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Panorama da Poesia Contemporânea Brasileira

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LITERATURA BRASILEIRA III
O PANORAMA CONTEMPORÂNEO – 
TENDÊNCIAS DA LÍRICA
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Olá!
Ao final desta aula, o aluno será capaz de: 1. Verificar o panorama das tendências da poesia contemporânea; 2.
identificar poemas representativos deste período; 3. fazer a leitura de poemas de autores representativos deste
momento histórico e literário.
“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
par cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo
ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.”
(Manoel de Barros. O livro das ignorãças)
Chamamos de produções contemporâneas as obras produzidas nas últimas três décadas e que são
flagrantemente marcadas pelo momento histórico caracterizado, no início, pelo autoritarismo, pela censura.
Somente a partir dos anos 80, pudemos vivenciar o início de um período de democratização no Brasil.
Nos anos que marcaram a virada do século XX para o século XXI, percebemos a presença praticamente exclusiva
da sociedade tecnológica e do capitalismo globalizado. E, é claro, que estas modificações influenciaram as
produções artísticas e literárias de nossos escritores.
Em ternos de poesia, podemos verificar o aprofundamento da reflexão sobre a realidade e a permanente busca
de novas formas de expressão.
Ainda seguindo a tradicional poesia discursiva, permanecem nomes como Adélia Prado, Arnaldo Antunes, Glauco
Mattoso (na segunda fase de sua poesia), entre outros. Como exemplo de poeta preocupado com inovações
expressivas na linguagem, podemos citar Manoel de Barros.
Adélia Prado, em seus textos, retrata o cotidiano com encanto e perplexidade diante do que vê. Como
característica de seu estilo, está presente a abordagem lúdica, norteada pela fé cristã. Carlos Drummond de
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Andrade define a poeta: "Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos
homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis.”
Vejamos seu poema “Com licença poética”, do livro (1976).Bagagem
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Ítalo Moriconi, em seu livro A poesia brasileira do século XX, diz que este poema desafia a tradição poética, “ao
reescrever o Poema de sete faces de Drummond, afirmando, de maneira ostensiva, a diferença de seu ponto de
vista feminino.” (MORICONI, Ítalo. A poesia brasileira do século XX. p.141). A reescritura de um texto, para os
teóricos da literatura, recebe o nome de intertextualidade. Percebemos uma relação intertextual entre o poema
“Com licença poética”, de Adélia Prado, e o poema modernista “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de
Andrade.
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Na opinião de Moriconi, Adélia, neste poema, apresenta um gesto ousado – o deslocamento de ponto de vista. No
poema de Drummond, há um poeta homem que falava por todos. No poema de Adélia, há a poeta mulher que fala
por ela mesma. Para Moriconi: “o poema declara: homem não pode falar por mulher”. (MORICONI, Ítalo. A poesia
brasileira do século XX. p.143)
Este poema de Adélia Prado afirma a pluralidade de gênero na contemporaneidade. Cada um fala daquilo que
sabe e pode falar. Diferente do que se acreditava no contexto poético modernista dos anos 20 em que o ponto de
vista masculino era absoluto. Em se tratando das figuras dos anjos, percebemos que o Anjo de Carlos Drummond
de Andrade é “torto” e “vive na sombra”, o de Adélia é “esbelto” e “toca trombeta.” Desfazendo a linha gauche
drummondiana, a poeta, intencionalmente, quis dar um tom positivo a seu poema.
Outro dado que convém ser mencionado é a figura deste anjo esbelto, anunciador que recusa o anjo das sombras,
satânico de Drummnond. Nos poemas de Adélia Prado, as portas nunca estão abertas para o demônio nem como
figura poética. “Ela faz poesia com Deus”. (MORICONI, Ítalo. A poesia brasileira do século XX. p.144).
Passemos, agora, ao estudo de Glauco Mattoso
Glauco Mattoso é pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva. Na verdade, trata-se de um trocadilho, mais
facilmente entendido se o lermos como se fosse uma única palavra – “glaucomatoso”. O poeta é portador de
glaucoma, doença congênita que lhe acarretou perda progressiva da visão, até a cegueira total em 1995. Este
pseudônimo é, também, uma espécie de homenagem a Gregório de Matos, poeta barroco, de quem o pós-
modernista é herdeiro na sátira e na crítica de costumes.
Em 1970, Glauco Mattoso participou do grupo de poesia marginal e do movimento de resistência cultural à
ditadura militar.Na década de 1990, já cego, abandonou a poesia concreta para se dedicar a outras atividades
artísticas.
O professor Pedro Ulysses Campos divide a obra de Glauco Mattoso em duas fases: fase visual e fase cega. Na
primeira, o poeta vai do experimentalismo modernista até o concretismo, privilegiando o aspecto gráfico do
poema. Na segunda fase, Glauco abandona o concretismo e passa a compor sonetos que aludem aos de Gregório
de Matos.
Vejamos alguns poemas de Glauco Mattoso:
Soneto Nojento
Tem gente que censura o meu fetiche:
lamber pé masculino e o seu calçado.
Mas, só de ver no que o povo é chegado,
não posso permitir que alguém me piche.
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Onde é que já se viu ter sanduíche
de fruta ou vegetal mal temperado?
E pizza de banana? E chá gelado?
Frutos do mar? Rabada? Jiló? Vixe!
Café sem adoçar? Feijão sem sal?
Rã? Cobra? Peixe cru? Lesma gigante?
Farofa de uva passa? Isso é normal?
Quem gosta disso tudo não se espante
com minha preferência sexual:
lamber o pé e o pó do seu pisante.
Soneto 951 Natal
Nasci glaucomattoso, não poeta.
Poeta me tornei pela revolta
que contra o mundo a língua suja solta
e a vida como báratro interpreta.
Bastardo como bardo, minha meta
jamais foi ao guru servir de escolta
nem crer que do Messias venha a volta,
mas sim invectivar tudo o que veta.
Compenso o que no abuso se me impôs
(pedal humilhação) com meu fetiche,
lambendo, por debaixo, os pés do algoz.
Mas não compenso, nem que o gozo esguinche,
masoca, esta cegueira, e meus pornôs
poemas de Bocage são pastiche.
Arnaldo Antunes é outro poeta que figura neste cenário contemporâneo. Ele não é somente músico e ex-
integrante do grupo de rock Titãs, é poeta também. Vejamos alguns de seus poemas.
Olho o olho do outro,
penso o que ele pensa.
Voltar a mim é a minha
diferença.
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Olho o olho até turvá-lo,
penso que ele não pensa.
Ir com a água é a minha
recompensa.
(De Psia (1986))
Os sapatos ficam entre os pés
e o chão, no que são como as
palavras. As meias entre os pés
e os sapatos, como os adjetivos.
Os verbos, passos. Cadarços, lagos.
Os pés caminham lado a lado,
calçados. Sapatos são calcados.
Porque são e porque são usados.
Palavras são pedaços. Os pés
descalços caminham calados.
(De 2 ou + corpos no mesmo espaço (1997)
TUDOS
Estou cego a todas as músicas
Não ouvi mais o cantar da musa.
A dúvida cobriu a minha vida
Como o peito que me cobre a blusa.
Já a mim nenhuma cena soa
Nem o céu se me desabotoa.
A dúvida cobriu a minha vida
Como a língua cobre de saliva
Cada dente que sai da gengiva.
A dúvida cobriu a minha vida
Como o sangue cobre a carne crua,
Como a pele cobre a carne viva,
Como a roupa cobre a pele nua.
Estou cego a todas asmúsicas.
E se eu canto é como um som que sua.
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Encerraremos nossa aula com o estudo da poesia de Manoel de Barros.
Manoel de Barros, em 1937, publicou seu primeiro livro Poemas concebidos sem pecado, feito artesanalmente
por 20 amigos, numa tiragem de 20 exemplares, mas somente nas décadas de 1980 – 1990 foi reconhecido e
consagrado pelo público, mas não um público acostumado a uma lírica tradicional.
Na década de 1980, Millôr Fernandes resolveu mostrar ao público a poesia de Manoel de Barros nas revistas Veja
e Isto é e no Jornal do Brasil. Juntaram-se a Millor Fernandes Fausto Wolff e Antônio Houaiss. Após tanta
apresentação e recomendação, a Editora Civilização Brasileira publicou os poemas de Manoel de Barros, sob o
título de Gramática expositiva do chão.
Em entrevista a José Castello, em 1996, do jornal O Estado de São Paulo, Manoel responde sobre sua rotina de
poeta:
"Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo 'lugar de ser inútil'. Exploro há 60
anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7
horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases,
desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro
esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler "Vozes da Origem".
Gosto de coisas que começam assim: "Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro
homem". Está no livro "Vozes da Origem", da antropóloga Betty Mindlin. Essas leituras me ajudam a
explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que
na ponta de meu lápis tem um nascimento." Quando alguém faz referência a seu anonimato ele diz
que foi “por minha culpa mesmo. Sou muito orgulhoso, nunca procurei ninguém, nem frequentei 
rodas, nem mandei um bilhete. Uma vez pedi emprego a Carlos Drummond de Andrade no Ministério
da Educação e ele anotou o meu nome. Estou esperando até hoje”.
Manoel de Barros apresenta sua “autobiografia” dessa maneira:
• "Nasci na beira do rio Cuiabá.
• Passei a vida fazendo coisas inúteis.
• Aguardo um recolhimento de conchas. (E que seja sem dor, em algum banco de praça, espantando da 
cara as moscas mais brilhantes).”
Sobre sua escrita, o poeta a define em uma frase:
“Noventa por cento do que escrevo é invenção.
Só dez por cento é mentira”.
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Podemos dizer que inútil, nada, coisa, bichos são algumas palavras-chave da poesia de Manoel de Barros que
tenta, através delas, reconstruir o mundo. Ênio Silveira, editor das obras de Manoel de Barros, fala sobre a
estratégia do poeta: “guiados por ele, vamos abrindo horizontes de uma insuspeitada nova ordem natural, onde
as verdades essenciais, escondidas sob a ostensiva banalidade do óbvio e do cotidiano, vão se revelando em
imagens surrealistas descritas com absoluta concisão.”
No texto de abertura do Livro sobre nada, Manoel de Barros afirma que “o nada de meu livro é nada mesmo. É
coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras,
o parafuso de veludo, etc,etc. O que eu queria fazer era brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada
mesmo. Tudo que use abandono por dentro e por fora.”
Vejamos os três primeiros poemas de Manoel de Barros do . Observe a força expressiva dosLivro sobre nada
prefixos que indicam ação contrária. Podemos pensar que seja uma tentativa de o poeta em mudar a ordem das
coisas. É importante, também, atentar para a antítese formada por aqueles que só têm “entidade coisa” e o
“senhor doutor”: http://estaciodocente.webaula.com.br/cursos/gon106/pdf
/aula_7_trecho_do_primeiro_ato_de_vestido_de_noiva.pdf
O que vem na próxima aula
• O panorama das tendências da prosa contemporânea;
• a produção literária dos autores de ficção representativos deste período;
• leitura de contos representativos deste momento histórico e literário.
CONCLUSÃO
Nesta aula, você:
• Verificou o panorama das tendências da poesia contemporânea;
• identificou poemas representativos deste período;
• leu poemas de autores representativos deste momento histórico e literário.
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	Olá!
	
	O que vem na próxima aula
	CONCLUSÃO

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