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Teologia e Prática da Espiritualidade Jonathan Menezes Catalogação na fonte/ Bibliotecária Zoraide Gasparini CRB/9 1529 Janeiro / 2014 Coordenação editorial: Depto. Desenvolvimento Institucional Coordenadoria de Ensino à Distância: Gedeon J. Lidório Jr Projeto Gráfico e Capa: Mauro S. R. Teixeira Revisão: Mirian Soares Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 SUMÁRIO Unidade - 01 Espiritualidade e espiritualidades,.............................07 Unidade - 02 O que é espiritualidade cristã?...................................15 Unidade - 03 Espiritualidade na Bíblia ............................................21 Unidade - 04 Espiritualidade na história..........................................29 Unidade - 05 Espiritualidade e oração (I)........................................39 Unidade - 06 Espiritualidade e oração (II).......................................47 Unidade - 07 Espiritualidade do deserto..........................................55 Unidade - 08 O deserto na espiritualidade de Jesus........................63 Unidade - 09 Espiritualidade, teologia e vida..................................73 Unidade - 10 Espiritualidade da libertação......................................83 Unidade - 11 Henri Nouwen e a espiritualidade da imperfeição..91 Unidade - 12 O que aprender com Henri Nouwen?......................101 Unidade - 13 Espiritualidade e a busca pela felicidade (I)...........109 Unidade - 14 Espiritualidade e a busca pela felicidade (II).........117 Unidade - 15 O valor da comunidade na espiritualidade............125 Unidade - 16 Espiritualidade e sexualidade (I).............................135 Unidade - 17 Espiritualidade e sexualidade (II)............................143 Unidade - 18 Espiritualidade, os pródigos e a juventude.............149 APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA Bem vindo(a) à disciplina de Teologia e Prática da Espiritualidade! Nela você estudará prioritariamente fundamentos bíblicos, teológicos e históricos da espiritualidade, tendo como foco final uma compreensão (e vivência) de uma espiritualidade cristã e, por isso, cristocêntrica e solidária, visando à vivência da fé e da missão em sua integralidade, a serviço do reino de Deus. Como introdução a este curso, gostaria de compartilhar com vocês um texto de minha autoria, que resume bem a tônica de tudo o que estudaremos neste semestre, intitulado: A dança do Espírito “O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem; assim é todo o que é nascido do Espírito” (João 3.8). O sopro do Espírito é um sopro constante, mas nunca visível a olhos nus. Para se saber onde e como ele está soprando é preciso ter a capacidade de enxergar além. Além das aparências, das estruturas, das inibições de ânimo, das manifestações exóticas, de meras palavras. O Espírito pode estar em tudo isso, mas também pode permanecer “fora”. Ele não se limita ou se reduz às paredes do escravismo institucional humano, seja ele secular ou religioso. O Espírito é livre e age em liberdade: “Onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade”. Mas, convém perguntar, onde está o Espírito? Ele não se encontra exclusivamente aqui ou ali. Não se faz monopólio de uma instituição, pessoa ou evento. O eventualismo humano apenas inibe a verdadeira ação do Espírito, ao pretender dizer: “Aqui está ele”; “Neste encontro ele se manifestará com poder”. Definitivamente, Paulo estava certo ao afirmar que o homem natural não aceita nem compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura, porque elas se discernem espiritualmente (1Co 2.14). Estamos falando do Espírito de Deus. Se Deus é o Onipresente, conforme diz o salmista, como se pode querer enjaular o Espírito? Sua natureza é livre como é a de um animal selvagem, que ao ser preso ou confinado, perde todo o seu vigor, vitalidade e espontaneidade anteriores. O Espírito Santo age movido pelo sopro, pela palavra, pelo toque de Deus. Ele está presente onde Deus se encontra fazendo suas pequenas e maravilhosas revoluções, nos lugares, das formas e com as pessoas menos esperadas. Não tem como antecipar sua presença ou ação. O poder de consolo do Consolador não repousa nem cresce na prepotência, nas palavras decoradas, nem na manipulação pensada; esse poder só é fecundo na fraqueza, em palavras e em seres imersos nas imperfeições de sua humanidade. Ele é o brilho do tesouro que habita em vasos de barro. A dança do Espírito não aprisiona, mas promove as sábias loucuras revolucionárias e libertadoras de Deus. Todos os que tentam aprisionar Deus, confiná-lo ou formatar sua natureza em uma caixa, falam de um conceito, privando os outros e a si mesmo nele. Contudo, graças a Deus, a verdade não germina ali. O vento sopra onde quer, onde Deus quiser. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! Jonathan Menezes OBJETIVOS DA DISCIPLINA Ao final do curso, o aluno(a) deverá ser capaz de: 1. Conhecer os conceitos básicos que diferenciam a espiritualidade no plural da espiritualidade cristã 2. Relacionar os fundamentos históricos, bíblicos e teológicos contemporâneos da espiritualidade cristã 3. Compreender a importância de uma espiritualidade integral para a vida e missão da igreja 4. Desenvolver práticas e disciplinas que condigam com uma espiritualidade mais humana, cristocêntrica e solidária. 07 Teologia e Prática da Espiritualidade Unidade -01 Espiritualidade e espiritualidades Introdução Esta primeira unidade se trata de uma tentativa de encontrar definições possíveis para a espiritualidade, no sentido mais geral, para então diferenciar a espiritualidade cristã, em particular. Isto se fará, buscando suporte tanto em temas que estão sendo discutidos na atualidade (no Brasil, em especial), como a questão da busca de um cristianismo não-religioso, quanto em diálogo com autores que têm desenvolvido contribuições importantes nesta área. Objetivos 1. Discutir sobre as dificuldades próprias de se compreender e definir o que é a Espiritualidade. 2. Identificar alguns dos diversos termos, conceitos e experiências que normalmente relacionam à espiritualidade. Teologia e Prática da Espiritualidade08 Em busca de definições Defi nir espiritualidade não é uma tarefa tão fácil quanto parece ser, ao menos em nosso contexto latino-americano com forte tendência para a religiosidade. Na América Latina somos religiosos por natureza e nossa compreensão de espiritualidade normalmente diz respeito à intensidade dessa vida religiosa. É devido a isso que neste curso não é possível tratar do assunto da espiritualidade cristã sem ambientá-lo no contexto do qual ele faz parte. Isso é necessário porque ela é experiência humana em relação ao divino, e o humano sempre está localizado em algum tempo e lugar. Em se tratando de realidade brasileira, tal necessidade se intensifi ca, pois nosso quadro religioso é bastante complexo e completamente relacionado à situação sócio-histórica. Isso quer dizer que, culturalmente, não vivemos a religião como algo à parte, mas no conjunto da vida. Quando, por exemplo, acontecem as costumeiras enchentes de início de ano e pessoas diversas fi cam desabrigadas em várias regiões do país, ao serem entrevistadas por repórteres sobre o que farão a respeito, geralmente respondem: “Somente Deus poderá nos ajudar agora”, ou “Deus nos dará forças pra reconstruir tudo o que perdemos”. Para nosso povo, principalmente aqueles mais simples, não se fala de Deus como um conceito apenas, mas como uma forma de viver e dar sentido à vida. Precisamos ter consciência de que a espiritualidade – ainda falando genericamente aqui – não acontece no vácuo, mas dentro das situações de vida no mundo. Ela não somente possui umalocalização, como afeta a vida em todos os seus aspectos. Por mais que a modernidade iluminista tenha relegado a religião à esfera dos valores e da ética e entregue às ciências a orientação da vida concreta, na prática Foto reprodução: TV Ji-Paraná 09 cotidiana o fator religioso ainda é significativamente condicionador de nossas relações com as questões sociais, econômicas e culturais. O contexto em que nossa espiritualidade “acontece” deve ser visto de modo integral, ou integrado, ou seja: histórico-religioso, sócio-econômico, cultural, ecológico, etc. Na cultura brasileira, historicamente ela tem sido um fator agregador desses aspectos. Para iniciarmos uma conversa sobre o assunto podemos, então, distinguir alguns conceitos religiosos que, invariavelmente, são relacionados à espiritualidade, inicialmente comentando algo sobre essa discussão no contexto atual e, em seguida, fazendo uma abordagem dos termos. Sobre a religião e seus derivados No atual momento, vemos tomar corpo um movimento de pessoas que se dizem apaixonadas por Jesus, mas que não gostam mais da igreja, detestam as instituições em geral, e desenvolveram uma ojeriza pelo que chamam de “religião” – a meu ver, a religião institucionalizada. O mote de sua trajetória está no slogan: “Mais Jesus e menos religião”. O problema é que, nesse meio termo, apareceram outros apresentando outra visão de religião, mais positiva talvez, alegando que a religião faz parte da história humana desde sempre e tem oferecido contribuições importantes a ela. Em outras palavras, por mais que critiquemos a religião, na perspectiva dos defensores desta visão, não vivemos sem ela. Nesta discussão pouco criteriosa, termos como religião, religiosidade e espiritualidade acabam sendo utilizados de modo intercambiável, como se um fosse ou pudesse ser sinônimo para outro. E a confusão se vê armada. Podemos desatar este nó? Em primeiro lugar, a discussão sobre as terminologias (religião, religiosidade, espiritualidade, etc.) é in-termi-nável. Todas são palavras polissêmicas, se considerarmos o diálogo interdisciplinar, ou mesmo o senso comum. Ricardo Barbosa, por exemplo, defende que quando falamos de espiritualidade – especialmente no mundo contemporâneo em que o uso da palavra se tornou cada vez mais corrente – não nos Teologia e Prática da Espiritualidade10 referimos apenas, e necessariamente, à obra do Espírito Santo, mas “aos movimentos do espírito humano na busca por identidade e signifi cado. Neste sentido, podemos falar de espiritualidades”, no plural, uma vez que não se trata de um só rosto, mas de vários (SOUSA, 2004). Em segundo lugar, esse movimento (por um cristianismo não-religioso) não é novo. Já vimos isso no século XX, através de Karl Barth, e mais fortemente na teologia de Dietrich Bonhoeff er, na teologia secular (Harvey Cox) e da morte de Deus (A. T. Robinson e Cia), dentre outros. A diferença para o que temos visto atualmente é que esses últimos me parecem ter sido mais intencionais, proposicionais e consistentes (quer se concorde com eles ou não) no sentido de formular respostas relevantes aos problemas e movimentos de seu tempo, e não um fl ash mob de descontentes, como parece se apresentar grande parte do movimento atual. É preciso conferir mais coerência e conteúdo aos nossos descontentamentos. No que diz respeito às terminologias, Paul Tillich, por exemplo, falando sobre a clássica diferenciação entre religião e revelação em sua Teologia Sistemática, afi rma que toda revelação pressupõe um receptor. E, considerando não haver receptor “puro” (isto é, livre da infl uência de sua cultura e da ideologia), e consequentemente nenhuma forma de fé, interpretação ou verdade universalmente válida, a recepção em si já é uma religião. Assim, o que Tillich chama de “religião” seria o processo de recepção e, por conseguinte, de signifi cação da revelação. Nesta acepção, não Karl Barth Harvey Cox 11 há revelação sem religião e todos os que vivem conforme a revelação de Deus poderiam ser considerados religiosos. Então, para começo de conversa, precisamos tentar entender qual religião esse movimento atual quer de menos, e qual Jesus ele quer de mais, para poder avançar no debate, não acham? Arriscar- me-ei, então, em algumas impressões mais pessoais sobre esse tema no último tópico. Agora, para não confundir muito os termos, como de propósito tenho feito até aqui, vejamos algumas conceituações importantes. Alguns conceitos importantes Temos alguns conceitos que normalmente são utilizados como sinônimos ou relacionados à espiritualidade. No entanto, eles possuem sentido próprio e designam alguns aspectos ou momentos da nossa espiritualidade, mas não ela propriamente dita. São eles: 1. Religiosidade – A experiência pessoal do ser humano com Deus traduz-se, numa linguagem mais contemporânea da história e antropologia das religiões, muito melhor como “religiosidade” que como “religião” propriamente dita. A palavra religião nos remete às instituições religiosas ou às grandes religiões, de caráter mais dogmático e clerical. Já religiosidade é um termo que evoca uma experiência mais ampla; traduz-se como expressão da interioridade do ser humano, de sua busca tateante pelo relacionamento com o transcendente, o numinoso, o sagrado. Isso se expressa em formas não institucionalizadas de lidar com o sagrado, como os ritos, êxtases, as danças, as festas, e assim por diante. 2. Fé – Tem a ver com o envolvimento com Deus a partir de uma resposta pessoal a Ele. Possível mediante a conversão, ou seja, a decisão Paul Tillich Teologia e Prática da Espiritualidade12 pelo seguimento de Jesus como fruto de um ato de liberdade. Demanda a crença nesse Deus a ponto de um envolvimento de vida com ele. Karl Barth esclarece que a fé não é um estado humano e nem mesmo uma qualidade – a isto ele chama de “religiosidade”, classificação esta que, de certa forma, bate com o que vimos acima. Fé é história que se constrói com Deus através da sua Palavra, “uma história nova a cada dia”. Fé também não é igual a “crença”, isto é, a uma “suposição, a uma opinião, estabelecer um postulado, um cálculo de probabilidades, para então identificar o objeto da teologia com aquilo que supôs, postulou e considerou verossímil, e, neste sentido, o assumir” (BARTH, 2008, p. 64). Para Barth, a fé nasce de um encontro, e não de uma simples identificação, “do crente com aquele em quem crê” (Idem, p. 65). Neste sentido, é válido ressaltar, portanto, que “fé” e “crença” são coisas opostas. Na diferenciação feita por Harvey Cox (2009, p. 2), a fé diz respeito a uma “confiança profundamente assentada”, algo vital para nossa existência. “Na linguagem cotidiana nós usualmente aplicamos o termo a pessoas em quem confiamos ou aos valores que nos são mais caros”. Já a crença seria, segundo Cox, mais como a opinião, mais proposicional que existencial. Dizer “eu acredito em Deus” é diferente de dizer “eu tenho fé em Deus”. E a diferença está proporcionalmente ligada ao compromisso. Acreditar que Deus existe não significa ter sua existência assentada em Deus e em sua Palavra. Já depositar a sua fé neste mesmo Deus implica em um compromisso de vida com Ele e sua Palavra, de modo que os valores, modo de agir e pensar divinos têm uma influência direta e decisiva em minha existência e em como a conduzo. 3. Misticismo – Os termos místico, mística e misticismo aparecem com freqüência na história da Igreja e como sinônimo, de certa forma, de espiritualidade. Misticismo tem a ver, todavia, com uma dada “experiência” e não com o seu pensamento e reflexão necessariamente. Trata-se da vivência interna do evento religioso, geralmente comunicada por meio de narrativa. Neste sentido, no relato de uma “experiência mística” a preocupação acaba recaindo mais no 13 contato sobrenatural, na experiência em si, emocional e extática, sem dar muita importância ao conteúdo.Posso experimentar o sagrado, neste sentido, sem grandes significados para a maneira como vivo e me relaciono com o mundo. Já na espiritualidade bíblica, o conteúdo é importante, de tal forma que a experiência evoca, necessariamente, um conteúdo, um significado, uma mudança de mentalidade e, consequentemente, do jeito de viver. 4. Espiritualidade – Vocês perceberão, pelos textos desta e da próxima unidade, que espiritualidade é uma palavra que resiste à conceituação fechada. Ou seja, não podemos compreender espiritualidade como “somente isto” ou “somente aquilo”. Pelo contrário, precisamos buscar um entendimento básico inicial, ir aprofundando este entendimento por meio das leituras e, associado a isto, construindo um modo próprio de compreensão por meio da vivência. Gostaria de instigar isto ao longo do curso em geral, e mais especificamente na próxima unidade. Conclusão Espiritualidade é mais que um conceito. Mas, como seres humanos que somos, só nos entendemos e nos comunicamos por meio da linguagem. Por isso temos tantos conceitos de espiritualidade quantos são os campos semânticos, os contextos e as vivências. Isto não significa que qualquer definição ou percepção é válida, e sim que podem existir, no meio de tantas, algumas mais adequadas e apropriadas que outras. A próxima unidade, portanto, se trata da busca de uma visão apropriada e integral da espiritualidade, numa perspectiva cristã. Até mais! Teologia e Prática da Espiritualidade14 Referências bibliográficas BARTH, Karl. Introdução à teologia evangélica. 8ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2003. COX, Harvey. The future of faith. New York: HarperOne, 2009. MCGRATH, Alister. Uma Introdução à Espiritualidade Cristã. São Paulo: Vida, 2008. SOUSA, Ricardo Barbosa de. Espiritualidade e espiritualidades. In: Espacio de diálogo. Disponível em: <www.cenpromex.org.mx/revis- ta_ftl/num_1>. Acesso 02 dez. 2013. Escrito em parceria com textos (com uso autorizado) de autoria da professora Regina Sanches. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 15 Teologia e Prática da Espiritualidade Unidade 02: O que é espiritualidade cristã? Introdução Na unidade anterior, nos ocupamos de definições iniciais, procurando demonstrar como espiritualidade é um assunto complexo, razão pela qual utilizei esta palavra no plural (espiritualidades), além de comparar com termos relacionados tais como religião, religiosidade e misticismo. Nesta segunda unidade do curso, porém, gostaria de tratar especificamente do que falamos quando falamos em espiritualidade cristã. A tese principal a ser defendida é a de que a espiritualidade é diferente de mística, de religião e de religiosidade – embora seja muitas vezes, em com pouco critério, identificada com elas. Mais que isso, que a espiritualidade cristã é um modo de ser, expresso a partir de um encontro, relacionamento e compromisso com a pessoa de Jesus Cristo. Objetivos 1. Diferenciar espiritualidade cristã de outras formas e compreensões de espiritualidade. 2. Desenvolver uma visão de espiritualidade mais ampla e integral. Teologia e Prática da Espiritualidade16 Sobre a espiritualidade cristã De acordo com Alister McGrath (2008, p. 20), a palavra espiritualidade procede do termo hebraico ruach, que pode ser traduzido por “espírito”, inclusive no sentido de “vento”, “alento”. Refere- se ao ânimo de vida, tanto que a gera como que a sustenta. Também tem a ver como cada cristão responde à sua fé nas diversas representações cristãs existentes, o que, de acordo com ele, permite-nos também falar de “espiritualidades cristãs”. Pode-se entendê-la, em geral, como uma qualidade não material que diz respeito à vivência, envolvimento, dedicação religiosa em geral, à luz de refl exão e entendimento. Mas, podemos falar também de espiritualidade cristã, que é aquela forma de espiritualidade específi ca da fé cristã e sua vivência. Neste aspecto, eu fi caria com uma defi nição mais simples, que deve perpassar nossas conversas daqui para diante: Espiritualidade é o modo de ser do cristão guiado pelo Espírito Santo. A espiritualidade cristã baseia-se na fé, pois é por ela que acolhemos a palavra de Deus. A experiência mística e a devoção fazem parte e auxiliam nossa espiritualidade, mas não é sua fonte principal. A fonte de nossa espiritualidade é Jesus Cristo, que conhecemos prioritariamente pela palavra de Deus. A vida não é a razão da nossa espiritualidade, mas seu contexto. A espiritualidade cristã, conforme o próprio nome diz, é cristológica e cristocêntrica. O seguimento de Jesus Cristo gerador da espiritualidade cristã não se dá, no entanto, como a um líder religioso de grande inspiração. Conhecemos Jesus pela obra de salvação e graça que ele realizou, e continua realizando, em nós. Nesse sentido, nossa espiritualidade, outra vez ressalto, é fruto do encontro com Cristo e a salvação que ele concede a nós, conforme ensinou o apóstolo Paulo aos cristãos na cidade de Corinto: “Porque nada me propus Alister McGrath “Ruach,” by Lucy A. Synk 17 saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucifi cado” (1Cor 2.2). É em função disso que o estudo da espiritualidade cristã requer compreender seus fundamentos bíblicos e a experiência e elaboração histórica da Igreja – que veremos na próxima unidade. Amor à vida, sim! Cultos e teatros sem substância, não! Oportunamente voltando à discussão da primeira unidade sobre a questão da religião, pergunto: Quando profetas como Amós, por exemplo, criticam os cultos, encontros religiosos, ritos e formas de se “achegar a Deus”, o que afi nal ele está criticando? Ele está denunciando a forma de religião predominante em Israel, sem entrar no mérito de dizer “toda religião”, ou “a religião”. Talvez uma coisa que esteja faltando às nossas genéricas classifi cações sobre religião é “dar nome aos bois”. E isto Amós faz. Observem o seguinte trecho (na tradução “A Mensagem”, de Eugene Peterson): Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio dos seus congressos e convenções. Não me interessam seus projetos religiosos, seus lemas e alvos presunçosos. Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos, das suas táticas de relações públicas e criação da própria imagem. Não suporto mais sua barulhenta música de culto ao ego. Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – rios de integridade. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu quero (Am 5.21-24 – Grifos meus). A religião criticada por Amós é covarde e superfi cial, porque marginaliza o que realmente importa e põe no centro o trivial e menos relevante. Confunde retidão com justiça própria e santidade com abstinência; faz dos sacrifícios e rituais o baluarte da espiritualidade, dissociando-a completamente da vida, da misericórdia e da sede por justiça. Afi rma uma sede incontrolável por Deus e seus mandamentos, mas é incapaz de reconhecê-lo no próximo, no diferente, na samaritana à beira do poço em meio ao caminho. Daí, muitos desses encontros, congressos, convençõese projetos religiosos aos quais se refere o profeta, terem se tornado, para Deus, um negócio insuportável e indigno de atenção. Mais “culto ao ego” que outra Eugene Peterson Teologia e Prática da Espiritualidade18 coisa. Daí a pergunta: “Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim?”. E o que é viver e cantar “para Deus”? É anelar por Deus com todo o nosso ser (lutando contra nossa divisão interna); é deixar ser movido e tocado pelas coisas que mobilizam o coração de Deus (o que sabemos por meio da Palavra); é desejar ardentemente que sua vontade seja feita tanto aqui na terra, como no céu; é lutar para que a justiça corra como rio que não seca; é buscar viver em integridade e afastar ao máximo do nosso caminho a hipocrisia. Mas, como? E seria isto outra forma de religião? Não sei, talvez, quem sabe. Linguagem, tudo passa por ela. Não é novidade para ninguém que muitos sistemas religiosos se alimentam da hipocrisia e não subsistem sem ela. Muitas igrejas têm sido – até que provem a si mesmas e ao mundo o contrário – ao invés de centros de misericórdia e compaixão e comunidades de reino, covis de hipocrisia, onde o livre pensar é reprimido (sobretudo em assuntos como sexualidade, por exemplo), e o discordar (mais ainda da liderança e da orientação doutrinária) é tratado como pecado. Exceções à regra (os remanescentes) existem, é claro, mas com a sina de ter que “nadar contra a maré”, caso não (ou até que) se deixem corromper pelo “se não pode vencê-los, junte-se a eles”. A hipocrisia vai, dessa forma, recebendo outros nomes, e vai sendo ornamentada com vestes outras, mais sofisticadas quem sabe (embora não menos vorazes) e se torna peça indispensável ao bom funcionamento da engrenagem, mascarada pelo discurso de que assim estaremos “no centro da vontade de Deus”. Como corolário disso e de outras tendências já bastante enraizadas, como a privatização da espiritualidade e a religião de consumo, as pessoas vão à igreja apenas para nutrir o lado “lúdico” da fé, que congrega e agrega a massa dos que querem distância do conflito e que relega aos ditos apóstatas, hereges e perdidos o lado trágico (e sombrio) da existência. A hipocrisia tenta eliminar o sofrimento a todo custo e promover uma espécie de narcótico gospel como sustentáculo para uma fé “que funciona”. Uma fé que desconhece a compaixão, porque só age para aliviar a dor; que tem desconfiança em relação ao mistério, ao desconhecido e às incertezas; que pensa que testemunhar é igual a fazer propaganda de sua fé, e se distancia da prática da justiça por estar tão ofuscada com as celebrações e homenagens, públicas e privadas, ao “seu Deus” – o “meu Deus isso”, o “meu Deus aquilo”. Essa fé é substrato da hipocrisia. Irracional e inconscientemente, 19 muitas vezes, ela canta: “Hipocrisia, eu quero (eu preciso de) uma pra viver!”. Nos lugares onde ela é vivida, as palavras de Jesus – “Acautelai-vos do fermento dos fariseus!” – ecoam como gritos em uma terra de surdos. Porque acautelar-se, talvez, implique em passar pela via da admissão honesta de que, no fundo, todos (digo, os que nos servimos do sistema religiosos, ou os que se encontram, como eu, em processo de libertação de suas entranhas) somos um pouco como os fariseus ou hipócritas – o que seria um total absurdo e falta de espiritualidade, para muitos. Se toda mulher é meio Leila Diniz, como diz a canção “Todas as mulheres” de Rita Lee, então (digo isso contra meu melhor senso) todo crente é meio hipócrita e, por natureza, religioso (no sentido que Amós abomina), até que prove o contrário lutando contra tal orientação. Nas palavras do profeta Amós, temos indícios ou ecos (da Revelação) de um constante manifesto de repúdio divino contra a escolha de tantos em fazer do farisaísmo e da hipocrisia sua morada permanente. Agora pergunto: • Quem será o primeiro a ter coragem de vestir a carapuça? • Quem ousará romper com as correntes (frouxas ou apertadas) da hipocrisia? • Quem será capaz de avançar uma milha mais rumo a uma entrada em um cristianismo não-religioso? Quem sabe você possa discutir essas e outras questões com sua comunidade, grupo pequeno, ou mesmo no fórum indicado para esta semana, com seus colegas de turma. Conclusão No âmbito da fé cristã, entende-se a espiritualidade como um modo de vida, essencialmente relacional, centrado em Cristo e firmado na Palavra. Embora ela possa se expressar em formas e conotações consideradas religiosas, ela envolve mais que o que se entende comumente por religião. Ser espiritual, neste aspecto, é deixar que o seu viver seja guiado e orientado de modo integral (em tudo o que se é e se faz – isto falando em termos ideais, indicando uma busca e não “a perfeição” em si) pelo Espírito de Deus, sem abandonar os aspectos da vida material, corporal, humana. O templo do Espírito, nesse sentido, não é apenas meu espírito ou alma, mas meu corpo, Teologia e Prática da Espiritualidade20 todo o meu ser indivisível. Gostaria de relacionar, por fim e ao modo de retomada, algumas idéias relacionadas à espiritualidade que devem ser mais bem pensadas, por exemplo: 1. É algo próprio do ser humano – é uma prática que requer pensamento, decisão, comportamento, vivência, o que é caracteristicamente humano. 2. É algo que se opõe ao material – historicamente tem sido entendida em contraposição ao corpóreo ou material, ou seja, vida espiritual contrapõe vida mundana. 3. Muitas vezes é tratada em referência à vivência religiosa – como se naturalmente dissesse respeito à religião. 4. Na religião, refere-se à relação com a transcendência – superação da materialidade e contato com o divino. Dentro de uma compreensão integral de espiritualidade, não cabe mais pensá-la como o oposto do que é material e concreto. Vivemos em um tempo que busca superar os vícios impostos pela modernidade, como o que se expressa no dualismo entre fé e razão, religião e ciência, espiritual e material. A cultura chamada de pós-moderna esforça-se pela integração em todos os sentidos e aspectos da vida humana. Espiritualidade, nesse caso, não é algo que se refere exclusivamente a atividades tipicamente “religiosas” (como orar, jejuar ou ir à igreja aos domingos), pois tem a ver com a vida como um todo, e não está à parte da vida no mundo e com a vivência nele. Se a espiritualidade é um “modo de vida”, como venho defendendo, envolve não somente uma parte dela, mas a vida inteira. Correr, por exemplo, pode ser uma atividade tão espiritual quanto o jejum, e por aí vai. Espero que esta idéia fique mais clara na próxima unidade, quando veremos um aporte bíblico e histórico à espiritualidade cristã. Até lá!_ Referências bibliográficas McGRATH, Alister. Uma Introdução à Espiritualidade Cristã. São Paulo: Vida, 2008. 21 Teologia e Prática da Espiritualidade Unidade 03: Espiritualidade na Bíblia Introdução Tendo abordado algumas ideias básicas sobre o que há de específico na espiritualidade cristã em relação a outras formas possíveis de espiritualidade em voga nos dias de hoje, nos debruçaremos nesta terceira unidade de nosso curso sobre bases da espiritualidade cristã no Antigo e Novo Testamento. Para tanto, apresentarei alguns recortes e, a partir deles, analisaremos o assunto, tendo em vista tratar-se de um texto de pequeno porte. A intenção básica é que você constate que a Espiritualidade Cristã é necessariamente bíblica, ainda que a palavra “espiritualidade”, em si, não seja. Objetivos 1. Apresentar alguns caminhos bíblicos da espiritualidade cristã. 2. Constatar que, embora não seja um termo bíblico, a essência da espiritualidade cristã está em ser bíblica. Teologia e Prática da Espiritualidade22 Bases bíblicas para a espiritualidade Para tratar das basesbíblicas da espiritualidade cristã a partir do nosso contexto sócio-cultural, introduziremos o assunto com citações de dois teólogos terceiro-mundistas que experienciam situações de vida parecidas com a nossa, ou seja: sérios problemas sócio-econômicos, riquezas cultural e ecológica não devidamente aproveitadas, diversidade religiosa e uma teologia que emerge da situação sócio-histórica. Nossa teologia da espiritualidade deve corresponder a essas situações e seus problemas comprometedores da vida. Devemos fazê- lo não à parte, mas do interior dessa realidade, conforme ensina John Mbiti, teólogo, fi lósofo e poeta queniano: A religião permeia todas as partes da vida, de maneira tão completa que não é fácil, talvez nem possível isolá-la. Um estudo desses sistemas religiosos é, portanto, primariamente um estudo dos povos em si, com todas as suas complexidades tanto da vida tradicional, como da moderna (MBITI, 1990, p. 1). De fato, viver com Deus é compartilhar das suas preocupações e fazer delas as nossas preocupações pessoais e comunitárias. É também aprender a amar o próximo como fruto da nossa liberdade de acordo com Kosuke Koyama, teólogo japonês que foi missionário na Tailândia: Quando o amor funciona, o caráter da liberdade se revela – mesmo que continue sendo um mistério para nós. “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém sua vida pelos amigos” (João 15:13). O homem tem a liberdade de amar e “dar sua vida pelos amigos”. Quando escolhe perder a sua liberdade pelo amor aos outros, é que ele se torna mais livre e mais amoroso (KOYAMA, 1979, p. 46) John Mbiti Kosuke Koyama 23 Outro teólogo, Juan Stam, latino-americano de coração e naturalização, relacionou a vida no mundo à esperança do cristão, à luz do seus estudos em escatologia: Vivemos nestes tempos como cidadãos de uma nova ordem. De agora em diante, somos a levedura e a semente, a luz e o sal da nova criação, assim como do Reino que veio e virá. Isso signifi ca viver como primícias da nova criação vindoura. Enquanto isso, “entre os tempos”, vivemos desejando e apressando a gloriosa transformação de todas as coisas, conforme o Criador prometeu (STAM, 2003, p. 98). É tendo como ponto de vista (de onde vemos as coisas) essa compreensão de uma fé contextualizada que iremos agora para o texto bíblico. Breve olhar a partir do Antigo Testamento O melhor ponto de partida para qualquer teologia que se queira afi rmar cristã é a criação. A chamada Teologia da Criação serve para nós como base para o tratamento do problema humano no mundo e a relação disso com Deus. Também é nas narrativas da criação que encontramos os primeiros relatos sobre a presença e atuação do Espírito Santo. Nelas, ele é apresentado como ruach, termo hebraico que signifi ca “vento”, no sentido de “alento”, “fôlego”, “ânimo”. O Espírito na criação é aquele que anima a vida, ou seja, dá energia (no sentido da física mesmo). Explicando de uma forma poética e bem latino-americana: “Ele faz com que simples bonecos de barro cantem e dancem à luz do sol”. O Espírito foi a energia de vida na criação de todas as coisas, e, como tal, ele é também, até hoje, o sustentador dela no mundo. Cosmos signifi ca mundo, no “sentido de universo”. Se a Floresta Amazônica permanece verde e as árvores de Buriti continuam a dar seus frutos e sua seiva a alimentar muitos, é porque o Espírito de Deus ainda age no mundo. Se as matas ao longo das estradas de Minas Juan Stam Teologia e Prática da Espiritualidade24 reverdecem com uma pequena chuva após longo período de estiagem, é porque a vida está nelas, e essa vida (ânimo) vem do Espírito Santo e não de outro. Se o ser humano é capaz de dizer “a vida continua” após grandes perdas e sofrimentos, é porque há esperança no mundo, e, esperança é vida, a qual tem como fonte o Espírito Santo de Deus. Neste sentido, todo atentado contra a vida no mundo, nas suas mais diversas manifestações, é também atentado contra o Espírito Santo e sua obra vivifi cadora. Nesta direção é que se deve compreender a evangelização, que não deveria visar o doutrinamento ou acréscimo de membros a uma Igreja local, mas, sobretudo, ser a condução de pessoas a Jesus Cristo, a única fonte possível de vida por meio do Espírito. O que isso tem a ver com a espiritualidade cristã? Podemos dizer que são dessas águas teológicas que ela emerge. E o ministério do Espírito Santo é gerar e manter a vida na criação de Deus. E podemos afi rmar que essa é a medida da nossa espiritualidade. Ainda no Antigo Testamento podemos perceber como os profetas corresponderam ao Espírito ao encarnarem a Palavra de Deus em suas vidas, comunicando-a de modo integral. Também compreendemos a espiritualidade horizontal do sapiencialismo, que relacionou-a a vivência da vontade de Deus na vida, em sua organização e inter-relacionamentos. Sapiencialmente viver no Espírito é viver em sabedoria. Um breve olhar a partir do Novo Testamento A vida e obra de Jesus são mais do que modelo de espiritualidade; são sua fonte principal, como ele mesmo afi rmou: “Eu sou a porta; se alguém entrar por mim, salvar-se-á, e entrará, e sairá, e achará pastagens” (Jo 10.9). Neste caso, achar pastagens é achar alimento, nutrir-se dele e assim viver. Não há espiritualidade cristã se esta não Fonte: Wikipedia - Buriti 25 for cristológica (no sentido de basear-se teologicamente na pessoa de Jesus) e cristocêntrica (no sentido de estar centrada em Jesus). Nossa vida com Deus somente é possível porque Cristo, através de sua obra salvadora, faz a mediação entre nós e ele: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim (Jo 14.6). Cristo é o caminho por onde passa nossa espiritualidade. Como afi rma o termo que a acompanha e qualifi ca, ela é cristã. Mas ele também comentou que enviaria o Espírito da Verdade: “O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós” (Jo 14.17), que é também apresentado nesse mesmo capítulo de João como o Espírito Santo. Ele esclarece que o mundo não pode receber o Espírito porque não o reconhece, mas aqueles que pela fé acolheram o conhecimento revelado de Deus, sabem quem é o Espírito e estão sensíveis à eles. Esses, sim, podem recebê-lo bem como o conhecimento da verdade que ele transmitirá. Já em Atos dos Apóstolos, o ministério do Espírito se evidencia tanto no esclarecimento da verdade de Jesus Cristo, como vemos no caso do sermão de Pedro no pentecostes, como na vida da Igreja. Ele, o Espírito, é apresentado como a energia que impulsiona a Igreja em sua missão. Uma palavra recorrente no livro de Atos é “poder”. Ela é utilizada para se referir à proclamação dos apóstolos: “Os apóstolos davam, com grande poder, testemunho da ressurreição do Senhor Jesus” (At 4.33); ao ministério de Estevão “cheio de fé e poder” (6.8), e outros. O sentido de poder nas narrativas tem a ver com energizar mesmo, fazer com que a proclamação, a oração e o testemunho surtam efeitos extraordinários, que vão além da condição natural e humana. Quando compartilhamos do ministério do Espírito ele compactua com nossa missão dando a ela a força necessária para que o possível e também o impossível ao ser humano aconteça: “E disse Pedro: Não Fonte: Depositphotos Teologia e Prática da Espiritualidade26 tenho prata nem ouro; mas o que tenho isso te dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda. E, tomando-o pela mão direita, o levantou, e logo os seus pés e artelhos se fi rmaram” (At 3.6). É bom lembrar, no entanto, que o mérito disso é todo do Espírito Santo, pois ele é o poder de Deus em nós: “Mas temos esse tesouro em vasos de barro, para mostrar que este poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós” (2Co 4.7). No texto Paulo fala de um “tesouro” (evangelho e a companhia do poder divino) em “vasos de barro” – que designaa nossa humanidade, que como o vaso vem do pó, é frágil, vulnerável e sempre sujeita à quebra. Temos aqui então um contraste, uma dessas ironias divinas: o eterno poder, que não pode ser contido (do contrário, não seria eterno) escolhendo precisamente o que há de mais fraco e incerto para “se abrigar”. E a pergunta é: por quê? Paulo mesmo dá a resposta: é para mostrar que a excelência desse poder vem de Deus, e não da gente. Trocando em miúdos: temos um tesouro (poder), mas esse tesouro não vem de nós, nem é para a nossa glória e nem nos faz triunfantes no mundo. Pelo contrário. Paulo segue afi rmando nos versos seguintes que “em tudo” somos perplexos, atribulados, perseguidos, abatidos, embora não o bastante para sermos destruídos, desanimados, angustiados e totalmente desamparados. Curioso, não? Esse poder, que não é nosso, não nos faz mais poderosos que ninguém, tampouco imunes ao sofrimento de qualquer ser humano – agregando ainda um sofrer de outra espécie, por ser cristão. Mesmo tendo um tesouro, nunca deixamos de ser simples vasos! E o vaso não existe para proteger a integridade do tesouro, mas é o tesouro que é oferecido para proteger a integridade do vaso, a despeito de suas eventuais “quebras”. Não somos, portanto, defensores ou detentores do tesouro; ele não precisa de sentinelas ou guardiões “espirituais”, nem de Indiana Jones “gospel”; e não somos nós que resplandecemos, mas ele resplandece através de nós. O vaso não existe Fonte: Depositphotos 27 ainda para se transformado em cofre forte, mas existe para morrer: “Trazemos sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo” (4.10). Penso que o que Paulo está querendo aqui, dentre outras coisas, é nos convidando a rever nossa teologia da espiritualidade em sua ótica sobre o poder e reservar nela um lugar especial para a aceitação jubilosa da fraqueza. Somente quando assumirmos nossa fragilidade humana, o poder de Deus se aperfeiçoará em nós a fim de que participemos da transformação que o Espírito já vem realizando no mundo, muitas vezes sem a nossa “ajuda” pretensiosa. Esse poder, portanto, não torna ninguém mais especial que o outro, mas certamente com maiores condições para o serviço (serviço no sentido de atuação de servo), conforme o texto sobre a cura realizada pelos apóstolos relata: “Pois tinha mais de quarenta anos o homem em quem se operara aquele milagre de saúde” (At 4.22). Conclusão Voltamos à pergunta: e o que isso tem à ver com a Espiritualidade? Se espiritualidade é estar e viver no Espírito, como um modo de vida – como vimos na primeira aula – isso significa então que somos graciosamente convidados a colaborar com suas ações e obras maravilhosas. Quando pensamos em Espiritualidade cristã normalmente nos vem à mente aquela postura contemplativa de internalização da fé e vivência mística da experiência religiosa cristã. Esse é o modelo típico herdado do monasticismo medieval (como veremos adiante), que ofereceu a nós um modo de espiritualidade mais ascético, meditativo e baseado nas disciplinas espirituais. Embora seja extremamente interessante este modelo, ele não define por si só a espiritualidade cristã. Necessitamos por vezes da solidão (ou solitude), da quietude e da meditação para alimentar nossa vida espiritual – e sobre isto trataremos mais adiante neste curso. Todavia, conforme o livro de Atos, o sair em missão, proclamar, conceder saúde a doentes também é parte de nossa espiritualidade. Teologia e Prática da Espiritualidade28 Quando fazemos isto estamos, mais do que nunca, andando no Espírito, pois é ele quem nos guia e nos conduz pelas trilhas do mundo, encarando e vivenciando os desafi os próprios da vida mundana e procurando estar em conexão com os propósitos e orientações divinas. Como esclarece John Stott, “andar no” Espírito é diferente de ser “guiado pelo” Espírito. Ele nos guia, mas o seu guiar não nos resigna a uma condição de passividade, pelo contrário, nós precisamos, na força que ele supre, segui-lo como resposta ao seu guiar. Assim, “andar no Espírito” é andar deliberadamente ao longo do caminho ou de acordo com a linha que o Espírito Santo estabelece. O Espírito nos “guia”; mas nós temos de “andar no” Espírito ou de acordo com suas regras. (...) Isso será percebido em todo o nosso modo de viver, no lazer que buscamos, nos livros que lemos e nas amizades que fazemos. (...) Em tudo isso ocupamo-nos de coisas espirituais. Não basta submeter-nos passivamente ao controle do Espírito; também temos de andar ativamente no caminho do Espírito. Só assim aparecerá o fruto do Espírito (STOTT, 2003, p. 140). O efeito disso em nós (o fruto propriamente) é como o efeito do exercício físico feito em boa medida, que no momento em que é realizado parece estar consumindo nossas forças, mas com o tempo descobrimos que, com ele, ganhamos saúde e, assim, energia de verdade. Vejamos adiante exemplos de espiritualidade na história. Até lá! Referências bibliográficas KOYAMA, Kosuke. Fift y meditations. New York: Orbis Books, 1979. MBITI, John. African religions & philosophy. Oxford: Heinermann, 1990. STAM, Juan. Profecia bíblica e missão da igreja. São Leopoldo: Sinodal, 2003. STOTT, John. A mensagem de Gálatas. Somente um caminho. São Paulo: ABU, 2003. John Stott 29 Teologia e Prática da Espiritualidade Unidade 4: Espiritualidade na história Introdução Pensando ainda em bases da espiritualidade cristã, nesta unidade convido vocês para um passeio como que de avião sobre a história da Igreja, mas focando a espiritualidade cristã, como foi pensada e praticada no decorrer dos tempos por homens e mulheres em sua paixão pelo Divino. Certamente faltarão muitas informações importantes, mas precisarei fazer recortes devido ao espaço que temos. Retomarei, por fim, questões do período bíblico, fechando com a espiritualidade da Missão Integral. Objetivos 1. Conhecer caminhos da espiritualidade na história para um posterior aprofundamento das temáticas abordadas. 2. Desenvolver a sua espiritualidade no plano pessoal à luz e tendo como modelo suas práticas bíblica e histórica. Teologia e Prática da Espiritualidade30 Um olhar sobre a espiritualidade na história A história da espiritualidade cristã somente é possível como um recorte dentro da história mais abrangente da Igreja e da sua teologia. Não se trata de um assunto à parte, pois diz respeito à vivência da fé dessa Igreja no mundo. Como vimos na unidade anterior, os antecedentes da história da espiritualidade cristã estão na espiritualidade bíblica. Lembremos de alguns antecedentes rapidamente. No Antigo Testamento a espiritualidade é baseada na relação histórica concreta do povo com Deus. A história é o palco da ação divina. Ele promete salvação e a realiza no tempo e no espaço. Essas promessas realizadas viram memória e esperança, que se revitalizam nas novas situações do povo com seu Deus. Da mesma forma, o Senhor requer do seu povo fi delidade à aliança que estabeleceram no Sinai. Tanto nas narrativas do Pentateuco, Livros Históricos e Profetas, como nos ensinos dos Escritos, a vida com Deus se faz na coletividade (do povo de Israel), e é realizada mediante a fi delidade aos preceitos do Senhor. Essa fi delidade, que seria uma sinônima possível de espiritualidade, deveria ser visibilizada através de políticas corretas e justas, vida social e familiar exemplar, dedicação religiosa, transmissão do conhecimento de Deus, e assim por diante. A necessidade de ser fi el se devia ao fato de que Israel era o povo eleito de Deus e com ele havia fi rmado um pacto, um acordo: A fi nalidade da eleição é o serviço, e quando ele é recusado, a eleição perde seu sentido. Primordialmente, Israel deve servir os marginalizados em seu meio: o órfão, a viúva, o pobre e o estrangeiro. Sempre que o povo de Deusrenova sua aliança com Javé, reconhece que está renovando suas obrigações com a vítimas da sociedade (BOSCH, 2002, p. 36). É em vista das razões acima que a espiritualidade de Israel Povo de Israel - Wikimedia Commons 31 estava estreitamente relacionada à sua missão de transmissora do conhecimento de Deus pela via da vida no mundo e da comunicação e registro da revelação. Era preciso que as nações adorassem a Deus e, para isso, teriam que conhecê-lo. De certa forma, a espiritualidade das nações passava pelo serviço de Israel. No Novo Testamento, a espiritualidade passava pelo reconhecimento do Messias (Jesus Cristo) e o seguimento de sua vida e seus ensinos, conforme transmitidos pelos apóstolos e, em vista disso, na reunião como Ekklesia e o exercício da missão. Tanto quanto a espiritualidade é dinâmica e celebrativa no AT, no NT ela é proclamadora (kerigmática), de serviço (diaconia), comunitária (na koinonia), requer ensino (didaskalia) e é celebrativa (litúrgica). Ou seja, trata-se de uma espiritualidade integral – como mais bem visto no texto de apoio desta aula, escrito pelo professor Marcos Orison. No período antigo No período antigo aconteceu uma mudança no paradigma teológico, portanto, de compreensão da espiritualidade cristã. A fé histórica, dinâmica e narrativa do período bíblico cedeu lugar gradativamente para uma forma mais refl exiva e abstrata. A helenização da teologia cristã afetou o modo de se vivê-la no mundo. No fundo porque, enquanto fenômenos históricos, esta teologia já nasceu em diálogo com o helenismo. Outro fator que contribuiu para isso foi a institucionalização da Igreja, que trouxe consigo a formalização do culto e a instituição do clero como mediador da relação com Deus. A espiritualidade a partir desse período começou a ser, em grande parte, sinônima de religiosidade. Na medida em que o povo era distanciado da Palavra de Deus, mais religioso se tornava. Não há espiritualidade sem conhecimento de Deus por meio da sua Palavra. Qualquer relação com a fé cristã que se estabeleça sem esse Laocoonte, escultura Wikimedia Commons Teologia e Prática da Espiritualidade32 conhecimento é meramente seguimento religioso, porque a fé cristã requer consciência, como orientou Pedro em sua carta: “Santifi cai ao Senhor Deus em vossos corações; e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1Pe 3.15). O monasticismo dos chamados “Pais do deserto” (sobre os quais veremos mais detidamente na unidade 7) surgiu nessa época (séc. III) como movimento de espiritualidade, em reação aos rumos excessivamente institucionais da Igreja. Ele propôs uma vivência alternativa da fé, caracterizada pelo isolamento e reclusão, levando ao surgimento de uma espiritualidade de caráter apofático. Um exemplo de espiritualidade apofática nesse período é Gregório de Nissa (viveu em Cesaréia, Capadócia em 330-395 d.C.), como bem comprova um texto dele próprio: Quanto mais acreditamos que, o “Bem”, por sua própria natureza, está muito além do alcance do nosso conhecimento, maior é nosso sentimento de tristeza por estarmos separados desse “Bem”, que é tão grande quanto desejável, embora não possa ser completamente contido em nossa mente (NISSA apud MCGRATH, 2008, p. 246). Outro exemplo de espiritualidade nesse período é Agostinho de Hipona, um importante teólogo dessa época e grande infl uenciador do pensamento medieval, inclusive dos reformadores. Conforme observa Alister MacGrath (2008, p. 249), “Agostinho argumenta basicamente que fomos criados para a comunhão com Deus. Quando isso não se realiza, o resultado é um sentimento de insatisfação e inquietude”. Nesse caso, a felicidade humana está diretamente relacionada à dependência e relacionamento com o divino: Para Agostinho, as verdadeiras realização e satisfação humanas vêm somente quando Deus é adorado e conhecido. É interessante que Agostinho admita que outras coisas no mundo poderão oferecer pelo menos alguma aparência de felicidade; para ele, o fato de o mundo ser criado por Deus signifi ca que em toda a criação existem Agostinho de Hipona Fonte:Wikimedia Commons 33 indícios da bondade e majestade de Deus. A criação, então, contém algum “refl exo da verdadeira felicidade”, que poderá servir de indicação para a fonte e satisfação dessa alegria: Deus (Ibid., p. 249). No período Medieval As tendências do período antigo acentuaram-se no período medieval. O clero centralizou e exclusivizou a leitura da Bíblia. A Teologia se distinguiu da doutrina e se tornou nas grandes escolas uma forma de pensamento especulativo da fé. O monasticismo (a partir do séc. VI, com Bento) se tornou a grande força missionária e de espiritualidade da época. Aqueles que estavam fora dele, mas compunham a cristandade, se apegaram à religiosidade e, quando muito, ao misticismo medieval. O misticismo medieval, caracteristicamente apofático, gerou representantes interessantes e que são lembrados até hoje na história da espiritualidade, como por exemplo Bernardo de Claraval (monge de Claraval, França, que viveu entre 1090 a 1153). Conforme ele a Escritura Sagrada, pela qual possuia grande apreço, deveria ser muito mais orada do que estudada. Seus textos se caracterizavam pela ênfase no sentimento e na linguagem poética, como o que segue: Existe indubitavelmente uma espantosa analogia entre o azeite e o nome do Amado, pelo que a comparação apresentada pelo Espirito Santo não é arbitrária. A não ser que possais sugerir algo de melhor, afi rmarei que o nome de Jesus possui semelhança com o azeite na tripla utilidade deste último, nomeadamente, para iluminar, na alimentação e como lenitivo. Mantém a chama, alimenta o corpo, alivia a dor. É luz, alimento e medicina. Observai como as mesmas propriedades podem ser encontradas no nome do noivo divino. Quando pronunciado fornece luz; quando meditado, alimenta; quando invocado, serena e abranda (Bernardo de Claraval). Monastério medieval Fonte:Wikimedia Commons Bernardo de Claraval Fonte:Wikimedia Commons Teologia e Prática da Espiritualidade34 Outro nome bem conhecido, principalmente por ter sido o grande inspirador de Lutero, foi Meister Eckhart (1260-1327). Monge dominicano, fi lósofo e místico, que se serviu do neoplatonismo para explicar sua compreensão de Deus. Nessa época surgiram também várias mulheres que contribuíram com a mística cristã, como: Hildegarda de Bingen, Gertrudes a Grande, Matilde de Magdehurgo, Matilde de Hackeborn e a conhecida Teresa de Ávila. Na Reforma Protestante De todos os reformadores, Lutero parece ter sido o que mais foi infl uenciado pela mística medieval. Seus escritos transparecem essa forma de espiritualidade bastante dependente de uma relação mais íntima e interna com Deus, como se pode observar pelo trechoa seguir: A santidade cristã ou a santidade comum da cristandade é a seguinte: quando o Espírito Santo dá às pessoas fé em Cristo, santifi cando-as pela fé (Atos 15.9). Em outras palavras, quando o Espírito cria um novo coração, uma nova alma, um novo corpo, uma nova obra e uma nova natureza e escreve os mandamentos de Deus em corações (2 Coríntios 3.3), não em tábuas de pedra (LUTERO, 2001, p. 11). No entanto, eles propuseram um novo paradigma de espiritualidade cristã ao afi rmarem o sacerdócio universal de todos os crentes, ou seja, que todos temos livre acesso a Deus. Isso implica que não dependemos de mediadores humanos para nos relacionarmos com Deus. Podemos fazer-lhe orações, oferecer- lhe nossas vidas em serviço, ler a Palavra e buscar entendê-la, pois, conforme ele, o Espírito Santo ilumina a todos igualmente para o entendimento das Escrituras. Martinho Lutero Fonte:Wikimedia Commons Tereza de Ávila Fonte:Wikimedia Commons 35 Lutero esclarece ainda que o conhecimento de Jesus Cristo e sua graça que recebemosda Palavra nos torna pessoas livres. Como seres livres em Deus estamos prontos para o serviço ao próximo e as boas obras, como fruto de nossa própria liberdade. Nisso está a verdadeira espiritualidade cristã, na liberdade diante de Deus. Calvino também afi rmava que o o homem somente se compreende de fato em Deus. Menos místico, mais fi lósofo e sistemático em seus pensamentos teológicos, ele relacionava a espiritualidade à disciplina da vida cristã, sua ética e reconhecimento da verdade. O pietismo, movimento posterior à Reforma e que aconteceu dentro do luteranismo, apresentou uma nova forma de espiritualidade. O ortodoxismo que passou a caracterizar o protestantismo pós-reforma foi críticado pelos pietistas, que fi zeram a chamada para a experiência da fé cristã, não somente sua confi ssão. Retomaram a importância da oração e da leitura piedosa das Escrituras e fi caram conhecidos como um movimento de espiritualidade. Já no moravianismo, movimento interno do pietismo, aliaram essa prática da espiritualidade à vida missionária para outros povos. A oração serviu não somente para alimentar a vida espiritual, mas para a vocação e a sustentação da obra missionária. Na Modernidade A Espiritualidade na modernidade possui várias representações. Não há mais cristandade (uma sociedade cristã, aliada com o Estado) no sentido medieval, pois o próprio cristianismo se apresenta na forma de protestantismo e seus vários movimentos, catolicismo ocidental e catolicismo oriental. Cada segmento cristão faz apresentações de suas concepções de espiritualidade subsidiadas por teologias diversas. No protestantismo tanto encontramos aquelas formas mais João Calvino Fonte:Wikimedia Commons Teologia e Prática da Espiritualidade36 racionalistas de vivência da fé, quanto aquelas piedosas e devotas. Destaca-se nesse período o movimento evangelical. Surgiu na Inglaterra no séc. XVIII, no interior da Igreja Anglicana e afi rmava a necessidade de arrependimento, conversão e mudança de vida, com isso, a necessidade da evangelização e da experiência da fé. Este movimento foi infl uenciador do metodismo e gerador de um esforço missionário no séc. XIX para várias partes do mundo. Ele surgiu no contexto dos chamados grandes avivamentos (na Inglaterra, na América do Norte e com vários focos na Europa). Estes avivamentos foram como que movimentos radicais de espiritualidade, voltando-se para uma experiência de retorno ao primeiro amor, e redespertar para uma vida cristã transformadora. O Pentecostalismo No início do séc. XX surgiu nos Estados Unidos um novo movimento de espiritualidade que chamaram de Pentecostalismo, sob a liderança de William Seymour. Afi rmava a atualidade do batismo no Espírito Santo e dos dons espirituais, até então compreendidos como específi cos da Igreja do primeiro século. O pentecostalismo se espalhou por vários lugares no mundo, mas seu impacto maior foi na Ásia, África e América Latina. Embora tenha dado origem a várias Igrejas até os dias de hoje, sua importância também está na contribuição para a revitalização da vida cristã e do culto nas igrejas históricas. Originalmente, para o pentecostalismo a vida com Deus passa por uma via pneumatológica, ou seja, do poder do Espírito Santo, bem como a vida e missão da Igreja no mundo. Wiliam Seymour Fonte:Wikimedia Commons 37 Um pouco de atualidade Na atualidade temos, além do pentecostalismo que continua a comprovar sua vigência e força de influência, os movimentos teológicos do mundo dos dois terços que apresentam também suas formas de espiritualidade. Elas são sempre muito relacionadas à uma nova práxis cristã no mundo (práxis: ação tranformadora), solidária e preocupada com a realidade concreta. Dentre elas destacam-se a teologia da libertação (ver “espiritualidade da libertação”, na unidade 10), e a teologia da missão integral, que propõe uma missão e forma de espiritualidade mais abrangente, holística e preocupada com o todo, como bem aborda o texto de apoio desta aula. Para tanto, apresenta o contexto percebido integralmente como lugar de onde se busca conhecer Deus e onde realizamos nossa missão. Da mesma forma, a Escritura deve ser lida como Palavra de Deus em um contexto, como também é contexto de vida, deve ser visto de modo integral. Conclusão Nesta unidade vimos que a espiritualidade, embora tipicamente cristã e, porranto, fundamentada em princípios que são sustentados em comum, foi adquirindo inúmeras facetas e variações. Um passeio pelos principais períodos da história deixou-nos uma, ainda que superficial e breve, impressão de que o Senhor é único, Cristo, mas as expressões, linguagens e experiências que encampam uma espiritualidade cristã são diversas e, muitas vezes, conflitantes. O mais importante, sobretudo se queremos pensar em uma espiritualidade humana e relevante para nosso tempo, é que pensemos que, desde os mais remotos tempos e situações, Deus nos convida a fincar raízes, mantendo os pés no chão desta história, mas com os olhos fitos em Jesus Cristo e na esperança nele depositada. Nas próximas unidades, prosseguiremos nosso estudo olhando um pouquinho para a teologia da oração, como importante vertente dos estudos em espiritualidade. Até lá! Teologia e Prática da Espiritualidade38 Glossário 1. - A espiritualidade apofática parte da concepção teológica de que a mente humana não consegue compreender plenamente os mistérios de Deus e que isso condiciona sua espiritualidade. Devido a isso ela é mais contemplativa e com ênfase no esvaziamento e na negação dos desejos. A espiritualidade catafática, por sua vez, baseia-se na afirmação dos pensamentos e desejos na devoção cristã. 2. - Neoplatonismo usulamente se refere a filosofia de Plotino (205-270) e aos individuos que eventualmente a ele se juntaram. Como última grande filosofia do mundo antigo, de acordo com Paul Tillich, “ era uma filosofia negativa, uma filosofia de escape deste mundo. Queria a elevação da alma acima do mundo material às alturas mais sublimes” (TILLICH, 1988, p. 109). Referências bibliográficas BOSCH, David. Missão Transformadora. Mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002. McGRATH, Alister. Uma introdução à espiritualidade cristã. São Paulo: Vida, 2008. TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Leopoldo: ASTE, 1988. LUTERO, martinho. Como reconher a igreja. São Leopoldo: Sinodal, 2001. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 39 Teologia e Prática da Espiritualidade Unidade 5: Espiritualidade e oração (I) Introdução A oração sem dúvida é um dos assuntos mais tratados na teologia e prática da espiritualidade. Aposto que não se ora tanto quanto se fala de oração ou sobre a necessidade que o crente tem de orar. Poucas vezes, contudo, se trata de modo justo, honesto e bíblico da oração. Sem contar que nossas abordagens bíblicas ao tema, muitas vezes, seguem uma linha funcional e superficial, com citações de versículos que supostamente falam sobre “o poder da oração”, os resultados da vida de quem ora sempre, etc. Assim, um aprofundamento bíblico e teológico sobre o tema é necessário. Nas duas próximas unidades proponho uma tentativa de traçar, por vias mais honestas e humanas, bíblica e teologicamente, o tema da oração relacionando-o ao tema da integridade, utilizando como exemplo a vida de Jeremias, e fiando-se no pensamento de autores contemporâneos da espiritualidade que têm seguido semelhante caminho. Objetivos 1. Questionar ideias e percepções comuns sobre a oração sustentadas na igreja. 2. Perceber as virtudes e ganhos para a espiritualidade de se relacionaro tema da oração ao da integridade. Teologia e Prática da Espiritualidade40 Inquietações com o tema Poucas vezes a oração esteve entre os meus temas prediletos. Talvez porque as exigências que quase sempre ouvia em relação a ela soassem pesadas e grandes demais para os raros momentos de oração que dedicava. Na adolescência, me diziam que a oração é um elemento fundamental na vida de qualquer cristão verdadeiramente convertido, como uma espécie de “termômetro da espiritualidade”: quanto mais intensamente se ora, mais próximo de Deus se está, logo, mais “espiritual” se é. Essa lógica sempre me soou muito própria do ponto de vista da vida cristã formal – que eu tinha como referencia – mas, ao mesmo tempo, bem imprópria levando em consideração meu pequeno grau de adequação a esses moldes. Fora isso, ainda tinha o desânimo que batia ao ver (e ler) certas coisas sobre oração que a tratavam como um negócio. Era quase como se estivessem dizendo que oração é fazer business com Deus. Só não diziam que é um tipo de business do qual Deus mesmo, geralmente, está ausente. Afi nal, porque precisamos de Deus, não é mesmo? A oração já faz tudo: ela liberta, expulsa demônios, gera emprego, cura doenças, traz o marido ou a esposa de volta, promove a prosperidade, tem o poder de converter o coração de pessoas e, mais do que isso, de “mover o coração de Deus”. Não me esqueço da primeira frase que li no livro “A oração de Jabez”, de Bruce Wilkinson (2001, p. 2), em que o autor dizia: “Caro leitor, quero ensinar-lhe como fazer uma oração à qual Deus sempre atende”. Foi o sufi ciente para eu não querer ler mais. E nem precisava, precisava? Ainda hoje me impressiono positivamente ao ver pessoas, como meu Prof. Steve Kawamura 41 colega, professor Steve Kawamura, que são intercessoras por natureza. Mas tenho tentado deixar de lado a ilusão de orar tanto quanto elas ou de ser igual a elas, pois isso é algo que nunca serei. Tento admirá- las como admiro quem serve com naturalidade e prazer, quem canta maravilhosamente, quem apara cuida de um jardim como ninguém, quem cozinha coisas deliciosas, quem joga futebol magicamente, ou quem ensina e discursa conseguindo prender a atenção das pessoas do começo ao fi m. São dons especiais. Mas orar não tem a ver só com o dom de intercessão. Aprendi há algum tempo que, orar, mais do que interceder ou falar com Deus, é viver. Paulo diz: “Orai sem cessar” ou “orem continuamente” (1Ts 5.17). Isso signifi ca que, mesmo quando o falar cessa, a oração não termina; Deus continua falando, e nós devemos continuar ouvindo a sua voz, que, apesar de inaudível, não cala. Deus tem seus meios, os mais diversos, para falar conosco e apontar o caminho certo. E tenho aprendido que, não obstante toda formalidade que ainda impera nesse quesito, há também muitos jeitos de orar, de andar e me relacionar com Ele. Além de recomendar a oração contínua, o apóstolo ainda recomenda que se dê graças a Deus em todas as circunstâncias da vida. T-O-D-A-S! Más ou boas, tristes ou alegres, na carestia ou na prosperidade; num quarto fechado, na igreja, em silêncio, reclusão ou em meio ao barulho do cotidiano, nas ruas da cidade; por meio de cerimônia, ou dispensando qualquer cerimônia; coletiva ou individualmente. Assim, a oração é um ato sublime e incessante de uma vida que ama e teme ao Senhor. Ela pode não mudar o que Deus é, nem o quanto ele nos ama, mas NOS transforma; o nosso espírito se converte ao Espírito de Deus. Perseverar e viver continuamente em oração não implica em apressar Deus, nem ensinar como Ele deve agir. A demora de Deus, para nós, implica que não conhecemos o kairos (tempo, Fonte: Depositphotos Teologia e Prática da Espiritualidade42 oportunidade, de Deus) e sua maneira de dar andamento e resolver as coisas. Orar, fi nalmente, signifi cará abrir nossa vida diante de Deus e ser receptivo ao que tem feito e fará... Jeremias Tu me conheces, SENHOR; lembra-te de mim, vem em meu auxílio e vinga-me dos meus perseguidores. Que, pela tua paciência para com eles, eu não seja eliminado. Sabes que sofro afronta por tua causa. Quando as tuas palavras foram encontradas, eu as comi; elas são a minha alegria e o meu júbilo, pois pertenço a ti, SENHOR Deus dos Exércitos. Jamais me sentei na companhia dos que se divertem, nunca festejei com eles. Sentei- me sozinho, porque a tua mão estava sobre mim e me encheste de indignação. Por que é permanente a minha dor, e a minha ferida é grave e incurável? Por que te tornaste para mim como um riacho seco, cujos mananciais falham? (Jr 15.15-18). O estilo de orar de Jeremias certamente não seria indicado a nenhum Prêmio Nobel de Oração, se esse negócio existisse (às vezes, mesmo que às escuras, ele parece existir); nem publicado num livro (Best seller) como sendo a oração que devemos repetir, porque Deus sempre atende. Por isso, me sinto razoavelmente confortável para falar de oração agora. Não porque Jeremias seja modelo, mas porque ele é um anti-modelo; até porque não creio que oração tenha a ver com modelos, nem com pacotes fechados. Se não havia dissonância entre a vida e o livro de Jeremias, como o estudo de sua história me faz acreditar, o mesmo parece ser verdade sobre sua vida como profeta e sua vida de oração. As mesmas dores, angústias, ira, medo, lágrimas, alegrias, prazer, tristezas, raiva e depressão geradas por seu ministério profético eram matéria de suas conversas, nem sempre cordiais ou piedosas, com Deus. Em outras Profeta Jeremias (escultura de Aleijadinho) Fonte:Wikimedia Commons 43 palavras, ao orar, Jeremias mostrava que era humano e, precisamente por isso, que precisava de Deus. Vejamos alguns pontos interessantes na oração acima exposta. Primeiro, ele se mostra carente, rejeitado (pelo pecado e indiferença do povo), e impaciente, clamando pela intervenção divina, que parecia retardar em função de sua paciência e longanimidade (v. 15). É como se ele estivesse dizendo: “Você me colocou nisso, e agora, por tua causa, eu estou sendo prejudicado. Vê se me livra dessa, Deus!”. Jeremias se mostra aqui igualzinho a qualquer um de nós – quando “nosso tempo compulsivo colide frontalmente com o tempo da providência divina” (PETERSON, 2003, p. 122) – tentando ensinar Deus a como ser soberano, e a como ser Deus! Segundo, ele afirma ser solitário, em seu trabalho de profeta, não tendo ocasião para se sentar com uma galera em festa, dando risadas e se divertindo (v. 17). A tarefa de pensar, refletir, pregar e desvendar significados é uma tarefa muitas vezes solitária, sobretudo no caso de Jeremias. E, por mais necessário que seja, consciente e irredutível que se esteja, a solidão bate e, com ela, o desejo de convívio. E não havia porque esconder nada disso de Deus, já que tudo era “por causa Dele”. E o profeta diz se sentir “oprimido” pela mão de Deus. Por mais que fazer parte das causas Dele seja um privilégio, nem sempre é prazeroso (e nem tem que ser, tem?). Terceiro, ele se revela sofredor (v. 18a). Sofremos muitas vezes por determinadas posições que ocupamos. Por mais necessárias e reconhecidamente importantes, elas (e os tipos de reação que temos em relação a elas) nos conduzem a lugares de sofrimento. Lembro- me que, desde criança, sempre fui muito conseqüente. E minha conseqüência me levava a não revidar com força (e as vezes nem revidar), as provocações de minha irmã caçula. E, como eu não queria revidar, para não ser injusto nem fazer besteira, esperava justiça do meu pai. E nem sempre essa justiça vinha do modo como eu esperava. Daí, vinha a revolta; aí a gente pensa e fala besteira, mesmo sem fazer. Esse é o lugar de Jeremias, de revolta e dor, por razões muito maiores. E ele quer partilhar com Deus essa dor. Através da oração ele pode fazer isso. Teologia e Prática da Espiritualidade44 Quarto, além de sofredor, ele também se mostra irado com Deus. A sensação é de queDeus o abandonou; no começo, parecia promissor andar ao seu lado. Depois, veio a decepção de ver que Deus nem sempre age do modo como esperamos, e que ser amigo de Deus implica em ter de conviver com inimizades outras. Então, Jeremias destila toda sua honestidade, quando diz (na tradução A Mensagem): “Você não é nada mais do que uma miragem, Deus; um adorável oásis à distância, e então nada!” (v. 18b). Sinceramente, não sei como na nova versão do livro “Corra com os cavalos”, de Eugene Peterson (2008), os editores tiveram a proeza de dizer, em um dos capítulos, que Jeremias é “o mais animado dos profetas”. Não entendo isso, pelo menos não nesse sentido quase neurolinguístico para a palavra “ânimo”. É o mesmo que querer “achar pelo em ovo” – e olha que tem gente por aí que “acha que achou”, sobretudo diante da necessidade de dar aos livros um maior “apelo comercial”. Mas, não nos enganemos com esse negócio de honestidade, do da qual sou admirador, porém, consciente de que ela nem sempre será recebida e acolhida com uma tonalidade positiva. No caso de Jeremias, foi uma amostra de sua intimidade, sem desfaçatez ou pieguismo, com Deus, o que é bom. Na oração, não precisamos de máscaras ou disfarces; queiramos ou não, estamos nus diante de Deus. Por outro lado, revela a perda do foco e das prioridades. A excessiva preocupação com o que os outros pensam ou dizem sobre nós, pode revelar uma desmedida preocupação conosco, o que pode ser um sinal de que perdemos Deus de vista, e esquecemos de nossa vocação, o que Ele nos chamou a ser e a fazer. Mas, como lembra Peterson, no momento em que Jeremias coloca esses sentimentos em oração, algo começa acontecer. Deus, além Livro de Eugene Peterson (2008) 45 de ouvir atentamente, o convida a rever as palavras ditas, restabelecer prioridades e a renovar suas perspectivas, não como alguém ofendido por sua postura, mas desejoso de vê-lo avançar e crescer. Deixar falar os sentimentos às vezes significa, ainda que do lugar legítimo da intimidade, dizer coisas que prejudicam o relacionamento. Então, corremos o risco de dizer coisas “vis”. Mas Deus, como fez com Jeremias, abre as portas ao arrependimento sincero, e nos chama a separar o precioso do vil (v. 19), e recolocar o vagão de nossas vidas nos trilhos de sua vontade. Conclusão Vimos nesta unidade que uma das vantagens de se relacionar o tema da oração à vida é que, assim, ela deixa de ser uma prática espiritual “distinta”, nos humaniza e passa a estar relacionada com um jeito de ser no mundo, em nossa relação com os dilemas do dia a dia e com o fato de que Deus se preocupa conosco e não está “lá no céu” simplesmente, dispensando ou não suas bençãos de acordo com a eficácia da oração de seus filhos. Não existe oração eficaz, senão a oração do Espírito em nós. É ela que faz com que nossos gemidos ou nosso silêncio chegue até Deus. Nos concentraremos especialmente neste aspecto da oração na próxima unidade. Até breve! Referências bibliográficas PETERSON, Eugene. Corra com os cavalos. Viçosa, MG: Ultimato; Niterói, RJ: Textus, 2003. _______. Ânimo: o antídoto bíblico contra o tédio e a mediocridade. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. WILKINSON, Bruce. A oração de Jabez. São Paulo: Mundo Cristão, 2001. Teologia e Prática da Espiritualidade46 Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 47 Teologia e Prática da Espiritualidade Unidade 6: Espiritualidade e oração (II) Introdução Dando continuidade à unidade anterior, em que tratamos da oração na perspectiva de uma vida humana íntegra, quero convidá-los a prosseguir agora pensando em formas e exemplos de oração. A forma usual de oração é aquela que fazemos em voz alta, em público ou no secreto do quarto (como Jesus recomendou que fosse), e tentamos exprimir em palavras aquilo que Deus já vê bem fundo e com transparência em nós, antes mesmo que o discurso seja formulado. Nesta unidade, porém, gostaria que pensássemos que a oração pode existir mesmo que não expressa, habitando viva no silêncio da alma e do coração. Em seguida, trarei alguns exemplos de oração que a gente geralmente não encontra na igreja, orações honestas que expressam dúvidas, incertezas, mas também confiança em Deus e no seu poder que, por fim, são maiores que a própria oração e dão sentido a ela, mesmo quando não enxergamos de cara. Objetivos 1. Reconhecer a possibilidade da vivência da oração, mesmo quando não há palavras, seguindo a ideia de que orar é viver. 2. Elaborar, a partir dos referenciais de pensamento e vida aqui pontuados, sua própria teologia da oração. Teologia e Prática da Espiritualidade48 Oração e silêncio Uma das percepções centrais no pensamento de Henri Nouwen é a da oração como “modo de vida”. Ou seja, orar seria para ele outro sinônimo para viver. Viver a vida deixando-se ser encharcado pela presença de Deus e por tudo o que ela envolve. Nesta percepção, orar é um ato do ser que se traduz em palavras, mas não somente em palavras. Pois palavras são, segundo Nouwen, “apenas um modo de expressar a realidade da oração” – talvez o mais recorrido na tradição cristã para a qual a palavra é tão importante (para muitos, imprescindível). Esta visão vai ao encontro de tudo o que temos visto até aqui, e de uma intuição pessoal, fruto não só de experiências com a oração, mas da percepção de sua (in)efi cácia no mundo real no tocante à vida humana e seus mistérios, onde as palavras nem sempre encontram “o sentido” ou “fazem sentido”. É a intuição de que a oração genuína acontece (antes) no coração e pouco pode ser captada pelo discurso. Aliás, normalmente somos traídos pelo discurso, que tende a mascarar (no cativeiro da linguagem) o que se passa no coração e que talvez os olhos e a expressão refl itam um pouco melhor, embora sempre parcialmente. Dessa forma, sinto-me impelido a, como Nouwen, “redescobrir os momentos de oração nos rostos do homem e nas formas do mundo em que ele vive”, de um modo que somente um contemplativo crítico e sensível da realidade pode fazer, despido das urgências de seu ambiente e da tendência comum em trivializar a oração, por um lado, tornando-a um ato mecânico-religioso, e de fetichizá-la, por outro, como uma “varinha de condão”. Quando paro para contemplar, por exemplo, algumas histórias de vida sofridas de estudantes (que trabalham de dia e estudam a noite, ou que estão em busca de trabalho) e lutam diariamente
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