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MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 1 CAPÍTULO 07 – AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS Tópico do Edital: O processo histórico de construção e afirmação dos Direitos Humanos Esse tema é relativamente novo na prova da PCMG. A FUMARC, tradicionalmente, utilizava a obra da Flávia Piovesan, que já inicia a matéria no século XX. Na prova para Escrivão, em 2018, incluíram o Valério Mazzuoli, que também não escreve sobre a parte histórica. Só tivemos como referência a obra do Fábio Konder Comparato na última prova de Delegado, em 2018. Mesmo assim, a banca não cobrou diretamente o tema. Por isso, não temos questões anteriores para servir de parâmetro, nessa parte. A julgar por questões de outros tópicos, imagino que se forem cobrar esse conteúdo, cobrarão detalhes, como nomes de documentos e datas. Por isso, é importante estudar tendo isso em mente. Para estudarmos esse tópico de forma completa, combinei a doutrina de André de Carvalho Ramos, mais utilizada em concursos, com a obra de Fábio Konder Comparato (A afirmação histórica dos direitos humanos), sem dúvida a mais completa sobre o tema. Assim, temos um estudo objetivo, mas, ao mesmo tempo, com o aprofundamento necessário para não termos surpresas na prova. Ao final do capítulo, coloco uma tabela para ajudar na sistematização e memorização do conteúdo. Eu sei que vocês não gostam muito dessa parte... Mas, vamos abrir o coração para receber essa matéria? rsrsrsrs Te dá uma base incrível para compreender várias coisas. Então, tenha boa vontade, ok? MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 2 1. A fase pré-Estado Constitucional (essa fase é muito pouco cobrada em provas) Obs.: Fábio Konder Comparato inicia a matéria lá em Adão e Eva (literalmente). Acho desnecessário para fins de concurso. Então, ressalto alguns tópicos da Antiguidade e partimos para os documentos ingleses. Na Antiguidade Oriental, que é o período compreendido entre os séculos VIII a II a.C., temos o primeiro passo na afirmação dos direitos humanos. Nessa época, tivemos a adoção de códigos de comportamentos de vários filósofos influentes até os dias atuais: Zaratustra (Pérsia), Buda (Índia), Confúcio (China) e Dêutero- Isaías (Israel). Sob o ponto de vista normativo, houve, no Antigo Egito, o reconhecimento de direitos individuais na codificação de Menes (3100-2850 a.C.) Na Suméria antiga, o Código de Hammurabi (1792-1750 a.C.) , na Babilônia, com esboço dos direitos dos indivíduos (em especial direito à vida, propriedade e honra) e consolidação de costumes, com extensão da lei a todos os súditos do Império. Nos chama a atenção nesse Código a Lei de Talião, que pregava a reciprocidade no trato das ofensas (“olho por olho, dente por dente”). Vejamos um trecho do documento: Na região da Suméria e Pérsia, foi editada uma Declaração de boa governança de Ciro II, no século VI a.C. (Cilindro de Ciro), que seguia uma tradição mesopotâmica de autoelogio dos governantes ao seu modo de reger a vida social. Confúcio (séculos VI e V a.C.), na China, lançou as bases para sua filosofia, com ênfase na defesa do amor aos indivíduos. Já o Budismo, introduziu um código de conduta pelo qual se prega o bem comum e uma sociedade pacífica, sem prejuízo a qualquer ser humano. No Islamismo, temos a prescrição da fraternidade e solidariedade dos vulneráveis. Temos uma importante influência da Grécia no fortalecimento dos direitos humanos. A democracia ateniense trouxe a consolidação dos direitos políticos, com a participação política dos cidadãos (muitos ainda eram excluídos), mas, foi um início relevante. O chamado Século de Péricles (século V a.C.) testou a “Olho por olho, dente por dente. Trata-se de justiça sem piedade. Se um homem tira um olho de um patrício, também seu olho será tirado; se ele quebrou o osso de um patrício, seu braço será quebrado. As classes inferiores da sociedade merecem compensações: se ele tirou o olho ou quebrou o osso de um plebeu, ele deverá pagar uma mina de prata, se foi de um escravo, pagará metade de seu preço”. Código de Hamurabi MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 3 democracia direta em Atenas, com a participação dos cidadãos (homens) da pólis grega nas principais escolhas da comunidade. Platão, na obra A República (400 a.C.), defendeu a igualdade e a noção do bem comum. Aristóteles, na obra Ética a Nicômaco, salientou a importância do agir com justiça para o bem de todos, mesmo em face de leis injustas. A Antiguidade grega também estimulou a ideia de superioridade normativa de determinadas normas, mesmo diante do poder estatal (nesse sentido, a famosa peça de Sófocles, Antígona). Na citação de André de Carvalho Ramos, a peça retrata “Antígona, a protagonista, e sua luta para enterrar seu irmão Polinice, mesmo contra ordem do tirano da cidade, Creonte, que havia promulgado uma lei proibindo que aqueles que atentassem contra a lei da cidade fossem enterrados. Para Antígona, não se pode cumprir as leis humanas que se chocarem com as leis divinas. O confronto de visões entre Antígona e Creonte é um dos pontos altos da peça. Uma das ideias centrais dos direitos humanos, já encontrada nessa obra de Sófocles, é a superioridade de determinadas regras de conduta, em especial contra a tirania e injustiça.” A grande contribuição dos romanos para o desenvolvimento dos direitos humanos foi a sedimentação do princípio da legalidade. A Lei das Doze Tábuas, que estipulou a lex scripta como regente das condutas, promoveu a vedação ao arbítrio. Ademais, o direito romano consagrou vários direitos como liberdade, propriedade, personalidade jurídica e igualdade entre as pessoas, em especial através do jus gentium (direito aplicados a todos, romanos ou não). Ideologicamente, Marcos Túlio Cícero defende a razão reta (recta ratio), salientando, na República, que a verdadeira lei é a lei da razão, inviolável mesmo em face da vontade do poder. Ainda no seu De Legibus (Sobre as leis, 52 a.C.), Cícero sustentou que, apesar das diferenças (raças, religiões e opiniões), os homens podem permanecer unidos caso adotem o “viver reto”, que evitaria causar o mal a outros. Entre os hebreus, os cinco livros de Moisés (Torah) pregam solidariedade e preocupação com o bem-estar de todos (1800-1500 a.C.). No Antigo Testamento, a passagem do Êxodo demonstra a necessidade de respeito a todos, principalmente aos vulneráveis: “Não afligirás o estrangeiro nem o oprimirás, pois vós mesmos fostes estrangeiros no país do Egito. Não afligireis a nenhuma viúva ou órfão. Se o afligires e ele clamar a mim escutarei o seu clamor; minha ira se ascenderá e vos farei perecer pela espada: vossas mulheres ficarão viúvas e vossos filhos, órfãos” (Êxodo, 22: 20-26). No Livro dos Provérbios (25: 21-22) do Antigo Testamento, está previsto que “Se teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer; se tem sede, dá-lhe de beber: assim amontoas brasas sobre sua cabeça, e Javé te recompensará.” Temos também uma grande contribuição do Cristianismo. Vários trechos da Bíblia, no Novo Testamento, pregam a igualdade e a solidariedade com o MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG –Todos os cargos 4 semelhante. Podemos citar a passagem de Paulo, na Epístola aos Gálatas, segundo a qual: “Não há judeu nem grego; não escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois em Cristo Jesus” (III, 28). O imperador romano Justiniano, no século VI, mandou reunir e reestruturar toda a legislação romana publicando o Corpus Iuris Civilis (Corpo de Direito Civil). Ocorreram profundas alterações com as invasões bárbaras e a queda do Império Romano, surgindo uma nova ordem econômica, política e social. Consolidava-se o poder da Igreja Católica e surgia uma nova moral. O Cristianismo era a maior força moral e a base mais forte do Direito. Também os filósofos católicos devem ser mencionados, como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. São Tomás de Aquino, na Suma Teológica (1273), defendeu a igualdade dos seres humanos e a aplicação justa da lei. O justo é aquilo que corresponde a cada ser humano na ordem social, o que reverberará no futuro, em especial na busca da justiça social constante dos diplomas de direitos humanos. Os pensadores cristãos unificaram o Direito Romano e a moral bíblica, criando o Direito Canônico. A partir de então, tem-se a definição de Direito Natural como um conjunto de princípios e valores universais, eternos e imutáveis inerentes à natureza humana. Este Direito, que não foi criado pela sociedade ou pelo Estado, é preexistente e espontâneo. Alguns autores acreditam que o Direito Natural é uma espécie de Justiça superior, que designa o que é bom e o que é justo através dos tempos. Citando uma passagem de São Paulo que simboliza bem a ideia de Direito Natural: “quando os gentios, que não têm lei, cumprem naturalmente o que a lei manda, embora não tenham lei, servem de lei a si mesmos; mostram que a lei está escrita em seus corações.” Por outro lado, o Direito Positivo é o conjunto de normas impostas pelo Estado em uma sociedade, em determinada época, inclusive com poder de sanção e força coercitiva. É o Direito vigente e eficaz de uma dada sociedade, é a própria legislação positiva. O Direito Positivo, que se identifica com o ordenamento jurídico, determina o direito como fato e não como valor, como acontece no Direito Natural. O Direito Natural é, de certa forma, uma referência que permite analisar o Direito Positivo sob o critério da justiça. Apesar de antagônicos, os dois conceitos se complementam e são imprescindíveis para a efetivação da justiça em uma sociedade. Sabemos que, apesar de defender a igualdade espiritual, o cristianismo conviveu, no passado, com desigualdades jurídicas inconcebíveis sob o ponto de vista da proteção dos direitos humanos. Entretanto, não se pode negar a sua contribuição para a afirmação histórica de tais direitos. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 5 Como esclarece Benjamin Constant, a “liberdade dos antigos” era composta pela possibilidade de participar da vida social na cidade. Já a “liberdade dos modernos” (referindo-se aos iluministas, no século XVIII e pensadores do século XIX) entendiam a liberdade como sendo a possibilidade de atuar sem amarras na vida privada. A visão de liberdade dos antigos resultou na ausência da discussão sobre a limitação do poder estatal, o que só viria a ser feito na Idade Moderna. Como as normas que organizam o Estado pré-Constitucional não asseguravam ao indivíduo direitos de contenção ao poder estatal, parte da doutrina afirma que não há normas de proteção dos direitos humanos nesta época. Contudo, a crítica não afasta a valiosa contribuição das culturas antigas na afirmação dos direitos humanos, através de costumes e instituições sociais que valorizam e respeitam valores como a igualdade a justiça. 2. Crise da Idade Média e início da Idade Moderna Na Idade Média, tínhamos o poder ilimitado dos governantes, baseado na vontade divina. Mesmo nessa época, surgem os primeiros movimentos de reivindicação da liberdade a determinados estamentos, como a Declaração das Cortes de Leão, na Península Ibérica, em 1188 e a Magna Carta Inglesa, de 1215. A Declaração de Leão era uma manifestação que consagrou a luta dos senhores feudais contra a centralização e o nascimento futuro do Estado Nacional. A Inglaterra é considerada o berço dos direitos humanos. Muitos autores consideram que a Magna Carta foi a certidão de nascimento dos direitos humanos. Entretanto, cabe lembrar que não se dirigia a todos os indivíduos da sociedade, mas, apenas aos homens livres. A Magna Carta foi imposta ao Rei João Sem Terra, pelos barões ingleses, entre 12 e 19 de junho de 1215, iniciando a história dos direitos humanos. Foi redigida em latim. Seu nome completo era Carta Magna das Liberdades ou Concórdia entre o rei João e os Barões para outorga das liberdades da igreja e do reino inglês. Composta de um preâmbulo e 63 cláusulas. Foi confirmada, sem alterações por sete sucessores de João-Sem-Terra. Naquele momento, em toda a Europa, inicia-se uma tendência de centralização do poder. O suserano que se destacava entre os outros, provavelmente, seria o rei. Fábio Konder Comparato, citando Phillipe de Beaumanoir, sobre o direito costumeiro da baronia de Beuvauis, em obra famosa do século XI, diz: “cada barão é soberano em sua baronia”, mas, “o rei é soberano sobre todos”. A Magna Carta, de 1215, consistia em disposições que protegiam os barões ingleses contra os abusos do Rei João Sem-Terra. Apesar de não ser um documento de caráter universal, porque voltada apenas à proteção da nobreza inglesa, trazia a ideia de governo representativo e vários direitos que seriam, MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 6 séculos depois, universalizados, como por exemplo, o devido processo legal, a limitação do poder de tributar e do confisco, o Tribunal do Júri, o princípio da legalidade, o acesso à justiça e a proporcionalidade entre delito e pena. Na lição de Comparato, a Magna Carta constitui uma convenção entre o rei e os barões feudais, pela qual se lhes reconheciam privilégios especiais, gerando uma limitação do poder soberano. O documento deixa claro, pela primeira vez na história política medieval, que o rei se encontra vinculado pelas próprias leis que edita. No início, serviu para reforçar o regime feudal, mas, a longo prazo, representou sua destruição. Reconhecia que os direitos do clero e da nobreza existiam de forma independente do consentimento do monarca. Daí o fundamento da democracia moderna (não aquela presenciada na Grécia, em que a participação popular era direta): o poder dos governantes passa a ser limitado não só por normas superiores fundadas no costume ou na religião, mas também pelos direitos subjetivos dos governados. Encontramos no texto disposições importantes para a civilização moderna e outras sem importância, de sentido puramente local ou conjuntural. Vejamos as principais disposições da Magna Carta: ✓ Cláusula 1 - prevê liberdades eclesiásticas, com a livre designação de bispos, abades e outras autoridades, sem necessidade de confirmação pelo rei, sinalizando a futura separação entre Estado e Igreja. ✓ Cláusulas 12 e 14 que afirmam que o poder tributário deve ser consentido pelos súditos (no taxation whitout representation), o que está na origem do moderno sistema parlamentar de governo. ✓ Cláusulas 16 e 23, que representam o início do fim das relações servis, com leis objetivas nas relações de trabalho, e a previsão do princípio, segundo o qual,ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. ✓ Cláusulas 17 e 40, reconhecem que o monarca não é dono da justiça e que esta é de interesse público. O rei tem o poder-dever de fazer justiça, quando solicitado pelos seus súditos. ✓ Cláusulas 20 e 21, lançam as bases do Tribunal do Júri e do princípio da proporcionalidade entre o delito e a pena. ✓ Cláusulas 30 e 31 estabeleciam limites à possibilidade de confiscar a propriedade privada pelo soberano e seus oficiais. ✓ Cláusula 39, considerada o coração da Magna Carta. Os homens livres devem ser julgados pelos seus pares, de acordo com a lei da terra. É a essência do processo do devido processo legal (due process of law). ✓ Cláusulas 41 e 42, reconhecem o direito de sair e entrar no país e de livre locomoção dentro de suas fronteiras, a qualquer pessoa em geral e aos comerciantes em particular. ✓ Cláusula 45 lança as bases de uma administração pública autônoma e regular. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 7 ✓ Cláusula 60, estende a todos os senhores feudais as mesmas limitações de poder previstas para os súditos, acarretando a superação do regime feudal. ✓ Cláusula 61 prevê o esboço de um mecanismo de responsabilidade do rei perante os seus súditos, dando início à abolição do regime monárquico. Com o Renascimento e a Reforma Protestante, a crise da Idade Média deu lugar ao surgimento dos Estados Nacionais absolutistas, com centralização do poder na figura do rei. Com o fim da sociedade estamental, surge a igualdade de todos submetidos ao poder absoluto do rei. Entretanto, essa igualdade não protegeu os súditos da opressão e violência. O maior exemplo foi o extermínio de milhões de indígenas nas Américas, apenas algumas décadas depois da chegada de Cristóvão Colombo na Ilha de São Domingo (1492). Existiram grandes defensores dos direitos dos indígenas, como o Frei Bartolomeu de Las Casas. Las Casas condenou o genocídio dos indígenas afirmando que “Os índios são nossos irmãos, pelos quais Cristo deu sua vida. Por que os perseguimos sem que tenham merecido tal coisa, com desumana crueldade? O passado, e o que deixou de ser feito, não tem remédio; seja atribuído à nossa fraqueza sempre que for feita a restituição dos bens impiamente arrebatados”. Também Francisco de Vitória, um dos fundadores do direito internacional moderno, reconheceu a humanidade dos povos autóctones das Américas, bem como sustentou a aplicação, em igualdade, do direito internacional na sua relação com os espanhóis. No século XVII, houve o questionamento do Estado Absolutista, em especial na Inglaterra. A busca pela limitação do poder é consagrada na Petition of Rights, de 1628. Através de tal documento, os barões ingleses, representados pelo Parlamento, o rei tem o dever de não cobrar impostos sem a autorização do Parlamento (no taxation without representation), bem como se reafirma o devido processo legal, que seria implementado posteriormente. O Habeas Corpus Act, de 1679 regulamenta a proteção judicial dos que foram presos injustamente. Trazia no seu texto a previsão do dever de entrega do “mandado de captura” ao preso ou seu representante, sinalizando mais um avanço para banir as detenções arbitrárias (ainda hoje um dos grandes problemas mundiais de violação de direitos humanos). A importância da Lei de Habeas Corpus, reside no fato de que essa garantia judicial, que tinha a finalidade de proteger a liberdade de locomoção, foi a fonte de outras garantias que vieram posteriormente, para a proteção de outras liberdades fundamentais. Surgiram na América Latina o mandado de segurança e o juicio de amparo, que têm a mesma característica do habeas corpus: são ordens judiciais dirigidas a qualquer autoridade pública acusada de violar direitos líquidos e certos (ou seja, MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 8 direitos cuja existência o autor pode demonstrar desde o início do processo, através de prova pré-constituída). O dispositivo nuclear do habeas corpus do direito inglês não foi reproduzido pelas legislações estranhas ao mundo anglo-saxônico: a ordem para que a autoridade que detenha o paciente o apresente incontinente em juízo (habeas corpus ad subjiciendum). Entretanto, o instituto passou a ser utilizado não só nos casos de prisão efetiva, mas também nos casos de ameaça de simples constrangimento à liberdade de ir e vir. Obs.: atualmente, a ideia central do habeas corpus inglês, guarda semelhanças com a nossa audiência de custódia, recém garantida no ordenamento brasileiro, com o intuito de efetivar previsões constantes de tratados internacionais ratificados pelo Brasil, a exemplo do Pacto de San Jose da Costa Rica. Ainda na Inglaterra, após a Revolução Gloriosa, é editado o Bill of Rights, em 1689, reduzindo definitivamente o poder dos reis ingleses. Do seu texto consta, basicamente, a afirmação da vontade da lei sobre a vontade absolutista do rei. Estabelece que o rei não pode suspender ou executar leis, sem o consentimento do parlamento; que devem ser livres as eleições de membros do Parlamento; e que a liberdade de expressão e debates ou procedimentos do Parlamento não podem ser impedidos ou questionados em qualquer tribunal ou local fora do Parlamento. Como ressalta Comparato, o documento foi criado cem anos antes da Revolução Francesa, pôs fim ao regime da monarquia absoluta, no qual todo poder emana do rei e em seu nome é exercido. A partir deste documento, algumas prerrogativas, como o poder de legislar e criar tributos, deixam de ser poder do monarca e passam a ser de competência reservada do Parlamento. Com isso, surge a preocupação de oferecer garantias especiais às eleições e ao exercício das funções parlamentares, para assegurar a liberdade desse órgão político diante do chefe de Estado. Esse documento representou a institucionalização da separação de Poderes, que seria proposta por Montesquieu meio século depois. Ainda que não tenha sido uma declaração de direitos nos moldes daquelas que surgiriam posteriormente, nos Estados Unidos e na França, o Bill of Rights, com a divisão dos poderes, criava uma garantia institucional. Ou seja, surgia uma forma de organização do Estado que tinha por objetivo, em última análise, proteger os direitos fundamentais da pessoa humana. Ainda hoje, o Bill of Rights é considerado um dos mais importantes textos constitucionais do Reino Unido. As modificações trazidas pelo documento também foram importantes porque promoveram uma revolução política que iria criar condições para a Revolução Industrial no século seguinte. Mas, o essencial do documento foi a instituição da separação dos Poderes, declarando que o Parlamento é o órgão responsável por defender os súditos MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 9 perante o rei. E ainda, o Billl of Rights fortaleceu a instituição do júri e reafirmou alguns direitos fundamentais dos cidadãos que são reproduzidos pelas Constituições modernas, como o direito de petição (art. 5.º, inciso XXXIV, CRFB/88) e a proibição de penas cruéis (art. 5.º, inciso XLVII, CRFB/88). Em 1701, é aprovado o Act of Settlement, que reafirma o poder do Parlamento, fixando a linha de sucessão da coroa inglesa (os católicos foram excluídos,exigindo-se dos reis britânicos o vínculo com a Igreja Anglicana) e impedindo a volta da tirania dos monarcas, reafirmando o poder do Parlamento e a necessidade de respeito da vontade da lei. 3. Pensadores Iluministas No campo da política, Thomas Hobbes, na sua obra Leviatã, de 1651, defendeu que o primeiro direito do ser humano consistia no direito de usar seu próprio poder livremente, para preservação de sua vida. O texto fala claramente do direito do ser humano, pleno somente no estado de natureza, no qual está livre de restrições e não se submete a qualquer poder. Entretanto, Hobbes conclui que para sobreviver ao estado de natureza, no qual todos estão em confronto (o homem é o lobo do próprio homem), o ser humano renuncia à sua liberdade inicial e se submete ao poder estatal (o Leviatã). A necessidade do Estado se justifica para garantir segurança aos indivíduos. Firma- se uma espécie de contrato entre o homem e o Estado, temos a antítese dos direitos humanos, que é o Estado que tudo pode. Os indivíduos não possuiriam qualquer proteção contra o poder do Estado. Com essa teoria contratualista de base absolutista, Hobbes se distancia da proteção dos direitos humanos. Hugo Grócio, um dos pais fundadores do Direito Internacional, na sua obra Da Guerra e da Paz, de 1625, defendeu a existência de um direito natural de cunho racionalista. As normas decorrem de princípios inerentes ao ser humano. Em pleno século XVII, afirmou: “Deus está morto”. Assim, tivemos mais uma contribuição de cunho jusnaturalista para o reconhecimento dos direitos humanos. John Locke, por sua vez, defendeu o direito dos indivíduos mesmo contra o Estado. Em sua obra Tratado sobre o Governo Civil, de 1689, prevê que o objetivo do Estado deve ser a preservação dos direitos individuais, logo, o poder não pode ser ilimitado, como defendia Hobbes. Afirmava que o grande objetivo das sociedades políticas é a preservação do direito à vida, à liberdade e à propriedade. Logo, o governo não pode ser arbitrário, deve ser limitado pela supremacia do bem público. Temos aqui o início da teoria de separação dos poderes, tendo as ideias de Locke influenciado a implantação do Estado Constitucional, baseado na separação dos poderes e direitos individuais, em vários países. O pensamento de Locke serve de inspiração para outros pensadores, como Jean-Jacques Rousseau, que em sua obra Do Contrato Social, de 1762, afirma que existe um pacto entre os homens, livres e iguais, que estruturam o Estado MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 10 para zelar pelo bem-estar da maioria. A liberdade e a igualdade são inerentes ao ser humano. Não é possível renunciar à liberdade nem à igualdade, assim não é admissível um governo arbitrário. Os governos devem representar a vontade da maioria, respeitando os valores da vontade geral em face de violações de direitos oriundas de paixões de momento da maioria. Defende a teoria contratualista de base democrática. Rousseau está inserido no movimento do Iluminismo (do alemão Aufklärung, o século XVIII seria o século das Luzes), assim como Voltaire, Diderot e D´Alembert. Na área do direito penal, tivemos a grande contribuição de Cesare Beccaria, que em sua obra Dos Delitos e das Penas, em 1766, defendeu a existência de limites para o jus puniendi estatal, que persistem até os dias atuais. Immanuel Kant, na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, afirma que a dignidade é um valor intrínseco a todo ser racional, que não tem equivalente. As coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. O homem é um fim em si mesmo. O pensamento de Kant será retomado no estudo contemporâneo dos direitos humanos, em especial para justificar a indisponibilidade dos mesmos e a proibição de tratamento do homem como objeto. 4. O Constitucionalismo liberal e as declarações de direitos As revoluções liberais (inglesa, americana e francesa) marcaram a primeira afirmação histórica dos direitos humanos. A Revolução Inglesa, mais precoce, teve como marcos a Petition of Rights, em 1628, que garantiu liberdades individuais e o Bill of Rights, de 1689, que consagrou a supremacia do Parlamento e o império da lei. A Revolução Americana retrata o processo de independência das colônias britânicas, com a Declaração de Independência, em 1776 (escrita em grande parte por Thomas Jefferson) e a Constituição norte-americana, de 1787 (em 1791, o texto constitucional recebe 10 emendas que introduzem um rol de direitos fundamentais). Antes mesmo da Declaração de Independência, cabe destacar a Declaração do Bom Povo da Virgínia, em 1776, que conferiu aos direitos humanos um viés jusnaturalista, alegando, por exemplo, que “todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes”. Vejamos um trecho da Declaração de Independência: MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 11 “[...] Consideramos as seguintes verdades como auto-evidentes, a saber, que todos os homens são criaturas iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade, e os governos foram estabelecidos pelos homens para garantir esses direitos, e seu justo poder emana do consentimento daqueles que são governados. Todas as vezes que uma forma de governo se torna destruidora destes objetivos, o povo tem o direito de mudá-lo ou aboli-lo e estabelecer um novo governo, fundado nos princípios e organizado na forma que lhe parecerem mais convenientes à sua segurança e à sua felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos Guardiães para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colônias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas anteriores de governo. A história do atual Rei da Grã-Bretanha compõe-se de repetidas injúrias e usurpações, tendo todos por objetivo direto o estabelecimento da tirania absoluta sobre estes Estados. Para prová-lo, permitam-nos submeter os fatos a um mundo cândido." Uma declaração de direitos fundamentais do cidadão só foi inserida na Constituição norte-americana em 1791 (Atenção! Essa informação já foi objeto de questão em prova). Inicialmente, foram 12 emendas, sendo que duas não foram aprovadas: a que fixava o número de deputados em relação ao colégio eleitoral e a que regulava a remuneração dos parlamentares. O Bill of Rights norte-americano, como são chamadas tradicionalmente as dez primeiras emendas à Constituição, têm um estilo mais técnico que a Declaração de Direitos da Virgínia. As emendas resguardam direitos à liberdade de palavra, de imprensa e de religião, direito de portar armas, de ser julgado pelo tribunal do júri e direitos de titularidade coletiva. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos oscargos 12 A abolição da escravatura não vinha prevista em nenhuma emenda. Apenas em 1868, com a promulgação da 14ª emenda, a situação foi corrigida. Ainda assim, uma interpretação seletiva da emenda permitiu, por um tempo, a manutenção da escravidão em alguns estados federados norte-americanos. O mais importante dos direitos fundamentais nos EUA, continua sendo, inegavelmente o respeito ao “due process of law” (devido processo legal), tanto em sua versão formal quanto material (respeito aos direitos fundamentais). Atualmente, o texto, vigente em sua versão original, conta com 27 emendas. Também a Revolução Francesa foi um grande marco na proteção dos direitos humanos. A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789 (primeiro documento de vocação universal, serviu como alicerce para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948), consagra os valores de liberdade, igualdade e fraternidade, com clara influência jusnaturalista. São apenas dezessete artigos, os quais foram, posteriormente, adotados como preâmbulo da Constituição Francesa de 1791. A Declaração contempla várias ideias como: soberania popular, sistema de governo representativo, igualdade de todos perante a lei, presunção de inocência, direito à propriedade, à segurança, liberdade de consciência, de opinião, de pensamento, bem como o dever do Estado Constitucional de garantir os direitos humanos. Na visão de Comparato, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, representou o fim do Antigo Regime. Tinha caráter universal, abstrato, generalizante. O objetivo não era de fazer uma declaração de direitos para os homens franceses, mas, para os homens em geral. Segundo Duquesnoy: “Uma declaração deve ser de todos os tempos e de todos os povos; as circunstâncias mudam, mas ela deve ser invariável em meio às revoluções. É preciso distinguir as leis e os direitos: as leis são análogas aos costumes, sofrem o influxo do caráter nacional; os direitos são sempre os mesmos.” Foi o primeiro elemento constitucional do novo regime político. O fato de mencionar homem e cidadão se relaciona com o caráter universal e nacional da declaração. No campo penal fixou-se o princípio de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena que não seja fixada em lei (art. 8.º). Duas MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 13 preocupações da burguesia foram atendidas: a garantia da propriedade privada contra expropriações abusivas e a estrita legalidade na criação e cobrança de tributos. Seguem as previsões da Declaração: Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão. Art. 3º. O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente. Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei. Art. 5º. A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene. Art. 6º. A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos. Art. 7º. Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário torna-se culpado de resistência. Art. 8º. A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada. Art. 9º. Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei. Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei. Art. 11º. A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei. http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 14 Art. 12º. A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública. Esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada. Art. 13º. Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com suas possibilidades. Art. 14º. Todos os cidadãos têm direito de verificar, por si ou pelos seus representantes, da necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração. Art. 15º. A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração. Art. 16.º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. Art. 17.º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização. Também é importante mencionar o Projeto de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em 1791, proposto por Olympe de Gouges, reivindicando a igualdade de gêneros. A primeira Constituição Francesa, a de 1791, consagrou a perda dos direitos absolutos do monarca francês, com a implementação da monarquia constitucional e previsão do voto (apesar de censitário). A Declaração de Direitos foi colocada como preâmbulo da Constituição de 1791. Essa Constituição reafirmou o caráter anti-aristocrático e antifeudal do novo regime político e promoveu a nacionalização de bens, anteriormente pertencentes a eclesiásticos ou a congregações religiosas. Reconheceu-se, pela primeira vez na história, a existência de direitoshumanos de caráter social, como, por exemplo, a assistência pública para ajudar as crianças abandonadas e os enfermos pobres e a obrigação de fornecer trabalho aos pobres desempregados. Surge a primeira noção do controle judicial da constitucionalidade. “O Poder Legislativo não poderá fazer lei alguma que prejudique ou impeça o exercício dos direitos naturais e civis, consignados no presente título e garantidos pela Constituição.” Depois de uma quebra do regime anterior, com a queda da monarquia, a Assembleia Legislativa convocou nova Assembleia Constituinte, chamada de Convenção. Já na eleição para a Assembleia, ficou patente o espírito democrático: aboliu-se o sufrágio censitário. Foi instituído o regime republicano e propagada a afirmação que “não pode existir Constituição que não seja aceita pelo seu povo”. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 15 Em 1793, surge nova Constituição. De modo geral, esse texto limitou-se a enfatizar o conteúdo das declarações anteriores. Foram poucas as inovações: a) reconhecimento de que a soberania política pertence ao povo b) proclamação de que “a lei deve proteger a liberdade pública e individual contra a opressão dos que governam”. c) a afirmação de que a insurreição do povo contra os governantes que violam os seus direitos é “o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres”. A Constituição de 1793 não chegou a ser aplicada. Foi instituído um governo provisório, chamado de governo republicano. Existiam duas comissões de deputados. Uma delas, liderada por Robespierre, instaurou uma ditadura, no período que ficou conhecido como período do terror. Após o golpe de Estado que resultou na prisão, julgamento e imediata execução de Robespierre, houve uma mudança de orientação política. Os conservadores (girondinos) assumiram o poder. A burguesia percebeu a necessidade de votar uma nova Constituição. Assim, a nova Carta constitucional foi promulgada em 22 de agosto de 1795, utilizando a expressão “universalidade dos cidadãos”, ao invés de soberania popular. Com a Constituição de 1795, é reforçado o mecanismo de separação e controle dos poderes proposto por Montesquieu. Essa Constituição contém uma declaração de direitos e uma de deveres dos cidadãos, suscitando muitas críticas. Representou um retrocesso em direitos fundamentais e garantias sociais, que foram desconsideradas. Ademais, consistiu na consagração constitucional explícita da ordem privatista burguesa e do sistema capitalista de produção. 5. Documentos do século XIX ACR não menciona em seu livro esses documentos. Entretanto, pela sua relevante temática, trataremos de dois documentos do século XIX, relacionados ao Direito Humanitário e ao combate ao tráfico de escravos, conforme previsto na obra de Comparato. 5.1 A Convenção de Genebra de 1864 Esta Convenção inaugurou o chamado direito humanitário internacional. É o conjunto de leis e costumes da guerra, visando a minorar o sofrimento de soldados doentes e feridos, bem como de populações civis atingidas por um conflito bélico. Esta Convenção, que é a primeira introdução dos direitos humanos na esfera internacional, foi assinada apenas por potências europeias. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 16 O direito da guerra e da paz, sistematizado por Hugo Grócio, foi bipartido em direito preventivo da guerra (ius ad bellum) e direito da situação ou estado de guerra (ius in bello), destinado a regular as ações das potências combatentes. A Comissão que esteve na origem da Convenção de 1864, transformou-se em 1880 na Comissão Internacional da Cruz Vermelha, mundialmente reconhecida. Entretanto, o conceito de guerra justa foi restringido pela Carta de São Francisco da ONU. A guerra passou a ser vista como meio antijurídico de solução de conflitos, quaisquer que sejam as razões de seu desencadeamento. Assim, o direito de guerra não podia ser regulamentado pelo direito, por ser, ele mesmo, ilícito. Por isso, essas regras não fariam sentido, já que o Direito não pode regulamentar a prática de um crime. Apesar de tal argumento parecer óbvio, não pode ser aceito na prática. Se a guerra, por si mesma, constitui um crime, nada impede que, no seu desenrolar, outros crimes sejam praticados pelas partes beligerantes. A violação dos princípios e normas do direito humanitário pode representar um crime de guerra. Os princípios gerais do direito humanitário foram reconhecidos pela Corte Internacional de Justiça, em 1986, no julgamento do Caso Nicarágua x Estados Unidos. A Convenção foi revista na primeira metade do século XX para que seus princípios fossem estendidos aos conflitos marítimos (Convenção de Haia, de 1907) e aos prisioneiros de guerra (Convenção de Genebra, 1929). Em 1925, outra Convenção de Genebra proibiu a utilização de gases asfixiantes ou tóxicos, bem como de armas bacteriológicas, durante a guerra. Atualmente, temos um conjunto de quatro convenções (Convenções de Genebra) sobre soldados feridos e prisioneiros de guerra e proteção da população civil em caso de guerra. 5.2 O Ato Geral da Conferência de Bruxelas de 1890 (sobre a repressão ao tráfico de escravos africanos) O tráfico de escravos africanos teve início no século IX, com os muçulmanos, e expandiu-se com a fixação dos entrepostos portugueses na África, no século XV. Cabe ressaltar, entretanto, as diferenças entre a escravidão muçulmana, que atingia negros e brancos e tinha caráter, sobretudo, doméstico; e a escravidão europeia. Para os europeus, a escravidão se restringiu à população negra e tinha objetivos de exploração capitalista. Foi o maior sistema de escravidão organizado em toda a história. A escravidão praticada no continente americano se destacava pelo seu caráter empresarial. Calcula-se que foram transportados de 12 a 13 milhões de escravos africanos para as Américas. O Brasil teria recebido cerca de 3,5 milhões e MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 17 meio de escravos. Essa sangria humana foi a principal causa da fragilidade do continente africano. A repressão ao tráfico somente teve início no século XIX. Merecem destaque os tratados de Paris (1814-1815) e o Congresso de Viena (1815), que reconheciam que o tráfico de escravos violava princípios de justiça e humanidade. O Brasil assinou com a Inglaterra uma Convenção, em 1826, estabelecendo que, o tráfico, após três anos da troca de ratificações, seria considerado pirataria. Devido ao descumprimento sucessivo por parte do Brasil, a Inglaterra votou, em 1845, o Bill Aberdeen. Tal ato autorizava os cruzadores ingleses a aprisionar navios negreiros brasileiros e submetê-los a julgamento perante as cortes do Almirantado. Em 1850, a Assembleia Geral do Rio de Janeiro votou a lei Eusébio de Queiroz proibindo o tráfico negreiro e estabelecendo severas punições. Finalmente, uma série de convenções culminou na assinatura do Ato Geral da Conferência de Bruxelas, de 1890, subscrita por 17 Estados e prevendo, pela primeira vez, no âmbito internacional, repressões ao tráfico de escravos. Entretanto, tal acordo admitia a continuidade da escravidão doméstica nos países signatários onde ela já existia. Apesar de ter sido um grande avanço na proteção internacional dos direitoshumanos, essa Conferência foi realizada tarde demais, quando o tráfico já era reduzido numa escala mundial. 6. A fase do utilitarismo, do socialismo e o constitucionalismo social O utilitarismo é uma teoria consagrada por Jeremy Bentham e John Stuart Mill no final do século XVIII e início do século XIX, segundo a qual os cidadãos cumprem leis e compromissos para obter vantagens futuras (utilidades) para si e para a sociedade. Bentham critica a ideia de um contrato social baseado no Direito Natural (como defendido por Hobbes e Rousseau). Na visão de Bentham, os cidadãos cumprem as regras com vistas a obter vantagens e utilidades. Consagrou-se, então, o utilitarismo, defendido principalmente por Stuart Mill, em sua obra Utilitarismo, de 1983. Na área dos direitos humanos, o utilitarismo clássico sustenta que um ato deve ser avaliado como reprovável ou não de acordo com suas consequências e não conforme o reconhecimento de direitos. Se o resultado gerar a felicidade do maior número possível de pessoas, o ato pode ser justificável. Entretanto, a MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 18 felicidade individual não deve ser sacrificada em prol da felicidade geral. Busca-se uma maximização das consequências positivas de uma conduta. Como destaca ACR, “a crítica ao utilitarismo em geral recai sobre a impossibilidade de uso dos indivíduos (e seus direitos) como instrumentos de maximização da felicidade da maioria. Ademais, há os riscos de se optar por uma ação que beneficie muitos e viole direitos fundamentais de poucos.” Os franceses, ainda no século XVIII, defendiam a ampliação do rol de direitos da Declaração Francesa para abarcar os direitos sociais (como saúde, educação e assistência social). No século XIX, vários movimentos socialistas na Europa, atacaram o modo capitalista de produção e ganharam apoio popular. Tivemos alguns expoentes, como Proudhon, socialista francês, que em sua obra O que é a propriedade, em 1840, fez forte apelo à rejeição do direito de propriedade privada, considerada por ele um “roubo”. Karl Marx, na obra A questão judaica, em 1843, questionou os fundamentos liberais da Declaração Francesa, de 1789, defendendo que o homem não é um ser isolado das engrenagens sociais. Não seria possível defender direitos individuais em uma realidade na qual os trabalhadores eram duramente explorados. Em 1848, Marx e Engels publicam O Manifesto do Partido Comunista, defendendo novas formas de organização social, de modo a atingir o comunismo, no qual seria dado a cada um segundo a sua necessidade e exigido de cada um segundo a sua possibilidade. As teses socialistas também atingiram a igualdade de gênero. August Bebel defendeu a independência social e econômica da mulher na nova sociedade socialista, na sua obra A mulher e o socialismo, de 1883. No plano político, houve várias resoluções, com destaque para a Revolução Russa, de 1917, que estimulou novos avanços na defesa da igualdade e justiça social. Houve também a introdução dos direitos sociais (para assegurar condições materiais mínimas de existência) em várias Constituições, consideradas pioneiras nesse aspecto: Constituição do México (1917), Constituição de Weimar (1919) e Constituição Brasileira (1934). No plano internacional, é criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, no fim da Primeira Guerra, pelo Tratado de Versalhes, voltada à melhoria das condições dos trabalhadores. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 19 6.1 Constituição Mexicana de 1917 (Constituição de Querétaro) A Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos foi promulgada em 05 de fevereiro de 1917. Sofreu forte influência da doutrina anarcossindicalista, difundida na Europa no século XIX, especialmente das ideias de Mikhail Bakunin que muito influenciaram Ricardo Flores Magón. Ricardo Flores liderava um grupo mexicano chamado Regeneración, que pregava a proibição de reeleição do presidente Porfirio Diaz (que havia governado de 1876 a 1911 em reeleições sucessivas); o estabelecimento de garantias para as liberdades individuais e políticas; a quebra do poderio da Igreja Católica; a expansão do sistema de educação pública; a reforma agrária e a proteção do trabalho assalariado. Foi a primeira a conferir a qualidade de direitos fundamentais aos direitos trabalhistas, ao lado das liberdades individuais e garantias políticas. Esse caráter social dos direitos humanos só seria reconhecido na Europa após a Primeira Guerra Mundial. E em alguns países, como Estados Unidos, existe grande resistência, ainda hoje, de aceitar e efetivar essa dimensão dos direitos. Assim, essa Constituição inspirou outros documentos, como a Constituição de Weimar e várias convenções internacionais. Entre a Constituição Mexicana e a de Weimar, tivemos um acontecimento importante no século XX. Foi adotada a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, no III Congresso Pan-Russo dos Sovietes, de Deputados Operários, Soldados e Camponeses, reunidos em Moscou, em 1918. No documento são adotadas várias medidas constantes da Constituição Mexicana. A Constituição de 1917 não faz exclusões sociais próprias do marxismo. O povo mexicano não é reduzido apenas à classe trabalhadora, como propunha a teoria marxista. Entretanto, nem todos os direitos trabalhistas consagrados nesta Constituição podem ser considerados direitos humanos. Esses direitos, numa sociedade largamente agrícola, interessavam a uma parcela ínfima da população e não se aplicavam às pequenas e médias empresas urbanas. A maior importância da Constituição mexicana foi a de estabelecer a desmercantilização do trabalho, em reação à lei da oferta e da procura do sistema capitalista. Firmou o princípio da igualdade substancial de posição jurídica entre trabalhadores e empresários na relação contratual de trabalho e criou a responsabilidade dos empregadores por acidentes de trabalho. Enfim, deslegitimou as práticas de exploração mercantil da pessoa humana e lançou as bases para o Estado Social de Direito. Aboliu o caráter absoluto e privado da propriedade privada, estabelecendo que tal propriedade deve ser utilizada sempre visando ao bem público e ao interesse do povo. Criou o fundamento jurídico da reforma agrária, a primeira a se realizar no continente latino-americano. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 20 6.2 Constituição Alemã de 1919 (Constituição de Weimar) A Constituição da cidade de Weimar, na Saxônia, surgiu como produto da Primeira Guerra (1914-1918) e instituiu a primeira república alemã. Apesar de ter sido uma constituição bem elaborada e votada, ou seja, legítima, sua aceitação pela sociedade ficou prejudicada em decorrência do momento histórico. Após 7 meses, apenas, do fim da guerra, a coletividade não teve tempo de amadurecer as novas ideias democráticas. Assim, o texto apresentava ambiguidades e imprecisões. Já na abertura declara-se que o império alemão é uma República. A Alemanha foi condenada, pelo Congresso de Versalhes, a pagar pesadas indenizações de guerra. Com isso, gerou-se uma crise econômica que impediu o desenvolvimento financeiro da República Alemã. Em poucas semanas a República de Weimar foi destruídapela barbárie nazista em 1933. A Constituição influenciou a evolução das instituições políticas em todo o Ocidente. Desenvolveu a proposta de democracia social traçada pela Constituição mexicana. Essas duas constituições serviram de inspiração para os dois pactos internacionais de direitos humanos (1966) da Organização das Nações Unidas (ONU). A Constituição tem duas partes: a primeira apresenta a estrutura e organização do Estado, e a segunda, apresenta a declaração dos direitos e deveres fundamentais, incluindo os novos direitos de conteúdo social. Os direitos sociais requerem uma atitude positiva do Estado, requerem a efetivação por meio de políticas públicas. O Estado passa a intervir no mercado e na vida social (Estado prestador). Deve ser ressaltado que, diferenças e desigualdades não são equivalentes. As diferenças têm caráter cultural ou são biológicas e devem ser respeitadas e protegidas. As desigualdades são criações arbitrárias, e para que se obedeça ao princípio da isonomia, devem ser eliminadas. Estabeleceu a regra da igualdade jurídica entre marido e mulher e equiparou os filhos ilegítimos aos havidos durante o casamento. Organizou as bases da democracia social pelas disposições sobre educação pública e direito trabalhista. Reforça a função social da propriedade ao dispor que “a propriedade obriga”, e prevê que o Estado tem o dever de estabelecer a política do pleno emprego. A participação dos empregados e empregadores na regulação estatal da economia, previstas no texto da Constituição, foi utilizada pelo movimento fascista, MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 21 que as deformou, criando a organização corporativa da economia, sob a dominação do partido único. Por fim, temos a fase de Internacionalização dos Direitos Humanos, no pós- Segunda Guerra Mundial, com a elaboração da Carta de São Francisco, em 1945, tratado que cria da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1948, a ONU proclama a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento que simboliza, com os Pactos Internacionais, 1966, o processo de internacionalização dos direitos humanos em escala global. Devido à sua importância, o tema será tratado em um capítulo próprio. Obs.: Vou adicionar aqui alguns temas, tratados por Comparato em sua obra, para que vocês saibam da existência de tais documentos. Como são temas atuais, achei importante mencionar, ok? 7. Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, 1972 Foi o primeiro tratado internacional que reconheceu a existência de um “direito da humanidade”, referindo-se a bens que pertencem a todos e não podem ser apropriados por ninguém. Temos aqui a proteção de direitos difusos, de 3.ª geração. Os artigos 1.º e 2.º definem patrimônio cultural e natural. São valores culturais a serem preservados, criados pelo homem ou inerentes à natureza, que merecem proteção pela sua importância científica ou estética. Também em 1972, terá início, a Convenção de Estocolmo, a proteção internacional do meio ambiente. A crítica feita por Comparato se refere à ausência, no texto do tratado, da proteção de pinturas e esculturas depositadas em museus, bem como das bibliotecas. São bens que merecem tal proteção. Ressalta ainda a necessidade de criminalizar atos de furto, roubo e receptação como crimes contra a humanidade, com sanções adequadas e competência de qualquer Estado-parte para processar e punir os responsáveis. 8. Convenção sobre o Direito do Mar, 1982 A Convenção sobre o Direito do Mar (Convenção de Montego Bay), assinada em 10 de dezembro de 1982, em Montego Bay, na Jamaica, resguarda os direitos fundamentais da humanidade sobre os mares e oceanos. De um lado, regula a exploração e aproveitamento dos fundos marinhos e oceânicos e seu subsolo, traçando os limites da jurisdição de cada país. De outro lado, trata da conservação dos recursos vivos e da proteção e preservação do meio marinho. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 22 Fábio Konder Comparato a destaca como um quarto estágio na titularidade subjetiva dos direitos humanos: passamos da proteção dos indivíduos (direitos civis e políticos) à dos grupos sociais vulneráveis (direitos sociais, econômicos e culturais), avançando para a proteção dos povos, e, por fim, trazendo direitos fundamentais de toda a humanidade. É o tratado mais longo do direito internacional, com 319 artigos e 8 anexos. O texto reconhece o leito do mar, os fundos marinhos e seu subsolo, além dos limites da jurisdição nacional, como patrimônio da humanidade (art. 136). A convenção denota uma perspectiva solidária, aos resguardar interesses e necessidades dos países em desenvolvimento, dos países costeiros e sem litoral, além de considerar, em especial, os interesses de países subdesenvolvidos. Com a Convenção, surge uma organização mundial de exploração econômica de recursos naturais, em benefício de toda a humanidade, contrariando a lógica da exploração capitalista e impedindo a apropriação de tais recursos por algum Estado em particular. Foi o primeiro documento internacional a reconhecer, como principal fator de produção dos tempos modernos, a tecnologia. O saber tecnológico, que representa o grande capital, está concentrado em grandes empresas transnacionais, com sede em países desenvolvidos. Por esse motivo, alguns países se recusaram a assinar a Convenção, a exemplo dos Estados Unidos. O texto apenas entra em vigor em 16 de novembro de 1994. Com a saída dos países socialistas da Europa Oriental, que desequilibrou a composição do Conselho, órgão executivo da Autoridade (ver artigos 161 e 162), decidiu-se aprovar um Acordo relativo à aplicação da Parte XI da Convenção. Esse acordo entrou em vigor em 28 de julho de 1996 e mudou a composição original do Conselho, por causa do desaparecimento dos Estados comunistas da Europa Oriental. O Acordo prevê, em seu artigo 2.º, que as suas normas e a Parte XI da Convenção devem ser interpretadas e aplicadas em conjunto, como um só e mesmo instrumento. Entretanto, se houver incompatibilidade, devem prevalecer as disposições do Acordo. Consta também do Acordo um Anexo, que prevê redução de custos e regras sobre como deve ocorrer a exploração dos recursos dos fundos marinhos. Trata ainda da transferência de recursos, infelizmente, com normas de aparência, que inviabilizam sua aquisição por países em desenvolvimento e tornando sem sentido a previsão segundo a qual: “em regra geral, os Estados-partes esforçam- se para promover a cooperação científica e técnica internacional, no tocante às atividades desenvolvidas na Zona, seja entre as partes interessadas, seja pela colaboração dos programas de formação, de assistência técnica e de cooperação MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 23 científica em matéria de ciências e técnicas marinhas e no campo da proteção e da preservação do meio marinho.” 9. Convenções sobre Proteção do Meio Ambiente, 1992 Como visto, a preocupação internacional com a proteção do meio ambiente se inicia em 1972, com a Conferência de Estocolmo. Após vinte anos, também no âmbito da ONU, surgem duas novas Convenções Internacionais: Convenção sobre a Diversidade Biológica, que entrou em vigor no cenário internacionalem 29 de dezembro de 1993 (no Brasil, promulgada pelo Decreto n. 2519, de 16 de março de 1998), e a Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima, que passou a vigorar em 21 de março de 1994 (no Brasil, promulgada pelo Decreto n. 2652, de 1.º de julho de 1998). As duas Convenções se valem do princípio da solidariedade, tanto presente quanto futura, ou seja, solidariedade entre todas as nações, povos e grupos humanos das presentes e futuras gerações. Para tanto, é necessário cuidar do meio ambiente desde agora, buscando superar as atuais condições de degradação ambiental em todo o mundo. Existe um dever universal de desenvolvimento sustentável, que deve ser garantido, não só pelo Estado, mas por todos os países, de forma universal. A Comissão Mundial sobre o Desenvolvimento Econômico, da ONU, no relatório elaborado em 1987, chamado Nosso Futuro Comum, definiu o desenvolvimento sustentável como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente, sem comprometer as aptidões das futuras gerações e satisfazer suas próprias necessidades.” O grande desafio consiste em harmonizar as necessidades com as limitações impostas para se preservar o meio ambiente. Como ressalta Comparato, não existe uma instância supranacional para limitar a soberania dos Estados e punir os responsáveis, o que dificulta a implementação de um sistema internacional eficaz de proteção do meio ambiente. Daí a necessidade de se incluir os atos degradação significativa do meio ambiente no rol dos crimes contra a humanidade. Enfrentamos sérios problemas advindos do desenvolvimento, do sistema capitalista de produção, por exemplo: ✓ Aquecimento global (agravado pela industrialização acelerada de China e Índia, no final do século XX. Estima-se que a temperatura média da Terra irá aumentar de 1,4°C a 5,8°C até o final do século XXI); ✓ Centrais nucleares (já tivemos três graves acidentes: Three Mile Island, nos EUA, em 1979; Chernobyl, na ex-URSS, em 1986 e Fukushima, no Japão, em 2011). Ademais, ainda não temos solução para o estoque de material radioativo não mais utilizável, de modo a evitar a difusão radioativa. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 24 Na visão de Comparato, “o respeito à biodiversidade representa o fundamento biológico do direito à diferença, em matéria de gênero, etnia ou tradição cultural. A humanidade se fortalece pela preservação das diferenças naturais e culturais, e se enfraquece com a instituição de desigualdades sociais, isto é, de situações de dominação de uns sobre outros, fundadas na pretensa superioridade universal de um sexo, de uma raça, ou de uma cultura.” Importante ainda ressaltar que, nenhuma espécie de ser vivo pode ser monopolizada ou apropriada por ninguém. O genoma de qualquer espécie biológica é um patrimônio universal. Já enfrentamos as graves consequências econômicas do reconhecimento da propriedade industrial sobre organismos geneticamente modificados, que gera danos aos agricultores e consumidores, em benefício de grandes empresas produtoras. Temos sempre que ter em mente a afirmação de Kant, segundo a qual, o homem é um fim em si mesmo, não pode ser usado como meio ou instrumento para nada. As ações de preservação ambiental devem girar em torno do ser humano. O homem é o ponto culminante da evolução biológica. Na visão de Comparato, a UNESCO se equivocou ao aprovar, em 1978, a Declaração dos Direitos do Animal. A expressão deveria ser vista como um dever da humanidade de preservar a biodiversidade, e não ser interpretada de forma literal. A Convenção sobre Diversidade Biológica inclui a biodiversidade no desenvolvimento sustentável da humanidade, reconhecendo em seu preâmbulo que, o desenvolvimento econômico e social e a erradicação da pobreza são prioridades absolutas dos países em desenvolvimento e que a mulher tem papel fundamental na conservação e na utilização sustentável da diversidade biológica. Infelizmente, como foi aprovada sob a influência da ideologia neoliberal, a Convenção não prevê mecanismos de preservação da biodiversidade no plano supranacional, estabelecendo como princípio a soberania dos Estados para explorar os recursos biológicos existentes em seu território, conforme suas próprias políticas ambientais. A consequência é a submissão dos países fracos ao poderio de empresas transnacionais. Essa previsão excluiu a ideia de um direito fundamental da humanidade a esse patrimônio nacional, admitindo a possibilidade de propriedade intelectual desses recursos, diretamente ou por meio de sua utilização tecnológica. A exigência de cooperação técnica e científica e do apoio financeiro, previstos nos artigos 18 e 20, respectivamente, não são capazes de superar as desigualdades tecnológicas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Ressalte-se ainda que, a Convenção não tratou dos produtos transgênicos ou organismos geneticamente modificados, em clara violação ao princípio da precaução: compete aos produtores, e não aos consumidores ou autoridades MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 25 públicas, provar a que que os organismos geneticamente modificados são inofensivos. Sendo assim, a proteção normativa da biodiversidade é incompleta. A Convenção contém, além do texto principal, dois anexos. O primeiro se refere à identificação e à supervisão dos ecossistemas e habitat, bem como de espécies e comunidades que estejam sendo ameaçadas. O segundo anexo regula a arbitragem de controvérsias entre os Estados-partes na Convenção. A Conferência do Rio de Janeiro aprovou, além da Convenção sobre a Diversidade Biológica, uma Declaração sobre o Desenvolvimento Sustentável e um programa de ação para os anos seguintes, chamado de Agenda 21. Na Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima, aprovada em Nova Iorque, no mesmo, 1992, temos como objetivo final alcançar a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático. Segundo a Convenção, “esse nível deverá ser alcançado num prazo suficiente que permita aos ecossistemas adaptarem-se naturalmente à mudança do clima, que assegure que a produção de alimentos não seja ameaçada e que permita ao desenvolvimento econômico prosseguir de maneira sustentável.” A Convenção estabelece como órgão supremo a Conferência das Partes, que realiza exame regular sobre a implementação do texto e dos instrumentos jurídicos a serem adotados. A Conferência das Partes entrou em vigor em 1994 e realiza reuniões anuais dos Estados-partes. Um protocolo foi assinado em Quioto, no Japão, em 1998, com previsão de redução percentual na emissão de gases na atmosfera, variável nas diferentes regiões do mundo e considerando os padrões de poluição de 1990. Esse protocolo só entrou em vigor em 2005, estabelecendo um programa para a progressiva redução na emissão de gases de efeito estufa até 2012. Os Estados Unidos se recusaram a aderir ao protocolo, assim como já tinham se recusado a assinar a Convenção sobre a Diversidade Biológica. De acordo com Comparato, 191 países haviam assinado e ratificado o Protocolo de Quioto, em setembro de 2011. Em junho de 2012, foi realizada, no Rio de Janeiro, a Conferência Rio+20. O relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, elaborado a cada 5 anos, advertiu que, dos 90 objetivos definidos como prioritários para a preservação ecológica, menos da metade tinha alcançado algum progresso, 24não apresentaram melhora alguma e 8 registraram uma situação degradada. A Conferência se encerrou com um relatório final que não apresentava compromissos sérios dos Estados para preservação da vida no planeta, gerando grande frustração. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 26 Os principais emissores de gases de efeito estufa, Estados Unidos e China, decidiram celebrar um acordo bilateral para reduzir essa emissão, em novembro de 2014. Entretanto, não existe um órgão supranacional que possa fiscalizar o cumprimento desses acordos e sabemos que países desenvolvidos não vão abrir mão dos seus interesses em prol do bem-estar, ou mesmo da sobrevivência da humanidade. Nas palavras de Comparato, “o egoísmo institucionalizado tem instintos suicidas”. Destaco agora uma importante e recente notícia da ONU acerca do meio ambiente: O Conselho de Direitos Humanos da ONU reconheceu no dia 08 de Outubro de 2021, pela primeira vez, que ter o meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano. O texto, proposto pela Costa Rica, Maldivas, Marrocos, Eslovênia e Suíça, passou com 43 votos a favor e com 4 abstenções da Rússia, Índia, China e Japão. Com a decisão, o Conselho pediu aos Estados em todo mundo que trabalhem em conjunto e com outros parceiros para implementar esse novo direito reconhecido. Ao mesmo tempo, por meio de uma segunda resolução (48/14), o Conselho também aumentou o seu foco no impacto da mudança climática nos direitos humanos ao estabelecer um relator especial dedicado a essa questão específica. A deliberação veio semanas antes da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP 26, que vai acontecer no começo de novembro de 2021, em Glasgow, na Escócia. Fonte: https://brasil.un.org/pt-br/150667-meio-ambiente-saudavel-e-declarado- direito-humano-por-conselho-da-onu O que é a COP 26? A COP é a abreviatura de Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), que é um evento que acontece anualmente, mas foi adiado no ano passado por causa da pandemia. Os líderes mundiais comparecem, mas muitas das discussões acontecem entre ministros e outras autoridades de alto nível que trabalham com questões climáticas. O 26 significa que esta é a 26ª reunião do grupo. As conferências são eventos massivos com muitas reuniões paralelas que atraem pessoas do setor empresarial, empresas de combustíveis fósseis, ativistas MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 27 do clima e outros grupos com interesse na crise climática. Alguns deles são bem-sucedidos — o Acordo de Paris foi firmado durante a COP21, por exemplo — e alguns são dolorosamente improdutivos. Mais de 190 países assinaram o Acordo de Paris após a reunião da COP 21, em 2015, para limitar o aumento das temperaturas globais abaixo de 2 graus Celsius dos níveis pré-industriais, mas de preferência para 1,5 graus. Meio grau pode não parecer uma grande diferença, mas os cientistas dizem que qualquer aquecimento adicional além de 1,5 grau irá desencadear eventos extremos climáticos mais intensos e frequentes. Por exemplo, limitar o aquecimento a 1,5 graus em vez de 2 graus pode resultar em cerca de 420 milhões de pessoas a menos sendo expostas a ondas de calor extremas, de acordo com a ONU. Os cientistas vêem 2 graus como um limite crítico onde o clima extremo transformaria algumas das áreas mais densamente povoadas do mundo em desertos inabitáveis ou as inundaria com água do mar. Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/saiba-o-que-sera-a-cop-26-e- os-principais-temas-polemicos-em-discussao/ Cabe ressaltar que o direito ao meio ambiente sadio, apesar de não estar em nenhum tratado do sistema global, já está previsto em documentos dos sistemas regionais de proteção de direitos humanos, como por exemplo, no artigo 24 da Carta Africana e no artigo 11 do Protocolo de San Salvador. Apesar de não estar expressamente previsto na Convenção Europeia, o direito é considerado requisito fundamental para o exercício de outros direitos, pela Corte Europeia de Direitos Humanos. Nota-se, no cenário internacional, um fenômeno conhecido como greening, ou esverdeamento, do direito internacional, reforçando-se a preocupação da proteção do meio ambiente sadio na jurisprudência das Cortes Internacionais. MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 28 Evolução dos Direitos Humanos e Documentos Históricos Antiguidade Oriental ✓ Período compreendido entre os séculos VIII a II a.C.: primeiro passo na afirmação dos direitos humanos. Adoção de códigos de comportamentos de vários filósofos influentes até os dias atuais (Zaratustra, Buda, Confúcio) ✓ Antigo Egito: reconhecimento de direitos individuais na codificação de Menes (3100-2850 a.C.) ✓ Suméria antiga: Código de Hammurabi (1792-1750 a.C.) , na Babilônia, com esboço dos direitos dos indivíduos e consolidação de costumes. ✓ Suméria e Pérsia: Declaração de boa governança de Ciro II, no século VI a.C. (Cilindro de Ciro). ✓ China: Confúcio (séculos VI e V a.C.) lançou as bases para sua filosofia, com ênfase na defesa do amor aos indivíduos. ✓ Budismo: introdução de um código de conduta pelo qual se prega o bem comum e uma sociedade pacífica, sem prejuízo a qualquer ser humano. ✓ Islamismo: prescrição da fraternidade e solidariedade dos vulneráveis. Grécia ✓ Consolidação dos direitos políticos com a participação política dos cidadãos (muitos eram excluídos) ✓ Platão, na obra A República (400 a.C.), defendeu a igualdade e a noção do bem comum. ✓ Aristóteles, na obra Ética a Nicômaco, salientou a importância do agir com justiça para o bem de todos, mesmo em face de leis injustas. ✓ Ideia de superioridade normativa de determinadas normas, mesmo diante do poder estatal. Roma ✓ Sedimentação do princípio da legalidade ✓ Reconhecimento de direitos como liberdade, propriedade, personalidade jurídica e igualdade entre as pessoas, em especial através do jus gentium (direito aplicados a todos, romanos ou não) MENTORIA DIREITOS HUMANOS Polícia Civil MG – Todos os cargos 29 Influências do Cristianismo ✓ Cinco livros de Moisés (Torah): apregoam solidariedade e preocupação com o bem-estar de todos (1800-1500 a.C.) ✓ Antigo Testamento: necessidade de respeito a todos, em especial aos vulneráveis. ✓ Novo Testamento: vários textos da Bíblia pregam a igualdade e solidariedade com o semelhante. ✓ Filósofos católicos: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Idade Média e Idade Moderna ✓ Poder ilimitado dos governantes, baseado na vontade divina. ✓ Primeiros movimentos de reivindicação da liberdade a determinados estamentos, como a Declaração das Cortes de Leão, na Península Ibérica, em 1188 e a Magna Carta Inglesa, de 1215 (devido processo legal, limitação do poder de tributar e do confisco, Tribunal do Júri, princípio da legalidade). ✓ Renascimento e Reforma Protestante: crise da Idade Médio e surgimentos dos Estados Nacionais absolutistas, com centralização do poder na figura do rei ✓ Século XVII: questionamento do Estado Absolutista, em
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