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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI ANTROPOLOGIA GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 3 2 HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA ............................................................................. 4 2.1 O que é antropologia ............................................................................................. 5 2.2 Ramos da antropologia .......................................................................................... 8 3 PERSPECTIVAS DE ANÁLISE DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO ............. 10 3.1 Antropologia pré-histórica .................................................................................... 10 3.2 Antropologia linguística ........................................................................................ 12 3.3 Antropologia psicológica ...................................................................................... 13 3.4 Antropologia social e cultural ............................................................................... 14 3.5 Análise do objeto de estudo da antropologia ....................................................... 15 4 O QUE É ANTROPOLOGIA: RAMIFICAÇÕES E ATRIBUIÇÕES ......................... 16 4.1 Construindo o pensamento antropológico ........................................................... 17 4.2 Influências do trabalho antropológico .................................................................. 19 4.3 Metodologias do fazer antropológico ................................................................... 21 4.4 Dilemas éticos do antropólogo ............................................................................ 23 5 RAMIFICAÇÕES E ATRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA .................................... 27 5.1 Evolucionismo Social ........................................................................................... 27 5.2 Escola Sociológica Francesa ............................................................................... 28 5.3 Funcionalismo ..................................................................................................... 29 5.4 Culturalismo norte-americano .............................................................................. 31 5.5 Estruturalismo ...................................................................................................... 34 5.6 Diálogos entre as escolas .................................................................................... 37 5.7 Antropologia nas últimas décadas ....................................................................... 39 6 ETNOGRAFIA ........................................................................................................ 41 6.1 Etnografia dentro da antropologia ....................................................................... 45 3 6.2 Estratégias e objetivos da etnografia ................................................................... 47 7 CULTURA E ANTROPOLOGIA .............................................................................. 51 7.1 A cultura condiciona a visão do homem .............................................................. 53 7.2 A cultura interfere no plano biológico................................................................... 53 7.3 Os indivíduos participam diferentemente de sua cultura ..................................... 54 7.4 A cultura tem uma lógica própria ......................................................................... 54 7.5 A cultura é dinâmica ............................................................................................ 55 7.6 O estudo antropológico sobre a cultura ............................................................... 56 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ....................................................................... 58 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA Antes de tudo, vamos analisar a etimologia da palavra “antropologia”. Esta é formada por dois radicais de origem grega: “Anthropos”, que significa homem, e ‘logos’, que significa ciência. Assim, podemos dizer que a Antropologia é o estudo do homem. Mas o que isso quer dizer? Qual o sentido de estudar o homem? Qual homem é esse estudado pela Antropologia? Como realizar o estudo do homem? Antropologia é Ciência? Como interpretar a sociedade a partir da Antropologia? A quem serve a Antropologia? Para que Antropologia? Todas essas perguntas vão sendo esclarecidas ao longo deste capítulo, a fim de que você possa aproveitar a discussão e levar um pouco dela para sua vida profissional. Começamos dizendo que a Antropologia propõe um olhar integral sobre o homem, que considere aspectos biológicos, sociais e culturais. Nesse sentido, cabe observar, analisar e compreender as inúmeras dimensões atribuídas aos seres humanos em sociedade, a fim de compreender suas modificações ao longo do tempo. Assim, François Laplantine (2003), em sua obra Aprender Antropologia, é mais preciso ao enfatizar o estudo do homem para além de um recorte temporal e territorial específicos, como diz “A antropologia não é apenas o estudo de tudo que compõe uma sociedade. Ela é o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive), ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades históricas” (LAPLANTINE, 2003, p. 12). O homem sempre foi um curioso de si próprio. E tendo estudado inicialmente a natureza, ele passou a observar, analisar e compreender o próprio homem por meio de métodos científicos importados das Ciências Biológicas até que as próprias disciplinas das Ciências Humanas desenvolvessem suas metodologias. Com isso, essas aprendizagens iniciais sobre o estudo do homem vão dando corpo a um saber científico sobre os seres humanos e seu modo de vida, possibilitando uma reflexão mais aprofundada em relação aos fenômenos das sociedades (Figura 1). 5 Cabe enfatizar que a antropologia é um movimento epistemológico importante no pensamento científico, pois o homem deixa de se perceber como o “centro da humanidade” e passa a olhar o outro, a fim de acessar, conhecer, estudar e compreender o seu modo de habitar o mundo. Ou seja, perceber-se em meio a outros é um exercício de reflexão que nos desloca a compreender as múltiplas possibilidades de viver em sociedade, apreendendo que não cabe impor um único estilo de vida para todos os seres humanos (LAPLANTINE, 2003, p. 12). 2.1 O que é antropologia Ao analisarmos o significado da palavra antropologia, verificamos que tem origem na língua grega: antropo significa “homem” e o radical logia significa “estudo”. A antropologia, portanto, é uma ciência cujo objeto de estudo é o homem na sua totalidade, ou seja, nos seus aspectos históricos,biológicos, sociais e culturais. Trata-se de uma ciência social recente, que surgiu entre os séculos XVIII e XIX. Assim, o campo de estudo e atuação da antropologia é vasto, pois inclui aspectos biopsicossociais e culturais da humanidade, visando analisar e compreender a diversidade e complexidade do ser humano. 6 O autor François Laplantine, antropólogo francês, na obra Aprender antropologia (1989), afirma que o conceito de homem e a fundação de uma ciência para estudar, não apenas especular, as questões e complexidades próprias da existência humana ocorreram somente a partir do século XVIII: Enquanto encontramos no século XVI elementos que permitem compreender a pré-história da antropologia, enquanto o século XVII (cujos discursos não nos são mais diretamente acessíveis hoje) interrompe nitidamente essa evolução, apenas no século XVIII é que entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1996), na modalidade. Apenas nessa época, e não antes, é que se pode apreender as lições históricas, culturais e epistemológicas de possibilidade daquilo que vai se tornar a antropologia (LAPLANTINE, 1989, p. 54). Nesse sentido, o autor coloca que o projeto de formulação de uma ciência antropológica supôs a construção de certo número de conceitos, começando pelo conceito de homem — como sujeito e objeto do saber —, bem como a constituição de um saber de observação, não só de reflexão, ou seja, um novo modo de acesso ao homem, na sua existência concreta — o que envolve as suas linguagens, relações e comportamentos. Assim, a antropologia estuda, principalmente, costumes, crenças, hábitos e aspectos físicos dos diferentes povos que habitaram e habitam o planeta. Portanto, os antropólogos se dedicam ao estudo da diversidade humana, tanto de sociedades antigas quanto modernas, seus hábitos, rituais, crenças e mitos, por exemplo. Os aspectos da evolução humana também integram os temas da antropologia. Uma das perguntas relativas ao estudo do homem é como coletar dados sobre os diferentes grupos. Não basta viajar, especular ou ter curiosidade, mas organizar, sistematizar, processar e interpretar dados e observações. Assim, como 7 fontes de pesquisa, os antropólogos podem utilizar desde livros, documentos e objetos até depoimentos, vivências e observação (LAPLANTINE, 1989). Dessa forma, os principais métodos de estudo utilizados na antropologia envolvem pesquisas de campo, como a etnografia e a observação participante — que consiste basicamente em vivenciar experiências e práticas de outras culturas, com imersão, para entendê-las. Essas pesquisas foram desenvolvidas por importantes antropólogos ao longo da história, como: o antropólogo polaco Bronislaw Malinowski, que conviveu com povos nativos australianos no século XX e registrou os seus estudos etnográficos no livro Os argonautas do Pacífico Ocidental; o americano Franz Boas, que estudou povos nativos e esquimós norte- americanos; o francês Marcel Mauss, que estudou a reciprocidade entre sociedades, além de religiões e sociedades esquimós; o francês Claude Lévi-Strauss, que escreveu sobre antropologia estrutural, mitos e parentesco, além de ter vivido alguns anos no Brasil, considerado fundador do estruturalismo na antropologia; o estadunidense Clifford Geertz, da antropologia contemporânea, realizou estudos de campo e publicou obras como O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. No Brasil, importantes antropólogos são referências em estudos, pesquisas e obras, como Darcy Ribeiro, que escreveu sobre a formação do povo brasileiro e educação, Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, Roberto Kant de Lima, Lilia Schwarcz, além de Alba Zaluar, entre outros. Tratando-se das principais tendências do pensamento antropológico contemporâneo, podemos verificar que as principais são: antropologia americana; antropologia britânica; antropologia francesa. Há autores que caracterizam diferentes escolas antropológicas, como: evolucionismo social; escola antropológica (ou sociológica) francesa; 8 funcionalismo; culturalismo norte-americano; estruturalismo; antropologia interpretativa; antropologia pós-moderna. O quadro a seguir elucida as tendências gerais contemporâneas, com base em Laplantine (1989, p. 100). 2.2 Ramos da antropologia A antropologia pode desenvolver análises, estudos e pesquisas relacionadas a diferentes temáticas: históricas; culturais; biológicas; 9 físicas; psicológicas; linguísticas; sociais. O campo de estudo e investigação da antropologia compreende, portanto, todo e qualquer grupo social, manifestação cultural, bem como todo espaço habitado e tempo de existência humana. Nesse sentido, considerando que o objeto de estudo da antropologia é complexo e não há uma única forma de abordagem dos fenômenos e das obras humanas, há diferentes ramos na antropologia que podemos compreender como áreas específicas, isto é, como um conjunto de saberes e conhecimentos próprios relacionados a um tema. É importante observarmos que não se trata de uma classificação rígida, pois são áreas que podem dialogar entre si e estabelecer conexões com outras ciências (LAPLANTINE, 1989). Em geral, a antropologia divide-se em duas grandes áreas de estudo: antropologia biológica ou física; antropologia cultural. Porém, há diferentes formas de classificar os ramos e campos interdisciplinares dessa ciência, considerando possíveis polos de atuação (antropologia simbólica, social, cultural, estrutural e sistêmica) e/ou a relação com outras ciências, como arte (antropologia da arte), medicina (antropologia da saúde), Direito (antropologia jurídica), biologia e sociologia. São exemplos: Antropologia física — dimensão biológica; estuda as mudanças evolutivas do homem, sua anatomia, ou seja, sua natureza física, procurando conhecer suas origens e seus processos fisiológicos. Antropologia cultural — dimensão sociocultural; abrange o estudo do homem como ser cultural, que produz cultura, ritos e manifestações diversas; busca investigar os comportamentos culturais, adquiridos e manifestos por meio do aprendizado, dos diferentes grupos e processos históricos. 10 Antropologia social — abrange a inserção do homem na estrutura social, que envolve as diferentes sociedades e instituições; considera as diferenças existentes entre grupos humanos e as relações sociais travadas nos diferentes âmbitos da vida social, como o familiar, o econômico, o político, o religioso e o jurídico. Antropologia linguística — estuda o ser humano a partir da linguagem com que se comunica e se expressa em um contexto social e cultural, seja ela verbal, escrita, artística, entre outras. 3 PERSPECTIVAS DE ANÁLISE DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO Inúmeras subdivisões podem apresentar o campo de estudos da Antropologia, assim, optamos por identificar os subconjuntos que traçam as perspectivas de análise que compuseram o desenvolvimento da disciplina 3.1 Antropologia pré-histórica Os estudiosos da área de antropologia se interessam pela pesquisa dos seres humanos existentes, mas também daqueles que já deixaram de existir. Denominamos Antropologia pré-histórica o estudo que busca reconstituir e entender as sociedades antepassadas, por meio de vestígios materiais da presença humana enterrados no solo. Essa perspectiva de análise da Antropologia, preocupada com sociedades que não existem mais, ganhou métodos, conceitos e aporte teóricos próprios, sendo intitulada de Arqueologia (BAHN E RENFREN, 1998). Sabe-se que os homens se adaptaram em meio a transformações em seus organismos, e eles tiveram de lidar ao longo de 2 milhões de anos. Dessa maneira, cabe aos arqueólogos desvendar e explicar as mudanças que ocorreram nas sociedades por meio de registros arqueológicos,sendo eles materiais, peças, artefatos que constituíram o modo de vida desses antepassados. A partir desses materiais, os arqueólogos vão propor hipóteses e teorias sobre como as sociedades se desenvolveram ao longo do tempo, além de compreenderem as características culturais pertencentes aos povos e grupos que deixaram de existir. Nesse sentido, 11 conhecer a cultura de uma sociedade que não mais existe a partir dos seus vestígios materiais permite acessar elementos que compõem a identidade dessa sociedade. Como o arqueólogo Pedro Funari (2013, p. 101) reforça sobre essa disciplina, “a criação e a valorização de uma identidade nacional ou cultural relacionam- -se, muitas vezes, com a Arqueologia”. A metodologia utilizada para esse trabalho também é científica, uma vez que a disciplina estabelece procedimentos sistemáticos para acessar os objetos e desenvolve um arcabouço teórico para interpretar a relação entre esses objetos e os antepassados. Conforme Bahn e Renfren (1998), os passos e técnicas empregadas na Arqueologia envolvem: o levantamento de informações sobre o local, que pode ser através da escrita ou da oralidade; a prospecção do local, que são intervenções no subsolo para buscar primeiros vestígios materiais para definir a área de interesse; a escavação da área, que pode ser realizada com a utilização de instrumentos elétricos ou mesmo com a ajuda de objetos usando a força humana; e a análise arqueológica, que é quando os materiais, encontrados nos sítios arqueológicos, são levados para análise no laboratório. Esses locais onde ocorre o trabalho de campo são os chamados sítios arqueológicos. Nesses sítios, existem indícios de ocupação humana no passado, e, a partir de uma pesquisa arqueológica, podem ser encontrados diversos materiais que denotam a vida de sociedades antepassadas, como: ossos humanos, artesanatos, cerâmicas, pedras, representações rupestres, restos de alimentos, entre outros. Sobre esses “dados”, o arqueólogo Gordon Childe (1961, p. 11) lembra que “Todos os dados arqueológicos constituem expressões de pensamentos e de finalidades humanas e só tem interesse como tal”. Assim, analisando o material colhido, tanto de cunho cultural como biológico, é possível compreender as mudanças e proximidades entre o modo de vida dessas sociedades com as culturas atuais. Nesse sentido, até mesmo o avanço tecnológico pode ser estudado por meio dos instrumentos e ferramentas descobertas, como as lanças feitas de pedras lascadas. 12 3.2 Antropologia linguística Uma das principais questões que diferencia os animais dos seres humanos é a linguagem. Ainda que os animais emitam som em sua comunicação, há um limite nesse alcance comunicativo. Já a complexa linguagem humana é um atributo relevante do desenvolvimento dos seres humanos, uma vez que, através dela, acessamos o modo como os indivíduos vivem e se relacionam. Segundo a teoria da gramática universal (VITRAL, 1998), existem aspectos sintáticos da linguagem que são comuns a todas as línguas do mundo. Então, essa linguagem permeia uma gramática bastante desenvolvida há milhares de anos, o que torna possível refletir sobre as características universais da língua, que se difundem pelas culturas existentes. Um profundo estudioso no assunto, o antropólogo e linguista alemão Edward Sapir fez uma análise, em sua obra Language (1921), de que as próprias culturas poderiam ser pensadas como linguagens, uma vez que ele estava interessado justamente em como as formas culturais – e então as linguagens – são apropriadas e recriadas para expressar a comunicação de outras sociedades. Cabe perceber que até uma mesma língua, como o português, por exemplo, pode ter variações interpretativas e utilizações de palavras com formas distintas a partir das mudanças de sons, diferenças gramaticais e de vocabulário. Assim, também é possível fazer a reconstituição de línguas antigas comparando com a linguagem dos descendentes contemporâneos, traçando, então, um paralelo cultural histórico e desvendando relações entre sociedades que estabeleceram trocas culturais e influenciaram umas às outras. Pela linguagem, descobre-se como os povos avaliam, classificam, separam e percebem o que está em torno deles, sendo que esse modo de ver o mundo traz a especificidade cultural e até mesmo as relações desta sociedade com as outras que foram contemporâneas a ela. Ao mesmo tempo, questões culturais que envolvam os estudos de linguagem podem ser estudadas e aprofundadas por outras disciplinas. Uma dessas áreas, que a pesquisa sobre o assunto pode ser bastante frutífera, é a área da Educação, como diz Collins (2015, p. 1197): 13 O campo da antropologia linguística, por causa de sua ênfase no significado interacional situado e seu estudo intensivo de eventos comunicativos e princípios estruturantes interevento, tem contribuições específicas para dar à pesquisa educacional sobre práticas de letramento. 3.3 Antropologia psicológica Nessa perspectiva de análise do pensamento antropológico, foi abordado o estudo dos processos e funcionamento do psiquismo dos anos 70, levando em consideração que as ocorrências culturais e sociais incidem na psicologia individual e nos fundamentos psicológicos de comportamentos. Por muito tempo, a ideia interessada era justamente da relação entre a mente e o mundo, pois não haveria como os indivíduos interagirem com esse mundo sem as suas mentes. Assim, os antropólogos evidenciaram a questão da psique para estabelecer seus estudos, como explica Laplantine (1988, p. 11): De fato, o antropólogo é em primeira instância confrontado não a conjuntos sociais, e sim a indivíduos. Ou seja, somente através dos comportamentos – conscientes e inconscientes – dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual não é antropologia. É a razão pela qual a dimensão psicológica (e também psicopatológica) é absolutamente indissociável do campo do qual procuramos aqui dar conta. Ela é parte integrante dele. Ao mesmo tempo, existem processos corpóreos, como deficiências, convulsões e até doenças, que podem ser percebidos, por indivíduos e seus grupos sociais, como resultado de acontecimentos de fenômenos culturais baseados em suas crenças e valores das sociedades, como má sorte, olho gordo, feitiço, entre outros. Entretanto, para esses povos e culturas, seria desconsiderado as explicações da biologia e da natureza, pois a única explicação que faz sentido nesse seu arcabouço cultural é relativa às suas vivências culturais e seus modos de vida. Logo, os estudos possibilitados por essa perspectiva envolvem a interação dos processos culturais e mentais, de modo que a forma de perceber e de se relacionar com o mundo remetem pela biologia do indivíduo. Assim, cabe estudar como os processos biológicos e psicológicos também embasam a constituição dos fenômenos sociais expressos pelas relações entre indivíduos e grupos sociais. 14 3.4 Antropologia social e cultural No final do século XIX, o foco se dá no estudo, descrição e análise dos comportamentos sociais e estrutura social que caracterizam as diferentes sociedades existentes. Interessa, nessa perspectiva de análise do pensamento antropológico, tudo o que diz respeito à religião, às criações artísticas, às crenças, aos valores, à produção econômica, ao parentesco, às vestimentas, aos gostos, à alimentação, entre outros. Como nos lembra Marconi e Pressotto (2010), não há diferença substancial entre o “cultural” e o “social”, mas cabe dizer que os antropólogos ingleses estavam mais voltados para a Antropologia Social, e os americanos dão preferência à Antropologia Cultural. Podemos dizer que a vantagem dos estudos de culturas e sociedades contemporâneas é a possibilidade de o pesquisador conviver em meio aos seus membros para acessar, conhecer e registrar oseu modo de vida. Logo, é desenvolvida uma metodologia específica a fim de registrar e analisar os atributos culturais que interessam ao pesquisador. Trata-se da etnografia. Magnani (2010, p. 135) define a etnografia como: [...] é uma forma especial de operar em que o pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para atestar a lógica de sua visão de mundo, mas para, seguindo-os até onde seja possível, numa verdadeira relação de troca, comparar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente. Desse modo, a etnografia não é só um convívio desinteressado com o outro, pelo contrário, trata-se de um processo metodológico de busca, convivência e compreensão de modos de vida diferentes dos nossos. Essa relação de troca entre o pesquisador e o pesquisado, permite-nos acessar os meandros da vida social de culturas que pouco ou nada sabíamos possibilitado pelo “encontro etnográfico” (OLIVEIRA, 1998), no qual ambos interlocutores trocam ideias sobre o mundo em que vivem. Assim, o etnográfico observa, mas também participa dessa relação com o outro, que é referenciada pelo encontro entre seus horizontes. Desse encontro, cabe realizar registros escritos em diários de campo para compor o material de análise. A própria etimologia da palavra etnografia infere a ideia de escrever sobre um povo. Juntamente a essa escrita, ainda é possível 15 realizar entrevistas com alguns interlocutores, fotografar danças, rituais e outras performances pertinentes ao estudo, formular organogramas sobre a estrutura da sociedade estudada, tudo isso a fim de produzir materiais complementares e facilitar as interpretações em relação ao modo de vida do outro (MAGNANI, 2010) Entretanto, essa perspectiva de análise da Antropologia ainda se ramifica na etnologia, que tem como objetivo examinar, analisar e, principalmente, comparar dados registrados de diferentes sociedades, a fim de propor generalizações sobre a sociedade e a cultura. Com essas comparações e contrastes, cabia destacar diferenças e similaridades para refletir sobre os sistemas sociais e culturais. 3.5 Análise do objeto de estudo da antropologia Apesar do interesse no modo de vida do homem, a Antropologia vem complexificando as formas de estudo desse objeto conforme a disciplina se desenvolve. As primeiras sociedades e culturas estudadas estavam longe, geograficamente, da morada dos pesquisadores, assim os antropólogos se preocupavam em conhecer seus sistemas sociais, buscando, nesses estudos, a totalidade dessas sociedades, em termos de sua estrutura e organização social. Com o tempo, esses pesquisadores foram estudando sociedades mais próximas e reconheceram que valeria a pena se debruçar sobre manifestações culturais específicas, mais do que sobre a totalidade de suas ações sociais. E então, o estudo do homem foi se concentrando em aspectos da vida social que expressam os fenômenos culturais diversos, como no âmbito religioso, das cerimônias, dos rituais cotidianos, entre outros (Figura 2). 16 Logo, podemos dizer que a Antropologia foi ganhando feições e apostando em subáreas de conhecimento conforme as especificidades estudadas sobre o homem, como: a Antropologia da Saúde, Antropologia da Religião, Antropologia Visual, Antropologia Urbana, Antropologia da Alimentação, Antropologia Econômica, Antropologia Política, entre outros. Nesse sentido, criam-se problematizações teóricas que envolvem os diferentes modos de vida dos indivíduos que convivem na mesma sociedade (BALI, 2007). Soma-se a isso a questão de que a antropologia permite desnaturalizar as ações e as vivências humanas, como algo único e imutável em todas as sociedades, e ao mesmo tempo permite estudar os elementos culturais em cada contexto social. Mais do que aprender sobre o Outro, cabe, neste capítulo, questionar a nossa cultura como a única e a mais importante no universo. 4 O QUE É ANTROPOLOGIA: RAMIFICAÇÕES E ATRIBUIÇÕES Antropologia pode ser melhor compreendida enquanto disciplina científica a partir do seu desenvolvimento ao longo do tempo. Desde os primeiros viajantes que 17 entraram em contato com outros povos até o intenso contato cultural permitido pela globalização, está em questão o modo como olhamos aqueles que são diferentes de nós. Assim, refletindo sobre esse olhar podemos conhecer e aprofundar a compreensão e o entendimento dos povos existentes. 4.1 Construindo o pensamento antropológico Você busca explicações para o que acontece no mundo? Você se questiona por que algo aconteceu de um jeito e não de outro? Você tem curiosidade sobre as formas de vida de outras culturas? Pensar sobre o que os homens fazem, como fazem e por que fazem, faz parte da racionalidade humana (Figura 1). Esses questionamentos possibilitam ao homem refletir sobre sua condição humana no mundo, e assim compreender modos de viver diferentes dos seus. Como nos ensina o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (2000), cabe ao pesquisador olhar, ouvir e escrever sobre o encontro etnográfico, a fim de produzir o registro sobre outras sociedades. Por isso, a aprendizagem desses três atos de forma sistemática e metodológica permite o desenvolvimento do pensamento antropológico e uma maior atenção para com o mundo que nos rodeia. Assim, você 18 começará conhecendo como foram os primeiros contatos com povos distantes que originaram a formação de uma literatura etnográfica. Nos séculos XVI-XIX, as viagens às Índias, as descobertas realizadas pelos europeus para expansão colonial e o comércio exterior nos altos mares do Oceano Pacífico resultaram em relatos, escritos e descrições. Esse material era produzido por viajantes, aventureiros, missionários, administradores coloniais, sobre a experiência dos encontros com outras culturas e sociedades, integrando os primeiros registros do encontro com o outro. As descrições apresentavam, muitas vezes, esses povos como pitorescos e assustadores, principalmente aqueles que tinham a prática do canibalismo. Mas, pela forma de se organizar socialmente, de habitar o mundo e de se comportar, os povos indígenas eram vistos pelos europeus como seres primitivos, selvagens, mais próximo dos animais do que dos humanos. O historiador e cronista português Gândavo (2004, p. 135) conta as impressões sobre os indígenas: A língua que usam, por toda costa [...] Carece de três letras convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e essa maneira vivem desordenadamente, sem terem além desta conta, nem peso, nem medida. Deste modo, a vida nos trópicos da América do Sul causava estranhamento aos europeus que esperavam dominar esses povos e levar a verdadeira “civilização” a eles. 19 4.2 Influências do trabalho antropológico O trabalho do antropólogo foi se constituindo como disciplina com o passar dos anos. Para a realização de uma pequena genealogia desse processo, é necessário considerar a história e retomar o momento em que povos de continentes diferentes se encontraram pela primeira vez. Um marco dessa trajetória foram as grandes navegações do século XV. Nesse período, como você sabe, surgiu o interesse dos europeus por povos que habitavam terras afastadas das suas. Naquele momento histórico, a ideia dos europeus não era somente conhecer como os povos até então desconhecidos moravam e o que faziam. Eles desejavam principalmente se familiarizar com o modo de vida desses povos para melhor dominá-los, subordiná-los e até escravizá-los, já que eram tidos como “primitivos”. Assim, para os europeus, esses povos que viviam além-mar eram considerados menos humanos e deveriam se submeter à civilizaçãopara acessar o “progresso”, o “conhecimento” e a “ciência”. Esse pensamento dos europeus é o que se chama de etnocentrismo. Segundo Rocha (1984, p. 5), “Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”. Assim, o etnocentrismo não é característico somente dos europeus, mas de todo grupo social existente, como reforça Laraia (2001, p. 75): O etnocentrismo, de fato, é um fenômeno universal. É como uma crença de que a própria sociedade é o centro da humanidade, ou mesmo a sua única expressão. As autodenominações de diferentes grupos refletem este ponto de vista. Os Cheyene, índios das planícies norte-americanas, se autodenominavam "os entes humanos"; os Akuáwa, grupo Tupi do Sul do Pará, consideram-se "os homens"; os esquimós também se denominam "os homens"; da mesma forma que os Navajo se intitulavam "o povo". Os australianos chamavam as roupas de "peles de fantasmas", pois não acreditavam que os ingleses fossem parte da humanidade; e os nossos Xavante acreditam que o seu território tribal está situado bem no centro do mundo. É comum assim a crença no povo eleito, predestinado por seres sobrenaturais para ser superior aos demais. Tais crenças contêm o germe do racismo, da intolerância e, frequentemente, são utilizadas para justificar a violência praticada contra os outros. A dicotomia "nós e os outros" expressa em níveis diferentes essa tendência. Dentro de uma mesma sociedade, a divisão ocorre sob a forma de parentes e não parentes. Os primeiros são melhores por definição e recebem um tratamento diferenciado. A projeção desta dicotomia para o plano extra grupal resulta nas manifestações nacionalistas ou formas mais extremadas de xenofobia. O ponto 20 fundamental de referência não é a humanidade, mas o grupo. Daí a reação, ou pelo menos a estranheza, em relação aos estrangeiros. Então, o encontro entre colonizadores e outros povos permitiu a coleta de descrições, desenhos e materiais de outras culturas. Mas tudo ainda ocorria de maneira bastante exploratória e sem uma metodologia específica. Os materiais coletados não tinham status de veracidade e eram tidos mais como relatos, cartas e romances que contavam, de forma até fansiosa e macabra, a vida de outros povos. Somente no século XVIII é que a antropologia começa a se consolidar como disciplina, definindo seu objeto de estudo, delimitando formas de estudá-lo e produzindo análise científica sobre esse objeto. É o que explica Laplantine (2003, p. 7): […] apenas no final do século XVIII é que começa a se constituir um saber científico (ou pretensamente científico) que toma o homem como objeto de conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que o espírito científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio homem os métodos até então utilizados na área física ou da biologia. Isso constitui um evento considerável na história do pensamento do homem sobre o homem. […] trata-se, desta vez, de fazer passar este último do estatuto de sujeito do conhecimento ao de objeto da ciência. […] Para que esse projeto alcance suas primeiras realizações, para que o novo saber comece a adquirir um início de legitimidade entre outras disciplinas científicas, será preciso esperar a segunda metade do século XIX, durante a qual a antropologia se atribui objetos empíricos autônomos: as sociedades então ditas “primitivas”, ou seja, exteriores às áreas de civilização europeias ou norte-americanas. A ciência, ao menos tal como é concebida na época, supõe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Você também deve atentar à contribuição das ciências biológicas para a constituição da disciplina da antropologia. Afinal, a metodologia de classificação e comparação realizada pelas ciências biológicas influenciou os primeiros ensaios sobre o homem em sociedade. Eriksen e Nielsen (2007, p. 28) trazem mais informações sobre esse período: Finalmente, surgiu a ciência internacionalizada. O pesquisador global se torna uma figura popular — e o protótipo é, naturalmente, Charles Darwin (1809–1882), cuja Origem das espécies (1859) se baseava em dados coletados durante uma circum-navegação de seis anos ao redor do globo. […] não surpreende que a antropologia tenha surgido como disciplina nesse período. O antropólogo é o pesquisador global prototípico que depende de dados detalhados sobre pessoas do mundo todo. Agora que esses dados se tornavam disponíveis, a antropologia podia estabelecer-se como disciplina acadêmica. 21 Assim, a antropologia passa a desenvolver estudos sobre o homem, mas esses estudos não são algo focado em um ou outro homem, e sim nas sociedades humanas como um todo. Com isso, a pretensão da antropologia é de “[...] constituir os ‘arquivos’ da humanidade em suas diferenças significativas” (LAPLANTINE, 2003, p. 12). 4.3 Metodologias do fazer antropológico Mas o que faz o antropólogo? Ele vai a campo e faz etnografia ao conversar com as pessoas, anotar o que vê e o que dizem, tirar fotos ou fazer vídeos e pesquisar documentos. Posteriormente, ele produz relatórios, discute com seus pares e reflete sobre o que viu e ouviu. Ou seja, essa disciplina envolve o fazer antropológico, que é aprendido na teoria e também no cotidiano de trabalho. Agora você pode se perguntar o seguinte: quem não é antropólogo pode utilizar algumas metodologias próprias do fazer antropológico? A resposta é sim. Contudo, para haver legitimidade, deve-se ter o cuidado de não banalizar as metodologias do fazer antropológico. É o que evidencia Oliveira (2011, p. 120–121): A apropriação, por outras áreas, das teorias e metodologias antropológicas nos levam a pensar e repensar nossa identidade intelectual, bem como o fazer antropológico nesta era pós-tudo, como diria Geertz. A ampliação do que vem sendo produzido, em termos de conhecimento acadêmico, na interface entre a antropologia e as diversas áreas do conhecimento, longe de constituir uma ameaça para o campo da antropologia, perfaz um engrandecimento da produção acadêmica nesta área, ainda que devamos tomar cuidado com o que se está produzindo, quais os limites e quais os diálogos travados com a literatura antropológica, com seus conceitos e referenciais teóricos, afinal, como nos coloca Dauster (2007), não podemos resumir o diálogo da antropologia com as demais áreas do conhecimento a uma utilização instrumental da etnografia, até mesmo porque esta constitui mais que “técnica” de coleta de dados, mas sim uma forma de interpretar a realidade social, cujo substrato encontra-se atrelado a um campo de conhecimento específico e a questões suscitadas pela antropologia. Desse modo, você pode perceber que o fazer antropológico implica conhecer as ferramentas e teorias da área da antropologia, mas também requer certa postura do pesquisador em meio ao grupo social estudado. Afinal, como o objeto de estudo é o ser humano, os desafios da pesquisa incluem as formas de relacionamento entre pesquisadores e pesquisados. A seguir, você vai ver algumas metodologias do fazer 22 antropológico que compõem a cientificidade da disciplina e que a consolidam como mais um dos campos de estudos das ciências humanas. A primeira metodologia que você vai conhecer aqui é a etnografia. Ela propõe a observação e a participação em grupos sociais orientadas por problemas de pesquisa. Assim, o pesquisador busca se inserir no grupo com certas ideias preconcebidas, podendo retificá-las ou modificá-las completamente. A proposta de Malinowski (1998) inclui ficar um longo período de tempo com o grupo para compreendê-lo, evitando fazer apenas viagens rápidas. Cuche (1999, p. 45) reforça essa mesma ideia ao dizer que “A transformação de uma etnografia de viajantes ‘que apenas passam’em uma etnografia de estada de longa duração modificou completamente a apreensão das culturas particulares”. Então, ainda que o modo de pesquisar cada grupo social tenha suas especifidades, cabe compreender os principais pontos a que o pesquisador deve estar atento a fim de encarnar uma postura condizente com o fazer antropológico proposto. Eckert e Rocha (2008, p. 2) explicam melhor essa questão: A pesquisa etnográfica, constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do escutar (ouvir), impõe ao pesquisador ou à pesquisadora um deslocamento de sua própria cultura para se situar no interior do fenômeno por ele ou por ela observado através da sua participação efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais a realidade investigada se lhe apresenta. A segunda metodologia que pode ser realizada no âmbito do fazer antropológico é a pesquisa longitudinal. Aqui, a ideia é que as “[...] pessoas de um único grupo são estudadas em diferentes épocas de suas vidas” (BOYD; BEE, 1977, p. 42). Contudo, nem sempre um trabalho acadêmico realizado por estudantes, por conta dos prazos, permite esse tipo de estudo. Assim, esse tipo de metodologia não é tão comum, ainda que alguns pesquisadores optem por ela. Cunha (2014, p. 411) discorre sobre essa questão ao evidenciar as possibilidades e potencialidades do estudo longitudinal na etnografia: Mudando a conjuntura, uma nova investigação terá provavelmente de formular novas questões, em vez de limitar-se a alimentar as mesmas questões com novos dados ao longo do tempo. Ao prosseguir no rumo traçado de início, o risco é, paradoxalmente, o de distorcer a historicidade que se procura captar precisamente através de uma revisitação do terreno. Revisitação não equivale, pois, a replicação. É precisamente a ausência de rigidez da abordagem etnográfica que se pode revelar a mais adequada para captar o sentido das transformações. 23 Por último, você deve conhecer a metodologia do survey (questionário). Ela é a mais utilizada em pesquisas sociológicas e pode ajudar o antropólogo a mapear aspectos da cultura e analisar comportamentos a partir da amostra de um grupo social. Nesse sentido, pode-se utilizar o survey para pesquisas políticas, questões sociais, situações de consumo, entre outros. A ideia é desvendar aspectos que não são facilmente explicáveis. Além disso, um mesmo questionário pode ser aplicado em diferentes públicos. Dessa forma, é possível apreender o que muda de um para outro. Bryman (1989, p. 104) sistematiza as informações sobre o assunto: [...] a pesquisa de survey implica a coleção de dados [...] em um número de unidades e geralmente em uma única conjuntura de tempo, com uma visão para coletar sistematicamente um conjunto de dados quantificáveis no que diz respeito a um número de variáveis que são então examinadas para discernir padrões de associação [...]. Essas variáveis têm de ser analisadas previamente pelos pesquisadores para que eles possam verificar se elas podem ajudá-los a compreender a realidade. Afinal, “[...] uma variável, por definição, deve ter variação; se todos os elementos na população têm a mesma característica, esta característica é uma constante na população e não parte de uma variável” (BABBIE, 1999, p. 124). 4.4 Dilemas éticos do antropólogo Agora que você já conhece os principais aspectos e metodologias que envolvem o fazer antropológico, deve considerar que essas práticas têm diversos limites. Tais limites devem provocar a reflexão do pesquisador sobre os desafios da pesquisa. Além disso, o pesquisador deve buscar soluções possíveis para que a pesquisa se realize a contento. Estes são os três principais limites da prática antropológica: 1- O limite dos prazos acadêmicos; 2- Os limites do encontro com o outro; 3- Os limites surgidos após a produção do trabalho. 24 O primeiro deles considera o fazer antropológico circunscrito ao trabalho acadêmico. Antes mesmo de iniciar o estudo, essa questão se impõe como desafio para o pesquisador. Isso ocorre porque o contexto de realização da pesquisa afeta diretamente os resultados do estudo. Silva (2009, p. 28) explica melhor esses pontos: [...] não se pode esquecer que a antropologia é uma forma de conhecimento definida segundo os limites impostos pelas regras da academia. O desenvolvimento do trabalho de campo sofre, portanto, os constrangimentos relacionados com o modo pelo qual a escolha do tema, das hipóteses e das perspectivas teóricas, para citar apenas alguns itens presentes num projeto de pesquisa, é negociada na academia que o acolhe e legitima. E nessa negociação, além dos “méritos científicos” inerentes ao projeto de pesquisa, deve-se considerar a influência das políticas acadêmicas (linhas de pesquisa institucionalizadas, estabelecimentos, reorganização ou fortalecimento dos núcleos de pesquisadores, afirmação de lideranças intelectuais, etc.) na escolha dos temas, regiões geográficas, grupos sociais, etc. que compõem o “recorte” das pesquisas. Mesmo que se trate de uma pesquisa pontual de disciplina, cabe refletir sobre os pontos evidenciados a fim de que se possa realizar um exercício fidedigno à proposta do fazer antropológico. Assim, o pesquisador não tem controle total de sua pesquisa, mas pode direcioná-la da maneira mais adequada, de acordo com os objetivos em questão. O segundo ponto a ser ilustrado enfoca justamente o diálogo entre o pesquisador e o grupo pesquisado. Segundo Oliveira (2000, p. 24), esse diálogo “Faz com que os horizontes semânticos em confronto — do pesquisador e do nativo — abram-se um ao outro, de maneira a transformar um tal conjunto em um verdadeiro ‘encontro etnográfico’”. Em algumas situações, esses diálogos possibilitam trocas mais densas; em outras, essas trocas são mais truncadas por conta de questões subjetivas. Nesse sentido, não apenas o pesquisador escolhe quem vai pesquisar, mas também precisa ser escolhido pelos nativos, uma vez que a pesquisa envolve o relacionamento entre seres humanos. Assim, esse diálogo implica não somente um pesquisador que demanda algo do pesquisado. O próprio pesquisador tem de aprender, de negociar e de compreender como se dá a comunicação discursiva de quem ele pesquisa. Ferreira (2010, p. 147) evidencia essa questão quando argumenta que o diálogo antropológico implica uma aprendizagem da conversa com o nativo: 25 Já que as metodologias usadas pelos antropólogos dependem fundamentalmente de processos linguísticos, é preciso considerar as dimensões comunicativas da aquisição de informações como requisito tanto para a adequação da metodologia aos contextos culturais a serem estudados (BRIGGs, 1986) quanto para a garantia de uma postura ética na relação de pesquisa. Dessa forma, podemos evitar situações em que as questões formuladas pelo pesquisador são incompatíveis com o sistema de comunicação nativo. Ao mesmo tempo, é importante você considerar a possibilidade de utilizar o termo de consentimento livre e esclarecido ao travar relações com os interessados em participar da pesquisa, conforme exige a Resolução nº 196/1996 do Conselho Nacional do Ministério da Saúde. Afinal, a pesquisa com seres humanos implica certos cuidados do pesquisador. Esse termo deve ser elaborado pelo pesquisador, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e assinado pelo pesquisador e pelo pesquisado. Depois, destina-se uma via para cada um. Entretanto, você deve notar que, na área de antropologia, há dificuldade de seguir à risca essa resolução, já que ela é baseada em pesquisas da área das ciências biológicas. Contudo, a pesquisa antropológica se relaciona às ciências humanas e se realiza durante o fazer antropológico. Nesse processo, nem sempre se tem o controle de quais caminhos são percorridos e de quais pessoas são encontradas. Então, o essencial é que você se guie pelos princípios éticos eque informe aos seus interlocutores, de forma clara, quais são as suas intenções e os objetivos da pesquisa. Ferreira (2010, p. 143) aprofunda essa discussão: Nas pesquisas antropológicas, a ética está vinculada ao plano das relações sociais; portanto, diz respeito à linguagem e à comunicação. No empreendimento etnográfico, o antropólogo conversa, interage e consolida vínculos com as pessoas. Essa relação não está dada a priori, mas sim emerge durante a própria interação do antropólogo com os participantes da pesquisa. A reflexão ética [...] deve orientar a construção dessa relação e o processo de interação dialógica voltado para a compreensão do outro. Nesse sentido, o consentimento dado por determinado grupo social para a realização de um estudo antropológico advém da relação estabelecida em campo. O terceiro ponto se refere aos limites éticos decorrentes da produção do trabalho escrito e da veiculação pública desse trabalho. Ao escrever sobre a vida das pessoas, o pesquisador deve ter o cuidado de manter o sigilo das suas identidades. Por exemplo, na tese de Machado (2008) sobre bebês que nascem com a genitália ambígua — dita como intersexo —, a antropóloga optou por trocar os 26 nomes dos envolvidos por nomes de anjos, fazendo um paralelismo com o fato de o senso comum dizer que os anjos não têm sexo. Esse é um exemplo de estratégia e subterfúgio que os pesquisadores podem utilizar para manter a ética de pesquisa. Quando você escreve um relatório sobre aqueles que pesquisa, é importante não só disponibilizar o produto final para eles, que gentilmente lhe concederam seu tempo e sua convivência, como também buscar saber a opinião deles sobre os resultados da pesquisa. Esse processo é conhecido como restituição dos dados. Veja: Na pesquisa, podemos pensar que a restituição dos dados também pode ser uma forma de prolongar o trabalho de campo, as interações, a relação com os nativos. Nesse caso, a receptividade da pesquisa e a restituição confundem-se em relação às interações estabelecidas, engajamento e responsabilidade com o campo. O duplo produto final da enquete, seja sob a forma de relatório para o projeto de financiamento ou artigo para a revista científica, sublinha a distinção entre dois papéis: ciência “pura” versus ciência “aplicada”. Entretanto, trata-se de distinção ideal. Nas situações concretas, observa-se ambiguidade entre esses dois papéis, uma vez que um ou outro é reivindicado e um ou outro argumento pode ser utilizado segundo o contexto. A publicação de artigos e livros é uma forma importante de difusão da pesquisa no meio acadêmico, no entanto, essas publicações tendem a repercutir pouco para os pesquisados (FERREIRA, 2015, p. 2.645). Portanto, evidencia-se que o pesquisador produz seus trabalhos finais sem saber da repercussão da publicação dos dados. Mesmo assim, ao apresentar a sua análise aos pesquisados, ele deve construir esse processo de restituição. Muitas vezes, esse é o momento positivo em que o pesquisador é reconhecido pelo seu esforço de compreender o grupo social que pesquisou. Em outros casos, os pesquisados podem não gostar de algumas interpretações. Nessa situação, é necessário negociar a respeito do que fazer com publicações futuras. Você deve ter em mente que o produto da pesquisa não vai sempre agradar a todos. Por isso, cabe ao pesquisador ter o cuidado de não expor os pesquisados a situações perigosas. Logo, o debate sobre ética em pesquisa não está finalizado. Ele é uma problemática de reflexão importante e deve ser sempre considerado pelo pesquisador. 27 5 RAMIFICAÇÕES E ATRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA Podemos dizer que a Antropologia tem ramificações com origens, características, conceitos e representantes diferentes. Vamos chamar essas ramificações de “paradigmas” (OLIVEIRA, 1988), já que alguns não são escolas, propriamente constituídas como tal, e assim, conseguimos agrupar seus elementos característicos para destacar a importância e contribuição de cada. 5.1 Evolucionismo Social A partir de 1830, influenciada pelas ideias evolucionistas da Biologia, surge o embrião de uma antropologia evolucionista, na Inglaterra. O filósofo inglês Herbert Spencer foi um dos maiores influenciadores, pois apostava na escala evolutiva ascendente, baseada na noção de “estágios”, de modo que todos os seres humanos, em sociedade, passariam por cada processo até que evoluíssem (BARNARD; SPENCER, 2002). Essas ideias foram apropriadas para o estudo do homem e reforçaram a explicação de que as sociedades passariam pelos mesmos estágios até que se alcançassem a “civilização”, sendo essa um processo unilinear. Assim, durante o século XIX, temos três representantes do evolucionismo social, são eles: Lewis Henry Morgan, Edward Burnett Tylor e James George Frazer. Morgan era norte-americano e trabalhou por muito tempo entre os Iroqueses, que viviam no Lago Erie da América do Norte, e outros povos americanos, em contato com os nativos por meio da tradução de um intérprete. Ele investigou as formas de governo, o sistema de parentesco e questão da propriedade, a fim de estabelecer evidências na sistematização do progresso humano. O inglês Tylor realizou estudos comparativos a partir da ideia de unidade psíquica humana. Seu objetivo era dissecar a civilização em detalhes e classificá-los em graus apropriados, sendo que, para ele, era mais importante compreender a distribuição geográfica e histórica do que a vida dos nativos. Nesse sentido, o autor se apoiava em relatos de fenômenos das culturas análogas, que eram tomadas como evidências dessa progressão. 28 Frazer era escocês, mas atuou como professor na Inglaterra. Ele queria encontrar leis gerais que pudessem ser presumidas de fatos particulares nas diferentes sociedades. Na sua obra O Ramo de Ouro (1890), ele estudou a magia nas sociedades primitivas como sendo o embrião de um processo contínuo e evolutivo para chegar no desenvolvimento da ciência, tal qual se dá nas sociedades contemporâneas. 5.2 Escola Sociológica Francesa Fundada por Émile Durkheim, no final do século XIX, essa escola defende que a sociedade é uma realidade sui generis. Em 1895, ele publicou o livro As regras do método sociológico, apresentando esta proposta metodológica para o estudo da sociedade. Portanto, caberia a sociologia estudar os ‘fatos sociais’, sendo que eles agiriam sobre os indivíduos de forma coercitiva, externa e geral. O seu sobrinho, Marcel Mauss (1974, p. 41), deu continuidade às suas ideias e aprofundou a abordagem de estudo, pois, para ele, o estudo da sociedade, a partir de características, poderia elucidar a totalidade dessa sociedade, chegando, então, ao conceito de “fato social total”. Com isso, por meio do método comparativo, Mauss estudou a reciprocidade e a troca de objetos entre pessoas ou grupos sociais defendendo a dádiva como fundamento da vida social. Esse compromisso é entendido como o vínculo das almas em que se deve dar um presente, não se deve recusá-lo e ainda é preciso retribuí-lo. A leitura feita por Mauss é de que o objeto ainda tem algo do doador, mas permanece com o recebedor, e, entre eles, se estabelece uma parceria e também uma condição hierárquica. Ou seja, as trocas sociais que fundam a reciprocidade estão em um “sistema de prestações totais”, (MAUSS, 1974, p. 45) que tem caráter voluntário (aparentemente livre e gratuito) e obrigatório (imposto e interessado), e essas trocas perpassam fenômenos jurídicos, econômicos, religiosos, estéticos e mesmo morfológicos. 29 5.3 Funcionalismo O funcionalismo foi outra escola de pensamento na Antropologia, mas que se iniciou na sociologia, com Émile Durkheim. Ele explica inúmeros elementos aparentemente caóticos, desajustados e desarmoniosos na sociedade em termos de funções sociais. Assim, para o funcionalismo, não existem coisas certasou erradas, mas coisas ou instituições que têm ou não funções sociais no interior de dado sistema social. Durkheim dizia que o objeto das ciências sociais são os fatos sociais, em contraposição aos valores sociais da escola de sociologia compreensiva weberiana. Tudo, na sociedade, deve ser encarado como um fato social à título de método. O funcionalismo é uma teoria holística, porque aborda a sociedade pelo todo, e não por suas partes constituintes. Assim, os indivíduos são secundários, e as estruturas, as funções e as instituições sociais são mais importantes que a psique individual ou as relações entre os indivíduos. Desse modo, as normas, os costumes, as tradições e as instituições se sobrepõem aos indivíduos, e suas escolhas individuais têm pouco, ou nenhum, valor para a manutenção do todo social (CASTRO, 2009) Veja, no Quadro abaixo, os principais conceitos funcionalistas de Durkheim em suas principais obras. 30 Os principais conceitos funcionalistas de Durkheim Bronisław Malinowski (1884–1942) foi um antropólogo polonês que lecionou na London School of Economics. Sua maior contribuição para a antropologia foi o método etnográfico da observação participante, por meio de suas pesquisas sobre o kula com os nativos das Ilhas Trobriand, na Melanésia, documentadas em Argonautas do pacífico ocidental (1922). O kula era uma cerimônia ritual de trocas de braceletes brancos e colares vermelhos e de oferendas e presentes entre os habitantes do Norte e do Sul das Ilhas Trobriand. A tese demonstrada em sua pesquisa é em antropologia econômica: as trocas do kula mostram que não são somente vantagens utilitárias econômicas que são valiosas para os ilhéus. A função social do kula não tem caráter econômico utilitário, mas social, em criar laços, fazer amizades e estimular a reciprocidade (LOIRENÇO, 1997). A cultura serve para as necessidades dos indivíduos e, portanto, da própria sociedade. Assim, o sentimento e a intenção das instituições sociais são cruciais para se compreender uma sociedade. 31 Outra obra seu importante foi Sexo e repressão na sociedade selvagem (1927), em que questiona algumas ideias da psicanálise tidas como universais, como o complexo de Édipo, a sexualidade infantil na puberdade, o papel materno na criação, os mitos e tabus familiares como o incesto, o parricídio como fundação da cultura, a transição dos instintos naturais para a formação da cultura civilizada, etc. Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881–1955) foi outro expoente importante da escola funcionalista de antropologia social na Inglaterra. Ele considera as instituições sociais, como casamento, direito, religião, mitos e ritos, como chaves para a manutenção da ordem social e do equilíbrio, como organismos vivos. Contudo, seu funcionalismo é mais corretamente chamado de estrutural- - funcionalismo. A função de uma prática social é seu papel em manter o todo da estrutura social. Por fim, Sir Edward Evans-Pritchard (1902–1973) foi um antropólogo inglês, professor da Universidade de Oxford. Sua principal obra é Bruxaria, oráculo e magia entre os Azande (1937), um estudo sobre religião entre um povo da África Centro- Norte. Ele notou que os Azande têm a tendência em atribuir a causa de vários infortúnios à bruxaria e que seria impossível compreender a religião Azande sem seu contexto social e sua função social, a saber, que a bruxaria e os oráculos tinham a função de resolver disputas entre os Azande, constituindo um meio de explicação tão plausível e lógico dentro do sistema interno da cultura Azande quanto a ciência no mundo civilizado. 5.4 Culturalismo norte-americano O culturalismo, também conhecido como relativismo cultural, particularismo histórico ou escola americana de antropologia social, foi uma corrente da antropologia cultural que sustentava que as crenças, os valores e as práticas deveriam ser compreendidos dentro da própria cultural do indivíduo, no lugar de compreendidos segundo os critérios de outra cultura. Seu principal expoente foi o antropólogo alemão, naturalizado americano, Franz Boas, acompanhado de seus discípulos, como Ruth Benedict, Margaret Mead e Edward Sapir. As principais características dessa escola foram a empiria, a etnografia, o relativismo e o culturalismo (PITT-RIVERS, 1906) 32 Franz Boas (1858–1942) se doutorou em física na Universidade de Kiel, em 1881, com a tese Contribuições para a percepção da cor da água, e sempre se interessou muito em psicofísica e geografia. Em 1883, ele participou de uma expedição na Ilha Baffin, no Canadá, para pesquisar sobre o impacto do meio ambiente nas migrações do povo esquimó Inuit e, então, escreveu a etnografia chamada The central eskimo (1886) para privatdozent (título universitário próprio das universidades de língua alemã na Europa) em geografia na Universidade de Berlim. Contudo, ele se mudou para os Estados Unidos no ano seguinte e se tornou professor de Antropologia na Universidade Clark em 1888. Alguns anos depois, em 1899, ele se tornou professor de antropologia na Universidade de Columbia. Boas dizia que a civilização não é algo absoluto, mas relativo, e que as ideias e os conceitos são verdadeiros somente na medida da própria civilização. Nessa medida, o culturalismo é uma rejeição do evolucionismo antropológico. Boas não concordava com a ideia de evoluções lineares, ou seja, que todas as sociedades estão na mesma trajetória linear histórica e atingem seus níveis particulares de evolução e desenvolvimento do mesmo modo como as outras sociedades. As sociedades, para Boas, alcançam o mesmo nível de desenvolvimento cultural por diferentes e variados caminhos paralelos. Para Smith, (1929), a cultura humana é maleável, plástica, apreendida por educação social e, portanto, as diferenças comportamentais, sociais, morais entre as culturas são distintas entre si, e não se devem a predisposições inatas biológicas. Portanto, os fatores biológicos, geográficos e naturais não são relevantes para compreender as diferenças culturais dos indivíduos. Boas, assim, rejeita a classificação e a gradação em escalas evolutivas do evolucionismo e, portanto, hierarquias evolutivas. As sociedades, em seu ponto de vista, são resultado de processos históricos particulares e não universais. 33 A principal obra de Boas, A mente do homem primitivo (1911), é uma crítica ao conceito de cultura primitiva, conceitos raciais ultrapassados, ideias eugênicas sobre raça e inteligência, supremacia branca, hereditariedade da inteligência e o conflito entre nature e nurture. Sua afirmação de que não há relação entre fenótipos e dotes mentais foi polêmica à época, quando muitos médicos, biólogos e nutrólogos a sustentavam. Ele também argumentava que é a linguagem que molda o pensamento, não o contrário. Essa tese igualmente foi polêmica e criou toda uma corrente de pesquisa na antropologia, seguida por seu discípulo Sapir. De forma semelhante, Boas sustentava que a ideia de estágios evolutivos histórico-culturais é absurda, porque nem todos os estágios estiveram presentes em todas as culturas. Por fim, desfaz a ligação histórica entre raça e cultura, dizendo que o desenvolvimento cultural de uma sociedade não tem nada a ver com o desenvolvimento racial de um povo e que, portanto, a raça não influencia o desenvolvimento econômico e cultural de um povo, pois fenótipos e biologia não podem ser determinantes em questões de ordem histórica e cultural. As conclusões lógicas, as premissas, os silogismos e as relações de causalidade feitas por outros povos se devem ao conhecimento acumulado passado, e não a questões de monta biológica (ERIKSEN, 2012). Em suma, a obra de Boas é uma crítica ao naturalismo antropológico e moral que dominava as ciências humanas no século XIX e no início do XX. Ele corta toda a ligaçãoe possibilidade de ligação que poderia haver entre questões de ordem epistemológica, moral, cultural e social com questões de ordem biológica, natural e geográfica. De modo sucinto, ele separa dois campos distintos: a psicologia da biologia. A mente humana, e seu subproduto, a cultura, independem da biologia e da natureza. Está inaugurada, assim, a antropologia social moderna. A principal contribuição de Edward Sapir (1884–1939), um dos discípulos de Boas, foi o conhecimento sobre as relações entre a linguagem e a cultura, ou entre linguística e psicologia e antropologia. Ele estudou como ambas se inter-relacionam, como a linguagem molda a cultura e como a organização social reflete a organização linguística mental de um povo. Essas relações são conhecidas como a hipótese Sapir-Whorf. Além disso, ele fez importantes contribuições para a classificação das línguas indígenas da América do Norte e desenvolveu o conceito de fonema. Seu trabalho todo é uma tentativa de compreender como os padrões 34 culturais são moldados pelas personalidades individuais por meio da linguagem. Uma de suas obras importantes é Linguagem: uma introdução ao estudo do discurso (1921). Ruth Benedict (1887–1948) se doutorou na Universidade de Columbia sob a orientação de Boas em 1923 com a tese O conceito de espírito guardião na América do Norte. Assim como Sapir, ela também estava interessada nas relações entre cultura e personalidade, em antropologia e psicologia. Suas principais obras foram Padrões de cultura (1934) e O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa (1946). A ideia-chave da autora é que as culturas são personalidades, pois as culturas, assim como os indivíduos, são padrões de pensamento e ações (ERIKSEN, 2012). Margaret Mead (1901–1978) também fez parte da escola americana culturalista de antropologia social. Seu principal livro é Sexo e temperamento em três sociedades primitivas (1935), no qual ela relata o comportamento dominante das mulheres entre os Tchambuli da Papua Nova Guiné e conclui que os Arapesh eram pacíficos, os Mundugumor eram bélicos e os Tchambuli continham diferenças de gêneros, sendo que os homens passavam muito tempo decorando a si mesmos, enquanto as mulheres eram mais práticas. 5.5 Estruturalismo O estruturalismo na antropologia teve várias influências. Uma delas foi o Curso geral de linguística (1916), de Ferdinand de Saussure, que abandonava o método diacrônico (ou filológico) na linguística e adotava o método sincrônico, considerando a língua como uma estrutura cujos elementos constituintes, os fonemas, só poderiam ser compreendidos pelas relações de equivalência e oposição 35 com os outros. Assim, o significado só pode ser compreendido por sua estrutura, e não pelos elementos singulares isolados. Por exemplo, as palavras “cat” e “bat” se diferenciam apenas pelos fonemas “c” e “b”, pois são fonemas contrastantes. É essa oposição entre eles que formam o significado de ambas as palavras. O estruturalismo na linguística nasceu a partir das ideias de Saussure e foi seguido por Louis Hjelmslev, Émile Benveniste, Roman Jakobson e Nikolai Trubetzkoy. A ideia central se encontrava na fonética, na relação entre os fonemas na formação do significado. Além da dicotomia entre os fonemas, há a dicotomia entre língua e fala, sincronia e diacronia, significante e significado, sintagma e paradigma. Em antropologia, seu principal expoente foi Lévi-Strauss. Claude Lévi-Strauss (1908–2009) foi um antropólogo francês que aplicou largamente as noções do estruturalismo linguístico no estudo das culturas primitivas. Ele compreendia a mente humana (e seu subproduto, a cultura) analogamente à linguagem para encontrar os universais, os padrões, as estruturas e os irredutíveis culturais que formam as sociedades. O pensamento humano, reproduzindo a linguagem dos mitos, opera por pares de oposição simples, como cru e cozido, dia e noite, frio e quente, vivo e morte, sol e lua, etc. As estruturas formam uma gramática social profunda e são visíveis na linguagem e no inconsciente, na mente (LOURENÇO, 1997). O principal livro de Lévi-Strauss foram as estruturas elementares do parentesco (1949), cujos temas centrais são o parentesco e suas várias formas de organização, o incesto e suas teorias e uma defesa da teoria da aliança. Lévi-Strauss considera o tabu do incesto a origem da sociedade, a passagem primordial da natureza para a cultura, o ponto fundante da sociedade, porque estabelece uma regra para as relações sexuais e, com essa regra, seleciona e reduz as possibilidades infinitas de cópula na natureza e, assim, direciona o instinto. Ao estabelecer regras sociais, a proibição do incesto delimita com quem alguém pode casar-se, copular e reproduzir-se, ou seja, com alguém fora do círculo familiar próximo. Ao fazê-lo, ele estimula a ampliação do círculo social, a saída do nubente da vigília paterna e materna e, por conseguinte, sua entrada em outro mundo, o do cônjuge. O tabu do incesto estimula a exogamia. A ideia é uma troca recíproca no fundamento da aliança matrimonial. A mulher troca de família quando se casa, e é essa circulação de fêmeas que liga grupos sociais diversos e famílias em uma única, 36 a sociedade. Lévi-Strauss fala de dois tipos de estruturas de parentesco: as complexas e as elementares. Quando as mulheres são oferecidas a outro grupo explicitamente definido, fala-se de estruturas elementares. Para Lourenço (1997,), quando as mulheres são oferecidas a um grupo indeterminado e aberto, fala-se de estruturas complexas. Desse modo, ele tenta explicar os fenômenos dos casamentos cruzados entre primos em sociedades de estrutura elementares de parentesco (Figura abaixo). Estrutura elementar do parentesco. O átomo de parentesco presente no casamento cruzado. O casamento entre primos cruzados não permite a aliança entre primos paralelos porque considera o tio ou tia como segundas mães e, portanto, os primos paralelos como irmãos e, assim, como incesto. Para evitar o incesto, casa-se com os primos cruzados. Essa prática, além de forçar a endogamia, estimula a criação de átomos de sociedades endógenas, separadas da família próxima. Várias sociedades adotam esse modelo, como alguns povos árabes e hindus. Lévi-Strauss chamou de átomo de parentesco esse pequeno grupo formado pelo casamento cruzado e localizou ali a origem da sociedade. 37 5.6 Diálogos entre as escolas Entre as várias escolas de antropologia social, existem diversas semelhanças e diferenças. Algumas enfatizam mais alguns pontos do que outras. O evolucionismo foi a escola que deu o início à antropologia. Ela é uma escola típica do século XIX, derivada do positivismo de Augusto Comte. Ela dialoga muito com o difusionismo, pois oferece sua base, como as noções de evolução histórica, desenvolvimento, degeneração cultural, regeneração cultural, resíduos culturais, migrações, trocas culturais e diacronia cultural. Ambas são essencialmente historicistas, ou seja, focam o desenvolvimento no tempo. Contudo, o difusionismo é muito mais geográfico, pois foca o desenvolvimento cultural no espaço. O culturalismo se relaciona muito com o difusionismo, por pressupor uma unidade psíquica humana, ligações culturais históricas entre os povos em diversos locais. Contudo, ele estabelece uma cisão forte entre natureza e cultura, entre biologia e antropologia, entre raça e pensamento, entre modos diferentes de pensar e biótipos e fenótipos (CASTRO, 2009) O funcionalismo estabelece, por sua vez, um diálogo com a noção de estruturas sociais maiores que influenciam o indivíduo, e, portanto, há muito contato com o estruturalismo. A noção de fatos sociais gerais, exteriores e coercitivos tem ecos na noção de estrutura. A antropologia nasceu como uma ciência humana que tentava compreender o homem e seu meio. Portanto,é uma ciência ideográfica, não nomotética, para usar a expressão de Windelband, ou, ainda, uma ciência descritiva, não normativa, ou mesmo uma ciência do espírito, não natural. Essas distinções (ideográfica, descritiva e do espírito) eram distinções derivadas da crítica kantiana e se solidificaram ao longo do século XIX. Dizer que uma ciência é ideográfica ou descritiva é dizer que seu papel é essencialmente de compreensão da realidade, não de explicação (verstehen/erklaren, verbos “entender” e “explicar” em alemão, respectivamente). 38 As diferenças entre as várias escolas de antropologia são apenas distinções metodológicas ou de pressupostos teóricos de abordagem, mas não distinções essenciais, que as façam profundamente diversas umas das outras. Elas todas se unem na ideia de que há várias sociedades e povos, e que o papel do cientista deve ser compreender suas diferenças (GEERTZ, 2008, p. 15). Veja, no Quadro abaixo, um comparativo dessas escolas para melhor fixá-las, com as devidas palavras- chave de cada autor. Comparativo entre as principais escolas de antropologia 39 Continua 5.7 Antropologia nas últimas décadas Em 1973, Clifford Geertz publica A interpretação das culturas, fundando a Antropologia Interpretativa nos Estados Unidos, baseada no paradigma hermenêutico. Geertz se filiou às ideias de Evans-Pritchard, no que se referia a questionamento da antropologia como ciência e na proposição de um caráter mais interpretativo para a disciplina, aproximando-a de outras matérias no âmbito das Ciências Humanas. Para ele, “a cultura não era mais gramática a ser desvendada, e sim uma língua a ser traduzida a partir da cultura do antropólogo para os membros de outras culturas” (BARNARD, 2003, p. 158). Assim, Geertz foi o expoente interpretativista na antropologia americana. O conceito de cultura, em Geertz, terá um caráter semiótico e será designado como teia de significados constituída pelo homem, conforme inspiração em Max Weber, o que dá abertura para estabelecer o seu estudo a partir de uma ciência interpretativa, na busca por significados, e não necessariamente por leis que regem a sociedade. Nesse sentido, a “cultura é compreendida como uma entidade relativamente autônoma que o antropólogo tem como desafio desvendar os símbolos presentes através da interpretação” (GEERTZ, 2008, p. 15). Nesse sentido, caberia ao antropólogo a prática etnográfica, realizando uma “descrição densa” (GEERTZ, 2008, p. 13) sobre a cultura do outro, por meio de escritos em diários, genealogias entre os indivíduos, mapeamento do campo de 40 modo sistemático, para compreender o contexto cultural em que ocorre a ação simbólica. Essa interpretação elucidada não é única e também não reivindica status de verdade absoluta, é apenas uma afirmação etnográfica sobre sua interpretação das estruturas de significado socialmente estabelecidas. No final do século XX, o antropólogo norte-americano James Clifford publica A experiência etnográfica, a fim de pensar sobre a autoridade da produção etnográfica e as possibilidades de escritura do outro. Com isso, aproxima a literatura da antropologia e aposta na ideia de que as etnografias são verdades parciais, afastando-se da noção totalizante que algumas ramificações da antropologia pretendiam dar para as etnografias realizadas. Para Clifford (1998), a cultura é considerada como polissêmica, aberta, multifacetada, com inúmeros significados, que são interpretados e negociados entre o antropólogo e seus interlocutores. Logo, a etnografia sobre o outro traz uma representação polifônica, através do discurso textual, implicando uma ética e uma estética metodológica para compreensão de determinada realidade. Marcus Georges escreve com Clifford A escritura da cultura, em 1986, para evidenciar a relação entre a antropologia e o colonialismo, questionando sobre as dimensões políticas e poéticas da etnografia. Deste modo, os autores defendem que os modos narrativos e os recursos retóricos, utilizados pelo antropólogo na escrita sobre o outro, também incidem na apresentação desse. Desde o século XIX, a Antropologia vem se firmando como uma disciplina científica difundida nas principais universidades existentes, tanto como curso de graduação, quanto como matéria introdutória a ser cursada nas diferentes áreas do conhecimento. Nesse sentido, como enfatiza Feldman-Bianco (2011, p. 4), a pesquisa antropológica é: [...] extremamente relevante para desvendar problemáticas que estão na ordem do dia sobre a produção da diferença cultural e desigualdades 41 sociais, saberes e práticas tradicionais, patrimônio cultural e inclusão social e, ainda, desenvolvimento econômico e social. No quadro da globalização contemporânea, além de contribuir cada vez mais para a formulação de políticas públicas e propostas para a sociedade, a antropologia apresenta os aparatos necessários para expor a dimensão humana da ciência, tecnologia e inovação. Ao mesmo tempo, no curso de seus processos de transformação e internacionalização, surgem novos desafios e perspectivas para o ensino, a pesquisa e a atuação de antropólogos e antropólogas. 6 ETNOGRAFIA Para conhecermos outras culturas, estudarmos os seus modos de vida e compreendermos os seus pensamentos, ainda que eles sejam diferentes dos nossos, precisamos adotar algumas estratégias de pesquisa. Imagine que você chega a uma sociedade totalmente diferente da sua, more durante um tempo entre as pessoas daquele local e aprende alguns hábitos de vida próprios daquela cultura Aos poucos, mesmo que de forma intuitiva, você vai entendendo e compreendendo o modo de se alimentar, de se vestir, de falar, de cuidar da terra, de se relacionar entre as pessoas, de se comportar, assim como as festas e as crenças mais importantes, os motivos para rir e chorar, etc., entretanto, no âmbito da pesquisa acadêmica, talvez não tenhamos o tempo e a disponibilidade de nos inteirarmos da vida do outro como teria um viajante sem destino. Os primeiros registros sobre outros povos foram feitos por viajantes. Um deles é alemão Hans Staden, que esteve no Brasil na época da colonização e escreveu sobre o perfil, o modo de vida dos indígenas que habitavam essas terras, as práticas canibais em contextos rituais e as relações que se estabeleciam entre eles e os colonizadores (Figura 1). Pires (2013, p. 21) conta sobre Staden: [...] apesar de ser um aventureiro alemão, portanto, sem planos de permanecer em solo brasileiro como os portugueses e os franceses, contribuiu com as suas obras para a formação das representações sobre a guerra índia, primeiramente na capitania de Pernambuco e depois na de São Vicente, onde, ambas as vezes, atuou nos conflitos armados do lado dos lusos contra seus inimigos índios e normandos. Na segunda experiência, em São Vicente, permaneceu meses como cativo de guerra dos tupinambás, aliados dos franceses, e, libertado por uma tribo inimiga de seus algozes, não foi sacrificado no ritual antropofágico. Assim, por meio das representações dos relatos dos viajantes é que a população acessava a cultura de sociedades distantes e mesmo de culturas que não 42 mais existiam. Muitas vezes, essas descrições registradas pelos viajantes eram caricatas, exageradas e até mesmo fantasiosas, mas como era a única maneira de conhecer o que faziam outras culturas, esses relatos eram bastante difundidos. Contudo, no século XXI, a distância ficou menor, e a tecnologia nos permite viajar, tornando mais fácil conhecer outras sociedades. Então, em vez de lermos sobre o outro, vamos nós mesmos observar, analisar e compreender aspectos de outras culturas. Assim, cabe perceber essas diferenças entre as culturas e refletir sobre elas. Para ir além de uma observação curiosa e de fato estudar os aspectos culturais de outras sociedades, podemos
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