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Responsável Técnico: Lorena de Fátima Vidal (CRB: 410/11-AM) Biblioteca CEUNI-FAMETRO FAMETRO Av. Djalma Batista, Nossa Sra. das Gracas. Manaus, AM L372s Lima, Nata Souza. Sociologia e antropologia. / Nata Souza Lima. -- Manaus: CEUNI- FAMETRO, 2021. 178 p. ISBN: 978-85-64293-06-9 1. Sociedade 2. Cultura 3. Diversidade cultural 4. Fato social I. Título. CDU.:572 Ficha catalogada na Biblioteca CEUNI-Fametro Todos os direitos reservados © FAMETRO IME Instituto Metropolitano de Ensino Ltda Wellington Lins de Albuquerque | Presidente - IME Maria do Carmo Seffair Lins de Albuquerque | Reitora Cinara da Silva Cardoso | Pro-Reitora Iyad Amado Hajoj | Diretor de EaD e Expansão Leonardo Florêncio da Silva | Diretor Editorial e Gestor de EaD Luciana Braga | Projeto Gráfico e Direção de Arte Amenayde Cristine Corrêa | Assistente Editorial Ana Augusta de Oliveira Simas | Supervisora de Produção e Revisora Liene Costa | Revisora Flávia Bahia Lacerda | Revisora Técnica Imagens | depositphotos.com "Nos termos da Lei n.º 9.610/98, o autor desta obra é titular de todo o complexo de direitos autorais sobre a presente criação. 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A Fametro, ao longo das últimas duas décadas, vem se consolidando como a melhor instituição de ensino do Norte, um espaço democrático e docentes com variadas visões de mundo. Somos uma instituição de ensino plural que avança a cada ano em busca sempre de desenvolver a economia da Amazônia. Nossa estrutura é moderna, estamos em diversos municípios levando uma educação inclusiva e de qualidade. Conheça o Centro Universitário Fametro e viva a experiência em estudar numa instituição com o corpo docente com mestres e doutores e de qualidade de ensino comprovada pelo MEC. Maria do Carmo Seffair Reitora Pa la vr a da R ei to ra “É a educação que faz o futuro parecer um lugar de esperança e transformação”. (Marianna Moreno) UNIDADE I Debates fundamentais em Sociologia A noção de "ciência social" Sociologia e método sociológico Industrialização e mudança social Individualismo e estigma Modernidade e globalização Su m ár io 13 13 16 22 31 38 UNIDADE II Debates fundamentais em Antropologia Evolucionismo social Natureza e cultura Etnocentrismo e Alteridade Trabalho de campo e Etnografia Populações tradicionais e vozes ameríndias UNIDADE III Problemas sociais do Brasil Formação nacional Questões étnico-raciais no Brasil Conflitos agrários e as lutas pela terra Cidades e violência urbana A Amazônia no debate social 53 53 59 65 68 74 85 85 91 99 105 110 UNIDADE IV Desigualdades sociais e direitos humanos Direitos humanos e justiça Gênero: desigualdades e violências Migração e fronteiras Poder e subalternidades Estado e intervenção social Referências Caderno de exercícios 121 121 125 136 142 146 152 159 U ni da de 1 Videoaula 1 Videoaula 2 13 DEBATES FUNDAMENTAIS EM SOCIOLOGIA A NOÇÃO DE “CIÊNCIA SOCIAL” As ciências sociais são um campo do conhecimento moderno que compreende três disciplinas principais: Sociologia, Antropolo- gia e Ciência Política. Esses três sa- beres propõem olhares diferentes sobre a vida social humana. Embora estas áreas do conhecimento sejam muito próximas entre si, não são to- talmente iguais. A Sociologia busca estudar as relações do indivíduo na sociedade, a estrutura e dinamici- dade das sociedades modernas, fa- 14 Anotações: zendo uma análise no percurso histórico e as suas transformações ao longo do tempo. A antropologia analisa a distinção das culturas humanas, a diversi- dade dos grupos sociais ou étnicos e as mudanças que ocorrem, devido à interação entre os grupos. Ao passo que a Ciência Política estuda a siste- matização do poder do estado, as instituições e o processo político partidário de um país, as políticas públicas em todas as suas etapas, ou seja, na elabo- ração, implantação e avaliação do resultado de sua aplicação. Neste livro, nosso enfoque será sobre Sociologia e Antropologia, duas áreas das Ciências Sociais, que têm origens aproximadas, mas formas distintas de observar e refletir sobre as relações sociais. Numa percepção clássica, a Sociologia se constrói a partir de três principais teóricos, que produzem visões diferentes sobre a sociedade e as transformações modernas. Primeiramente, veremos a consolidação da Sociologia como uma Ciência moderna, a partir de Émile Durkheim, na França. Em seguida, estudaremos outros dois teóricos fundadores de problemas sociológicos modernos, mas que não estiveram intrinsecamente ligados à formação da Sociologia como um campo disciplinar, mas cada um adotando compromissos diferentes em relação à ciência e à compreensão das transformações da modernidade. São eles: Karl Marx e Max Weber, ambos alemães. 15 Anotações: A formação da Sociologia como Ciência O Iluminismo foi um movimento filosófico do século XVIII, que propôs a separação radical entre igreja e ciência. Esse foi o marco da ciência moderna, onde autores como Renè Descartes, Jonh Locke, Rousseau, Voltaire, entre outros, elaboraram ensaios sobre as leis, as formas de desigualdade, as relações de poder e, sobretudo, a necessidade do método como meio pelo qual se conhece a realidade. A partir desse movimento intelectual, consolida-se a modernidade, baseada na técnica, no método e na comprovação científica. Desse processo, as ciências exatas e da natureza consolidam métodos e regras para a investigação científica, apreensão e acúmulo do conhecimento. O método científico proporciona maior veracidade e controle de uma determinada experiência. Além disso, assegura o acúmulo de conhecimento, uma nova descoberta, devidamente testada e aprovada pelos cientistas que compõem um campo disciplinar, não precisa ser testada do zero. Outras teorias e experimentações podem ser realizadas a partir dos conhecimentos já adquiridos cientificamente. No final do século XIX, havia uma lacuna em torno da produção de conhecimentos sobre a humanidade e as sociedades, que até ali era feita pela Filosofia ou pela Teologia, a primeira com mais ênfase nas questões do espírito humano, a segunda, com ênfase na crença e na fé. Nas duas, a produção do conhecimento não passava por métodos científicos, nem por processos de testagem e comprovação. 16 Anotações: Movidos por essas questões, dois autores do final do século XIX buscaram consolidar abordagens científicas sobre a vida social. O primeiro foi Gabriel Tarde, que propôs a literatura (por meio da interpretação literária) como meio para a análise social. Essa ideia não repercutiu com a mesma proporção que a proposta de Auguste Comte, que inaugurou a noção de “física social”, uma ciência que seria capaz de analisar a sociedade, a partir do método científico já consolidado nas ciências “duras” (exatas e da natureza, principalmente). Comte teve grande influência na educação francesa, sendo primeiramente um crítico do elitismo em torno do acesso ao conhecimento,o que o levou a ser apoiado por diversos intelectuais da época. Foi mentor de Émile Durkheim, quem o ajudou a formular as primeiras ideias em torno da “física social’’. Ocorre que Comte, antes de finalizar suas formulações em torno da nova ciência, fora acometido de “colapsos nervosos”, o que abalou seu trabalho e, sobretudo, sua criatividade. Assim, foi Émile Durkheim, aluno de Auguste Comte, quem seguiu com a tarefa de construir a primeira ciência social, a qual chamou de “Sociologia”. SOCIOLOGIA E MÉTODO SOCIOLÓGICO Émile Durkheim foi fundamental para a criação formal da Sociologia no espaço acadêmico francês, tendo sido o primeiro a ocupar uma cadeira universitária com esse nome (em Bordéus, 1887) e fundou, em 1896, o L’Année sociologique (anuário sociológico), que se tornou a principal revista de Sociologia da França, divulgando o pensamento da 17 Anotações:“escola” durkheimiana, que teve muitos discípulos, entre eles, seu sobrinho Marcel Mauss (fundamental para os estudos em Etnologia, como veremos posteriormente). Figura 1 - Émile Durkheim Fonte: Domínio público. Esse processo envolveu a defesa da existên- cia de um objeto propriamente sociológico, o “fato social”, distinto do objeto de outras áreas do conhe- cimento, como a Biologia, a Filosofia, a Psicologia, o Direito, a Economia, etc. Esse objeto demandaria a codificação de um método específico para tratá- lo e de uma ciência distinta e autônoma — a Sociolo- gia — para descobrir as leis de seu funcionamento. Em “As regras do método sociológico”, Durkheim defende que os fatos sociais existem “acima” das consciências individuais, sendo-lhes exteriores e as antecedendo. Essa definição sobre 18 Anotações: os fatos sociais, implica na construção do conceito de “sociedade”, na sociologia durkheimiana, para a qual a “sociedade” existe acima (sobrepondo) dos indivíduos. Para Durkheim, “sociedade” não significa meramente uma coletividade de sujeitos, mas uma “consciência pública ou coletiva que exerce um poder de coerção ou se impõe, de maneira mais ou menos perceptível, aos indivíduos” (CASTRO, 2014). O método sociológico seguirá, portanto, algumas premissas importantes, distinguindo- se de outras ciências, da Filosofia e da Religião. Durkheim afirma que o fato de ter nascido a partir das doutrinas filosóficas consideradas relevantes, a Sociologia não alterou o hábito de se apoiar em qualquer sistema no qual se sinta solidário, a exemplo de ser positivista, evolucionista, espiritualista, ao invés de cultivar simplesmente a Sociologia (idem). Quanto às ideologias, a Sociologia de Durkheim não deve “tomar partido” entre as grandes hipóteses que dividem os metafísicos. Tampouco lhe cabe defender a liberdade ou o determinismo. Nesse aspecto, distingue-se muito das teorias socialistas que ganharam força na Europa no final do século XIX, principalmente com a publicação das obras de Karl Marx. A Sociologia, segundo o princípio da tradução francesa, deve limitar-se a que o “princípio de causalidade seja aplicado aos fenômenos sociais’’. Isso significa tratar os fenômenos sociais como dotados de “causas” que também produzem “efeitos” próprios. Além disso, esse princípio é estabelecido por ela não como uma necessidade racional, mas tão somente como um postulado empírico, produto de legítima indução. 19 Anotações:Durkheim (apud CASTRO, 2014, p. 38) reafirma: A sociologia assim entendida não será individualista, nem comunista, nem socialista, no sentido vulgarmente atribuído a essas palavras. Por princípio, irá ignorar essas teorias, nas quais não poderia reconhecer valor científico, uma vez que elas tendem claramente não a exprimir os fatos, e sim a reformá-los. Se ela se interessa por eles, é tão somente na medida em que vê neles fatos sociais capazes de ajudar a compreender a realidade social por manifestarem as necessidades que operam a sociedade. A ênfase na ausência de um viés ideológico à Sociologia, proposta por Durkheim, estava atrelada principalmente ao seu esforço de objetividade, cru- cial para sua consolidação como Ciência. Para tanto, o autor defendia que os fatos sociais (como objetos sociológicos) deveriam ser tratados como coisas. Nesse processo de construção da objetividade, o sociólogo deveria abrir mão das “pré-noções” e ob- servar os fatos como eles são, buscando examinar suas características mais objetivas. 20 O suicídio (1897) O livro de Émile Durkheim, publicado pela primeira vez em 1897, marcou a Sociologia por ter sido a primeira obra a se debruçar sobre um problema social (fato social), a crescente onda de suicídios na França, a partir de dados estatísticos e empíricos. As explicações sobre o Suicídio, na época, tratavam esse fenômeno como um problema de ordem individual. Analisando taxas de mortes autoprovo- cadas, a partir de regiões, concentração em períodos, Durkheim pôde argumen- tar que o suicídio não era um fenômeno isolado a cada caso, mas tinha influên- cias coletivas e sociais. Essas unidades de motivação agrupariam os casos de suicídio, demonstrando que havia uma dimensão coletiva a ser con- siderada. Comparando diferentes ex- pressões de suicídio (ou morte au- toprovocada), Durkheim estabele- ceu três principais motivações geradoras dessas mortes. A primeira, chamou de egoísta, a qual as altas taxas estavam associa- das à diminuição da integração social. Pessoas com maior isolamento de gru- pos onde houvesse sensação de per- tencimento, eram as que estavam en- quadradas nesssa categoria. Durkheim salienta, por exemplo, que o individu- 21 Anotações:alismo se expressava também na desagregação das comunidades religiosas, nas quais os protestan- tes prezavam mais pela individualidade, enquanto católicos costuravam suas relações de forma mais comunitária. A segunda, a altruísta era caracterizada pelas mortes auto cometidas em nome de um grupo ou causa. Nesta, ao contrário da primeira motivação, o sujeito estaria tão imerso pelo pertencimento e pelas crenças de um grupo (religiosas, políticas, ideológicas, culturais), que sua morte ocorre como um serviço final, ou uma defesa, do conjunto de crenças que o grupo representa. A terceira, chamada de anômica, categoriza situações em que um indivíduo está se sentindo sem direção social. Diferente da primeira, em que o suicídio se baseia na ausência e diminuição da integração social, na anômica, a morte está relacionada aos eventos de ruptura da crença no grupo social. Está relacionado aos momentos de crise social profunda, como grandes crises econômicas, guerras e situações pós-traumáticas. 22 A noção de “fato social” A noção de “fato social” é fundamental para a construção da perspectiva francesa da Sociologia. Durkheim afirma que, “embora consideremos os fatos sociais como coisas, é como coisas sociais.” Assim, o valor dos fatos sociais é seu aspecto sociológico. O suicídio, a devoção religiosa, por exemplo, são fatos sociais com explicações sociológicas, dotados de complexidade que vinham sendo reduzidas por explicações psíquicas, orgânicas, de fé, ou seja, descaracterizados de dados objetivos sobre eles mesmos. O esforço da Sociologia durkheimiana foi o de tratar desses fatos sociais, sem descaracterizá-los. INDUSTRIALIZAÇÃO E MUDANÇA SOCIAL O surgimento da Sociologia, além do contexto acadêmico de sua criação na França, está relacionado à preocupação em torno da vida moderna. E o marco inicial da Modernidade como conhecemos, é a industrialização. A primeira revolução industrial ocorreu na Inglaterra, com o surgimento da máquina a vapor. Esse processo deu início às transformações nas relações com a propriedade e o trabalho. A demanda por mão de obra, o avanço das grandes propriedades — principalmente para plantação de algodão, motivada pelo crescimento da indústria têxtil — geraram um grande êxodo rural e vários problemas urbanos. Rapidamente, a indústria dominou a economia europeia,provocando muitos problemas sociais, como a superlotação das cidades, o trabalho precário, a fome, entre outros. Para maior aprofundamento de como o método de investigação sociológica de Durkheim se aplicava aos fatos sociais, ler “O Suicídio”, a primeira investigação sociológica publicada sobre um fenômeno social. Sugiro também a leitura de “As estruturas elementares da vida religiosa”. 23 Anotações:Figura 2 - Karl Marx Fonte: Domínio público. A obra de Karl Marx, apoiada por seu amigo Friedrich Engels, dialoga com esse contexto social. Ambos não são definidos como sociólogos, mas as ideias de Marx, que passam pela Filosofia, História, Direito e Economia, são de grande interesse sociológico e exercem muita influência nas Ciências Sociais. Suas obras de maior destaque são (1) “O Manifesto do Partido Comunista”, livro de caráter mais panfletário, mas extremamente mobiliza- dor e inquietante, que apresenta um resumo das suas teorias em torno da exploração do proletaria- do pela burguesia, da luta de classes sociais, da necessidade de união dos trabalhadores do mun- do contra as apropriações e acúmulos do Capi- tal industrial; e (2) “O Capital”, obra que contém 3 volumes principais, além de outras publicações 24 Anotações: após a morte de Marx, onde o autor apresenta sua teoria econômica sobre a lógica do Capital, seu processo de produção, circulação e o sistema de Mais-Valia. Aqui falaremos sobre “A ideologia Alemã”, publicado originalmente em 1932, quando Marx desenvolveu, em parceria com Engels, as princi- pais noções sobre o “materialismo histórico”. O ar- gumento de “A Ideologia Alemã” segue como uma resposta aos filósofos alemães seguidores de He- gel, cujas teorias partiam do pressuposto de que o mundo das ideias antecede à realidade material (nunca alcançada). Marx e Engels argumentam que a história é material, existe no mundo real e são as condições histórico-materiais que dão suporte às relações de poder. Essa concepção materialista da história hu- mana permitiria compreender como as relações dos indivíduos entre si e suas formas de proprie- dade se alterariam, à medida que fossem se desen- volvendo forças produtivas novas e mais podero- sas. Para Marx, o cerne das relações sociais são as formas de como os homens produzem seus meios de existência, transformando inclusive a natureza. Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de vista, ou seja, enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. Ao contrário, ele representa, já, um modo determinado da atividade desses indivíduos, uma maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A maneira como os indivíduos manifestam sua vida 25 Anotações:reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção (MARX apud CASTRO, 2014, p. 12). Esse debate é fundamental para as propostas de Marx em torno da construção de sua própria obra. Ao contrário dos filósofos até ali, Marx não tinha interesse em produzir reflexões distantes da realidade (material). Seu esforço era de compreender como a sociedade moderna produziu as condições da desigualdade, e como as massas, o proletariado (trabalhadores), em condições de subalternidade, poderiam produzir condições materiais para o Comunismo. Ao contrário de outros autores do panteão sociológico que se limitaram à compreensão da realidade social, a obra de Marx e Engels, tem um comprometimento com a mudança social, tendo o trabalho e a economia como as principais chaves conceituais de análise. De certa forma, pode-se dizer que todos os grandes paradigmas da Socio- logia foram inquietados por questões da sua época, alguns com limites institucionais, outros nem tan- to. Marx talvez tenha sido o mais inadequado para as instituições acadêmicas. Já seu conterrâneo, Max Weber, foi um exímio acadêmico, apesar de não gostar da docência. 26 Anotações: Figura 3 - Max Weber Fonte: Domínio público. Weber teve seus primeiros trabalhos publi- cados, cerca de vinte anos após a morte de Marx, interessava-se a respeito de como a modernidade transformou-se em grandes instituições sociais, como a Igreja e o Estado. Suas análises também têm grande influência nos campos de Economia, Política e Direito, sobretudo por conta das estru- turas de organização burocráticas e do poder. Porém, Weber construiu um trabalho dito “soci- ológico” e, semelhante a Durkheim, preocupou-se com a consolidação da disciplina, com o método sociológico, com os interesses de investigação da Sociologia. Sua proposta para a constituição dos problemas sociológicos e apreensão das reali- dades sociais se constituirá tomando como base as conexões conceituais entre os problemas. Para isso, Weber se debruçou sobre a abrangência do que chamamos “social”, argu- 27 Anotações:mentando que o termo nos levaria a um sentido muito generalizado da realidade, tornando por vezes, indeterminado: “se é encarado no seu sig- nificado geral, não oferece qualquer ponto de vis- ta específico a partir do qual se possa iluminar a importância de determinados elementos cul- turais” (WEBER apud CASTRO, 2014, p. 62). Contu- do, a proposta de Weber para a construção de uma análise sociológica, que apreenda as complexi- dades da realidade social de forma abrangente (sem desconexão com o social e o real), é a elabo- ração de “tipos ideais”. O “tipo ideal” é uma consolidação de padrões sociais em um conceito emblemático. Lançando mão da construção de “tipos ideais” sobre as instituições, Weber consegue apontar elementos constituintes da sociedade, dos fenômenos históricos e das organizações. A sua relação com os fatos empirica- mente dados consiste apenas em que, onde quer que se comprove, ou sus- peite de que determinadas relações — do tipo das representadas de modo abstrato naquela construção, a saber, as dos acontecimentos dependentes do “mercado” — chegaram a atuar em algum grau sobre a realidade, podemos representar e tornar compreensível pragmaticamente a natureza par- ticular dessas relações mediante um tipo ideal. Esta possibilidade pode ser valiosa, e mesmo indispensável, tanto para a investigação como para a ex- posição (WEBER apud CASTRO, 2014, p. 63). 28 Anotações: Nessa elaboração sobre o método e a construção dos objetos da Sociologia, Weber não deixa de criticar Durkheim por conta do debate sobre “distanciamento” e “neutralidade” em torno dos fatos sociais. Para Weber, nossa interpretação da realidade social não poderia ser feita sem “pressuposições”, mas seria de antemão elaborada a partir de alguns significados atribuídos sobre as coisas sociais. Além disso, em sua teoria, os tipos ideais são o caminho para a análise social, e não o seu fim. Constituí-los é, portanto, criar as ferramentas da análise sociológica. A construção de tipologias mais importante dentre as obras de Weber se dá em torno do conceito de poder e dominação, que são os meios pelos quais um sujeito ou organização conseguem a submissão ou obediência a partir de certos comandos. Pode depender diretamente de uma situação de interesses, ou seja, de considerações utilitárias de van- tagens e inconvenientes por parte daquele que obedece. Pode também depender de mero “costume”, do hábito obtuso de um comportamen- to inveterado. Ou pode fundar-se, finalmente, no puro afeto, na mera inclinação pessoal do dominado. Não obstante, a dominação que repou- sasse apenas nesses fundamentos seria relativamente instável. Nas relações entre dominantes e domi- nados, por outro lado, a dominação costuma apoiar-se internamente em bases jurídicas, nas quais se funda a 29 Anotações:“legitimidade”, e o abalo dessa cren- ça na legitimidade costuma acarretar consequências de grande alcance. Em forma totalmentepura, as “bases de legitimidade” da dominação são somente três, cada uma das quais se acha entrelaçada – no tipo puro – com uma estrutura sociológica fundamen- talmente diversa do quadro e dos meios administrativos (WEBER apud CASTRO, 2014, p. 65). Os tipos de Dominação elencados por Max Weber: 1. Dominação legal em virtude do estatuto. Seu tipo mais puro é a dominação burocrática. Sua ideia básica é: qualquer direito pode ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto à forma. A associação dominante é eleita ou nomeada, e ela própria e todas as suas partes são empresas. O quadro administrativo consiste em funcionários nomeados pelo senhor, e os subordinados são membros da associação (“cidadãos”, “camaradas”). Obedece-se não à pessoa, em virtude de seu próprio direito, mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer. Também quem ordena obedece, ao emitir uma ordem, a uma regra: à “lei” ou “regulamento” de uma norma formalmente abstrata. O tipo daquele que ordena é o “superior”, cujo direito de mando está legitimado por uma regra estatuída, no âmbito de uma competência concreta, em que a delimitação e especialização têm como base a utilidade objetiva e nas exigências profissionais 30 Anotações: estipuladas para a atividade do funcionário. O tipo do funcionário é aquele de formação profissional, pois as condições de serviço baseiam-se num contrato, com pagamento fixo, graduado segundo a hierarquia do cargo e não do volume de trabalho, e direito de ascensão conforme regras fixas. Sua administração é trabalho profissional em virtude do dever objetivo do cargo. Corresponde naturalmente ao tipo de dominação “legal” não apenas à estrutura moderna do estado e do município, mas também a relação do domínio numa empresa capitalista privada, numa associação com fins utilitários ou numa união de qualquer outra natureza que disponha de um quadro administrativo numeroso e hierarquicamente articulado. 2. Dominação tradicional em virtude da crença na santidade das ordenações e dos poderes senhoriais existentes. Seu tipo mais puro é o da dominação patriarcal. A associação dominante é de caráter comunitário. O tipo daquele que ordena é o “senhor”, e os que obedecem são “súditos”, enquanto o quadro administrativo é formado por “servidores”. Obedece-se à pessoa em virtude de sua dignidade própria, santificada pela tradição: por fidelidade. O conteúdo das ordens está fixado pela tradição, cuja violação desconsiderada por parte do senhor colocaria em perigo a legitimidade do seu próprio domínio, que repousa, exclusivamente, na santidade delas. No quadro administrativo, as coisas ocorrem exatamente da mesma forma. Ele consta de dependentes pessoais do senhor (familiares ou funcionários domésticos) ou de parentes, ou de amigos pessoais (favoritos), ou de pessoas que 31 Anotações:lhe estejam ligadas por um vínculo de fidelidade (vassalos, príncipes tributários). Falta aqui o conceito burocrático de “competência” como esfera de jurisdição objetivamente delimitada. 3. Dominação carismática em virtude de devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes por graça (carisma) e, particularmente faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória. O sempre novo, o extracotidiano, o inaudito e o arrebatamento emotivo que provocam e constituem aqui a força de devoção pessoal. Seus tipos mais puros são a dominação do profeta, do herói guerreiro e do grande demagogo. A associação dominante é de caráter comunitário, na comunidade ou no séquito. O tipo que manda é o líder. O tipo que obedece é o “apóstolo”. INDIVIDUALISMO E ESTIGMA Se para os três grandes paradigmas da Socio- logia, o foco de análise se deu sobre temas de grande abrangência, outros autores importantes para esta Ciência optaram por objetos de análise mais “mar- ginais”. Provavelmente, um dos primeiros desses sociólogos foi Georg Simmel, contemporâneo de Max Weber, que se interessou por desdobramentos da modernidade no comportamento individual e na psique. Podemos dizer que o conjunto de autores a seguir, estabelecem relações entre dilemas sociais coletivos e aspectos individuais ou o que conhece- mos atualmente como “subjetividade”. Um dos trabalhos mais célebres de Simmel é “A Metrópole e a Vida Mental”, onde desenvolve uma análise sobre como o novo ritmo urbano afetou 32 Anotações: a relação das pessoas com o tempo e com as implicações em torno dos laços de solidariedade. Simmel viveu no tempo dos primeiros relógios de bolso, do controle mais aguçado do tempo, do surgimento dos automóveis e do ritmo das máquinas de fábrica na vida social. Os problemas mais graves da vida moderna derivam da reivindicação que faz o indivíduo de preservar a autonomia e individualidade de sua existência em face das esmagado- ras forças sociais, da herança, da história, da cultura externa e da técni- ca de vida. (...) O século XVIII concla- mou o homem a que se libertasse de todas as dependências históricas quanto ao Estado e a religião, a moral e a economia. Juntamente com maior liberdade, o século XVIII exigiu a espe- cialização funcional do homem e seu trabalho; essa especialização torna um indivíduo incomparável a outro e cada um deles é indispensável na medida mais alta possível. Entretan- to, esta mesma especialização tor- na cada homem proporcionalmente mais dependente de forma direta das atividades suplementares de to- dos os outros. Nietzsche vê o pleno desenvolvimento do indivíduo condi- cionado pela mais impiedosa luta de indivíduos; o socialismo acredita na supressão de toda competição pela mesma razão. Seja como for, em to- das estas posições, a mesma mo- 33 Anotações:tivação está agindo: a pessoa resiste a ser nivelada e uniformizada por um mecanismo sociotecnológico (SIMMEL apud CASTRO, 2014, p.11). Para caracterizar esse tempo das transformações radicais que a modernidade impôs sobre os sujeitos, Simmel elaborou a noção de “sentimento blasé”, uma forma de “não reação” a novidades, problemas graves, violações, por exemplo, que seriam “resultado dos estímulos contrastantes que a vida moderna impõe aos nervos”: Uma vida em perseguição desregrada ao prazer torna uma pessoa blasé porque agita os nervos até seu ponto de mais forte reatividade por um tempo tão longo que eles finalmente cessam completamente de reagir. Da mesma forma, através da rapidez e contraditoriedade de suas mudanças, impressões menos ofensivas forçam reações tão violentas, estirando os nervos tão brutalmente em uma e outra direção, que suas últimas reservas são gastas; e, se a pessoa permanece no mesmo meio, eles não dispõem de tempo para recuperar a força. Surge assim a incapacidade de reagir a novas sensações com a energia apropriada. Isto constitui aquela atitude blasé que, na verdade, toda criança metropolitana demonstra quando comparada com crianças de meios mais tranquilos e 34 Anotações: menos sujeitos a mudanças (SIMMEL, 1973 apud CASTRO, 2014, p. 16). Outra influência geradora da “atitude blasé” para Simmel, seriam as relações com o dinheiro, que acirra a distinção social, estabelecendo valores em torno de quem tem mais. A essência da atitude blasé con- siste no embotamento do poder de discriminar. Isto não significa que os objetos não sejam percebidos, como é o caso dos débeis mentais, mas antes que o significado e va- lores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas, são experimentados como destituídos de substância. Elas aparecem à pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco; obje- to algum merece preferência sobre outro. Esse estado de ânimo é um fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada. Sendo o equivalente a todas as múl- tiplas coisas de uma mesma forma, o dinheiro torna-se o mais assustador dos niveladores (ibid, p.16). Se para Simmel, as transformaçõesda vida moderna impactaram, significativamente, na po- tencialização do individualismo, da distinção e do desprezo, para Erving Goffman um processo con- tínuo da vida social, aprofundado em outros es- paços do cotidiano — inclusive das interações face a face, da individualidade — foi a segregação de certos grupos e sujeitos a partir de estigmas soci- 35 Anotações:ais. Goffman é um dos primeiros autores modernos a refletir sobre a noção de “Estigma” como resul- tado de certas regras de convívio, que corroboram em atitudes preconceituosas e discriminatórias contra grupos e pessoas. Apesar de ser usado como um termo sobre a depreciação, o conceito de Estigma vai além disso. É uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso. Por exemplo, alguns cargos nos Estados Unidos obrigam seus ocupantes que não tenham a educação universitária esperada a esconder isso; outros cargos, entre- tanto, podem levar os que os ocupam e que possuem uma educação superi- or a manter isso em segredo para não serem considerados fracassados ou estranhos (GOFFMAN apud CASTRO, 2012, p.13). Goffman argumenta ainda, que se pode elencar o Estigma em pelo menos três tipos: 1. As deformidades físicas, tidas como abominações do corpo (considerando que Goffman escreveu sobre essas formas de estigma na metade do século XX, devemos ponderar que há uma série de políticas sociais em torno da diferença de corpos, contudo, alguns estigmas ainda persistem, porém, passíveis de punição por lei). 36 Anotações: 2. As culpas de caráter individual percebidas socialmente como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas in- feridas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualidade, de- semprego, tentativas de suicídio e com- portamento político radical. 3. Estigmas raciais, de nação e religião, que geralmente são repassados para uma família inteira. As atitudes de pessoas tidas como normais para com uma pessoa com um estigma, e os atos que empreendido em relação a ela são bem conhecidas na medida em que são as respostas que a ação social benevolente tenta suavizar e melhorar. Contudo, as pessoas debaixo de algum estigma social são percebidas numa posição de inferioridade (menos humanos). Dessa forma de tratamento consolidada socialmente, surgem diversos preconceitos que funcionam como uma ideologia para explicar a suposta inferioridade, indicando que ela representa algum perigo. Numa análise sociológica que se aproxima dos interesses de Goffman, sobre os estigmas sociais, Howard Becker coloca sua ênfase no estudo de grupos considerados outsiders [marginais], refletindo sobre os impactos das regras sociais e suas quebras (violações). Becker argumenta que todos os grupos sociais têm regras de funcionamento interno, sejam as leis, conjuntos de normas jurídicas que norteiam uma sociedade, 37 Anotações:sejam as regras da tradição, que não são escritas e normatizadas como leis, mas tem força de imposição social e são transmitidas entre gerações. Muitas regras não são impostas, e, exceto no sentido mais formal, não constituem o tipo de regra em que estou interessado. Exemplos disso são as leis que proíbem certas atividades aos domingos, que permanecem nos códigos legais, embora não sejam impostas há cem anos. (É importante lembrar, contudo, que é possível reativar uma lei não imposta por várias razões e recuperar toda a sua força original...). Regras informais podem morrer de maneira semelhante por falta de imposição. Estou interessado sobretudo no que podemos chamar de regras operantes efetivas de grupos, aquelas mantidas vivas por meio de tentativas de imposição (BECKER apud CATRO, 2014, p. 103). As violações a essas regras sociais, geram grupos e sujeitos marginalizados. Porém, o grau em que uma pessoa é considerada marginalizada varia. Essa diferença é atravessada tanto pela forma do crime, quanto pelas proteções sociais em torno de quem os comete. Um exemplo, são os crimes de atropelamento cometidos contra ciclistas, por jovens filhos de grandes empresários com carros de luxo, que sequer sofrem alguma punição. Já crimes tidos como mais graves (ainda dependendo de quem o cometa), como assassinato ou estupro, 38 Anotações: nos levam a ver o transgressor como um verdadeiro marginal. Com essa análise sobre como reagimos às violações das regras sociais, e a partir disso, como estabelecemos quem é ou não um outsider (marginal), Becker pretende desenvolver uma sociologia do desvio, deixando de absorver unicamente as noções patologizantes do desvio como verdades absolutas, mas problematizando quais os pesos sociais, os valores morais, envolvidos na classificação do desvio e dos desviantes. Em sua concepção sociológica, afirma que “desvio é a falha em obedecer às regras do grupo’’. O desvio como a infração de alguma regra, geralmente, aceita. Se um ato é ou não desviante, depende de como outras pessoas reagem a ele. As violências domésticas podem ser um exemplo disso. No caso do Brasil, são absolutamente criminalizadas, mas ainda pouco denunciadas. Essas violências que ocorrem no ambiente doméstico podem se tornar queixas policiais, ou se manter como segredo de família e vizinhança, sem gerar sanções legais aos agressores. Portanto, o grau em que outras pessoas reagirão a um ato dado como desviante varia enormemente. “O grau em que um ato será tratado como desviante depende de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele” (idem, p. 108). MODERNIDADE E GLOBALIZAÇÃO Se a industrialização marcou uma nova fase de transformações sociais globais, a internacionalização da indústria, assim como o fim da Guerra Fria em 1989, marcara uma fase explicada por muitos au- 39 Anotações:tores como “globalização”, “mundialização” ou até mesmo “pós-modernidade”. Essa era das transfor- mações globais tem classificações ainda não total- mente consolidadas, pois diz respeito ao passado recente e ao presente. Contudo, alguns sociólogos trataram de debater essas mudanças. Para Giddens (1991), sociólogo britânico, o fim do século XX é de fato uma era de transição, marcada pelo consumo desenfreado e pela informação. Alguns dos debates sobre estas questões se concentram principal- mente sobre transformações insti- tucionais, particularmente as que sugerem que estamos nos deslocan- do de um sistema baseado na manu- fatura de bens materiais para outro relacionado mais centralmente com informação (GIDDENS, 1991, p.8). O autor, ao invés de classificar taxativamente essa era “pós-moderna”, prefere refletir sobre quais as transformações e consequências da modernidade (a do século XX). Um dos seus elementos de análise é a nossa relação com o tempo e o espaço. Todas as culturas pré-modernas pos- suíam maneiras de calcular o tempo. O calendário, por exemplo, foi uma característica tão distinta dos esta- dos agrários quanto à invenção da escrita. Mas o cálculo do tempo que constituía a base da vida cotidiana, certamente para a maioria da popu- lação, sempre vinculou tempo e lu- 40 Anotações: gar — e era geralmente impreciso e variável. Ninguém poderia dizer a hora do dia sem referência a outros marca- dores socioespaciais: “quando” era quase, universalmente, ou conectado a “onde” ou identificado por ocorrên- cias naturais regulares (idem, p.21). Essa vinculação entre tempo e lugar seria fundamental, na visão de Giddens, para pensar num dos pontos da transformação impulsionada pela invenção do relógio mecânico, que estabeleceu mais precisão em torno do tempo, possibilitando maior controle em torno das horas — pagas, gastas, etc. — desvinculando efetivamente o tempo do espaço. Não seria mais necessário usar algum ponto espacial como parâmetro de medidado tempo. As horas estavam sendo controladas universalmente, à disposição de todos, mesmo aqueles sem a autonomia de “olhar as horas” por si mesmos. O advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do tempo fomentando relações entre outros “ausentes”, localmente distantes de qualquer situação dada ou interação face a face. A separação entre o tempo e o espaço não deve ser vista como um desenvolvimento unilinear, no qual não há reversões ou que é todo abrangente. Pelo contrário, como todas as tendências de desenvolvimento, ela tem traços dialéticos provocando características opostas (GIDDENS, 1991, p.22). 41 Anotações:Por que a separação entre tempo e espaço é tão crucial para o extremo dinamismo da modernidade? Giddens (1991, p. 23) explica: 1. “Em primeiro lugar, ela é a condição princi- pal do processo de desencaixe que passo a analisar de maneira breve. A separação entre tempo e espaço e sua formação em dimensões padronizadas, “vazias”, pene- tram as conexões entre a atividade social e seus “encaixes” nas particularidades dos contextos de presença.” 2. “Em segundo lugar, ela proporciona os mecanismos de engrenagem para aquele traço distintivo da vida social moderna, a organização racionalizada. As organi- zações modernas são capazes de conec- tar o local e o global de formas que seriam impensáveis em sociedades mais tradi- cionais e, assim fazendo, afetam rotinei- ramente a vida de milhões de pessoas.” 3. “Em terceiro lugar, a historicidade radi- cal associada à modernidade depende de modos de “inserção” no tempo e no es- paço que não estavam disponíveis para as civilizações precedentes. Um sistema de datação padronizado, agora univer- salmente reconhecido, possibilita uma apropriação de um passado unitário, mas muito de tal “história” pode estar su- jeito a interpretações contrastantes. Em acréscimo, dado o mapeamento geral do globo que é hoje tomado como certo, o passado unitário é um passado mundial; 42 Anotações: tempo e espaço são recombinados para formar uma estrutura histórico-mundial genuína de ação e experiência.” Se Giddens estava interessado nas mudanças geradas pelo processo de globalização (a uni- formização de padrões globais, como da relação com o tempo), Zygmunt Bauman, sociólogo po- lonês, por sua vez, tem um olhar muito mais trági- co e pessimista sobre os tempos pós-modernos. Para Bauman, vivemos o tempo da “liquidez”, ter- mo que baseará grande parte de sua obra. A liqui- dez faz referência à fluidez/pressa/fragilidade das relações sociais, mediadas pela vida moderna e pelo consumo. A necessidade de consumir, nos le- varia a um nível de relações sociais efêmeras, se- melhante a obsolescência das coisas (capitalistas). Nosso mundo seria, portanto, marcado pelas incer- tezas em múltiplas dimensões. Nesse novo mundo “líquido”, a incerte- za passa a dominar a cena social, em várias dimensões: as organizações sociais (estruturas que limitam as es- colhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, pa- drões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dis- solvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reor- ganizadas, para que se estabeleçam (CASTRO, 2014, p. 128). 43 Anotações:A crise do Estado-Nação é a provável ruptura histórica e epistemológica nas ciências sociais. A partir do fim da dualidade, URSS e EUA (Comunismo e Capitalismo), que abriu as possibilidades para um processo de globalização, visto que as instituições internacionais, principalmente, as que lidam com dinheiro ou com o comércio, trataram de promover ou até exigir uma reformulação nas economias do globo, passando a controlá-las e dando início a um processo de mundialização do capital. São diver- sas, diferentes e insistentes as pressões externas e internas destinadas a provocar a reestruturação do Estado. A sujeição das economias (e políticas) nacio- nais, a uma ordem global, é justificada como forma de ideais capitalista ou socialista para que sejam incogitados diante de uma dinâmica capitalista que depende e se relaciona numa rede transna- cional, que pode ser administrada dos diversos lugares do globo, mas nunca internamente. Desta forma, a nação transforma-se em mera província do capitalismo mundial, sem soberania assegu- rada para construir suas políticas independente- mente dos órgãos financeiros internacionais ou das grandes multi e transnacionais. Para as multinacionais (isto é, empre- sas globais com interesses e compro- missos locais dispersos e cambiantes), “‘o mundo ideal’ é um mundo sem Es- tados. “A menos que tenha petróleo, quanto menor o Estado, mais fraco ele é, e menos dinheiro é necessário para se comprar um governo.” O que temos hoje é, com efeito, um sistema 44 Anotações: dual, o sistema oficial das “economias nacionais” dos Estados, e o real, mas não oficial, das unidades e instituições transnacionais. Ao contrário do Esta- do com seu território e poder, outros elementos da “nação” podem ser e são facilmente ultrapassados pela glo- balização da economia. Etnicidade e língua são dois exemplos óbvios. Sem o poder e a força coercitiva do Esta- do, sua relativa insignificância é clara. Como a globalização da economia procede aos saltos, “comprar gover- nos” é, certamente, cada vez menos necessário. A clara incapacidade dos governos de equilibrar as contas com os recursos que controlam (isto é, os recursos que eles podem estar certos de que continuarão no domínio de sua jurisdição independente do modo que escolham para equilibrar as contas) seria suficiente para fazê-los não só se renderem ao inevitável, mas tam- bém colaborarem ativamente e de bom grado com os “globais” (BAUMAN apud CASTRO, 2011, p. 200). Uma questão atual ocupou o etnólogo francês Bruno Latour: o debate sobre clima e negacionismo. As ideias defendidas pelo intelectual francês em “Onde Aterrar? — Como se orientar politicamente no Antropoceno,” é de que os acontecimentos políticos dos últimos 50 anos estão mobilizados em torno da discussão sobre o fenômeno das mudanças climáticas da Terra — e de sua negação. Segundo Latour (2020), a desregulamentação dos 45 Anotações:Estados após a queda do muro de Berlim, o aumento das desigualdades sociais em todo o planeta e a negação da existência de mudanças climáticas, são processos de uma mesma situação histórica em que as elites perceberam que não existe mais espaço para sua existência (e de seus hábitos, relações com o capital e o consumo) no mesmo tempo e nas mesmas condições que o restante dos habitantes do planeta. Se nos anos 90 havia um notório esforço das lideranças globais e redes de ativistas e organi- zações sociais em torno do debate ambientalista, vide a realização de grandes eventos sobre o Clima, como a ECO 92 no Rio de Janeiro, como respos- ta ao escasseamento de recursos naturais diante do avanço predatório das demandas capitalistas, houve também a compreensão de que o modo de vida industrial moderno, não era sustentável para a manutenção da vida, principalmente humana, no planeta. As elites optaram, então, por incentivar a negação do fim dos recursos naturais, do desgaste das condições climáticas, assim como construir comunidades muradas para si, entre outras es- tratégias de proteção como a exploração de novos planetas e viagens espaciais. Dessa forma, tam- bém incentivaram a negação da globalização, para assim apregoar a ideia de que não somos codepen- dentes e interligados por relações e decisões políti- co-econômicas. Para Latour, é possível identificar dois mar- cos temporais que evidenciam essa estratégia de negação à globalização. O primeiro é a saída dos EUA, por meio da decisão de Donald Trump, do acordo de Paris em 2017; o segundo é o Brexit, 46 Anotações: movimento de desvinculação da Inglaterra à União Europeia. O autor defende que o movimento ini- cial dasondas negacionistas globais, começa com a negação das mudanças climáticas. Seu ápice é o engajamento produzido pelo movimento políti- co de Trump, pautado pela questão ecológica, e pela negação da globalização. Fazer a “América grandiosa de novo [Make America Great Again]” no trumpismo, pressupõe o acirramento das relações de fronteira, a negação da escassez de recursos, o retorno ao modelo de crescimento americano dos anos 60/70. Se antes, as disputas ideológicas eram marcadas pelas diferenças entre os projetos de futuro, entre progressistas e reacionários, esquerda e direita, atualmente vivemos numa retração dessa disputa, que produz, de ambos os “lados”, um efeito de recolhimento desses movimentos ideológicos às suas próprias bolhas. As posições políticas, agora, baseiam-se principalmente na defesa de territórios ideológicos (e delimitação destes). Assim, para Latour (2020), o Antropoceno – era da intervenção humana na biosfera – impõe desafios em torno de habitar a Terra. Nesse novo processo político, capitaneado pelas alterações climáticas e sua negação, a Terra se torna um sujeito político, mobilizando os seres humanos a refletirem sobre suas ações no planeta, indicando através das catástrofes globais, do surgimento de novos vírus, que as consequências da ação humana serão vivenciadas comunitariamente, seja pelos que ficarão sem casa e terão de migrar de seus territórios de origem, seja pelos que serão afetados pelas alterações num território que “não é seu”. 47 Anotações:Por fim, o autor sustenta que a negação da mudança climática global é, em si mesma, a negação da racionalidade científica. As elites produziram e optaram por negar a evidente finitude de recursos naturais, criando e patrocinando uma atmosfera de negacionismo, principalmente em torno da ciência e de suas evidências, de modo que confundiu as classes populares em relação aos fatos, engajando milhares de fake news, que além de distorcerem as verdades, distraem as massas sobre os problemas que virão. Nas palavras do autor, “não se trata de uma política da ‘pós-verdade’, mas sim de uma política da pós-política, ou seja, literalmente sem objeto, na medida em que ela rejeita o mundo que reivindica habitar” (LATOUR, 2020, p. 35). 48 Filmes para conferir: O Jovem Karl Marx (Raoul Peck, 2018): retrato biográfico de Karl Marx que narra as vivências de sua juventude e o início de sua amizade com Engels, que o levaria a se tornar uma das personalidades mais importantes do século 19. Trabalho Interno (Charles Ferguson, 2010): documentário sobre a recessão econômica global, com início nos EUA, em 2008. Demonstra como bancos e acordos de falência amarrados com o Estado, levaram ao aumento de desemprego e pessoas desabrigadas. Para seguir: Tese Onze: canal no YouTube organizado por Sabrina Fernandes, socióloga, que debate temas contemporâneos à luz das teorias sociológicas. U ni da de 2 Videoaula 1 Videoaula 2 52 Anotações: 53 DEBATES FUNDAMENTAIS EM ANTROPOLOGIA EVOLUCIONISMO SOCIAL Diferente da Sociologia, cujos paradigmas circulam muito mais em torno da obra de autores emblemáti- cos, na Antropologia, os marcadores paradigmáticos serão construídos, principalmente, a partir de “escolas de pensamento”. Há uma miríade de perspectivas teóricas em Antropolo- gia, porém, a subdivisão mais clássica se dá pelo marcador da nacionalidade onde o conjunto teórico foi desenvolvi- do. As principais são: 54 Anotações: a. Antropologia Francesa1: originada a par- tir da Escola de Sociologia francesa, com influência de Émile Durkheim e, principal- mente, Marcel Mauss, com preocupações teóricas voltadas para a compreensão de sistemas e estruturas universais da hu- manidade. Nos anos 50, tem grande re- percussão a partir da obra de Claude Lévi- Strauss e sua Antropologia Estruturalista. b. Antropologia Britânica: é uma escola de pensamento com grande ênfase na Et- nografia e no Trabalho de Campo. A an- tropologia britânica é sobretudo empírica. Esteve diretamente ligada aos projetos coloniais ingleses, principalmente no con- tinente africano, provocando intensos de- bates nos anos 80 sobre a ética da finali- dade do trabalho antropológico. c. Antropologia Americana: marcada por diferentes fases, do Evolucionismo Social ao Culturalismo e Interpretativismo, a Antropologia Americana tem a noção de Cultura como ponto de partida, destacando sua diversidade. É a partir dela que o olhar para os problemas internos — da sociedade em que se situa — tiveram destaques e confrontamentos. Aqui citaremos alguns desses debates de forma introdutória, lidando com as transformações 1 LAPLATINE, Françoise. Aprender Antropologia. São Paulo, Ed. Brasiliense, 2010. 55 Anotações:de objeto da Antropologia e, sobretudo, com as mudanças em torno do conceito de Cultura. O primeiro paradigma teórico em Antropologia foi o “Evolucionismo Social”, tendo como principais autores: Lewis Morgan (EUA)2: os interesses de Morgan nos estudos antropológicos se iniciam a partir dos temas “família”, “herança” e “parentesco”. Dedicou muitos anos ao estudo e comparação de sistemas de parentesco humanos, distinguindo como os “selvagens” faziam suas classificações em comparação às sociedades “civilizadas”. Suas pesquisas resultaram na publicação de “Sistemas de Consanguinidade e Afinidade da Família Humana” e, posteriormente, “a sociedade antiga”, a qual demonstra os estágios de progresso da sociedade humana através da análise de cinco casos exemplares: os aborígines australianos, os índios iroqueses, os astecas, os gregos e os romanos. Edward Tylor (UK/EUA)3: foi o primeiro autor a estabelecer uma definição para o conceito de “cultura”, em seu livro “Cultura primitiva”. Descreveu Cultura como equivalente à Civilização, estabelecendo, a partir desse pressuposto, que os povos “não civilizados” (todos os povos fora da Europa e não-colonizados) não detinham cultura. Seu conceito dizia “Cultura ou Civilização, “é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras 2 CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural: textos de Morgan, Tylor e Fazer. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 2009. 3 Ibidem. 56 Anotações: capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade.” James Frazer (UK)4: sua obra principal foi “O Ramo de Ouro”, publicado pela primeira vez em 1890, em dois volumes, com um total de oitocentas páginas. A segunda e a terceira versões foram publicadas com respostas a várias críticas de outros autores da mesma época, chegando a 13 exemplares no total. Em 1922, Frazer preparou uma versão condensada em um volume que se tornou a versão mais conhecida, publicada até os dias atuais. É importante destacar que o Evolucionismo Social é uma perspectiva teórica considerada superada, porém, estudá-la é necessário para entender qual o percurso da Antropologia, como surgem as compreensões modernas do conceito de cultura, e quais as “sombras” do evolucionismo social que ainda permanecem. O postulado básico do evolucionismo, em sua fase clássica, era o de que, em todas as partes do mundo, a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigatórios, numa trajetória unilinear e ascendente. Nessa lógica, toda a humanidade deveria passar pelos mesmos estágios de evolução social, seguindo uma direção que ia do mais simples (os selvagens) ao mais complexo (civilização). Como decorrência da visão de um único caminho evolutivo humano, os povos “não ocidentais”, “selvagens” ou “tradicionais” existentes, no mundo contemporâneo, eram vistos como uma 4 Ibidem. 57 Anotações:espécie de “museu vivo” da história humana, tidos como representantes de etapas anteriores da trajetória universal do homem rumo à “civilização”; como exemplos vivos daquilo “que já fomos um dia”. Na medida em que a arqueologia era, então, pouco desenvolvida e não havia registroshistóricos disponíveis para a reconstituição dos estágios supostamente mais “primitivos”, o estudo dessas sociedades assumia enorme importância, pois assim se poderia reconstituir o caminho evolutivo da humanidade, através de suas diferentes etapas. Passava-se a dispor de uma espécie de “máquina do tempo” que permitia, observando o mundo dos “selvagens” de hoje, ter uma ideia de como se vivia em épocas passadas. Para Frazer (apud CASTRO, 2009, p. 107), “a selvageria é a condição primitiva da humanidade e, se quisermos entender o que era o homem primitivo, temos que saber o que é o homem selvagem hoje”. A solução para preencher as “lacunas” do longo período “primitivo” de evolução cultural humana era utilizar o método comparativo, aplicando-o ao grande número de sociedades “selvagens” existentes contemporaneamente. 58 Marcel Mauss Mauss foi aluno notável e sobrinho de Émile Durkheim, sendo iniciado na Sociologia pelo seu tio, na Universidade de Bordeaux. Diferente de Durkheim, que escreveu obras extensas ao longo da vida, Mauss era um intelectual de ensaios, com olhar mais direcionado para questões de etnologia (estudo das sociedades “simples”) e sua obra se dedica, principalmente, aos aspectos mais elementares da cultura humana, na perspectiva de que a partir da compreensão sobre a vida social na sua forma mais simplifi cada, pode-se alcançar os signifi cados dos fenômenos nas sociedades complexas. Sua obra de maior importância foi o “Ensaio sobre a dádiva”, onde analisa diversas formas de trocas econômicas entre sociedades ditas “arcaicas”. É crucial para a teoria antropológica, pois estabeleceu uma série de comparações entre formas elementares de troca entre diferentes sociedades, assim como acordos e relações que essas trocas asseguram. Em termos gerais, defende que a troca se baseia em um sistema de Dádiva, onde “dar”, necessariamente cria uma expectativa pela retribuição. O esquema da Dádiva se prolonga num processo que implica em “dar”, “receber” e “retribuir”. Em 1902 assumiu a cátedra de “História das religiões dos povos não civilizados”, como professor e diretor de pesquisas da École Pratique des Hautes Études, de Paris. elementares da cultura humana, na perspectiva de que a partir da compreensão sobre a vida social na sua forma mais simplifi cada, pode-se alcançar os signifi cados dos fenômenos nas sociedades complexas. Sua obra de maior importância foi o “Ensaio sobre a dádiva”, onde analisa diversas formas de trocas econômicas entre sociedades ditas “arcaicas”. É crucial para a teoria antropológica, pois estabeleceu uma série de comparações entre formas elementares de troca entre diferentes sociedades, assim como acordos e relações que essas trocas asseguram. Em termos gerais, defende que a troca se baseia em um sistema de Dádiva, onde “dar”, necessariamente cria uma expectativa pela retribuição. O esquema da Dádiva se prolonga num processo que implica em “dar”, “receber” e “retribuir”. Em 1902 assumiu a cátedra de “História das religiões dos povos não civilizados”, como professor e diretor de pesquisas da École Pratique des Hautes Études, de Paris. 59 Anotações:NATUREZA E CULTURA O embate a partir do Evolucionismo Social é sobre a qualidade dos aspectos que compõem a humanidade. Somos humanos pela nossa unidade biológica, mas seríamos equivalentes mesmo com formas de organização social tão diferentes? Para os evolucionistas, havia aprendizados necessários e inevitáveis para que os povos ditos “selvagens” adquirissem equivalência no status de humanidade em relação às sociedades ditas “civilizadas”. Nessa perspectiva, há vários problemas, principalmente, pela posição em que as teorias são produzidas pelos seus contextos. A dúvida em torno da humanidade dos “selvagens” era colocada pelos colonizadores, que tinham suas próprias sociedades como espelho da “civilização”. Essa inferiorização social das sociedades ditas “selvagens”, reverberou em projetos racistas contra sociedades africanas, asiáticas e ameríndias, como se o aprendizado da civilização tivesse, necessariamente que passar pela universalidade racial (europeia, branca). Laraia (2001, p. 12) afirma que: São velhas e persistentes as teorias que atribuem capacidades específi- cas inatas a ‘raças’ ou a outros grupos humanos. Muita gente ainda acredita que os nórdicos são mais inteligen- tes do que os negros; que os alemães têm mais habilidade para a mecânica; que os judeus são avarentos e nego- ciantes; que os norte-americanos são empreendedores e interesseiros; que os portugueses são muito tra- 60 Anotações: balhadores e pouco inteligentes; que os japoneses são trabalhadores, traiçoeiros e cruéis; que os ciganos são nômades por instinto, e, final- mente, que os brasileiros herdaram a preguiça dos negros, a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses. Os antropólogos estão totalmente convenci- dos de que as diferenças genéticas não são deter- minantes das diferenças culturais. A experiência do nazismo a partir da 2ª Guerra Mundial, levou a UNES- CO a estabelecer junto a antropólogos, geneticistas, biólogos e outros especialistas, a declaração uni- versal dos Direitos Humanos, que assegura a uni- versalidade da humanidade e o direito à diferença étnica, racial e cultural. A partir da Declaração Uni- versal dos Direitos Humanos, Laraia (2001) destaca, principalmente, os seguintes itens: 10. Os dados científicos de que dispomos atualmente não confirmam a teoria segundo a qual as diferenças genéticas hereditárias constituiriam um fator de importância primordial entre as causas das diferenças que se manifestam entre as culturas e as obras das civilizações dos diversos povos ou grupos étnicos. Eles nos informam, pelo contrário, que essas diferenças se explicam, antes de tudo, pela história cultural de cada grupo. Os fatores que tiveram papel preponderante na evolução do homem são a sua faculdade de aprender e a sua plasticidade. Esta dupla aptidão 61 Anotações:é o apanágio de todos os seres humanos. Ela constitui, de fato, uma das características específicas do Homo sapiens. 15. b) No estado atual de nossos conhecimentos, não foi ainda provada a validade da tese segundo a qual os grupos humanos diferem uns dos outros pelos traços psicologicamente inatos, quer se trate de inteligência ou temperamento. As pesquisas científicas revelam que o nível das aptidões mentais é quase o mesmo em todos os grupos étnicos (UNESCO apud LARAIA, 2001, p. 13). Mesmo diante da superação científica do determinismo biológico, ainda é comum ouvir- mos sobre qualidades — positivas ou negativas — transmitidas pela genética, pelo “sangue”. O bom desempenho em práticas esportivas é justificado pela herança de um avô que quase foi jogador da seleção; o sucesso musical de um cantor, porque seus pais eram músicos. São exemplos comuns dessa crença na transmissão de qualidades pela natureza. Contudo, o determinismo também opera para reducionismos negativos sobre as pessoas. O crime de um adolescente acaba sendo jus- tificado pelos comportamentos dos pais, pela sua diferença racial/biológica, como se as condições sociais e históricas não pesassem em desfavor do seu destino. O mesmo pode ser descrito so- bre o sucesso de grandes empresários jovens, comumente retratados nas grandes revistas de negócios, que vendem uma narrativa de esforço 62 Anotações: pessoal, quando sua biografia demonstra uma série de privilégios sociais e uma herança farta que explica o “sucesso incomum”. O homem é o resultado do meio cul- tural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acu- mulativo, que reflete o conhecimen- to e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o ante- cederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite às inovações e às invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultadodo esforço de toda uma comunidade (idem, p. 42). Compreender a Cultura como uma influência forte no processo de socialização, também passa pelo entendimento de que as Culturas humanas são diversas. Em seu artigo “Raça e História”, Lévi- Strauss (2017) escreve uma passagem linda para refletir sobre a diversidade cultural humana. É indubitável que os homens elabora- ram culturas diferentes em virtude do seu afastamento geográfico, das propriedades particulares do meio e da ignorância em que se encontravam em relação ao resto da humanidade, mas isso só seria rigorosamente verdadeiro se cada cultura ou cada sociedade estivesse ligada e se tivesse desenvolvido no isolamento de todas as outras. Ora, isso nunca aconteceu, salvo 63 Anotações:talvez em casos excepcionais como o dos Tasmanianos (e ainda aí para um período limitado). As sociedades humanas nunca se encontram isoladas; quando parecem mais separadas, é ainda sob a forma de grupos ou de feixes. Assim, não é exagero supor que as culturas norte-americanas e as sul-americanas tenham permanecido separadas de quase todo o contato com o resto do mundo durante um período cuja duração se situa entre dez mil e vinte e cinco mil anos (LÉVI-STRAUSS, 2017, p. 341). Para Lévi-Strauss (2017), não se pode supor que essa “separação” entre as sociedades desco- bertas pelos europeus através do contato colo- nial, significasse o total isolamento desse grande fragmento da humanidade. Essas sociedades eram grandes, mantinham contatos e relações es- treitas entre si. Quando se mantinham isoladas ou distantes umas das outras, estavam demarcando oposição e distinção buscando fortalecimento de seus próprios costumes. Essas culturas não sur- giram de acidentes, ou do acaso evolutivo, mas de disputas acirradas pelo desejo de não se tornarem “atrasadas” em relação aos seus vizinhos. Portan- to, a diversidade humana não pode ser reduzida ao isolamento desses grupos, mas das relações (de disputa, conflito, comparação, distinção) que es- tabelecem entre si. Margareth Mead (1901-1978), antropóloga americana, foi fundamental para a compreensão de como a cultura molda os comportamentos e 64 Anotações: papéis sociais. Também foi uma das intelectu- ais responsáveis pela desnaturalização dos ditos “papéis sexuais”. Em seu livro "Sexo e Tempera- mento", Mead (1969) fez uma comparação sobre como homens e mulheres desempenhavam pa- péis diferentes de acordo com cada cultura, (que atualmente compreendemos como relações de gênero) a partir de três tribos da Nova Guiné, (Ara- pesh, Mundugumor e Tchambuli). A cultura Arapesh é caracterizada como maternal, tendo seu valor atribuído por meio da “doçura” nas expressões e comportamentos. Quanto aos Mundugumor, tinham o comportamento agressivo e fomentado a homens e mulheres. A comparação entre sociedades com proxi- midade geográfica ajuda a esclarecer que, embora certas ideias vigentes em determinados lugares sociais relacionem certos trabalhos com um dos sexos, em outra sociedade a coisa se passa de modo muito distinto. Mead nos ajuda a compreender que os ditos “instintos”, não são aspectos inatos da hu- manidade, mas são elaborados a partir de nossa educação e se reproduzem por meio de aprendiza- gem social. A autora afirma, por exemplo, que até a amamentação, ato que poderia ser considerado exclusivo das mulheres (que possuem mamas, seios), pode ser transferida a um marido moderno por meio da mamadeira. Se ideias como “instinto materno” ou “instinto sexual” fossem padrões ge- neticamente determinados, todas as sociedades agiriam da mesma forma diante das mesmas situações. 65 Anotações:ETNOCENTRISMO E ALTERIDADE Apesar de muitos avanços e debates que consolidam a ideia de diversidade cultural, ela, ainda, parece sempre escandalosa. Nosso pon- to de vista sobre “o outro” opera sempre a partir da nossa própria cultura e, esse primeiro olhar, tendencioso, preconceituoso, tende a considerar outros modos de vida como menos apropriados. Esse comportamento é chamado de “etnocentris- mo” e, levado ao extremo, reverbera em conflitos sociais e marginalizações entre diferentes grupos (ou de um grupo sobre outro): O etnocentrismo, de fato, é um fenômeno universal. É comum a cren- ça de que a própria sociedade é o centro da humanidade, ou mesmo a sua única expressão. As auto denomi- nações de diferentes grupos refletem este ponto de vista. Os Cheyene, ín- dios das planícies norte-americanas, se autodenominavam “os entes hu- manos”; os Akuáwa, grupo Tupi do Sul do Pará, consideram-se “os homens”; os esquimós também se denominam “os homens”; da mesma forma que os Navajo se intitulavam “o povo”. Os australianos chamavam as roupas de “peles de fantasmas”, pois não acreditavam que os ingleses fossem parte da humanidade; e os nossos Xavantes acreditam que o seu ter- ritório tribal está situado bem no cen- tro do mundo. É comum assim a cren- ça no povo eleito, predestinado por 66 Anotações: seres sobrenaturais para ser superior aos demais. Tais crenças contêm o germe do racismo, da intolerância, e, frequentemente, são utilizadas para justificar a violência praticada con- tra os outros. A dicotomia “nós e os outros” expressa em níveis diferentes essa tendência (op.cit., p. 70). Sendo assim, em uma mesma sociedade, a primeira distinção que fazemos é entre pessoas da família e pessoas de fora da família. Tendemos a estabelecer um tratamento diferenciado entre nossos familiares e pessoas que não pertencem a esse círculo. De tal modo, ampliamos essa diferenciação nas formas de tratar as pessoas, a partir do pertencimento delas ao mesmo grupo de amigos, à mesma vizinhança, à mesma região do país e à mesma nação. Desse processo de aglutinação e diferenciação, resultam distinções, preconceitos e formas extremas de preservação que priorizam as nossas identificações. Como dissemos, a tendência mais comum entre os grupos humanos é de considerar lógico, apenas o próprio sistema cultural, atribuindo a outras culturas e sociedades certo grau de irracionalidade. Porém, os dados sobre uma cultura devem ser analisados como um sistema com lógicas próprias, e não na perspectiva de um estrangeiro (que em nosso caso também pode ser o pesquisador/antropólogo). Em “O Pensamento Selvagem”, Claude Lévi- Strauss dedicou-se a refutar as teorias evolucion- istas cujas conclusões indicavam que os sistemas de pensamento dos “selvagens”, eram inferiores e 67 Anotações:“pré-lógicos” em relação à ciência das sociedades brancas, ditas civilizadas. Muitas sociedades tidas como “primitivas” confirmam valores e constro- em seus sistemas de crenças em torno da magia, de cosmologias próprias que dão sentido ao seu mundo. Lévi-Strauss comprovou que o pensamen- to mágico ou cosmológico tem uma estrutura com- plexa e bem articulada. Ao contrário do que as teorias evolucionistas faziam crer, o pensamento mágico não antecede o pensamento científico, ambos existem simulta- neamente. A Antropologia constitui-se como uma ciência que se opõe ao etnocentrismo. Essa não é uma tarefa fácil, pois o antropólogo quase sem- pre se constitui como um sujeito que não com- partilha do mesmo ponto de vista daquelas culturas ou sociedades que estuda. Para desvencilhar-se do etnocentrismo, a Antropologia recorre à noção de “alteridade”: A abordagem antropológica provoca uma verdadeira revolução do olhar. Ela implica um descentramento radi- cal, uma ruptura com a ideia de que existe um “centro do mundo”, e cor- relativamente, uma ampliação do sa- ber e uma mutação de si mesmo. A descoberta da alteridade é a de uma relação que nos permite deixar de identificar nossa pequena província de humanidade com a Humanidade (em sua totalidade), e correlativa- mente deixar de rejeitar o presumido “selvagem” fora de nós mesmos. Con- frontados com a multiplicidade das 68 Anotações: culturas, somos aos poucos levados a romper com a abordagem comum que operana naturalização da vida social (como se nossos comporta- mentos estivessem inscritos em nós desde o nascimento e não fossem adquiridos no contato com a cultura em que nascemos) (...) (LAPLAN- TINE, 2010, p. 22). A partir do pensamento antropológico contemporâneo, a alteridade torna-se um elemento fundamental para que o exercício antropológico de aproximação de culturas diferentes das nossas, seja realizado de forma respeitosa, estabelecendo possibilidades de aprendizados e trocas culturais. Além de necessária na realização do trabalho antropológico, a noção de alteridade será muito útil para tornar mais saudável o convívio com a diferença social. TRABALHO DE CAMPO E ETNOGRAFIA Uma das rupturas em relação à fase do Evolucionismo Social na construção da teoria antropológica, foi a construção da etnografia, como resultado da pesquisa empírica junto às sociedades e povos estudados. Bronislaw Malinowski (1884-1942) foi canônico ao propor o método de “observação participante” como meio para obtenção de dados sobre a vida dos nativos. Hoje, a pesquisa em antropologia ainda segue a tradição inaugurada por Malinowski. É muito comum que nossas pesquisas prezem pela proximidade com os sujeitos dos grupos sociais investigados, 69 Anotações:produzindo documentos sobre nossas impressões, conversas, sobre festividades e momentos rituais, entre outras circunstâncias importantes da vida social. A pesquisa de campo realizada por Malinowski teve as Ilhas Trobriandesas, na região ocidental do Pacífico, como lócus de pesquisa. Dessa experiência, escreveu “Argonautas do Pacífico ocidental”, “A vida sexual dos selvagens” e “Jardins de coral”. Dessas três obras, “Argonautas” é a de maior destaque, pois além de descrever o circuito do kula (sistema de trocas e hierarquias) e a construção das wagas (navegações), é nessa obra que apresenta seu método e as etapas de sua pesquisa. Segundo Malinowski (2018), Em etnografia, o autor é ao mesmo tempo seu próprio cronista e o his- toriador, enquanto suas fontes sem dúvida são facilmente acessíveis, mas também supremamente esqui- vas e complexas; elas não estão cor- porificadas em documentos mate- riais, fixos, mas no comportamento e na memória de homens vivos. Em etnografia, muitas vezes há enorme distância entre o material bruto da informação — tal como é apresentado ao estudioso em suas próprias obser- vações, nas afirmações dos nativos, no caleidoscópio da vida tribal — e a apresentação final autorizada dos re- sultados. O etnógrafo tem de transpor essa distância nos laboriosos anos que decorrem entre o momento no qual pisa numa praia nativa, faz suas 70 Anotações: primeiras tentativas de entrar em contato com os nativos, e o momento em que redige a versão final de seus resultados (p. 57). O pensador também explica como devem ser estabelecidas as relações em campo, enfatizando que o contato primordial deve ser com os “nativos”. Durante o processo de aprendizado sobre um grupo ou cultura diferente do nosso, a imersão nas lógicas e rotinas do lugar são essenciais. Além disso, é importante não perder de vista nosso status de “outro” diante daqueles de quem queremos informações. Esses laços não são desinteressados, mas nem por isso chegam a ser superficiais. Como foi dito, elas consistem prin- cipalmente em afastar-se da com- panhia de outros brancos e per- manecer no contato mais estreito possível com os nativos, o que real- mente só pode ser alcançado acam- pando em suas aldeias. É muito bom ter uma base nas instalações de al- gum homem branco para os materiais e saber que há um refúgio ali quando estamos adoentados ou cansados dos nativos. Mas ela deve estar su- ficientemente afastada para não se transformar no meio permanente em que você vive e do qual emerge em horas fixas somente para “trabalhar na aldeia”. Não deveria nem ser próxi- ma o bastante para que recorramos a ela a qualquer momento em busca de distração (idem p. 58-59). 71 Anotações:Figura 4 - Malinowski, em pesquisa de campo nas Ilhas Trobriand Fonte: Fotografia de Billy Hanckock. In: Malinowski, 2018. Outro aspecto das relações é a forma de como obtemos os dados em campo. Dificilmente, as pessoas têm respostas prontas para as nossas perguntas e, às vezes, dependendo dos nossos questionamentos, elas não se sentem confortáveis para responder. Todas as sociedades têm temáticas tabu, situações que não são faladas abertamente para estranhos. Malinovski (2018) apresenta algumas estratégias para lidar com esse dilema: Embora não possamos interrogar um nativo sobre regras gerais, abstratas, podemos sempre indagar como um dado caso seria tratado. Assim, por exemplo, ao perguntar como eles tratariam o crime, ou o puniriam, seria inútil fazer a um nativo uma pergunta abrangente como “De que maneira você trataria e puniria um criminoso?”, porque não seria possível sequer 72 Anotações: encontrar palavras para expressá-la em um idioma nativo. Mas um caso imaginário ou, melhor ainda, uma ocorrência real estimulará o nativo a expressar sua opinião e a fornecer informações abundantes (p. 68-69). Há, ainda, muitas situações e fenômenos importantes que não conseguimos registrar imediatamente. A convivência envolve múltiplas formas de participação e atenção, que podem nos fazer deixar de anotar ou gravar as cenas e conversas no calor dos acontecimentos. Esses fenômenos são chamados de “os imponderáveis da vida real”. São coisas como a rotina do trabalho, formas de cuidado com o corpo, maneiras de preparar e consumir os alimentos, as expressões emocionais, os laços fortes de amizade e as antipatias entre pessoas. Todos esses fatos podem e devem ser cientificamente formulados e registrados, mas é necessário que isso não seja feito com um registro superficial de detalhes, como é costume entre os observadores não treinados, porém com um esforço para penetrar a atitude mental que neles se expressa (idem, p. 72). Malinovski (2018) sugere três caminhos para abordar o trabalho de campo. São eles: 1. A organização da tribo e a anatomia de sua cultura devem ser registradas num esboço firme, claro. O método de documentação 73 Anotações:concreta, estatística, é o meio pelo qual esse esboço deve ser feito. 2. Os imponderáveis da vida real e o tipo de comportamento devem ser inseridos no interior dessa estrutura. Eles têm de ser colhidos mediante observações minuciosas, detalhadas, na forma de algum tipo de diário etnográfico, possibilitando estreito contato com a vida nativa. 3. Uma compilação de depoimentos et- nográficos, narrativas características, pro- nunciamentos típicos, itens de folclore e fórmulas mágicas devem ser considerados um corpus inscriptionum, como documen- tos da mentalidade nativa. Uma sequência para a construção do trabalho antropológico, clássico na antropologia brasileira, foi proposto por Roberto Cardoso de Oliveira em seu livro “O trabalho do Antropólogo”. Oliveira (2006) argumenta que o trabalho do antropólogo consiste em três atos cognitivos primordiais: Olhar, Ouvir e Escrever. Os dois primeiros são executados, quase sempre, simultaneamente. O autor propõe algumas experimentações em torno de cada um. Imagine chegar em uma sociedade completamente desconhecida, da qual não se domina o idioma nativo? As primeiras impressões serão construídas a partir do Olhar. Pelo Olhar, podemos notar como as pessoas se vestem, com quem se relacionam, como se alimentam, como são as casas, por exemplo. Ouvir, complementa o Olhar. Por meio das conversas podemos desfazer dúvidas, criar relações com as pessoas do lugar, entender como as pessoas se 74 Anotações: chamam, quais os pronomes de tratamento dados, os status atribuídos aos membros de um grupo. Por fim, Oliveira (2006) fala sobre o ato de escrever, subdividindo-o em dois momentos: “Estar aqui” e “Estar lá”. Se recorrermos ao exemplo de Malinovski, veremos que ele tinha registros locais,cadernetas e diários de campo, mas construiu as etnografias finais sobre os Trobriandeses em seu escritório. No campo, nós também construímos registros escritos sobre as experiências imediatas, mas o exercício intelectual de construção da etnografia e sua relação com a teoria, é feito nos momentos de solidão, distantes do espaço de pesquisa. POPULAÇÕES TRADICIONAIS E VOZES AMERÍNDIAS Segundo Cunha (2017), o emprego do ter- mo populações tradicionais não implica neces- sariamente adesão à tradição — no sentido da permanência das tradições, pois a teoria antro- pológica já concebe a cultura como dinâmica e mutável. Defini-las como populações que têm baixo impacto sobre o ambiente, para depois afirmar que são ecologi- camente sustentáveis, seria mera tautologia. Se as definirmos como populações que estão fora da esfera do mercado, será difícil encontrá-las hoje em dia (p. 268). 75 Anotações:Compreendendo esse conjunto complexo que engloba as “populações tradicionais”, po- demos inferir que as populações tradicionais são aquelas que exercem impactos sustentáveis so- bre a natureza, mantendo ou não relações com o mercado global, que têm status étnico — social, administrativo ou jurídico — reconhecido. São os sujeitos chamados de “índios”, “indígena”, “tribal”, “nativo”, “aborígene” e “negro”, a partir do contato com o mundo branco. E embora [tais termos] tenham sido genéricos e artificiais ao serem criados, esses termos foram progressivamente habitados por gente de carne e osso. Não deixa de ser notável o fato de que com muita frequência os povos que de início foram forçados a habitar essas categorias tenham sido capazes de se apossar delas, convertendo termos carregados de preconceito em bandei- ras mobilizadoras. Nesse caso, a de- portação para um território conceitual estrangeiro acabou resultando na ocu- pação e defesa desse território (idem, p. 268-269). Após um século de predominância de antropólogos brancos, de países imperialistas, fazendo pesquisa com os povos tidos como “selvagens”, houve um importante esforço de ressignificação dos papéis de sujeitos fixados na posição de meros interlocutores. O movimento indígena do Brasil teve grande importância nessa reviravolta, fazendo surgir e repercutindo trabalhos 76 Anotações: de intelectuais indígenas e de seus grupos étnicos, dos quais destacamos dois a seguir. Davi Kopenawa (2015) escreve “A Queda do Céu” em parceria com o antropólogo Bruce Albert. Para muitos teóricos, a cosmologia Yanomami apresentada por Kopenawa é um vislumbre da ideia de “filosofia ameríndia”, no sentido proposto por Eduardo Viveiros de Castro, de que os povos ameríndios teriam perspectivas epistemológicas próprias e não dicotômicas, sobre a relação entre os humanos (a cultura) e os seres da natureza. Mas aqui, podemos escapar um pouco dessas categorizações e pensar no trabalho do Xamã yanomami, como um alerta sobre o avanço predatório “dos brancos”. Esse alerta, escrito com muita beleza, apresenta aspectos da cosmologia Yanomami e a história de como Davi se tornou um Xamã politicamente engajado que se encarrega do trabalho de impedir a Queda do Céu, que significaria o recomeço da Terra, pela vontade de Omama. Figura 5 - Davi Kopenawa, liderança política e xamã yanomami Fonte: Foto de Daniel Klajmic, Instituto Socioambiental, 2019. 77 Anotações:Uma das partes mais sensíveis do livro é aquela em que Kopenawa, ainda criança, é chamado pelo Xapiri nos sonhos. Os sonhos de uma criança que poderá se tornar Xamã, são sonhos febris, geralmente, sentidos por meninos delicados, frágeis, que precisam ser ornados de artefatos culturais, carregados de poder simbólico que fazem a relação entre o mundo físico e o mundo dos espíritos. Davi, vai sendo construído como um homem Ianomami, feito de cautelas e sensibilidades, sobre a caça, a relação com a natureza, o sexo, sobre seu o povo e com os espíritos. Ele aprende a ver que a vida é bonita (nas danças dos Xapiri nos sonhos, nas visões de pó de Yãkoana), por isso, importa manter o Céu. Kopenawa nos ajuda a perceber que as cosmologias contra-capitalistas, que também são epistemologias “não-brancas”, dependem também de um engajamento sensível na relação com a natureza. Num tom semelhante ao de Kopenawa, Ailton Krenak, intelectual indígena e liderança do povo Krenak, às margens do Rio Doce (MG), tece um conjunto de propostas sobre como evitar a extinção da humanidade, diante da crise do clima, provocada pela lógica da mercadoria, do sistema capitalista. O autor utiliza a dicotomia ocidental entre “natureza” e “cultura” (que também é um problema antropológico ocidental), como ponto de partida para afirmar que os povos ameríndios não fazem a mesma separação entre humanidade e natureza. Afirma que essa distinção é meramente conceitual, e do mundo dos brancos, propondo que nossa existência como humanidade depende do aparato completo que só a natureza, na Terra, nos dá. O 78 Anotações: livro “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019) é uma mensagem de alerta e esperança, diante da predação da indústria, do consumismo e destruição do meio ambiente. Seu livro mais recente, intitulado “A vida não é útil” (2020), adota um tom mais duro, quase uma decepção com a humanidade, e principalmente com o Brasil – pois foi em parte, escrito durante a pandemia do coronavírus. É importante salientar que diversos povos do planeta vivenciaram tempos difíceis diante das incertezas da pandemia do coronavírus iniciada em 2019, com primeiros casos reportados pela China. Contudo, alguns grupos sociais foram mais vulneráveis do que outros, entre eles, os povos indígenas. Krenak (2020) reflete sobre como o drama vivenciado pela humanidade diante da COVID-19, é resultado da nossa relação predatória com a natureza e dos descasos sociais entre nós mesmos. [Disseram] outro dia que brasileiros mergulham no esgoto e não acontece nada. O que vemos [...] é o exercício da necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está dominando o mundo. E temos agora esse vírus, um organismo do planeta, respondendo a esse pensamento doentio dos humanos com um ataque à forma de vida insustentável que adotamos por livre escolha, essa fantástica liberdade que todos adoram reivindicar, mas ninguém se pergunta qual o seu preço. Esse vírus está discriminando a humanidade. 79 Anotações:Basta olhar em volta. O melão-de- são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise. É terrível o que está acontecendo, mas a sociedade precisa entender que não somos o sal da terra. Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade (KRENAK, 2020, p. 39). Através desses exemplos, Krenak demonstra que a vida na Terra não se restringe à humanidade. Independente da nossa existência, as plantas, os animais e demais seres da natureza continuarão seus processos de desenvolvimento e existência. Portanto, o autor reforça a necessidade de uma visão contemporânea sobre o planeta, que incor- pore o cuidado com a Terra. Assim, as reflexões dos povos ameríndios apresentam-se como novas perspectivas e desafios para a Antropologia. 80 Filmes para conferir: O Enigma de Kaspar Hauser (Werner Herzog, 1974): filme que retrata a vida de Kaspar, um rapaz criado longe da sociedade até a juventude, quando é deixado em uma cidade alemã. Ao longo do filme, o rapaz é tratado como um ser humano em estágio primitivo da humanidade, e são questionadas suas capacidades de socializar, aprender e interagir com outros humanos. A última floresta (Luiz Bolognesi, 2021): documentário que narra a cosmologia e a luta do povo Yanomami na defesa de seu território e contra a destruição da Terra,através do olhar de Davi Kopenawa. Para seguir: @campopodcast (ins- tagram e spotify): pod- cast com curadoria e pequenas aulas sobre autores e autoras clás- sicas e contemporâneas da Antropologia. Idealizado por Carol Parreiras e Paula Maria. 81 U ni da de 3 Videoaula 1 Videoaula 2 84 85 FORMAÇÃO NACIONAL Há uma ideia sobre a formação nacional que gira em torno da cor- dialidade, das relações amistosas e pacíficas entre diferentes povos que constituiriam o que conhecemos como povo brasileiro. Contudo, essa ideia tem uma compreensão que foi internalizada pelo senso comum e por movimentos que apregoam a negação das diferenças sociais e do racismo, e outra que percebe a cor- dialidade como um efeito corruptivo das relações hierárquicas no Brasil. Deixando de ser uma colônia portu- guesa, a sociedade brasileira con- PROBLEMAS SOCIAIS DO BRASIL 86 Anotações: quistou sua independência nacional em 1822, sob um regime monárquico. Suas bases socioeconômicas e políti- cas repousavam na grande proprie- dade rural, monocultora e exportadora de produtos primários para o mercado externo; na exploração extensiva de força de trabalho escrava, alimentada pelo tráfico internacional de negros desenraizados de suas tribos e comu- nidades de origem no continente afri- cano; na organização social estamen- tal que estabelecia rígidas fronteiras hierárquicas entre brancos, herdeiros do colonizador português, negros es- cravizados, homens livres destituídos da propriedade da terra e populações indígenas. Esses fundamentos soci- ais conformaram uma vida associati- va, isto é, padrões de socialidade e de sociabilidade constituída em torno do parentesco, da mescla de interesses materiais e morais, da indiferenciação entre as fronteiras dos negócios pú- blicos e dos interesses privados, no adensamento da vida íntima, na in- tensidade dos vínculos emocionais, no elevado grau de intimidade e de proximidade pessoais e na perspecti- va de sua continuidade no tempo e no espaço, sem precedentes (ADORNO, 2002, p. 84). Por sua vez, o poder político encontrava seus fundamentos institucionais no patrimonialismo, 87 Anotações:isto é, uma estrutura de dominação cuja legitimi- dade se constrói tendo como bases as relações en- tre grandes proprietários rurais, representantes do estado burocrático e clientelas locais mantidos a partir de trocas de favores ou de apoio político. Figura 6 - Abaporu, de Tarsila do Amaral (1928), símbolo do movimento modernista brasileiro, é usado para ilustrar a capa do livro “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda Fonte: Google. Assim, um dos pontos de partida da formação do Brasil é sua relação com a “cordialidade”, conceito caracterizado por Sérgio Buarque de Holanda, em seu célebre livro “Raízes do Brasil”. Buarque de Hollanda tece diferentes pilares (raízes) do que constituiu o Brasil. Um desses pilares é o padrão de comportamento cordial, que envolve as relações estatais, burocráticas, numa teia de vínculos de 88 Anotações: apadrinhamento e familiaridade. Em nível ideal, o Estado e suas relações não deveriam ser uma ampliação do círculo familiar ou da realização de vontades privadas. Buarque de Hollanda afirma que: Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é o prejuízo romântico que teve os seus adeptos mais entusi- astas durante o século XIX. De acordo com esses doutrinadores, o Estado e as suas instituições descendem em linha reta e, por simples evolução, da família. A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em es- sência. Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Es- tado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração suces- siva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência (HOLLANDA, 1995, p. 141). Contudo, o autor vai demonstrar que o Brasil, diferente do modelo ideal das relações de Estado 89 Anotações:e cidadania, terá a “cordialidade” como base civilizacional. A contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal (idem, p. 146). A cordialidade não é sinônimo de boas ma- neiras, de relações de bom trato entre as pessoas. A noção de cordialidade percebida por Buarque de Hollanda, passa pelo esforço de, por meio de sutilezas cotidianas, estabelecer vínculos sociais que funcionem como meios de troca (de favores, cuidados, afetividades, obrigações). Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial 90 Anotações: xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência — e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula (idem, p. 147). Essa ambiguidade da “polidez” como narrada pelo autor, supõe que a gentileza seja um meio de proteção exterior, servindo, quando necessário, como uma ferramenta de existência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas sua sensibilidade e suas emoções. Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo (ibidem, p. 147). Um exemplo citado por Buarque de Hollanda (1995) é o uso da terminação “inho”, aposta nas 91 Anotações:palavras, que servem para criar mais familiaridade com as pessoas ou os objetos. “É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los do coração.” Podemos pensar nos desdobramentos dessa “cordialidade” nas relações de poder patrimonial e político, por exemplo. Há muitos casos em que um patrão que exerce grande domínio sobre uma mesma região, estabeleça vínculos de familiaridade com famílias ao redor, ampliando assim sua autoridade. O mesmo ocorre com políticos de perfil coronelista, aqueles que se mantêm por muitas décadas em posições de poder, por exercitarem essa dicotomia entre autoridade estatal e cordialidade familiar. QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL Quando falamos de questões étnico-raciais no Brasil, é comum ouvirmos que não há racismo. Esta ideia é fruto de uma teoria que sofreu grande influência a partir da publicação de “Casa Grande e Senzala” (1933), de Gilberto Freyre. Nessa época, em virtude da formação da identidade nacional, havia inquietações acerca deo que constituiria o ethos da sociedade brasileira. Nesse livro, Freyre trazia a ideia de que a miscigenação brasileira possibilitou um convívio harmonioso entre as diferentes raças que compunham o povoamento do Brasil. Sendo assim, a interpretação dominante sobre a realidade brasileira passou a produzir um discurso negacionista em relação às desigualdades raciais, reforçando a ideia de que a convivência entre as “três raças” (indígenas, negros e brancos) era pacífica e, portanto, estávamos sob uma “democracia racial”. 92 Anotações: A quebra desse paradigma higienizador sobre as relações étnico-raciais no Brasil, se dá a partir da obra de Florestan Fernandes, “A integração do Negro na Sociedade de Classes”. Essa obra buscou compreender o que resulta do encontro dos negros, mulatos e brancos, a partir da promulgação da Lei Áurea, de abolição da escravatura, em 1888. Foi um contraponto à tese freyriana de que as relações entre brancos e negros, casa grande e senzala, eram complementares, tendo contribuído com a formação de uma identidade nacional (mito da democracia racial). Florestan (2008) afirma que o processo de “integração” de pessoas negras foi desde o princípio deformador, e que não era possível se pensar que o cruzamento ou o processo de branquização que ocorrera no “meio negro” havia sido tão eficiente para se pensar numa “democracia racial”. Sofrimento na adaptação dos recém- libertos negros e mulatos às novas circunstâncias para as quais foram irreversivelmente empurrados. Não havia mais um lugar para eles; sua importância acabara com o fim da escravidão. Ora, o negro não estava acostumado a muitas coisas, inclusive, à liberdade. Depois de tanta dor diante da exploração cativa, longe das escolhas, do encontro com o outro, fosse ele branco ou mesmo negro, o despreparo moral e material era real e inevitável. Diante do infortúnio experimentado pelo “meio negro,” irá se registrar (nas décadas 93 Anotações:seguintes a Abolição) um “déficit negro” perceptível na cidade de São Paulo (FERNANDES, 2008, p. 27). Florestan analisa alguns dados censitários e faz algumas considerações sobre as causas da baixa demográfica do “elemento negro” em centros urbanos. Em primeiro lugar, ele esclarece que: A baixa no índice vegetativo não foi tão alarmante, nem aconteceu pelas causas que se imaginou durante muito tempo. E, para ser bem compreendida, deveria ser pensado em conformidade com a alteração da estrutura demográfica da cidade de São Paulo. Ou seja, a cidade vai receber no período do final do século XIX e início do século XX uma grande quantidade de imigrantes europeus (brancos), e isso vai representar um salto enorme na população de São Paulo (idem, p. 30). A ideia de cruzamento entre as raças (como parte de um processo de branquização), mesmo sendo pequeno, também terá sua importância. Muitos indivíduos de pele mais clara e de condições socioeconômicas melhores irão mudar de catego- ria racial e algumas vezes, aceitos, inclusive, em relações matrimoniais pelos brancos. Florestan também salienta a discrepância das informações sobre a cor das crianças nos registros de nasci- mento. Muitas crianças mulatas eram declaradas como brancas ao nascer, mas os óbitos continu- 94 Anotações: avam sendo fiéis à cor dos indivíduos (declaradas como negras/mulatas quando mortas). Dessa forma, começou a ter um número muito pequeno de nascimentos discrepantes em relação ao número de mortes. No entanto, como já fora mencionado, o decréscimo na população de cor existiu, mas não atingiu proporções alarmantes e também não foi causado por inadaptabilidade dos negros e mulatos às precárias condições de existência em relação aos brancos. Esse não foi o maior problema que os negros e mulatos enfrentaram em sua luta por sobrevivência no mundo do branco. Negritude, identidade e racismo Se o processo de construção da identidade nasce a partir da tomada de consciência das diferenças entre “nós” e “outros”, para Munanga (2012, p. 06), “o grau dessa consciência é idêntico entre todos os negros, considerando que todos vivem em contextos socioculturais diferenciados.” O essencial para cada povo é reen- contrar o fio condutor que o liga a seu passado ancestral o mais longínquo possível. A consciência histórica, pelo sentimento de coesão que ela cria, constitui uma relação de segurança a mais certa e a mais sólida para o povo. É a razão pela qual cada povo faz esforço para conhecer sua verda- deira história e transmiti-la às futu- ras gerações. Também é a razão pela qual o afastamento e a destruição da 95 Anotações:consciência histórica eram uma das estratégias utilizadas pela escravidão e pela colonização para destruir a memória coletiva dos escravizados e colonizados. Nas bases populares negras sem vínculos com as comuni- dades religiosas de matriz africana, a consciência histórica e, consequen- temente, a identidade se diluíriam nas questões de sobrevivência que toma o passo sobre o resto e pode desem- bocar num outro tipo de identidade: a da consciência do oprimido economi- camente e discriminado racialmente. Na militância negra há uma tomada de consciência aguda da perda da história e, consequentemente, a bus- ca simbólica de uma África idealizada (MUNANGA, 2012, p. 7). Munanga (2012) também questiona o fator psi- cológico que gera questionamentos sobre o tem- peramento do negro, que é diferente do tempera- mento do branco e, se isso, pode ser considerado como marca da identidade negra. Muitas relações são feitas entre pessoas negras e atitudes tidas como grosseiras (“a preta é braba”, “o negro briguen- to). Ele não nega que possam existir diferenças de temperamento relacionadas à negritude, mas es- clarece que se essa diferença realmente existir, suas causas são “o condicionamento histórico do negro e de suas estruturas sociais comunitárias, e não com base nas diferenças biológicas como pen- sariam os racialistas” (2012, p. 08). 96 Anotações: Se historicamente a negritude é, sem dúvida, uma reação racial negra a uma agressão racial branca, não poderíamos entendê-la e cercá-la sem aproximá-la do racismo do qual é consequência e resultado. Para ser racista, coloca-se como postulado fundamental a crença na existência de “raças” hierarquizadas dentro da espécie humana. De outro modo, no pensamento de uma pessoa racista existem raças superiores e raças infe- riores. Em nome das chamadas raças, inúmeras atrocidades foram cometi- das nesta humanidade: genocídio de milhões de índios nas Américas, eliminação sistemática de milhões de judeus e ciganos durante a Segunda Guerra Mundial. Como se não bastasse o antissemitismo, a persistência dos mecanismos de discriminação racial na África do Sul durante a Apartheid, nos Estados Unidos, na Europa e em todos os países da América do Sul encabeçados pelo Brasil e em outros cantos do mundo demonstra clara- mente que o racismo é um fato que confere à “raça” sua realidade política e social (idem, p. 08-09). Ou seja, se cientificamente a realidade da raça é contestada, política e ideologicamente esse conceito é muito significativo, pois funciona como uma categoria de dominação e exclusão nas sociedades multirraciais contemporâneas observáveis. Crítica observada na tirinha. 97 Anotações: Fonte: Laerte, 2012. Um dos dilemas da questão racial brasileira é a desigualdade econômica, como salienta o verso da canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil, “E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados”: os oprimidos brancos da sociedade não têm consciência de que a exclusão política e econômica do negro, por motivos racistas, só beneficia a classe dominante, o que torna difícil, senão impossível, sua solidariedade com o oprimido negro; além disso, eles mesmos são racistas pela educação e pela socialização recebidas na família e na escola. Os que pensam que a situação do ne- gro no Brasil é apenas uma questãoeconômica, e não racista, não fazem esforço para entender como as práti- cas racistas impedem ao negro o 98 Anotações: acesso na participação e na as- censão econômica. Ao separar raça e classe numa sociedade capitalis- ta, comete-se um erro metodológi- co que dificulta a sua análise e os condena ao beco sem saída de uma explicação puramente economicista (idem, p. 14). Entre os povos indígenas, as questões étni- co-raciais passam pelo apagamento identitário e pelos problemas de casamentos entre indígenas e brancos. Essa questão aparece na literatura antropológica como contato interétnico, que no início tinha interesse em compreender se os indí- genas sofriam processos de “aculturação” a partir do contato e construção de novas relações com os brancos. A identidade das crianças nascidas dos relacionamentos entre índias e brancos é obje- to de controvérsia na etnologia brasileira, por se tratar de uma questão sempre em disputa e nego- ciação. Esses filhos de indígenas com brancos são chamados de “caboclos”, e seu pertencimento gera polêmicas entre as famílias indígenas, pois geralmente são filhos de mulheres indígenas, em contextos onde o pertencimento étnico passa pela linhagem paterna. Em alguns grupos, essas regras sociais são renegociadas, para que os filhos de mulheres indígenas com homens brancos, possam ter o reconhecimento étnico assegurado. 99 Anotações: CONFLITOS AGRÁRIOS E AS LUTAS PELA TERRA Os conflitos pelo direito à terra são muito antigos no Brasil e tiveram seu ápice após a abolição da escravatura. A população negra, até ali escravizada, tinha seu trabalho ligado à produção agrícola. Com o fim da escravidão e a substituição pela mão de obra migrante (predominantemente italiana) nas fazendas e cafezais, essa população negra ficou totalmente desamparada, sem uma redistribuição das terras nos espaços rurais do país, e sobrecarregando as margens das cidades que começavam a se reconfigurar diante da lenta industrialização nacional. Um dos primeiros movimentos sociais importantes para a configuração das lutas pelo direito à terra e reforma agrária no Brasil foram as Ligas Camponesas, que eram associações de trabalhadores rurais criadas, inicialmente, no estado de Pernambuco, posteriormente na Paraíba, no estado do Rio de Janeiro, Goiás e em outras regiões do Brasil, que exerceram intensa atividade no período que se estendeu de 1955 até a queda de João Goulart em 1964. O movimento que se tornou nacionalmente conhecido como “ligas camponesas,” iniciou-se de fato, com 140 famílias no engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão, em Pernambuco tendo sido criado no dia 1º de janeiro de 1955 com o nome de Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP). O processo iniciado em 1955 desencadeou novos núcleos até o início dos anos 60. 25 núcleos 100 Anotações: foram instalados no estado, com predominância visível da Zona da Mata e do Agreste sobre o Sertão. Dentre esses núcleos, destacavam-se os de Pau d’Alho, São Lourenço da Mata, Escada, Goiana e Vitória de Santo Antão. A partir de 1959, as ligas camponesas se expandiram rapidamente em outros estados, como a Paraíba, estado do Rio (Campos) e Paraná, aumentando o impacto político do movimento. Dentre esses núcleos, o mais importante foi o de Sapé, na Paraíba, o mais expressivo e o maior de todos. A expansão da Liga de Sapé acelerou-se a partir de 1962, quando foi assassinado seu principal líder, João Pedro Teixeira, a mando do proprietário local. Pouco depois esse núcleo congregava cerca de dez mil membros, enquanto outros núcleos iriam se espalhar pelos municípios limítrofes. De um modo geral, as associações criadas tinham caráter civil, voluntário e por isso mesmo dependiam de um estatuto e de seu registro em cartório. Para constituir legalmente uma liga, bas- tava aprovar um estatuto, registrá-lo na cidade mais próxima e lá instalar a sua sede. As finalidades das ligas eram prioritariamente assistenciais, so- bretudo jurídicas e médicas, e ainda de autodefesa, nos casos graves de ameaças a quaisquer de seus membros. As lideranças pretendiam também, a médio e longo prazos, fortalecer a consciência dos direitos comuns, que compreendiam a recusa em aceitar contratos lesivos, dia de trabalho gratuito para aqueles que cultivavam a terra alheia e outras prestações de tipo “feudal”. Nesse momento, o uso do termo “camponês” constituiu-se, no Brasil, como categorias unitárias 101 Anotações:para classificar diferentes modos de trabalho sobre a terra, com o intuito de unificar trabalhadores rurais em oposição aos “latifundiários” (os donos da terra — grandes propriedades rurais — que não exerciam seu trabalho sobre ela). A desagregação do movimento, em 1964, eliminou as organizações, mas não desarticulou suas reivindicações básicas, que seriam incorporadas pelos sindicatos rurais no período seguinte (1965-1983). Convém notar que esses sindicatos rurais têm sido, particularmente, ativos nas antigas zonas de influência das ligas. A ditadura militar, com início em 1964, forçou e perseguiu as lideranças que compunham as ligas camponesas. Um documentário clássico sobre o impacto da ditadura sobre os movimentos de reforma agrária no Brasil é “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho. Além de narrar de forma brilhante como se deu a expansão das ligas, Coutinho segue os rastros de Elisabete Teixeira, esposa de João Pedro Teixeira, assassinado a mando dos coronéis. Nos últimos 30 anos, próximo ao fim da Ditadura Militar, os movimentos pela terra ganharam novas configurações no Brasil. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é, sem dúvida, o movimento sindical mais influente na vida rural brasileira, que tem como principal bandeira a reforma agrária. Sigaud (2004), ao explicar como funcionam os acampamentos e a estrutura de organização do MST, afirma: A partir do final dos anos 70 as ocu- pações foram retomadas no sul do país e estiveram associadas à insta- lação de acampamentos com deze- 102 Anotações: nas, centenas de famílias. As pri- meiras foram organizadas por jovens filhos de pequenos produtores, com apoio da Comissão Pastoral da Ter- ra (CPT), vinculada à Igreja Católica. Foi este núcleo que criou, em 1984, o MST. Em meados da década de 80 há registros de ocupações em vários es- tados brasileiros, graças a uma políti- ca de expansão da organização. Em 1993, o Congresso Nacional estabele- ceu que a improdutividade das terras caracterizava o não cumprimento da função social da propriedade, caso previsto pela Constituição de 1988 para proceder à desapropriação. As ocupações generalizaram-se em todo o país. Durante o período, o Instituto Nacional da Reforma Agrária (INCRA), que até então tinha uma atuação modesta, começou a desapropriar as terras ocupadas e as redistribuiu entre os que estavam nos acampa- mentos, tornando-os titulares de uma parcela de terra. As ocupações, os acampamentos e as desapropriações indicam uma inflexão no modo de pro- ceder das diversas organizações no mundo rural e do Estado. Daí poder-se falar de um fato novo (p. 11). A Reforma Agrária, por sua vez, consiste na reivindicação pelo reordenamento e redistribuição de terras improdutivas, ou grandes hectares de terra que são usados de maneira industrial para produção de um só produto que visa o lucro de 103 Anotações:uma pessoa ou família. A ideia de Reforma Agrária também está vinculada ao tipo de trabalho sobre a terra, uma disputa entre o mercado agroindustrial brasileiro e as famílias agricultoras (agricultura familiar, modelos de produção orgânica de alimentos, agriculturas de subsistência. O Estado brasileiro tem conferido legitimidade à pretensão dos movimentos, ao desapropriar as fazendas ocupadas e redistribuir as terras entre os que se encontram nos acampamentos. Utilizando o exemplo da Zona Rural pernambucana, Sigaud (2004) explica como ocorreram as disputasem torno da terra e dos modelos de produção rural. No final da década de 80, o Governo brasileiro alterou as diretrizes em relação à agroindústria açucareira, no bojo de uma política mais geral de retirada do Estado da economia: suprimiu os subsídios que há déca- das garantiam o preço da cana e do açúcar; privatizou as exportações; e permitiu a elevação da taxa de ju- ros. Estas medidas, assim como uma grande seca ocorrida no período, desencadearam uma crise no setor. Muitos patrões não lograram adap- tar-se à falta de proteção do Esta- do e faliram. Outros tantos trataram de se reestruturar. Milhares de tra- balhadores perderam o emprego, quer pela falência dos patrões, quer pela redução dos efetivos promovi- da pelas empresas. No final dos anos 90, das quatro usinas que exploram a cana na área estudada apenas uma 104 Anotações: estava em situação tida como sólida e equilibrada. A segunda saía de um pedido de concordata; a terceira não havia moído na safra de 96-97 e desde 1995 não pagava regularmente seus trabalhadores; a quarta entregara ao Banco do Brasil treze de seus enge- nhos para pagar dívidas e habilitar-se a novos empréstimos (p. 15). Um dos argumentos contra os movimentos de ocupação de Terras no Brasil, é de que os acam- pamentos seriam realizados em espaços produti- vos, portanto, prejudicariam a economia nacional. Sigaud (2004) demonstra que as usinas de produção de cana-de-açúcar, ocupadas pelos acampamen- tos do MST, nos anos 90, já tinham baixas taxas de produção. Isso demonstra que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra estava organizado para ocupar, primordialmente, as terras improduti- vas. Vale ressaltar, que os acampamentos são orga- nizados para produzir alimentos orgânicos a partir de “agricultura familiar”, modelo econômico em que as famílias produzem alimentos para subsistência, com excedente de produção limitado para troca e venda. Nesse contexto, o MST trouxe a tecnologia apropriada para ocupar terras, montar e administrar os acampamentos, tendo as ocupações dos anos 90 como marcos inaugurais do movimento. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra buscou recrutar jovens com objetivo de montar uma rede de militantes que passaram a atuar na área a serviço do movimento e de suas ocupações. Esse modelo de organização das lutas pela terra, a partir dos anos 80, passou a perceber a 105 Anotações:continuidade dos acampamentos de ocupação como meio de adquirir o reconhecimento do Estado sobre a propriedade. Isso ocorre a partir de uma série de disputas políticas e jurídicas em torno de como a propriedade foi adquirida, como os regimes de trabalho são administrados. O INCRA passou, então, a consolidar “assentamentos rurais”, reconhecendo os direitos de propriedade para muitos grupos “sem-terra” e comunidades. CIDADES E VIOLÊNCIA URBANA Os processos de urbanização do Brasil são, quase todos, iniciados por uma elite agrária — com cidades em zonas portuárias, ou industrial — que moldou as principais metrópoles modernas. O crescimento das cidades é absolutamente desigual, gerando problemas de moradia, de distribuição de condições básicas de sobrevivência como rede de esgoto, problemas de infraestrutura, mobilidade urbana e formação de guetos do crime organizado. Dessa forma Milton Santos, geógrafo que se especializou em compreender como a globalização e a modernidade afetaram as cidades brasileiras, explica: Alcançamos, neste século, a ur- ba-nização da sociedade e a ur- banização do território, depois de longo período de urbanização so- cial e territorialmente seletiva. De- pois de ser litorânea (antes e mesmo depois da mecanização do território), a urbanização brasileira se tornou praticamente generalizada a partir do 106 Anotações: terceiro terço do século XX, evolução quase contemporânea da fase atual de macrourbanização e metropoli- zação. O turbilhão demográfico e a terciarização são fatos notáveis. A urbanização se avoluma e a residên- cia dos trabalhadores agrícolas é cada vez mais urbana. Mais que a separação tradicional entre um Bra- sil urbano e um Brasil rural, há, hoje, no País, uma verdadeira distinção en- tre um Brasil urbano (incluindo áreas agrícolas) e um Brasil agrícola (in- cluindo áreas urbanas). Registra-se, todavia, uma atenuação relativa das macrocefalias, pois além das cidades milionárias desenvolvem-se cidades intermediárias ao lado de cidades locais, todas, porém, adotando um modelo geográfico de crescimento espraiado, com um tamanho desme- surado que é causa e é efeito da espe- culação (SANTOS, 1993, p. 9). Entre esses diversos problemas enumerados, talvez o mais contingente seja o aumento da violência urbana gerada por fatores estruturais da desigualdade brasileira, como o acesso aos direitos básicos (educação, alimentação, saúde, esporte e lazer). A sociedade brasileira, egressa do regime autoritário, há duas décadas, vem experimentando, pelo menos, quatro tendências: a) o crescimento da delinquência urbana, em especial 107 Anotações:dos crimes contra o patrimônio (rou- bo, extorsão mediante sequestro) e de homicídios dolosos (voluntários); b) a emergência da criminalidade or- ganizada, em particular em torno do tráfico internacional de drogas, que modifica os modelos e perfis con- vencionais da delinquência urbana e propõe problemas novos para o direito penal e para o funcionamen- to da justiça criminal; c) graves vio- lações de direitos humanos que com- prometem a consolidação da ordem política democrática; d) a explosão de conflitos nas relações intersub- jetivas, mais propriamente conflitos de vizinhança que tendem a conver- gir para desfechos fatais. Trata-se de tendências que, conquanto rela- cionadas entre si, radicam em cau- sas não necessariamente idênticas (ADORNO, 2002, p. 84). A metrópole torna-se o lugar privilegiado do capital, onde se colocam todos os recursos, para onde as pessoas migrarão em busca de trabalho, e onde, consequentemente, muitas pessoas, sem espaço nos meios de trabalho formais, realizarão uma série de atividades tidas como marginais, seja do ponto de vista das tecnologias, seja na perspectiva das leis e fiscalizações. Ao mesmo tempo, os investimentos e gastos na cidade, terão como prioridade os interesses econômicos hegemônicos: a população sem acesso aos bens, serviços e direitos sociais, permanecerá marginalizada, ampliando as crises nas cidades. 108 Anotações: Mesmo que algumas atividades comecem a crescer, persistirão a pobreza e a desigualdade, uma vez que sem investimentos, sem nivelação técnica e educacional, a população pobre terá suas condições de existência cada vez mais degradadas. A violência letal produzida intencionalmente, a circulação de armas e a facilitação de sua comercialização são desafios para as instituições democráticas do Brasil, atualmente. Mais do que meros problemas de segurança pública, a concentração de assassinatos letais em territórios urbanos demonstra como estão localizadas as ações de grupos armados e seus domínios em zonas e bairros das cidades. Seja pela constante ameaça ou mes- mo pelo uso concreto da violência, tais grupos controlam diversos tipos de negócios legais e ilegais nesses territórios, garantindo lucros eleva- dos para a sustentação e expansão de suas atividades, corroendo a insti- tucionalidade democrática em nível local e apelando para a flexibilização do monopólio legítimo da força pelo Estado. Nos territórios onde exercem ou disputam o poder com os rivais, porém, o resultado é parecido: esses grupos acabam impondo o silêncio forçado aos moradores, que pre- cisam se conformar a viver rotinas de tiroteios e de corpos amanheci- dos nas ruas, como se seus bair- ros estivessem fadados a seguir sob uma sombra eterna, inalcança- dos pelo Estado de direito e pela 109 Anotações:Justiça. (...) Quando esses grupos são mais bem estruturados,como ocorre no Rio de Janeiro, tendem a funcionar como uma espécie de governo territorial ilegal, assumindo o monopólio do uso da força em seus territórios e desenvolvendo com a população uma relação ao mesmo tempo tirânica, paternalista e clientelista. Na capital fluminense, nas centenas de bairros controlados pelas facções criminosas — Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos e os grupos para- militares — o poder político tende a ser medido pela quantidade de fuzis que tais grupos têm para se defender (MANSO e ZILLI, 2021, p. 09). A violência urbana insere-se nas relações da cidade de tal modo, que seu funcionamento, suas interações e seus modos de agir, tornam- se parte da rotina da cidade. Tiros a luz do dia, a possibilidade de furtos e assaltos nos meios de transporte públicos, as grandes ações de grupos criminosos organizados em certos períodos de tempo ao longo dos anos, dão o tom da presença cotidiana da violência nas metrópoles. As forças policiais, que deveriam atuar, estra- tegicamente, para o rastreio e contenção de grupos e sujeitos que se posicionam tiranicamente sobre certos territórios urbanos, por vezes são mais um grupo que utiliza da violência (do poder de polícia e do porte de armas de fogo) para aterrorizar a popu- lação disputando o poder local. Não só adotam uma 110 Anotações: violência policial deliberada, mais também agem como grupos criminosos organizados, ou milícias, aproveitando o status de agentes públicos. Com isso, fragilizam ainda mais a credibilidade das insti- tuições de ordem do Estado, que representam. Para Santos (1993), a cidade em si, como relação social e como materialidade, torna-se criadora de pobreza, tanto pelo modelo socioeco- nômico de que é o suporte como por sua estrutura física, que faz dos habitantes das periferias (e dos cortiços) pessoas ainda mais pobres. A pobreza não é apenas o fato do modelo socioeconômico vigen- te, mas, também, do modelo espacial. A AMAZÔNIA NO DEBATE SOCIAL A análise sobre a Amazônia brasileira quase sempre privilegia dois temas: a natureza e o que, ge- nericamente poderíamos chamar de Amazônia Ofi- cial, ou seja, a Amazônia dos Grandes Projetos. Essas abordagens, embora importantes, são limitadas. Na primeira, considera-se território apenas do ponto de vista da natureza, tornando-o inócuo, pois são as relações sociais que o constroem, ou destro- em, inventam-no e o reconstroem num processo que pressupõe conflitos, contradições e lutas dos sujeitos. Na segunda, é preciso reconhecer que o processo de transformação ocorrido na Região de- terminou novos significados para as cidades, no entanto, parte significativa da Amazônia não foi atingida por este processo o que não quer dizer que não seja influenciada por ele. Becker (2005) afirma que existem dois movimentos internacionais em torno da Amazônia. 111 Anotações:O primeiro se dá em nível do sistema financeiro, da informação, do domínio do poder efetivamente das potências; o segundo tem relação com a internacionalização dos movimentos sociais, por meio de ONGs, por exemplo: Todos os agentes sociais organizados, corporações, organizações religiosas, movimentos sociais etc., têm suas próprias territorialidades, acima e abaixo da escala do Estado, suas próprias geopolíticas, e tendem a se articular, configurando uma situação mundial bastante complexa (p. 72). O povoamento da Amazônia e seu desenvolvi- mento foram fundados a partir de um paradigma de relação entre sociedade e exploração da natureza. Essa lógica encara o desenvolvimento como linear (sempre adiante, sempre em “progresso”) assim como, encara os recursos naturais como infinitos, o que sabemos ser uma lógica equivocada. É imperativo o uso não predatório das fabulosas riquezas naturais que a Amazônia contém e também do saber das suas populações tradicionais que possuem um secular conhecimento acumulado para lidar com o trópico úmido. Já há na região resistências à apropriação indiscriminada de seus recursos e atores que lutam pelos seus direitos (idem, p. 72). Outra posição sobre a Amazônia, diferente daquela de caráter mais desenvolvimentista 112 Anotações: é a percepção de seu território como uma imensa unidade de conservação, que deve ser preservada integralmente, com vistas a assegurar a sobrevivência do planeta, devido aos danos provocados pelo desmatamento e exploração de recursos minerais sobre o clima e a biodiversidade. A natureza foi reavaliada e revalori- zada a partir de duas lógicas muito diferentes, mas que convergem para o mesmo projeto de preservação da Amazônia. A primeira lógica é a civilizatória ou cultural, que possui uma preocupação legítima com a natureza pela questão da vida, o que dá origem aos movimentos ambien- talistas. A outra lógica é a da acumu- lação, que vê a natureza como recur- so escasso e como reserva de valor para a realização de capital futuro, fundamentalmente no que tange ao uso da biodiversidade condicionada ao avanço da tecnologia. Outro recur- so de que pouco se fala, mas que já é fundamental, é a água como fonte de vida e de energia em razão dos isóto- pos de hidrogênio, questão teórica ainda não solucionada, mas que vem sendo pesquisada em muitos países, especialmente na Alemanha e nos EUA (BECKER, 2005, p. 74). Uma postura de oposição à preservação da Amazônia são os avanços e investimentos em maquinários avançados para o agronegócio. Com o crescimento da produção e o aumento da 113 Anotações:produtividade da soja, a terra não é mais ocupada como reserva de valor, como foi na época da fronteira anterior. Agora o que sucede é o uso produtivo da terra. Acrescem mudanças também na pecuária, principalmente no Sudeste do Pará e no Mato Grosso, onde ocorrem melhorias com respeito às pastagens, aos rebanhos e à indústria de couro e de leite. Mudanças bastante significativas em termos econômicos. As redes e cidades permitem a expansão dessa área econômica avançada que é chamada de “arco de fogo”, ou do desmatamento ou “de terras degradadas”, porque foi onde se expandiu a fronteira e o desmatamento. Como proposta diante dessas posturas, quase sempre externas, sobre a Amazônia, Becker (2005) sugere que: Se a Amazônia é efetivamente uma região, então há que se substituir a política de ocupação por uma políti- ca de consolidação do desenvolvi- mento. Uma política de ocupação não tem mais cabimento, porque a região já está ocupada. As florestas que restaram devem permanecer com seus habitantes. É necessário articular os diferentes projetos e os diversos interesses e conflitos que incidem na região (p. 83). Oliveira (2004) argumentava que as taxas de crescimento da população urbana da Amazônia, (Região Norte) na última década foram superiores à média nacional, mesmo assim, o grau de urbanização é o menor do Brasil, com distribuição desigual da população, concentrada principalmente 114 Anotações: nas capitais. Com exceção do Pará, nenhum dos demais Estados da Região apresentava em 1991, outras cidades que não as capitais com mais de 100 mil habitantes. No caso apresentado por Oliveira (2004), a cidade de Manaus, capital do Amazonas, concentrava até os anos 2000 quase a metade da população de todo o Estado. Atualmente, esses dados mantêm praticamente o mesmo padrão, ou seja, Manaus é a capital mais populosa da região Norte do Brasil e concentra 52,8% da população do Estado do Amazonas (IBGE, 2021). Com mais da metade da população amazônica residindo nas cidades é, especialmente, nas pequenas cidades, que os problemas urbanos são percebidos de forma mais intensa, com as ausências de políticas públicas e desigualdades amplificadas. 115 Filmes para conferir: Cidade de Deus (Fernando Meireles, 2002): através de diferentes linhas narrativas, o filme demonstra a formação das favelas no Rio de Janei- ro, a violência urbanadecorrente da desigualdade social e do racismo. Auto de Resistência (Natasha Neri e Lula Carvalho, 2019): no Rio de Janeiro, mais de 16.000 inocentes foram mortos em operações policiais nos últimos vinte anos, todos sob o argumento policial de legítima defesa. Este filme segue as mães das vítimas de violência policial enquanto elas lutam por justiça contra um sistema corrupto e brutal. Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984): em 1964, um filme sobre a vida de João Pedro Teixeira, líder da liga campone- sa de Sapé, Pernambuco, começa a ser roda- do, com a reconstituição ficcional da ação política que levou ao assassinato. As filmagens são inter- rompidas pelo golpe militar de 1964, com captura de alguns rolos de filmes e perseguição à viúva de João Pedro, Elisa- beth Teixeira. Dezessete anos depois, em 1981, Eduardo Coutinho retoma o projeto em busca de Elisa- beth Teixeira e outros participantes do filme interrompido. 116 Para seguir: Amazônia Real (amazoniareal.com.br): edita- do por Elaíze Farias e Kátia Brasil, o portal jornalísti- co tem foco em grandes coberturas sobre a região Norte do Brasil, especialmente nos temas “meio ambiente”, “povos indígenas” e “cultura”. Vencedo- ras dos prêmios “Rei da Espanha de Meio de Co- municação de Maior Destaque da Ibero-América” (2019), Jornalismo Multimídia do 41º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (2019), e prê- mio especial da Associação Brasileira de Jornalis- mo Investigativo – Abraji (2021). 117 Anotações: 118 Anotações: U ni da de 4 Videoaula 1 Videoaula 3 Videoaula 2 Videoaula 4 120 Anotações: 121 DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA As consequências da Segunda Guer- ra deixaram a Europa devastada. Milhões de mortos, muitas pessoas em situação de miséria e fome, e milhares de civis que tiveram algum direito violado por ataques, ações ou crimes de guerra. A Declaração Universal dos Direitos Humanos surge como uma resposta global a essas vio- lações, principalmente o extermínio de ju- deus, negros, homossexuais e outras mi- norias, durante a Segunda Guerra Mundial. DESIGUALDADES SOCIAIS E DIREITOS HUMANOS 122 Anotações: Representantes de 50 países reuniram-se para elaborar um organismo mundial que visava a garantir a paz e o respeito entre os povos, que viria a ser a Organização das Nações Unidas (ONU). A primeira ação elaborada foi a formação de uma Comissão de Direitos Humanos da ONU, que ficaria responsável pela redação de um documento prescritivo para listar todos os direitos fundamentais dos seres humanos. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi concluída e aprovada durante a Assembleia Geral da ONU naquele mesmo ano. Atualmente, 193 países são signatários da ONU. Isso significa que, entre outras coisas, eles devem garantir em seus territórios o respeito aos direitos básicos dos cidadãos. Não há uma maneira expressa e objetiva da organização fiscalizar e regular o cumprimento dos Direitos Humanos, mas as legislações da maioria dos países ocidentais democráticos, bem como seus sistemas judiciários, recorrem aos artigos expressos no documento para formularem seus textos legais e aplicarem as decisões e medidas jurídicas. Os direitos fundamentais da pessoa humana são reconhecidos e protegidos em todos os Es- tados, embora existam algumas variações quan- to à enumeração desses direitos e à extensão de cada um deles, bem como quanto à forma de protegê-los. Esses direitos não dependem da na- cionalidade ou cidadania, sendo assegurados a qualquer pessoa. Entretanto, podem existir cer- tos meios de proteção que as leis de um Estado criam especialmente para os seus cidadãos. As Constituições, geralmente, referem-se a esses direitos como “direitos individuais”, o que 123 Anotações:não significa que eles possam ser exercidos pelo indivíduo sem responsabilidade social. Na Consti- tuição brasileira existe um capítulo especial sobre os direitos individuais, dispondo-se que eles são assegurados aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Brasil. Como se trata de direitos fundamentais da pessoa humana, a interpretação dos dispositivos da Constituição, em caso de dúvi- da, deve ser feita sempre do modo que for mais fa- vorável à proteção das pessoas. Assim, por exemplo, um estrangeiro que esteja apenas de passagem pelo território, sem a intenção de aí residir, tam- bém tem direito à mesma proteção. A estreita relação entre paz e direitos hu- manos, assim como entre paz e desenvolvimento, já foi reconhecida pela Carta das Nações Unidas que, em seu preâmbulo, declara: “Nós, os povos das Nações Unidas, determinados a preservar as próximas gerações do flagelo da guerra (...) e a reafirmar a fé nos direitos humanos fundamen- tais...”. O artigo 55 acrescenta, além disso a fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessários para as relações pacíficas entre os Estados. As Nações Unidas deverão promover as condições para o progresso e o desenvolvimento econômico e social e, ao mesmo tempo, o respeito universal — e a observância — dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Debates: Direito à Vida: relativamente ao direito à vida, existe um artigo da Constituição afirmando expressamente que ela é um direito inviolável, que 124 Anotações: ninguém tem o direito de tirar de outra pessoa. Além disso, o reconhecimento e a proteção do direito à vida estão expressos no conjunto dos direitos e garantias. Basta assinalar que a própria Constituição prevê o julgamento pelo júri dos crimes dolosos contra a vida, estando aí contida a afirmação de que os atentados contra a vida humana são considerados crimes. Há também expressa proibição da pena de morte, com a ressalva de que ela poderá ser estabelecida por lei apenas para punir crimes praticados durante guerra externa formalmente declarada. Assim, nem mesmo os criminosos mais violentos e cruéis perdem o direito à vida. Mas, ainda que não houvesse na Constituição aqueles dispositivos, o direito à vida estaria implícito, pois, sem ele, nem o Estado nem a sociedade humana sobreviveriam. Direito à igualdade: a igualdade mais proclamada e aparentemente mais assegurada é a igualdade de todos perante a lei. Em princípio, as obrigações legais são dirigidas a todos, sem qualquer diferenciação, além do que a lei deve ser aplicada de maneira igual para todos. Pelo princípio da igualdade jurídica, acolhido pela Constituição brasileira, será inconstitucional uma lei que conceda privilégios em relação a direitos e obrigações. Mas por força de vários fatores, como a condição social e econômica, os preconceitos, as preferências e até os interesses dos aplicadores da lei, não existe igualdade na aplicação das leis. São também expressões do direito à igualdade a garantia de direitos iguais para homens e mulheres e a proibição de discriminações que ofendam os direitos e a liberdade das pessoas. 125 Anotações:Os Direitos Humanos estão quase sempre sendo ampliados. Esse processo de ampliação dos direitos gera inúmeros debates sociais. Um exemplo de debate em torno de Direitos Humanos é a legalização do Aborto. Atualmente, no Brasil, o aborto legal só pode ocorrer em casos de risco à vida da gestante ou em casos de estupro. Outros países da América Latina, como Argentina, Chile e Colômbia, já preveem o direito ao aborto nos meses iniciais da gestação, conferindo às mulheres o direito de optar ou não pela maternidade. Rita Segato (2006), antropóloga Argentina que trabalhou por muitos anos no Brasil, argumenta que esses movimentos em torno de novas reivindicações e reconhecimentos de direitos da pessoa humana, podem ser chamados de “ética da insatisfação”. Tal postura pode ser encontrada entre os cidadãos de qualquer nação e nos membros da mais simples e coesa das comunidades morais, o que constitui o fundamento dos direitos humanos. É por meio das insatisfações de certos grupos, principalmente os tidos comosubalternos em relação a outros, que as mudanças legais, em torno da justiça, do reconhecimento de novos valores sociais, podem ser inscritas, inclusive na lei. GÊNERO: DESIGUALDADES E VIOLÊNCIAS As violências de gênero começam a ser problematizadas a partir dos movimentos de mulheres nos anos de 1930. No entanto, a maior evidência sobre o problema da violência de gênero (na época chamada especificamente de “violência 126 Anotações: contra a mulher”) tem início nos anos 60. Desde então, tanto a militância feminista, quanto as intelectuais, vêm discutindo e evidenciando as diferentes formas de violência contra a mulher. O período dos anos 60 a 80 é marcado pelo uso da categoria “mulher”, e teve como fundamento teórico, as noções de “estudos das mulheres”, “universalização dos problemas da mulher”, e o combate à opressão universal das mulheres pelo patriarcado. No Brasil, a abordagem das teorias do “patriarcado” e da “opressão universal das mulheres” é iniciada por Heleieth Saffioti, no fim dos anos 60, com a defesa de sua tese “A mulher na sociedade de classes”. Essa abordagem preocupava-se em como analisar a opressão da mulher nas sociedades patriarcais, e foi marcada pela relação com o conceito de “classe” (GROSSI, 2000). Após esse período, a categoria “patriarcado” entra em desuso a partir das críticas feitas à universalização das mulheres, o acentuamento teórico das diferenças entre mulheres e o destaque para os diferentes níveis de “opressão”. A categoria “gênero”, formulada a partir das relações entre homens e mulheres, além da relação entre pessoas do mesmo gênero (mulheres e mulheres, homens e homens), passa a ser a mais adequada para falar das relações, desigualdades e poder entre homens e mulheres. Usamos o conceito de Joan Scott, para o qual, gênero refere-se ao: Discurso sobre a diferença dos sexos. Ele não remete apenas a ideias, mas também a instituições, a estruturas, a práticas cotidianas e a rituais, ou seja, 127 Anotações:a tudo aquilo que constitui as relações sociais. O discurso é um instrumento de organização do mundo, mesmo se ele não é anterior à organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primária, mas constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é a causa originária a partir da qual a organização social poderia ter derivado; ela é mais uma estrutura social movediça que deve ser ela mesma analisada em seus diferentes contextos históricos. (SCOTT, 1998, p. 88). Ao mesmo tempo em que nega a universali- dade da opressão das mulheres pelos homens, pro- pondo uma análise que leva em conta os diferentes contextos históricos e culturais das diferentes relações de gênero, esse conceito possibilita uma nova perspectiva sobre as violências de gênero, ajudando a perceber as subjetividades dos dois eixos da relação (masculino e feminino), propondo que ambos têm estratégias de subversão da igual- dade, que também passam por relações de violência. Um dos principais problemas relacionados à prática masculina é o acesso à violência. Em nos- sa sociedade, espera-se dos homens que usem a violência em momentos de fazer valer sua de- cisão, em defesa de suas vontades. No Brasil, isso é demonstrado pela nossa história legal, a história das leis, que até os anos 2000 ainda admitiam a “defesa da honra” como justificativa masculina para a resolução de conflitos domésticos. Após a aprovação da Lei 11.340, Lei Maria da Penha, ocor- 128 Anotações: reram alguns avanços nas políticas públicas para a proteção e criminalização da violência doméstica. Esses avanços seguem em outras leis, como as leis que tipificam crimes sexuais, modificadas em 2008, 2012 e 2014, passando a reconhecer estu- pros como sexo sem consentimento, com ou sem penetração, estupro de vulnerável, além de dar mais crédito ao depoimento das vítimas. Figura 7 - Atos de 8 de Março, dia internacional das mulheres, na Avenida Paulista (SP), 2022 Fonte: Google. Contudo, mesmo com os avanços das leis (ainda que sejam tardios) os problemas relacionados à violência de gênero, cujo eixo vítima e agressor é, via de regra, ocupado por mulheres/crianças e homens em oposição, ainda são gigantescos. Eles passam primeiro pela ineficácia na aplicação das leis e na distribuição dos recursos para os órgãos de proteção. Passam também pela insensibilização dos agentes que lidam com esse problema social. 129 Anotações:Esbarram na inexistência de uma política de não violência voltada para homens. Tipos de violência de gênero: 1. Violência doméstica; 2. Violência sexual; 3. Abuso sexual; 4. Assédio sexual; 5. Exploração sexual; 6. Feminicídio; 7. Violência Psicológica. Corrêa (1983) inicia seu livro com alguns relatos e indicações sobre “associações femininas” e formas de organização feminista, até os anos 70, época em que escreveu e pesquisou sobre crimes contra mulheres nas relações íntimas. Seu objeto de estudo são casos de homicídio entre casais — com relações de intimidade — ocorridos entre 1952 e 1972. Como método da pesquisa, realizou levantamento documental dos processos, assistiu alguns julgamentos e realizou entrevistas informais. Do levantamento realizado, Corrêa selecionou 30 processos, e subdividiu a dissertação a partir dos grandes temas que surgiram desse levantamento. Nas defesas dos criminosos e no acolhi- mento jurídico dessas argumentações, uma forte moralização do gênero (papéis de gênero, papéis de homens e mulheres, apesar do desuso dos ter- mos). A descaracterização da vítima, através de argumentos estritamente morais, elaborados pela defesa, ocorre quase que como uma fábula. Em um dos casos apresentados no trabalho de Corrêa, uma mulher, casada por 16 anos, foi assassinada 130 Anotações: pelo marido, sob argumentos de que ela “era vaido- sa demais para uma mulher de família”, e que cer- tamente “tinha um amante”. Sob suspeita de que estava sendo traído, com base nessas argumen- tações, ele executou a mulher quase em frente a filha. Os argumentos da suspeita do marido foram levados ao tribunal do júri, e a defesa investiu for- temente em desmoralizar a conduta da vítima, as- sociando sua família à prostituição, sua vaidade “anormal” a uma suposta traição; o fato de ela tra- balhar fora ajudou a sustentar a ideia de que ela era uma péssima mãe. O assassino foi absolvido pelo júri, que acatou a motivação do crime como “legítima defesa da honra”. Isso ocorreu entre os anos 60, mas o padrão de desmoralização da víti- ma, perdura até hoje, recebendo mais resistência em casos que se tornam emblemáticos, dadas al- gumas transformações sociais provocadas pelo movimento feminista no Brasil. Contudo, essas transformações não estão cristalizadas na socie- dade, muito menos no aparato policial e sistema judiciário brasileiro. Os casos de estupro são continuamente moralizados, em todas as esferas sociais, da família até a mídia. A vida da vítima, já fragilizada pela violência e exposição das agressões e intimidades, é esmiuçada, para que todos possam dar sua legitimidade sobre a violência. E foi, se não foi, “por que foi?”. Outro ponto importante das reflexões de Corrêa (1983) sobre os casos analisados em sua dissertação, dos anos 70: “os atores jurídicos usam os poderes que a lei lhes confere para 131 Anotações:reforçar uma ordenação existente na sociedade, obscurecendo-a, ao agir como se ela não existisse”. As performatividades do judiciário e as decisões decorrentes delas, não são isentas, mas são investidas de verdade, por meio da fábula espetacular construída pela defesa e acatada pelo júri ou juiz. Corrêa (1983) adverte sobre a diferença entre a lei (escrita) no Brasil, que nem sempre corresponde à norma social não escrita, indicando que a justiça não é isenta, mas machista, branca, heterossexual, burguesa, e manipula, através do poder da lei, a vida social, moralizando a vida. Por fim, devemos lembrar as proximidadese identificações sociais possíveis entre os homens que julgam e o homem acusado. Já sabemos, pela ampla discussão que existe sobre estupro e estupradores no Brasil, que as punições são mais rígidas para homens em posições sociais não hegemônicas. Corrêa (1983) aponta que, na comparação entre decisões sobre assassinatos e tentativas de assassinatos de mulheres, as penas mais pesadas recaíam sobre homens em posições subalternas (negros, “crioulos”, desempregados, tidos como desocupados). 132 Patriarcado O termo “Patriarcado” foi designado pela primeira vez para tratar de sociedades cuja cen- tralidade do poder (a transmissão de herança, parentesco, moral, costumes) era coloca- da a partir de um homem. Em algumas sociedades, como na região do Medi- terrâneo (Portugal, Itália, Espanha) essa fi gura era representada pelo pai ou pelo avô de uma grande família. Esse padrão se repete em diferentes so- ciedades, seja pelo seu caráter estrutural (e universalista), seja pela colonização. Nas Américas, por exemplo, é comum verifi carmos uma estrutura familiar patriarcal, nos mesmos moldes das estruturas famili- ares de países da região do Mediterrâneo. Com o avanço dos estudos femi- nistas, a noção de patriarcado se am- plia para caracterizar um sistema de poder e dominação masculina, que subjuga as mulheres, limitando suas possibilidades de acesso ao poder, estabelecendo a domesticidade como espaço feminino, negando às mulheres direitos sobre sua sexualidade e repro- dução. No Brasil, o patriarcado é caracterizado por Gilberto Frey- re (2006) a partir da Casa-Grande, onde o senhor da casa, teria sob primeira vez para tratar de sociedades cuja cen- tralidade do poder (a transmissão de herança, parentesco, moral, costumes) era coloca- da a partir de um homem. Em algumas sociedades, como na região do Medi- terrâneo (Portugal, Itália, Espanha) essa fi gura era representada pelo pai ou pelo avô de uma grande família. Esse padrão se repete em diferentes so- ciedades, seja pelo seu caráter estrutural (e universalista), seja pela colonização. Nas Américas, por exemplo, é comum verifi carmos uma estrutura familiar patriarcal, nos mesmos moldes das estruturas famili- ares de países da região do Mediterrâneo. Com o avanço dos estudos femi- nistas, a noção de patriarcado se am- plia para caracterizar um sistema de poder e dominação masculina, que subjuga as mulheres, limitando suas possibilidades de acesso ao poder, estabelecendo a domesticidade como espaço feminino, negando às mulheres direitos sobre sua sexualidade e repro- dução. No Brasil, o patriarcado é caracterizado por Gilberto Frey- re (2006) a partir da Casa-Grande, onde o senhor da casa, teria sob 133 Anotações:seu poder, tanto a sua própria extensão familiar (es- posa, filhos, netos, etc), quanto todos os habitantes da sua propriedade, inclusive a Senzala. Esse esquema familiar foi bastante criticado por autoras feministas, sob o argumento de que ao reconhecer a família patriarcal como o modelo familiar do Brasil, deixavam-se de lado todas as diferentes configurações familiares, inclusive dos negros escravizados nas senzalas, que tinham suas próprias famílias e relações. Atualmente, as feministas usam a expressão “lutar contra o sistema patriarcal”, que significa a luta contra a permanência do poder familiar e social na mão dos homens e contra a manutenção dos papéis sociais de subserviência atribuídos às mulheres. 134 Anotações: Masculinidades Em primeiro lugar, devemos deixar claro o que estamos dizendo quando falamos em “masculini- dades”. À primeira vista, o termo “masculinidades” faz uma referência direta ao “masculino”. Com isso, nós dispomos de um conjunto de valores sobre a ideia do “masculino”. A questão, portanto, é: o que nós sabemos sobre o masculino? Que ideias vêm à nossa mente quando pensamos neste termo? Geralmente, a noção de “masculino” está associada aos homens. Podemos associá-la ao sexo mascu- lino, ao gênero masculino (em oposição ao gênero feminino), podemos associá-la à força, ao vigor, à ideia de “atividade”, autoridade, virilidade, poder. Os atributos que, geralmente, vêm à mente quando pensamos no termo “masculinidade” não são acessíveis apenas aos homens. As mulheres também podem exercer força, vigor, “atividade”, autoridade, virilidade e poder. Então, o conceito de masculinidade trabalha com a ilusão daquilo que pensamos ser atributos exclusivamente masculinos — atributos dos homens. Connell (1995, 2013) define masculinidade: Uma configuração de prática em torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero. O autor ainda afirma que existe um modelo hegemônico de masculinidade, tão predominante que muitos creem que as características e condutas associadas ao mesmo sejam naturais (p. 188). 135 Anotações:Deste modo, a autora formula o conceito de “masculinidade” a partir de seu estudo dos comportamentos de meninos em escolas australianas. Ela buscava entender como os meninos reproduziam os valores sociais sobre ser homem relacionando sua pesquisa, na época, com a teoria produzida por Pierre Bourdieu, sociólogo francês que, entre outras coisas, dedicou-se a compreender a relação entre prática social, estrutura e símbolo. As noções sobre o que é “ser homem” começam a se tornar um problema diante das lutas históricas das mulheres por igualdade nos direitos civis. Elas têm repercussão na França e EUA, com eclosão mundial a partir dos anos 1960. A luta das mulheres por direitos civis (o voto, a jornada de trabalho, a reprodução sexual e doméstica, a violência) explicita uma distinção entre os gêneros. Mostra que existe uma desigualdade social entre direitos de homens e mulheres. A partir de então, vão sendo desnaturalizadas as noções sobre o que são papéis masculinos e femininos. Isso embaralha as concepções tidas como naturais relativas ao significado do gênero e do tipo de relação que se queria. Os homens não “precisaram” pensar nisso, pois “ser homem” parecia algo natural e confortável. A partir do movimento das mulheres, principalmente em meados dos anos 70, muitos homens começaram a acompanhar mulheres em suas reivindicações. E isso faz com que eles próprios comecem a refletir sobre sua masculinidade, descobrindo novas formas de “ser homem” que não sejam associadas à ideia do masculino viril, controlador, violento, etc. 136 Anotações: Um dos grandes problemas do mundo, em relação à violência contra as mulheres e a desigualdade de gênero, é a ausência de uma política de gênero. A questão que nos interessa é a dificuldade que há em fazer esse esforço de construção de uma “masculinidade” não violenta. Pois, homens e mulheres, somos informados desde muito cedo sobre os significados de “ser homem”, e desde então, afastados de todos os riscos ao padrão de masculinidade. Connell (1995) criou duas categorias para definir tipos de masculinidade: 1. Masculinidade hegemônica: é o padrão idealizado de masculinidade em uma so- ciedade. Como algo idealizado, é também inatingível. Na sociedade ocidental, esse padrão pode ser representado pelas ideias de “homem viril”, heterossexual, “chefe de família”, etc; 2. Masculinidades subalternas: são as mas- culinidades tidas como desviantes. Na sociedade ocidental, exemplos dessas masculinidades são as homossexuais, as paternidades afetivas, entre outros es- forços de homens contra as práticas he- gemônicas de masculinidade. MIGRAÇÃO E FRONTEIRAS Quando falamos em “fronteiras,” geralmente, os significados que vêm à mente são alusivos às divisões físicas, geográficas e espaciais em torno do pertencimento a um certo lugar. Atravessar uma fronteira, nesse sentido elementar, pode significar o afastamento de um lugar ao qual se pertence, assim 137 Anotações:como a chegada a um lugar estranho. Nas Ciências Sociais, a noção de fronteira pode ser concebida também a partir da ideia de interstícioentre formas de ser no mundo, identidades, compreensões sobre gênero, família, raça, pertencimento e moralidades. A migração pode ser caracterizada a partir da mobilidade entre fronteiras, carregando consigo não apenas o afastamento espacial/geográfico, mas também valores, cultura, estranhamentos e estigmas. Se nos debruçarmos para compreender “corpos em movimento” como os dos refugiados, podemos notar que existem diversas formas de criação e estabelecimento de fronteiras. Figura 8 - Posto de Migração entre Peru e Equador Fonte: Foto de Cris Bouroncle, AFP, 2018. A fronteira, nos casos de acolhimento, de re- fugiados é marcada pela presença de forte apara- to estatal e militar, e sobre os sujeitos que buscam refúgio humanitário, geralmente, pairam diver- sas dúvidas que devem ser sanadas por meio do 138 Anotações: preenchimento de formulários das agências es- tatais e organismos internacionais. Fassin (2005) nos ajuda a compreender essas práticas estatais de acolhimento de refugiados, como controle das fronteiras, assim como demarcação de identidades e fluxos migratórios. O conceito de “governamen- talidade”, articula as noções de “fronteiras sociais” e “fronteiras físicas”, demonstrando que, se por um lado, concede-se ao migrante um visto por “razões humanitárias”, permitindo-lhes a inserção no mer- cado de trabalho, por outro, limitam-se o acesso à plena cidadania, requerendo a eles, uma série de comprovantes de vínculos de trabalho ou estudo no país. Tais aspectos foram notados por Silva (2016), ao pesquisar a presença de haitianos em Manaus, acolhidos pelos processos de ajuda humanitária. No caso estudado por Silva (2016), dos pontos de vista dos manauaras sobre os migrantes, há uma percepção generalizada de que a presença dos haitianos é boa, na medida em que são percebidos como “trabalhadores e educados, que não se envolvem com a criminalidade” e, ao senso comum, acrescenta-se a percepção de que “a cidade está mais colorida” (uma vez que haitianos são predominantemente, negros/pretos). Apesar dessa presença cotidiana nas relações com a cidade, o autor percebe a ausência de políticas públicas que desenvolvam relações socioculturais entre os migrantes e os cidadãos nacionais. Isso cria outro estigma em torno dos migrantes, pois a diversidade não é encarada como troca cultural, mas como mera exotização da diferença física e cultural. 139 Anotações:A migração tem implicações econômi- cas, sociais e culturais, tanto no local de partida quanto no de chegada ou de passagem. Se do ponto de vista econômico a integração se dá de al- guma forma via mercado de trabalho formal ou informal, o mesmo não se pode dizer do ponto de vista social e cultural, já que a condição de imigran- te, considerado como “trabalhador temporário”, impõe uma série de limites, seja no exercício da ci- dadania política, seja no âmbito das trocas culturais, em razão de pre- conceitos que poderão enfrentar (SILVA, 2016, p. 147). Aspectos subjetivos da noção de fronteira po- dem ser compreendidos por meio da obra de Veena Das (2020), uma antropóloga indiana que se dedicou a estudar violências cometidas contra mulheres du- rante a guerra da Partição, entre Índia e Paquistão. No contexto dessa guerra, mulheres indianas foram sequestradas, forçadas ao casamento ou violenta- das por soldados paquistaneses. Para os indianos, principalmente das zonas rurais, a sexualidade das mulheres confere honra a suas famílias, principal- mente aos homens. Assim, os raptos de mulheres nesse contexto, provocaram longas repercussões subjetivas para a reinserção delas nas suas famílias e sociedades. A autora examina através dos relatos de mulheres sobreviventes dos raptos da guerra da Partição e reenquadradas nos sistemas de honra e casamento indiano, como cada uma descreve os 140 Anotações: processos de “divisão” subjetiva, como silenciam em torno das violências, do rapto em si mesmo, ou dos novos casamentos. O caso de Asha, é uma das descrições/conversas emblemáticas da autora sobre a temática. Asha, tendo enviuvado jovem, no seu caso, o potencial para desordens do desejo surgiu dentro da família, depois das rupturas brutais da Partição. Envolveu-se em várias traições, quebrando as regras correntes da viuvez, mas recusando-se a viver em má-fé, movendo-se através de suas intrincadas relações com as mulheres de sua rede familiar, quase forçando os outros a reconhecerem a singularidade de seu ser. A via de saída do “conhecimento venenoso” não foi uma ascensão para a santidade ou a renúncia; foi uma queda em direção a um cotidiano diferente.5 Todos os dias eu tentava ser útil. Estava dividida entre a lealdade a meu marido morto, sua irmã, que eu amara muito, e os novos tipos de necessidade que pareciam brotar da possibilidade de uma nova relação. Apesar de repudiada, tanto por sua família de origem, como por sua família conjugal, por ter quebrado o tabu de casta alta quanto a um segundo casamento, ela continuou tentando refazer seus laços rompidos. Uma vez reconhecido o seu ser sexual, nos modos novos como passaram a vê-la seus afins masculinos, ela teve de fazer uma escolha. Ou assumia uma relação clandestina, ou aceitava o 5 DAS, Veena. Vidas e Palavras - a violência e sua descida ao ordiná- rio. Ed. UNIFESP, 2020. 141 Anotações:próprio público e até colocava em risco a honra da família, por uma nova definição de si mesma que prometia uma certa integridade, embora invia- bilizasse os projetos de vida que tinha formulado anteriormente para si mesma. No processo dessa decisão, o self pode ter-se fragmentado radical- mente e se tornado fugitivo, mas que foi descrito é uma espécie de operação complexa que se tor- na evidente, não necessariamente no momento da violência, mas nos anos de trabalho paciente ao longo dos quais Asha e a irmã de seu primeiro marido reataram os laços rompidos.6 Das (2020) argumenta que as violências mar- cam “limites” (fronteiras), pois esgotam nossa ca- pacidade de representar os fatos do horror. Fazem com que perguntemos “como seres humanos po- dem ter sido capazes de atos tão hediondos”, como os crimes de guerra, as violações indescritíveis das invasões coloniais, as cenas cotidianas de violência familiar e estupros. A imagem do estado de alerta na ocorrência da violência, da capaci- dade de resposta onde quer que ocorra na teia da vida, nos leva a per- guntar se os atos de violência são transparentes. Como se pode expres- sar a relação entre a possibilidade e a ocorrência, e mais ainda, entre o factual e o eventual, se a violência, quando acontece de modo dramáti- co, encerra uma relação com o que 6 Idem. 142 Anotações: está acontecendo de forma repetida e não-melodramática, como dizê-lo, não numa narrativa única, mas na forma de um texto que é constante- mente revisado, revisto e acrescido de comentários (DAS, 2020, p. 118). A partir das diferentes perspectivas apresen- tadas sobre a noção de fronteira, podemos com- preender como essa noção se expande por meio das experiências sociais que os grupos e sujeitos têm sobre os limites espaciais; como as políticas migratórias e de acolhimento de refugiados pro- duzem tensões a partir das diferenças de origem; e como corpos e subjetividades são marcadas a partir das dores geradas por violências em contex- tos de tensões geopolíticas, levando à produção de fronteiras/rupturas emocionais. PODER E SUBALTERNIDADES De um ponto de vista mais amplo, o conceito de poder é definido por Bobbio (1995 apud SILVA, 2001, p. 128) como “a capacidade ou possibilidade de agir, de produzir efeitos’’. Tanto pode ser referida a indivíduos e a grupos humanos como a objetos ou a fenômenos naturais. Assim, para o autor, o Poder pode ser entendido, entre outras definições, como “poder social”. Este tipo de poder diz respeito à vida dos seres humanos em sociedade, ou seja, trata-se das relações sociais. Portanto, designa capacidadede ação, como forma de determinação de um indivíduo sobre o outro. De tal modo o Poder, nessa concepção social, não é algo que se possui, mas uma relação que se estabelece socialmente (SILVA, 143 Anotações:2001). Diversos teóricos nas Ciências Sociais se desdobraram sobre o conceito de Poder. Aqui restringimos sua discussão ao debate promovido por Michel Foucault, filósofo francês que se dedicou a investigar diferentes aspectos da dominação, do poder, da sexualidade, das instituições de controle e do Estado. Para Foucault, ao contrário de outros analis- tas, principalmente marxistas, poder não se esta- belece como uma via de mão única, como se per- cebe, por exemplo, no poder econômico. Para o filósofo, o poder é exercitado de forma relacional e em microrrelações. O conceito de poder é usa- do como instrumento de interpretação social e as “práticas sociais” ou “relações de poder” são o cen- tro nervoso de suas análises (SILVA, 2001). Como capilaridades de microrrelações, o Poder em Foucault deve ser entendido: 1. Como algo produtivo, como saber, e, portanto, não somente repressivo, mas também pedagógico; 2. Uma relação que se estabelece entre indivíduos, ao invés de um objeto estático e transferível; 3. Não se estabelece em um só sentido (de cima para baixo) nem deve ser compreendido unilateralmente. Algumas críticas foram feitas à concepção de poder concebida por Foucault, principalmente em torno das microrrelações que estabeleceriam o poder. Spivak, filósofa e ensaísta indiana destacada dos estudos “pós-coloniais”, discorda de Foucault sobre a ideia de poder como resultado de uma teia 144 Anotações: de relações, argumentando que há sujeitos que são completamente alijados do poder: os subalternos. Em seu ensaio “Pode o subalterno falar?”, Spivak (1996) apresenta argumentos do ponto de vista não-ocidental sobre a ausência completa da capacidade de dizer algo e ser ouvida, por sujeitos, instituições e posições que ocupam o poder. Para ilustrar seus argumentos, a autora apresenta três exemplos na história indiana, em que tentativas de estabelecer um diálogo com o poder ou ocupar o poder, foram completamente silenciados ou assimilados pelas forças que de fato ocupam e detém o poder: [1] a maneira como a educação in- diana foi pensada e instituída pelos colonizadores britânicos, voltada a formar uma classe de indianos ‘de sangue e cor’ mas ingleses ‘no gosto, na moral e no intelecto’, com o obje- tivo de que esses servissem como tradutores e intérpretes na mediação entre os governantes europeus e os governados indianos; [2] a manei- ra como o ritual hindu de sacrifício das viúvas foi compreendido histori- camente tanto da perspectiva dos britânicos (que o aboliram acreditan- do que protegiam as mulheres de tal violência selvagem), quanto da dos indianos nativos (que defendiam sua manutenção argumentando que esse era o desejo de tais mulheres), mas nunca da perspectiva das próprias viúvas envolvidas; [3] o caso de Bhu- vaneswari Bhaduri, jovem de 16 ou 17 145 Anotações:anos envolvida na luta armada pela in- dependência da Índia, e que se enforcou em Calcutá em 1926 por não conseguir realizar um assassinato político ao qual foi incumbida. Para que sua morte não fosse diagnosticada como ligada a uma paixão ilegítima da qual teria re- sultado uma gravidez, Bhuvaneswari esperou sua menstruação para com- eter o suicídio. Mesmo assim, seu ato foi traduzido pelos familiares e intelec- tuais como um caso de amor ilícito, e somente tomou seu sentido real a par- tir do discurso dos líderes e partici- pantes masculinos do movimento pela independência (SPIVAK, 1996 apud FREITAS, 2020, p. 34). O argumento de Spivak (1996) demonstra a armadilha que acaba por retirar a capacidade de agência dessas mulheres, incidindo sobre elas a subalternidade. Elas não são ouvidas pelos sujeitos em posições hegemônicas, são subjugadas pelas normas do patriarcado, que impõe às mulheres indianas a autonegação, ou ainda, são mulheres narradas como tendo permitido (cedido) à “salvação” do império britânico. Em seu argumento final, a autora afirma que, há sujeitos em posições de subalternidade, cuja voz é negada apesar de seus esforços, e, portanto, “não podem falar”. 146 Anotações: ESTADO E INTERVENÇÃO SOCIAL A noção de Estado perpassa grande parte dos debates em Sociologia e Antropologia, pois a sua esfera e das políticas públicas são os meios pelos quais as intervenções sobre as sociedades acontecem. Nesse sentido, o Estado atua em diferentes frentes: como um espaço a ser ocupado pelas minorias sociais, como lugar de reivindicação de reconhecimento de direitos sociais, como lugar/agente responsável pela implementação das leis e da repressão. Essas perspectivas em torno do Estado são adotadas de modo diferentes por distintos autores e autoras, uns com ênfase nos processos legais e repressivos, outros com foco nas lutas de movimentos sociais contra repressões (de Estado, de outros grupos sociais hegemônicos, etc.) e pelo reconhecimento de direitos. Nesse sentido, é importante compreender como o Estado atua para a produção de pro- gramas e projetos sociais, sendo, portanto, uma esfera de controle e intervenção social. Tor- na-se importante aqui ressaltar a diferenciação entre Estado e governo. Numa perspectiva da promoção de direitos e políticas sociais, podemos considerar o Estado como conjunto de instituições permanentes. São os órgãos legislativos, os tri- bunais, as instituições de assistência social, entre outras que são consolidadas (a partir de orientações constitucionais), e que possibilitam ações de governo. O Governo, por sua vez, pode ser compreendido como um conjunto de pro- gramas sociais elaborados a partir de sujeitos eleitos pela sociedade civil, ou selecionados pe- los poderes que ocupam o Estado. 147 Anotações:É dos governos a responsabilidade pela implementação de políticas públicas a partir de ações do Estado. Governar adquire o sentido de implementar um projeto político, validado socialmente, dentro dos limites e obrigações constitucionais. As ações do Estado, como políticas públicas, devem ocorrer por meio de programas sociais, não sendo reduzidas à mera burocracia. As políticas públicas são de responsabilidade do Estado, tanto em sua implementação, quanto na manutenção a partir de processos de tomada de decisão democráticos e transparentes, que envolvem órgãos públicos, diferentes organismos institucionais e agentes sociais relacionados às políticas que serão implementadas. Neste sentido, políticas públicas não podem ser reduzidas a políticas estatais. E políticas sociais referem-se às ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais visando a diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico. As políticas sociais têm suas raízes nos movimentos populares do século XIX, voltadas aos conflitos surgidos entre capital e trabalho, no desenvolvimento das primeiras revoluções industriais. Para Bourdieu (2020), as esferas do Estado e Governo confundem-se, uma vez que os agentes do estado, que ocupam posições legislativas ou mesmo administrativas também têm o poder de regular (criar leis, implementá-las, interpretá-las, efetivar denúncias ou não e cumprir regimentos), mesmo estando eles próprios submetidos ao conjunto de 148 Anotações: regras e obrigações em torno das próprias funções estatais. Portanto, o Estado é uma entidade de poder, que regula e implementa políticas sociais. Por esse mesmo motivo, é um espaço de disputas entre ideologias políticas, principalmente partidárias, legitimadas socialmente a partir da liberdade de manifestação política e expressão, assim como das disputas de grupos que compõem a sociedade civil organizada (associações, ONGs, coletivos, etc.). As lutas em torno do Estado podemocorrer entre agentes sociais do mesmo campo políti- co-ideológico, administrativo e também entre diferentes esferas constituidoras do Estado (jurídica, política, econômica, intelectual, etc.). Essa disputa se dá, principalmente, porque as possibilidades de intervenção do Estado sobre diferentes espaços da sociedade são muito am- plas. As decisões tomadas a partir do poder es- tatal, influenciam no reconhecimento de violações contra mulheres, crianças, negros e negras, LGBTs, assim como operam em torno de decisões sobre a economia, distribuição de renda, que podem culmi- nar no aprofundamento da desigualdade social, da fome e da miséria. Butler (2016) alerta para como o Estado também produz “enquadramentos” que negam a existência e, por sua vez, o acesso às políticas públicas e sociais a certos sujeitos, corpos e grupos. A história do reconhecimento do Estado à diversidade e diferença, assim como as mudanças nas leis e direitos sociais, são exemplos desses enquadramentos. Outros são as leis contra as violências domésticas e sobre feminicídios, ganhos 149 Anotações:sociais que só foram possíveis a partir de 2006 e 2014, respectivamente. Antes do reconhecimento legal dessas violências, houve décadas de lutas das mulheres contra as violências machistas e, mesmo com o reconhecimento legal desses direitos, ainda são muitos os casos de violações, mortes de mulheres e dificuldades em realizar as denúncias. Portanto, pensar sobre o Estado e suas pos- sibilidades de intervenção é uma tarefa contínua, uma vez que há sempre sujeitos à margem do reconhecimento e dos direitos sociais. 150 Anotações: Filmes para conferir: Parasita (Bong Joon-ho, 2019): toda a família de Ki-taek está desempregada, vivendo em um porão sujo e apertado, mas uma obra do acaso faz com que ele comece a dar aulas de inglês a uma ga- rota de família rica. Fascinados com a vida luxuosa destas pessoas, pai, mãe e filhos bolam um plano para se infiltrarem também na família burguesa, um a um. No entanto, os segredos e mentiras necessári- os à ascensão social custarão caro a todos. A Lei do Desejo (Pedro Almodóvar, 1987): um cineasta espanhol envolvido em um triângulo amoroso, vivencia os limites da negação e do desejo, enquanto sua irmã, uma mulher trans devota de Nossa Senhora, adota uma menina abandonada por uma amiga. O Silêncio dos Homens (Ian Leite e Luiza de Castro, 2019): o documentário apresenta diferentes iniciativas pelo Brasil, de debates e reelaborações das masculinidades. Busca apresentar a importân- cia de grupos de acolhimento para homens, como ferramentas para minimizar os efeitos das violên- cias de gênero e outros problemas sociais gerados pelo machismo. 151 Para seguir: @think.olga (instagram): laboratório de inovação social que educa e cria soluções para a desigualdade de gênero. @debora_d_diniz (instagram): professora de bioética da UnB, que debate temas relevantes sobre direitos humanos, além de questões de pesquisa e metodologia em ciências sociais. 152 Anotações: REFERÊNCIAS ADORNO, Sérgio. Exclusão socioeconômica e violência urbana. Sociologias, Porto Alegre, RS, ano 4, nº 8, 2002, p. 84-135. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2011. BECKER, Bertha. Geopolítica da Amazônia. São Paulo: Estudos Avançados, n. 19, 2005. BECKER, Howard. Outsiders. 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Exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior. e. A vontade individual se sobrepõe a do grupo. 161 U ni da de 1 QUESTÃO 02 Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo ou de cidadão, quando me desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com sen- timentos que me são próprios, sentindo-lhes inte- riormente a realidade, esta não deixa de ser obje- tiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os por meio da educação. Assim, também o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida religiosa; o sistema de sinais de que me sir- vo para exprimir pensamentos; o sistema de moe- das que emprego para pagar dívidas; os instrumen- tos de crédito que utilizo nas relações comerciais; as práticas seguidas na profissão etc., funcionam independentemente do uso que delas faço. Émile Durkheim. As regras do método sociológico. José Albertino Rodrigues (Org.). Trad. Laura Natal Rodrigues. Rio de Janeiro: Companhia Edito- ra Nacional, 1984, p. 1-2 (com adap- tações). No segmento de texto, Durkheim trata, sobretudo, a. da anomia social. b. da solidariedade social. c. da consciência coletiva. d. do fato social. e. das representações coletivas. 162 U ni da de 1 QUESTÃO 03 Em “O Suicídio”, Émile Durkheim faz uso de ferramentas metodológicas inovadoras na análise social da época, demonstrando que o suicídio não era um fenômeno individual, mas coletivo. Aponte a alternativa correta a respeito da metodologia da obra. a. Durkheim aplicou questionários junto às famílias de pessoas que haviam cometido suicídio para compreender as motivações. b. Foi a primeira obra de cunho sociológico a utilizar dados estatísticos e interpretar as taxas de mortes autoprovocadas. c. O autor realizou a pesquisa em necrotérios, a fim de verificar a real causa das mortes. d. A obra demonstra que o suicídio ocorre meramente por questões psicológicas. e. Durkheim condena o suicídio e demonstra que as mortes autoprovocadas ocorriam em ambientes pouco religiosos. QUESTÃO 04 Em seu estudo sobre o suicídio, Émile Durkheim classifica três tipos de motivação para as mortes autoprovocadas. A respeito da classifi- cação dos suicídios elaborada pelo autor, assinale a alternativa correta. 163 U ni da de 1 a. Egoísta, altruísta e distópico. b. Altruísta, heróico e anômico. c. Egoísta, altruísta e anômico. d. Altruísta, anômico e formalista. e. Formalista, altruísta e civil. QUESTÃO 05 A sociologia preocupou-se, inicialmente, com as mudanças em torno do trabalho, a partir da Revolução Industrial e a consequente onda mi- gratória do campo para as cidades. Um dos prin- cipais teóricos a se debruçar sobre as relações de trabalho na modernidade foi Karl Marx. Assinale a opção que corresponde correta- mente ao pensamento deste autor: a. As relações de trabalho expressam valores e relações de poder dominantes na sociedade. b. O trabalho é realizado para satisfazer as necessidades imediatas dos produtores diretos e de suas famílias. c. O mundo burguês caracteriza-se pela pas- sagem do trabalho agrícola para o trabalho desregulamentado e flexível. d. A divisão do trabalho fortalece a solidarie- dade entre as pessoas, na medida em que fortalece a interdependência entre os in- divíduos. e. No capitalismo, é através do trabalho que se garante o domínio sobre os meios de produção. 164 U ni da de 2 QUESTÃO 06 (UEL - 2012) Leia o texto a seguir: “Desde o início a criança desenvolve uma interação não apenas com o próprio corpo e o ambiente físico, mas também com outros seres humanos. A biografia do indivíduo, desde o nascimento, é a história de suas relações com outras pessoas. Além disso, os componentes não sociais das experiências da criança estão entremeados e são modificados por outros componentes, ou seja, pela experiência social.” (BERGER, Peter L. e BERGER, Bri- gitte. “Socialização: como ser um membro da sociedade”. In FORAC- CHI, Marialice M. e MARTINS, José de Souza. Sociologia e Sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977, p. 200). A partir da análise do texto podemos concluir que: I - Os indivíduos, desde o nascimento, são influenciados pelos valores e pelos costumes que caracterizam sua sociedade. II - A relação que a criança estabelece com o seu corpo não deveria ser do interesse das ciências sociais, mas apenas da biologia. III - O fenômeno tratado pelo autor correspon- de ao conceito de socialização, que designa o apren- dizado, pelos indivíduos, das regras e dos valores sociais. IV - As experiências individuais, até mesmo aquelas que parecem mais relacionadas às nossas 165 U ni da de 2 necessidades físicas, contêm exclusivamente dimensões biológicas. V - O desconforto físico que uma criança sente, como a fome, o frio e a dor, pode receber dos adultos distintas respostas de satisfação, dependendo da sociedade na qual eles estão inseridos. Indique a única alternativa que contém as premissas corretas: a. Apenas I, II e III estão corretas. b. Apenas I, II e IV estão corretas. c. Apenas II e III estão corretas. d. Apenas I, III e V estão corretas. e. Apenas III, IV e V estão corretas. QUESTÃO 07 Diferente da Sociologia, que tem seu cânone clássico subdividido a partir de três autores (para- digmas) principais, a Antropologia se subdivide em três escolas de pensamento: a. Escola de Sociologia Francesa, Escola Britânica, Escola Alemã. b. Escola Britânica, Escola Francesa e Escola Americana. c. Escola Brasileira, Escola Indiana, Escola Americana. d. Escola Francesa, Escola Americana, Escola Espanhola. e. Escola Britânica, Escola Mexicana e Escola Americana. 166 U ni da de 2 QUESTÃO 08 As origens da Antropologia são fortemente marcadas pelo Evolucionismo Social. Suas primeiras teorias argumentavam que o processo de evolução da humanidade passava por três fases principais: a. Selvageria, monarquia e civilização. b. Barbárie, tribo e cidade. c. Tribo, barbárie e democracia. d. Selvageria, barbárie e civilização. e. Tribo, feudalismo e civilização. QUESTÃO 09 Marcel Mauss (2015) foi um autor importante para a antropologia, apesar de sua obra ter grande influência da Sociologia de seu tio, Émile Durkheim. Sua obra mais importante para os estudos em etnologia foi “Ensaio sobre a Dádiva”, onde apresenta aspectos elementares dos sistemas de trocas sociais, baseadas nos princípios: a. Dar, tomar e emprestar. b. Dar, receber e negar.c. Receber, doar e devolver. d. Dar, receber e retribuir. e. Receber, negar e retribuir. 167 U ni da de 2 QUESTÃO 10 É comum ouvirmos sobre qualidades — positivas ou negativas — transmitidas pela genética, pelo “sangue”. O bom desempenho em práticas esportivas é justificado pela herança de um avô que quase foi jogador da seleção, o sucesso musical de um cantor, porque seus pais eram músicos. São exemplos comuns dessa crença na transmissão de qualidades pela natureza. O trecho se refere ao: a. Relativismo cultural. b. Determinismo sociológico. c. Determinismo biológico. d. Determinismo geográfico. e. Racismo. 168 U ni da de 3 QUESTÃO 11 A imaginação sociopolítica brasileira for- mou-se no contexto da sociedade pós-colonial, refletindo os desafios de construção de um pensa- mento sobre a sociedade nacional, a identidade do povo brasileiro e a política. Em decorrência desse pensamento, surgiu uma série de noções nas ciên- cias sociais, tais como miscigenação, eugenismo, democracia racial, homem cordial, cultura popular e pensamento autoritário. Considerando a temática, assinale a opção correta. a. A miscigenação contribuiu para a melhoria da qualidade genética racial do povo bra- sileiro e, por isso, constituiu uma referên- cia de valor para as ciências sociais. b. Segundo as tendências dominantes das ciências sociais contemporâneas no Brasil, o discurso da democracia racial funda-se em uma ideologia que esconde o preconceito racial. c. A visão do brasileiro como homem cordial é uma proposta interpretativa de Mário de Andrade. d. A Semana de Arte Moderna, que apresenta elementos constitutivos da identidade nacional, aconteceu nos fins do século XX. e. O pensamento autoritário foi concebido para emancipar as classes populares e conduzi-las à luta pela democracia racial no Brasil. 169 U ni da de 3 QUESTÃO 12 O fim da escravidão e a substituição pela mão de obra migrante (predominantemente italiana) nas fazendas e cafezais, mostra que essa população negra ficou totalmente desamparada, sem uma redistribuição das terras nos espaços rurais do país, e sobrecarregando as margens das cidades que começavam a se reconfigurar diante da lenta industrialização nacional, culminou num importante movimento pela reforma agrária durante os anos 50. Esse movimento era chamado de: a. Levante pela Terra. b. Ligas Camponesas. c. Invasões de Terra. d. Ocupações ao Latifúndio. e. Empates. QUESTÃO 13 Atualmente, desde o fim da Ditadura Militar, os movimentos pela terra ganharam novas configu- rações no Brasil. Tendo o _______________________ ____________ como movimento sindical mais influ- ente na vida rural brasileira, que tem como principal bandeira a reforma agrária. Complete o espaço da afirmação anterior com a opção correta: a. Movimento Pastoral da Terra. b. Movimento dos Trabalhadores dos Serin- gais. 170 U ni da de 3 c. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. d. Movimento de Invasores do Agronegócio. e. Movimento dos Povos Indígenas e Qui- lombolas. QUESTÃO 14 A falta de moradias e de serviços urbanos e a favelização são questões estruturais da sociedade brasileira que se intensificaram com a urbanização ocorrida a partir de 1940, levando a uma forte concentração populacional nas grandes cidades. De acordo com o Censo Demográfico, havia, em 2000, cerca de 1,7 milhão de domicílios localizados em favelas ou assentamentos semelhantes a elas, abarcando uma população de 6,6 milhões de pessoas, 53% das quais nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, nos quais as regiões metropolitanas concentram a maioria das favelas e dos favelados (Radar Social, IPEA, 2005, adaptada). A respeito dessas informações que carac- terizam alguns aspectos das metrópoles brasilei- ras, julgue os itens que se seguem. I. A favelização, fenômeno sobretudo metro- politano, revela forte demanda reprimida por aces- so a terra e à habitação. II. A favelização é uma das formas encontradas pela população pobre para solucionar suas necessidades habitacionais. III. A urbanização brasileira vem apresentando forte tendência de concentração da população pobre nas metrópoles. 171 U ni da de 3 Assinale a opção correta. a. Apenas o item I está certo. b. Apenas os itens I e II estão certos. c. Apenas os itens I e III estão certos. d. Apenas os itens II e III estão certos. e. Todos os itens estão certos. QUESTÃO 15 A urbanização brasileira vem-se caracteri- zando, nas últimas décadas, por intenso processo de metropolização, ou seja, concentração de popu- lação em grandes cidades conturbadas. O mais alto escalão da urbanização brasileira é representado por 26 grandes concentrações urbanas, formadas, em sua maioria, por arranjos populacionais com população acima de 750 000 habitantes. Em con- junto, esses arranjos populacionais, nos centros ur- banos brasileiros, totalizam 79,124 milhões de habi- tantes e reúnem 41,5% da população do país. (IBGE, Arranjos populacionais e concentrações urbanas do Brasil, 2016). Sobre esse fenômeno da metropolização brasileira, julgue os itens a seguir. I. Com o aumento da importância institucional e demográfica, as metrópoles brasileiras estão concentrando, hoje, um conjunto de questões sociais, cujo aspecto mais evidente e dramático é a exacerbação da violência. II. Com a metropolização, há efetivo processo civilizador, que traz vantagens a todos os indivíduos 172 U ni da de 3 e grupos sociais que se instalam em áreas metropolitanas. III. A aglomeração de população em metrópoles é o resultado de fatores de expulsão do campo e de fatores da atração que as cidades exercem sobre as correntes migratórias. Assinale a opção correta. a. Apenas o item I está certo. b. Apenas os itens I e II estão certos. c. Apenas os itens I e III estão certos. d. Apenas os itens II e III estão certos. e. Todos os itens estão certos. 173 U ni da de 4 QUESTÃO 16 (ENADE 2017 - Adaptado) A imigração haitiana para o Brasil passou a ter grande repercussão na imprensa a partir de 2010. Devido ao pior terremoto do país, muitos haitianos redescobriram o Brasil como rota alternativa para migração. O país já havia sido uma alternativa para os haitianos desde 2004, e isso se deve à reorien- tação da política externa nacional para alcançar liderança regional nos assuntos humanitários. A descoberta e a preferência pelo Brasil tam- bém sofreram influência da presença do exército brasileiro no Haiti, que intensificou a relação de proximidade entre brasileiros e haitianos. Em meio a esse clima amistoso, os haitianos presumiram que seriam bem acolhidos em uma possível migração, já que o país passaria a liderar a missão da ONU. No entanto, os imigrantes haitianos têm sofrido ataques xenofóbicos por parte da população bra- sileira. Recentemente, uma das grandes cidades brasileiras serviu como palco para uma marcha an- ti-imigração, com demonstrações de um crescen- te discurso de ódio em relação a povos imigrantes marginalizados. Observa-se, na maneira como es- ses discursos se conformam, que a reação de uma parcela dos brasileiros aos imigrantes se dá em ter- mos bem específicos: os que sofrem com a violên- cia dos atos de xenofobia, em geral, são negros e têm origem em países mais pobres. SILVA, C. A. S.; MORAES, M. T. A política migratória brasileira para refugiados e a imigração 174 U ni da de 4 haitiana. Revista do Direito. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 50, p. 98-117, set./dez. 2016 (adaptado). A partir das informações do texto, conclui-se que: a. O processo de acolhimento dos imi- grantes haitianos tem sido pautado por características fortemente associadas ao povo brasileiro: a solidariedade e o res- peito às diferenças. b. As reações xenófobas estão relaciona- das ao fato de que os imigrantes são con- correntes diretos para os postos de tra- balho de maior prestígio na sociedade, aumentando a disputa por boas vagas de emprego. c. O acolhimento promovidopelos brasileiros aos imigrantes oriundos de países do leste europeu tende a ser semelhante ao ofere- cido aos imigrantes haitianos, pois no Bra- sil vigora a ideia de democracia racial e respeito às etnias. d. O nacionalismo exacerbado de classes sociais mais favorecidas, no Brasil, motiva a rejeição aos imigrantes haitianos e a perseguição contra os brasileiros que pretendem morar fora do seu país em busca de melhores condições de vida. e. A crescente onda de xenofobia que vem se destacando no Brasil evidencia que, o preconceito e a rejeição, por parte dos brasileiros, em relação aos imigrantes haitianos, é pautada pela discriminação social e pelo racismo. 175 U ni da de 4 QUESTÃO 17 A origem dos direitos humanos está associada ao reconhecimento da cidadania a um número cada vez maior de pessoas, como resultado do movimento de desconcentração do poder político em países da Europa Ocidental. Considerando as ideias expressas no texto, é correto afirmar que os direitos humanos: a. Abarcam, já no século XVIII, a dimensão dos direitos sociais (trabalho, saúde, edu- cação). b. Refletem no Século das Luzes, as aspi- rações das camadas médias da sociedade pela igualdade de direitos. c. São relativos aos usos e costumes de cada povo ou cultura. d. Podem ou não ser exercidos, dependendo da escolha de quem os possui. e. São destinados apenas para pessoas não miscigenadas. QUESTÃO 18 (FUNCAB, 2013 - Adaptado) Nos anos ime- diatamente posteriores à Segunda Guerra Mun- dial, os direitos humanos foram declarados uni- versais pela Organização das Nações Unidas (ONU). Desde então, foram promulgadas novas cartas de direitos condicionando os países a ajustarem suas legislações internas às exigências internacionais. 176 U ni da de 4 É correto afirmar que os direitos humanos: a. Não abarcam atualmente os chamados di- reitos de terceira geração, que compreen- dem o direito de viver em ambiente não poluído e autossustentável. b. São reconhecidos e protegidos apenas mediante a concordância dos Estados nacionais particulares. c. Não dependem apenas da “não ação” do Estado (ou do reconhecimento dos direitos por um Estado-Nação), mas também da ação deste no trato das questões sociais. d. Não estão estritamente relacionados a práticas democráticas, haja vista que hoje não compreendem a dimensão de direitos civis e políticos. e. Devem ser aplicados apenas para seres humanos que respeitam as regras sociais. QUESTÃO 19 Os movimentos sociais são fundamentais como meios de participação da sociedade civil nas decisões políticas, em torno de buscar a promoção de interesses de grupos sociais. É correto afirmar que os movimentos sociais: a. Buscam a conquista do poder de Estado por meio dos partidos políticos. b. Atuam fora da esfera das instituições, porém buscam reivindicar direitos dentro das leis da sociedade. 177 U ni da de 4 c. Visam alterar as características estru- turais de um sistema social e não apenas melhorar suas condições. d. Não possuem identidades em torno de classes sociais, orientações sexuais ou grupos étnicos. e. Só tem legitimidade quando não degradam o patrimônio privado. QUESTÃO 20 Os Direitos Humanos estão quase sempre sendo ampliados. Esse processo de ampliação dos direitos gera inúmeros debates sociais. Para Segato (2006), é por meio de certos grupos, principalmente dos tidos como subalternos em relação a outros, que as mudanças legais, em torno da justiça, do reconhecimento de novos valores sociais, podem ser inscritas, inclusive na lei. Os movimentos em torno de novas reivindicações e reconhecimentos de direitos da pessoa humana, podem ser chamados de: a. Ética da insatisfação. b. Dramas culturais. c. Movimento mimimi. d. Ética da negação. e. Ética da expressão. 178 U ni da de 4