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direito e feiticaria

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ 
SETOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO 
 
 
 
DANIELLE REGINA WOBETO DE ARAÚJO 
 
 
 
 
 
 
 
 
UM “CARTÓRIO DE FEITICEIRAS”: 
DIREITO E FEITIÇARIA NA VILA DE CURITIBA (1750-1777) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CURITIBA 
2016
 
 
 
 
DANIELLE REGINA WOBETO DE ARAÚJO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
UM “CARTÓRIO DE FEITICEIRAS”: 
DIREITO E FEITIÇARIA NA VILA DE CURITIBA (1750-1777) 
 
Tese de Doutoramento apresentada como requisito 
parcial à obtenção do título de Doutora em Direito pelo 
Programa de Pós-Graduação em Direito do Setor de 
Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. 
 
Orientador: Prof. Dr. Luís Fernando Lopes Pereira 
 
 
 
 
 
 
 
 
CURITIBA 
2016 
TERMO DE APROVAÇÃO
DANIELLE REGINA WOBETO DE ARAÚJO
UM “CARTÓRIO DE FEITICEIRAS”:
DIREITO E FEITIÇARIA NA VILA DE CURITIBA (1750-1777)
Tese aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutora no 
Curso de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas da 
Universidade Federal do Paraná, pela seguinte bancaram inadora:
'Prof. Dr. Luís Fernando Lopes Pereira 
Orientador - Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Prof3. Dr3. Qílara Mjajia Vornan Borges 
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Profa. Dr3. MarialFilpmènà-Coelho 
Universidade Nacional de Brasília (UnB)
Prof. Dr. A lbertö^fe^cnneraer 
Pontíficia Univ^tstdãHe Católica de São Paulo (PUC-SP)
Prof.3 Dr.3 Ana Maria de Oliveira Burmester 
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Curitiba, 05 de setembro de 2016.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A todas as mulheres. 
 
Mexo, remexo na Inquisição/Só quem já morreu na fogueira/Sabe o que é ser 
carvão/Eu sou pau pra toda obra/Deus dá asas à minha cobra/Minha força não é 
bruta/Não sou freira, nem sou puta/Porque nem toda feiticeira é corcunda (...). 
Rita Lee 
 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
No ano em que completo meus 40 anos, se exaure meu ciclo acadêmico com 
este doutoramento. Nestes quatro anos de doutorado, muito se passou: dialoguei com 
brilhantes professores e colegas de academia; tive a oportunidade de exercer a função 
de professora de História do Direito na UFPR; pesquisei em incríveis arquivos e 
bibliotecas nacionais e internacionais; participei de grupos de estudo; quebrei duas 
vezes a perna; tornei-me tia; desfrutei das melhores companhias; e, por fim, sentei 
solitariamente e me dediquei à árdua tarefa de escrever uma tese, momento em que 
vi minhas potencialidades, mas também minhas limitações, e por elas sofri, aprendi e 
cresci. Assim, com um sorriso no rosto e o coração recheado de amor e alegria, 
agradeço: 
À minha família, que incondicionalmente me deu total apoio durante toda essa 
caminhada. Sou e serei eternamente grata a vocês. “Gracias a la vida!”. 
Ao Luís Fernando Lopes Pereira, por mais de 20 anos de amizade, por 6 anos 
de orientações e “desorientações”, e por sempre me incentivar. Um privilégio conviver 
com você, Amélia e Francisco. 
A todos os membros do corpo docente, em especial, aos professores doutores 
Vera Chueiri, Katya Kozicki, Clara Maria Roman Borges, Katya Isaguirre, Ricardo 
Marcelo Fonseca, Celso Luiz Ludwig, André Peixoto, José Antonio Peres Gediel, 
Cesar Serbena, Egon Bockmann Moreira e Antonio Manuel Hespanha, que 
participaram e inspiraram toda a minha jornada na pós-graduação na UFPR. 
Ao professor Adriano Prosperi e aos colegas que fiz durante o doutorado 
sanduíche na Scuola Normale Superiore di Pisa. Agradeço, também, ao Luigi e à 
Flavia, por me acolherem durante o meu “soggiorno” e me ensinarem a vivenciar “la 
dolce vita” italiana. 
A Geraldo, Elizabete e aos professores do Celin, que em mim plantaram e me 
fizeram amar a língua de Dante, “Grazie mille”. 
À Capes e ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, pela 
oportunidade, pelo incentivo e financiamento da pesquisa. 
Aos servidores da PPGD, especialmente, a Vanessa, Mauro, Luis Antonio e a 
fabulosa Jane. 
As amigas que gentilmente ajudaram-me na correção desta tese: Mariana, 
Liliam e Vanessa. 
 
 
 
 
A todos os bibliotecários e arquivistas que encontrei no caminho e que me 
auxiliaram na pesquisa, especialmente, Solange, Rosangela, e Laís, amigas de 
arquivos e que me ajudaram nas transcrições das fontes desta tese. 
Aos amigos, parceiros e cúmplices de doutorado, Giovanna e Leandro; entre 
disciplinas e indisciplinas, mas sempre juridicamente subversivos, construímos uma 
história e escrevemos nossas teses. 
Aos amigos de pós-graduação e da vida, Micheli, Juliana, Maíra, Diana, 
Daniel, Felipe, Julia, Helô, Hoshino, Lilian, Bruno e Ana Brolo; mentes inspiradoras e 
transformadoras que me enchem de orgulho e tornam minha vida mais colorida. 
Às meninas e aos meninos da nova geração da História do Direito: Luise, 
Vanessa, Sonia, Rebeca, Thais, Liliam, Karolyne, Mariana, mulheres poderosas com 
quem eu tenho o prazer de dialogar a História do Direito e as histórias da vida. Vocês 
fizeram toda a diferença na fase final da escrita desta tese. Ao Ivan, Hansen, Michael, 
João, Walter, Judá, Raul, Rafael, Dhyego, e Diego, que na mesma toada me 
proporcionam debates sobre a História do Direito e boas risadas. 
À Gabrielle, um encontro inesperado propulsor de constantes faíscas 
libertadoras. 
Aos incríveis amigos que me acompanham desde a Faculdade de Direito: 
Andrea, Fabia, Vania, Clarissa, Juba, Junia, Cassi, Fer, Ale, Lu, Marcelo, Giga, Regis, 
Marina, David e Anamaria. E também a Josi e ao Felipe. 
À Inês, Silvia, Maria Bethania, Máira e Ariete, amigas dos tempos da 
Faculdade de História e que, após 20 anos de nosso ingresso, ainda participam da 
minha vida. Com vocês e os professores doutores Francisco Paes (in memoriam) e 
Ana Maria Burmester conheci Jules Michelet, com sua obra prima “A feiticeira”, e Carlo 
Ginzburg, com o não menos espetacular “O queijo e os vermes”, livros e pessoas que 
inspiram esta tese. 
Aos amigos dos 40, 30, 20, da adolescência e da infância que ainda 
compartilham comigo as belezas de viver e que tiveram a paciência de me aguentar. 
A todos os meus alunos e ex-alunos, professores, e colegas de pós-
graduação, que me motivam a seguir na luta por uma educação crítica e de qualidade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os caminhos do mistério prometem as mais belas experiências. 
Einstein 
 
 
 
 
RESUMO 
 
A pesquisa tem como enfoque traçar alguns apontamentos acerca da cultura jurídica 
colonial, especialmente, material e processual criminal, por meio do delito da feitiçaria. 
Para tanto, metodologicamente emprega-se os recursos de Carlo Ginzburg tanto em 
relação ao paradigma indiciário, como a uma abordagem cultural que privilegia a 
circularidade cultural. O recorte espacial da tese é a Vila de Curitiba dada sua 
condição fronteiriça no Império Português e a sua relação de administração à justiça 
com a Ouvidoria de Paranaguá. O recorte temporal é o período pombalino (1750-
1775), em virtude da nova roupagem jurídica no âmbito do Direito e também da 
feitiçaria. Para tanto, as fontes desta tese são três processos criminais – uma devassa 
e dois processos ordinários – relativos ao delito de feitiçaria e curandeirismo que 
tramitaram na Vila de Curitiba, os quais foram examinados pela perspectiva do 
imaginário acerca do delito; dos argumentos jurídicos usados pelos operadores 
jurídicos; e, por fim, pela perspectiva processual criminal. A tese está estruturada em 
duas partes, a primeira, relativa às noções gerais acerca da feitiçaria e das jurisdições 
competentes para processar o delito no Império Português; a segunda, problematiza 
as fontes da tese levando em conta o que foi escrito na primeira parte para se 
reconstruir as tramas culturais, ideológicas, sociais e jurídicas que desencadearam as 
denúncias lavradas nos processos crimes. As considerações finais são no sentidode 
uma cultura jurídica que não era rústica, mas sim prática quanto ao direito criminal, 
conforme indicam as fontes pelo atuar dos procuradores. Quanto ao direito 
processual, concluiu-se com base no bom conhecimento das formalidades, usadas 
muitas vezes pró interesses locais, mas também para interesses da Coroa. No que 
concerne ao processamento do delito na justiça secular, as pistas apontam para uma 
preocupação com o dano decorrente da feitiçaria, ou seja, não se preocupa com 
heresias, como idolatrias, porém, não vê com bons olhos crenças não condizentes 
com a estabelecida pela Igreja, ainda que esta, na América Portuguesa, fosse 
vivenciada de modo mestiço. 
 
Palavras-chave: Cultura jurídica. Direito criminal e processual criminal colonial. 
Feitiçaria. Curandeirismo. América Portuguesa. Vila de Curitiba. 
 
 
 
 
 
 
 
RIASSUNTO 
 
La ricerca ha per scopo tracciare alcuni appunti sulla cultura giuridica coloniale, 
specialmente criminale e di procedura criminale, attraverso il reato della stregoneria. 
Pertanto, metodologicamente s’impiega le risorse di Carlo Ginzburg sia per quanto 
riguarda il paradigma indiziario, sia ad un approccio culturale che favorisce la 
circolarità culturale. L'area territoriale della tesi è la Vila di Curitiba data la sua 
condizione di confine nell'Impero Portoghese e il suo rapporto di amministrazione della 
giustizia con il Mediatore di Paranaguá. L'arco di tempo è il periodo Pombalino (1750-
1775) a causa della nuova veste giuridica nell’ambito del diritto e anche della 
stregoneria. Pertanto, le fonti di questa tesi sono tre processi criminali – una devassa 
e due processi regolari – per il reato di stregoneria e sciamanesimo che sono stati 
trattati nella Vila di Curitiba, che sono stati esaminati dalla prospettiva dell’immaginario 
circa il reato; dagli argomenti giuridici utilizzati dagli operatori giuridici; e, infine, dalla 
prospettiva delle procedure criminali. La tesi è strutturata in due parti, la prima, per 
quanto riguarda le nozioni generali circa la stregoneria e delle giurisdizioni competenti 
per processare il reato nell'Impero Portoghese; la seconda discute le fonti della tesi 
tenendo conto di quanto è stato scritto nella prima parte per ricostruire le trame 
culturali, ideologica, sociali e giuridiche che hanno scatenato le denunce registrate 
nelle cause penali. Le considerazioni finali sono nel senso di una cultura giuridica che 
non era rudimentale, ma sì, pratica per il reato di stregoneria come indicato dalle fonti. 
Per quanto riguarda il diritto processuale si è concluso per la buona conoscenza delle 
procedure usate spesso pro interessi locali, ma anche agli interessi della corona. 
Rispetto alla procedura del reato nella giustizia secolare gli indizi puntano ad una 
preoccupazione per il danno risultante dalla stregoneria, ossia, non si cura circa le 
eresie, come idolatrie, però, non vede con buoni occhi le credenze incoerenti con 
quelle stabilite dalla chiesa, anche se essa, nell’ America Portoghese, fosse 
sperimentata di modo meticcio. 
 
Parole chiave: Cultura giuridica. Diritto criminale e di procedura criminale coloniale. 
Stregoneria. Sciamanesimo. America Portoghese. Vila di Curitiba. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LISTA DE ABREVIATURAS 
 
ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo 
BAMC – Boletim Arquivo Municipal de Curitiba 
DEAP – Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná 
OF – Ordenações Filipinas 
REGIMENTO – Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de 
Portugal 
TAAAC – Livros de Termos de Audiências e Aferições dos Almotacés de 
Curitiba 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................... 12 
PARTE 1 
A FEITIÇARIA NO IMPÉRIO PORTUGUÊS 
1. A FEITIÇARIA EM PORTUGAL ............................................................................ 27 
1.1. A “CAÇA ÀS BRUXAS”: APONTAMENTOS HISTORIOGRÁFICOS .................. 27 
1.2. IMPÉRIO PORTUGUÊS: A NÃO “CAÇA ÀS BRUXAS” E A MENTALIDADE 
MÁGICA .................................................................................................................... 35 
2. JURISDIÇÕES ...................................................................................................... 54 
2.1. JURISDIÇÃO MISTA .......................................................................................... 54 
2.2. JURISDIÇÃO EPISCOPAL: BISPOS E PARÓQUIAS ........................................ 58 
2.3. JUSTIÇA INQUISITORIAL.................................................................................. 68 
3. JUSTIÇA SECULAR ............................................................................................. 94 
3.1. O DIREITO CRIMINAL E O PROCESSUAL CRIMINAL ..................................... 94 
3.2. TEORIA E PROCESSAMENTO DO DELITO ................................................... 104 
3.3. A FEITIÇARIA NA ORDEM JURÍDICA ............................................................. 122 
PARTE 2 
A FEITIÇARIA NA VILA DE CURITIBA 
1. A VILA DE CURITIBA: A ESPACIALIDADE E A CULTURA JURÍDICA ............ 130 
2. UM “CARTÓRIO DE FEITICEIRAS” E CIPRIANA ............................................ 153 
2.1. FEITIÇARIA ...................................................................................................... 153 
2.2. EM BUSCA DE SENTIDOS JURÍDICOS SUBSTANCIAIS .............................. 167 
2.3. EM BUSCA DE SENTIDOS JURÍDICOS PROCESSUAIS ............................... 171 
3. LUIZA E FRANCISCA......................................................................................... 187 
3.1. O CURANDEIRISMO ....................................................................................... 187 
3.2. EM BUSCA DE SENTIDOS JURÍDICOS SUBSTANCIAIS .............................. 197 
3.3. EM BUSCA DE SENTIDOS JURÍDICOS PROCESSUAIS ............................... 205 
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 218 
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 224 
ANEXOS ................................................................................................................. 247 
 
12 
 
 
 
CONSIDERAÇÕES INICIAIS 
 
 
Pouco se sabe sobre a feitiçaria no campo da justiça secular tampouco se 
conhece muito acerca da cultura jurídica do período colonial. A pesquisa que ora se 
apresenta visa traçar algumas considerações acerca desses dois temas. O objetivo é 
conhecer um pouco mais da cultura jurídica colonial criminal e processual criminal do 
período pombalino por meio do delito de feitiçaria previsto nas Ordenações Filipinas. 
Uma das problemáticas que envolve a feitiçaria é justamente o pouco 
conhecimento sobre ela sob a perspectiva da justiça secular, dada a falta de fontes, 
especialmente para o Império Português. Quase tudo que se sabe provém de fontes 
inquisitoriais, especialmente dos processos, os quais, como bem recorda Carlo 
Ginzburg, até a influência da Antropologia na História, foram um tanto quanto 
renegados pelos historiadores, pois consideravam que tais provas eram uma mistura 
de extravagâncias teológicas e superstições populares, que eram por definição 
irrelevantes. 1 
Porém, não se pode perder de vista que, durante quase toda a época 
moderna, a feitiçaria se configurou como uma categoria2 propriamente dita, ou seja, 
não era apenas um termo, mas um conceito amplamente debatido pela elite cultural, 
como demonstra a vasta produção literária do período, que contribuiu 
significativamente para o desencadeamento e a difusão “da caça às bruxas” 3 em 
inúmeros territórios europeus e por diversas instituições. 
Outra problemática que se apresenta é a que associa o fenômeno de “caça 
às bruxas” à fogueira da Inquisição, à tortura, aos excessos e à crueldade, de forma 
 
1 GINZBURG,Carlo. O Inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações. GINZBURG, 
Carlo, CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. In: A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: 
Bertrand Brasil, 1991, p. 205. 
2 Compartilha-se o entendimento de Antonio Manuel Hespanha acerca do uso do termo categoria ao 
invés de imagens, representações e conceitos. No caso em apreço usou-se o termo categoria em razão 
deste “remeter, na reflexão sobre o conhecimento, para ideia de modelos de organização das 
percepções, ‘realidade’ (...)”. Acerca do tema ver: HESPANHA, António Manuel. Categorias: um pouco 
de teoria da história. In: Imbecillitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades do Antigo 
Regime. São Paulo: Annablume, 2010, p.14. 
3 Os historiadores usam duas expressões para falar e explicar o período de perseguição às feiticeiras: 
a) “obsessão às bruxas”: de viés mais psicológico; b) “caça às bruxas”: expressão que designa o 
encadeamento jurídico dos processos e que comporta a identificação de indivíduos cuja opinião pública 
atribuía a prática de atividades secretas ou ocultas. Nessa tese, opta-se, seguindo a linha da maioria 
da bibliografia consultada, pela segunda expressão: “caça às bruxas”. (LEVACK, Brian P. La caccia 
alle streghe in Europa agli inizi dell’età moderna. Roma: Laterza, 2008, p. 6). 
13 
 
 
 
generalizada, a partir de casos excepcionais e que foram usados pelos humanistas e 
iluministas como argumentos contrários à antiga ordem.4 Entretanto, esse cenário 
teve particularidades no tempo e no espaço, e no Império Português, por diversos 
motivos, que serão vistos nesta tese não houve tal fenômeno nas proporções de 
outros locais europeus. 
Além das problemáticas acima apontadas, como se verá adiante, a doutrina 
jurídica portuguesa pouco se dedicou ao tema da feitiçaria assim, consubstancia-se 
ainda mais interessante examinar como, na prática, a justiça criminal colonial, por 
meio de seus operadores jurídicos imaginava e argumentava acerca do delito. 
Agrega-se a isso, o fato de que são incipientes os estudos que analisam a 
cultura jurídica colonial, especialmente, a partir do delito da feitiçaria. Tal delito, como 
outros, permite examinar aspectos sociais, culturais e jurídicos, como, por exemplo, 
as tramas que levavam às investigações e ao processamento do delito, os valores 
(critérios de justiça) em que a sociedade acreditava, os limites que pretendia manter, 
e os instintos que deveriam ser reprimidos.5 
O delito ainda permite tirar algumas conclusões acerca da “lenda negra” que 
recai sobre a cultura jurídica criminal da época moderna. Melhor explicando, imagina-
se, pensa-se e escreve-se sobre o direito criminal especialmente a partir das fontes 
inquisitoriais – normas e processo –, olvidando-se que outras jurisdições também 
tinham competência para averiguar a feitiçaria e desconsiderando que as práticas 
jurídicas criminais exercitadas nas estruturas das instituições do Antigo Regime 
relativizam o poder repressor contido nas normas. 
Esta “lenda negra” do direito criminal e processual criminal também é 
fomentada em virtude de leituras anacrônicas sobre o Direito de tal período, ou seja, 
muitas vezes, projeta-se para o passado categorias e valores atuais que em outros 
tempos, ou não existiam, ou eram lidos de outra forma, conforme alertam António 
Manuel Hespanha e Adriano Prosperi alguns dos principais marcos teóricos desta 
tese.6 
 
4 PROSPERI, Adriano. Tribunais da Consciência: Inquisidores, Confessores, Missionários. São Paulo: 
Edusp. 2013b, p. 232. 
5 Ver: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b. 
6 HESPANHA, Antonio Manuel. Como os juristas viam o mundo. 1550-1750. Direitos, estados, 
pessoas, coisas, contratos, ações e crimes. Lisboa, 2015, p. 616-617 e PROSPERI, op. cit., p. 47 e 
232. 
14 
 
 
 
Não se tem dúvidas de que a “lenda negra” do direito criminal é tributária do 
tradicional entendimento acerca da precoce centralização do poder e do caráter 
absolutista do governo português, já nos finais do século XV. Essa interpretação, 
contudo, desde 1970, vem sendo questionada, especialmente, pela historiografia 
jurídica7 que, ao não se focar apenas em fontes políticas e econômicas, mas em 
fontes jurídicas e institucionais, relativiza o Estado Absolutista.8 Para Portugal, António 
Manuel Hespanha concluiu que, ao menos, até a primeira metade do século XVIII, a 
monarquia portuguesa seria corporativa e jurisdicional, inclusive nos trópicos .9 
Vale dizer, a monarquia seria corporativa em virtude de a célula monárquica 
não representar o conjunto da sociedade como um todo, o Monarca configurava-se, 
apenas, como a parte mais importante. Isso porque no modelo mental de 
representação da sociedade, grosso modo, cada corpo social que a compunha 
possuía uma função/finalidade predeterminada, a qual era indispensável para o bom 
funcionamento do todo, por conseguinte cada corpo social possuía um certo grau de 
autonomia político-jurídico para fins de autogoverno dado o ambiente de pluralismo 
jurídico.10 
Nesse compasso, a preeminência da Coroa estava assegurada por meio de 
negociações11 com os demais corpos sociais, que eram legitimadas pela doutrina do 
 
7 A viragem historiográfica é marcada pela obra de Otto Gierke acerca do caráter corporativo da 
sociedade; e nas lições de Otto Brunner, da década de 1930, sobre um caráter globalizante da estrutura 
organizacional e administrativa da época. Na Itália, com historiadores baseados nas estruturas das 
teorias marxistas que destacam conteúdos alternativos a várias concepções e imagens políticas usadas 
até então. Na Espanha, com Clavero que destaca a pluralidade e tolerância de jurisdições inferiores 
que marcam a início da época moderna. Albaladejo, por sua vez, enfatizou o papel das estruturas 
ideológicas e institucionais como elemento constrangedor do arbítrio do rei (HESPANHA, António 
Manuel. Às vésperas do Leviathan: Instituições e poder político. Portugal - séc. XVII. Coimbra: 
Almedina, 1994, p. 296). 
8 O conceito de absolutismo surgiu "nos círculos liberais da segunda metade do século XIX e apontando 
no pensamento político e social do liberalismo para a característica negativa do caráter ilimitado e pleno 
do poder de um governante" (OESTREICH, G. Problemas estruturais do absolutismo europeu. In: 
HESPANHA, António Manuel. Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação 
Calouste Gulbekian, 1984, p.181). 
9 HESPANHA, 1994, p. 527 e HESPANHA, António Manuel. Por que existe e em que consiste um direito 
colonial brasileiro? Quaderni Fioretini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, n. 35. Milano: 
Giuffrè Editore, 2006b. Disponível em: <http://www.centropgm.unifi.it/cache/quaderni/35/0060.pdf>. 
Acesso em: 20 mar. 2009. 
10 Nesse sentido: FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de 
direito a sujeição jurídica. São Paulo: LTR, 2002, p. 31. 
11 De acordo com o conceito desenvolvido por Jack P. Greene de “autoridades negociadas”, é preciso 
acabar com os dualismos rígidos ou dicotomias entre metrópole e periferia, e enxergar que havia uma 
ampla negociação entre os agentes da Coroa e os do ultramar e colonos, tornando menos opressores 
os planos da Coroa com relação à colônia (RUSSELL-WOOD, Anthony John R.. Prefácio. In: 
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo regime nos 
trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 
2001, p. 13). 
15 
 
 
 
direito comum (ius commmune), sob a guarida do princípio da 
especialidade/particularidade, de cuja essência extrai-se que a “capacidade normativa 
dos corpos inferiores não podia ultrapassar o âmbito de seu autogoverno” 
(iurisdictio).12 
Percebe-se, então, que não havia apenas um únicogovernante com o direito 
fruto de sua autoridade exercendo o poder de forma absoluta sobre toda a sociedade, 
ao contrário, existiam diversos corpos políticos que administravam, legislavam e 
produziam seus direitos, com práticas distintas para seus grupos ou instituições. Por 
consequência, o direito não se resumia ao que era produzido apenas pelo monarca mas 
incluía também o que era produzido pelos demais corpos sociais. Relativiza-se, dessa 
maneira, o papel do Estado, se este for identificado com a figura do monarca. 
Assim, tendo em vista que o poder político não tinha interesses diferentes dos 
interesses particulares, ao contrário, visava justamente salvaguardá-los, é que se diz 
que o Estado tinha como propósito manter direitos, caracterizando-se, dessa maneira, 
como um Estado jurisdicional, no qual a principal função do monarca era a de 
assegurar a paz, fazendo justiça. Desse modo, estava-se diante de um monarca mais 
justiceiro do que legislador ou administrador de uma República, logo a representação 
dominante do poder "público" encontrava-se no ato de julgar e não de administrar ou 
legislar.13 
Em Portugal, os principais fatores que mitigam o papel do Estado Português, 
na época moderna, são os seguintes: o efetivo pluralismo político-jurídico, no qual o 
poder real dividia o espaço político com outros; o direito legislativo da Coroa estava 
limitado e enquadrado pela doutrina jurídica (ius commune) que guiava os Tribunais e 
pelos usos e práticas jurídicos locais; os deveres políticos, muitas vezes, eram 
dispensados diante de deveres morais, como a graça e a misericórdia, ou afetivos, 
decorrentes de laços de amizade, institucionalizados em redes de amigos e de 
clientes; e, por fim, os oficiais da Coroa tinham proteção ampliada dos seus direitos e 
atribuições, podendo fazê-los valer mesmo em confronto com o rei e tendendo, por 
isso, a minar e expropriar o poder real.14 
 
12 HESPANHA, 2006b, p. 14. 
13 FIORAVANTI, Maurizio. Estado y Constitución. In: ______ (ed.). El estado moderno en Europa: 
Instituciones y derecho. Madrid: Trotta, 2004, p.17-18. 
14 HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos 
correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo 
regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização 
brasileira, 2001, p. 166-167. 
16 
 
 
 
Dentro desse contexto está o recorte espacial da tese. A escolha da Vila de 
Curitiba se deu por motivos arquivísticos e por Curitiba se configurar um espaço 
fronteiriço, dada a sua condição geográfica e limítrofe na América e no Império 
Oceânico Português, que fazia o local funcionar dentro dos moldes da tradição 
portuguesa, mas que ao mesmo tempo permitia adaptá-los à luz de suas 
necessidades locais. 
Não se deve perder vista, que a questão do isolamento do núcleo levou muitos 
historiadores a não se atentarem para as Câmaras das Vilas periféricas dada sua 
pouca relevância no sistema colonial. Daí, porque é interessante o viés dos estudos 
da América Portuguesa que se atém à questão do Império Oceânico Português. 
O conceito de Império serve para compreender "a complexidade das redes e 
conexões que ligam os diferentes domínios ultramarinos, entre si e com o centro da 
monarquia"15. Esse conceito, portanto, faz com que instituições antes desprezadas 
sejam objeto de estudo, como é o caso das pequenas cidades, dos seus agentes, e 
do direito aí praticado, assunto de interesse desta tese. 
São justamente estas características de território fronteiriço geograficamente 
com fontes dialógicas (processos criminais) e personagens fronteiriços, como o juiz 
ordinário e os procuradores/rábulas, que tornam interessante o estudo do direito 
praticado e da cultura jurídica colonial daí emergente. Aparece assim uma História do 
Direito mais preocupada com os vencidos do que com os vencedores e mais disposta 
a fazer leituras que privilegiam a circularidade cultural possibilitadora da escrita de 
uma outra história. 16 
Ainda, tendo em vista que o espaço político-jurídico de Curitiba era 
administrado por autoridades locais – que não tinham uma formação jurídica formal – 
 
15 BICALHO, Maria Fernanda. Da colônia ao império: um percurso historiográfico. In: BICALHO, Maria 
Fernanda; FERLINI, Vera Lucia Amaral (Orgs.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no 
Império Português - séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005, p. 91-105. 
16 De acordo com António Manuel Hespanha: “A história do direito não é apenas a história do direito 
conhecido e oficial. A história do direito praticado ou do direito das comunidades camponesas, 
designado como ‘direito dos rústicos’ pelos juristas eruditos, constitui, ele também, um domínio da 
história jurídica, por discreta que seja a historiografia estabelecida nas Faculdades de Direito sobre 
esses sujeitos” (HESPANHA, António Manuel. Une 'nouvelle histoire' du Droit? In: GROSSI, Paolo (org.). 
Storia sociale e dimensione giuridica: strumenti d'indagine e ipotesi di lavoro. Milano: Giuffrè, 1986, 
p. 326 Apud PEREIRA, Luís Fernando Lopes. O Império Português: a centralidade do concelho e da 
cidade, espaço da cultura jurídica. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (org.). As formas do direito: ordem, 
razão e decisão. Curitiba: Juruá, 2013, p. 580). A mesma noção é compartilhada por Luís Fernando 
Lopes Pereira (Cf. PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Estruturas político-jurídicas na América Portuguesa: 
entre centro e periferia. In: I CONGRESSO LATINO AMERICANO DE HISTÓRIA DO DIREITO, 2008, 
Puebla, México. Anais... , Puebla, 2008, p. 5). 
17 
 
 
 
e que estavam formalmente submetidas a autoridades régias – que, por lei deveriam 
ter conhecimento do direito letrado –, o direito praticado e materializado nos processos 
seculares criminais de feitiçaria serve como um termômetro para apurar as 
particularidades da cultura jurídica local em um viés que privilegia a circularidade 
cultural.17 
Assim, o que se buscará é encontrar a cultura jurídica produzida no local tendo 
como fio condutor a feitiçaria. Cultura jurídica entendida não como um categoria fixa, 
mas como processo, como uma construção, seguindo a proposta de Luís Fernando 
Lopes Pereira, que aproxima a História da Antropologia Cultural. 18 
A categoria cultura jurídica utilizada na tese, portanto, não tem o condão de 
verificar um direito erudito recepcionado de forma passiva/mecaniscista/deturpada, ou 
a produção de uma cultura jurídica espontânea, própria e genuinamente “brasileira” 
das classes jurídicas subalternas, ao contrário, o olhar se atem à relação entre as ditas 
culturas, ou seja, a preocupação é com a circularidade cultural jurídica, que remete “à 
preocupação com a questão da alteridade, da diferença, em outros termos, com a 
antropologia. Há, portanto, uma centralidade do conceito de cultura que pressupõe, 
no caso da cultura jurídica circulante no Brasil, um intercâmbio entre os diferentes 
níveis”.19 
A leitura que se pretende fazer do cenário jurídico do setecentos tem como 
norte justamente a ideia de que o Direito é um fenômeno cultural, variável no tempo e 
no espaço e que depende de uma teia de significados para fazer sentido, a qual não 
é exclusiva do jurista, mas da própria sociedade. Portanto, entende-se que a própria 
 
17 Acerca da circularidade cultural explica Carlo Ginzburg: “A existência de desníveis culturais no interior 
das assim chamadas sociedades civilizadas é o pressuposto da disciplina que foi aos poucos se auto 
definindo como folclore, antropologia social, história das tradições populares, etnologia europeia. 
Todavia, o emprego do termo cultura para definir o conjunto de atitudes, crenças, códigos de 
comportamento próprios das classes subalternasnum certo período histórico é relativamente tardio e 
foi emprestado tal antropologia cultural. (...) A essa altura começa a discussão sobre a relação entre 
cultura das classes subalternas e a das classes dominantes. Até que ponto a primeira subordina a 
primeira a segunda? Em que medida, ao contrário, exprime conteúdos ao menos em parte alternativos? 
É possível falar em circularidade entre os dois níveis de cultura.” (GINZBURG, 2011b, p. 12). 
18 PEREIRA, Luís Fernando. A circularidade da cultura jurídica: notas sobre o conceito e sobre o método. 
In: FONSECA, Ricardo Marcelo. Nova história brasileira do direito: ferramentas e artesanias. Curitiba: 
Juruá, 2012, p. 31-53. 
19 Luís Fernando Lopes Pereira recapitula e promove uma crítica da categoria cultura jurídica no 
seguinte sentido: “a concepção tradicional de cultura que inspira visões sobre o jurídico é aristocrática 
e prega uma aparente separação radical entre alta e baixa culturas. Assim quando um elemento das 
classes privilegiadas migra para a subalterna destacam-no como degeneração O termo cultura jurídica 
se tornou popular na década de 70, segundo Ramon Narvaez, nos escritos de Lawrence Friedman, que 
a definiu como uma interpretação do direito (oficial, popular e misto) e suas instituições. Ainda, nas 
análises tradicionais privilegia-se o estudo das elites, dos grandes doutrinadores e juristas, tratados de 
forma celebrativa. Deixando a margem os manuais e os processos judiciais.” (Ibid., p. 31-53). 
18 
 
 
 
produção do direito é um processo cultural. Essa compreensão se faz útil e importante, 
visto que, regra geral, os processos judiciais, que tramitaram na periferia da América 
Portuguesa nas mãos de agentes práticos requerem uma análise que se atente tanto 
à leitura das ideias produzidas pela cultura erudita como às sensibilidades jurídicas 
dos agentes jurídicos locais acerca do direito, do processo e do delito. 
A metodologia20 para se encontrar algumas particularidades da cultura jurídica 
local nos processos criminais pautou-se no paradigma indiciário de Carlo Ginzburg, 
que privilegia sinais, detalhes, pormenores, e indícios. Portanto, é a partir das pistas 
que se reconstruirá algumas tramas que deram origem aos processos, fontes desta 
tese.21 
Ainda, em razão da tese estar construída com base em processos criminais, 
também se leva em conta as recomendações metodológicas que considera suas 
potencialidades, como a intensividade22 e o seu caráter dialogal ou polifônico. 23 
Há também o problema dos discursos suscitados no processo, que envolve a 
construção de verdades24 por meio de versões sobre fatos. Este será mais um dos 
pontos que se pretende explorar na tese que, por se situar no campo da historiografia 
 
20 Como bem declina Ricardo Marcelo Fonseca a metodologia na História do Direito está relacionada 
com a forma de escolher as fontes, o modo de tratá-las, lê-las, classificá-las e organizá-las e, a partir 
daí o modo de descrevê-las. Por tal razão, no entender do historiador do direito, a metodologia é uma 
espécie de passo a passo, é o caminho que se faz para ter um resultado de conhecimento. Já a teoria 
é a chave conceitual, a ferramenta que o teórico utiliza para tratar determinado tema na ciência em 
geral (e na História ou Direito em particular) (FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à 
história do direito. Curitiba: Juruá, 2009, p. 29). 
21 GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, 
emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 147. 
22 A intensividade da fonte relaciona-se a questão qualitativa da fonte, os processos criminais, 
geralmente, destacam-se por se uma documentação atenta aos detalhes, às margens do discurso, e 
fundada sobre um olhar microscópico (Ibid, p. 147). Ver também: GINZBURG, 2011b, p.19-20. 
23 “Toda manifestação artística e literária é dialógica. Toda realidade lingüística é dialógica, pois 
responde e solicita resposta, atuando em um plano intra-enunciados. Todo enunciado é dialógico e a 
consciência social é semiótica e multivocal de ponta a ponta, nas palavras de Bakhtin: ‘nenhuma 
palavra ocorre sem o olhar oblíquo do outro’. Assim, para ele, o nosso falar nasce da boca dos outros, 
no universo da heteroglossia (múltiplas línguas e múltiplas redes dialógicas); a sentença, portanto, não 
é algo dado, abstrato, monológico, morto, mas um conjunto de citações. Aqui, novamente, encontramos 
a superação da dicotomia individual-coletivo, como em Norbert Elias. Ver: BAKHTIN, Mikhail. Questões 
de literatura e de estética; a teoria do romance”. São Paulo: UNESP, 1993. apud PEREIRA, L., 2012, 
nota 43. 
24 Embora existissem mudanças ao longo do tempo acerca dos ritos, das atribuições e da legitimação 
de cada personagem processual, a finalidade do processo quase não variou, consistindo, em última 
linha, na busca da verdade material dos fatos, do argumento, este, hoje, extremamente criticado em 
razão da linguistic turn. Acerca do tema, ver: GINZBURG, Carlo. Introdução. In: GINZBURG, Carlo. 
Relações de Força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Sobre o tema 
ver também: FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São 
Paulo: Brasiliense, 1984, p. 13-45. 
19 
 
 
 
jurídica, se interessa justamente em examinar como os operadores jurídicos 
trabalhavam na construção da “verdade” judicial”.25 
À luz dessas orientações é que se destacam mais uma vez, as lições de Carlo 
Ginzburg de que as tarefas do historiador e do juiz estão próximas, afinal, ambos 
precisam “ter a habilidade de demonstrar, segundo regras específicas, que x fez y, 
sendo x designado ator principal, ainda que não nomeado, de um evento histórico ou 
de um ato legal, e y, qualquer tipo de ação. Mas, às vezes, casos que um juiz pode 
desconsiderar como juridicamente inexistentes se tornam frutíferos aos olhos de um 
historiador”.26 
O processo permite aferir, também, o grau de tensão e violência institucional 
pelo teor e pelas motivações das inquirições promovidas e do ambiente. A tensão pode 
ser sentida por meio de uma análise dos tipos de provas produzidas e da condução 
da sua produção. 
No caso da inquirição das acusadas e acusadores buscou-se ficar alerta às 
perguntas elaboradas pelos agentes da justiça, verificando se elas propiciavam o 
diálogo, ou se apenas consubstanciavam-se e tornavam-se monódicos, na medida 
em que as respostas nada mais seriam do que o eco das perguntas dos inquisidores.27 
Por conta disso, é que se tentou “aprender a captar, para lá da superfície 
aveludada do texto, a interação subtil de ameaças e medos, de ataques e recursos”, 
tem-se, por assim dizer, “de aprender a desembaraçar o emaranhado de fios que 
formam a malha textual destes diálogos”.28 
No que tange ao recorte temporal, buscou-se o período pombalino em razão 
das alterações políticas e jurídicas feitas por meio de uma legislação cada vez mais 
intensa e com alcance mais amplo sobre a sociedade com o intuito de fortalecer os 
poderes da Monarquia portuguesa, embora pouco se saiba sobre o impacto de tais 
alterações na colônia pela ausência de pesquisas. 
Um dos pontos centrais da tal política foi reduzir ou findar o pluralismo jurídico, 
que estava fundado nos costumes do direito local e na doutrina do direito erudito. O 
 
25 GRIMBERG, Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla Bassanezi; 
LUCA, Tania Regina (org.) O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 128. 
26 GINZBURG, Carlo. Controlando a evidência: o juiz e o historiador. In: NOVAIS, Fernando; SILVA, 
Rogério F. (org.). Nova história em perspectiva. São Paulo: CosacNaify, 2011a, p. 349. 
27 GINZBURG, 1991, p. 208. 
28 Ibid., p. 209. 
20 
 
 
 
objetivo era privilegiar as leis produzidas pela Coroa,como se apenas essa fonte do 
Direito tivesse a juridicidade necessária para guiar, e não mais ordenar, a sociedade. 
É possível ver uma amostra dos esforços de concentração e centralização do 
poder nas reformas na administração da justiça, que aumentou o número da figura 
do juiz de fora (juiz letrado), e no teor e na recepção da Lei de 18 de agosto de 1769, 
posteriormente denominada Lei da Boa Razão, que reformou as fontes, os métodos 
de interpretação do Direito e o ensino jurídico com a finalidade de assegurar o 
primado da vigência das leis nacionais, concentrar o poder legislativo nas mãos do 
soberano, reduzindo a complexidade e a pluralidade jurídica.29 
Fazendo uma síntese do direito racionalista inaugurado por Pombal, Antonio 
Manuel Hespanha informa que se privilegiou o textualismo ou antidoutrinarismo do 
humanismo e a sistemática do racionalismo; emergiram novas ideias acerca da 
finalidade do direito romano da escola da pandectista, enfatizou-se o individualismo e 
o contratualismo das escolas jusracionalistas, que produziu um novo direito privado; 
ocorreu o desenvolvimento do direito público e da ciência da Administração, da 
cameralística alemã; por fim, o historiador destaca para seara do direito processual 
penal o humanitarismo italiano.30 Tais medidas visavam racionalizar, sistematizar e 
uniformizar o Direito e o Estado Moderno Português, até então qualificado de Estado 
Corporativo e Jurisdicional. 
Porém, estudos historiográficos analisando a efetividade das ideias iluministas 
jurídicas, pautadas na lei régia como principal fonte do Direito, têm demonstrado que 
o despotismo esclarecido pombalino não foi tão eficiente para alterar a paisagem 
jurídica no Império Oceânico Português. Vale dizer, a compreensão do Direito como 
norma estatal (monismo jurídico) e a sua redução a lei (absolutismo da lei)31 não se 
 
29 Acerca das políticas pombalinas, inclusive, jurídicas ver: WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. 
Direito e justiça no Brasil Colonial: o tribunal da relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de 
Janeiro: Renovar, 2004, p. 547-560. 
30 HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. 3. ed. Lisboa: 
Europa-América, 2005, p. 239. 
31 Paolo Grossi acerca do processo de instauração de um absolutismo jurídico aduz: "Mas não era 
somente o material consuetudinário a acabar no sótão: a ciência e jurisprudência prática sofreriam a 
mesma sorte, porque, fontes primárias na complexidade jurídica do antigo regime, foram chamadas a 
tecnizar, definir e em alguma medida categorizar a amorfa sedimentação dos usos e representavam 
um risco à causa das capacidades autonomizadoras de uma categoria de componentes aguerridos. 
Claro, uma vez que a lei - já única fonte- é aplicada, não se poderá desprezar os juristas, mas se lhes 
tirará sua liberdade de ação reduzindo o doutrinário à prisão da exegese e o juiz às amarras de um 
silogismo aprisionador (GROSSI, Paolo. Para além do subjetivismo moderno. In: FONSECA, Ricardo 
Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite (orgs.). História do direito em perspectiva: do antigo 
regime à modernidade. Curitiba: Juruá, 2009, p. 25-26). 
21 
 
 
 
aplica ao cenário português do Antigo Regime, que durou, segundo Antonio Manuel 
Hespanha, até 1808, dada a forte influência do ius commune na cultura jurídica e 
também em razão da propagação do iluminismo moderado, representado pela 
Segunda Escolástica, também designada de Escola Ibérica do Direito Natural. 
Enfim, o que se tem no ambiente cultural do Estado Moderno Português é um 
Direito típico do Antigo Regime32, o qual se caracteriza pela presença simultânea de 
um direito erudito, típico do ius commune; de uma doutrina nacional pautada no 
iluminismo moderado da II Escolástica, que trabalha em prol do despotismo 
esclarecido; de uma crescente produção legislativa por parte da Coroa; e, de uma 
sobrevivência dos costumes. 
Em outra perspectiva, o século XVIII foi o mais repressor quanto à feitiçaria, a 
qual também adquiriu novas vestes no período pombalino. Iniciou-se a secularização 
dos delitos religiosos, em razão de uma literatura mais cética que passou a circular; 
houve uma alteração da legislação, especialmente inquisitorial; e deixou-se de 
perseguir feitiçarias por malefícios diabólicos para se perseguir curandeiros, dado 
usarem a mesma técnica da medicina, cujo discurso científico estava se assentando. 
Portanto, o recorte temporal escolhido visou compreender como era 
reproduzido o processo e o direito criminal neste período, cuja marca conferida pelo 
senso comum e por grande parte da historiografia tradicional jurídica, ou não, é de 
inovações e modernizações. 
Dentro desses recortes, as principais fontes primárias estudadas foram três 
documentos manuscritos – processos judiciais – provenientes da justiça secular e, 
que tratam de dois eventos sobre feitiçaria. Um deles relativo ao curandeirismo, e 
outro, aos malefícios (feitçaria em sentido estrito). Entretanto, juridicamente 
representam quatro tipos de instrumentos processuais, duas devassas e duas ações 
ordinárias, uma instaurada a pedido da população outra de ofício pelo Ouvidor.. 
Os processos estão depositados no Arquivo Público do Paraná, que possui 
um fundo do Poder Judiciário, o qual contém processos judiciais que tramitaram na 
região da Ouvidoria de Paranaguá, incluindo aí, processos da Vila de Curitiba. Para o 
período de recorte o fundo conta com 560 processos, destes 61 tinham mulheres 
 
32 O termo Antigo Regime designa uma ideia de monarquia corporativa, a qual compartilha com outros 
corpos o espaço político. Para António Manuel Hespanha esse modelo irá predominar em Portugal até 
meados do século XVIII. O Antigo Regime contrapõe-se, desse modo, à ideia de um Estado Absolutista 
ou precocemente centralizado, no qual o monarca teria um poder exclusivo e ilimitado, esta concepção, 
recorda-se, predominou na historiografia brasileira e portuguesa até 1980 (HESPANHA, 2001, p.166). 
22 
 
 
 
como uma das partes da relação processual, e apenas 3 cujo objeto era a feitiçaria. 
Quanto ao tipo de ações, a maioria é de: a) ação da alma; b) ação de assignação de 
10 dias; c) execução; d) inventários; e) libelo civis: muitos de injúria; f) libelo criminais; 
g) apelação; h) agravos (poucos). 
O estado de conservação dos processos, que são manuscritos, é razoável. 
Algumas folhas estão se desfazendo, em razão do tempo. A leitura ficou um pouco 
prejudicada também, em razão de a tinta ter manchado o papel. Ainda, importa 
registrar que os processos, dentro do padrão da época, foram escritos com diversas 
abreviaturas, conforme se pode ver no anexo da tese, onde estão as transcrições dos 
documentos-fontes. 
Também importa esclarecer, desde já, que uma das fontes – autos de libelo 
crime decorrente da devassa por malefícios – não está completa. O processo se 
encerra em um certo ponto das alegações finais do procurador, ou seja, não conta 
com a sentença. Contudo, isso não foi óbice para análise da fonte, interpretou-se o 
documento até onde foi possível explorá-lo. 
Além dessas fontes, em oportunidade de doutorado sanduíche, buscou-se 
obras raras e documentos inéditos para ampliar informações e problematizações, 
porém, estes não foram encontrados. Os arquivos pesquisados foram o do Santo 
Ofício e do Vaticano, Jesuítas de Roma, Biblioteca Nacional de Roma, Biblioteca 
Casanatense, Arquivo da Torre do Tombo, Biblioteca Nacional de Lisboa, Biblioteca 
da Faculdade de Direito de Lisboa, Biblioteca da Faculdade de Coimbra. 
Sobre a vida local de Curitiba, foram consultados: Boletim da Câmara 
Municipal de Curitiba, Atas de Eleições da Câmara de Curitiba, Provimentos do 
Ouvidor Pardinho, Livros de Termos de Audiências e Aferições dos Almotacés de 
Curitiba. 
Quanto à feitiçaria, as fontes serãoexaminadas especialmente a partir das 
lições de Francisco Bethencourt, José Pedro Paiva, Laura de Mello e Souza e Ronaldo 
Vainfas, historiadores que se debruçaram sobre a feitiçaria e a sua repressão por 
perspectivas diversas para o Império Português. 33 Já quanto ao Direito e às 
instituições, como marco teórico, foram adotadas as lições de António Manuel 
Hespanha e também de Adriano Prosperi. Além disso, recorreu-se a alguns juristas 
 
33 O cenário europeu do Império Português durante a época moderna foi esquadrinhado por Francisco 
Bethencourt, que se ateve aos séculos XVI e XVII e por José Pedro Paiva, que se dedicou ao século 
XVIII. 
23 
 
 
 
da época, como Antonio Vanguerve Amaral (XVIII), Joaquim Pereira e Souza e 
também Pascoal de Mello e Freire (início do XIX). 
A partir destes recortes, o objetivo geral da tese é estudar como o delito foi 
compreendido na justiça criminal de Curitiba (Juízo Ordinário) e Paranaguá 
(Ouvidoria), extraindo dos indícios suas marcas gerais e as particularidades locais que 
são representativas, mas sem pretensões de generalizações. 
Assim, a tese está estruturada em duas partes. A primeira, ancorada na 
historiografia, busca trazer o cenário da feitiçaria e das jurisdições competentes para 
investigá-la no Império Português. A segunda, com base nas fontes trata 
especificamente da feitiçaria na Vila de Curitiba, problematizando os documentos em 
diálogo com as premissas traçadas na primeira parte. 
O capítulo primeiro trata especificamente da feitiçaria no Império Português, 
trazendo suas particularidades dentro do contexto europeu e as particularidades da 
América Portuguesa. O capítulo segundo, a partir de uma abordagem institucional 
normativa e pautada na atual historiografia sobre o assunto, examina a feitiçaria, delito 
de foro misto e de competência de três jurisdições diversas – episcopal, inquisitorial, 
secular. O capítulo terceiro não destoa do segundo, mas trata mais especificamente 
da justiça secular, vale dizer, traz considerações acerca do direito criminal e 
processual criminal no Império Português e de como o delito era compreendido e 
processado. 
Na segunda parte, o primeiro capítulo traz um panorama do espaço social e 
jurídico da Vila de Curitiba, dando especial ênfase à cultura jurídica colonial com base 
na produção historiográfica jurídica produzida pelo grupo de estudos setecentistas do 
curso de Direito da Universidade Federal do Paraná e coordenada pelo Prof. Dr. Luís 
Fernando Lopes Pereira.34 Já os capítulos segundo e terceiro, tratam especificamente 
dos eventos ocorridos que foram objeto de processos criminais – feitiçaria e 
curandeirismo –, os quais são analisados da mesma forma: uma análise do imaginário 
acerca do delito, uma análise dos argumentos jurídicos usados nos processos e uma 
análise do próprio processo como fonte. 
Esta última análise se faz com base no rito processual seguido, e a partir de 
uma “descrição densa” – no sentido proposto por Clifford Geertz que enfatiza a 
descrição pormenorizada do objeto de estudo dando destaque às ações que 
 
34 O grupo de estudos setecentista está vinculado ao Núcleo de Pesquisa História, Direito e 
Subjetividade coordenado por Ricardo Marcelo Fonseca. 
24 
 
 
 
desembocam em fatos – com a finalidade de compreender juridicamente, de forma 
mais sistematizada, as fontes, enfatizando suas formalidades, atos, ritos, 
procedimentos, etc.35 
Por fim, importa destacar que esta tese irá utilizar os termos/categorias 
feitiçaria e direito criminal. Opta-se pela categoria feitiçaria em razão de assim 
aparecer nas Ordenações Filipinas, nas Constituições de Arcebispados, nos 
Regulamentos da Inquisição e nas fontes primárias que alicerçam esta tese. Sabe-se 
que o termo, em Portugal, oscilou tanto na produção científica contemporânea como 
também na época moderna. 36 37 Também se opta pelo amplo sentido de feitiçaria, o 
qual não se importa tanto com a qualidade do ato, se feito por uma condição inerente 
 
35 GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: GEERTZ, 
Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 4. 
36 A atual produção historiográfica portuguesa não faz uma distinção precisa entre feitiçaria e bruxaria, 
o que se verifica é uma grande quantidade de termos e significados que decorrem de especificidades 
regionais, das fontes escolhidas, e também da formação do pesquisador, informa Francisco 
Bethencourt. Já a terminologia da época moderna, empregada pela elite intelectual, levava em conta a 
cultura clássica que saturava todo o seu universo mental, inexistindo fronteiras entre o fantástico e o 
real (neoplatonismo), a partir de uma leitura embebida na patrística e na escolástica. Dentre os diversos 
conceitos elencados nos dicionários, a feitiçaria sempre aparecia vinculada à noção de arte mágica e 
a bruxaria aos mitos da lamia e da strix. A fluidez do conceito e o uso indistinto dos termos bruxaria e 
feitiçaria encontra-se também na cultura popular, conforme demonstram os estudos que se debruçam 
sobre os depoimentos de réus, testemunhas e denunciantes dos processos que tramitaram na época 
moderna, e não poderia ser diferente dado o seu caráter oral, que em essência não permite construir 
raciocínios abstratos (BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia. São Paulo: Companhia 
das Letras, 2004, p. 50-54). 
37 Nessa esteira, encontra-se a obra de Raphael Blutheau, que aqui se destaca em face de pertencer 
ao século XVIII, período de recorte da tese. Do seu Vocabulário extrai-se que eram “Bruxas umas 
mulheres que se entende que matão crianças, chupando-lhe o sangue”, já Feiticeira “mulher que faz e 
dá feitiços”. “Feiticeria. Feiticeira. Mágica. Deriva-se do italiano Fattuchieria, que significa o mesmo. 
Magice, es. Fem. Plin. Hist. Vid. Magia”; “Feiticeria. Encanto, fascinação, obra mágica. Venificum, ii. 
Neut. Fascinatio, onis. Fem. Cic” e “Feiticeiro. Homem que com arte diabólica e com pacto, ou explícito 
ou implícito, faz cousas superiores às forças da natureza” (BLUTEAU, Raphael. Vocabulario 
portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... v. 4. Coimbra: Collegio das Artes da 
Companhia de Jesu, 1713, p. 63. Disponível em: <http://dicionarios.bbm.usp.br/em/dicionário 
/1/feiticeira>. Acesso em 11 mar. 2016). 
25 
 
 
 
de seu agente (witchcraf) 38 ou por se socorrer de técnicas e mecanismos (sorcery)39. 
Além disso, a compreensão da feitiçaria não se restringe à ideia teológica das 
feiticeiras, como agentes representantes e adoradoras do Diabo, que circulava nas 
elites, abrange, também, as superstições, a noção popular das práticas mágicas, pois 
foi mais nesse sentido que ela foi perseguida em Portugal. 
No viés das lições de Carlo Ginzburg a feitiçaria é interpretada como um 
compromisso cultural, especialmente, se levadas em conta as particularidades da 
América Portuguesa setecentista, onde a população nativa possuía outros hábitos 
culturais que foram lidos e recriminados pelo olhar e categorias etnocêntricos da elite 
cristã, daí a recriminação. 
Em outro sentido, também informa-se que é usado o termo criminal, pois 
assim aparece nos documentos, na doutrina e na legislação portuguesa. Tomando 
emprestadas as considerações de Vanessa Massuchetto isso se deve ao fato de a 
ordem jurídica do Antigo Regime possuir uma compreensão diversa do ramo criminal. 
Enquanto o termo "direito penal", que passou a ser usado no século XIX, está mais 
associado à questão da punição dos sujeitos por meio do Estado, o termo “direito 
 
38 Keith Thomas, pautado em estudos da antropologia, aponta que existe diferença entre bruxaria e 
feiticeira. A seu ver, a bruxaria “é uma qualidade inata, um traço pessoalinvoluntário, derivado de uma 
peculiaridade fisiológica que pode ser descoberta na autopsia. A bruxa exerce seus poderes maléficos 
por meio ocultos e não precisa de palavras, ritos, feitiços ou poções. Seus atos são puramente 
psíquicos”. Já a feitiçaria “é o emprego deliberado da magia maléfica; envolve o uso de um feitiço ou 
de um auxílio técnico, e pode ser empregada por qualquer pessoa que conheça a fórmula correta.” 
Assim, enquanto a bruxa nasce, a feiticeira faz-se. O léxico inglês, ainda, faz distinções entre bruxas 
(witchcraft: envolve pacto com o demônio, voo noturno, a participação em sabás) e feiticeiras (sorcery: 
cobre um conjunto de técnicas e ritos mágicos que se inserem no espaço cotidiano) (THOMAS, Keith. 
Religião e o declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 376-377). Levack, 
acompanhando os estudos da historiografia inglesa que fazem a distinção entre bruxas e feiticeiras, 
esclarece ainda que o conceito de malefício ainda se aproxima ao de sortilégio. Mas com este não deve 
ser confundido. Este seria mais específico equivalente a categoria francesa sorcery, a qual designa que 
a prática de magia através de qualquer sorta de processo mecânico, de manipulação, é uma técnica 
adquirida que pode consistir na destruição de uma imagem pessoal, com o escopo de provocar o mal, 
no recitar de um sortilégio, ou no usar de uma poção, “la fattura”. Esta, por sua vez, difere-se do 
malefício por dois motivos: a fattura pode ser benéfica ou maléfica (uma categoria mais ampla) e pode 
não requerer técnicas, e por isso, ser mais limitada. O malefício por sua vez pode ser o resultado de 
um poder mais genérico de uma feiticeira de infligir um dano, antes que a prática de uma arte particular, 
como é o caso do mal olhado (LEVACK, 2008, p. 11). 
39 Francisco Bethencourt sobre o assunto destaca que na França há apenas o termo sorcellerie, que 
abarca os dois termos ingleses. Na Alemanha, há dois termos hexenei e zauberei, mas o significado é 
muito próximo. Situação semelhante ocorre na Itália com as palavras stregoneria e fattucchieria, que 
equivaleriam a witchcraft e sorcery, mas a primeira é mais utilizada englobando ambos os significados. 
Na Espanha, há um fenômeno linguístico semelhante com os termos brujeria e hechiceria. A prática de 
atos maléficos (malleficium em latim) envolvia o uso de poderes extraordinários, misteriosos e ocultos 
ou sobrenaturais com o objetivo de matar pessoas e/ou animais, causar doenças, incêndios, impotência 
etc. Os estudiosos do assunto da língua inglesa, amparados pela distinção antropológica feita por E. 
Pritchard, por sua vez, usam o termo wichcraft para designar o mito que envolve o pacto com o demônio, 
voo noturno e sabás (BETHENCOURT, 2004, p. 46-48). 
26 
 
 
 
criminal” está inserido em uma lógica concentrada na ocorrência do crime, cujo 
interesse principal não era tanto a punição, mas o fato/delito e os agentes envolvidos 
e a qual ainda tinha uma compreensão privada do crime, pois possibilitava a resolução 
da questão criminal por meio de reparação da ofensa à vítima, negociando as partes.40 
Por conta deste cenário é que se resolveu compreender a cultura jurídica do 
período colonial a partir do delito de feitiçaria, de modo a contribuir para a historigrafia 
geral, a partir de uma leitura da justiça secular sobre o delito, e de modo a contribuir 
para historigrafia jurídica, traçando, a partir de uma análise minuciosa das fontes, a 
cultura juridica criminal e processual criminal do período colonial, analisada pela 
metodologia do paradigma indiciário e pela perspectiva da circularidade cultural.41 
 
 
40 MASSUCHETTO, Vanessa Caroline. Os autos de livramento crime e a Vila de Curitiba: 
apontamentos sobre a cultura jurídica criminal (1777-1800). 2016. 162 f. – Setor de Ciências 
Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016, p. 10. 
41 GINZBURG, 1991, p. 205. 
27 
 
 
 
PARTE 1 
A FEITIÇARIA NO IMPÉRIO PORTUGUÊS 
 
 
1. A FEITIÇARIA EM PORTUGAL 
 
 
1.1. A “CAÇA ÀS BRUXAS”: APONTAMENTOS HISTORIOGRÁFICOS 
 
 
A chamada “caça às bruxas” teve seu ápice repressivo na Europa dos séculos 
XVI e XVII. 42 Os historiadores que se debruçam sobre essa questão, cada qual com 
sua abordagem e metodologia, registram alguns fatores que desencadearam o 
fenômeno, tais como: ideias; mentalidades; direito e práticas dos tribunais; 
centralização política; misoginia; crenças e tradições pagãs das comunidades; entre 
outros.43 
Um primeiro fator apontado pela historiografia das mentalidades indica que as 
ideias em torno do Diabo desenvolvidas pela elite cristã letrada e adotadas por 
diversas autoridades eclesiásticas e judiciárias, mergulhadas em um ambiente de 
medo e conflitos sociais, foram determinantes pelo fenômeno da “caça às bruxas”.44 
 
42 Segundo Brian Levack, usando o critério do número da população dos territórios com o número de 
processos instaurados, no que respeita à espacialidade, a Alemanha, foi o país que mais perseguiu 
feiticeiras, a França, apesar de ter sido a primeira a persegui-las, ocupa o segundo posto, seguida da 
Suíça e dos Países Baixos (LEVACK, 2008, p. 223-268). Ver também os números apresentados por 
Jean Delumeau (DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente (1300-1800). São Paulo: 
Companhia das Letras, 2009, p. 529, 542 e 546). 
43 Conforme José Pedro Paiva: a) choque de culturas distintas em um momento no qual as elites 
tentaram impor sua visão de mundo a populações onde ancestrais crenças e gestam ainda se 
mantinham, seria o caso de Robert Muchelamb; b) outros viram que as acusações de feitiçaria tinham 
função social nas comunidades nas quais se originaram. Esta é a análise feita por Alan Macfarlene; c) 
a ligação de todos esses elementos a territórios que assistiam a uma quebra ou ausência de autoridade 
política e institucional, argumento usado por Christina Lerner; d) a ”caça às bruxas” como um 
movimento contra a mulher, como resultado de uma sociedade misógina, como defenderam Willian 
Monter, Selma Wiliians e Patricia Willians; e) Emmanuel Le Roy, por sua vez, entendeu a feitiçaria como 
resultado de tensões vicinais da vida cotidiana; f) Mirca Eliade, viu na feitiçaria gestos de reativação do 
momento cósmico primordial de criação; g) Por fim, ainda tem uma corrente que busca mostrar que 
alguns fenômenos designados por feitiçaria e bruxaria são atos possíveis de poder ser explicados e 
entendidos em uma perspectiva cientifico-racional. Nesta linha, aparecem estudos nas áreas da 
telepatia, onirismo, hiptotismo, mecanismos de percepção, biofeedback e estudos das reações 
psicossomáticas (PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos 
mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740). Coimbra: Minerva, 1992, p. 33-35). 
44 Segundo Jean Delumeau, as noções do Diabo apareceram nos séculos XI e XII, porém, a ênfase em 
tal elemento ocorreu efetivamente com a Divina Comédia de Dante e com a difusão da imprensa. 
28 
 
 
 
Segundo Keith Thomas, desde a antiguidade, existia a noção de malleficium, 
que se constituía como uma “atribuição do infortúnio a um agente humano oculto”. 
Entretanto, no século XIV, se sobrepôs a tal noção e passou a predominar a ideia de 
que qualquer malleficium estava necessariamente atrelado ao Diabo. 45 
Francisco Bethencourt esclarece que o nexo entre práticas mágicas e 
satanismo decorreu do fato de que para os teólogos da escolástica e para os 
demonólogos o conhecimento do oculto decorria de três fontes: por meio de estudo, 
que estava circunscrito à cultura escrita; da revelação por Deus, que estava reservada 
aos santos ou aos beatos e também por homens que receberam a graça divina; e, da 
ingerência do Diabo. Pode-se inferir daí que o elo servia como critério de diferenciação 
entre a magia feita pela própria Igreja e a magia praticada por aqueles que a ela não 
se associavamou dela se afastavam. 46 
Por conseguinte, todos aqueles que executavam práticas mágicas se 
tornaram hereges 47 e apóstatas 48 , pois suas magias deixaram de ser naturais 
 
Portanto, o auge do diabo nas imaginações foi na Idade Moderna e não na Idade Média (DELUMEAU, 
2009, p. 354). Levack acrescenta que durante o período medieval o Diabo foi descrito como inimigo e 
antítese de Cristo, pois promovia o ódio e não o amor. A partir do século XV, começou a ser encarado 
como antítese de Deus Pai, isto é, como fonte de objeto de idolatria e falsa religião. Durante o período 
medieval se referia ao Diabo como Satanás, termo que se encontra na Bíblia e que significa “adversário”. 
No Antigo Testamento, tal termo, não tinha grande destaque, apenas no último livro o Satanás assumia 
uma personalidade distinta apresentando-se como o inimigo de Deus e como a encarnação do mal. No 
Novo Testamento, por sua vez, Satanás adquiriu um novo e destacado papel: passou a ser tido como 
o de hospedeiro de vários demônios a ele subordinados, uma figura que ainda era responsável por 
colocar em tentação Cristo e que por isso se tornara o principal opositor do Cristianismo, pois induziu 
o homem a renunciar Cristo e seus ensinamentos. Aí teria se originado a luta entre o bem o mal. 
Visando difundir o cristianismo a Igreja Católica usou Satanás como subterfúgio, ou seja, como 
instrumento para combater as religiões que lhe criavam obstáculos, especialmente, o judaísmo e o 
paganismo. Para este último, o discurso era o de que as divindades pagãs eram o próprio demônio, 
conforme evidenciam algumas representações pictóricas do Diabo na arte cristã e as repressões na 
América Portuguesa. As características comumente conferidas ao Diabo eram originárias das 
divindades pagãs, como a barba caprina, os pés bifurcados, os chifres, a pele escamosa, a nudez e as 
formas semi-animalescas, que se identificavam com a divindade greco-romana Pan, ou a divindade 
céltica Cernunnos, enquanto que os seios femininos frequentes nas representações do diabo no 
seiscentos decorrem da Deusa Diana, deusa da fertilidade (LEVACK, 2008, p. 38-39). 
45 THOMAS, 1991, p. 355-357. 
46 BETHENCOURT, 2004, p.173. 
47 Hereges: “o que escolheu”, segundo M. D. Chenu, ou seja, “o que isolou de uma verdade global uma 
verdade parcial, e em seguida se obstinou na escolha”. Cátaros e albigenses, que viviam no sul da 
França e que ali constituíram uma Igreja contra a Igreja de Roma (CHENU, Marie-Dominique. Eresia. 
In: PROSPERI, Adriano (dir.). Dizionario storico dell'Inquisizione. v. 2. Pisa: Edizioni della Normale, 
2010, p. 546). Para Ronaldo Vainfas: “indivíduo que escolher ’isolou de uma verdade global ou uma 
verdade parcial, e em seguida se obstinou na escolha” (VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados; 
moral, sexualidade e inquisição no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 251). 
48 Apostasia é a refutação da doutrina e do batismo e abandono da fé cristã. Religião diversa (judaísmo 
ou islamismo) ou seguir o Diabo e com ele ter feito um pacto explicito ou implícito (COL, A. Apostasia. 
In: PROSPERI, Adriano (dir.). Dizionario storico dell'Inquisizione. v. 1. Pisa: Edizioni della Normale, 
2010, p. 75). 
29 
 
 
 
(brancas) para serem tratadas como diabólicas (negras), sendo conferido o mesmo 
entendimento às práticas mágicas das populações nativas da América. Vale dizer, 
“todo sagrado não oficial era considerado demoníaco, e tudo o que é demoníaco era 
herético”49. 50 
Com tal mudança o elemento essencial das práticas mágicas passou a ser 
definitivamente o Diabo, que se configurou como núcleo central da definição jurídica 
do crime de feitiçaria nas mais variadas jurisdições e sobre o qual o delito foi 
perseguido e reprimido. 
A partir de então, feiticeiras, especialmente, na França e na Inglaterra, 
deveriam ser processadas não por fazerem atos maléficos, mas por acreditarem, e, 
inclusive, reverenciarem (latrias) o Deus errado, no caso, o Diabo, daí o caráter 
herético do delito: 
 
Vista desse novo ponto de vista, a essência da bruxa não era o dano que 
causava a outras pessoas, mas o seu caráter herético de adoração ao Diabo. 
A bruxaria tornara-se uma heresia cristã, o maior de todos os pecados, pois 
envolvia a renúncia de Deus e a adesão deliberada ao seu maior inimigo. O 
malleficium passa a ser secundário, um subproduto da falsa religião. 
Prejudicando ou não os demais, a bruxa deveria morrer pela sua deslealdade 
a Deus. Em torno dessa concepção foi concebida a noção da adoração do 
Diabo, que implicava o sabá, ou reunião noturna, em que as bruxas juntavam-
se para adorar a seu senhor, ou copular com ele.51 
 
Essa leitura que associava a feitiçaria ao pacto com o Diabo e 
consequentemente a via como heresia pertencia mais a elite letrada. Para a 
população a prática de malefficium também implicava a presença do Diabo, porém, 
compreendido em viés menos herético, pois ainda não fazia parte do imaginário visões 
escatológicas do mundo pregadas pelas Igrejas, especialmente, na fase da reforma e 
contrarreforma.52 
No entanto, não se pode perder de vista, que a noção satânica ou herética 
das feiticeiras, circulou no imaginário das populações, com o decorrer dos tempos, 
por meio de pregações, sermões, leitura pública de sentenças de feitiçaria, etc. 
Seja como for, os territórios europeus onde as autoridades judiciárias e 
eclesiásticas adotaram o conceito demonológico de malleficium e uma noção ampla 
 
49 DELUMEAU, 2009, p. 592. 
50 Foi com a Bula Super Illius Specula, de 1326, em que pese direcionada mais ao território alemão, 
que se criou pela primeira vez equação: malefícios=feitiçaria diabólica=heresia (Ibid., p. 524). 
51 THOMAS, 1991, p. 357. 
52 DELUMEAU, op. cit., p. 524. 
30 
 
 
 
de heresia, incluindo idolatrias, mas também superstições, regra geral, foram os que 
mais perseguiram e reprimiram as feiticeiras e à medida que os infortúnios e 
inquietações sociais aumentavam a obsessão por hereges/feiticeiras também. 
Outro fator de destaque é a pedagogia do medo desenvolvida pela Igreja, 
incorporada e aplicada pelas autoridades com jurisdição para averiguar o delito.53 
Medo que, para Jean Delumeau, pairava sobre a sociedade europeia da época 
moderna, dentre os quais sublinha: (i) os medos fomentados pela Igreja, por meio de 
visões escatológicas do mundo, sendo a descoberta da América e de sua população 
nativa interpretada como o sinal de que o reino dos santos estava próximo ou então 
que o fim dos tempos já não tardaria; (ii) o medo do Diabo, no qual as feiticeiras seriam 
suas agentes, pois apenas Deus e os estudiosos do clero tinham acesso ao 
conhecimento de coisas extraordinárias, e (iii) o medo de si próprio, fruto de um 
discurso religioso (da reforma e contrarreforma) que impunha tanto ao clero como a 
população severas regras morais, que dada a sua pesada carga psicológica, quando 
não observadas fazia emergir a culpa, a qual era transferida, projetada, para as 
feiticeiras, e que era extraída mediante a confissão ou inquirição em devassas; (iv) o 
próprio medo da mulher ressaltado pela Igreja54. 
Desse modo, a cultura da cristandade da época, que compreendia a vida com 
um fardo, e por conta disso a dramatizava, junto com um contexto de crise social – 
pestes, revoltas e o cisma – fez com que a Igreja e as Coroas identificassem um 
inimigo, no caso foi o Diabo, que se camuflava por meio de feiticeiras perturbando a 
vida cotidiana. 
Jean Delumeau também se questiona acerca da obsessão da cultura dirigente 
da época moderna pela feitiçaria. No seu entender, o humanismo, ao resgatar obras 
da antiguidade lido por lentes cristãs e pelo neoplatonismo, contribuiu para aumentar 
a credibilidade do Diabo. Ainda, o acúmulo de leituras pela elite teria aumentado a 
distância entre a sua cultura e a popular, a qual parecia-lhe cadavez mais estranha e 
incompreensível. Daí porque entende o historiador que a “caça às bruxas” e os 
 
53 SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no 
Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 387-388. 
54 Segundo Jean Delumeau o medo da mulher não é uma invenção dos ascetas cristãos, o medo vem 
da antiguidade, basta recordar que muitos rituais funerários cabiam às mulheres, pois eram tidas, mais 
que homens, ao ciclo (do eterno retorno) que arrasta todos os seres da vida para a morte e vice-versa. 
Elas criavam, mas também destruíam. Com isso, o historiador assevera que o medo da mulher apenas 
foi integrado ao cristianismo muito cedo e também foi o cristianismo que agitou o espantalho até o limiar 
do século XX. Assim, o antifeminismo agressivo dos séculos XVI a XVIII não era uma novidade no 
discurso teológico (DELUMEAU, 2009, p. 468-469 e 564). 
31 
 
 
 
processos de feitiçaria foram uma “autodefesa da ética dominante contra uma prática 
coletiva que a julgava em contrário e que serviu de bode expiatório”.55 
Para Robert Mandrou, primeiro a destacar a faceta jurídica como importante 
para a “caça às bruxas”, o fenômeno decorreu de três fatores que o legitimavam: (i) 
crença cristã; (ii) processos judiciais, que implicavam um consenso de todos os 
participantes: juízes, testemunhas e acusados; (iii) as sentenças e as confissões, as 
fogueiras e os confiscos, vistos como o julgamento de Deus e dos homens.56 O 
historiador francês, como se sabe, pesquisou os processos judiciais seculares da 
região do Laguedoc, na Franca, do século XVII, e dentre diversas conclusões 
constatou o alto cárater repressor e cruel desta jurisdição. 
Laura de Mello e Souza também destaca as novas formas de organização das 
instituições que começaram a emergir no final do século XIV, incluindo aí o direito 
criminal, como um fator desencadeador da “caça às bruxas”.57 
De outra sorte, tendo em vista que a “caça às bruxas” reprimiu uma maior 
quantidade de mulheres, alguns historiadores, como Jules Michelet, destacam que tal 
fenômeno foi uma “caça às mulheres”, que se rebelaram contra as autoridades, contra 
a própria sociedade e contra o modelo econômico.58 
Acerca desta questão, imperioso recordar, primeiramente, que o ambiente era 
de misoginia. A visão da elite letrada estava amparada na noção aristotélica, que 
compreendia a mulher, dada a anatomia de seu sexo e de seus fluidos, como um 
homem inacabado, um ser esburacado, e deformado e por isso mais predisposto a 
não ser virtuosa.59 
Associada a tal noção, estava a patrística e escolástica, que via a mulher 
como um ser decadente dado o pecado original. Na vida cotidiana das comunidades 
o cenário não era diferente a mulher aparecia como uma pessoa com desvios 
comportamentais, vingativa, luxuriosa, debochada, mentirosa, enfim, não tinham uma 
boa reputação. 60 
 
55 DELUMEAU, 2009, p. 578. 
56 MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII. São Paulo: Perspectiva, 
2007, p. 63. 
57 SOUZA, L., 2009, p 373. 
58 A feiticeira de Michelet não é lida como criminosa, mas como benfeitora e vítima. Porém, o historiador 
ainda permanece na lógica da denúncia, ou seja, de que há um vínculo entre mulher e poderes ocultos, 
situados no sonambulismo e na vidência. 
59 CLARK, Stuart. Pensando com demônios. São Paulo: Edusp, 2006, p. 170-173. 
60 DELUMEAU, op.cit., p. 545. 
32 
 
 
 
Além disso, a confecção de filtros, poções, unguentos, entre outros elementos 
que facilitassem as relações amorosas levou as autoridades eclesiásticas e judiciais 
a sexualizar o delito de feitiçaria e a enxergar as mulheres como prostitutas. 61 
Segundo António Manuel Hespanha, o argumento lembrado pelos moralistas 
e juristas para explicar a luxúria das mulheres residia na curiosidade aliada à astúcia 
(características que não são só femininas); e no cultivo de saberes ocultos e proibidos 
(característica que só aparecia nas mulheres), como ocorria na questão da feitiçaria.62 
A feminilidade da feitiçaria se relaciona com o reforço das oposições binárias 
e com a construção de um ideal de mulher: 
 
Em nível demonológico, portanto, as bruxas eram mulheres porque o sistema 
representacional que regia exigia, para sua coerência, uma correlação geral 
entre oposições primárias como bem/mal, ordem/desordem, alma/corpo e 
masculino/feminino, eram mulheres que pelo comportamento inspirado pelo 
mestre da inversão, o Diabo, invertiam os atributos polarizados atribuídos aos 
gêneros. 63 
 
Com a contrarreforma católica, que deu prevalência a observância dos dez 
mandamentos e promoveu a figura do Diabo para fortalecer o poder da própria Igreja, 
houve a diabolização da mulher, pois além de serem perseguidas por praticarem os 
sete pecados capitais também passaram a ser por cultuarem o Diabo, fato que 
transgredia o primeiro dos Dez Mandamentos: “amar a Deus acima de todas as 
coisas”.64 
Assim, a feitiçaria recaia sobre a mulher em virtude de sua condição mulher – 
“natural” e aprioristicamente inferior (física e moralmente) – mas também em razão de 
seu pacto e culto ao Diabo. O remédio contra a manifestação desses “defeitos” 
 
61 SOUZA, L., 2009, p. 302. 
62 HESPANHA, 2010, p. 115. Arno Wehling recorda que a mulher possuía uma situação diferenciada e 
paradoxalmente privilegiada no foro em situações previstas nas legislações, conforme mencionado 
numa obra intitulada Privilégios e prerrogativas que o gênero feminino tem por direito comum e 
Ordenações do Reino, mais que o gênero masculino, de 1577 e reeditada no século XVIII (1785), cujo 
autor era professor de Coimbra, Rui Gonçalves. Nesta obra estão arroladas 106 prerrogativas, entre 
normas de direito material e processual que beneficiavam as mulheres (WEHLING; WEHLING, 2004, 
p. 573). 
63 CLARK, 2006, p. 187. 
64 A obra referência da mentalidade clerical opressora a mulher, é atribuída ao franciscano Alvaro 
Pelayo, escrita no século XIV e reeditada até o século XVI. Tal obra, tem sua importância por ter 
influenciado o Malleus Maleficarum, manual de inquisidor que insistiu de forma obstinada em relacionar 
a feitiçaria com a condição de ser mulher, vista de modo diabolizado e sexualizado, justificando a “caça 
às bruxas”. Toda a obra mostra a mulher como filha de Satã a qual é comprovada por meio de textos 
bíblicos citados pelo autor, o que legitima juridicamente seu discurso perante seus pares e autoridades. 
Tal discurso, ainda, segundo Jean Delumeau, revestiu-se de uma certa “universalidade” (DELUMEAU, 
2009, p. 476, 481-485 e 487). 
33 
 
 
 
femininos era a vigilância constante sobre seus costumes e o confinamento no mundo 
doméstico, por isso o Concílio de Trento reforçou as regras do patriarcado. 65 No 
entanto, não se pode perder de vista que, em outras regiões da Europa, homens foram 
mais perseguidos, mas não necessariamente mais sancionados que elas.66 
A contribuição específica que se pretende fazer com esta tese é agregar a tal 
leitura geral as contribuições da história do direito, analisando o modelo da justiça 
criminal, que mitiga a função repressora do direito criminal e processual criminal das 
instituições bem como a efetiva concretização das centralizações estatais na época 
moderna. 67 
O declínio do fenômeno, na maior parte da Europa, deu-se gradualmente no 
curso do século XVII e XVIII. A mudança no clima religioso; a difusão da filosofia 
mecanicista68; as ideias humanistas, o discurso médico cético69; um desencantamento 
do mundo; um melhoramento nas condições econômicas e sociais da população 
europeia, contribuíram para o fim da perseguição. 
Além desses fatores, o pensamento e a prática jurídica dos tribunais também 
são apontados como determinantes, pois houve relutância de magistrados em

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