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CURSO INTENSIVO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - CIPAD Antonio Mandoju Hans Springer da Silva Marco Aurelio Rocha Rabello EFETIVIDADE NO CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DEMA NDADAS JUDICIALMENTE: Um estudo de caso no âmbito da Assistência Farmacêu tica Básica do SUS, em um município de porte demográfico médio Rio de Janeiro, novembro de 2007 CURSO INTENSIVO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - CIPAD EFETIVIDADE NO CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DEMA NDADAS JUDICIALMENTE: Um estudo de caso no âmbito da Assistência Farmacêu tica Básica do SUS, em um município de porte demográfico médio por Antonio Mandoju Hans Springer da Silva Marco Aurelio Rocha Rabello Trabalho de conclusão do Curso Intensivo de Pós- Graduação em Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, novembro de 2007 MANDOJU, Antonio; SILVA, Hans Springer da; RABELLO, Marco Aurélio Rocha. Efetividade no controle das políticas públicas demandadas judicialmente: um estudo de caso no âmbito da Assistência Farmacêutica Básica no SUS, em um município de porte demográfico médio. 2007. 132f. Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização (Curso Intensivo de Pós- Graduação em Administração Pública - CIPAD) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2007. Resumo: O trabalho examina a eficácia social (efetividade) da intervenção do Judiciário no SUS de um município de porte médio, visando garantir o acesso a medicamentos básicos demandados pela população jurisdicionada. Palavras-Chave: Judicialização da Saúde, Direitos Fundamentais, Efetividade dos Princípios Constitucionais, Políticas Públicas, SUS. Agradecimentos Aos nossos professores pelos insumos cognitivos que nos permitiram chegar até aqui. Aos nossos colegas pela valiosa colaboração na realização deste trabalho. FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS PROGRAMA FGV MANAGEMENT Curso Intensivo de Pós-Graduação em Administração P ública O Trabalho de Conclusão de Curso “EFETIVIDADE NO CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DEMANDADAS JUDICIALMENTE: Um est udo de caso no âmbito da Assistência Farmacêutica Básica do SUS, e m um município de porte demográfico médio”, elaborado por Antonio Mandoju, Hans Springer da Silva e Marco Aurelio Rocha Rabello e aprovado pela Coordenação Acadêmica do Curso Intensivo de Pós-Graduação em Administração Pública, foi aceito como requisito parcial para a obtenção do certificado do curso de pós-graduação, do Programa FGV Management. Rio de Janeiro, de de 2007. _________________________________ Prof. Armando dos Santos Cunha Coordenador Acadêmico Termo de Autenticidade Os alunos Antonio Mandoju, Hans Springer da Silva e Marco Aurélio Rocha Rabello, abaixo-assinados, do Curso Intensivo de Pós-Graduação em Administração Pública, do Programa FGV Management, realizado no período de 07 de outubro de 2005 a 14 de junho de 2007, declaram que o conteúdo do trabalho de conclusão de curso intitulado “EFETIVIDADE NO CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DEMANDADAS JUDICIALMENTE: Um estudo de caso no âmbi to da Assistência Farmacêutica Básica do SUS, em um município de port e demográfico médio” é autêntico, original, e de nossa autoria exclusiva. Rio de Janeiro, 23 de novembro de 2007. ___________________________________________ Antonio Mandoju __________________________________________ Hans Springer da Silva __________________________________________ Marco Aurelio Rocha Rabello SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 8 2. OBJETO DO ESTUDO 14 3. MATERIAL E MÉTODO 18 4. A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA PERSPECTIVA DO JUDICIÁRIO 23 4.1. A Conformação dos Direitos Sociais na Tipologia das Normas Constitucionais 24 4.2. A Inserção dos Direitos Sociais nas Normas Constitucionais 33 4.3. O Controle das Políticas Públicas à Luz dos Fundamentos do Neoconstitucionalismo 41 5. FORMULAÇÃO, IMPLEMENTAÇÃO E COORDENAÇÃO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE NO ÂMBITO DO SUS, VISTAS SOB A PERSPECTIVA DA POLÍTICA NACIONAL DE MEDICAMENTOS 47 5.1. Lógica Sistêmica versus Lógica da Descentralização 47 5.2 A Política Nacional de Medicamentos 49 6. O SUS EM ESTUDO 57 6.1 O Sistema Local de Saúde 57 6.2 Apresentação e Análise do Programa de Assistência Farmacêutica Básica em Execução no SUS Local 66 7. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DA DEMANDA JUDICIAL POR MEDICAMENTOS NO SUS LOCAL 79 8. CONCLUSÃO 87 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 96 GLOSSÁRIO 98 APÊNDICE 103 8 1. INTRODUÇÃO O presente estudo versa, sobre as mudanças de atuação do Judiciário principalmente a partir da promulgação da Constituição de 1988. Na verdade, versa sobre as relações do Judiciário com os demais poderes – no presente caso mais especificamente com o Executivo –, a partir da vigência da nova Carta Magna, a qual, sem dúvida, delineou, em nível normativo, uma relação Estado/sociedade deliberadamente mais democrática, amparada nos preceitos de cidadania. É interessante salientar que mesmo no ambiente específico do Judiciário observa-se, nesse contexto de mudanças, certa oposição em relação ao papel da Constituição, no que tange à incorporação explícita nos textos constitucionais de elementos normativos vinculados a valores e a opções políticas gerais (v.g. redução das desigualdades sociais) e específicas (v.g. prestação pelo Estado de serviços de educação). (BARCELLOS, 2006). Nessa vertente de atuação do Judiciário, ou seja, com fulcro nos preceitos constitucionais, o principal alvo recai sobre os direitos sociais e, neste campo, as questões envolvendo o direito universal à saúde concentram uma grande demanda por representação. A grande questão que vem sendo colocada, no farto material produzido sobre a matéria, é se os direitos sociais inscritos na Constituição são de aplicabilidade imediata ou se dependem de legislação integrativa, ou seja, programática, para sua consecução. Neste sentido, o debate entre os formuladores/implementadores de políticas e o Judiciário tem demandado uma discussão ao mesmo tempo rica e conflitante. Vale ressaltar, que os direitos sociais, considerados como direitos fundamentais de segunda geração (BOBBIO, 1992), dependem de prestações positivas do Estado para que melhores condições de vida social e econômica possam ser oferecidas aos 9 indivíduos; ao contrário dos direitos individuais (de primeira geração), os quais requerem uma abstenção do Estado para não ferir a esfera da liberdade dos cidadãos. Esta monografia insere-se nesse contexto. A idéia de realizar um trabalho científico em torno da questão que ora se aborda partiu de uma inspeção, de cunho mais operacional, realizada pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE/RJ), em outubro de 2006. Uma visão mais geral da situação constatada será apresentadaa seguir. A inspeção, realizada pelo TCE/RJ em um município de porte demográfico médio, originou-se de uma solicitação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) e se constituiu basicamente do seguinte escopo: avaliação dos reiterados descumprimentos por parte da Administração Municipal às ordens emanadas pelo Juízo da Comarca com jurisdição sobre a mesma, no tocante ao fornecimento de medicamentos; e, avaliação de cunho mais geral das condições operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS) local. De imediato, constatou-se que o período correspondente aos descumprimentos no fornecimento de medicamentos remontava a 1999 e eram originários de um considerável volume de medidas judiciais interpostas à municipalidade, constituindo, assim, uma formidável base de dados, notadamente a partir de 2001, ano em que os registros começaram a ser informatizados, o que, sem dúvida, oferecia subsídios a uma pesquisa empírica dessa demanda judicial por medicamentos. Diante desse contexto, anteviu-se a possibilidade de abordar a questão da judicialização da Política de Assistência Farmacêutica a partir do levantamento de campo efetuado e da rica base de dados gerada. Com tal propósito planejou-se a inspeção, a qual foi conduzida metodologicamente na forma de um estudo de caso exploratório (YIN, 2005), de forma a atingir não só os objetivos propostos pela própria inspeção como também servir de referencial empírico ao presente estudo. 10 Deve ser ainda considerado que o Judiciário, ao ordenar o fornecimento de medicamentos, está executando, de maneira indireta, uma ação política tipicamente inerente aos órgãos do Poder Executivo. Além disso, esta ação direciona-se a uma clientela de certa forma anônima (no sentido de não estar necessariamente adscrita a um programa governamental), demandada geralmente individualmente ao invés de coletivamente e que condiciona alocação de recursos, previamente programados ou não. Vale lembrar que no tocante à Política de Assistência Farmacêutica não há grandes lacunas, ao menos em termos de formulação, pois seus regramentos normativos estão vigentes desde 1998, após a edição de Portaria do Ministério da Saúde (MS) específica sob a matéria. Ressalte-se que a Portaria regula a assistência farmacêutica em vários níveis de complexidade; todavia, neste estudo só será considerando o nível básico dessa assistência, cuja implementação compete precipuamente aos municípios, dada à natureza descentralizada peculiar à ação. Para que se tenha uma idéia a respeito da relevância do tema tratado neste trabalho merece ser mencionado o seguinte fato: Em recente curso sobre o SUS, promovido pelo núcleo de saúde da Escola de Contas e Gestão do TCE/RJ, havia três secretários municipais de saúde entre os participantes, um deles, logo apoiado fortemente pelos demais, questionou a possibilidade de ser colocada em discussão a problemática da demanda judicial por medicamentos. Por outro lado, o controle das políticas públicas pelo judiciário tem se mostrado um tema bastante recorrente entre os integrantes do Poder Público, já que tange à questão da garantia dos direitos fundamentais inscritos na Constituição. Na mesma vertente, foi observado, na literatura respeitante à matéria, que os conflitos do constitucionalismo contemporâneo têm promovido no âmbito do próprio judiciário o reconhecimento de que este Poder precisa construir uma dogmática jurídica consistente para o exercício do controle das políticas públicas, e, neste propósito, se mostra oportuno o desenvolvimento de critérios, parâmetros e indicadores que viabilizem o 11 exercício desse controle (BARCELLOS, op. cit.). O presente estudo espera contribuir em alguma medida com esse objetivo, no sentido de dotar o Judiciário de informações que ajudem a reconhecer as prioridades em torno do cumprimento de metas constitucionais, através da adoção de políticas por parte da autoridade pública. Merece ainda ser lembrado que a inspeção promovida pelo TCE/RJ, a qual deu origem ao estudo de caso objeto empírico da presente monografia, partiu de solicitação do próprio TJ/RJ. Ora, critérios, parâmetros e indicadores de avaliação do desempenho da atuação estatal são elementos já presentes nos objetivos precípuos do TCE/RJ, tenham eles origem no texto constitucional, infraconstitucional ou mesmo de instrumentos de regulação (Portarias, Deliberações, etc.). Neste sentido, vislumbra-se um campo de atuação bastante fértil para o TCE/RJ, por meio de auditorias de desempenho e de programas, de forma sistemática ou mesmo em auxílio ao Judiciário, como no caso em discussão. Além disso, políticas públicas que visem a promoção de direitos fundamentais são promotoras da dignidade humana; nenhum outro atributo pode ser tão relevante. Com o mesmo propósito, deve ainda ser considerado que as decisões do Judiciário foram respaldadas, de plano, nos princípios constitucionais, e essas decisões se limitaram a determinar o fornecimento de medicamentos (“Ação Ordinária de obrigação de fazer”), ou seja, não foi observada qualquer determinação diretamente direcionada ao município, ora sob estudo, no sentido de implementar ou mesmo fomentar decisões na esfera da Política de Assistência Farmacêutica Básica; sendo essa uma questão que seria naturalmente enfatizada no campo de atuação do TCE/RJ, por força de sua competência institucional. Dessa forma, neste estudo foram consideradas as seguintes suposições: a) Levando-se em conta o fato de alguns medicamentos demandados judicialmente constarem do programa de Atenção Farmacêutica Básica, estando prevista dispensação gratuita pelos municípios, e considerando que 12 os mesmos integram a categoria denominada essenciais, sendo, por isso, habitualmente prescritos por médicos de serviços públicos (ou privados), supôs-se que, em alguma medida, as decisões do Judiciário coincidiram com as diretrizes normativas do SUS, contribuindo, indiretamente e de forma não intencional, à efetivação da descentralização da Política de Assistência Farmacêutica, conferindo, dessa forma, algum grau de efetividade àquelas decisões; b) Considerando-se que a demanda judicial por medicamentos está relacionada à dificuldade monetária dos propositores, supôs-se que as decisões foram socialmente justificadas, o que conferiu algum grau de eficácia social às mesmas, no sentido de promover, indiretamente e em alguma medida, a ocorrência de um dos princípios basilares do SUS: a eqüidade. Diante do exposto, o presente estudo buscou precipuamente responder à seguinte questão: em que medida a intervenção judicial contribuiu para a efetividade da Política de Assistência Farmacêutica Básica executada pelo município alvo da pesquisa? Para consecução dos objetivos proposto estruturou-se o presente trabalho, à parte desta introdução, em sete seções, a seguir apresentadas. Na segunda Seção delineou-se o objeto da pesquisa, que como se sabe foi voltado à assistência farmacêutica no âmbito do SUS, com ênfase sobre a assistência farmacêutica básica , por ser a principal unidade de análise. Na terceira Seção abordou-se o material levantado e o método de eleição. A inclusão desta parte foi considerada pertinente pelos autores pela importância que representa à validação do método de pesquisa utilizado:um estudo de caso único. 13 A quarta Seção representa a contribuição da doutrina ao dilema da efetividade das normas constitucionais, no que concerne aos direitos fundamentais, em cuja constelação a saúde tem assento particular. A quinta Seção aborda, sob a perspectiva da Política Nacional de Medicamentos, dificuldades relacionadas à formulação, implementação e coordenação de políticas públicas no âmbito do SUS. A compreensão dessa dinâmica de forma articulada aos aspectos levantados na seção anterior e de suma importância para este trabalho. A sexta Seção apresenta o Sistema Local de Saúde objeto do estudo de caso, e, neste, a execução do Programa de Assistência Farmacêutica Básica, servindo de contexto ao fenômeno ora em discussão. A sétima Seção apresenta e analisa a demanda judicial por medicamentos no âmbito do SUS estudado. Na Seção dedicada à conclusão, espera-se que a conjunção dos aspectos teóricos apresentados ofereça, de forma articulada ao levantamento de campo e aos dados analisados, resposta aos objetivos propostos. 14 2. OBJETO DO ESTUDO A judicialização da saúde, e de outras áreas que demandam prestações positivadas na Constituição, oferece um campo bastante fértil à compreensão das relações entre os três poderes constituídos em regimes federativos. Em países com vocação democrática mais antiga, o debate em torno desses arranjos institucionais é habitual e tem inspirado os ordenamentos jurídicos de outras realidades, como a vigente no Brasil, por exemplo. No campo da saúde, as demandas judiciais por prestações do Estado se concentram principalmente na área de serviços (com destaque para solicitação de exames laboratoriais complementares de média/alta complexidade e internações) e na área de fornecimento de medicamentos. A pesquisa empírica efetuada no município alvo deste estudo confirmou essa tendência. Especificamente sobre medicamentos, foi observada uma demanda de grande diversidade, tendo sido solicitado desde medicamentos essenciais, geralmente de baixo custo, vinculados à atenção farmacêutica básica a medicamentos ditos excepcionais, geralmente de alto custo, vinculados a patologias crônicas, de difícil manejo clínico e de menor prevalência. Neste estudo não serão analisadas as demandas por serviços (exames e internações). Quanto à demanda por medicamentos, vale esclarecer, preliminarmente, como estão estruturadas programaticamente no SUS as ações da assistência farmacêutica. A assistência farmacêutica no SUS é implementada basicamente através de quatro componentes, os quais serão apresentados sucintamente a seguir: – Programa de Medicamentos Excepcionais – integrado por um amplo elenco de medicamentos que visam apoiar patologias diferenciadas ou de interesse epidemiológico, por exemplo: hepatite crônica B e C, doença de Alzheimer, doença de Parkinson, osteoporose. Este programa é financiado pela União, embora a aquisição 15 dos medicamentos seja efetuada pelas Secretarias Estaduais, que os distribui aos municípios, os quais se responsabilizam por cadastrar os pacientes. As demandas Judiciais por medicamentos deste Programa se devem geralmente a falhas na aquisição por parte das Secretarias Estaduais, as quais se justificam alegando que a União repassa os recursos financeiros despendidos em descompasso com a realidade de preços do mercado. Embora a pesquisa empírica tenha evidenciado a ocorrência de um número considerável de processos judiciais determinando o fornecimento de medicamentos que integram este Programa, para efeito deste estudo não serão consideradas as questões inerentes ao mesmo, tendo em vista o baixo nível de descentralização das ações em nível municipal. – Programa de Assistência Farmacêutica Estratégica – visa apoiar doenças de alta prevalência em saúde pública, por exemplo: tuberculose, hanseníase, DST/AIDS. O MS adquire os medicamentos, repassa às Secretarias Estaduais que, por sua vez repassam aos municípios. Não foi observado, na pesquisa, demanda por medicamentos deste grupo, não havendo, portanto interesse para o estudo em questão. – Programa de Saúde Mental – disponibiliza um elenco relativamente pequeno de medicamentos, suficiente, contudo, para impactar os principais problemas da área de saúde mental. A União financia 80% do Programa e os Estados 20%. Os medicamentos são adquiridos pelo Estado e repassados aos municípios, os quais devem suplementar o elenco de acordo com o perfil nosológico vigente no nível local. O Programa está em via de ser descentralizado aos municípios e deverá integrar o Programa de Atenção Farmacêutica Básica que será abordado em seguida. Na pesquisa empírica realizada foi observado que muitos dos medicamentos demandados são da área de saúde mental. Ainda que as lacunas evidenciadas no suprimento estejam relacionadas, em grande parte, a problemas da esfera da aquisição pela Secretaria Estadual de Saúde, diversos aspectos levantados serão considerados. – Programa de Assistência Farmacêutica Básica – como o próprio nome indica, visa apoiar a Atenção Básica. O elenco obrigatório selecionou 46 medicamentos. Todos 16 incluídos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), integrada, no elenco de 2002, por 320 fármacos. O Programa foi formulado sob forte enfoque de descentralização aos municípios, lamentavelmente, decorridos oito anos de sua implementação, esta meta não foi ainda atingida em sua plenitude. Entre todos os Programas citados este é o mais significativo para as argumentações que serão desenvolvidas neste estudo, no seguinte sentido: a) O Programa tem uma natureza bastante difusa, em termos de cobertura; constituindo-se em uma importante unidade de análise diante da problemática: implementação de políticas públicas versus o controle dessas políticas pelo judiciário; b) Em termos de formulação, é o que apresenta ações mais descentralizadas, no nível de execução municipal, favorecendo a compreensão do processo de descentralização e implementação da política correspondente no âmbito do SUS; c) O ordenamento normativo do SUS, amparado nos preceitos do pacto federativo, estimula a suplementação das regras em nível local de forma a adaptar os Programas à realidade nosológica municipal. Neste sentido, a análise deste Programa permite verificar a relação entre as decisões judiciais e, em resposta, a tomada de decisão político-administrativa do SUS local, levando-se em conta que a pesquisa foi efetuada neste nível decisório; d) A articulação do referencial teórico a ser utilizado com a pesquisa empírica efetuada provavelmente permitirá a generalização, analítica (YIN, op. cit.), quando da verificação de outras realidades municipais. Já foi abordado que o principal objetivo deste estudo é compreender se a demanda judicial por medicamentos na Atenção Farmacêutica Básica contribuiu na 17 alocaçãoeficiente e eficaz dos recursos públicos despendidos, em um dado município de porte demográfico médio. Também já foi aventada a possibilidade de generalização a outros contextos municipais, na esfera da atuação do TCE/RJ. Neste propósito, a resposta a algumas questões prevalece, merecendo ser citadas as seguintes: – Como o Judiciário classifica o direito à saúde? – Como é tratada no âmbito processual a judicialização da saúde? – Quais as relações existentes entre as políticas públicas, cuja implementação compete ao executivo, e a aplicação das normas constitucionais pelos tribunais quando intervêm indiretamente por aquela implementação? – Que efeitos causaram a tutela antecipada sobre a Administração Pública do município ora objeto da pesquisa? – Quais as justificativas apresentadas pelo Judiciário para determinar a concessão dos medicamentos? – Que critérios econômicos são levados em conta pelo Judiciário ao determinar a concessão de medicamentos básicos? – Qual o impacto da realocação de recursos destinados à saúde pública condicionado pela demanda judicial por medicamentos? – Qual o impacto social das determinações judiciais? – Qual a relação entre o princípio da descentralização, um dos pilares do SUS, e a demanda judicial por medicamentos na Assistência Farmacêutica Básica? 18 3. MATERIAL E MÉTODO Como já foi observado, o presente estudo teve como ponto de partida uma inspeção realizada pelo TCE/RJ, em outubro de 2006. Para a consecução dos objetivos propostos na inspeção a equipe escolheu como estratégia de avaliação do escopo o método estudo de caso. Nesse propósito, os procedimentos da inspeção foram projetados e conduzidos na forma mais próxima possível ao preconizado por Robert Yin (op. cit., 2006), reconhecido especialista do método mencionado. A avaliação, de cunho mais exploratório, trouxe à baila questões relevantes na esfera da judicialização da saúde; mas, sobretudo, demonstrou que, no caso em tela, o fenômeno da judicialização estava fortemente relacionado a pelo menos três grandes questões interligadas, previstas nas diretrizes organizativas do SUS, quais sejam: a) Falhas nos mecanismos de descentralização vigentes no SUS; b) Falhas nos mecanismos de coordenação pactuados nos fóruns apropriados do SUS; c) Falhas na competência municipal em formular suplementarmente o Programa de Assistência Farmacêutica de acordo com as necessidades locais. Em função das falhas apontadas, a atenção farmacêutica municipal apresentou grandes lacunas no fornecimento de medicamentos, criando as condições favoráveis à intervenção do Judiciário. Além disso, no município sob análise estão de certa forma presentes condições que potencializam a representação dos autores em juízo, quais sejam: um atuante órgão integrante da Defensoria Pública e escritórios modelos das duas faculdades de direito instaladas na cidade, à parte do considerável contingente de profissionais privados, da área do direito, que atuam na região. Além dos fatores assinalados, os quais foram explorados neste estudo, aventaram-se também hipóteses para o renitente descumprimento da Secretaria de Saúde em fornecer os medicamentos demandados judicialmente. Como será visto mais adiante, a pesquisa permitiu identificar que esses descumprimentos estavam 19 relacionados a questões gerenciais, organizacionais e operacionais na esfera da logística de suprimentos, em função da diversidade de fármacos demandados judicialmente. Para efeito da inspeção realizada pelo TCE/RJ, em outubro/2006, os encaminhamentos metodológicos efetuados foram suficientes para responder as questões propostas na ocasião. Com o presente estudo se buscou maior compreensão do fenômeno da judicialização da saúde. Para tal propósito, o estudo de caso exploratório ofereceu, uma vez articulado à contribuição teórico-conceitual levantada, os subsídios necessários, à compreensão do fenômeno no contexto pesquisado. Aliás, a conjugação da pesquisa empírica à contribuição teórica sobre o tema em discussão representou o grande divisor entre a avaliação preliminarmente realizada visando à auditoria e este estudo, com pretensão mais científica. Contudo, os autores são partidários de que avaliações, com objetivos mais voltados à esfera decisória dos Administradores Públicos, e pesquisas, com objetivos mais voltados à contribuição científica a um dado problema, não representam, necessariamente, categorias excludentes; sobretudo quando, ambas, estão direcionadas à melhoria no modelo de gestão institucional. Nessa vertente, merece ser ressaltado que a unidade metodológica de análise escolhida para a pesquisa em questão, a despeito de outras perfeitamente factíveis em função da abrangência do fenômeno, foi limitada à Política de Assistência Farmacêutica Básica, com o objetivo precípuo de se avaliar o grau de efetividade obtido pelo Judiciário ao intervir na execução da Política de Assistência Farmacêutica Básica, no município alvo. Este posicionamento se deve principalmente a três motivos: 1) Efetividade é o resultado esperado na implementação de qualquer política pública por parte dos órgãos com competência para executá-la, notadamente no presente caso, em que, essa política, está representando a consecução de conteúdo programático com assento na Constituição (art. 196); 20 2) O Judiciário ao intervir em seara tipicamente vinculada aos órgãos executivos precisam estar atentos aos efeitos dessa intervenção, sobretudo quando continuada e abrangente, sob pena de reproduzir vieses dos órgãos originários dessas políticas; 3) A competência do Judiciário, em determinar a “Ação Ordinária de Obrigação de Fazer”, por si só, e ainda que respaldada em princípios constitucionais, não garante o fomento à formulação e implementação das políticas públicas por parte dos órgãos com competência para tal e, tampouco, sua efetividade. O universo da pesquisa correspondeu a todos os medicamentos concedidos por força das medidas judiciais interpostas, no período 2001/2006. Já foi destacado que, na inspeção previamente realizada, a pesquisa abrangeu somente os medicamentos concedidos no período de 2005/2006, o que correspondeu a 689 medicamentos de acordo às respectivas Unidades Farmacêuticas (comprimidos, líquidos e injetáveis). Esses medicamentos foram, inicialmente, classificados em ordem decrescente de solicitação. Na oportunidade, os dados foram tratados por meio de amostragem não probabilística, na qual cada medicamento concedido foi considerado uma categoria de acordo com a Unidade Farmacêutica dispensada. Para efeito dessa pesquisa foram selecionados 10% dos medicamentos mais requisitados, permitindo extrair do universo quase 60% das unidades farmacêuticas demandadas. No estudo em questão, com pretensões mais ambiciosas, já que se buscou inferir quanto à efetividade das decisões judiciais, a pesquisa foi ampliada no tempo, contemplando, assim, os medicamentos concedidos desde 2001; porém, o detalhamento estatístico será exposto na Seção dedicada à apresentação da demanda judicial por medicamentos no SUS avaliado. Os sujeitos da pesquisa corresponderam aos atores sociais entrevistados durante a inspeção realizada previamente a este estudo. Entre outros merecem ser21 citados: Gestor do SUS local; Assessores Jurídicos; Diretor de Finanças; Diretor Administrativo; Assessora de Controle Interno; Diretora da Divisão de Farmácia; Diretora do Departamento de Epidemiologia; Diretor da Divisão de Almoxarifado; Coordenadora da Atenção Básica; Diretores dos Hospitais e Assistentes Sociais. Da mesma forma, os dados coletados corresponderam àqueles obtidos quando da inspeção realizada previamente, na qual se procedeu ao método estudo de caso. Entre os documentos levantados e analisados merecem destaque: a) 27 Processos protocolados na Comarca do município, remetidos e autuados no TCE/RJ, contendo solicitação de adoção de medidas cabíveis pelo reiterado descumprimento das decisões proferidas pelo citado Juízo, por parte do SUS estudado; b) processos relativos às licitações e contratos, originários de todas as fundamentações legais previstas na Lei Federal 8666/93, cujo objeto tenha sido aquisição de medicamentos, correspondentes aos exercícios de 2004, 2005 e 2006 (até julho); c) documentos referentes às aquisições de medicamentos e os correspondentes pagamentos efetuados, no cumprimento de mandados judiciais, dos exercícios de 2004, 2005, 2006 (até julho); d) documentos mais voltados para as atividades administrativo-financeiras: Estrutura Organizacional da Saúde; balancetes da Receita de dezembro 2003/2005 e julho 2006); balancetes de Despesa de dezembro 2003/2005 e julho 2006; Quadro de Detalhamento da Despesa (QDD) de 2004/2006; e) documentos mais voltados para as atividades político-assistenciais: Plano Municipal de Saúde (os dois últimos formulados); Deliberações das duas últimas Conferências de Saúde; Livro de Atas do Conselho Municipal de 22 Saúde, referentes ao exercício de 2005 e 2006; cadastros das Unidades de Saúde do Sistema (públicas e filantrópicas/privadas contratadas); relatórios de produção de serviços ambulatoriais e hospitalares; relação discriminada dos Sistemas de Informação Informatizados que operam no SUS local; documento descritivo das rotinas (fluxos) de aquisição de medicamentos, discriminado por nível de atenção (básica, média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar); Atos Legais/Normativos (Leis, Portarias, Resoluções) promulgados pela Prefeitura e/ou Secretaria de Saúde/ Fundação/ Fundo, referentes à assistência farmacêutica, desde 2000; catálogo de medicamentos padronizados para fins de abastecimento da rede, nos diversos níveis assistenciais (atenção básica, média e alta complexidade e inclusive programas); documentos comprobatórios da Programação vigente na Assistência Farmacêutica, em todos os níveis de complexidade, inclusive referentes à farmácia básica, medicamentos excepcionais e saúde mental; relatório de consumo de medicamentos, classificados em ordem decrescente de valor (R$) e de ocorrência, nos exercícios de 2001/2006. Finalizando, vale ressaltar, como bem nos ensina Robert Yin (op. cit.), que o método estudo de caso único não se presta a generalizações estatísticas, necessitando, neste propósito, de replicações em contextos diferentes, submetidos ao mesmo fenômeno. Não obstante, são adequados a generalizações analíticas; residindo aqui, uma conveniente oportunidade de pesquisa em outras Administrações jurisdicionadas ao TCE/RJ. 23 4. A EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NA P ERSPECTIVA DO JUDICIÁRIO Ainda que o enfoque desde trabalho esteja mais voltado à tutela judicial da Assistência Farmacêutica (Básica), algumas questões, de ordem mais geral, no campo do direito à saúde, podem ser colocadas, à guisa de provocação inicial, quais sejam: Por quê o direito à saúde necessita ser tutelado pelo Poder Judiciário para que se efetive dada prestação positiva de um bem ou interesse, por parte do Poder Executivo? Em outras palavras: O fato de o direito à saúde ser garantido na Constituição não é suficiente para efetivá-lo? Ou, ainda: Que fatores condicionam a tensão observada no cumprimento de um dado comando constitucional por parte de poderes dotados de igual hierarquia? Em torno das questões colocadas, vale, inicialmente, refletir sobre a questão do direito à saúde na forma como fora disposto no art. 196 da Constituição: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. A dicção ambígua do artigo vem dando margem à ampla discussão jurisprudencial; pois, ao mesmo tempo em que faz referência ao direito à saúde e ao dever do Estado, fala em políticas sociais e econômicas as quais não estão especificadas, conferindo ao artigo um caráter de norma programática, ou seja, limitando o controle da intervenção judicial no que diz respeito a sua aplicação imediata, porquanto a atividade estatal se apoiaria na edição de dispositivos integrativos com vistas a sua plena consecução. A questão da Constituição enquanto documento inerente à organização do poder político versus sua capacidade de vincular a ação dos governantes tem raízes históricas. Embora seja inquestionável que a realidade histórica condiciona a Constituição, disso decorrendo inclusive sua pretensão de eficácia, cumpre reconhecer 24 que o compromisso constitucional, enquanto produto de um pacto entre forças políticas e sociais, é também capaz de conformar a realidade, notadamente frente ao desafio de convivência e harmonia das diferentes pretensões demandadas por uma sociedade cada vez mais plural e complexa. Nessa vertente, um dos grandes desafios do Direito Constitucional contemporâneo e, portanto, do Judiciário, é a efetivação dos direitos sociais, dada à primazia desses na constelação dos Direitos Fundamentais. Dessa forma, a discussão em torno da juridicidade da norma constitucional cresce em importância no que concerne à obrigatoriedade do cumprimento pelo Poder Público dos regramentos que consagram esses direitos sociais. Para uma maior compreensão sobre o problema colocado, ou seja, a imperatividade das normas constitucionais disciplinadoras dos direitos sociais, propõe- se, nesta Seção, articulá-lo a alguns aspectos teórico-conceituais presentes nas obras de alguns renomados autores particularmente inclinados ao estudo do direito constitucional democrático. Neste sentido, privilegiou-se a revisão dos textos que abordam o problema sob as seguintes perspectivas: a tipologia das normas constitucionais contemporâneas (BARROSO, 2003), a inserção dos direitos sociais no constitucionalismo (NOBRE JÚNIOR, 2006) e os fundamentos presentes no chamado neoconstitucionalismo (BARCELLOS, 2006). 4.1 A Conformação dos Direitos Sociais na Tipologia das Normas Constitucionais Uma Constituição encerra essencialmente as seguintes características: Organiza o exercício do poder político, define os direitos fundamentais dos indivíduos e traça os fins públicos a serem alcançados pelo Estado. Um fenômeno que vem sendo observado no Estado moderno é uma progressiva tendência a se ampliar as matérias que são inseridas no texto constitucional. Assim novos elementos, direitos e institutos têm merecido assento nas Constituições, refletindo a superação de uma visãoestritamente liberal das mesmas. Por outro lado, a inserção de regras menores, ditas 25 regulamentares, coopera para diminuir a imponência das Constituições e ao mesmo tempo afetam o caráter mais perene que era, em certa medida, inerente às mesmas. A tendência acima assinalada vem impondo aos poderes públicos, notadamente ao Judiciário, uma maior preocupação quanto à interpretação do texto constitucional no que tange à discricionariedade e aos comportamentos omissivos dos demais poderes públicos (Executivo e Legislativo). A classificação das normas constitucionais tem merecido a atenção de renomados estudiosos do Direito Constitucional. De uma maneira geral as classificações dizem respeito à eficácia e aplicabilidade dessas normas. Neste estudo, será considerada a sistematização proposta por Barroso (2003), que se enquadra na seguinte tipologia: A. Normas constitucionais que têm por objeto organizar o exercício do poder político: NORMAS CONSTITUCIONAIS DE ORGANIZAÇÃO; B. Normas constitucionais que têm por objeto fixar os direitos fundamentais dos indivíduos: NORMAS CONSTITUCIONAIS DEFINIDORAS DE DIREITO; C. Normas constitucionais que têm por objeto traçar os fins públicos a serem alcançados pelo Estado: NORMAS CONSTITUCIONAIS PROGRAMÁTICAS. Uma breve explanação sobre cada uma dessas categorias será apresentada a seguir. A. Normas Constitucionais de Organização São também conhecidas como normas de estrutura ou competência. Em sentido cronológico, da expressão do Direito foi, primeiramente, representado por esta categoria, pois, os aspectos nela preceituados já tinham assento nas leis de natureza constitucional antes da formulação escrita, ou seja, sistematizada, das Constituições. 26 Vale ressaltar que as normas desta categoria não disciplinam a vida jurídica, ou seja, não regem comportamentos a serem seguidos na esfera coletiva, por meio de um conjunto de ordens e proibições. Sua função é estruturar organicamente o Estado, possuem um caráter instrumental e procedem a incidência das demais, disciplinando inclusive a criação e aplicação das normas de conduta. Neste sentido não se apresentam como juízos hipotéticos, sendo dotadas de um efeito constitutivo imediato das situações que enunciam. Dessa forma, as normas constitucionais de organização encerram uma variedade de conteúdo, entre os quais merecem ser citados: o veiculam decisões políticas fundamentais, ao definirem a forma de Estado e de governo (p. ex. Art. 1º e Art. 2º da Constituição Federal - CF); o definem competência dos órgãos constitucionais (p. ex. Art. 21, 25 e 30 da CF); o criam órgãos públicos (p. ex. Art. 44, 92 e 125 da CF); o estabelecem normas processuais ou procedimentais da própria Constituição (p. ex. Art. 60, § 4º, I). B. Normas Constitucionais Definidoras de Direito Além de organizar o exercício do poder político, definem os direitos fundamentais dos indivíduos submetidos à soberania estatal, os quais podem ser agrupados em quatro grandes categorias: direitos políticos, direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos. Entre os quatro citados, interessam mais a este trabalho os direitos individuais e os sociais, sendo assim, serão abordados a seguir. Direitos Individuais – são frequentemente denominados liberdades públicas. Tiveram como primeira expressão legislativa a Declaração de Direitos inglesa, de 1689, mas foram aperfeiçoados pelo movimento iluminista francês e pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Representam a afirmação jurídica da personalidade humana; são dirigidos à proteção de valores relativos à vida, à liberdade, à segurança e 27 à propriedade; contém limitações ao poder político, delineando a esfera de proteção jurídica do indivíduo em face do Estado, impondo, assim, deveres de abstenção aos órgãos públicos, preservando a iniciativa e a autonomia dos particulares. Direitos Sociais – corresponde aos direitos econômicos, sociais e culturais. Sua origem é mais recente; foram consagrados na Constituição mexicana, de 1917. Através dessa categoria de direitos superou-se a expectativa meramente liberal, de cunho individual. Sua preceituação criou para o Estado deveres de prestações positivas, visando à promoção da igualdade material. Dessa forma, a intervenção estatal destina- se a neutralizar as distorções econômicas geradas na sociedade, assegurando direitos na esfera da segurança social, do trabalho, à liberdade sindical, à participação no lucro das empresas, à educação e cultura, entre outros. Vale marcar, neste ponto, que, em termos de acionabilidade e aplicabilidade a efetivação dos direitos sociais é, pronunciadamente, mais complexa do que os direitos políticos e os individuais. Nada obstante, há que se reconhecer que a realização efetiva dos direitos individuais e políticos dependem de pré-condições econômicas e sociais bem definidas, inerentes a necessidades básicas de alimentação, saúde, instrução e rendimentos mínimos, gerando, em alguma medida, uma relação de co-dependência entre as duas categorias de direitos fundamentais. Na verdade, os direitos sociais visam à tutela desses bens jurídicos, constituindo, assim, pressupostos para o exercício dos demais direitos e liberdades. Considere-se, contudo, que os direitos políticos e individuais têm a seu favor o fato de requererem, para suas realizações, em geral, a abstenção do Estado, ou seja, independem do ônus de atividades materiais. Ainda no campo da aplicabilidade deve ser acentuado, pela importância que representa para este trabalho a questão atinente à área da saúde, que os direitos fundamentais e, nesta categoria, principalmente os sociais, geram situações jurídicas subjetivas, ou, simplesmente, direitos subjetivos. De difícil conceituação, o direito subjetivo pode ser entendido como o poder de ação assente no direito objetivo, e destinado à satisfação de certo interesse, em outras palavras, seria um interesse 28 juridicamente protegido, no qual há uma relação jurídica bilateral entre as partes, a saber: de um lado, a possibilidade subjetiva de exigir (direito subjetivo), de outro a obrigação de cumprir (dever jurídico). Dessa forma, não há qualquer fundamento doutrinário que impeça a aplicação dos atributos conceituais do direito subjetivo ao Direito constitucional, já que estes se enquadram no esquema presente nas normas constitucionais de direitos, a saber: dever jurídico, violabilidade e pretensão; resultando para os seus beneficiários situações jurídicas desfrutáveis (ainda que incidam de forma diferenciada sobre os titulares), a serem materializadas em prestações positivas ou negativas, que serão abordadas mais adiante. Essas prestações são exigíveis (dever jurídico) do Estado (ou outro destinatário da norma). Na hipótese de não serem entregues espontaneamente (violação do direito), conferem ao titular a possibilidade de postular o cumprimento (pretensão). Em síntese, o direito subjetivo se diferencia de outras posições jurídicas pelas seguintes características: a) a ele corresponde sempre um dever jurídico; b) ele é violável, isto é: existe possibilidade de quea parte contrária deixe de cumprir o seu dever; c) a ordem jurídica coloca à disposição de seu titular um meio jurídico (ação judicial) para exigir o cumprimento. A despeito do atual reconhecimento da índole normativa das regras que conferem direitos sociais, sua operatividade prática ainda representa um problema que demanda soluções. Além disso, as regras que conformam os direitos sociais produzem efeitos diferenciados (prestações positivas ou negativas); podendo, essas, serem distribuídos em três grupos, de acordo com a forma que incidem sobre os titulares: a) Regras que geram situações prontamente desfrutáveis, dependentes apenas de uma abstenção – a relação jurídica que se estabelece é semelhante à que resulta dos direitos individuais. Exemplo: o direito de greve (art. 9º da CF), cujo papel do Estado é abster-se de reprimir e punir; 29 b) Regras que ensejam a exigibilidade de prestações positivas do Estado – ao contrário da anterior, neste caso, o dever jurídico consiste em uma atuação efetiva, na entrega de um bem ou na satisfação de um interesse. Exemplos: os direitos à proteção da saúde (art. 196), previdência social (arts. 6º e 201), aposentadoria da mulher após trinta anos de contribuição (art. 201, § 7, I). Observa-se que, neste último exemplo, a objetividade da norma permite a pronta verificação do cumprimento ou não, ao passo que nos dois primeiros exemplos, muito mais fluidos, a verificação, além de complexa, encontra limites tanto de cunho econômico quanto político; c) Regras que contemplam interesses cuja realização depende da edição de norma infraconstitucional integradora. Exemplo: direito à “participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, conforme definido em lei” (art. 7º, XI), direito à “proteção em face da automação, na forma da lei” (art. 7º, XXVII). Observa-se, nestes casos, que a ausência de regra integradora paralisa a operação do comando normativo constitucional. Pelo exposto, observa-se que os direitos sociais, nas hipóteses que não são prontamente desfrutáveis, dependem, em geral, de prestações positivas do Poder Executivo ou de providências normativas do Poder Legislativo. Uma vez situada a posição do direito social à saúde no conjunto dos regramentos constitucionais apresentados, merece ser abordada a dificuldade de sua efetivação. Neste propósito, nada mais oportuno, a título ilustrativo, que a transcrição de um Agravo Regimental em Recurso Extraordinário, originário do Rio Grande do Sul (STF, AGRRE 271286-RS), o qual teve como relator o Min. Celso de Mello: a) O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente 30 tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir aos cidadãos o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar; b) O direito à saúde, além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas, representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstituciona;. c) O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatário todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamenta; d) O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidáriode apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. (grifos nossos) Os realces nos textos da decisão do STF permitem observar que o “direito à saúde” recebeu tratamento heterogêneo por parte do citado órgão, a saber: prerrogativa jurídica, direito fundamental, norma programática e preceito fundamental. De uma maneira geral, esta situação é análoga à observada na vasta jurisprudência atinente à 31 matéria que vem sendo produzida, inclusive nos Estados e Regionais Federais. Em relação ao material empírico levantado para efeito deste trabalho, a tendência foi confirmada no teor exarado pelo Juízo local, como será visto mais adiante, no capítulo dedicado ao estudo de caso. Sem dúvida, esta condução é indicativa da disposição em dar efetividade à norma constitucional, superando-se por via judicial as omissões do Poder Público. C. Normas Constitucionais Programáticas A importância de se abordar, neste estudo, esta última categoria de norma constitucional, se prende ao fato de o art. 196 da CF, atinente ao direito à saúde, fazer menção à necessária edição de políticas econômicas e sociais, enquanto pressuposto de garantia desse direito, conferindo, conforme já salientado no começo deste capítulo, ao lado do direito fundamental à saúde, um cunho programático ao dispositivo constitucional citado. Os comentários subseqüentes buscam atender a esse objetivo. O Estado, enquanto organização soberana, por si mesmo destina-se à consecução de determinados fins. Se fossemos eleger entre esses fins um de dimensão geral, sem dúvida prevaleceria a realização do bem comum. Todavia, existem vários objetivos específicos contingenciais ou de maior permanência que orientam a atuação do Poder Público, em cada época, de acordo com a ideologia dominante que influenciam a ordenação jurídica, social e as políticas do Estado. As normas programáticas foram incorporadas às Constituições modernas após o primeiro pós-guerra, ao lado dos direitos políticos e individuais de forma a conformar a ordem econômica e social a determinados postulados de justiça social, levando em conta o indivíduo em sua dimensão comunitária, protegendo-o das desigualdades econômicas e ampliando as condições de vida em sentido mais amplo. Essas normas, enquanto disposições indicadoras de fins sociais a serem alcançados, têm por objeto, estabelecer determinados princípios ou fixar programas de 32 ação para o Poder Público. A título de exemplo de normas programáticas puras podem ser citados os seguintes dispositivos colhidos à nossa CF de 1988: o que consagra a “função social da propriedade” (art. 170, III), oque estabelece que “a ordem social tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça social” (art. 193) e o que determina que o Estado “apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (art. 215). Os exemplos se prestam a demonstrar que as normas constitucionais programáticas são dirigidas aos órgãos estatais, informando, desde o seu surgimento, a atuação do Legislativo, ao editar leis, bem como a atuação da Administração e do Judiciário ao aplicá-las, de ofício ou contenciosamente. Não obstante, os efeitos dessas normas bipartem-se em imediatos e diferidos. No primeiro caso, o cumprimento é desde logo inquirível, enquanto no segundo, o controle sobre a efetivação é frágil, dada à competência discricionária conferida à atividade estatal que afasta a intervenção judicial. Finalizando, merece ser trazido ao corpo deste trabalho a valiosa posição de Barroso (op. cit., p. 121), quanto aos efeitos das normas programáticas, no tocante aos titulares dos direitos individuais/coletivos garantidos por meio da aplicação/omissão das mesmas: Delas não resulta para o indivíduo o direito subjetivo, em sua versão positiva, de exigir uma determinada prestação. Todavia, fazem nascer um direito subjetivo “negativo” de exigir do Poder Público que se abstenha de praticar atos que contravenham os seus ditames. Em verdade, as normas programáticas não se confundem, por sua estrutura e projeção no ordenamento, com as normas definidoras de direitos. Elas não prescrevem, detalhadamente, uma conduta exigível, vale dizer: não existe, tecnicamente, um dever jurídico que corresponda a um direito subjetivo. Mas indiretamente, como efeito, por assim dizer, atípico, elas invalidam determinados comportamentos que lhes sejam antagônicos. Nesse sentido, é possível dizer-se que existe um dever de abstenção, ao qual corresponde um direito subjetivo de exigi-la. 33 4.2 A Inserção dos Direitos Sociais nas Normas Cons titucionais Na linha evolutiva dos direitos fundamentais costuma-se aludir a gerações de direitos (BOBBIO, 1992). É consenso que a formulação desses direitos tem origem histórica, advinda do enfrentamento à limitação do poder do Estado. Não obstante, a forma de reconhecimento seqüencial desses direitos não enseja cunho revogador, observando-se, mesmo, um sentido de complementaridade, de necessária e indispensável integração entre essas gerações. Alguns autores, escapando a possível imprecisão terminológica, referem-se a dimensões de direitos, ao invés de gerações. De toda forma, na atualidade são reconhecidas as seguintes gerações de direitos fundamentais: Direitos fundamentais de primeira geração – correspondem aos direitos individuais de liberdade ou de defesa, destinados a proteger os cidadãos contra as intervenções estatais, assegurando-se, por conseguinte, uma esfera necessária à liberdade destes. Esta geração de direitos, dada à influência, serviu para moldar o conceito clássico de Constituição que, nos termos do art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, pressupunha, ao lado do estabelecimento da divisão de poderes, a garantia dos direitos individuais. Direitos fundamentais de segunda geração – correspondem aos direitos sociais, ou direitos de prestação, no sentido de assegurar aos indivíduos melhores condições de vida social, econômica, reduzindo-se a desigualdade e buscando concretizar a justiça social. Ao invés de uma abstenção do Estado, tal geração de direitos requer, deste, ações positivas para a sua implementação em prol da coletividade. Observa-se, portanto, que os direitos de primeira geração, de cunho individualista, resumem-se num direito geral de liberdade, enquanto que os direitos sociais constituem um direito geral à igualdade. Direitos fundamentais de terceira geração – correspondem aos direitos difusos e coletivos, são fundados na consideração do homem como integrante de um 34 grupo. A determinação desta geração de direitos não é ainda muito precisa, no sentido de que os titulares não estão representados pelo indivíduo em si, mas na própria coletividade ou em agrupamentos sociais. Enquadram-se nesta geração os direitos ao meio ambiente equilibrado, à proteção dos consumidores, ao desenvolvimento, à paz, entre outros. Direitos fundamentais de quarta geração – estão relacionados aos efeitos da pesquisa científica e biológica (clonagem, alimentos transgênicos etc.), visam delinear parâmetros de controle que amenizem o instinto de ganho e proveito por parte de indivíduos e grupos desprovidos de escrúpulos. As três primeiras gerações de direitos acima enunciadas estão disciplinadas no texto de nossa Constituição mais recente. Diferem, todavia, quanto à concretização. Neste sentido, observa-se que os direitos de primeira geração possuem um conteúdo essencialmente determinado no nível das próprias normas que os consagram. Em sentido oposto, os direitos sociais têm a delimitação de sua substância submetida, em considerável parcela, à opção legislativa, já que recebe em sua concretização influência da política econômica e social escolhida pelo eleitorado, ou seja, sua formulação concisa nos textos constitucionais faz emergir a necessidade de sua concretização pelos setores políticos em compasso com as circunstâncias sociais e econômicas preponderantes. De igual forma, os direitos de terceira geração possuem um grau de determinação escasso, não prescindindo, igualmente, da atuação do legislador para a delimitação do seu conteúdo; ademais sua concretização requer ampla participação e informação por parte dos seus titulares. Em síntese, pode-se afirmar que, para a realização das normas constitucionais que definem as novas categorias de direitos fundamentais, se faz necessária a utilização das políticas públicas. Porém, no universo jurídico o termo política, que cunha a expressão acima, encerra um significado amplo, sendo, neste ponto, oportuno enunciá-lo em função da temática desenvolvida neste estudo. 35 Nesse sentido, o conceito de Política Pública manifestado por Cristiane Derani (2004) merece ser citado dada a sua abrangência e clareza: “é um conjunto de ações coordenadas pelos entes estatais, em grande parte por eles realizadas, destinadas a alterar as relações sociais existentes”. Para a autora, a política surge, no interior do Estado, em três momentos, a saber: 1. Tomada de decisão estatal – da alçada de agentes públicos, com intermediação maior ou menor dos segmentos sociais, cujo conteúdo está circunscrito à atribuição constitucional e normativa de forma geral; 2. Fase de alteração institucional, consistente em mudança estrutural ou organizacional no âmbito da Administração, preparatória das novas obrigações dos agentes públicos; 3. Ações públicas propriamente ditas, no sentido de concretizarem os valores normativos postos pela Constituição. De fato, corroborando com o conceito da autora, merece ser lembrado que o termo política foi utilizado com o significado de programa de ação governamental em diversos dispositivos constitucionais. Observe-se, neste sentido, entre inúmeros outros, o artigo 196, já citado anteriormente e o artigo 200, IV, ao frisar competir ao “Sistema Único de Saúde participar da formulação da política e da execuçãodas ações de saneamento básico”. Uma vez estabelecida a significação de política pública, vale lembrar que as ações estatais e decisões administrativas, quando da elaboração daquela, pressupõe respaldo no sistema jurídico, seja de caráter constitucional ou legal, por força do disposto no art. 37, caput, da Lei Máxima. Contudo cabe questionar, enquanto objeto precípuo deste estudo, se, em termos de políticas públicas o papel do Judiciário é de neutralidade ou se reúne competência para intervir quando de sua execução, ou, com maior freqüência diante da omissão do Estado em implementá-las, notadamente no tocante à realização dos direitos fundamentais. 36 A possibilidade de os órgãos judiciais deliberarem com vista a obrigar o governo a desenvolver ações relacionadas aos direitos fundamentais, ou para impedir atividades públicas que os violem, depende do grau de vinculação do Estado às normas que os consagram, ou seja, em conformidade com o sistema jurídico vigente. No modelo de Constituição espanhola, por exemplo, constata-se uma maior dependência do legislador no que concerne à efetividade dos direitos fundamentais de segunda e terceira geração. Já a Constituição brasileira de 1988, no art. 5º, § 1º, inserido no Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), proclama: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Ora, considerando que os Direitos Sociais estão preceituados no Capítulo II , de imediato cabe questionar se o parágrafo acima enunciado incide ou não sobre os direitos fundamentais não listados no art. 5º da CF. No propósito de ampliar o entendimento sobre a pronta justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais, nada mais válido que tomar como referência alguns argumentos colhidos ao direito estrangeiro, fonte inspiradora que não foi desprezada pelos constituintes brasileiros, quando da elaboração do texto constitucional. Neste propósito, uma das opiniões mais conceituada é aquela defendida por Robert Alexy, (Alexy, 2006) que enumerou alguns argumentos favoráveis e contrários ao dilema proposto. No plano da admissibilidade ponderou o seguinte: 37 a) a liberdade para fazer ou omitir algo pressupõe a liberdade fática ou real, ou seja, a possibilidade de escolher entre o permitido, o que somente se dá quando se possuem as condições, os bens materiais e espirituais enquanto pressupostos da autodeterminação; b) as circunstâncias envolventes da moderna sociedade industrial fazem com que a liberdade fática de um grande número de titulares de direitos fundamentais não encontre seu substrato material num hábitat por eles dominado, dependendo essencialmente de atividades estatais. No plano das objeções à aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais apresenta obstáculos de ordem formal e material, a saber: a) do ponto de vista formal, os direitos não seriam sindicáveis jurisdicionalmente ou e são em menor medida, justamente porque a maioria deles se apóia em objeto muito impreciso, de modo que a decisão acerca de seu conteúdo é um assunto da política. Isto significa que, de acordo com os princípios da divisão de poderes e da democracia, a competência para decidir sobre tais assuntos não cai dentro das atribuições dos Tribunais de Justiça, mas na do legislativo diretamente legitimado pelo povo; b) Do ponto de vista material, os direitos sociais são inconciliáveis com outras normas constitucionais, mais especificamente com aquelas definidoras de direitos de liberdade. Por exemplo, a norma tutelar do direito ao trabalho entraria em conflito com aquela asseguradora do direito à liberdade de empresa, limitando a intervenção estatal. Diante das ponderações apresentadas, na opinião do autor a norma instituidora de direito fundamental social está definitivamente garantida sob o ponto de vista jurídico quando: a) a lei exigir, urgentemente, o princípio da liberdade fática; b) se assim dispuser em acordo com a divisão de poderes e a democracia; os princípios materiais opostos sejam afetados numa medida reduzida por meio da garantia do seu núcleo fundamental. De toda sorte, o autor sustenta ainda que, em todas essas hipóteses, 38 estariam satisfeitos os direitos fundamentais sociais mínimos: um mínimo vital, uma moradia simples, a educação escolar, a formação profissional e um nível mínimo de assistência médica. Assim, a garantia do mínimo se impõe diante da competência do legislador, ainda que os efeitos financeiros sejam consideráveis em função de serem muitos os que pretendem fazer valer tais direitos. Num plano mais institucional, pode ser também citado como fonte de inspiração ao constituinte brasileiro o art. 18º/1 da Constituição da República Portuguesa: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. Os ensinamentos extraídos dos autores brasileiros não diferem muito daqueles obtidos no direito estrangeiro, porquanto são considerados argumentos favoráveis e contrários à pronta aplicabilidade das normas constitucionais e, bem assim, a intervenção judicial para garantia dos direitos sociais de segunda geração. Nesta vertente, merece destaque a posição de José Afonso da Silva (2006), que se manifesta favorável à incidência do art. 5º, § 1º, da Constituição aos direitos fundamentais dos arts. 6º a 11º do mesmo diploma, ressaltando, todavia, que o problema da aplicabilidade imediata não desaparece quanto a algumas normas definidoras de direitos sociais e coletivos, dado que a Constituição faz com que elas dependam de legislação ulterior. Nobre Júnior (2006, pp. 1253/1254) enumera as situações, abaixo transcritas, que podem ser extraídas para o caso brasileiro em consonância com o sistema jurídico vigente, no tocante à atuação do Judiciário na esfera das políticas públicas: a) Tratando-se de norma constitucional dotada de densidade suficiente, a não depender de lei integradora, é possível o reconhecimento direto do direito social pelo Judiciário; b) Não portando tal qualidade, em regra, a exeqüibilidade do direito estaria a depender da intervenção do legislador, a quem compete o primeiro passo na 39 formulação de uma política pública, não se podendo esquecer que deva ser assegurado pelo Estado um mínimo existencial ao cidadão, requisito quase sempre presente nas normas completas; c) A subordinação da eficácia da norma sobranceira à mediação do legislador impõe a este ônus de agir, configurando a inércia inconstitucionalidade por omissão; d) Ainda quando dependente de complementação legislativa, as normas definidoras dos novos direitos invalidam, por inconstitucionalidade, os atos legislativos e administrativos que lhes sejam contrários, servindo, em face das diretrizes que costumam estabelecer, a limitar a liberdade de conformação do legislador; e) Igualmente tais normas, mesmo sem a completitude necessária, influenciam, mediante o recurso interpretativo, as atividades da Administração e do Judiciário. Segundoo autor, essas seriam, em linhas gerais, as hipóteses nas quais a intervenção judicial na execução de políticas públicas seria plenamente possível, visando a concretização dos novos direitos fundamentais. A despeito das hipóteses que possam ser exploradas a partir do conteúdo da norma constitucional, o controle da atuação do Estado pelo Judiciário na atividade de implementar os novos direitos fundamentais alberga limites, entre os quais merecem ser citados: – A reserva do possível – a capacidade dos recursos financeiros do Estado representa, consensualmente entre os estudiosos do controle das políticas públicas pelo Judiciário, de fato, um obstáculo concreto à indiscriminada satisfação dos direitos sociais, que poderá provocar desequilíbrio financeiro na já combalida finanças públicas. Daí, a reserva do possível limitar as despesas desproporcionais, notadamente frente à pretensão de dispêndio de elevadíssima quantia em prol de um único beneficiário. Neste sentido, tem se pronunciado o Supremo Tribunal Federal (STF), enfatizando que 40 a cláusula da reserva do possível empreende que, na concretização, sempre onerosa dos direitos a prestações, observe-se a razoabilidade individual/social da pretensão versus a disponibilidade financeira do Estado. Não obstante, não é admissível que a reserva do possível desonere o cumprimento de políticas públicas pelo Estado, na esfera dos direitos fundamentais, diante de situações nas quais se impõe a garantia do mínimo assistencial. Recordando- se a lição de Alexy, referenciada anteriormente, o mínimo vital, por emanar diretamente da dignidade humana, impõe-se à liberdade de conformação do legislador. – Outro limite à atuação judicial recai no que concerne ao exame das opções discricionárias assumidas pelos órgãos públicos. Quanto a este fator limitador vale trazer novamente à discussão as argumentações de Nobre Júnior (Ob. Cit., p. 1257) respeitante à matéria: A discricionariedade consistirá, então, nas situações em que os formuladores ou executores de políticas públicas, mais precisamente o Legislativo e o Executivo, possuem liberdade de opção perante o sistema jurídico. Nelas não haverá possibilidade de intervenção judiciária, porque se está diante do livre espaço de movimentação da escolha política. O controle judicial estaria confinado às hipóteses de desvio de finalidade, violação dos princípios gerais do direito, mais precisamente da razoabilidade ou proporcionalidade, e da inexistência dos motivos que ensejaram a escolha do agente público. De esclarecer que discricionariedade não existirá quando a decisão estiver sob a disciplina de norma constitucional de densidade suficiente ou que resguarde o mínimo essencial. Da mesma forma, quando postura normativa ou administrativa colida com valor consagrado pela Constituição, mesmo em norma não imediatamente aplicável. A eficácia derrogatória daquele, aliada à sua força hermenêutica, impediria que assim fosse. 41 4.3 O Controle das Políticas Públicas à Luz dos Fun damentos do Neoconstitucionalismo A expressão neoconstitucionalismo designa o estado do constitucionalismo contemporâneo, o qual apresenta características metodológico-formais e características materiais. Do ponto de vista metodológico-formal, opera sob três premissas fundamentais: a normatividade, a superioridade e a centralidade da Constituição. Sob o ponto de vista material, prevalecem dois elementos: a incorporação explícita no texto constitucional de valores e opções políticas, notadamente vinculadas à promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais, e a expansão dos conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas inscritas no próprio sistema constitucional (colisões, reais ou aparentes, entre diferentes comandos constitucionais, dotados de igual hierarquia, demandando solução jurídica diversa). Essas duas características repercutem sobre a interpretação jurídica como um todo, dificultando o controle das políticas públicas por parte do Judiciário, requerendo, portanto, a elaboração de técnicas jurídicas que possam ser utilizadas no dia-a-dia da aplicação do direito (BARCELLOS, op. cit.). A autora considera que, do ponto de vista metodológico-formal, existe consenso entre os aplicadores do direito quanto às premissas que caracterizam esta vertente; porém, do ponto de vista material, observam-se duas correntes de opiniões. Uma delas, descrita como substancialista, defende que cabe à Constituição impor ao cenário político um conjunto de decisões valorativas essenciais e consensuais; enquanto que a outra corrente, denominada procedimentalista, é de opinião que a Constituição deve garantir o funcionamento adequado do sistema de participação democrático, deixando a cargo da maioria, em dado momento histórico, a definição desses valores e opções políticas. Não obstante, não existe divergência entre as duas correntes no que tange à prevalência dos direitos fundamentais à face de qualquer grupo político, já que esses direitos representam elementos valorativos essenciais indispensáveis ao funcionamento adequado do sistema de deliberação democrático. 42 Sendo assim, do ponto de vista do neoconstitucionalismo “a Constituição é norma jurídica central no sistema e vincula a todos dentro do Estado, sobretudo os Poderes Públicos. E, de todas as normas constitucionais, os direitos fundamentais integram um núcleo normativo que, por várias razões, deve ser especificamente prestigiado” (BARCELLOS, op. cit.). Já foi abordado em outra parte desta Seção que a promoção dos direitos fundamentais gera conflitos, em decorrência da impossibilidade de hierarquizá-los fora da realidade sensível, dada à fundamentalidade que lhes são inerentes. Da mesma forma, já foi salientado que a promoção desses direitos exige omissões e ações estatais e que, as emissões têm a seu favor a lei da inércia, enquanto que as ações estatais envolvem dispêndio de recursos públicos. Compare-se, neste sentido, a liberdade de expressão com as prestações de saúde. Dessa forma, ainda que as atividades do Legislativo, Executivo e do Judiciário estejam vinculadas ao cumprimento das normas constitucionais, conforme já enfatizado, compete à Administração Pública implementar ações e programas e garantir a prestação de determinados serviços por meio das políticas públicas, para que melhor se realize os fins constitucionais, mesmo quando detalhados pelo legislador. Ressalte- se, outrossim, que as decisões do Judiciário produzem efeitos apenas pontuais, quando intervém nas atividades dessa área (BARCELLOS, op. cit.). Ana Paula de Barcellos argumenta, no texto que serviu de apoio a esta subseção, que as políticas públicas envolvem gastos e que não havendo recursos ilimitados é preciso priorizar e escolher em que o dinheiro público será investido. Por isso, essas escolhas recebem influência direta das opções constitucionais, ou seja, decisões relacionadas a gastos públicos não estão integralmente reservadas à deliberação política. Nesta vertente, propõe, através de algumas premissas, o seguinte sistema de dedução: 43
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