obra, dentre as quais se destaca História do Grande Oriente do Brasil, originalmente publicada em 1993. Essa obra aborda a 1. Entre outros, são destacáveis os seguintes trabalhos produzidos nas Ciências Hu- manas: Azevedo (2010), Barata (1999), Barata (2006), Colussi (1998) e Silva (2007). Entre os trabalhos acadêmicos não publicados, pode-se destacar Alméri (2007), Cos- ta (2009), Gonçalves (2012) e Santos (2012). 2. Podemos destacar entre os trabalhos produzidos por pesquisadores maçons, todos com diferentes formações acadêmicas e proissionais: Castellani (2001), Castellani; Carvalho (2009), Costa (1999) e Schüler Sobrinho (1998). Michel Silva (Org.) 8 trajetória da Maçonaria brasileira nos séculos XIX e parte do XX, podendo ser considerado um dos trabalhos mais completos pu- blicados a respeito da Maçonaria no Brasil. Nessa obra narram- -se os eventos que marcaram a trajetória do Grande Oriente do Brasil (GOB), obediência maçônica nacional mais antiga do país, fundada em 1822, e sua atuação em importantes acontecimentos políticos e sociais, como a Independência do Brasil (1822), Aboli- ção da Escravatura (1888), a Proclamação da República (1889), a ascensão do governo de Getúlio Vargas (1930) e o golpe civil-mi- litar (1964). Pode ser considerada uma espéciede “história oi- cial” do GOB, o qual, inclusive, detém os direitos de publicação. José Castellani, falecido em 21 de novembro de 2004, exerceu os cargos de Secretário de Cultura e Relações Públicas no Grande Oriente de São Paulo. No GOB foi Secretário-Geral de Educação e Cultura e Presidente do Conselho Federal de Cultura. Fundou a Associação Brasileira de Imprensa Maçônica e a Academia Ma- çônica de Artes, Ciências e Letras. Entre muitos outros textos, escreveu os livros A ciência maçônica e as antigas civilizações (1980), Os maçons na independência do Brasil (1993) e A ação secreta da maçonaria na política mundial (2001). Em História do Grande Oriente do Brasil, Castellani apresenta os acontecimentos considerados mais relevantes desde a criação das primeiras lojas maçônicas no Brasil, antes mesmo da fun- dação do GOB, a consolidação dessa obediência e sua atuação política nos séculos XIX e XX, mostrando (e destacando) a par- ticipação da Maçonaria em diferentes segmentos da sociedade brasileira. Em sua narrativa utiliza um tom bastante eloquente e apaixonado, evidenciando seu estreito vínculo com a obediência, que, nas palavras de José Castellani, foi “partícipe dos grandes acontecimentos político-sociais da história do Brasil” (Castellani; Carvalho, 2009, p. 20). Castellani se preocupa em narrar os acontecimentos que con- sidera “portadores de futuro” relacionados ao GOB, bem como Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 9 sua dinâmica sociopolítica interna e a relação estabelecida entre as lojas maçônicas e delas com o restante da sociedade. Segundo o próprio Castellani, a obra não “se limita aos fatos e atos inter- nos”, também “analisando os externos, ou seja, aqueles advindos da atividade político-social dos maçons”. O autor também airma que entende a Maçonaria como “uma instituição eminentemente política, atuando dentro de padrões éticos, consubstanciados na própria essência sociológica da política, no sentido da manutenção das grandes conquistas sociais da Humanidade e da defesa do libe- ralismo e das ideias libertárias” (Castellani; Carvalho, 2009, p. 15). Pode-se perceber a estruturação da narrativa em dois eixos paralelos. De um lado, descreve-se o desenvolvimento do GOB enquanto obediência maçônica nacional, citando e transcrevendo documentos como atas, discursos, boletins, relatórios, publicações, entre outros. Por outro lado, identiica-se de que forma a Maçona- ria atuou em processos políticos relevantes para as mudanças na situação política do Brasil, como a Proclamação da República. O texto de José Castellani foi escrito com bastante luidez. Sua narrativa estabelece uma clara diferenciação entre o cotidia- no da Maçonaria e a política profana, embora procure perceber de que forma a ordem está inserida em cada um dos contextos especíicos. Mostra-se, por exemplo, que o GOB não saiu ileso do golpe civil-militar que derrubou o presidente João Goulart, no ano de 1964, ao qual se seguiu vinte anos de ditadura. Embora a posição majoritária dentro do GOB, tenha sido de defesa ao mo- vimento golpista, aderindo ao discurso de que estava em marcha uma tentativa golpista por parte dos comunistas, havia maçons progressistas que defendiam as reformas de base e a política de desenvolvimento econômico baseada na intervenção estatal, pro- postas pelo presidente João Goulart. Por outro lado, durante a própria ditadura, o imaginário anti- comunista que permeou a sociedade brasileira desde a década de 1920, também se fez sentir na Maçonaria. Um dos antecedentes Michel Silva (Org.) 10 da cisão de 1973, considerada uma das mais longas da maçonaria brasileira e que deu origem à Confederação Maçônica Brasileira (Comab), foi justamente a acusação de “iniltração comunista” no GOB. Em 1970, José Castellani, então Secretário de Educação e Cultura do GOB, levou ao público maçom um conjunto de efe- mérides, dentre as quais os aniversários de nascimento de Friedri- ch Engels e Vladmir Lênin, líderes do movimento comunista de suas respectivas épocas. Esse documento motivou a impetração de inquérito policial, o que afetou a intimidade das lojas sem que os resultados almejados pelos acusadores fossem alcançados, na medida em que foi provada a inexistência da suposta iniltração. Percebe-se na obra de Castellani a predominância de uma concepção tradicional de História, na forma de historia magistra vitae, ou seja, da história como “mestra da vida”. Inclusive, o livro traz como epígrafe uma frase de Marco Túlio Cícero, que airma: “a História é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mestra da vida, a mensageira da antiguidade” (Cas- tellani; Carvalho, 2009, p. 13). Nessa concepção, criticada desde pelo menos o século XIX, “a história seria um cadinho contendo múltiplas experiências alheias, das quais nos apropriamos com um objetivo pedagógico”, ou seja, “a história deixa-nos livres para repetir sucessos do passado, em vez de incorrer, no presente, nos erros antigos” (Koselleck, 2006, p. 42). Essa compreensão da História por parte do autor se eviden- cia de diferentes formas, como no entendimento de que os do- cumentos possibilitariam conhecer a verdade acerca do passado. Para José Castellani, “diante do complexo drama da história, o historiador deve, muito humildemente, compreender e explicar a documentação dos arquivos. Fora daí, ele será apenas intelectual ou escritor literário” (Castellani; Carvalho, 2009, p. 14). Para o autor, os documentos não são fragmentos que, ao trazerem in- formações acerca de acontecimentos passados, possibilitam ao historiador contar uma narrativa o mais verossímil possível. Para Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 11 Castellani, os documentos utilizados como fontes são eles pró- prios o passado, cabendo ao historiador apenas reproduzir o que eles contam. Castellani toma como ponto de partida o desejo de escrever a verdade, como se os fatos falassem por si, pressupondo que citar uma quantidade abundante de documentos seria garan- tir uma escrita iel ao que “realmente aconteceu”. Segundo Cas- tellani, sua obra “apenas registra os fatos e suas consequências, sem pretender fazer julgamento dos atos ou dos homens que des- ilam por suas páginas” (Castellani; Carvalho, 2009, p. 14). Em sua obra constrói uma narrativa linear, pressupondo que a organização cronológica dos documentos e dos fatos garanta que a escrita histórica não distorça o passado que se pretende res- gatar. Portanto, o livro acaba se tornando uma crônica que enu- mera alguns acontecimentos relacionados ao GOB, narrando os fatos tidos como “portadores de futuro” e apresentando uma série de documentos que visam provar a veracidade do que é dito. Não é, portanto, uma obra histórica que visa problematizar a consti- tuição e consolidação do GOB enquanto obediência maçônica ou a atuação da Maçonaria na política brasileira, mas uma tentativa de contar a história de forma panorâmica e neutra, utilizando-se da citação iel de documentos e da narrativa linear que se limita a apresentar os acontecimentos. Inclusive, a proposta de trabalhar uma história de quase dois séculos, procurando narrar eventos que poderiam “eternizar” os homens que os realizaram, pouco dialoga com as inovações histo- riográicas das últimas décadas. Além disso, tal proposta não ex- pressa os avanços nas pesquisas a respeito da Maçonaria no Brasil realizadas por historiadores maçons ou profanos, destacando-se nomes como o de Alexandre Mansur Barata e Eliane Lucia Colussi. Nesse sentido, o próprio Castellani alerta que “esta obra não pre- tende esgotar um assunto presumidamente inesgotável, deixando campo aberto para outras, mais abrangentes e especíicas. Por isso, ela é sintética, panorâmica” (Castellani; Carvalho, 2009, p. 15). Michel Silva (Org.) 12 Em âmbito acadêmico, uma síntese da produção bibliográica dessas últimas décadas pode ser encontrada no livro O poder da maçonaria, escrito peloshistoriadores Marco Morel, doutor em História pela Universidade de Paris, e Françoise Jean de Oliveira Souza, doutora em História do Brasil pela UERJ. Nessa obra, os autores procuram descrever a trajetória da Maçonaria na história do Brasil, principalmente nos séculos XIX e XX, enfatizando em especial sua atuação política nesse período, “para compreender a maçonaria não de uma maneira isolada da sociedade, mas como forma de associação presente em diferentes situações históricas” (Morel; Souza, 2008, p. 9-10). Trata-se, segundo os autores, de uma pesquisa histórica destinada ao leitor que tenha curiosidade sobre tema, ao público maçom e a pesquisadores universitários. O livro estrutura-se em sete capítulos. O primeiro está dedi- cado à discussão das possíveis “origens” da Maçonaria, mostran- do, principalmente, a impossibilidade de delinear um momento em que surge essa associação e, em especial, como se misturam nessa discussão elementos míticos e literários. Nesse capítulo são discutidas as tradições esotéricas antigas, as práticas dos pedrei- ros-livres das corporações medievais, o surgimento das primei- ras lojas entre os séculos XVII e XVIII, a formação da Grande Loja de Londres, as perseguições da Igreja Católica, os mitos dos complôs relacionados à Maçonaria, a constituição de narrativas antimaçônicas a partir do século XVIII e, nesse período, a ini- ciação maçônica tanto de nobres e monarcas como de ilósofos e revolucionários. Nos capítulos seguintes discute-se a inserção da Maçonaria no Brasil. Os autores discutem, por exemplo, a polêmica de que Tiradentes era maçom e de que a Inconidência Mineira teria sido um projeto maçônico de emancipação. O terceiro capítulo é de- dicado à discussão acerca da Independência do Brasil, no qual os autores realizam uma revisão historiográica, demonstrando a presença de diversas “maçonarias”, suas contradições políticas Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 13 expressas nas divergências entre lideranças como José Bonifácio de Andrada e Gonçalves Ledo, além da proliferação de lojas e de Grandes Orientes (instituições que reuniam várias lojas) e da iniciação de Dom Pedro. Os autores também destacam Muniz Barreto, um personagem do movimento de independência pou- co conhecido, que, diferente dos membros mais conservadores da Maçonaria, também foi pioneiro na luta contra a escravidão. Este personagem, segundo os autores, “não foi coberto de glória, nem em vida, nem pela posteridade: sofreu, após 1822, prisão, perse- guições e perseverou na pregação maçônica, mesmo quando esta se encontrava proibida” (Morel; Souza, 2008, p. 105). Os autores discutem as atividades maçônicas em associações políticas, ilantrópicas, educacionais e econômicas, bem como nas próprias lojas maçônicas que, entre outras coisas, possibilitavam condições para a ascensão social de mulatos e descendentes de escravos que entravam para a Ordem3. Os autores também obser- vam o acirramento das divergências políticas dentro da própria Maçonaria, ao longo do século XIX. Em 1831, conforme destacam os autores, registrou-se a existência de cinco Grandes Orientes. Entre essas instituições, a principal foi o Grande Oriente do Brasil, fundado em 1822, em funcionamento ainda hoje. Outros Grandes Orientes se constituíram nas décadas seguintes, como o Grande Oriente do Vale dos Beneditinos, sob a liderança de Saldanha Ma- rinho, em 1863. No interior dessas associações confrontavam-se, de um lado, republicanos, abolicionistas e radicais e, de outro, conservadores e defensores da neutralidade política dos maçons. Por outro lado, na década de 1870, a Maçonaria agregaria à sua história a oposição da hierarquia da Igreja Católica, quando esta resolveu punir os sacerdotes católicos maçons, episódio conhecido como Questão Religiosa. Nesse processo colocava-se outro campo de confronto, ainal “a luta maçônica contra o conservadorismo 3. Essa temática da iniciação maçônica de mulatos e descentes de escravos é discuti- da em Azevedo (2010). Michel Silva (Org.) 14 católico acabou por ganhar a simpatia dos segmentos liberais da sociedade, o que atraiu muitos desses homens para a iniciação” (Morel; Souza, 2008, p. 160). Paralelamente, “do lado católico con- servador, importantes setores das camadas populares sensíveis à pregação clerical ultramontana passaram a compartilhar a repulsa à maçonaria” (Morel; Souza, 2008, p. 160). Os dois últimos capítulos tratam da Maçonaria brasileira na República, período no qual, segundo os autores, a Maçona- ria “tornou-se guardiã da ordem e do progresso” (Morel; Souza, 2008, p. 179). Uma das consequências disso, na década de 1960, se manifestou no que os autores chamam de “guinada conserva- dora” da Maçonaria (Morel; Souza, 2008, p. 228-36). Trata-se não apenas dos esforços de participar das instituições do Estado, mas também de intervir politicamente na própria sociedade, seja por meio da ilantropia, como vinha fazendo desde o século XIX, seja pelo diálogo com ideologias das mais diversas, difundidas nas primeiras décadas do século XX, como o anarquismo, o comu- nismo, o integralismo e as diversas expressões do autoritarismo. Por outro lado, certas elaborações nacionalistas produzidas no seio da Maçonaria levaram membros da ordem a se aproxima- rem do discurso conservador das Forças Armadas e da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) no contexto da Guerra Fria, como Golbery do Couto e Silva, maçom e principal ideólogo da Escola Superior de Guerra (ESG)4. Em função dessa guinada conserva- dora, procurou-se reforçar o cuidado com o perigo de uma possí- vel “iniltração comunista” nas lojas. O livro de Morel e Souza apresenta uma contribuição funda- mental ao campo da historiograia ao apresentar alguns elemen- tos de estudo acerca da atuação política da Maçonaria no século XX, temática pouco estudada nas pesquisas acadêmicas. Muitos dos acontecimentos conhecidos desse período foram narrados 4. Embora não seja citada por Morel e Souza, essa discussão é realizada de forma mais aprofundada por Alméri (2007). Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 15 de dentro da Maçonaria, especialmente por meio dos textos com pretensões historiográicas, como os de José Castellani. O livro de Morel e Souza, ao ser escrito a partir de uma pers- pectiva acadêmica e externa à Maçonaria, conforme esclarecem seus autores nas primeiras linhas do livro, consegue escapar da narrativa ufanista e parcial escrita por maçons, na qual todas as ações empreendidas pelos maçons são encaradas como algo po- sitivo, mesmo que seja, por exemplo, o golpe de 1964. Os livros de Castellani conseguem dar um olhar um pouco mais crítico às ações maçônicas, contudo sua narrativa se limitava ao apoio aberto a certas tendências políticas internas da Maçonaria, da qual era simpático, principalmente a partir da cisão que deu ori- gem à Confederação Maçônica Brasileira (COMAB), em 1973. José Castellani manteve-se como membro do Grande Oriente do Brasil durante toda a sua vida maçônica. Essas duas obras, seja pelo panorama produzido de dentro da Maçonaria, seja pela síntese acadêmica, contribuem para as pesquisas acerca da Maçonaria. Uma, por apresentar fatos e do- cumentos aos quais os historiadores acadêmicos não possuem acesso. Quanto à outra, organiza e sistematiza os avanços das pesquisas da Maçonaria, especialmente a partir das análises que tomam como ponto de partida os conceitos de sociabilidade e cultura política. Com isso, os historiadores mais jovens podem dar novos passos de modo a enriquecer a história da Maçonaria no Brasil, não se limitando a descrever os acontecimentos “porta- dores de futuro”, como pretendia Castellani, mas problematizan- do os diferentes processos sociais e políticos e as diferentes forças que neles atuaram. Nesse sentido, compreendendo os limites de seu texto, o pró- prio José Castellani airmou: “Outras obras virão. Outros autores. A aprofundar a análise dosfatos antigos e a relatar os novos. Por- que a história não para!” (Castellani; Carvalho, 2009, p. 15). Essa escrita da História, que nos últimos anos possibilitou a numero- Michel Silva (Org.) 16 sos pesquisadores desenvolver pesquisas de fôlego a respeito da Maçonaria, pode aprofundar o conhecimento que temos a respei- to das contribuições dos maçons brasileiros para a política e para a cultura no Brasil, mostrando-os como sujeitos históricos, embora tendo o cuidado de não confundir a ação individual de alguns ma- çons em processos históricos com os momentos em que os ma- çons coletivamente tomaram posição e atuaram politicamente. 17 Capítulo 2 Organização, Preceitos e Elementos da Cultura Maçônica: fundamentos para a introdução aos estudos da Maçonaria Françoise Jean de Oliveira Souza Introdução Nas últimas décadas, a Maçonaria tem se tornado objeto de estudo de inúmeras áreas do conhecimento. No campo da histó- ria, a emergência de novos trabalhos nos quais a Maçonaria i- gura como tema principal de pesquisa apresenta-se como conse- quência dos avanços obtidos pela renovação da história política. Por longo tempo, a política, sob inluência da escola francesa dos Annales, esteve relegada à situação de mero apêndice da História. Criticada por sua supericialidade, a tradicional história políti- ca caracterizava-se pela defesa do trinômio: narrativa, crônica e acontecimento, estando aprisionada em uma visão centralizada e institucional do Estado. Contudo, a partir da década de 1970, a política voltou a assumir um lugar de destaque na historiogra- ia ao tomar para si métodos e abordagens oriundos das ciências sociais. Este fenômeno de renovação, chamado de “nova história política”, permitiu a abertura dos estudos para novos objetos e novos enfoques que, até então, não eram encarados e nem trata- dos como parte do político. Em meio às inúmeras tendências e variações ocorridas nesse movimento de renovação historiográ- ica, destacam-se algumas temáticas novas, tais como os poderes, os saberes enquanto poderes, as instituições supostamente não Michel Silva (Org.) 18 políticas, as práticas discursivas (Falcon, 1997), bem como o es- tudo do político a partir das representações e imaginários sociais, das mentalidades, das simbologias e das memórias coletivas. A renovação dos objetos e das visões da história acerca do político tem incitado inúmeros estudos da Maçonaria, sobretudo, nas linhas de pesquisa de história e cultura política. Cada vez mais, a dimensão política da sociabilidade – característica constituinte da Maçonaria – vem sendo apreendida. Antes negligenciada como um detalhe da vida privada, o pesquisador da Maçonaria, Maurice Aguilhon, defende a sociabilidade como um estimado objeto de relexão social, psicológica e política (Aguilhon, 1984). Em con- sonância com este autor, René Remond reforça a importância de a história política abrir-se para pesquisas sobre a sociabilidade, a socialização e o fato associativo (Remond, 1998). Igualmente importantes para a eleição da Maçonaria como tema da história política foram os trabalhos que, nesse movimen- to de renovação historiográica, propuseram abordar as relações de poder para além do aparelho do Estado. Encontrado em lu- gares menos auspiciosos como a família, a escola, os asilos, as prisões, ou seja, no cotidiano de cada indivíduo e grupo social, o poder deixa de ser percebido como exclusivamente exercido pelo Estado para ser visto como algo que permeia todas as relações sociais (Foucault, 1979). Com base no exposto acima, a temática da Maçonaria sur- ge como mais uma possibilidade de compreensão das inúmeras relações de poder que perpassam as sociedades. Ao conigurar um modelo de sociabilidade próprio baseado na ilantropia, na rede de solidariedade entre os pares, nos juramentos e rituais que criam laços de pertencimento, percebe-se, na Maçonaria, a exis- tência de mecanismos próprios de dominação, constituindo-se em um dos espaços, fora do domínio direto do Estado, por onde o poder circulava e os homens faziam política. Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 19 Todavia, uma sólida investigação da temática da Maçonaria e de suas múltiplas relações com a sociedade e seus espaços de poder exige um conhecimento profundo da complexidade da natureza maçônica, isto é, dos fundamentos e preceitos desta instituição e do processo histórico pelo qual ela se organizou e se ressigniicou. Do contrário, incorre-se seriamente no erro de tomá-la como uma instituição monolítica, a-histórica e com uma capacidade de atuação superdimensionada. 1. Os Preceitos Maçônicos A Maçonaria considera a si mesma como uma instituição uni- versal e composta de um corpo de doutrinas acabadas, que perma- neceram imutáveis através dos tempos. Entretanto, foi justamen- te a realidade idiossincrática, assumida pela ordem nas diversas partes do mundo, que diicultou, por vezes, a tarefa de demarcar o campo conceitual maçônico. Não obstante tal diiculdade, é pos- sível buscar no texto primeiro da Maçonaria, ou seja, na Consti- tuição de Anderson, e em vários outros escritos, ideias recorrentes que nos apontam os preceitos fundamentais da instituição. Com base neste levantamento, identiicamos como principais compo- nentes desse fundo comum teórico as divisas do progresso, da ra- zão, da liberdade, da igualdade, da moral e da fraternidade. Antes, contudo, acreditamos ser importante ressaltar que o processo de elaboração das divisas e dos preceitos maçônicos encontra-se intimamente vinculado à história sóciopolítica da Inglaterra. Já as divergências relativas à interpretação e imple- mentação deste corpo teórico reletem as turbulências europeias dos séculos XVIII e XIX, período no qual formam elaboradas, inúmeras e variadas propostas para a civilização humana, bem como as diferentes demandas impostas à Maçonaria pelas con- junturas nacionais. A constituição histórica da Maçonaria nada mais é do que fruto da soma destes fatores. Michel Silva (Org.) 20 Embora o pensamento iluminista do século XVIII tenha se desenvolvido em direções várias, podemos perceber, na base das investigações cientíicas e ilosóicas da época, algumas ideias re- correntes. Muito comum era a noção de que o espírito huma- no, ou a natureza humana, possuía uma estrutura fundamental e invariável, independentemente do tempo e do espaço. O caráter imutável da natureza humana permitiria não apenas explicar a sua essência, mas também chegar, através de uma argumentação racional, a conclusões indiscutíveis que prescreveriam aos ho- mens a melhor forma de se organizarem. À luz desta premissa, os fenômenos humanos foram entendidos como sujeitos a leis veriicáveis e, logo, susceptíveis de um tratamento similar ao das ciências naturais (Gardiner, 1995). Ao interpretarem a história humana sob o ponto de vista acima descrito, os pensadores iluministas chegaram à conclusão de que esta história não poderia ser um mero agregado de fatos aleatórios, ao contrário, ela deveria seguir um padrão passível de compreensão por meio de leis gerais. Todavia, embora a razão tenha sido apreendida como principal instrumento de domínio do homem sobre a natureza e, logo, sobre a sua própria histó- ria, a emancipação das concepções morais e metafísicas não foi completa. A crença num padrão teleológico subjacente aos fatos da história humana foi explicitamente sustentada. Em conformi- dade com um modelo préestabelecido, postulava-se que a his- tória se movia rumo a uma inalidade, a uma direção especial, moralmente aceitável. Em síntese, acreditava-se que “o homem é ou contém em si mesmo algo e valor absoluto, de modo que o processo da natureza, na sua evolução, tem sido um progresso, na medida em que tem sido um processo ordenado, conduzindo a existência humana” (Collingwood, 1986, p. 386). Surge, daí, a fé na perfectibilidade humana e na inevitabilidade do progresso. O pensamento maçônico, organizado no contexto dasluzes, mostra-se herdeiro da crença escatológica do progresso, visto Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 21 que elaborou para si uma cosmovisão que prevê uma idade de ouro, quando, enim, o homem atingirá sua plenitude moral. O preâmbulo do Código Maçônico brasileiro de 1914 apresenta os objetivos da Maçonaria como sendo “o aperfeiçoamento mate- rial, moral e intelectual da humanidade, por meio da investiga- ção constante da verdade cientíica, do culto inlexível da moral e da prática desinteressada da solidariedade” (Código Maçônico, 1914, p. 5). Para a Maçonaria, a razão e a ciência são tidas como os principais instrumentos que levarão a humanidade a atingir um futuro de moral e virtudes que são certos e comuns a todos os povos, uma vez que se crê na unicidade da natureza humana. Contudo, se os instrumentos que levam ao futuro são de base ob- jetiva e cartesiana, este futuro utópico a que se acredita chegar é essencialmente de caráter subjetivo, uma vez que se sustenta em valores (moral e virtude) histórica e culturalmente construídos. Além disto, a sociedade maçônica aproxima as modernas crenças na razão e na ciência a valores, tais como o respeito à hierarquia e o culto ao passado, cuja origem e sustentação datam das tradições dos ofícios medievais. Todavia, mais do que simplesmente acreditar na evolução da humanidade rumo a um futuro determinado, a Maçonaria ex- prime-se como a instituição de vanguarda responsável por guiar os homens rumo à civilização. A passagem abaixo elucida bem a visão que os maçons nutrem de si próprios: A única lei da vida é o progresso: progresso indeinido, su- cessivo em todas as manifestações do ser, sob todas as fases de sua existência. Cremos que infalivelmente devem cumprir-se as leis do pro- gresso, porém cremos também que, tendo-nos a missão de re- alizá-lo como obra nossa, devemos consagrar nossa liberdade, utilizando o tempo e o espaço que nos estão cedidos, de manei- ra que sua aceleração ou atraso dependam de nós, segundo nos- so mérito ou demérito. (Boletim do GOB, 1872, n° 6, p. 194). Michel Silva (Org.) 22 Analisando alguns periódicos maçônicos publicados no Bra- sil, no século XIX, observa-se que a Maçonaria atribuía a si uma missão de tamanha importância, ao se apresentar à sociedade profana como “A guarda avançada do progresso da humanidade” (Boletim do GOB, 1872, n° 6, p. 187), “Anjos Tutelares do Pro- gresso” (Noticiador de Minas, 1872, n° 422, p. 2), “Estrela Dalva que anuncia a madrugada da civilização” (Boletim do GOB, 1873, n° 4, p. 237), dentre outros títulos. Tendo conseguido demons- trar à humanidade os ins aos quais a Maçonaria se propõe, a im- prensa Maçônica airma que a instituição “[...] se recomendará à posteridade por relevantes serviços em prol da civilização” (Bole- tim do GOB, 1872, n°6, p. 194). Sustentando esta posição, os pe- dreiros livres assumem o papel de guias, vanguarda e tutores dos profanos, acreditando-se conhecedores de uma verdade absoluta acerca da humanidade e só acessível aos iniciados nas luzes. Tal atitude, além de valorizar o papel da instituição perante a socie- dade, investe a Maçonaria de poderes, uma vez que esta se torna, por princípio, o lugar do saber. Em consonância com o discurso do progresso, a Maçonaria mantém a liberdade de consciência como uma de suas divisas ca- pitais. Airmando-se como um espaço onde os homens colocam suas ideias e opiniões sem nenhuma restrição, a Maçonaria aca- bou por constituir-se numa escola de formação política, na me- dida em que permitia e estimulava o livre debate e a deliberação. Esta característica da sociabilidade maçônica, aliada ao seu cará- ter secreto, levou muitos pensadores a procurá-la como abrigo, em diferentes contextos de perseguição. Ressalta-se que a liberdade de consciência preconizada pela Maçonaria apresenta-se como corolário do liberalismo inglês, surgido no bojo dos embates políticos e religiosos do inal do século XVII, e que tinha como pilares a tolerância religiosa e a expansão da liberdade civil. O fato de a Inglaterra haver conse- guido refrear a arbitrariedade do poder político, não obstante este Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 23 ainda estivesse restrito a uma oligarquia, e ter conquistado mais liberdade geral do que em qualquer outra parte da Europa, é de fundamental importância para a compreensão das razões que le- varam os primeiros maçons modernos a elaborarem preceitos de natureza liberal (Merquior, 1991, p. 16). A liberdade de culto e a tolerância foram, dos conceitos ima- nentes à liberdade de consciência, os que mais repercutiram nos séculos XVIII e XIX. Evidenciando sua herança moderna e ilumi- nista, a Constituição de Anderson airma que “seja qual for a reli- gião de um homem, ou sua forma de adorar, ele não será excluído da ordem, se acreditar no glorioso Arquiteto do céu e da terra” (Castellani; Rodrigues, 1995, p. 53). A liberdade de expressar uma fé, bem como de conviver com pessoas de credos diferentes foi, sem dúvida, um dos principais responsáveis pela espantosa expansão da ordem pelo mundo, bem como pelas ferozes críticas a ela remetidas. Não seria equivocado airmar que, no contexto setecentista, a Maçonaria constituiu-se numa das primeiras instituições ecumênicas do mundo, criando um novo espaço de convívio social onde são suspensas as barrei- ras religiosas que, até então, segregavam os povos e os encerra- vam em comunidades naturais às quais eles deveriam pertencer, sem possibilidade de escolha. Lançavam-se, assim, os fundamen- tos das futuras organizações internacionais de caráter laico. Entretanto, a modernidade Maçônica encontra seus limites no próprio texto da sua Constituição. Se a maçonaria postula a li- berdade de culto, por outro lado, ela estabelece que “um maçom é obrigado por seu título, a obedecer à lei moral e, se compreender bem a arte, nunca será um ateu estúpido, nem libertino irreligio- so [...]” (Castellani & Rodrigues, 1995, p. 53). Deste modo, um dos pré-requisitos para a entrada na ordem é possuir uma religião e crer em um princípio criador, expresso na linguagem dos pe- dreiros livres, como o Grande Arquiteto do Universo. Tal princí- pio criador não passa por uma visão deísta, baseada na crença em Michel Silva (Org.) 24 um Deus sem atributos morais e intelectuais, como apregoavam muitos iluministas. Ao contrário, a Constituição de Andersom refere-se a um Grande Arquiteto que, baseado em valores e prin- cípios morais, intervém providencialmente no universo. Por im, além da imposição da crença em um princípio teísta, os maçons devem prestar juramento sobre o Livro Sagrado da lei. Este, no entanto, pode ser a Bíblia, como em geral o é, ou qualquer outro livro religioso como o Corão, a Torá, etc. É fundamental, todavia, não tomar as proposições estabele- cidas pela Constituição como sendo um relexo da realidade ma- çônica em seus múltiplos lugares e tempos históricos. No que se refere à posição da ordem em relação à religião, por exemplo, esta variou conforme a tendência maçônica de cada país, a obediência à qual pertencia e o contexto religioso preponderante. A Maçona- ria francesa, por exemplo, foi considerada irregular pela Grande Loja de Londres, por repudiar as exigências de caráter religioso e metafísico. Também a Maçonaria portuguesa do século XVIII, em parte, afastou-se do cristianismo e do catolicismo tradicional, preferindo outras crenças menos organizadas, deuses mais “ilo- sóicos”, próprios de pensamentos religiosos panteístas (Marques, 1990, p. 28). Conclui-se, assim, que a relação da Maçonaria com a religião mostrou-se possuidora de múltiplas facetas, sendo a instituição mais teísta e conservadora nos países britânicos, mais laica na França e nos países de sua inluência e, até mesmo, parti- dária de segmentos religiosos especíicos, como o protestantismo, no caso de algumas lojas latino-americanas, no período áureo da perseguição católicado século XIX (Bastian, 1990). A liberdade de consciência ecoou, também, no relaciona- mento da Maçonaria com a política profana. Na medida em que postula o direito dos homens de expressarem-se livremente e di- vergirem uns dos outros, a Maçonaria acabou acolhendo, em seu interior, homens de diferentes convicções políticas. Assim, com o intuito de evitar que questões não maçônicas perturbem as boas Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 25 relações entre os obreiros, a Constituição de Anderson proíbe as discussões de caráter político dentro das lojas, devendo os ma- çons submeterem-se às leis do seu país e não tomar parte em ne- nhuma conspiração ou motim (Castellani; Rodrigues, 1995). As lojas britânicas, sempre próximas do trono e da nobreza, foram as que mais primaram pela defesa do caráter apolítico da instituição e de sua inalidade puramente ilantrópica e ilosói- ca, embora, em muitos casos, a própria defesa do não compro- metimento com o jogo político apresente-se como uma maneira particular de realizá-lo (Morel, 2001). Entendemos, todavia, que, à exceção do caso inglês, este princípio recebeu múltiplas inter- pretações ao longo da história maçônica, sendo, inclusive, motivo para a cisão de muitas obediências. Antônio H. Marques (1990) argumenta que a sujeição aos go- vernos estabelecidos foi considerada, por vários maçons, como mais de caráter teórico e geral do que prático e aplicável a todos os países. Pedreiros livres de diferentes lugares interpretaram tal exigência como sendo anacrônica, uma vez que o maçom deve defender a legitimidade do poder político. No caso de sistemas políticos despóticos, nos quais a liberdade individual e coletiva encontra-se cerceada, não só pertenceria ao maçom o direito de rebelar-se, como lhe caberia o papel de vanguarda nessa rebelião. Assim, enquanto algumas lojas, na tentativa de escapar do con- trole absolutista, optaram por conquistar a adesão dos monarcas e dos nobres à ordem maçônica, outras, por sua vez, apostaram numa intervenção política direta, como por exemplo, no caso dos movimentos de independência das colônias americanas. O fato é que, nas inúmeras disputas políticas que marcaram a história dos povos, maçons e Maçonaria encontraram-se presentes nos dois lados dos campos de batalha. Outra divisa bastante propagada pela ordem dos pedreiros livres diz respeito às “virtudes” maçônicas. A loja é entendida, antes de tudo, como um local de aperfeiçoamento moral de seus Michel Silva (Org.) 26 homens. Assim, ao adentrar a ordem, o membro é instruído acer- ca da “moral universal”, terminologia maçônica referente a um conjunto de virtudes as quais se vê obrigado a praticar, tais como a bondade, lealdade, honra, honestidade, amizade, tranquilida- de, obediência, fraternidade, etc (Marques, 1990). A prática das virtudes deve reletir-se no modelo de vida adotado pelos ma- çons fora das lojas. Assim, o maçom virtuoso deve, por exemplo, santiicar a família e o lar, sendo um bom pai, um bom ilho ou um bom esposo, condenando o vício do jogo e do álcool e insur- gindo contra a imoralidade das modas e divertimentos nocivos (Regulamento Particular da Aug. Bem. e Benef. Loj. Cap. Estrella Caldende, 1934). A “moral universal” maçônica, além de preten- der nortear a conduta dos maçons, é também apresentada como parâmetro para a humanidade profana que, ainda em processo de evolução, deverá um dia alcançá-la plenamente. Deste modo, as lojas maçônicas desejam apresentar-se como um prenúncio des- se mundo perfeito e virtuoso e, aos olhos do mundo profano, os maçons devem possuir uma conduta exemplar. A fraternidade, entendida como auxílio mútuo, ilantropia e um modo de convívio entre os irmãos, corresponde à virtu- de mais associada à sociabilidade maçônica. Diz a Constituição de Anderson que os maçons devem “praticar a caridade frater- nal, que é a pedra fundamental, a chave, o cimento e a glória” da antiga confraria (Castellani; Rodrigues, 1995). Percebe-se que a Maçonaria, apresentada como uma associação de socorro mútuo, encontra na fraternidade a essência da instituição. Foi justamente esta concepção ampla de uma fraternidade que ultrapassa frontei- ras internacionais e as barreiras religiosas e culturais que tornou a Maçonaria uma organização sui generis no contexto histórico em que foi constituída. Finalmente, comportando dois signiicados – a ajuda entre os irmãos da ordem e o socorro aos necessitados em geral –, a ilantropia subjacente à noção de fraternidade tornou-se um instrumento de coesão entre os maçons, bem como a base de sustentação da instituição no mundo profano. Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 27 A fraternidade propalada pela Maçonaria dá-se, primeira- mente, entre os irmãos da ordem. Em caso de vários necessitados em igual situação, o ato de caridade deve ter como alvo prioritário o iniciado na Maçonaria (Castellani; Rodrigues, 1995). De modo geral, a ajuda prestada aos irmãos corresponde ao auxílio material, em contexto de carestia, e o socorro às viúvas e órfãos de maçons que passaram para o “Grande Oriente Eterno”1. Os maçons vêem- -se, também, obrigados a acolher, proteger e ajudar da melhor ma- neira, os irmãos que, devidamente identiicados enquanto mem- bros da ordem, provierem de outras regiões ou países. Por im, a solidariedade maçônica relete-se nas inúmeras outras relações estabelecidas entre os obreiros em espaços profanos. Ao fecharem acordos comerciais, por exemplo, os pedreiros livres são orien- tados a darem preferência ao elemento maçônico (Regulamento Particular da Aug. Bem. e Benef. Loj. Cap. Estrella Caldende, 1934). Frente a isto, parece-nos claro que a estrutura de ajuda mú- tua, criada dentro da ordem maçônica, acabou por representar um importante instrumento de cooptação de homens para dentro da instituição, o que, por vezes, gerou distorções sobre o verdadeiro propósito da iniciação nas lojas (Barata, 1998, p. 159). A fraternidade entre os irmãos pode também ser entendida como uma nova proposta de convívio entre os homens, pautada na cordialidade, no respeito e na conduta pacíica dos membros. A loja deve ser um lugar de harmonia, sendo proibidos qualquer palavra ofensiva e atos que interrompam a reciprocidade das boas relações (Castellani; Rodrigues, 1995). Contudo, caso haja alguma querela entre os maçons, estas devem ser submetidas a um júri maçônico, nunca sendo levadas ao mundo profano. A história, todavia, demonstra o quanto este preceito vem sendo desrespeitado, não sendo incomum a intervenção da justiça pro- fana em questões maçônicas, bem como as cisões no interior de obediências e lojas. 1. Terminologia maçônica referente aos casos de falecimento. Michel Silva (Org.) 28 No que concerne à beneicência para com os não iniciados, percebemos a constante colaboração da Maçonaria na implan- tação de creches, asilos, escolas e hospitais, além da presença de maçons no próprio gerenciamento destas instituições, muitas das quais, de caráter para-maçônico2. Além da ajuda material, a ca- ridade maçônica é entendida também como colaboração para o aperfeiçoamento intelectual e moral da humanidade. Neste caso, cabe aos iniciados levarem as luzes do saber aos despossuídos, guiando-os, pela via da instrução, rumo às ideias mais elevadas. É importante destacar que a ilantropia conigurou-se como um instrumento de aceitação dos pedreiros livre e de sua ordem por parte da sociedade, principalmente, em momentos nos quais a Igreja radicalizou sua condenação às atividades maçônicas. Por- tanto, a ilantropia pode ser entendida como um mecanismo de divulgação e enaltecimento da ordem que lhe garante um legiti- mado espaço de atuação. Mais do que isto, ela cria redes de poder e laços de clientelismo que garantem a inluência da instituição e de seus membros em importantes círculos do mundo profano. Finalmente, o último preceito maçônico, por nós analisado, corresponde ao da igualdade entreos homens. Todos os obrei- ros, diz a Maçonaria, “consideram-se iguais entre si e irmãos, só havendo entre eles as diferenças que decorrem da prática da vir- tude” (Código Maçônico, 1914, p. 6). A Maçonaria pretende ser um espaço de encontro onde os homens veriam anuladas suas diferenças provenientes do nascimento, da classe, da religião ou da nacionalidade, havendo, como único critério de diferencia- ção, o mérito individual. Dentro da loja, homens de diferentes posições no mundo profano, sentariam, comeriam e cantariam juntos, sem distinção. Todavia, vale ressaltar que a dimensão da igualdade maçônica encontrou inúmeras oscilações ao longo da 2. A Instituição par-maçônica caracteriza-se por ser criada, fomentada ou dirigida pela Maçonaria e estruturada dentro dos preceitos da ordem, embora possua pro- fanos dentre seus componentes e seja administrativamente autônoma em relação à ordem maçônica. Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 29 história, sendo que as hierarquias e distinções do mundo profano, por vezes, reletiram-se no interior das lojas. Antônio H. Mar- ques, ao analisar a Maçonaria portuguesa do século XVIII, ressal- ta que a indistinção entre ordens e classes não ocorria de forma absoluta. Diz o autor que “a maçonaria portuguesa discriminava em termos sociais, surgindo como união entre nobreza, clero e burguesia e não como uma sociedade cem por cento democráti- ca” (Marques, 1990, p. 291), o que, segundo ele, seria consequên- cia mais da realidade objetiva da sociedade portuguesa naquele tempo do que de uma discriminação de princípio. Os pré-requisitos exigidos para que um homem adentrasse na Maçonaria mantiveram, principalmente ao longo do século XVIII e XIX, aspectos excludentes, uma vez que seus critérios ul- trapassavam as questões do mérito pessoal. Segundo o texto da Constituição de Anderson, “as pessoas admitidas na qualidade de membros das lojas devem ser homens bons e leais, de nascimento livre, de idade madura e razoável, de boa reputação, sendo proibi- do admitir na maçonaria, escravos, mulheres e homens imorais, cuja conduta seja motivo de escândalo” (Castellani; Rodrigues, 1995, p. 41). Aproximando-se do texto citado, a Maçonaria bra- sileira no século XIX estabelecia como requisitos mínimos para pertencer à ordem: ser homem, ter 21 anos de idade, instrução primária, reputação de bons costumes, ter ocupação livre e de- cente, meios suicientes de subsistência, estar isento de crime e não possuir nenhum defeito físico (Barata, 1998). É importante, todavia, não negligenciarmos a dimensão histórica da instituição maçônica. Seria anacrônico exigirmos que a Maçonaria, nos séculos XVIII e XIX, atribuísse ao conceito de igualdade o mesmo sentido que lhe é dado nos dias atuais. É preciso termos em mente que as sociedades que elaboraram os dois textos acima citados, isto é, a inglesa e a brasileira, encontravam limites para a efetiva implantação de novos modelos e valores sociais. José Guilherme Merquior, por exemplo, ao analisar o li- Michel Silva (Org.) 30 beralismo inglês, demonstra que, no século XIX, os privilégios aristocráticos ainda não haviam sido completamente superados. Do mesmo modo, as elites brasileiras oitocentistas ainda demons- travam um profundo apego aos valores nobiliárquicos herdados da cultura ibérica (Merquior, 1991). Diante do exposto, é possí- vel airmar que a igualdade preconizada pela Maçonaria, embora não tenha sido implementada de modo absoluto, apresentou-se como uma proposta inovadora em meio a seu contexto histórico. Por im, Marco Morel (2001) chama-nos a atenção para a verdadeira incoerência do discurso igualitário maçônico. Funda- mentando-se sobre uma forma aguda de distinção: os iniciados e os não iniciados, os que habitam as luzes e os que se mantêm nas trevas, a Maçonaria acaba por colocar seus obreiros como quali- tativamente superiores aos profanos. 2. A maçonaria e sua linguagem simbólica Diferentemente de outras organizações sociais, não há na Maçonaria um conjunto de escritos que contenham e traduzam todos os seus preceitos, ilosoias, normas e ritos. Embora a Cons- tituição de Anderson seja ainda uma referência para a Maçona- ria e seus estudiosos, a simplicidade e a objetividade de seu texto não lhe permitem esgotar toda a riqueza da cultura maçônica. De fato, o cerne da ilosoia maçônica vem sendo transmitido e per- petuado entre as gerações por meio de uma linguagem não tex- tual, mas, sim, simbólica, baseada em mitos, rituais e alegorias. Esta linguagem simbólica constituiu-se no principal instrumento pedagógico adotado pela Maçonaria com o propósito de inculcar entre seus membros os preceitos e as divisas da ordem. O corpo simbólico maçônico foi alimentado por elementos culturais múltiplos, advindos da cultura grega, egípcia, oriental e, principalmente, judaico-cristã. O mito de origem da ordem, bem como a base do ritual maçônico, giram em torno do personagem Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 31 bíblico de Hiram, o arquiteto chefe da construção do templo de Salomão. Já os graus simbólicos (aprendiz, companheiro e mes- tre), os ornamentos e insígnias maçônicas (esquadro, compasso, prumo, malhete, trolha, etc) aludem à cultura medieval das anti- gas corporações de construtores (Naudon, 1968). Faz-se necessário ressaltar que os mitos, os símbolos e os ritos não são privilégios do pensamento e das culturas religiosas. Ao contrário, eles correspondem aos ingredientes vitais da civiliza- ção humana, permitindo-lhe expressar o desejo quase inato do homem de saber cada vez mais acerca do mundo e de si próprio. Na busca pela compreensão do mundo em sua totalidade, da sua signiicação e de sua ordenação de forma coerente, o ser humano encontra na simbologia uma forma de falar, ver e sentir dimen- sões da realidade que são inatingíveis racionalmente e de difícil apreensão de modo direto pela consciência discursiva. Em outras palavras, a linguagem simbólica exprime, em planos diferentes e meios que lhe são próprios, um complexo sistema de airmações coerentes sobre a realidade última das coisas (Eliade, 1969). Diante dos anseios humanos acima referidos, a Maçonaria construiu em torno de sua simbologia e da fábula capital de Hi- ram, não só um mito de origem que explica e legitima sua insti- tuição, mas, também, uma ilosoia própria que tem como escopo dar coerência e propósito à existência do ser humano. O poder de inluência de um mito sobre uma comunidade encontra força na sua ininita repetição, no seu eterno recontar. Desse modo, cada vez que se realiza um ritual maçônico, a lenda de Hiram é rememorada e sua lição moral introjetada. Na narra- tiva lendária, os maçons encontram o exemplo de idelidade, de nobreza e de respeito às hierarquias, isto é, os valores e virtudes que todo membro da ordem deve resguardar: A lenda de Hiram continua a ser uma das pedras simbóli- cas da franco-maçonaria atual.[...] Tendo cessado para nós a arte operativa (a construção de edifícios materiais) nós, en- Michel Silva (Org.) 32 quanto mações especulativos, simbolizamos o trabalho de um templo espiritual em nossos corações, templo puro e sem má- cula [...] Essa espiritualização do templo de Salomão é a pri- meira das instruções da Franco-maçonaria. (Naudon, 1968) Os mitos, além de estabelecerem modelos de comportamen- to, possuem a importante função de legitimar instituições, uma vez que constroem uma explicação de suas origens. Relatando algo fabuloso, que se supõe acontecido num passado remoto, o mito estabelece uma relação de continuidade entre este momento fundador, normalmente perfeito, com uma instituição ou socie- dade do momento presente. No caso da Maçonaria, a legitimi- dade da instituição é dada por uma narrativa que parte de uma referência bíblica – II livro de Crônicas, capítulo 2 – portanto, sagrada e irrefutável. Finalmente, é preciso ressaltar que a linguagem simbólica instituídapela Maçonaria, o compartilhamento de rituais, mitos e alegorias decodiicadas apenas pelos irmãos da ordem, favorece a identiicação e a coesão do grupo. A linguagem simbólica apro- xima os homens de uma maneira mais eicaz e real do que a lin- guagem analítica. Para Mircea Eliade (1968, p.13), “se existe uma solidariedade total do gênero humano, ela só pode ser sentida e “atuada” no nível das imagens”. Em um raciocínio próximo, Eric Hobsbawm lembra-nos como o compartilhamento de signos, si- nais, toques, rituais de iniciação, isto é, de “tradições inventadas” que se dão a partir da continuidade com um passado histórico, inculcam normas de comportamento e criam sentimentos de identidade coletiva (Hobsbawn; Ranger, 1984). Frente ao que foi demonstrado até agora, chama-nos atenção a complexidade da natureza maçônica. Se, por um lado, entende- mos a Maçonaria como um espaço propiciador da liberdade de expressão, das práticas representativas e do culto à razão, valores típicos das sociedades modernas, por outro, encontramos, tam- bém, uma instituição com uma reinada cultura ritualística e um Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 33 apego às tradições, à mística, à hierarquia e aos princípios mo- rais. A Maçonaria especulativa é fruto da mistura do pensamento medieval, renascentista e iluminista. Diante disto, percebemos a coniguração de uma instituição que relete em suas estruturas o espírito progressista da época das luzes, ao mesmo tempo em que se mantém carregada de valores e simbologias medievais. Os preceitos maçônicos são, assim, fruto da interação entre o tradi- cional e o moderno, o racional e o mítico. Todavia, não acreditamos haver incoerência nesta consti- tuição, ao mesmo tempo moderna e tradicional da Maçonaria. Tampouco, seu apego à tradição e a um passado místico nega ou inviabiliza seu projeto progressista. Inúmeras foram as ideologias modernas e progressistas que se inspiraram nos sublimes tem- pos do começo ou, em outras palavras, poucas foram as visões do futuro que não se apoiaram em referências do passado (Gi- rardet, 1987). A modernidade também necessita estabelecer com um passado ou com uma determinada tradição, uma relação de continuidade para se legitimar, sendo que, as inovações não se tornam menos novas ao revestirem-se de um caráter de antigui- dade. Diante disto, pessoas ou instituições progressistas, tal como a Maçonaria, podem, frequentemente, agir de modo tradiciona- lista, sem cair em contradição. 3. Cultura e subculturas maçônicas Uma instituição formada por um corpo sagrado de crenças e, ao mesmo tempo, historicamente remoldável. É assim que deini- mos a Maçonaria, a partir da análise até aqui realizada. O estudo da formação e da organização da Maçonaria pelo mundo revela-nos uma história marcada por abalos, cisões, ir- rupções e conlitos. Do mesmo modo, a análise dos preceitos que a fundamentam denuncia menos uma essência maçônica profes- sada universalmente, e mais um conjunto de normas e valores Michel Silva (Org.) 34 passíveis de interpretações e apropriações múltiplas. A maioria dos pesquisadores da Maçonaria, todavia, já é unânime em ad- mitir a impossibilidade de se pensar em uma instituição unívo- ca e coesa. Marco Morel, por exemplo, defende que a Maçonaria constitui-se muito mais em uma concepção de organização do que numa entidade monolítica ou portadora de uma visão de mundo especíica (Morel, 2001). Em raciocínio semelhante, Fer- rer Benimeli, um dos maiores estudiosos da Maçonaria na atua- lidade, fala-nos da diiculdade em deinir esta sociedade de ma- neira precisa, abrangendo-a em toda a sua extensão. Ao destacar os inúmeros desvios, abusos e subdivisões surgidas no interior da instituição, o autor ressalta que “nem sequer se pode falar de uma maçonaria única, dados os seus múltiplos ritos, obediências e ins diametralmente opostos, embora se sirvam de uma terminolo- gia e de uma forma de organização idênticas” (Benimeli, 1983, p. 246). Frente a estas observações, Eliane Colussi (1998) conclui ser mais coerente, historicamente, falar em maçonarias. No presente texto demonstramos a existência de um fundo teórico comum que orienta e estrutura todos os discursos maçô- nicos e que se pauta em ideias próximas às do movimento ilus- trado, tais como a do progresso, da razão, da universalidade da natureza humana, etc. Entretanto, é preciso ter em mente que o uso em comum de um discurso não garante que ele esteja sendo compreendido e instrumentalizado da mesma maneira. Roger Chartier, a partir do estudo das práticas de leituras, ajuda-nos a pensar a questão aqui colocada. Segundo ele, não existe um senti- do intrínseco, absoluto, único do texto, ou seja, suas ideias não se apresentam como categorias universais de interpretação (Char- tier, 1990). Ao contrário, seu sentido é construído historicamen- te. Embora os autores de um discurso queiram mantê-lo sujeito a um sentido único, a aceitação de uma mensagem opera-se sem- pre através de desvios e reempregos singulares. Em síntese, cada leitor, a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais, Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 35 históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos particular, ao texto de que se apropria. A liberdade ou o poder que o receptor tem de atribuir senti- do a uma ideia que lhe foi lançada mostra-se clara na análise das inúmeras interpretações que as divisas e proposições maçônicas receberam. Conforme explicitado anteriormente, o entendimen- to acerca do caráter apolítico da ordem ou de sua relação com a religião, por exemplo, ganhou formas diversas a partir do con- texto histórico-cultural das maçonarias nacionais. Até mesmo os mitos e símbolos maçônicos foram decodiicados de maneiras di- ferentes, o que não nos causa estranhamento, uma vez que o mito é fundamentalmente polimorfo e ambivalente, estando suscetível às numerosas ressonâncias e signiicações, por vezes opostas. A potencialidade de se conferirem sentidos múltiplos aos pre- ceitos maçônicos é ampliada pela natureza vaga e subjetiva de mui- tos deles, tal como o discurso da moral, da virtude e do progresso. A concepção de progresso, por exemplo, não carrega consigo um sentido único, tendo sido, por isto, apropriada por diferentes agen- tes discursivos. Embora partam de um mesmo fundamento – a humanidade, que, possuidora de uma natureza comum, caminha, linearmente, rumo a níveis mais avançados de desenvolvimento –, as teorias progressistas elaboraram diferentes modelos de so- ciedades utópicas. A cultura socialista, por exemplo, vislumbra, a partir de uma revolução proletária, uma sociedade sem classes. Já os positivistas projetavam, para o inal do processo evolutivo, uma ditadura republicana. A Maçonaria, por sua vez, entrevê para o futuro uma humanidade unida e aperfeiçoada intelectual, moral e materialmente. Todavia, quando chega a hora de se deinir em que consiste este aperfeiçoamento ou este progresso, quais seriam os ins a serem alcançados por eles, bem como o caminho a seguir para atingi-los, não faltam dissensões. Traduzidas para o plano da organização efetiva das sociedades ou da política de um Estado, as divisas maçônicas fundamentaram propostas as mais variadas, quando não, díspares (Morel; Souza, 2008). Michel Silva (Org.) 36 Conclui-se, portanto, que a Maçonaria não se conigura como uma instituição acabada e passível de deinição a partir de um modelo explicativo único. Ao contrário, ela vem assumindo múltiplas feições, em diferentes épocas e lugares, e que vão sen- do construídas a partir de ininitos arranjos entre suas divisas e preceitos e as resigniicações a eles impostas pelas necessidades e anseios de determinados contextos históricos. Após levantarmos a possibilidade de serem realizadas dife- rentes leituras e instrumentalizações dos preceitos maçônicos, uma incômoda indagação reclama-nos uma resposta: é ainda possível pensarmosna existência de uma cultura maçônica? Uma Cultura corresponde a um conjunto complexo de lin- guagens, comportamentos, valores, crenças, representações e tradições partilhadas por um determinado grupo humano e que lhe conferem uma identidade. Frente a tal deinição, todavia, é importante guardar o cuidado de não estabelecermos uniformi- zações exageradas. Rodrigo Patto Sá Motta lembra-nos que as sociedades, principalmente as complexas, são marcadas por nu- anças, particularidades e divisões internas. Nesse sentido, suas estruturas culturais podem não ser partilhadas por toda a coleti- vidade (Motta, 1996). Diante do exposto acima, forjou-se o conceito de subcultura para dar conta da complexidade cultural. Deste modo, as forma- ções sociais podem ser compostas de subculturas que partilham de alguns elementos da cultura mater, ao passo que mantêm ca- racterísticas próprias (Motta, 1996). Acreditamos que este mo- delo explicativo aplique-se corretamente à cultura maçônica. Neste caso, a sua cultura mater fundamenta-se numa estrutura organizacional típica e num corpo simbólico, mítico e ritualístico responsável por conferir às várias subculturas maçônicas, isto é, às várias expressões e formatos assumidos pelas lojas maçônicas, um sentimento recíproco de identiicação, uma noção de perten- cimento a um grupo maior e, por im, uma diferenciação em re- lação à cultura e à sociedade profana. Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 37 Isto posto, torna-se importante elencar, rapidamente, os ele- mentos que, ao nosso entender, dão consistência à identidade maçônica. Todas as lojas, independente do rito, obediência ou nacionalidade às quais pertençam, compartilham um mesmo passado mítico, isto é, um mesmo marco fundador, percebendo- -se como herdeiras da arte e dos valores do emblemático Hiram. Também, os símbolos de reconhecimento maçônico são sempre os mesmos, o que permite a uma loja maçônica ser identiicada como tal em qualquer lugar do mundo. Do mesmo modo, a ter- minologia maçônica, os toques e os sinais empregados, dentro e fora das lojas, possibilitam aos obreiros, em qualquer lugar em que estejam, reconhecerem-se em meio aos profanos. Os elemen- tos de identiicação maçônicos são tão poderosos que possuem a capacidade de levar pessoas de diferentes nacionalidades, que jamais se encontraram e nem se encontrarão, a sentirem-se pos- suidoras de vínculos que as fazem iguais e comprometidas umas com as outras. Tais homens, iniciados nos mesmos mistérios e conhecedores dos mesmos segredos, embora não convivam dia- riamente e tampouco dividam o mesmo espaço físico, compõem uma única comunidade que ganha existência no nível do imagi- nário. Por im, cabe ressaltar que o próprio fundamento teórico maçônico atua como elemento uniicador, na medida em que di- ferentes homens, ao propalarem preceitos comuns, mesmo que só em sua forma, consideram-se agentes de uma mesma causa. Os maçons, por exemplo, são unânimes em se airmarem como os maiores defensores da liberdade, igualdade e fraternidade, ain- da que estas bandeiras, em diferentes contextos, assumam signi- icados diversos. Cabe destacar que para a compreensão do que seja uma cul- tura, mais importante do que se constituir, concretamente, como uma comunidade coesa, homogênea e universal, é a imagem que os indivíduos alimentam da coletividade à qual pertencem. Os maçons, de modo geral, sentem-se efetivamente ligados a um Michel Silva (Org.) 38 agrupamento de homens que, embora não visíveis no plano do olhar, encontram-se “lá”, conscientes da existência uns dos ou- tros. São estes sentimentos de identidade, de comunidade e de pertencimento, não explicados apenas pelo plano da razão, mas também da tradição, do costume e do imaginário, que nos permi- te airmar a existência de uma cultura maçônica. Por im, a constatação da existência de uma cultura maçôni- ca, subdividida em várias subculturas, leva-nos à associação da Maçonaria a um longo tecido que, visto por um olhar distancia- do, aparenta possuir forma e cor homogênea. Analisado de perto, entretanto, o tecido maçônico revela-nos um entrecruzamento de diferentes matizes que se mantêm unidos por pontos de inter- seção, que nada mais são do que os elementos constitutivos da identidade maçônica. Deste modo, a cultura mater da Maçonaria corresponde aos liames que impedem o total esgarçamento deste tecido e, consequentemente, o surgimento de instituições com- pletamente distintas. 39 Capítulo 3 Hipólito José da Costa, a sociabilidade maçônica e a (re)construção da memória Bruna Melo dos Santos Introdução Hipólito José da Costa, redator do Correio Braziliense (1808- 1822), primeiro jornal brasileiro, atuou em dois importantes campos de sociabilidades: a Imprensa e a Maçonaria, que contri- buíram para as transformações do espaço público no contexto de transição do absolutismo para os liberalismos e as novas formas de liberdades. Hipólito é uma personagem com muitas facetas, aqui interessa destacar a sua faceta maçônica e, consequentemen- te, sua posição diante desta rede de sociabilidade, que, em sua concepção, era muito útil às nações pelo fato de polir os costu- mes, fomentar virtudes patrióticas e algumas morais aos homens que faziam parte dela. Antes de prosseguirmos com as discussões acerca da socia- bilidade e da (re)construção da memória maçônica de Hipólito da Costa, faz-se necessário uma breve exposição da trajetória de vida do redator do Correio Braziliense. Hipólito nasceu em 1774 na Colônia do Sacramento, uma região que ainda não tinha “domínio” deinido. A região teve sua colonização iniciada por Portugal nos idos de 1718, quando casais oriundos da região portuguesa de Trás-os-Montes foram levados para lá com a inalidade de ocupar o território, que já estava sendo reivindicado pela Espanha. No ano de 1777, iniciou- -se uma disputa entre Espanha e Portugal sobre a região e, com a Michel Silva (Org.) 40 assinatura do Tratado de Santo Ildefonso, icou registrada a posse da Espanha sobre a Colônia de Sacramento. Várias famílias, oriundas da colonização portuguesa, dentre elas a família de Hipólito, tiveram que deixar a região e se abriga na parte meridional do Rio Grande do Sul, mais especiicamente na vila de Rio Grande, território espanhol que havia sido con- quistado pelos portugueses. Hipólito passou parte da adolescência no Rio Grande do Sul e o resto da vida como um cosmopolita. Começou cedo nos es- tudos. Aos 18 anos de idade, matriculou-se na Universidade de Coimbra, em 1796 já estava formado em Filosoia e, no de ano de 1798, aos 24 anos, formava-se, também, em Leis. Esse foi um caminho trilhado por muitos ilhos da elite colo- nial brasileira, que depois de formados passavam a fazer parte do grupo dos homens letrados nascidos no Brasil, que gravitavam em torno da igura de D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro e secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos de Portugal. Sem ter muitas escolhas, já que o contexto social acaba- va lhes impondo esse caminho para alcançarem o status de “esta- belecido” na sociedade de letras, Hipólito também fez parte desse grupo, o qual Kenneth Maxwell chamou de “geração de 1790” (Maxwell, 1990, p. 90). De fato, Hipólito não demorou muito para se estabelecer dentro do grupo dos letrados e ser patrocinado pela Coroa de Portugal. Em 1798, seguiu para os Estados Unidos da América, onde icou até 1800, pesquisando técnicas agrícolas, do comércio e da indústria, que pudessem contribuir para o desenvolvimento do Império português e seus reinos. Segundo o próprio Hipólito, foi durante esse período que fez sua iniciação na Maçonaria, na cidade de Filadélia. Ao cumprir a missão cientíica, retornou a Portugal, onde assumiu o cargo de diretor da Impressão Régia de Lisboa, anti- ga Casa Literária do Arco do Cego. Já em posse do novo cargo, Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 41 seguiu em 1802 para Londres, a pedido deD. Rodrigo de Souza Coutinho, para adquirir material tipográico para a Impressão Régia. Aproveitando-se da oportunidade, Hipólito da Costa deu andamento às negociações para uniicar e organizar as maçona- rias de Portugal, que estavam enfraquecidas por conta das inú- meras perseguições empreendidas pelos poderes conservadores do mundo luso-brasileiro, mais precisamente pelo Intendente Geral de Polícia, Pina Manique (Marques, 1990, p. 80). No entanto, a atitude ousada de Hipólito foi descoberta e de- nunciada à Coroa portuguesa, que ordenou sua prisão assim que retornou de Londres. No momento da prisão, alguns papéis que conirmavam as suspeitas da Inquisição do envolvimento com a sei- ta diabólica foram apreendidos com Hipólito. Com tantas evidên- cias, o destino de Hipólito não podia ser outro, dentro de um país atrasado e que ainda mantinha um processo arcaico de julgamento. A acusação que recaía sobre o réu Hipólito José da Costa era de pertencer à sociedade maçônica. Hipólito questionou inúme- ras vezes essa acusação, uma vez que sua iliação à Maçonaria ocorreu em Filadélia, Estados Unidos, onde não era crime algum alistar-se nesta ordem e que, portanto, não podia ser julgado por algo que fez em outro país. Além do mais, não havia em Portugal lei alguma que proibisse a Maçonaria, portanto, não era crime pertencer à ordem maçônica, pois o cidadão livre pode obrar tudo o que não é proibido pelas leis (Costa, 2009, p. 33). Pelo seu pertencimento à Maçonaria, Hipólito da Costa amargou quase três anos na prisão, de 1802 a 1805, pelo crime de pertencimento a esse tipo de conventículo que era proibido pelas leis canônicas. Porém, como airma o próprio, diante da Inquisi- ção não negou ou se arrependeu de pertencer a essa “sociedade de homens, que não tem outro im senão fazer bem às famílias consternadas; cujo símbolo é a caridade, principal virtude da re- ligião” (Correio Braziliense, 1816, p. 781). Michel Silva (Org.) 42 Muito pelo contrário, após fugir dos cárceres da Inquisição e se estabelecer em Londres – sob a proteção de Duque de Sussex, grão-mestre da Maçonaria e membro da Família Real Inglesa –, Hipólito saiu em defesa da Maçonaria e fez saber ao público as virtudes maçônicas que orientavam e davam coesão às Lojas. Em diversas oportunidades, seja no Correio Braziliense, na Narrativa da Perseguição ou nas Cartas sobre a Framaçonaria, discorreu sobre a utilidade da sociabilidade maçônica e, ainda que qualquer tipo de sociedade pudesse trazer às nações, desde que não fosse para ins criminosos, como criar vínculos fraternos entre os cidadãos. Além das utilidades de polir os costumes, as sociedades eram muito úteis por fazer aumentar a sociabilidade entre os homens e intensiicar o amor que eles possuíam pela pá- tria; e este era maior quanto fossem maiores e mais numerosas as relações de amizade e parentesco; em uma palavra, quanto maior fosse a sociabilidade dos cidadãos, maiores seriam suas virtudes patrióticas (Costa apud Guimarães, 2000, p. 68). Para Hipólito, as sociedades maçônicas, assim como as so- ciedades literárias, também deviam ser incentivadas como for- ma de instruir os cidadãos sobre os bons costumes e a moral. Sinalizava que, além da sua utilidade para a nação, a Maçonaria também se encarregava da educação e “arrumação dos órfãos” de seus membros, estimulando, dessa forma, as virtudes do socorro mútuo quando um ou outro irmão vivenciava situação de apuros. Com o discurso de exaltação da fraternidade, da beneicência, da observância das leis, entre outros princípios, legitimava a impor- tância da Maçonaria na missão de levar a civilização aos homens. [...] a utilidade da sociedade ou se pode considerar relativa- mente à nação, ou relativamente aos indivíduos, membros da sociedade. Se a considerarmos pela utilidade que dela pode resultar à nação, não pode chamar-se inútil; visto que, ica provado que todas as sociedades particulares, que não são para maus ins, são úteis; porque aumentam a sociabilidade Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 43 entre os homens, [...] e fomentam as virtudes patrióticas e ainda algumas morais. (Correio Braziliense, 1809, p. 269) A mesma visão sobre a Maçonaria é encontrada no contem- porâneo de Hipólito, o jornalista José Liberato Freire de Carvalho, que também fez parte da sociabilidade maçônica. Em suas memó- rias, José Liberato relata que a sua iniciação se deu pela curiosi- dade em descobrir o que havia naquela sociedade tão perseguida pelo Estado e pela Igreja, mas que, ao mesmo tempo, era composta por vários homens honestos. Ao ser iniciado na Loja Fortaleza re- latou que encontrou ali “não só homens honestos, mas até virtuo- sos, e de costumes os mais puros” (Liberato, 1855, p. 30). A justiicativa da curiosidade, como um motivador para per- tencer à Maçonaria, foi utilizada também por Hipólito da Costa. Dessa forma, ele explicou ao presidente da Inquisição, Manuel Estanislau Fragoso, que pelo motivo de ter acompanhado: [...] o funeral e enterro de um pedreiro-livre, bastantemen- te [sic] numeroso dos membros daquela sociedade, e com os aventais, e insígnias que correspondiam aos seus graus e representações, se lhe animou pela referido objeto o desejo, e curiosidade de querer indagar de mais perto o misterio- so segredo com que se cobriam os ins e procedimentos da mesma sociedade [...]. (ANTT, n.17981, p. 12) As acusações que a Igreja e o Estado faziam à Maçonaria não condiziam com a realidade desta associação que era “a mais justa, a mais bem imaginada, e mais útil para a humanidade de quantas se têm formado no mundo”. Para Liberato, a deinição da ordem maçônica estava intimamente relacionada à prática de caridade, portanto ela “é toda humanitária, e ilantrópica; é toda de cari- dade, e a sua caridade é universal, porque se estende a todas as crenças, e a todos os povos do mundo” (Liberato, 1855, p. 33). Michel Silva (Org.) 44 Além do caráter ilantrópico, Liberato ainda ressaltou o prin- cípio de socorro mútuo que existia entre os maçons, pois em qualquer lugar do mundo o maçom é socorrido por outro, sendo isto uma obrigação e um dever da Maçonaria. Assim, ele citou como exemplo D. Pedro, que sendo “Imperador do Brasil e Rei de Portugal, os conheceu [pedreiros-livres] bem de perto, e quais eram as suas leis, e as suas intenções”, quando foi aceito maçom no Rio de Janeiro, alcançando o degrau maior de Grão-Mestre (Liberato, 1855, p. 33). Como podemos observar, a defesa de José Liberato em prol da Maçonaria em muitos pontos se confunde com o próprio dis- curso maçônico de Hipólito da Costa. Na realidade, não se trata de uma coincidência, mas sim de um pensamento típico do re- formismo ilustrado e estava em concordância com o pensamen- to maçônico emergido do contexto iluminista, que se propagava dentro das Lojas. Hipólito da Costa e José Liberato izeram parte dos mesmos espaços de sociabilidade: a Maçonaria e a Imprensa, importantes locais de reunião dos homens letrados do oitocentos. Portanto, é interessante analisar a obra Memórias da vida de José Liberato Freire de Carvalho como fonte para se compreender algumas la- cunas que ainda não foram preenchidas na trajetória de vida do maçom Hipólito José da Costa. Liberato, por meio de suas memórias, narrou fatos que, co- mumente, se repetem acerca da vida do redator do Correio Bra- ziliense como, por exemplo, a sua fuga, no mínimo suspeita, dos cárceres da Inquisição, pelo portão da frente. Esta ocorreu em um dia em que Hipólito, percebendo que havia apenas um guarda para vigiar toda cadeia, ingiu uma forte dor na barriga solicitan- do assim que o guarda aquecesse um pouco de água para ele. As- sim este o fez, deixando o prisioneiro sozinho e ao seu alcance o molho de chaves que fechava as portas do cárcere. Foi então que: Maçonaria no Brasil: história, política e sociabilidade 45 [...] descalçando as botas, e eniando-as nos braços,
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