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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DANIELLE REGINA WOBETO DE ARAÚJO UM “CARTÓRIO DE FEITICEIRAS”: DIREITO E FEITIÇARIA NA VILA DE CURITIBA (1750-1777) CURITIBA 2016 DANIELLE REGINA WOBETO DE ARAÚJO UM “CARTÓRIO DE FEITICEIRAS”: DIREITO E FEITIÇARIA NA VILA DE CURITIBA (1750-1777) Tese de Doutoramento apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito do Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Luís Fernando Lopes Pereira CURITIBA 2016 TERMO DE APROVAÇÃO DANIELLE REGINA WOBETO DE ARAÚJO UM “CARTÓRIO DE FEITICEIRAS”: DIREITO E FEITIÇARIA NA VILA DE CURITIBA (1750-1777) Tese aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutora no Curso de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná, pela seguinte bancaram inadora: 'Prof. Dr. Luís Fernando Lopes Pereira Orientador - Universidade Federal do Paraná (UFPR) Prof3. Dr3. Qílara Mjajia Vornan Borges Universidade Federal do Paraná (UFPR) Profa. Dr3. MarialFilpmènà-Coelho Universidade Nacional de Brasília (UnB) Prof. Dr. A lbertö^fe^cnneraer Pontíficia Univ^tstdãHe Católica de São Paulo (PUC-SP) Prof.3 Dr.3 Ana Maria de Oliveira Burmester Universidade Federal do Paraná (UFPR) Curitiba, 05 de setembro de 2016. A todas as mulheres. Mexo, remexo na Inquisição/Só quem já morreu na fogueira/Sabe o que é ser carvão/Eu sou pau pra toda obra/Deus dá asas à minha cobra/Minha força não é bruta/Não sou freira, nem sou puta/Porque nem toda feiticeira é corcunda (...). Rita Lee AGRADECIMENTOS No ano em que completo meus 40 anos, se exaure meu ciclo acadêmico com este doutoramento. Nestes quatro anos de doutorado, muito se passou: dialoguei com brilhantes professores e colegas de academia; tive a oportunidade de exercer a função de professora de História do Direito na UFPR; pesquisei em incríveis arquivos e bibliotecas nacionais e internacionais; participei de grupos de estudo; quebrei duas vezes a perna; tornei-me tia; desfrutei das melhores companhias; e, por fim, sentei solitariamente e me dediquei à árdua tarefa de escrever uma tese, momento em que vi minhas potencialidades, mas também minhas limitações, e por elas sofri, aprendi e cresci. Assim, com um sorriso no rosto e o coração recheado de amor e alegria, agradeço: À minha família, que incondicionalmente me deu total apoio durante toda essa caminhada. Sou e serei eternamente grata a vocês. “Gracias a la vida!”. Ao Luís Fernando Lopes Pereira, por mais de 20 anos de amizade, por 6 anos de orientações e “desorientações”, e por sempre me incentivar. Um privilégio conviver com você, Amélia e Francisco. A todos os membros do corpo docente, em especial, aos professores doutores Vera Chueiri, Katya Kozicki, Clara Maria Roman Borges, Katya Isaguirre, Ricardo Marcelo Fonseca, Celso Luiz Ludwig, André Peixoto, José Antonio Peres Gediel, Cesar Serbena, Egon Bockmann Moreira e Antonio Manuel Hespanha, que participaram e inspiraram toda a minha jornada na pós-graduação na UFPR. Ao professor Adriano Prosperi e aos colegas que fiz durante o doutorado sanduíche na Scuola Normale Superiore di Pisa. Agradeço, também, ao Luigi e à Flavia, por me acolherem durante o meu “soggiorno” e me ensinarem a vivenciar “la dolce vita” italiana. A Geraldo, Elizabete e aos professores do Celin, que em mim plantaram e me fizeram amar a língua de Dante, “Grazie mille”. À Capes e ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, pela oportunidade, pelo incentivo e financiamento da pesquisa. Aos servidores da PPGD, especialmente, a Vanessa, Mauro, Luis Antonio e a fabulosa Jane. As amigas que gentilmente ajudaram-me na correção desta tese: Mariana, Liliam e Vanessa. A todos os bibliotecários e arquivistas que encontrei no caminho e que me auxiliaram na pesquisa, especialmente, Solange, Rosangela, e Laís, amigas de arquivos e que me ajudaram nas transcrições das fontes desta tese. Aos amigos, parceiros e cúmplices de doutorado, Giovanna e Leandro; entre disciplinas e indisciplinas, mas sempre juridicamente subversivos, construímos uma história e escrevemos nossas teses. Aos amigos de pós-graduação e da vida, Micheli, Juliana, Maíra, Diana, Daniel, Felipe, Julia, Helô, Hoshino, Lilian, Bruno e Ana Brolo; mentes inspiradoras e transformadoras que me enchem de orgulho e tornam minha vida mais colorida. Às meninas e aos meninos da nova geração da História do Direito: Luise, Vanessa, Sonia, Rebeca, Thais, Liliam, Karolyne, Mariana, mulheres poderosas com quem eu tenho o prazer de dialogar a História do Direito e as histórias da vida. Vocês fizeram toda a diferença na fase final da escrita desta tese. Ao Ivan, Hansen, Michael, João, Walter, Judá, Raul, Rafael, Dhyego, e Diego, que na mesma toada me proporcionam debates sobre a História do Direito e boas risadas. À Gabrielle, um encontro inesperado propulsor de constantes faíscas libertadoras. Aos incríveis amigos que me acompanham desde a Faculdade de Direito: Andrea, Fabia, Vania, Clarissa, Juba, Junia, Cassi, Fer, Ale, Lu, Marcelo, Giga, Regis, Marina, David e Anamaria. E também a Josi e ao Felipe. À Inês, Silvia, Maria Bethania, Máira e Ariete, amigas dos tempos da Faculdade de História e que, após 20 anos de nosso ingresso, ainda participam da minha vida. Com vocês e os professores doutores Francisco Paes (in memoriam) e Ana Maria Burmester conheci Jules Michelet, com sua obra prima “A feiticeira”, e Carlo Ginzburg, com o não menos espetacular “O queijo e os vermes”, livros e pessoas que inspiram esta tese. Aos amigos dos 40, 30, 20, da adolescência e da infância que ainda compartilham comigo as belezas de viver e que tiveram a paciência de me aguentar. A todos os meus alunos e ex-alunos, professores, e colegas de pós- graduação, que me motivam a seguir na luta por uma educação crítica e de qualidade. Os caminhos do mistério prometem as mais belas experiências. Einstein RESUMO A pesquisa tem como enfoque traçar alguns apontamentos acerca da cultura jurídica colonial, especialmente, material e processual criminal, por meio do delito da feitiçaria. Para tanto, metodologicamente emprega-se os recursos de Carlo Ginzburg tanto em relação ao paradigma indiciário, como a uma abordagem cultural que privilegia a circularidade cultural. O recorte espacial da tese é a Vila de Curitiba dada sua condição fronteiriça no Império Português e a sua relação de administração à justiça com a Ouvidoria de Paranaguá. O recorte temporal é o período pombalino (1750- 1775), em virtude da nova roupagem jurídica no âmbito do Direito e também da feitiçaria. Para tanto, as fontes desta tese são três processos criminais – uma devassa e dois processos ordinários – relativos ao delito de feitiçaria e curandeirismo que tramitaram na Vila de Curitiba, os quais foram examinados pela perspectiva do imaginário acerca do delito; dos argumentos jurídicos usados pelos operadores jurídicos; e, por fim, pela perspectiva processual criminal. A tese está estruturada em duas partes, a primeira, relativa às noções gerais acerca da feitiçaria e das jurisdições competentes para processar o delito no Império Português; a segunda, problematiza as fontes da tese levando em conta o que foi escrito na primeira parte para se reconstruir as tramas culturais, ideológicas, sociais e jurídicas que desencadearam as denúncias lavradas nos processos crimes. As considerações finais são no sentidode uma cultura jurídica que não era rústica, mas sim prática quanto ao direito criminal, conforme indicam as fontes pelo atuar dos procuradores. Quanto ao direito processual, concluiu-se com base no bom conhecimento das formalidades, usadas muitas vezes pró interesses locais, mas também para interesses da Coroa. No que concerne ao processamento do delito na justiça secular, as pistas apontam para uma preocupação com o dano decorrente da feitiçaria, ou seja, não se preocupa com heresias, como idolatrias, porém, não vê com bons olhos crenças não condizentes com a estabelecida pela Igreja, ainda que esta, na América Portuguesa, fosse vivenciada de modo mestiço. Palavras-chave: Cultura jurídica. Direito criminal e processual criminal colonial. Feitiçaria. Curandeirismo. América Portuguesa. Vila de Curitiba. RIASSUNTO La ricerca ha per scopo tracciare alcuni appunti sulla cultura giuridica coloniale, specialmente criminale e di procedura criminale, attraverso il reato della stregoneria. Pertanto, metodologicamente s’impiega le risorse di Carlo Ginzburg sia per quanto riguarda il paradigma indiziario, sia ad un approccio culturale che favorisce la circolarità culturale. L'area territoriale della tesi è la Vila di Curitiba data la sua condizione di confine nell'Impero Portoghese e il suo rapporto di amministrazione della giustizia con il Mediatore di Paranaguá. L'arco di tempo è il periodo Pombalino (1750- 1775) a causa della nuova veste giuridica nell’ambito del diritto e anche della stregoneria. Pertanto, le fonti di questa tesi sono tre processi criminali – una devassa e due processi regolari – per il reato di stregoneria e sciamanesimo che sono stati trattati nella Vila di Curitiba, che sono stati esaminati dalla prospettiva dell’immaginario circa il reato; dagli argomenti giuridici utilizzati dagli operatori giuridici; e, infine, dalla prospettiva delle procedure criminali. La tesi è strutturata in due parti, la prima, per quanto riguarda le nozioni generali circa la stregoneria e delle giurisdizioni competenti per processare il reato nell'Impero Portoghese; la seconda discute le fonti della tesi tenendo conto di quanto è stato scritto nella prima parte per ricostruire le trame culturali, ideologica, sociali e giuridiche che hanno scatenato le denunce registrate nelle cause penali. Le considerazioni finali sono nel senso di una cultura giuridica che non era rudimentale, ma sì, pratica per il reato di stregoneria come indicato dalle fonti. Per quanto riguarda il diritto processuale si è concluso per la buona conoscenza delle procedure usate spesso pro interessi locali, ma anche agli interessi della corona. Rispetto alla procedura del reato nella giustizia secolare gli indizi puntano ad una preoccupazione per il danno risultante dalla stregoneria, ossia, non si cura circa le eresie, come idolatrie, però, non vede con buoni occhi le credenze incoerenti con quelle stabilite dalla chiesa, anche se essa, nell’ America Portoghese, fosse sperimentata di modo meticcio. Parole chiave: Cultura giuridica. Diritto criminale e di procedura criminale coloniale. Stregoneria. Sciamanesimo. America Portoghese. Vila di Curitiba. LISTA DE ABREVIATURAS ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo BAMC – Boletim Arquivo Municipal de Curitiba DEAP – Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná OF – Ordenações Filipinas REGIMENTO – Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal TAAAC – Livros de Termos de Audiências e Aferições dos Almotacés de Curitiba SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................... 12 PARTE 1 A FEITIÇARIA NO IMPÉRIO PORTUGUÊS 1. A FEITIÇARIA EM PORTUGAL ............................................................................ 27 1.1. A “CAÇA ÀS BRUXAS”: APONTAMENTOS HISTORIOGRÁFICOS .................. 27 1.2. IMPÉRIO PORTUGUÊS: A NÃO “CAÇA ÀS BRUXAS” E A MENTALIDADE MÁGICA .................................................................................................................... 35 2. JURISDIÇÕES ...................................................................................................... 54 2.1. JURISDIÇÃO MISTA .......................................................................................... 54 2.2. JURISDIÇÃO EPISCOPAL: BISPOS E PARÓQUIAS ........................................ 58 2.3. JUSTIÇA INQUISITORIAL.................................................................................. 68 3. JUSTIÇA SECULAR ............................................................................................. 94 3.1. O DIREITO CRIMINAL E O PROCESSUAL CRIMINAL ..................................... 94 3.2. TEORIA E PROCESSAMENTO DO DELITO ................................................... 104 3.3. A FEITIÇARIA NA ORDEM JURÍDICA ............................................................. 122 PARTE 2 A FEITIÇARIA NA VILA DE CURITIBA 1. A VILA DE CURITIBA: A ESPACIALIDADE E A CULTURA JURÍDICA ............ 130 2. UM “CARTÓRIO DE FEITICEIRAS” E CIPRIANA ............................................ 153 2.1. FEITIÇARIA ...................................................................................................... 153 2.2. EM BUSCA DE SENTIDOS JURÍDICOS SUBSTANCIAIS .............................. 167 2.3. EM BUSCA DE SENTIDOS JURÍDICOS PROCESSUAIS ............................... 171 3. LUIZA E FRANCISCA......................................................................................... 187 3.1. O CURANDEIRISMO ....................................................................................... 187 3.2. EM BUSCA DE SENTIDOS JURÍDICOS SUBSTANCIAIS .............................. 197 3.3. EM BUSCA DE SENTIDOS JURÍDICOS PROCESSUAIS ............................... 205 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 218 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 224 ANEXOS ................................................................................................................. 247 12 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Pouco se sabe sobre a feitiçaria no campo da justiça secular tampouco se conhece muito acerca da cultura jurídica do período colonial. A pesquisa que ora se apresenta visa traçar algumas considerações acerca desses dois temas. O objetivo é conhecer um pouco mais da cultura jurídica colonial criminal e processual criminal do período pombalino por meio do delito de feitiçaria previsto nas Ordenações Filipinas. Uma das problemáticas que envolve a feitiçaria é justamente o pouco conhecimento sobre ela sob a perspectiva da justiça secular, dada a falta de fontes, especialmente para o Império Português. Quase tudo que se sabe provém de fontes inquisitoriais, especialmente dos processos, os quais, como bem recorda Carlo Ginzburg, até a influência da Antropologia na História, foram um tanto quanto renegados pelos historiadores, pois consideravam que tais provas eram uma mistura de extravagâncias teológicas e superstições populares, que eram por definição irrelevantes. 1 Porém, não se pode perder de vista que, durante quase toda a época moderna, a feitiçaria se configurou como uma categoria2 propriamente dita, ou seja, não era apenas um termo, mas um conceito amplamente debatido pela elite cultural, como demonstra a vasta produção literária do período, que contribuiu significativamente para o desencadeamento e a difusão “da caça às bruxas” 3 em inúmeros territórios europeus e por diversas instituições. Outra problemática que se apresenta é a que associa o fenômeno de “caça às bruxas” à fogueira da Inquisição, à tortura, aos excessos e à crueldade, de forma 1 GINZBURG,Carlo. O Inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações. GINZBURG, Carlo, CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. In: A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991, p. 205. 2 Compartilha-se o entendimento de Antonio Manuel Hespanha acerca do uso do termo categoria ao invés de imagens, representações e conceitos. No caso em apreço usou-se o termo categoria em razão deste “remeter, na reflexão sobre o conhecimento, para ideia de modelos de organização das percepções, ‘realidade’ (...)”. Acerca do tema ver: HESPANHA, António Manuel. Categorias: um pouco de teoria da história. In: Imbecillitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades do Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010, p.14. 3 Os historiadores usam duas expressões para falar e explicar o período de perseguição às feiticeiras: a) “obsessão às bruxas”: de viés mais psicológico; b) “caça às bruxas”: expressão que designa o encadeamento jurídico dos processos e que comporta a identificação de indivíduos cuja opinião pública atribuía a prática de atividades secretas ou ocultas. Nessa tese, opta-se, seguindo a linha da maioria da bibliografia consultada, pela segunda expressão: “caça às bruxas”. (LEVACK, Brian P. La caccia alle streghe in Europa agli inizi dell’età moderna. Roma: Laterza, 2008, p. 6). 13 generalizada, a partir de casos excepcionais e que foram usados pelos humanistas e iluministas como argumentos contrários à antiga ordem.4 Entretanto, esse cenário teve particularidades no tempo e no espaço, e no Império Português, por diversos motivos, que serão vistos nesta tese não houve tal fenômeno nas proporções de outros locais europeus. Além das problemáticas acima apontadas, como se verá adiante, a doutrina jurídica portuguesa pouco se dedicou ao tema da feitiçaria assim, consubstancia-se ainda mais interessante examinar como, na prática, a justiça criminal colonial, por meio de seus operadores jurídicos imaginava e argumentava acerca do delito. Agrega-se a isso, o fato de que são incipientes os estudos que analisam a cultura jurídica colonial, especialmente, a partir do delito da feitiçaria. Tal delito, como outros, permite examinar aspectos sociais, culturais e jurídicos, como, por exemplo, as tramas que levavam às investigações e ao processamento do delito, os valores (critérios de justiça) em que a sociedade acreditava, os limites que pretendia manter, e os instintos que deveriam ser reprimidos.5 O delito ainda permite tirar algumas conclusões acerca da “lenda negra” que recai sobre a cultura jurídica criminal da época moderna. Melhor explicando, imagina- se, pensa-se e escreve-se sobre o direito criminal especialmente a partir das fontes inquisitoriais – normas e processo –, olvidando-se que outras jurisdições também tinham competência para averiguar a feitiçaria e desconsiderando que as práticas jurídicas criminais exercitadas nas estruturas das instituições do Antigo Regime relativizam o poder repressor contido nas normas. Esta “lenda negra” do direito criminal e processual criminal também é fomentada em virtude de leituras anacrônicas sobre o Direito de tal período, ou seja, muitas vezes, projeta-se para o passado categorias e valores atuais que em outros tempos, ou não existiam, ou eram lidos de outra forma, conforme alertam António Manuel Hespanha e Adriano Prosperi alguns dos principais marcos teóricos desta tese.6 4 PROSPERI, Adriano. Tribunais da Consciência: Inquisidores, Confessores, Missionários. São Paulo: Edusp. 2013b, p. 232. 5 Ver: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b. 6 HESPANHA, Antonio Manuel. Como os juristas viam o mundo. 1550-1750. Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes. Lisboa, 2015, p. 616-617 e PROSPERI, op. cit., p. 47 e 232. 14 Não se tem dúvidas de que a “lenda negra” do direito criminal é tributária do tradicional entendimento acerca da precoce centralização do poder e do caráter absolutista do governo português, já nos finais do século XV. Essa interpretação, contudo, desde 1970, vem sendo questionada, especialmente, pela historiografia jurídica7 que, ao não se focar apenas em fontes políticas e econômicas, mas em fontes jurídicas e institucionais, relativiza o Estado Absolutista.8 Para Portugal, António Manuel Hespanha concluiu que, ao menos, até a primeira metade do século XVIII, a monarquia portuguesa seria corporativa e jurisdicional, inclusive nos trópicos .9 Vale dizer, a monarquia seria corporativa em virtude de a célula monárquica não representar o conjunto da sociedade como um todo, o Monarca configurava-se, apenas, como a parte mais importante. Isso porque no modelo mental de representação da sociedade, grosso modo, cada corpo social que a compunha possuía uma função/finalidade predeterminada, a qual era indispensável para o bom funcionamento do todo, por conseguinte cada corpo social possuía um certo grau de autonomia político-jurídico para fins de autogoverno dado o ambiente de pluralismo jurídico.10 Nesse compasso, a preeminência da Coroa estava assegurada por meio de negociações11 com os demais corpos sociais, que eram legitimadas pela doutrina do 7 A viragem historiográfica é marcada pela obra de Otto Gierke acerca do caráter corporativo da sociedade; e nas lições de Otto Brunner, da década de 1930, sobre um caráter globalizante da estrutura organizacional e administrativa da época. Na Itália, com historiadores baseados nas estruturas das teorias marxistas que destacam conteúdos alternativos a várias concepções e imagens políticas usadas até então. Na Espanha, com Clavero que destaca a pluralidade e tolerância de jurisdições inferiores que marcam a início da época moderna. Albaladejo, por sua vez, enfatizou o papel das estruturas ideológicas e institucionais como elemento constrangedor do arbítrio do rei (HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan: Instituições e poder político. Portugal - séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994, p. 296). 8 O conceito de absolutismo surgiu "nos círculos liberais da segunda metade do século XIX e apontando no pensamento político e social do liberalismo para a característica negativa do caráter ilimitado e pleno do poder de um governante" (OESTREICH, G. Problemas estruturais do absolutismo europeu. In: HESPANHA, António Manuel. Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1984, p.181). 9 HESPANHA, 1994, p. 527 e HESPANHA, António Manuel. Por que existe e em que consiste um direito colonial brasileiro? Quaderni Fioretini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, n. 35. Milano: Giuffrè Editore, 2006b. Disponível em: <http://www.centropgm.unifi.it/cache/quaderni/35/0060.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2009. 10 Nesse sentido: FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito a sujeição jurídica. São Paulo: LTR, 2002, p. 31. 11 De acordo com o conceito desenvolvido por Jack P. Greene de “autoridades negociadas”, é preciso acabar com os dualismos rígidos ou dicotomias entre metrópole e periferia, e enxergar que havia uma ampla negociação entre os agentes da Coroa e os do ultramar e colonos, tornando menos opressores os planos da Coroa com relação à colônia (RUSSELL-WOOD, Anthony John R.. Prefácio. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 13). 15 direito comum (ius commmune), sob a guarida do princípio da especialidade/particularidade, de cuja essência extrai-se que a “capacidade normativa dos corpos inferiores não podia ultrapassar o âmbito de seu autogoverno” (iurisdictio).12 Percebe-se, então, que não havia apenas um únicogovernante com o direito fruto de sua autoridade exercendo o poder de forma absoluta sobre toda a sociedade, ao contrário, existiam diversos corpos políticos que administravam, legislavam e produziam seus direitos, com práticas distintas para seus grupos ou instituições. Por consequência, o direito não se resumia ao que era produzido apenas pelo monarca mas incluía também o que era produzido pelos demais corpos sociais. Relativiza-se, dessa maneira, o papel do Estado, se este for identificado com a figura do monarca. Assim, tendo em vista que o poder político não tinha interesses diferentes dos interesses particulares, ao contrário, visava justamente salvaguardá-los, é que se diz que o Estado tinha como propósito manter direitos, caracterizando-se, dessa maneira, como um Estado jurisdicional, no qual a principal função do monarca era a de assegurar a paz, fazendo justiça. Desse modo, estava-se diante de um monarca mais justiceiro do que legislador ou administrador de uma República, logo a representação dominante do poder "público" encontrava-se no ato de julgar e não de administrar ou legislar.13 Em Portugal, os principais fatores que mitigam o papel do Estado Português, na época moderna, são os seguintes: o efetivo pluralismo político-jurídico, no qual o poder real dividia o espaço político com outros; o direito legislativo da Coroa estava limitado e enquadrado pela doutrina jurídica (ius commune) que guiava os Tribunais e pelos usos e práticas jurídicos locais; os deveres políticos, muitas vezes, eram dispensados diante de deveres morais, como a graça e a misericórdia, ou afetivos, decorrentes de laços de amizade, institucionalizados em redes de amigos e de clientes; e, por fim, os oficiais da Coroa tinham proteção ampliada dos seus direitos e atribuições, podendo fazê-los valer mesmo em confronto com o rei e tendendo, por isso, a minar e expropriar o poder real.14 12 HESPANHA, 2006b, p. 14. 13 FIORAVANTI, Maurizio. Estado y Constitución. In: ______ (ed.). El estado moderno en Europa: Instituciones y derecho. Madrid: Trotta, 2004, p.17-18. 14 HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001, p. 166-167. 16 Dentro desse contexto está o recorte espacial da tese. A escolha da Vila de Curitiba se deu por motivos arquivísticos e por Curitiba se configurar um espaço fronteiriço, dada a sua condição geográfica e limítrofe na América e no Império Oceânico Português, que fazia o local funcionar dentro dos moldes da tradição portuguesa, mas que ao mesmo tempo permitia adaptá-los à luz de suas necessidades locais. Não se deve perder vista, que a questão do isolamento do núcleo levou muitos historiadores a não se atentarem para as Câmaras das Vilas periféricas dada sua pouca relevância no sistema colonial. Daí, porque é interessante o viés dos estudos da América Portuguesa que se atém à questão do Império Oceânico Português. O conceito de Império serve para compreender "a complexidade das redes e conexões que ligam os diferentes domínios ultramarinos, entre si e com o centro da monarquia"15. Esse conceito, portanto, faz com que instituições antes desprezadas sejam objeto de estudo, como é o caso das pequenas cidades, dos seus agentes, e do direito aí praticado, assunto de interesse desta tese. São justamente estas características de território fronteiriço geograficamente com fontes dialógicas (processos criminais) e personagens fronteiriços, como o juiz ordinário e os procuradores/rábulas, que tornam interessante o estudo do direito praticado e da cultura jurídica colonial daí emergente. Aparece assim uma História do Direito mais preocupada com os vencidos do que com os vencedores e mais disposta a fazer leituras que privilegiam a circularidade cultural possibilitadora da escrita de uma outra história. 16 Ainda, tendo em vista que o espaço político-jurídico de Curitiba era administrado por autoridades locais – que não tinham uma formação jurídica formal – 15 BICALHO, Maria Fernanda. Da colônia ao império: um percurso historiográfico. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lucia Amaral (Orgs.). Modos de governar: ideias e práticas políticas no Império Português - séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005, p. 91-105. 16 De acordo com António Manuel Hespanha: “A história do direito não é apenas a história do direito conhecido e oficial. A história do direito praticado ou do direito das comunidades camponesas, designado como ‘direito dos rústicos’ pelos juristas eruditos, constitui, ele também, um domínio da história jurídica, por discreta que seja a historiografia estabelecida nas Faculdades de Direito sobre esses sujeitos” (HESPANHA, António Manuel. Une 'nouvelle histoire' du Droit? In: GROSSI, Paolo (org.). Storia sociale e dimensione giuridica: strumenti d'indagine e ipotesi di lavoro. Milano: Giuffrè, 1986, p. 326 Apud PEREIRA, Luís Fernando Lopes. O Império Português: a centralidade do concelho e da cidade, espaço da cultura jurídica. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (org.). As formas do direito: ordem, razão e decisão. Curitiba: Juruá, 2013, p. 580). A mesma noção é compartilhada por Luís Fernando Lopes Pereira (Cf. PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Estruturas político-jurídicas na América Portuguesa: entre centro e periferia. In: I CONGRESSO LATINO AMERICANO DE HISTÓRIA DO DIREITO, 2008, Puebla, México. Anais... , Puebla, 2008, p. 5). 17 e que estavam formalmente submetidas a autoridades régias – que, por lei deveriam ter conhecimento do direito letrado –, o direito praticado e materializado nos processos seculares criminais de feitiçaria serve como um termômetro para apurar as particularidades da cultura jurídica local em um viés que privilegia a circularidade cultural.17 Assim, o que se buscará é encontrar a cultura jurídica produzida no local tendo como fio condutor a feitiçaria. Cultura jurídica entendida não como um categoria fixa, mas como processo, como uma construção, seguindo a proposta de Luís Fernando Lopes Pereira, que aproxima a História da Antropologia Cultural. 18 A categoria cultura jurídica utilizada na tese, portanto, não tem o condão de verificar um direito erudito recepcionado de forma passiva/mecaniscista/deturpada, ou a produção de uma cultura jurídica espontânea, própria e genuinamente “brasileira” das classes jurídicas subalternas, ao contrário, o olhar se atem à relação entre as ditas culturas, ou seja, a preocupação é com a circularidade cultural jurídica, que remete “à preocupação com a questão da alteridade, da diferença, em outros termos, com a antropologia. Há, portanto, uma centralidade do conceito de cultura que pressupõe, no caso da cultura jurídica circulante no Brasil, um intercâmbio entre os diferentes níveis”.19 A leitura que se pretende fazer do cenário jurídico do setecentos tem como norte justamente a ideia de que o Direito é um fenômeno cultural, variável no tempo e no espaço e que depende de uma teia de significados para fazer sentido, a qual não é exclusiva do jurista, mas da própria sociedade. Portanto, entende-se que a própria 17 Acerca da circularidade cultural explica Carlo Ginzburg: “A existência de desníveis culturais no interior das assim chamadas sociedades civilizadas é o pressuposto da disciplina que foi aos poucos se auto definindo como folclore, antropologia social, história das tradições populares, etnologia europeia. Todavia, o emprego do termo cultura para definir o conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento próprios das classes subalternasnum certo período histórico é relativamente tardio e foi emprestado tal antropologia cultural. (...) A essa altura começa a discussão sobre a relação entre cultura das classes subalternas e a das classes dominantes. Até que ponto a primeira subordina a primeira a segunda? Em que medida, ao contrário, exprime conteúdos ao menos em parte alternativos? É possível falar em circularidade entre os dois níveis de cultura.” (GINZBURG, 2011b, p. 12). 18 PEREIRA, Luís Fernando. A circularidade da cultura jurídica: notas sobre o conceito e sobre o método. In: FONSECA, Ricardo Marcelo. Nova história brasileira do direito: ferramentas e artesanias. Curitiba: Juruá, 2012, p. 31-53. 19 Luís Fernando Lopes Pereira recapitula e promove uma crítica da categoria cultura jurídica no seguinte sentido: “a concepção tradicional de cultura que inspira visões sobre o jurídico é aristocrática e prega uma aparente separação radical entre alta e baixa culturas. Assim quando um elemento das classes privilegiadas migra para a subalterna destacam-no como degeneração O termo cultura jurídica se tornou popular na década de 70, segundo Ramon Narvaez, nos escritos de Lawrence Friedman, que a definiu como uma interpretação do direito (oficial, popular e misto) e suas instituições. Ainda, nas análises tradicionais privilegia-se o estudo das elites, dos grandes doutrinadores e juristas, tratados de forma celebrativa. Deixando a margem os manuais e os processos judiciais.” (Ibid., p. 31-53). 18 produção do direito é um processo cultural. Essa compreensão se faz útil e importante, visto que, regra geral, os processos judiciais, que tramitaram na periferia da América Portuguesa nas mãos de agentes práticos requerem uma análise que se atente tanto à leitura das ideias produzidas pela cultura erudita como às sensibilidades jurídicas dos agentes jurídicos locais acerca do direito, do processo e do delito. A metodologia20 para se encontrar algumas particularidades da cultura jurídica local nos processos criminais pautou-se no paradigma indiciário de Carlo Ginzburg, que privilegia sinais, detalhes, pormenores, e indícios. Portanto, é a partir das pistas que se reconstruirá algumas tramas que deram origem aos processos, fontes desta tese.21 Ainda, em razão da tese estar construída com base em processos criminais, também se leva em conta as recomendações metodológicas que considera suas potencialidades, como a intensividade22 e o seu caráter dialogal ou polifônico. 23 Há também o problema dos discursos suscitados no processo, que envolve a construção de verdades24 por meio de versões sobre fatos. Este será mais um dos pontos que se pretende explorar na tese que, por se situar no campo da historiografia 20 Como bem declina Ricardo Marcelo Fonseca a metodologia na História do Direito está relacionada com a forma de escolher as fontes, o modo de tratá-las, lê-las, classificá-las e organizá-las e, a partir daí o modo de descrevê-las. Por tal razão, no entender do historiador do direito, a metodologia é uma espécie de passo a passo, é o caminho que se faz para ter um resultado de conhecimento. Já a teoria é a chave conceitual, a ferramenta que o teórico utiliza para tratar determinado tema na ciência em geral (e na História ou Direito em particular) (FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2009, p. 29). 21 GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 147. 22 A intensividade da fonte relaciona-se a questão qualitativa da fonte, os processos criminais, geralmente, destacam-se por se uma documentação atenta aos detalhes, às margens do discurso, e fundada sobre um olhar microscópico (Ibid, p. 147). Ver também: GINZBURG, 2011b, p.19-20. 23 “Toda manifestação artística e literária é dialógica. Toda realidade lingüística é dialógica, pois responde e solicita resposta, atuando em um plano intra-enunciados. Todo enunciado é dialógico e a consciência social é semiótica e multivocal de ponta a ponta, nas palavras de Bakhtin: ‘nenhuma palavra ocorre sem o olhar oblíquo do outro’. Assim, para ele, o nosso falar nasce da boca dos outros, no universo da heteroglossia (múltiplas línguas e múltiplas redes dialógicas); a sentença, portanto, não é algo dado, abstrato, monológico, morto, mas um conjunto de citações. Aqui, novamente, encontramos a superação da dicotomia individual-coletivo, como em Norbert Elias. Ver: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética; a teoria do romance”. São Paulo: UNESP, 1993. apud PEREIRA, L., 2012, nota 43. 24 Embora existissem mudanças ao longo do tempo acerca dos ritos, das atribuições e da legitimação de cada personagem processual, a finalidade do processo quase não variou, consistindo, em última linha, na busca da verdade material dos fatos, do argumento, este, hoje, extremamente criticado em razão da linguistic turn. Acerca do tema, ver: GINZBURG, Carlo. Introdução. In: GINZBURG, Carlo. Relações de Força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Sobre o tema ver também: FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 13-45. 19 jurídica, se interessa justamente em examinar como os operadores jurídicos trabalhavam na construção da “verdade” judicial”.25 À luz dessas orientações é que se destacam mais uma vez, as lições de Carlo Ginzburg de que as tarefas do historiador e do juiz estão próximas, afinal, ambos precisam “ter a habilidade de demonstrar, segundo regras específicas, que x fez y, sendo x designado ator principal, ainda que não nomeado, de um evento histórico ou de um ato legal, e y, qualquer tipo de ação. Mas, às vezes, casos que um juiz pode desconsiderar como juridicamente inexistentes se tornam frutíferos aos olhos de um historiador”.26 O processo permite aferir, também, o grau de tensão e violência institucional pelo teor e pelas motivações das inquirições promovidas e do ambiente. A tensão pode ser sentida por meio de uma análise dos tipos de provas produzidas e da condução da sua produção. No caso da inquirição das acusadas e acusadores buscou-se ficar alerta às perguntas elaboradas pelos agentes da justiça, verificando se elas propiciavam o diálogo, ou se apenas consubstanciavam-se e tornavam-se monódicos, na medida em que as respostas nada mais seriam do que o eco das perguntas dos inquisidores.27 Por conta disso, é que se tentou “aprender a captar, para lá da superfície aveludada do texto, a interação subtil de ameaças e medos, de ataques e recursos”, tem-se, por assim dizer, “de aprender a desembaraçar o emaranhado de fios que formam a malha textual destes diálogos”.28 No que tange ao recorte temporal, buscou-se o período pombalino em razão das alterações políticas e jurídicas feitas por meio de uma legislação cada vez mais intensa e com alcance mais amplo sobre a sociedade com o intuito de fortalecer os poderes da Monarquia portuguesa, embora pouco se saiba sobre o impacto de tais alterações na colônia pela ausência de pesquisas. Um dos pontos centrais da tal política foi reduzir ou findar o pluralismo jurídico, que estava fundado nos costumes do direito local e na doutrina do direito erudito. O 25 GRIMBERG, Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina (org.) O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 128. 26 GINZBURG, Carlo. Controlando a evidência: o juiz e o historiador. In: NOVAIS, Fernando; SILVA, Rogério F. (org.). Nova história em perspectiva. São Paulo: CosacNaify, 2011a, p. 349. 27 GINZBURG, 1991, p. 208. 28 Ibid., p. 209. 20 objetivo era privilegiar as leis produzidas pela Coroa,como se apenas essa fonte do Direito tivesse a juridicidade necessária para guiar, e não mais ordenar, a sociedade. É possível ver uma amostra dos esforços de concentração e centralização do poder nas reformas na administração da justiça, que aumentou o número da figura do juiz de fora (juiz letrado), e no teor e na recepção da Lei de 18 de agosto de 1769, posteriormente denominada Lei da Boa Razão, que reformou as fontes, os métodos de interpretação do Direito e o ensino jurídico com a finalidade de assegurar o primado da vigência das leis nacionais, concentrar o poder legislativo nas mãos do soberano, reduzindo a complexidade e a pluralidade jurídica.29 Fazendo uma síntese do direito racionalista inaugurado por Pombal, Antonio Manuel Hespanha informa que se privilegiou o textualismo ou antidoutrinarismo do humanismo e a sistemática do racionalismo; emergiram novas ideias acerca da finalidade do direito romano da escola da pandectista, enfatizou-se o individualismo e o contratualismo das escolas jusracionalistas, que produziu um novo direito privado; ocorreu o desenvolvimento do direito público e da ciência da Administração, da cameralística alemã; por fim, o historiador destaca para seara do direito processual penal o humanitarismo italiano.30 Tais medidas visavam racionalizar, sistematizar e uniformizar o Direito e o Estado Moderno Português, até então qualificado de Estado Corporativo e Jurisdicional. Porém, estudos historiográficos analisando a efetividade das ideias iluministas jurídicas, pautadas na lei régia como principal fonte do Direito, têm demonstrado que o despotismo esclarecido pombalino não foi tão eficiente para alterar a paisagem jurídica no Império Oceânico Português. Vale dizer, a compreensão do Direito como norma estatal (monismo jurídico) e a sua redução a lei (absolutismo da lei)31 não se 29 Acerca das políticas pombalinas, inclusive, jurídicas ver: WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Direito e justiça no Brasil Colonial: o tribunal da relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 547-560. 30 HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. 3. ed. Lisboa: Europa-América, 2005, p. 239. 31 Paolo Grossi acerca do processo de instauração de um absolutismo jurídico aduz: "Mas não era somente o material consuetudinário a acabar no sótão: a ciência e jurisprudência prática sofreriam a mesma sorte, porque, fontes primárias na complexidade jurídica do antigo regime, foram chamadas a tecnizar, definir e em alguma medida categorizar a amorfa sedimentação dos usos e representavam um risco à causa das capacidades autonomizadoras de uma categoria de componentes aguerridos. Claro, uma vez que a lei - já única fonte- é aplicada, não se poderá desprezar os juristas, mas se lhes tirará sua liberdade de ação reduzindo o doutrinário à prisão da exegese e o juiz às amarras de um silogismo aprisionador (GROSSI, Paolo. Para além do subjetivismo moderno. In: FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite (orgs.). História do direito em perspectiva: do antigo regime à modernidade. Curitiba: Juruá, 2009, p. 25-26). 21 aplica ao cenário português do Antigo Regime, que durou, segundo Antonio Manuel Hespanha, até 1808, dada a forte influência do ius commune na cultura jurídica e também em razão da propagação do iluminismo moderado, representado pela Segunda Escolástica, também designada de Escola Ibérica do Direito Natural. Enfim, o que se tem no ambiente cultural do Estado Moderno Português é um Direito típico do Antigo Regime32, o qual se caracteriza pela presença simultânea de um direito erudito, típico do ius commune; de uma doutrina nacional pautada no iluminismo moderado da II Escolástica, que trabalha em prol do despotismo esclarecido; de uma crescente produção legislativa por parte da Coroa; e, de uma sobrevivência dos costumes. Em outra perspectiva, o século XVIII foi o mais repressor quanto à feitiçaria, a qual também adquiriu novas vestes no período pombalino. Iniciou-se a secularização dos delitos religiosos, em razão de uma literatura mais cética que passou a circular; houve uma alteração da legislação, especialmente inquisitorial; e deixou-se de perseguir feitiçarias por malefícios diabólicos para se perseguir curandeiros, dado usarem a mesma técnica da medicina, cujo discurso científico estava se assentando. Portanto, o recorte temporal escolhido visou compreender como era reproduzido o processo e o direito criminal neste período, cuja marca conferida pelo senso comum e por grande parte da historiografia tradicional jurídica, ou não, é de inovações e modernizações. Dentro desses recortes, as principais fontes primárias estudadas foram três documentos manuscritos – processos judiciais – provenientes da justiça secular e, que tratam de dois eventos sobre feitiçaria. Um deles relativo ao curandeirismo, e outro, aos malefícios (feitçaria em sentido estrito). Entretanto, juridicamente representam quatro tipos de instrumentos processuais, duas devassas e duas ações ordinárias, uma instaurada a pedido da população outra de ofício pelo Ouvidor.. Os processos estão depositados no Arquivo Público do Paraná, que possui um fundo do Poder Judiciário, o qual contém processos judiciais que tramitaram na região da Ouvidoria de Paranaguá, incluindo aí, processos da Vila de Curitiba. Para o período de recorte o fundo conta com 560 processos, destes 61 tinham mulheres 32 O termo Antigo Regime designa uma ideia de monarquia corporativa, a qual compartilha com outros corpos o espaço político. Para António Manuel Hespanha esse modelo irá predominar em Portugal até meados do século XVIII. O Antigo Regime contrapõe-se, desse modo, à ideia de um Estado Absolutista ou precocemente centralizado, no qual o monarca teria um poder exclusivo e ilimitado, esta concepção, recorda-se, predominou na historiografia brasileira e portuguesa até 1980 (HESPANHA, 2001, p.166). 22 como uma das partes da relação processual, e apenas 3 cujo objeto era a feitiçaria. Quanto ao tipo de ações, a maioria é de: a) ação da alma; b) ação de assignação de 10 dias; c) execução; d) inventários; e) libelo civis: muitos de injúria; f) libelo criminais; g) apelação; h) agravos (poucos). O estado de conservação dos processos, que são manuscritos, é razoável. Algumas folhas estão se desfazendo, em razão do tempo. A leitura ficou um pouco prejudicada também, em razão de a tinta ter manchado o papel. Ainda, importa registrar que os processos, dentro do padrão da época, foram escritos com diversas abreviaturas, conforme se pode ver no anexo da tese, onde estão as transcrições dos documentos-fontes. Também importa esclarecer, desde já, que uma das fontes – autos de libelo crime decorrente da devassa por malefícios – não está completa. O processo se encerra em um certo ponto das alegações finais do procurador, ou seja, não conta com a sentença. Contudo, isso não foi óbice para análise da fonte, interpretou-se o documento até onde foi possível explorá-lo. Além dessas fontes, em oportunidade de doutorado sanduíche, buscou-se obras raras e documentos inéditos para ampliar informações e problematizações, porém, estes não foram encontrados. Os arquivos pesquisados foram o do Santo Ofício e do Vaticano, Jesuítas de Roma, Biblioteca Nacional de Roma, Biblioteca Casanatense, Arquivo da Torre do Tombo, Biblioteca Nacional de Lisboa, Biblioteca da Faculdade de Direito de Lisboa, Biblioteca da Faculdade de Coimbra. Sobre a vida local de Curitiba, foram consultados: Boletim da Câmara Municipal de Curitiba, Atas de Eleições da Câmara de Curitiba, Provimentos do Ouvidor Pardinho, Livros de Termos de Audiências e Aferições dos Almotacés de Curitiba. Quanto à feitiçaria, as fontes serãoexaminadas especialmente a partir das lições de Francisco Bethencourt, José Pedro Paiva, Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas, historiadores que se debruçaram sobre a feitiçaria e a sua repressão por perspectivas diversas para o Império Português. 33 Já quanto ao Direito e às instituições, como marco teórico, foram adotadas as lições de António Manuel Hespanha e também de Adriano Prosperi. Além disso, recorreu-se a alguns juristas 33 O cenário europeu do Império Português durante a época moderna foi esquadrinhado por Francisco Bethencourt, que se ateve aos séculos XVI e XVII e por José Pedro Paiva, que se dedicou ao século XVIII. 23 da época, como Antonio Vanguerve Amaral (XVIII), Joaquim Pereira e Souza e também Pascoal de Mello e Freire (início do XIX). A partir destes recortes, o objetivo geral da tese é estudar como o delito foi compreendido na justiça criminal de Curitiba (Juízo Ordinário) e Paranaguá (Ouvidoria), extraindo dos indícios suas marcas gerais e as particularidades locais que são representativas, mas sem pretensões de generalizações. Assim, a tese está estruturada em duas partes. A primeira, ancorada na historiografia, busca trazer o cenário da feitiçaria e das jurisdições competentes para investigá-la no Império Português. A segunda, com base nas fontes trata especificamente da feitiçaria na Vila de Curitiba, problematizando os documentos em diálogo com as premissas traçadas na primeira parte. O capítulo primeiro trata especificamente da feitiçaria no Império Português, trazendo suas particularidades dentro do contexto europeu e as particularidades da América Portuguesa. O capítulo segundo, a partir de uma abordagem institucional normativa e pautada na atual historiografia sobre o assunto, examina a feitiçaria, delito de foro misto e de competência de três jurisdições diversas – episcopal, inquisitorial, secular. O capítulo terceiro não destoa do segundo, mas trata mais especificamente da justiça secular, vale dizer, traz considerações acerca do direito criminal e processual criminal no Império Português e de como o delito era compreendido e processado. Na segunda parte, o primeiro capítulo traz um panorama do espaço social e jurídico da Vila de Curitiba, dando especial ênfase à cultura jurídica colonial com base na produção historiográfica jurídica produzida pelo grupo de estudos setecentistas do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná e coordenada pelo Prof. Dr. Luís Fernando Lopes Pereira.34 Já os capítulos segundo e terceiro, tratam especificamente dos eventos ocorridos que foram objeto de processos criminais – feitiçaria e curandeirismo –, os quais são analisados da mesma forma: uma análise do imaginário acerca do delito, uma análise dos argumentos jurídicos usados nos processos e uma análise do próprio processo como fonte. Esta última análise se faz com base no rito processual seguido, e a partir de uma “descrição densa” – no sentido proposto por Clifford Geertz que enfatiza a descrição pormenorizada do objeto de estudo dando destaque às ações que 34 O grupo de estudos setecentista está vinculado ao Núcleo de Pesquisa História, Direito e Subjetividade coordenado por Ricardo Marcelo Fonseca. 24 desembocam em fatos – com a finalidade de compreender juridicamente, de forma mais sistematizada, as fontes, enfatizando suas formalidades, atos, ritos, procedimentos, etc.35 Por fim, importa destacar que esta tese irá utilizar os termos/categorias feitiçaria e direito criminal. Opta-se pela categoria feitiçaria em razão de assim aparecer nas Ordenações Filipinas, nas Constituições de Arcebispados, nos Regulamentos da Inquisição e nas fontes primárias que alicerçam esta tese. Sabe-se que o termo, em Portugal, oscilou tanto na produção científica contemporânea como também na época moderna. 36 37 Também se opta pelo amplo sentido de feitiçaria, o qual não se importa tanto com a qualidade do ato, se feito por uma condição inerente 35 GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 4. 36 A atual produção historiográfica portuguesa não faz uma distinção precisa entre feitiçaria e bruxaria, o que se verifica é uma grande quantidade de termos e significados que decorrem de especificidades regionais, das fontes escolhidas, e também da formação do pesquisador, informa Francisco Bethencourt. Já a terminologia da época moderna, empregada pela elite intelectual, levava em conta a cultura clássica que saturava todo o seu universo mental, inexistindo fronteiras entre o fantástico e o real (neoplatonismo), a partir de uma leitura embebida na patrística e na escolástica. Dentre os diversos conceitos elencados nos dicionários, a feitiçaria sempre aparecia vinculada à noção de arte mágica e a bruxaria aos mitos da lamia e da strix. A fluidez do conceito e o uso indistinto dos termos bruxaria e feitiçaria encontra-se também na cultura popular, conforme demonstram os estudos que se debruçam sobre os depoimentos de réus, testemunhas e denunciantes dos processos que tramitaram na época moderna, e não poderia ser diferente dado o seu caráter oral, que em essência não permite construir raciocínios abstratos (BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 50-54). 37 Nessa esteira, encontra-se a obra de Raphael Blutheau, que aqui se destaca em face de pertencer ao século XVIII, período de recorte da tese. Do seu Vocabulário extrai-se que eram “Bruxas umas mulheres que se entende que matão crianças, chupando-lhe o sangue”, já Feiticeira “mulher que faz e dá feitiços”. “Feiticeria. Feiticeira. Mágica. Deriva-se do italiano Fattuchieria, que significa o mesmo. Magice, es. Fem. Plin. Hist. Vid. Magia”; “Feiticeria. Encanto, fascinação, obra mágica. Venificum, ii. Neut. Fascinatio, onis. Fem. Cic” e “Feiticeiro. Homem que com arte diabólica e com pacto, ou explícito ou implícito, faz cousas superiores às forças da natureza” (BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... v. 4. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1713, p. 63. Disponível em: <http://dicionarios.bbm.usp.br/em/dicionário /1/feiticeira>. Acesso em 11 mar. 2016). 25 de seu agente (witchcraf) 38 ou por se socorrer de técnicas e mecanismos (sorcery)39. Além disso, a compreensão da feitiçaria não se restringe à ideia teológica das feiticeiras, como agentes representantes e adoradoras do Diabo, que circulava nas elites, abrange, também, as superstições, a noção popular das práticas mágicas, pois foi mais nesse sentido que ela foi perseguida em Portugal. No viés das lições de Carlo Ginzburg a feitiçaria é interpretada como um compromisso cultural, especialmente, se levadas em conta as particularidades da América Portuguesa setecentista, onde a população nativa possuía outros hábitos culturais que foram lidos e recriminados pelo olhar e categorias etnocêntricos da elite cristã, daí a recriminação. Em outro sentido, também informa-se que é usado o termo criminal, pois assim aparece nos documentos, na doutrina e na legislação portuguesa. Tomando emprestadas as considerações de Vanessa Massuchetto isso se deve ao fato de a ordem jurídica do Antigo Regime possuir uma compreensão diversa do ramo criminal. Enquanto o termo "direito penal", que passou a ser usado no século XIX, está mais associado à questão da punição dos sujeitos por meio do Estado, o termo “direito 38 Keith Thomas, pautado em estudos da antropologia, aponta que existe diferença entre bruxaria e feiticeira. A seu ver, a bruxaria “é uma qualidade inata, um traço pessoalinvoluntário, derivado de uma peculiaridade fisiológica que pode ser descoberta na autopsia. A bruxa exerce seus poderes maléficos por meio ocultos e não precisa de palavras, ritos, feitiços ou poções. Seus atos são puramente psíquicos”. Já a feitiçaria “é o emprego deliberado da magia maléfica; envolve o uso de um feitiço ou de um auxílio técnico, e pode ser empregada por qualquer pessoa que conheça a fórmula correta.” Assim, enquanto a bruxa nasce, a feiticeira faz-se. O léxico inglês, ainda, faz distinções entre bruxas (witchcraft: envolve pacto com o demônio, voo noturno, a participação em sabás) e feiticeiras (sorcery: cobre um conjunto de técnicas e ritos mágicos que se inserem no espaço cotidiano) (THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 376-377). Levack, acompanhando os estudos da historiografia inglesa que fazem a distinção entre bruxas e feiticeiras, esclarece ainda que o conceito de malefício ainda se aproxima ao de sortilégio. Mas com este não deve ser confundido. Este seria mais específico equivalente a categoria francesa sorcery, a qual designa que a prática de magia através de qualquer sorta de processo mecânico, de manipulação, é uma técnica adquirida que pode consistir na destruição de uma imagem pessoal, com o escopo de provocar o mal, no recitar de um sortilégio, ou no usar de uma poção, “la fattura”. Esta, por sua vez, difere-se do malefício por dois motivos: a fattura pode ser benéfica ou maléfica (uma categoria mais ampla) e pode não requerer técnicas, e por isso, ser mais limitada. O malefício por sua vez pode ser o resultado de um poder mais genérico de uma feiticeira de infligir um dano, antes que a prática de uma arte particular, como é o caso do mal olhado (LEVACK, 2008, p. 11). 39 Francisco Bethencourt sobre o assunto destaca que na França há apenas o termo sorcellerie, que abarca os dois termos ingleses. Na Alemanha, há dois termos hexenei e zauberei, mas o significado é muito próximo. Situação semelhante ocorre na Itália com as palavras stregoneria e fattucchieria, que equivaleriam a witchcraft e sorcery, mas a primeira é mais utilizada englobando ambos os significados. Na Espanha, há um fenômeno linguístico semelhante com os termos brujeria e hechiceria. A prática de atos maléficos (malleficium em latim) envolvia o uso de poderes extraordinários, misteriosos e ocultos ou sobrenaturais com o objetivo de matar pessoas e/ou animais, causar doenças, incêndios, impotência etc. Os estudiosos do assunto da língua inglesa, amparados pela distinção antropológica feita por E. Pritchard, por sua vez, usam o termo wichcraft para designar o mito que envolve o pacto com o demônio, voo noturno e sabás (BETHENCOURT, 2004, p. 46-48). 26 criminal” está inserido em uma lógica concentrada na ocorrência do crime, cujo interesse principal não era tanto a punição, mas o fato/delito e os agentes envolvidos e a qual ainda tinha uma compreensão privada do crime, pois possibilitava a resolução da questão criminal por meio de reparação da ofensa à vítima, negociando as partes.40 Por conta deste cenário é que se resolveu compreender a cultura jurídica do período colonial a partir do delito de feitiçaria, de modo a contribuir para a historigrafia geral, a partir de uma leitura da justiça secular sobre o delito, e de modo a contribuir para historigrafia jurídica, traçando, a partir de uma análise minuciosa das fontes, a cultura juridica criminal e processual criminal do período colonial, analisada pela metodologia do paradigma indiciário e pela perspectiva da circularidade cultural.41 40 MASSUCHETTO, Vanessa Caroline. Os autos de livramento crime e a Vila de Curitiba: apontamentos sobre a cultura jurídica criminal (1777-1800). 2016. 162 f. – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016, p. 10. 41 GINZBURG, 1991, p. 205. 27 PARTE 1 A FEITIÇARIA NO IMPÉRIO PORTUGUÊS 1. A FEITIÇARIA EM PORTUGAL 1.1. A “CAÇA ÀS BRUXAS”: APONTAMENTOS HISTORIOGRÁFICOS A chamada “caça às bruxas” teve seu ápice repressivo na Europa dos séculos XVI e XVII. 42 Os historiadores que se debruçam sobre essa questão, cada qual com sua abordagem e metodologia, registram alguns fatores que desencadearam o fenômeno, tais como: ideias; mentalidades; direito e práticas dos tribunais; centralização política; misoginia; crenças e tradições pagãs das comunidades; entre outros.43 Um primeiro fator apontado pela historiografia das mentalidades indica que as ideias em torno do Diabo desenvolvidas pela elite cristã letrada e adotadas por diversas autoridades eclesiásticas e judiciárias, mergulhadas em um ambiente de medo e conflitos sociais, foram determinantes pelo fenômeno da “caça às bruxas”.44 42 Segundo Brian Levack, usando o critério do número da população dos territórios com o número de processos instaurados, no que respeita à espacialidade, a Alemanha, foi o país que mais perseguiu feiticeiras, a França, apesar de ter sido a primeira a persegui-las, ocupa o segundo posto, seguida da Suíça e dos Países Baixos (LEVACK, 2008, p. 223-268). Ver também os números apresentados por Jean Delumeau (DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente (1300-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 529, 542 e 546). 43 Conforme José Pedro Paiva: a) choque de culturas distintas em um momento no qual as elites tentaram impor sua visão de mundo a populações onde ancestrais crenças e gestam ainda se mantinham, seria o caso de Robert Muchelamb; b) outros viram que as acusações de feitiçaria tinham função social nas comunidades nas quais se originaram. Esta é a análise feita por Alan Macfarlene; c) a ligação de todos esses elementos a territórios que assistiam a uma quebra ou ausência de autoridade política e institucional, argumento usado por Christina Lerner; d) a ”caça às bruxas” como um movimento contra a mulher, como resultado de uma sociedade misógina, como defenderam Willian Monter, Selma Wiliians e Patricia Willians; e) Emmanuel Le Roy, por sua vez, entendeu a feitiçaria como resultado de tensões vicinais da vida cotidiana; f) Mirca Eliade, viu na feitiçaria gestos de reativação do momento cósmico primordial de criação; g) Por fim, ainda tem uma corrente que busca mostrar que alguns fenômenos designados por feitiçaria e bruxaria são atos possíveis de poder ser explicados e entendidos em uma perspectiva cientifico-racional. Nesta linha, aparecem estudos nas áreas da telepatia, onirismo, hiptotismo, mecanismos de percepção, biofeedback e estudos das reações psicossomáticas (PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740). Coimbra: Minerva, 1992, p. 33-35). 44 Segundo Jean Delumeau, as noções do Diabo apareceram nos séculos XI e XII, porém, a ênfase em tal elemento ocorreu efetivamente com a Divina Comédia de Dante e com a difusão da imprensa. 28 Segundo Keith Thomas, desde a antiguidade, existia a noção de malleficium, que se constituía como uma “atribuição do infortúnio a um agente humano oculto”. Entretanto, no século XIV, se sobrepôs a tal noção e passou a predominar a ideia de que qualquer malleficium estava necessariamente atrelado ao Diabo. 45 Francisco Bethencourt esclarece que o nexo entre práticas mágicas e satanismo decorreu do fato de que para os teólogos da escolástica e para os demonólogos o conhecimento do oculto decorria de três fontes: por meio de estudo, que estava circunscrito à cultura escrita; da revelação por Deus, que estava reservada aos santos ou aos beatos e também por homens que receberam a graça divina; e, da ingerência do Diabo. Pode-se inferir daí que o elo servia como critério de diferenciação entre a magia feita pela própria Igreja e a magia praticada por aqueles que a ela não se associavamou dela se afastavam. 46 Por conseguinte, todos aqueles que executavam práticas mágicas se tornaram hereges 47 e apóstatas 48 , pois suas magias deixaram de ser naturais Portanto, o auge do diabo nas imaginações foi na Idade Moderna e não na Idade Média (DELUMEAU, 2009, p. 354). Levack acrescenta que durante o período medieval o Diabo foi descrito como inimigo e antítese de Cristo, pois promovia o ódio e não o amor. A partir do século XV, começou a ser encarado como antítese de Deus Pai, isto é, como fonte de objeto de idolatria e falsa religião. Durante o período medieval se referia ao Diabo como Satanás, termo que se encontra na Bíblia e que significa “adversário”. No Antigo Testamento, tal termo, não tinha grande destaque, apenas no último livro o Satanás assumia uma personalidade distinta apresentando-se como o inimigo de Deus e como a encarnação do mal. No Novo Testamento, por sua vez, Satanás adquiriu um novo e destacado papel: passou a ser tido como o de hospedeiro de vários demônios a ele subordinados, uma figura que ainda era responsável por colocar em tentação Cristo e que por isso se tornara o principal opositor do Cristianismo, pois induziu o homem a renunciar Cristo e seus ensinamentos. Aí teria se originado a luta entre o bem o mal. Visando difundir o cristianismo a Igreja Católica usou Satanás como subterfúgio, ou seja, como instrumento para combater as religiões que lhe criavam obstáculos, especialmente, o judaísmo e o paganismo. Para este último, o discurso era o de que as divindades pagãs eram o próprio demônio, conforme evidenciam algumas representações pictóricas do Diabo na arte cristã e as repressões na América Portuguesa. As características comumente conferidas ao Diabo eram originárias das divindades pagãs, como a barba caprina, os pés bifurcados, os chifres, a pele escamosa, a nudez e as formas semi-animalescas, que se identificavam com a divindade greco-romana Pan, ou a divindade céltica Cernunnos, enquanto que os seios femininos frequentes nas representações do diabo no seiscentos decorrem da Deusa Diana, deusa da fertilidade (LEVACK, 2008, p. 38-39). 45 THOMAS, 1991, p. 355-357. 46 BETHENCOURT, 2004, p.173. 47 Hereges: “o que escolheu”, segundo M. D. Chenu, ou seja, “o que isolou de uma verdade global uma verdade parcial, e em seguida se obstinou na escolha”. Cátaros e albigenses, que viviam no sul da França e que ali constituíram uma Igreja contra a Igreja de Roma (CHENU, Marie-Dominique. Eresia. In: PROSPERI, Adriano (dir.). Dizionario storico dell'Inquisizione. v. 2. Pisa: Edizioni della Normale, 2010, p. 546). Para Ronaldo Vainfas: “indivíduo que escolher ’isolou de uma verdade global ou uma verdade parcial, e em seguida se obstinou na escolha” (VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados; moral, sexualidade e inquisição no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 251). 48 Apostasia é a refutação da doutrina e do batismo e abandono da fé cristã. Religião diversa (judaísmo ou islamismo) ou seguir o Diabo e com ele ter feito um pacto explicito ou implícito (COL, A. Apostasia. In: PROSPERI, Adriano (dir.). Dizionario storico dell'Inquisizione. v. 1. Pisa: Edizioni della Normale, 2010, p. 75). 29 (brancas) para serem tratadas como diabólicas (negras), sendo conferido o mesmo entendimento às práticas mágicas das populações nativas da América. Vale dizer, “todo sagrado não oficial era considerado demoníaco, e tudo o que é demoníaco era herético”49. 50 Com tal mudança o elemento essencial das práticas mágicas passou a ser definitivamente o Diabo, que se configurou como núcleo central da definição jurídica do crime de feitiçaria nas mais variadas jurisdições e sobre o qual o delito foi perseguido e reprimido. A partir de então, feiticeiras, especialmente, na França e na Inglaterra, deveriam ser processadas não por fazerem atos maléficos, mas por acreditarem, e, inclusive, reverenciarem (latrias) o Deus errado, no caso, o Diabo, daí o caráter herético do delito: Vista desse novo ponto de vista, a essência da bruxa não era o dano que causava a outras pessoas, mas o seu caráter herético de adoração ao Diabo. A bruxaria tornara-se uma heresia cristã, o maior de todos os pecados, pois envolvia a renúncia de Deus e a adesão deliberada ao seu maior inimigo. O malleficium passa a ser secundário, um subproduto da falsa religião. Prejudicando ou não os demais, a bruxa deveria morrer pela sua deslealdade a Deus. Em torno dessa concepção foi concebida a noção da adoração do Diabo, que implicava o sabá, ou reunião noturna, em que as bruxas juntavam- se para adorar a seu senhor, ou copular com ele.51 Essa leitura que associava a feitiçaria ao pacto com o Diabo e consequentemente a via como heresia pertencia mais a elite letrada. Para a população a prática de malefficium também implicava a presença do Diabo, porém, compreendido em viés menos herético, pois ainda não fazia parte do imaginário visões escatológicas do mundo pregadas pelas Igrejas, especialmente, na fase da reforma e contrarreforma.52 No entanto, não se pode perder de vista, que a noção satânica ou herética das feiticeiras, circulou no imaginário das populações, com o decorrer dos tempos, por meio de pregações, sermões, leitura pública de sentenças de feitiçaria, etc. Seja como for, os territórios europeus onde as autoridades judiciárias e eclesiásticas adotaram o conceito demonológico de malleficium e uma noção ampla 49 DELUMEAU, 2009, p. 592. 50 Foi com a Bula Super Illius Specula, de 1326, em que pese direcionada mais ao território alemão, que se criou pela primeira vez equação: malefícios=feitiçaria diabólica=heresia (Ibid., p. 524). 51 THOMAS, 1991, p. 357. 52 DELUMEAU, op. cit., p. 524. 30 de heresia, incluindo idolatrias, mas também superstições, regra geral, foram os que mais perseguiram e reprimiram as feiticeiras e à medida que os infortúnios e inquietações sociais aumentavam a obsessão por hereges/feiticeiras também. Outro fator de destaque é a pedagogia do medo desenvolvida pela Igreja, incorporada e aplicada pelas autoridades com jurisdição para averiguar o delito.53 Medo que, para Jean Delumeau, pairava sobre a sociedade europeia da época moderna, dentre os quais sublinha: (i) os medos fomentados pela Igreja, por meio de visões escatológicas do mundo, sendo a descoberta da América e de sua população nativa interpretada como o sinal de que o reino dos santos estava próximo ou então que o fim dos tempos já não tardaria; (ii) o medo do Diabo, no qual as feiticeiras seriam suas agentes, pois apenas Deus e os estudiosos do clero tinham acesso ao conhecimento de coisas extraordinárias, e (iii) o medo de si próprio, fruto de um discurso religioso (da reforma e contrarreforma) que impunha tanto ao clero como a população severas regras morais, que dada a sua pesada carga psicológica, quando não observadas fazia emergir a culpa, a qual era transferida, projetada, para as feiticeiras, e que era extraída mediante a confissão ou inquirição em devassas; (iv) o próprio medo da mulher ressaltado pela Igreja54. Desse modo, a cultura da cristandade da época, que compreendia a vida com um fardo, e por conta disso a dramatizava, junto com um contexto de crise social – pestes, revoltas e o cisma – fez com que a Igreja e as Coroas identificassem um inimigo, no caso foi o Diabo, que se camuflava por meio de feiticeiras perturbando a vida cotidiana. Jean Delumeau também se questiona acerca da obsessão da cultura dirigente da época moderna pela feitiçaria. No seu entender, o humanismo, ao resgatar obras da antiguidade lido por lentes cristãs e pelo neoplatonismo, contribuiu para aumentar a credibilidade do Diabo. Ainda, o acúmulo de leituras pela elite teria aumentado a distância entre a sua cultura e a popular, a qual parecia-lhe cadavez mais estranha e incompreensível. Daí porque entende o historiador que a “caça às bruxas” e os 53 SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 387-388. 54 Segundo Jean Delumeau o medo da mulher não é uma invenção dos ascetas cristãos, o medo vem da antiguidade, basta recordar que muitos rituais funerários cabiam às mulheres, pois eram tidas, mais que homens, ao ciclo (do eterno retorno) que arrasta todos os seres da vida para a morte e vice-versa. Elas criavam, mas também destruíam. Com isso, o historiador assevera que o medo da mulher apenas foi integrado ao cristianismo muito cedo e também foi o cristianismo que agitou o espantalho até o limiar do século XX. Assim, o antifeminismo agressivo dos séculos XVI a XVIII não era uma novidade no discurso teológico (DELUMEAU, 2009, p. 468-469 e 564). 31 processos de feitiçaria foram uma “autodefesa da ética dominante contra uma prática coletiva que a julgava em contrário e que serviu de bode expiatório”.55 Para Robert Mandrou, primeiro a destacar a faceta jurídica como importante para a “caça às bruxas”, o fenômeno decorreu de três fatores que o legitimavam: (i) crença cristã; (ii) processos judiciais, que implicavam um consenso de todos os participantes: juízes, testemunhas e acusados; (iii) as sentenças e as confissões, as fogueiras e os confiscos, vistos como o julgamento de Deus e dos homens.56 O historiador francês, como se sabe, pesquisou os processos judiciais seculares da região do Laguedoc, na Franca, do século XVII, e dentre diversas conclusões constatou o alto cárater repressor e cruel desta jurisdição. Laura de Mello e Souza também destaca as novas formas de organização das instituições que começaram a emergir no final do século XIV, incluindo aí o direito criminal, como um fator desencadeador da “caça às bruxas”.57 De outra sorte, tendo em vista que a “caça às bruxas” reprimiu uma maior quantidade de mulheres, alguns historiadores, como Jules Michelet, destacam que tal fenômeno foi uma “caça às mulheres”, que se rebelaram contra as autoridades, contra a própria sociedade e contra o modelo econômico.58 Acerca desta questão, imperioso recordar, primeiramente, que o ambiente era de misoginia. A visão da elite letrada estava amparada na noção aristotélica, que compreendia a mulher, dada a anatomia de seu sexo e de seus fluidos, como um homem inacabado, um ser esburacado, e deformado e por isso mais predisposto a não ser virtuosa.59 Associada a tal noção, estava a patrística e escolástica, que via a mulher como um ser decadente dado o pecado original. Na vida cotidiana das comunidades o cenário não era diferente a mulher aparecia como uma pessoa com desvios comportamentais, vingativa, luxuriosa, debochada, mentirosa, enfim, não tinham uma boa reputação. 60 55 DELUMEAU, 2009, p. 578. 56 MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 63. 57 SOUZA, L., 2009, p 373. 58 A feiticeira de Michelet não é lida como criminosa, mas como benfeitora e vítima. Porém, o historiador ainda permanece na lógica da denúncia, ou seja, de que há um vínculo entre mulher e poderes ocultos, situados no sonambulismo e na vidência. 59 CLARK, Stuart. Pensando com demônios. São Paulo: Edusp, 2006, p. 170-173. 60 DELUMEAU, op.cit., p. 545. 32 Além disso, a confecção de filtros, poções, unguentos, entre outros elementos que facilitassem as relações amorosas levou as autoridades eclesiásticas e judiciais a sexualizar o delito de feitiçaria e a enxergar as mulheres como prostitutas. 61 Segundo António Manuel Hespanha, o argumento lembrado pelos moralistas e juristas para explicar a luxúria das mulheres residia na curiosidade aliada à astúcia (características que não são só femininas); e no cultivo de saberes ocultos e proibidos (característica que só aparecia nas mulheres), como ocorria na questão da feitiçaria.62 A feminilidade da feitiçaria se relaciona com o reforço das oposições binárias e com a construção de um ideal de mulher: Em nível demonológico, portanto, as bruxas eram mulheres porque o sistema representacional que regia exigia, para sua coerência, uma correlação geral entre oposições primárias como bem/mal, ordem/desordem, alma/corpo e masculino/feminino, eram mulheres que pelo comportamento inspirado pelo mestre da inversão, o Diabo, invertiam os atributos polarizados atribuídos aos gêneros. 63 Com a contrarreforma católica, que deu prevalência a observância dos dez mandamentos e promoveu a figura do Diabo para fortalecer o poder da própria Igreja, houve a diabolização da mulher, pois além de serem perseguidas por praticarem os sete pecados capitais também passaram a ser por cultuarem o Diabo, fato que transgredia o primeiro dos Dez Mandamentos: “amar a Deus acima de todas as coisas”.64 Assim, a feitiçaria recaia sobre a mulher em virtude de sua condição mulher – “natural” e aprioristicamente inferior (física e moralmente) – mas também em razão de seu pacto e culto ao Diabo. O remédio contra a manifestação desses “defeitos” 61 SOUZA, L., 2009, p. 302. 62 HESPANHA, 2010, p. 115. Arno Wehling recorda que a mulher possuía uma situação diferenciada e paradoxalmente privilegiada no foro em situações previstas nas legislações, conforme mencionado numa obra intitulada Privilégios e prerrogativas que o gênero feminino tem por direito comum e Ordenações do Reino, mais que o gênero masculino, de 1577 e reeditada no século XVIII (1785), cujo autor era professor de Coimbra, Rui Gonçalves. Nesta obra estão arroladas 106 prerrogativas, entre normas de direito material e processual que beneficiavam as mulheres (WEHLING; WEHLING, 2004, p. 573). 63 CLARK, 2006, p. 187. 64 A obra referência da mentalidade clerical opressora a mulher, é atribuída ao franciscano Alvaro Pelayo, escrita no século XIV e reeditada até o século XVI. Tal obra, tem sua importância por ter influenciado o Malleus Maleficarum, manual de inquisidor que insistiu de forma obstinada em relacionar a feitiçaria com a condição de ser mulher, vista de modo diabolizado e sexualizado, justificando a “caça às bruxas”. Toda a obra mostra a mulher como filha de Satã a qual é comprovada por meio de textos bíblicos citados pelo autor, o que legitima juridicamente seu discurso perante seus pares e autoridades. Tal discurso, ainda, segundo Jean Delumeau, revestiu-se de uma certa “universalidade” (DELUMEAU, 2009, p. 476, 481-485 e 487). 33 femininos era a vigilância constante sobre seus costumes e o confinamento no mundo doméstico, por isso o Concílio de Trento reforçou as regras do patriarcado. 65 No entanto, não se pode perder de vista que, em outras regiões da Europa, homens foram mais perseguidos, mas não necessariamente mais sancionados que elas.66 A contribuição específica que se pretende fazer com esta tese é agregar a tal leitura geral as contribuições da história do direito, analisando o modelo da justiça criminal, que mitiga a função repressora do direito criminal e processual criminal das instituições bem como a efetiva concretização das centralizações estatais na época moderna. 67 O declínio do fenômeno, na maior parte da Europa, deu-se gradualmente no curso do século XVII e XVIII. A mudança no clima religioso; a difusão da filosofia mecanicista68; as ideias humanistas, o discurso médico cético69; um desencantamento do mundo; um melhoramento nas condições econômicas e sociais da população europeia, contribuíram para o fim da perseguição. Além desses fatores, o pensamento e a prática jurídica dos tribunais também são apontados como determinantes, pois houve relutância de magistrados em
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