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Mística de olhos abertos - Johann Baptist Metz

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2
Índice
Introdução
Primeira Parte - Perspectivas teológicas
Do que se trata
A mística da justiça de Deus - O perfil messiânico da espiritualidade cristã
Tempo e temporalidade - Sobre um problema central da teologia cristã
Mística Política? - O conceito do político na nova teologia política
“Teu Deus também é meu Deus” - A “sobrevivência” de Deus na morte do
homem
Preocupações com o perfil do cristianismo? - Um comentário sobre a liberdade
de religião
Segunda Parte - A mística do face a face – tentativas de aproximação
Do que se trata
“Velar, despertar, abrir os olhos...”
Relances no magnetismo do mundo das imagens
Aguçando o olhar: paixão e paixões
Tantas faces, tantas perguntas
Mística política do amor ao inimigo?
Com o olhar do inimigo
Convite a todos – face a face
A vida na ordem – “com os olhos abertos”
Diante das faces apagadas
“Eu busco sua face” - Uma conjetura sobre a Visio Dei Beatifica
“Ó Salvador, escancara os céus...”
Um estímulo à oração
A coragem de interromper - Teses pentecostais
A história messiânica como história do sofrimento
A Páscoa como experiência - Breves comentários aos textos do Novo
Testamento
O retorno da questão da teodiceia à linguagem da oração dos cristãos
A religião traz felicidade?
Mensagem de alegria?
Etsi Deus daretur – A oração de um cético
A cristologia da sucessão e sua mística
Uma cristologia de Sábado de Aleluia
A face de um teólogo: Karl Rahner
Terceira Parte - Uma Igreja sem interesse em aprender?
O começo de um começo? - Um olhar sobre o Concílio Vaticano II
A rebelião da esperança - Lembrando o documento de um sínodo
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Apêndice
NOSSA ESPERANÇA - Uma decisão do conjunto dos sínodos dos bispados da
República Federal da Alemanha
3
O
INTRODUÇÃO
objetivo deste livro é tratar, sob uma perspectiva teológica, a questão
atualmente tão difundida quanto indefinida da “espiritualidade” e das
“espiritualidades”. Com minha sugestão de uma “mística de olhos abertos”, pretendo
não só dar voz a um perfil imprescindível da espiritualidade cristã, mas também
penetrar nas discussões sobre as crises que cercam Deus, a Igreja, as religiões e os
mundos seculares.
Há décadas utilizo a metáfora da “mística de olhos abertos” para explicar o
fundamento espiritual do meu trabalho teológico, sem poder recorrer à pesquisa
específica sobre a mística e a espiritualidade. A meu ver, é muito mais importante e
interessante para toda teologia fundamental o questionamento do dualismo cada vez
mais aguçado entre a história da fé e a história de vida, entre o mundo da fé e o
mundo da razão, entre profissão de fé e experiência – e, de certo modo, interrompê-lo
teologicamente. Numa tentativa como essa, a teologia não é totalmente isenta de
biografia, o que a distingue da ciência da religião e também da filosofia da religião,
com seu agnosticismo metodológico. Porém de modo algum essa distinção permite à
teologia utilizar sua parte biográfica para a propagação, a seu bel-prazer, de uma
história privada de vida. Para isso existe um logos da teologia sensível ao tempo e ao
sofrimento! A ele dedico toda a primeira parte do livro.
Nesta primeira parte, trataremos inicialmente das perspectivas teológicas, das quais
se ramifica o adendo sobre uma “mística de olhos abertos”. Para aqueles leitores
versados em teologia e interessados em geral, quero recomendar enfaticamente que
embarquem nessa viagem, e prestem atenção se as três primeiras partes se completam
argumentativamente. Naturalmente, quem se sentir irritado ou desanimado com os
títulos poderá saltar esta primeira parte – além da parte sobre a “Mística da justiça de
Deus” – e dar prioridade ao breve texto “Seu Deus também é meu Deus...” e
possivelmente ao “Comentário sobre a liberdade de religião”, para só depois, talvez,
concentrar-se na segunda parte.
É que ela trata de uma espécie de protocolo de um caminho: minhas “tentativas de
aproximação” a essa mística, com origens bastante diversificadas e literariamente
nem um pouco uniformes. Por décadas trilhei repetidamente esse caminho da
aproximação – talvez por causa da minha intensa “fome de experiência”, como
teólogo. A primeira parte foi reformulada completamente, porém a segunda foi
documentada com textos que já haviam sido publicados numa primeira formulação, e
naturalmente também com adendos até então não publicados; mesmo assim, fiz uma
revisão minuciosa desses textos publicados em primeira mão e, com isso, também
modifiquei ou completei-os, visando, sobretudo, a sua coerência.
4
Na terceira parte, pergunto se um dia, na Igreja, já não estivemos muito mais
adiantados, mais do que nos mostra a situação eclesiástica contemporânea. Por isso
busco vislumbrar um possível panorama através de um olhar teológico retrospectivo.
Naturalmente ele me confrontou constantemente com a seguinte questão: por que a
Igreja pós-conciliar sempre se apresentou quase exclusivamente como uma Igreja que
educa, numa hierarquia mais elevada, e não como uma Igreja que aprende? Quo
Vadis, Ecclesia?
Meu amigo e colega Johann Reikerstorfer pressionou-me para que eu concluísse
este livro o mais depressa possível. Ele compartilha a minha opinião de que a
espiritualidade cristã não está aqui para se esquivar beatificamente da atual discussão
sobre as crises, ou para neutralizar com serenidade as decepções com as reformas
eclesiásticas não realizadas. Nesse meio tempo, muitos sentiram profundamente essas
decepções, que frequentemente se transformaram em indiferença pela vida
eclesiástica. Será que, neste caso, uma espiritualidade teologicamente permeada não
poderia ser útil para finalmente “despertar” a espiritualidade e promover uma ação
eclesiástica na qual a Igreja – que necessariamente passaria a aprender – não fosse
obrigada só a recuperar o que perdeu, historicamente, nem apenas a repetir o que já
existe? Como eu acredito nessa possibilidade, e como considero o perfil católico no
cristianismo eclesiástico insubstituível – num sentido marcantemente ecumênico,
quando se trata de finalmente nos colocarmos de “olhos abertos” diante dos desafios
de uma crise da nossa época (ou de Deus) – escrevi estes textos.
Novamente, sinto-me na obrigação de enviar meus agradecimentos mais efusivos a
Johann Reikerstorfer. Sem sua disposição de reunir meus pedaços de textos já
existentes e finalmente de ler todo o manuscrito com uma atenção dedicada, o livro
não poderia ter sido concluído nesse prazo tão curto. Por causa disso, e tendo em
vista outros trabalhos conjuntos, eu pedi a ele que editasse o livro. Agradeço,
sobretudo, à senhora Michaela Feiertag pela perfeita finalização do manuscrito, e,
finalmente, devo meus agradecimentos ao senhor Dr. Suchla, da Editora Herder, pela
colaboração, por enquanto garantida, e o seu interesse especial pela temática deste
livro.
Münster, março de 2011
Johann Baptist Metz
5
Primeira Parte
PERSPECTIVAS TEOLÓGICAS
6
N
DO QUE SE TRATA
esse meio tempo, “espiritualidade” tornou-se uma palavra da moda, com muitos
sentidos. Num deles, ela é a expressão, que se tornou semanticamente
indefinida, de um movimento de busca pela “nova religiosidade”, no outro, é o
interesse por uma espécie de “função substituta” para um tempo concebido como
estritamente pós-religioso. Como sempre, numa situação como essa, parece-nos
importante perguntar pela essência da espiritualidade cristã.
Esta primeira parte dedica-se à questão fundamental da espiritualidade
teologicamente permeada, que não se afasta, de jeito nenhum, das discussões sobre as
crises atuais, mas que justamente tenta preservar-se nelas. Trata-se do perfil do
cristianismo e da Igreja, e do perigo de uma atemporalidade teológica e uma
privatização não dialética dos seus fundamentos bíblicos; trata-se da preservação da
mística de Deus no horizonte humano, no olhar sobre os processos do Iluminismo
político e a secularização em nosso mundo, e no olhar sobre o pluralismo dos mundos
da religião. Não se trata de uma espiritualidade mitigadora, mas uma espiritualidade
que leva ao despertar, e principalmenteà abertura.1
1 Cf. nesse contexto, a terceira parte: “Uma Igreja sem interesse de aprender?”.
7
D
A MÍSTICA DA JUSTIÇA DE DEUS
O perfil messiânico da espiritualidade cristã1
eus caritas est, “Deus é amor” – enfatizava a primeira grande encíclica de
Bento XVI. Porém existe outro nome bíblico de Deus, incluído na mensagem
de Deus no Novo Testamento, e que por isso não deve desaparecer da memória dos
cristãos: Deus et iustitia est, “Deus é (também) justiça”. “Este é o nome com que o
chamarão... Iaweh, nossa justiça” (Jr 23,6). Para a fé cristã, a justiça não é apenas um
tema político nem ético-social, mas estritamente teológico: uma mensagem da fé em
Deus e seu Cristo. A justiça como um dos nomes de Deus pode parecer secundária
para o discurso sobre um Deus platônico, de ideias, mas é imprescindível para o Deus
da história, biblicamente testemunhado nos dois testamentos da fé cristã. Esse Deus
histórico expõe a afirmação de fé “Deus é amor” à visibilidade das nossas
experiências históricas e à responsabilidade concreta da nossa fé, que surge delas. Por
isso o discurso cristão sobre Deus precisa ser um discurso sensível ao tempo, que não
só explica e ensina, mas também experimenta e aprende. É nisso que se situa uma das
origens da grande necessidade de fé de muitos cristãos de hoje, uma necessidade
provavelmente mais profunda do que a linguagem da fé geralmente praticada possa
considerar e perceber.
Na raiz da crença bíblica de Deus sempre paira uma questão não resolvida sobre a
justiça: a questão da justiça para as vítimas inocentes sofredoras da nossa história.
Essa questão se refere, na linguagem erudita, sobretudo à versão teológica da assim
chamada teodiceia, portanto, à questão de Deus diante da história do sofrimento no
mundo, no “seu” mundo. Como podemos virar as costas para todo esse sofrimento, e
nos preocuparmos apenas com nossa salvação e nossa redenção? Aquele que fala de
Deus no sentido de Jesus assume o questionamento das certezas religiosas pré-
estabelecidas, diante da infelicidade gritante dos outros. Nenhum ser humano tem o
direito de justificar essa infelicidade dos outros. A meu ver, nada poderia ter deixado
mais evidente a relação indissolúvel entre a questão de Deus e da justiça do que o fato
de a Igreja, no seu mais recente concílio, ter considerado a si mesma não só como
uma Igreja mundial dogmática, mas também empírica, na qual as histórias sociais e
culturais do sofrimento no mundo foram introduzidas na visão de mundo de uma
Igreja até então eurocentricamente nivelada e tranquila. São processos que não
parecem transcorrer tranquilamente em meio às turbulências atuais da globalização,
mas que ameaçam se aguçar cada vez mais sob a pressão anônima dessa globalização
dos mercados.
A pátria literária da relação entre a questão de Deus e a da justiça pode ser
encontrada nos textos bíblicos e sua teodiceia, portanto, ali onde a história da paixão
do ser humano é introduzida desde o início na mensagem de salvação da humanidade,
produzida pela justiça. A linguagem dessas tradições procura dar uma memória ao
grito dos seres humanos, e uma temporalidade, i.e., seu respectivo prazo, ao tempo do
8
mundo. A introdução tardia da ideia de temporalidade nas religiões e culturas do
mundo por meio do apocalipse bíblico – sustentada pelo discurso dos profetas sobre
as crises e pela linguagem de sofrimento dos salmos – pode ser reconhecida, por
enquanto, como válida, na totalidade da história religiosa e cultural.2 Em sua
essência, esses textos apocalípticos da Bíblia não são, de modo algum, fantasias
levianas ou insufladas sobre o fim do mundo. São documentos literários de uma
percepção de mundo em que se “revelam” as faces das vítimas, são documentos de
uma visão de mundo que “vela” e “desvela” o que realmente “vem ao caso” – a
tendência presente em todas as visões de mundo de se ocultar a gritante infelicidade
no mundo, mítica ou metafisicamente, e toda aquela amnésia cultural que até hoje
deixa invisíveis todos os sofredores do passado, e também torna seus gritos
inaudíveis.
O apocalipse bíblico “desvela” a trilha dos sofredores na história da humanidade.
Ele pode nos estimular a formular aquela única grande narrativa, aquela única
“grande história” que ainda permanece – depois da crítica da religião e da ideologia
do Iluminismo, depois do marxismo, de Nietzsche e da fragmentação pós-moderna da
história – ou seja, a legibilidade do mundo como história da paixão dos seres
humanos. Ele formula – por assim dizer, por uma via negativa, ou seja, numa
dialética negativa da memoria passionis – as origens daquele universalismo histórico
que obrigatoriamente faz parte do monoteísmo do discurso cristão de Deus. Portanto,
esse discurso só pode ser universal – e não só um tema da Igreja, mas também da
humanidade – se for, na sua essência, um discurso sensível e de busca de justiça para
o sofrimento alheio. Em seu princípio transcultural, esse universalismo seria
antitotalitário e aberto ao pluralismo.
“Bem aventurados os que sofrem” diz Jesus no Sermão da Montanha. “Bem
aventurados os que esquecem”, anuncia Nietzsche, como profeta do pós-modernismo.
Mas o que aconteceria se, um dia, as pessoas só pudessem defender-se da infelicidade
e dos sofredores do mundo com as armas do esquecimento? Se um dia só pudessem
construir a própria felicidade esquecendo-se impiedosamente das vítimas, portanto,
uma amnésia cultural, na qual um tempo que se imagina ilimitado deverá curar todas
as feridas? De onde, então, seria extraída a força para a revolta pelos inocentes e
pelos que sofrem injustamente? O que, então, poderia inspirar uma justiça maior, uma
luta por um “nível mais elevado do olhar” de todos os seres humanos num mundo
único? E o que aconteceria se, em nosso mundo secular, a visão de uma última
grande justiça se apagasse definitivamente? Se aquilo que gostamos de chamar hoje
em dia de nossa “espiritualidade” não fosse mais tocado por essa visão de uma justiça
de Deus (para todos, na coalizão de vivos e mortos)?
Eu sei que nesse meio tempo “espiritualidade” tornou-se uma palavra da moda,
quase sem conteúdo. Talvez se possa dizer que, no mundo ocidental, ela tenha se
tornado um lema que designa a essência opaca de uma percepção pós-moderna de
vida. Assim, ao longo do seu uso sem limites, ela perdeu quase toda a sua
determinação conceitual. As confusões semânticas parecem inevitáveis. A forma
como a palavra “espiritualidade” é usada hoje já se afasta multiplamente de todo
9
contexto religioso, ou semelhante à religião. Mesmo no âmbito dos mundos religiosos
ela surge nas mais diversas conotações. Nessas múltiplas proposições, o que ainda
podemos chamar de “espiritualidade cristã”?3
Eu gostaria de apresentar duas sugestões para a sua semântica (e para uma avaliação
mais minuciosa, indicar os textos que se seguem). A meu ver, nos mundos religiosos
deveríamos, por um lado, fazer a distinção entre mística e espiritualidade religiosa, e
restringir o uso da palavra “mística” às religiões monoteístas, pois sua espiritualidade
trata expressamente da experiência de uma proximidade especial com Deus. Por outro
lado, eu gostaria de enfatizar que os cristãos – diante das oscilações de significado
referentes à espiritualidade, predominantes no próprio cristianismo eclesiástico –
deveriam levar em conta outra orientação básica. Os cristãos são sempre lembrados
da característica messiânica fundamental do cristianismo e sua espiritualidade, por
meio da mencionada relação indissolúvel da questão de Deus com a da justiça. Nesse
sentido, estamos nos referindo ao “perfil messiânico da espiritualidade cristã”. O que
quer dizer isso?
O primeiro olhar de Jesus é um olhar messiânico. Ele não se destina, em primeiro
lugar, aos pecados dos outros, mas aos seus sofrimentos. Essa sensibilidade
messiânica ao sofrimento não renega o peso bíblico da culpa e do pecado.4 A ênfase
nessa perspectiva messiânica da mensagem do Novo Testamento pretende ser um
corretivo diante de um absolutismo unilateral do pecado, que sempreressurge na
história da Igreja (como o último, mas não menos importante sermão aos “pequenos e
inocentes”) e que depois, na modernidade, levou a um perigoso antagonismo entre
consciência de liberdade e consciência de pecado e à deturpação do conceito de
“pecado” para o de “culpa”. Essa sensibilidade messiânica ao sofrimento não tem
nada a ver com plangência, com um culto tristonho ao sofrimento, mas tem tudo a ver
com uma mística bíblica de justiça: paixão por Deus como empatia pelo sofrimento
alheio, como mística prática da compaixão. Um cristianismo que se apega à sua raiz
bíblica volta sempre a se deparar com isso.
Enfatizo tão expressamente essa empatia pelo sofrimento alheio derivada da paixão
por Deus porque, na sua mensagem, o cristianismo já teve, desde cedo, muitas
dificuldades com a sensibilidade elementar ao sofrimento. No processo teológico do
cristianismo, a meu ver, a questão – profundamente inquietante para as tradições
bíblicas – da justiça para os inocentes sofredores foi transformada depressa demais na
questão da salvação dos culpados. A doutrina cristã da salvação dramatizou a questão
do pecado e negligenciou a questão do sofrimento. Mas será que isso não paralisou a
sensibilidade elementar pelo sofrimento dos outros e não obscureceu a visão bíblica
da grande justiça de Deus que, segundo Jesus, deveria valer para toda e qualquer
fome e sede?
Será que os cristãos não se afastaram depressa e cedo demais da questão bíblica da
justiça? Será que o cristianismo – ao longo do tempo – não se considerou
exclusivamente demais uma religião sensível ao pecado e muito pouco sensível ao
sofrimento? Por que a Igreja encontra mais dificuldade em lidar com as vítimas
inocentes do que com os malfeitores culpados? Será que não expulsamos da nossa
10
linguagem de fé cristã, depressa e tranquilamente demais, os gritos que soam na
história do insondável sofrimento humano no mundo? Essa pergunta não deve ser
considerada meramente especulativa, e nem com apelo moral. Ela toca na própria
concepção de direito e de constituição da nossa Igreja. Será que existe uma
concepção eclesiástica de direito, colocada sob a primazia de uma justiça salvadora
para as vítimas inocentes sofredoras e, finalmente, também para os malfeitores que
sofrem com a culpa?5 Ou será que isso continua bloqueado por causa da persistente
sobreposição do antigo direito romano sobre nosso direito eclesiástico? Até hoje
fiquei devendo um acompanhamento mais preciso dessa questão da relação entre
justiça e direito, entre a justiça escatológica de Deus e o direito eclesiástico
(justamente no interesse da nova teologia política), certamente por causa da minha
falta de competência jurídica, mas talvez também por causa da minha falta de
coragem civil teológica.
Em todo caso, a fé cristã é uma fé que busca a justiça. Certamente por isso os
cristãos também são místicos, mas não exclusivamente místicos no sentido de uma
experiência espiritual pessoal, porém no sentido de uma experiência espiritual de
solidariedade. Eles são, sobretudo, “místicos de olhos abertos”. Sua mística não é
uma mística natural, sem face. Ela é muito mais uma mística que busca essa face, que
leva esses místicos ao encontro do outro, sofredor, ao encontro da face dos infelizes e
vítimas do mundo. Ela obedece, em primeiro lugar, à autoridade dos sofredores. Para
essa mística da justiça que busca uma face, a experiência que desabrocha dessa
obediência e se define nela torna-se um modelo terreno da proximidade de Deus com
seu Cristo: “‘Senhor, quando foi que te vimos com fome...’ Ao que lhes responderá o
rei: ‘Em verdade vos digo, cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais
pequeninos, a mim o fizestes’” (cf. Mt 25,31-46). Essa mística da compaixão não tem
como objetivo exclusivo uma experiência sem olhos, direcionada ao interior, mas
aquela experiência da “interrupção”, introduzida pela situação “face a face”, na
relação com o outro. Ela é, ao mesmo tempo, mística e política.6 Ela é “mística” na
medida em que pode ser o início de uma experiência de Deus, no mínimo uma
espécie de “atmosfera de Deus”.7 Ela é e continua sendo ao mesmo tempo “política”,
porque nessas “interrupções” interpessoais, os outros, feridos e vulneráveis, poderão
ser percebidos (tornando-se visíveis) numa última invulnerabilidade, impressa por
toda nossa ação política. Portanto, essa mística política não é uma mística da política
ou dos políticos, assim como Jesus não foi um político. Mas essa mística é, sim,
política, assim como Jesus não é, de modo algum, apolítico em sua mensagem.8
Essa mística política da compaixão não é um convite ao heroísmo ou a uma
santidade excepcional. Ela pretende ser razoável com todos, e dar um significado de
estruturação futura à virtude básica dos cristãos e às formas de comunidade marcadas
pelo princípio da paróquia popular-territorial da Igreja; comunidades nas quais a
história da fundação do cristianismo (no caso a comunidade dos seguidores de Jesus,
reunida para lembrar e contar histórias durante a ceia eucarística) se repete diante dos
olhos do mundo, e a crença nela, sempre buscando a justiça, evita que se transforme
11
numa seita.
Com essa conotação bíblico-apocalíptica e seu pathos de justiça, o cristianismo
sensível ao tempo e ao sofrimento preocupa-se também com a luta por uma
autoridade reconhecida universalmente, numa sociedade mundial estritamente
pluralista. Será que existe, por exemplo, uma autoridade que esteja à frente, ou na
base de todos os processos de consenso, e que seja uma autoridade com a qual todos
possam concordar, sem violência? Existe também, no modernismo esclarecido, algo
como um direito racional universal, que leve em conta o pluralismo? A pista revelada
pelas tradições judaico-cristãs diz: é a memória passionis, a lembrança do sofrimento
alheio, que garante o caráter humano da nossa moderna racionalidade. Essa memória
passionis, em sua dialética negativa, é a tentativa teológica de formular um direito
racional universal, que leve em conta o pluralismo (inclusive tendo em vista uma
fundamentação no direito humano).9
No final, o que impede que o mundo globalizado sucumba à eclosão de combates
incontroláveis entre religiões e culturas, por exemplo, de um lado o cristianismo, de
outro o Islã – de um lado o Ocidente e de outro o mundo oriental? O que poderá
manter a paz neste mundo? A proposição da igualdade elementar de todos os seres
humanos, essa mais forte suposição a respeito da humanidade, possui um fundamento
bíblico.10 Seu lado prático, tal como aceito pelo cristianismo e anunciado pela
mensagem da unidade indissolúvel do amor de Deus e ao próximo, da paixão de Deus
e da compaixão, diz o seguinte: não existe sofrimento no mundo que não nos diga
respeito.11
Assim, essa proposição da igualdade elementar de todos os seres humanos nos
remete ao reconhecimento de uma autoridade acessível e racional para todas as
pessoas, uma autoridade dos sofredores, das vítimas inocentes que sofrem injustiças.
Ela visa uma autoridade que, diante de qualquer escolha ou entendimento, garanta o
compromisso de todas as pessoas, sim, todas, religiosas ou seculares, e que por isso
não possa ser iludida e relativizada por nenhuma cultura humana contrária à
igualdade de todas as pessoas, por nenhuma religião, e nem mesmo pela Igreja. Por
isso o reconhecimento dessa autoridade transcultural seria um critério para o discurso
religioso e cultural nos relacionamentos globalizados. Finalmente, ela seria a base de
um ethos de paz para um relacionamento global estritamente pluralista.
Mas será que, de acordo com isso, o secularismo moderno não permaneceria – no
sentido de uma “dialética da secularização” – atrelado a uma visão não passível de
secularização, ou seja, a visão de uma igualdade definitiva de todos os seres
humanos, em sua dignidade e responsabilidade na vida? Será que essa visão não se
direciona de fato apenas a uma justiça do vencedor, apenas a uma igualdade sem
destino dos “últimos seres humanos”? Ou essa visão ainda não foi tocadapor aquela
“mística da justiça de Deus”, tal como expressa na mensagem bíblica da ressurreição
dos mortos e do Juízo Final? Deus caritas est, Deus et iustitia est. O que Deus uniu,
nem o cristianismo pode separar. Daí o seu caminho, o seu “curso” (Paulo) pela
história, como história – com as experiências de não identidade e a mística cristã de
12
uma justiça de Deus salvadora.12
1 Nesse formato, ainda não publicado; parcialmente impresso em: Die Zeit, de 15 de abril de 2010.
2 Cf. o capítulo: “Tempo e temporalidade. Um problema central da teologia cristã”.
3 Cf. meu prefácio a J. D. PRINZ, Endangering Hunger for God. Johann Baptist Metz and Dorothee Sölle at the Interface of Biblical Hermeneutik and
Christian Spirituality, Münster, 2007, XV-XX.
4 Cf. Memória passionis, passim, Exkurs, § 11.
5 Quem admite de antemão a suspeita de que nem tudo pode ser redimido, a favor da empatia humana de Deus, também admite o próprio Deus redentor.
A suposição de que tudo será redimido expressa uma suposição de inocência de todos os seres humanos, o que torna supérflua toda mensagem de
redenção. Essa suposição subtrai toda seriedade e dramaticidade da nossa livre responsabilidade histórica. (Cf. Unsere Hoffnung[Nossa Esperança] I, 4.)
6 Caso ainda possamos perguntar (na pós-modernidade) à teologia quais são seus interesses, o NT já nos responde, com a “Fome e sede de justiça”, aliás,
com uma justiça integral para todos; o interesse nessa justiça integral de Deus faz parte, na prática, das premissas da teologia.
7 A “interrupção” que surge na situação face a face é o fundamento perceptível de que Deus é aquele Deus maior, aquela maior possibilidade (cf. a
fórmula de analogia no 4º Concílio Lateranense, da maior dissimilitude, em toda imagem semelhante a Deus, nos homens).
8 Para o uso do conceito “mística política”, cf. o texto incluso nesta primeira parte: “Mística política? O conceito do político na nova teologia política”.
9 Veja as diversas passagens em Memória passionis, especialmente a partir do § 14.
10 Não é a morte que confirma a ideia de igualdade de todos os seres humanos, mas a transcendência da justiça de Deus em seu Juízo Final. Só ele garante
a igualdade elementar de todos os seres humanos em sua dignidade e também sua responsabilidade ao longo da vida, uma igualdade que não é
prerrogativa dos tardios vencedores de uma história de sucesso humano, mas vale para todos, na grande coalizão de vivos e mortos; ela é uma igualdade
de todos os seres humanos, considerando-se as mais diversas condições de vida e de atuação, uma igualdade que não flexibiliza a responsabilidade
concreta na vida do indivíduo, nem a ignora. As tradições bíblicas e eclesiásticas falam de uma justiça de Deus que promove a visão dessa igualdade, uma
justiça que não visa à retaliação, mas à salvação.
11 Essa proposição foi formulada anteriormente por Peter Rottländer, meu amigo fiel e antigo assistente.
12 Não foi levada em consideração, neste caso, uma aproximação à “mística da justiça de Deus” com raiz na Bíblia, sobre partes importantes da literatura
da sabedoria do Antigo Testamento; porém está previsto um texto de complementação a esse assunto.
13
E
TEMPO E TEMPORALIDADE
Sobre um problema central da teologia cristã
u também poderia ter dado o seguinte título a este capítulo: “A salvação da
honra do apocalipse bíblico – diante dos que o desprezam, teologicamente”. Ou
então: “Sobre uma tardia (ou adiada) reabilitação do nominalismo”. Mas as duas
sugestões soariam estranhas demais. O que quero dizer com a formulação: “Sobre um
problema central da teologia cristã”? Vamos avançar passo a passo. O que liga este
texto às reflexões anteriores sobre a “mística da justiça de Deus”? Trata-se de um
esclarecimento cautelar sobre a demanda de universalidade do discurso bíblico de
Deus nos nossos tempos. Universalismo teológico na era do pluralismo reconhecido
oficialmente? Será que a teologia não estaria se afastando do âmbito de competência
da razão crítica moderna? Será que não é a renúncia a toda possibilidade de uma
comunicação entre a crença baseada nesse discurso bíblico de Deus e a moderna
razão crítica? Mas essa demanda de universalidade do discurso bíblico de Deus não
pretende remetê-la nem apenas reduzi-la à razão crítica; ela só pretende “elaborar” ou
concretizar sua universalidade (imaginada no logos grego) de forma temporal e
sensível ao sofrimento, para garantir o caráter humano dessa moderna razão crítica.
Quanto a isso, parto da ideia sustentada pela ciência da religião, de que a
temporalização do tempo na verdade só penetrou na história da religião e da cultura
por meio do apocalipse bíblico, com a história do sofrimento nele articulado.1 A meu
ver, esse surgimento tardio da ideia de temporalidade no apocalipse bíblico, essa
relevante passagem teórico-temporal do “tempo eterno” à temporalização, i.e., à
fixação de prazos, pode ser vista como característica exclusiva da religião judaico-
cristã, no âmbito da história das religiões da humanidade. Essa ideia bíblica da
temporalidade era desconhecida não só dos (pré) asiáticos, mas também dos
contextos religiosos e culturais greco-mediterrâneos. Isso vale tanto para o “tempo
eterno” dos pré-socráticos (renovado quase pós-modernamente por F. Nietzsche)
quanto para o “cosmo eterno” do classicismo grego.
Naturalmente a história de Jesus é uma história apocalíptica, na qual a abstrata
universalidade da razão (grega) é transformada definitivamente em tempo e história.
Aliás, essa mudança não foi pensada na logocultura de Atenas, mas na cultura
anamnésica de Israel, onde se tinha uma consciência de temporalização, algo que
devia parecer aos gregos uma “tolice” (1Cor 1,23). O discurso bíblico de Deus
acabou com o sortilégio do “tempo eterno”.
A questão que me preocupa é a seguinte: será que o cristianismo, na sua evolução
teológica, não abandonou depressa demais esse pensamento apocalíptico da
temporalidade? Será que a teologia cristã não tentou superar o problema da assim
chamada postergação parusiana, a crise da assim chamada esperança próxima, do
14
antigo cristianismo, eliminando totalmente a temporalização das atitudes de
esperança, e, sobretudo, idealizando-as (portanto generalizando-as, na ausência de
temporalização) com ajuda das categorias do médio platonismo? Será que assim já
não se inicia uma funesta eliminação da temporalização de todo o mundo conceitual
teológico? Não apenas os platônicos cristãos, mas também os aristotélicos teológicos
– como Tomás de Aquino – tinham muita dificuldade em lidar com essa
temporalização do seu mundo, para não caírem no dualismo gnóstico do tempo sem
salvação e da salvação sem o tempo, aquele dualismo que ameaça a história da
teologia do cristianismo desde o início (até hoje).2 Nesse contexto, podemos lembrar
também o comentário de H. Blumenberg, de que até mesmo a grande teologia
medieval com sua doutrina da analogia não conseguiu superar o dualismo gnóstico.3
Será que a alteração radical histórico-conceitual no assim chamado nominalismo
(teológico) não introduziu uma transposição – mesmo muito incerta,4 quanto à sua
categoria – à temporalização a fim de afastar o perigo de um engano semântico na
linguagem da teologia cristã?5 Para a teologia cristã, essa alteração nominalista
(múltipla, até hoje) pode ser considerada, na sua totalidade não dialética, como o
início de uma história de declínio da razão e do pensamento em geral. Ela mal quis
reconhecer esse nominalismo como o surgimento desse pensamento, biblicamente
inspirado, no horizonte do tempo temporalizado, e como uma entrada – naturalmente
ainda não amadurecida, quanto à sua categoria – nos primeiros processos históricos
de aprendizado da Idade Moderna. Será que, na verdade, para a teologia cristã, o que
deveria ser dito é: Hic Logos, hic salta? Mas diante dessa avaliação teológica habitual
do nominalismo, temos a impressão de que a teologia cristã levantou com o pé errado
na alvorada da Idade Moderna. Por isso, a meu ver, a recuperação teológica da
essência temporale histórica do cristianismo não pode ocorrer por meio de uma
escatologia, numa identidade lógica purificada de todas as experiências de
interrupção, mas apenas por uma ideia de não identidade tocada pelo apocalipse
bíblico e sua teodiceia, e que preserve uma memória do grito das pessoas e de uma
finitude no tempo da humanidade.
Será que, com a tentativa de retirarmos o tempo do nosso mundo conceitual da
teologia e sua total idealização não jogamos fora o bebê junto com a água do banho?
O que ainda significa para nós “velar”, “esperar” ou “ter expectativas”? Finalmente, o
que significa “ter esperanças” e “sentir falta”, no horizonte de um tempo estritamente
isento de temporalidade? Qual é a esperança que celebramos em nossas liturgias (“...
até chegares em toda glória”)? Será que, enquanto isso, oferecemos aos cristãos do
mundo o espetáculo de pessoas que, apesar de falarem de esperança em Deus e no seu
“reino”, na verdade não esperam mais nada? Será que ainda esperamos um fim, um
fim para toda a humanidade – e não apenas para o indivíduo, na situação isolada “sem
esperanças” da morte individual?6 O que significam todos esses conceitos diante da
sistemática retirada da temporalização do mundo conceitual da teologia? Será que há
muito não relegamos ao reino do mito a expectativa de um fim universal, porque,
para nós, o tempo em si tornou-se uma eternidade vazia, livre de surpresas, e porque,
15
por causa disso também, nunca mais haverá tempo para o final dos tempos? Na
questão da temporalidade do tempo, não se trata apenas do “meu” tempo, mas
também do “seu” tempo, finalmente, do tempo de todos os outros; e na questão do
“final do tempo” não se trata apenas da “minha” morte, mas também da “sua” morte,
da morte de todos os outros. Portanto, a matriz da esperança cristã não é o tempo de
vida isolado de cada um, mas sempre também, e inevitavelmente, o tempo dos outros.
Não apenas o próprio declínio na morte, mas o declínio dos outros; a morte dos
outros é que mantém viva a intranquilidade sobre o fim do tempo nos nossos
corações.
A temporalização do logos da teologia cristã aqui cobrada é uma “relativização”
contrária à verdade apenas para aquele que possui uma relação com a verdade sem
temporalidade, idealizadora, inconveniente para o caráter de evento temporal da
mensagem cristã. Uma Igreja que professa a humanização de Deus na história não
deveria apenas ensinar aos fiéis qual é a vontade do Deus que se tornou homem, mas
também “estudar”, ela mesma, essa vontade divina nas experiências históricas. Por
exemplo, não seria uma primeira etapa de aprendizado da Igreja não deixá-los
esquecer que, em Jesus Cristo, Deus não se tornou simplesmente “humano”, mas
judeu? Não nos parece que a nossa teologia cristã de hoje teria preferido que Deus
tivesse se tornado “grego”?
Na Suábia, dizemos de algo que aconteceu há muito tempo: “Já faz tanto tempo que
logo não será mais verdadeiro”. Não podemos nos esquivar teologicamente da
consequência desse ditado mencionado por Hegel,7 respondendo à questão da relação
entre a verdade e o tempo com a idealização atemporal da verdade (Atenas), porém só
levando em conta os preceitos de temporalização da noção de verdade (“fidelidade”)
nas tradições bíblicas (Jerusalém),8 e assim nos colocando, a nós mesmos e nossas
atitudes cristãs, sob a pressão do tempo. A temporalização do logos (da teologia) não
leva, de modo algum, ao abandono imprudente de um passado com laços afetivos.
Nessa temporalização há o trabalho da dialética da razão anamnésica (dotada de
memória): na configuração de uma consciência de sentimento de ausência, na criação
de passados abertos, e na configuração de lembranças perigosamente libertadoras ao
futuro da humanidade.9
Nesse contexto, tomo a liberdade de acrescentar um pequeno texto de 1970.10
Memória libertadora de Jesus Cristo: nós a celebramos no meio de uma sociedade
cuja consciência e formas de vida são cada vez menos marcadas pela lembrança. Em
proporções crescentes, as tradições estão perdendo seu poder de determinação da vida
e sua força direta de compromisso, e, frequentemente, ainda servem apenas como
cenário de uma eventual celebração, como interpretação da existência. Nosso mundo,
administrado de forma técnico-científica, está ficando cada vez mais sem história. A
tradição está se tornando um material de crítica histórica distanciada, e o futuro, um
objeto exclusivo do planejamento tecnológico. O passado parece ter perdido
definitivamente a capacidade de estabelecer laços, e o futuro, o seu mistério.
Mas justamente o exame crítico das nossas tradições tinha todo fundamento. Na
16
prática, ele nos libertava das falsas opressões. No caso, não se deve, de jeito nenhum,
restringir sua legitimidade, ou imprescindibilidade. Só uma relação crítica com o
passado, e não romântica ou doutrinária, pode preservar sua herança tão valiosa e
desvalorizada. Porém, essa crítica não pode ignorar que lembrança e tradição são
inerentes a todo reconhecimento crítico. Hoje o perigo consiste em igualarmos à
superstição e relegarmos ao bel-prazer privado e à ausência de apego do indivíduo
tudo o que é determinado pela lembrança e a tradição em nossa consciência, e que
não obedece ao cálculo da nossa razão técnico-pragmática. Mas, com isso, o ser
humano não se torna mais livre. Ele sucumbe mais facilmente às ilusões dominantes,
aos “contextos ofuscantes” do seu presente sem passado. Ele se torna vulnerável à
sedução, de uma nova maneira. De repente ele se curva ao feitiço das ideias e atitudes
predominantes da atualidade.
Em relação ao nosso mundo, deve-se explicar o que significa a fé cristã como
lembrança de Jesus Cristo. Nesse caso, essa fé poderia se expressar como uma
lembrança perigosa, que nos desperta, assustados, da precipitada reconciliação com
os “fatos” da nossa atualidade unidimensional. Nela, a fé cristã poderia se expressar
como uma lembrança que nos deixa livres para sofrermos o sofrimento dos outros,
apesar da negatividade do sofrimento em nossa sociedade parecer cada vez mais
intolerável; como uma lembrança que nos deixa livres para a contemplação, apesar de
parecer que estamos sempre, nos recônditos espaços da consciência, hipnotizados
com o trabalho, o desempenho e o planejamento; como uma lembrança que
finalmente nos deixa livres para calcular nossa finitude e nossa dubiedade, apesar de
nossa vida pública estar sempre à mercê da sugestão de uma vida cada vez mais
“perfeita”. Aqui a fé cristã poderia se expressar como uma lembrança que nos deixa
livres para levarmos em conta os sofrimentos e a esperança do passado, para
enfrentarmos o desafio de não deixarmos de ser solidários com os mortos, aos quais
nos juntaremos amanhã, e para quem uma sociedade avançada, que acredita apenas
no planejamento, só tem perturbações, ceticismo ou esquecimento.
Nisso tudo se revela algo daquilo que poderíamos chamar de liberdade crítico-social
da memória cristã. “A lembrança do passado”, diz o filósofo Herbert Marcuse, “pode
trazer à tona visões perigosas, e a sociedade estabelecida parece temer os conteúdos
subversivos da memória”. Não é à toa que a destruição da lembrança constitui-se
numa medida típica do domínio totalitário. Os modernos cínicos do poder político e
tecnocrático sempre se confrontam com a memória de Jesus Cristo, que não empresta
sua força perigosa e libertadora a nenhum poder que se sobreponha ao poder da
verdade e do amor, tal como surgiu em Jesus Cristo. No final, ela não cria nenhum
vínculo além daqueles que a ligam aos pensamentos oniricamente coloridos, às ideias
destituídas, reprimidas e combatidas, às expectativas inconformistas e renitentes e às
esperanças mortalmente ameaçadas das pessoas. E isso já é o bastante.
1 Cf., por exemplo, Norman COHN, Die Erwartung der Endzeit. Vom Ursprung der Apokalypse, Frankfurt a. M., 1997. Cohn enfatiza a cesura qualitativa
nos apocalipses judeus diante de certos supostos sintomas apocalípticos – Zaratustra! – no antigo Oriente. Cf. p. 216.
2 A concepção histórica das tradições bíblicasnão é, em sua essência, marcada pelo dualismo. Na verdade, não existe uma história do mundo “natural” e
além dela uma história “sobrenatural” de salvação. Existe somente aquela única história, e a história da salvação é aquela história do mundo na qual os
passados inconclusos e uma esperança num tempo final são defendidos para todos. Veja também, sobre isso, o artigo de E. Jüngel (nota 7).
3 Cf. H. BLUMENBERG, “Säkularisierung und Selbstbehauptung”. Nova edição ampliada e revista de Die Legitimität der Neuzeit, primeira e segunda
17
partes, Frankfurt a. M., 1974.
4 Cf. sobre isso, o trabalho ainda muito importante, para mim, de J. GOLDSTEIN, Nominalismus und Moderne. Zur Konstituiton neuzeitlicher
Subjektivität bei Hans Bumenberg und Wilhelm Von Ockham, Freiburgo em Breisgau, Munique, 1998. Cf. também, sobre Goldstein, a seguinte nota 5.
5 Já tentei explicar essa mudança nominalista na minha obra “Christliche (n) Anthropozentrik” (Munique, 1962) não como habitualmente uma decadência
do tipo de pensamento histórico, mas como sintoma da história, biblicamente inspirada, de um surgimento. Cf. “Ein sekundärer Nominalismus?” em:
Memoria passionis, p. 44-48. Antes disso, “Verzeitlichung von Ontologie und Metaphysik”, em: Zum Begriff § 8. Para o todo, cf. também J.
GOLDSTEIN, “Bemerkungen zur nominalistischen Tiefengeschichte der Neuen Politischen Theologie”, em: Jahrbuch Politische Theologie 2, 1997, p.
173-187. Sobre o peso das análises histórico-conceituais, cf. os trabalhos de R. KOSELLECK, p. e. Begriffsgeschichten, stw (Suhrkamp Taschenbuch
Wirtschaft), Editora Suhrkamp, 1926, Frankfurt a. M., 2010; e também “Begriffene Geschichte – Beiträge zum Werk Reinhard Kosellecks”, ed. H. JOAS
e P. VOGT, stw (Suhrkamp Taschenbuch Wirtschaft), Editora Suhrkamp, 1927, Frankfurt a. M., 2010, e nisso também o texto de H. Joas, onde ele aponta
criticamente que, em Koselleck, apesar da sua “compreensão da história, radicalmente consciente das contingências... encontra-se a ideia simplificadora de
um processo constante de secularização” (p. 330). Para mim, isso ocorre porque Koselleck não utiliza o conceito de “dialética” (como crítica de ausência
de tempo e história). Sobre a “dialética da secularização”, cf. o capítulo seguinte “Mística política? O conceito do político na nova teologia política”.
6 Cf. as reflexões no capítulo “Seu Deus é também meu Deus. A ‘sobrevivência’ de Deus na morte do ser humano”. Sobre o tema “orar e observar”, cf.
também a nova redação do meu texto “Estímulo à oração”, na segunda parte do livro.
7 Citado em E. JÜNGEL, “Wirkung durch Entzug. Eine theologische Anmerkung zum Begriff der Wirkungsgeschichte”, em Internationales Jahrbuch für
Hermeneutic, vol. 7, Tubinga, 2008, p. 23-38.
8 Cf. Memoria passionis § 2,2; § 16; § § 7-10. É pena que M. Heidegger, em seu tema do centenário “Ser e tempo”, não tenha consultado o apocalipse
bíblico, mas os pré-socráticos.
9 Veja o discurso sobre a principal razão dialética no âmbito da “Cristologia do seguimento e sua mística” no correspondente capítulo.
10 De: Befreiendes Gedächtnis Jesu Christi, Mainz, 1970, p. 12-16.
18
O
MÍSTICA POLÍTICA?
O conceito do político na nova teologia política
texto anterior já define a “mística da justiça de Deus” como uma “mística
política”. Para evitar confusões semânticas, falsas cobranças ou condenações
crítico-ideológicas, devemos falar brevemente do citado “conceito do político”.
Comecemos com uma simples (demais?) diferenciação, ou seja, com a diferenciação
entre a antiga teologia política, de certo modo “clássica”, e a nova teologia política. A
primeira desenvolve-se num espaço de tempo que vai do estoicismo até Carl Schmitt,
e seus desdobramentos no século XX.1 Apesar de essa teologia política de estado
sempre ter atraído e continuar atraindo as atenções, sobretudo em tempos de maior
incerteza, foi o próprio Carl Schmitt (1963) que deu a última palavra sobre o assunto:
“A época do estadismo está no fim. Não se deve mais perder tempo com isso”.2 Seria
bom se os irmãos pios e seus simpatizantes no Vaticano também soubessem disso!
Mas eles continuam a praticar amplamente a teologia política como uma visão de
mundo estatizada – na busca pelo “estado católico”.
E no que se refere à nova teologia política, falo, sobretudo, da situação na teologia
católica, naturalmente sempre com uma proposta ecumênica. Por causa da minha
promessa de ser breve, expressa no início deste capítulo, permito-me descrever
resumidamente essa nova teologia política do ponto de vista da minha biografia
teológica. Ela é marcada sobretudo por um nome, o do meu professor e amigo Karl
Rahner. Com sua “transição antropológica” do discurso sobre Deus, ele levou a
teologia católica a um confronto crítico-produtivo com o espírito da modernidade,
como nenhum antes dele. Os questionamentos críticos a Rahner não se referem à
“transição antropológica” como tal, mas à forma como é conduzida.3 A meu ver, ela
não pode ser praticada de uma forma apenas filosoficamente consciente – portanto, a
estilo de uma ideia de identidade transcendental, individualmente assimilada –, mas
deve levar em conta o ser humano na história e na sociedade, i.e., a estilo de uma
noção dialética de temporalidade. Talvez eu devesse ter definido essa preocupação
como uma forma de “teologia dialética” (na qual a “dialética” se relacionasse,
sobretudo, à crítica da ausência do tempo e da história no logos da teologia cristã),
mas eu falei exclusivamente de uma “teologia política”, despreocupado demais com a
pressão semântica que a teologia política “clássica” (desde o estoicismo até Carl
Schmitt) exerceria sobre esse conceito. Em todo caso, a nova teologia política utiliza
o conceito com um propósito estritamente teológico. No princípio, ela se chamou
“política” para a caracterização da sua contestação contra uma teologia católica pós-
escolástica que, com uma tendência à privatização e individualização não dialéticas
de seu logos (que enquanto isso passou pela transição antropológica), tentou superar
19
os desafios do Iluminismo político, sem ter passado através dele.
No caso dessa nova teologia política, tratava-se, desde o início, de uma nova
avaliação teológica dos processos do modernismo já em implantação na escolástica
tardia e, sobretudo, no nominalismo, e especialmente dos processos do Iluminismo
político com a transição, a ele agregada, do conceito de “político”, sem que a nova
teologia política realizasse uma adequação não dialética, cega às contradições
internas desses modernos processos de aprendizado.
Jürgen Habermas, em sua recente entrevista com Eduardo Mendieta, confirma que,
para ele, também existem dois tipos de teologia política, uma anti-iluminista e –
tendo em vista a nova teologia política – outra que aceita as tradições do Iluminismo
e que, em sua “sensibilidade ao tempo”, pode constituir uma ponte da filosofia para a
teologia contemporânea.4
Meu questionamento crítico a Habermas refere-se à sua caracterização não dialética
do pensamento “temporal” por meio da palavra “pós” – pós-tradicional, pós-
metafísico, pós-secular –, como se “tradição”, “metafísica” e também “secularização”
não tivessem mais nenhum tipo de atuação na atualidade. Com essa observação
crítica, a nova teologia política não pretende questionar novamente sua aceitação dos
processos de aprendizado da razão moderna e o resultante Iluminismo político, mas
apenas chamar a atenção para ele. A meu ver quando, em nome do Iluminismo, a
razão moderna tenta se afastar completamente da dialética histórica da memória e do
esquecimento, a fim de deixar para trás qualquer “dialética do Iluminismo”, ela está
forçosamente baseando os modernos processos de Iluminismo no esquecimento, e,
sem querer, estabilizando a amnésia cultural existente hoje em dia, com sua
extremamente fraca consciência daquilo “que falta”, daquilo que “clama aos céus”.5
Fortalecer essa consciência e mantê-la alerta faz parte do “político”, na época atual da
sua coletividade, portanto também do “conceito do político” nanova teologia
política, que distingue muito bem a secularização do estado da dialética da
secularização na sociedade. Por isso ela não considera, de jeito nenhum, uma
“religião burguesa” surgida na corrente da adequação não dialética aos processos
sociais de Iluminismo como uma repetição convincente da história da fundação do
cristianismo na modernidade europeia,6 e também não simplesmente como a
procurada meta dos processos eclesiásticos de aprendizado e renovação.7
O famoso “Axioma de Böckenförde”, pelo qual o secular estado democrático de
direito vive de pressupostos que ele mesmo não consegue garantir, não se refere
diretamente à religião, para essas garantias, mas à sociedade, da qual naturalmente J.
Habermas também diz que: “O conceito do ‘político’ transferido do estado à
sociedade civil garante uma relação com a religião, inclusive no interior do secular
esta-
do constitucional”.8 O mandamento da neutralidade no mundo vale para o estado,
mas não da mesma forma para a socieda-
de. E.-W. Böckenförde fala de uma “neutralidade aberta”. Como sempre, o
mandamento restrito ou aberto da neutralidade do estado não vale também para os
20
cidadãos do estado. Por isso o “político” da nova teologia política engloba muito mais
do que “a política” do estado democrático de direito. Ele engloba não só a “ética da
responsabilidade” de políticos democráti-
cos, mas também correntes de uma “ética de mentalidade”, para evitar que na vida
política, na inevitável pragmática da política, “a chama da mentalidade pura” (M.
Weber) simplesmente se apague. Inclusive as utopias sociais, as sugestões
sociocríticas motivadas pela religião, as iniciativas da ciência, da literatura, da arte
etc. devem ser acessíveis aos discursos públicos no estado democrático de direito,
como politicamente legítimas.
1 Para mais detalhes, cf. Memoria passionis § 18.
2 Citado em R. SPAEMANN, “Legitimer Wandel der Lehre”, em FAZ, 1/10/2009, p. 7.
3 Cf. mais adiante: “A face de um teólogo: Karl Rahner” (Sobre a fidelidade teológica a Karl Rahner. Trecho de uma carta).
4 Deutsche Zeitschrift für Philosophie 58, 2010, 1ª ed., p. 3-16.
5 J. HABERMAS, “Ein Bewsstsein von dem, was fehlt”, em M. REDER; J. SCHMIDT (orgs.), Ein Bewusstsein von dem was fehlt. Eine Diskussion mit
Jürgen Habermas, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2008, p. 26-36, 31; e também Memoria passionis § 5.
6 Cf. J. B. METZ, Jenseits bürgerlicher Religion. Reden über die Zukunft des Christentums, Mainz, 1980.
7 Cf. os detalhes na terceira parte.
8 Cf. nota 4.
21
U
“TEU DEUS TAMBÉM É MEU DEUS”
A “sobrevivência” de Deus na morte do homem
m amigo estrangeiro, gravemente enfermo, confessou-me há pouco: “Quero
estar lúcido quando morrer, se o meu Deus morrer comigo”. Minha tardia
tentativa de resposta foi: “Essa frase quer dizer que o ‘meu Deus’ também vai morrer
com você? Se minha suposição estiver correta, você está proclamando uma sentença
de morte a Deus. E ela quer dizer o seguinte: se o ‘seu’ Deus é de fato Deus, então ele
só é o ‘seu’ Deus se também for o ‘meu’ Deus, portanto, também sempre o Deus ‘dos
outros’, na verdade o Deus de ‘todas as pessoas’. E só quando você ‘desprivatizar’
seu Deus, nesse sentido, o ‘seu’ Deus poderá ser para você algo mais e diferente do
que apenas sua própria projeção, do que seu desejo particular, que será enterrado com
você. Portanto, fico com minha objeção, por sua e minha causa”. Nós nos separamos
com um longo aperto de mãos. E depois disso eu ainda anotei – resumidamente:
– Como devoto, depender da fé dos outros não é uma fraqueza de fé.
– Existe uma transcendência de Deus para cada morte individual. O Deus bíblico
não é apenas um tema particular de cada um, mas – assim como a morte, o
sofrimento e a culpa – um tema da humanidade, um tema “universal” que a
teologia deveria formular sempre de novo, absolutamente livre de violência e
aberto ao pluralismo. A meu ver, esse discurso sobre Deus naturalmente só pode
ser “universal”, nesse sentido, quando se realiza “à altura dos olhos” – como um
discurso sensível às faces dos outros e à busca da grande justiça, com paixão e
misericórdia.
– Será que tudo isso não é “antropocêntrico” demais? O que acontece com o outro
mundo, sobretudo o mundo dos animais? Foi o que me perguntaram,
recentemente. Minha tentativa de resposta foi: só posso esperar que o
“antropocentrismo cristão” tome consciência logo, e de forma consequente, de que
o mundo dos seres humanos, desde o início, não existe sem o mundo dos animais.
E que por isso os animais, pelo menos enquanto pertencerem ao mundo dos
humanos, também têm um futuro “paradisíaco”. (De qualquer modo, com a
promessa de uma melhoria. No momento, estou lendo o conto de fadas de Amos
Oz, “De repente, nas profundezas do bosque”.)1
– Você acredita na sua ideia de Deus ou em Deus? Caso acredite em Deus, então
sua crença chama-se velar,2 despertar. “A maioria de nós tem uma ideia geral
daquilo que quer dizer: crer, temer, amar e obedecer. Mas não entendemos muito
bem o que quer dizer velar” (John H. Newman). Portanto, informe-se sobre o
“velar”! Tente ficar desperto. A história ainda não terminou, nem mesmo para
você. “Velar” é uma condição que Paulo também aconselha para o logos da
22
cristologia. Alguma coisa ainda acontece ao redor de Cristo. Paulo relaciona a
ressurreição de Cristo “no” tempo com a ressurreição dos mortos “como fim” do
tempo. “Se não houver uma ressurreição dos mortos, Cristo também não terá
ressuscitado... Se tivermos esperança em Cristo apenas nesta vida, então nossa
miséria será maior do que a de todos os outros seres humanos” (1Cor 15,13.19).
Sem “velar” no tempo, sem uma visão de final do tempo, não há cristologia. Em
nossa fidelidade a Cristo, ainda há muita coisa a descobrir e a aprender. Em
consonância com uma frase de D. Bonhoeffer, eu poderia dizer que o cristianismo
nunca poderá “possuir” Cristo, se também não tiver de esperar por ele. Isso
também marca nossa cristologia?
– Na ação etsi deus daretur, etsi Christus daretur há uma luz (cf. Ef 5,14), uma
inteligibilidade, uma clareza do mundo que nossa curiosidade puramente teórica
não consegue produzir. O Deus bíblico não é uma ideia platônica, mas – que seja
– desde o início um pensamento prático (do qual os cristãos se certificam nas
histórias da partida, do regresso e do seguimento). A dialética teoria-prática (ou
entre a lembrança e o esquecimento) é na verdade uma invenção bíblica!
1 Editora Companhia das Letras, 1ª ed., São Paulo, 2007.
2 Não há uma tradução literal em português para o verbo alemão “wachen”. O mais próximo é “velar” ou “observar”, “estar desperto”, “em vigília”.
(N.T.)
23
N
PREOCUPAÇÕES COM O PERFIL DO CRISTIANISMO?
Um comentário sobre a liberdade de religião
ão só os círculos do Vaticano, mas também representantes da Igreja e da
política do país muitas vezes agem com uma estranha reserva em suas
declarações sobre a liberdade de religião. Falam exclusivamente da liberdade positiva
de religião: “Indubitavelmente o cristianismo pertence à Alemanha, indubitavelmente
o judaísmo pertence à Alemanha e enquanto isso o Islã também pertence à
Alemanha”.1 E o que mais? O que mais pertence à Alemanha, quando se trata da
questão da liberdade religiosa? Minha pergunta não se dirige a outras comunidades
religiosas (possivelmente menores). O que acontece com o número crescente de não
religiosos, de cidadãos estritamente seculares em nossa sociedade? Depois da frase
tantas vezes citada do nosso presidente, será que não temos a impressão de que, no
final, a Alemanha é mesmo um estado religioso “monoteísta”? Será que agora até
mesmo os teólogos devem nos chamar a atenção, dizendo que o direito fundamental
da liberdade de religião não parte, histórica e politicamente, em primeiro lugar e nem
mesmo exclusivamente, da liberdade positiva de religião, portanto, da liberdade
“para” a religião, mas também e justamente da liberdade negativa de religião,
portanto, da possibilidade da liberdade “de” ou “em relação” à religião?
Quando hoje nossa Igreja reinvidica parasi (e também para outras religiões) a
liberdade de pensamento, de consciência, de religião, ela precisa ouvir sua
consciência histórica, em que muitas vezes essas liberdades precisaram ser
implantadas contra ela mesma – por exemplo, na Reforma e no Iluminismo político.
A Igreja perde credibilidade quando acredita poder ignorar ou até eliminar essa
consciência histórica autocrítica com a ajuda de um idealismo teológico totalmente
atemporal.
A disposição ao diálogo com aqueles que consideram essa liberdade negativa de
religião como uma conquista civilizatória, portanto, a disposição ao diálogo com os
não fiéis, sugerido expressamente aos católicos2 pelo Concílio Vaticano II em sua
constituição pastoral, não significa que os fiéis devam se adequar de forma
incondicional e não dialética ao Iluminismo continental-europeu,3 para reafirmar o
conteúdo de liberdade e de emancipação do Iluminismo político e validá-lo tanto no
interior da Igreja quanto, especialmente, no diálogo aberto com as religiões.4 A Igreja
só não deve reagir às críticas a ela dirigidas, a partir do Iluminismo político, no
mesmo nível argumentativo. Num pequeno decreto “sobre a liberdade religiosa”,5 na
conclusão do Concílio Vaticano II, ela mesma indica sua disposição de considerar a
abertura da visão de mundo pluralista, surgida na corrente do Iluminismo político, na
medida em que não fala de um direito da verdade, sem sujeito e abstrato, mas enfatiza
24
o direito da dignidade humana, do sujeito, na sua verdade.
Mas será que nós cristãos não temos cada vez mais preocupações com nosso perfil?
Não só no âmbito dos mundos religiosos, portanto no sentido da liberdade positiva de
religião, como também diante de um mundo estritamente secular, portanto no sentido
da liberdade negativa de religião? A liberdade de religião no sentido positivo só
poderá ser implantada no mundo inteiro quando as religiões deixarem de lutar por
essa liberdade e reivindicá-la apenas para si mesmas, e quando cada uma das religiões
defender e aceitar essa liberdade para outras religiões também. Só uma religião que,
em seus países de origem, garante a liberdade para religiões estrangeiras poderá
reclamar para si essa liberdade em todos os lugares do mundo, sem violência. A meu
ver, esse critério é decisivo para o futuro de um diálogo promissor entre o
cristianismo e o Islã. Isso seria absolutamente desejável. Pois a memória do
sofrimento acumulado nas religiões da humanidade não pode ser ignorada, se não
quisermos que os processos atuais da globalização produzam um nivelamento cultural
e moral. Afinal, essa memória poderia ser a base para uma coalizão de todas as
religiões, especialmente as religiões monoteístas, na realização de um levante público
contra um terrorismo cruel e de desprezo pelo ser humano, praticado “em nome de
Deus” (que Deus?).
No cristianismo atual também existem preocupações com seu perfil diante dos
contemporâneos estritamente seculares, não religiosos – no sentido da liberdade
negativa de religião. Preocupações de uma cristandade da (pós) modernidade, cuja
atuação há muito tornou-se burguesa demais, e cada vez mais sem face e sem voz;
enfim, preocupações com uma religião burguesa ajustada, não dialeticamente, sem
perfil, e que – numa apologética reveladora – facilmente nos leva a reduzir, desde o
início, a questão da visão pluralista a uma questão do âmbito dos mundos religiosos
atuais, para não termos de nos expor à configuração de uma época de “crise de Deus”,
que afeta não só as Igrejas, não só as religiões, mas na verdade todos os seres
humanos.6
Certamente, o encontro dos fiéis com os não fiéis, estimulado pelo concílio, deve
levar em conta que atualmente estamos lidando principalmente com não fiéis de uma
era pós-ateísta. Cada vez mais a falta de fé de hoje tem deixado de ser uma descrença
direta, de certo modo combativa. Apesar de alguns casos um tanto espetaculares, de
tempos diferentes, principalmente na Inglaterra, atualmente essa falta de fé não surge
mais como uma visão de mundo contra a fé (dos cristãos); na verdade, ela é entendida
como proposta de uma imagem de mundo e de ser humano, de uma bem sucedida
humanidade sem fé. O ateísmo militante não é mais objeto dos descrentes, mas em
todos os casos é o pressuposto histórico deles, que se entendem principalmente como
humanistas consequentes, como contemporâneos estritamente seculares. Eles também
não querem, de jeito nenhum, ser considerados “pagãos” inocentes, em todo caso, não
como aqueles que já “têm atrás de si” experiências históricas com a religião cristã, e
que, pela decepção com a imagem do ser humano batizado hoje, olham para trás, para
uma antiga imagem do ser humano – numa espécie de segunda Renascença.
Mostrar o perfil cristão no diálogo com os não crentes, diante dos nossos
25
contemporâneos estritamente seculares, quer dizer fundamentar-se7 na “dialética da
secularização” das nossas sociedades iluministas, e quer dizer também mostrar
solidariedade na luta pela ameaçada humanidade dos seres humanos. Naturalmente, a
própria invocação do “humanum” e da “humanidade” diante das nossas experiências
históricas já não seria, ela mesma, altamente abstrata (pelo menos tão distante
historicamente quanto supostamente o discurso sobre “Deus”)? Será que ela não
corresponde a uma antropologia abstrata que há muito já perdeu de vista o
questionamento sobre o mal e a “visão da teodiceia” na história da humanidade? Será
que eu posso, nesse contexto, lembrar mais uma vez a Shoah, aquela grande
catástrofe, na qual – partindo da Alemanha nazista – a Europa deveria ser
transformada num “cemitério de judeus”? Afinal, essa catástrofe não destruiu o elo de
solidariedade entre tudo o que possui uma face humana? Não podemos pecar à
vontade sobre o nome do ser humano. Aparentemente, não só o ser humano como
indivíduo, mas também a ideia de ser humano e de humanidade são muito
vulneráveis.
Não existe apenas uma história superficial da espécie humana, mas também uma
história profunda, amplamente vulnerável. Será que, atrás do escudo da amnésia
cultural, a “força normativa do factual” não estaria desagregando a confiança
civilizatória primordial, aquelas reservas morais e culturais nas quais se fundamenta a
humanidade dos seres humanos? Em que medida essas reservas são utilizáveis e
utilizadas? Será que, no caso, não estaria ocorrendo a despedida daquela imagem de
ser humano tal como nos é e foi historicamente familiar? Será que o ser humano,
entorpecido numa amnésia cultural, não só perdeu Deus, mas esteja cada vez mais
perdendo a si mesmo, perdendo aquilo que até então chamamos empaticamente de
sua “humanidade”? O que permanece, então, se sempre conseguimos fechar todas as
feridas? Se a amnésia cultural se consolidou? O que permanece? O ser humano? Mas
que ser humano?
Hoje existe o perigo de que o homem moderno tente se esquivar totalmente, em
nome do esclarecimento da dialética histórica entre lembrança e esquecimento, e
finalmente exponha a tensão entre experiência e memória. Então, naturalmente ele
trabalharia numa imagem humana que teria como fundo a mencionada amnésia
cultural,8 na imagem humana de um logos que se esqueceu do sofrimento, com uma
consciência cada vez menor da ausência, uma atrofiante consciência do que “falta” e
do que “grita aos céus”.9 Será que o ser humano não dialético se tornaria totalmente
secularizado? Um ser humano que “não se ilude com mais nada”, um ser humano
sem visões, mas com muitas utopias de formato tecnológico, um ser humano que,
diante do sofrimento, da culpa e da morte não expressa mais gestos com experiências
limítrofes? Um ser humano que – tranquilamente – supõe ser o último pedaço de
natureza ainda não totalmente testado? Que ser humano? Que “espiritualidade”?
Talvez a “espiritualidade” como sonho de uma autoproduzida vida imortal, que não
sente mais falta de nada, mas que, por isso, também não sente mais curiosidade nem
saudade? Será que então ele seria o ser humano “perfeito”? Ou muito mais um
26
monstro petrificado na falta de sentimentos,depois da morte do ser humano? Nesse
caso existem várias oportunidades para a religião cristã mostrar seu perfil e insistir
nele, para que o ser humano que nos é familiar e nos foi confiado seja algo mais do
que seu próprio experimento. Até hoje ele não deve sua existência apenas aos seus
genes, mas também às suas histórias, e se quiser se descobrir, deve não só construir o
mundo a partir dos seus projetos, mas também permitir que o lembrem das coisas e
lhe contem as histórias.
Certamente, a reação contra a amnésia cultural nas imagens humanas
contemporâneas não encontra apenas um suporte na religião. Também encontra o
apoio de uma literatura que ensina a enxergar o cenário histórico com os olhos das
suas vítimas, e, no geral, o apoio de uma arte que, de certo modo, concretiza-se como
forma de concepção da memória do sofrimento humano e chama à memória do olhar
as situações de sofrimento e de culpa, algo que, de certa maneira, a proposta de
objetividade da historiografia científica não consegue fazer. Todos eles possuem,
literalmente, um caráter “ressentido”. Os apaixonados pelo esquecimento carregam o
ressentimento, a mágoa da lembrança. Neles podemos adivinhar – com os olhos
abertos – a história dos seres humanos como uma história da paixão, já referida pela
religião.
1 Apesar de haver bons motivos, nesse contexto, para já se falar, preferencialmente, de “muçulmanos e muçulmanas” na Alemanha, em vez de “Islã”.
Sobre isso, cf. também a entrevista de E.-W. BÖCKENFÖRDE, “Freiheit ist ansteckend”, em Frankfurter Rundschau, 2 de novembro de 2010, p. 32.
2 GS 21.
3 Para a diferenciação entre processos iluministas continentais-europeus e anglosaxões-americanos (do ponto de vista da religião), cf. meu livro Zum
Begriff der Neuen Politischen Theologie, Mainz, 1997, § 10.
4 Eu me pergunto como as recentes declarações idealizadoras não históricas sobre a liberdade de religião feitas por Bento XVI (em sua mensagem na
celebração do “Dia Mundial da Paz”, em 1 de janeiro de 2011) combinam com o que ele enfatizou na recepção de Natal para a cúria romana em dezembro
de 2006, referente ao diálogo com o Islã, ou seja, “que o mundo islâmico hoje encontra-se, com a máxima urgência, diante de tarefas muito semelhantes às
que os cristãos enfrentaram desde o Iluminismo, e para as quais foram encontradas soluções concretas, no âmbito da Igreja Católica, no Concílio Vaticano
II, como fruto de uma longa luta. Trata-se do posicionamento da comunidade diante dos pontos de vista e exigências que surgiram no Iluminismo...” (cit.
por E.-W. BÖCKENFÖRDE, “Die Reinigung des Glaubens”, em FAZ, de 16 de setembro de 2010, p. 32). Sobre o tema da capacidade de aprendizado da
Igreja e sua teologia, cf. o capítulo “Tempo e temporalidade. Um problema central da teologia cristã”, neste livro.
5 DiH. Cf., sobre esse decreto do concílio e seus efeitos, os textos inclusos na obra de E.-W. Böckenförde. Esse pequeno documento provocou as
controvérsias mais veementes e até hoje mais persistentes da Igreja Católica.
6 Cf. “In der Zeit der Gotteskrise”, em Memoria passionis §§ 3-6.
7 Cf. acima “Mística política? O conceito do político na nova teologia política”.
8 Cf. Memoria passionis § § 7-10
9 Cf. nota 5 em “Mística política? O conceito do político na nova teologia política.”
27
Segunda Parte
A MÍSTICA DO FACE A FACE –
TENTATIVAS DE APROXIMAÇÃO
28
C
DO QUE SE TRATA
omo já mencionamos na introdução, trata-se do protocolo de um caminho de
aproximação a uma “mística de olhos abertos”. Na busca pelos rastros da
experiência da fé, dividi esse caminho em quatro estações: rastros de uma mística do
face a face em nosso mundo (p. 47-91), no mundo da oração dos fiéis (p. 92-149), no
mundo do pensamento da cristologia (p. 150-159) e, finalmente, no encontro com um
teólogo: Karl Rahner (p. 160-181).
Os textos, bastante diferentes e resultantes dos mais diversos estímulos, formulados
literariamente de modo bem diverso, devem falar por si mesmos. Todos pretendem
afirmar que os olhos também podem ser um órgão de bênçãos, e o que eles veem
pode nos levar ao centro da fé, para satisfazer nossa “fome de experiências”, pelo
menos por alguns instantes, e também nos permitir julgar e agir, movidos pela força
inspiradora desses olhos despertos.
29
Q
“VELAR, DESPERTAR, ABRIR OS OLHOS...”1
uero enfatizar que, em suas partes essenciais, este texto foi elaborado em 1990 –
portanto, numa época em que a Alemanha ainda não era um país de imigração,
e por isso também encarava os “estrangeiros” primariamente como hóspedes
(prestativos) com um tempo limitado de permanência. Naquela época o discurso
sobre o multiculturalismo e o intercâmbio cultural não era um sonho idílico, mas uma
primeira (às vezes talvez até exagerada) tentativa de abertura para a situação vigente,
que resultou numa política tardia de integração.
I.
Desde o início, o cristianismo contém em sua essência um experimento
multicultural. O Novo Testamento fala de um conflito com muitas consequências, a
briga de Pedro e Paulo sobre a circuncisão (cf. Gl 2,11). O cristão judeu Paulo
recusava-se a submeter os cristãos pagãos à circuncisão. Desde o início a diversidade
cultural deveria se multiplicar no solo do cristianismo, o próprio cristianismo deveria
aceitar e gerir uma convivência de diversos mundos culturais. Naturalmente essa
visão contém uma premissa relevante, tanto para a religião quanto para a cultura: o
cristianismo precisava ligar sua pretensão de mensagem universal com uma cultura
da sensibilidade, com uma cultura do reconhecimento do outro, em sua diferença.
Essa cultura da sensibilidade não tinha nada de sentimental, ela não visava
transfigurar e romantizar o outro, o ser estranho. Tratava-se apenas de excluir do
experimento intercultural do cristianismo a vontade de poder e a lógica do domínio,
ou o ajustamento que ela impunha. A história da Europa não é muito caracterizada
por essa cultura da sensibilidade. O que se vê mais claramente são os indícios de uma
enorme insensibilidade da Europa e do cristianismo europeu. Quando foi que, em vez
de conquistas, as “descobertas” europeias produziram encontros? Seria conveniente
lembrarmos mais uma vez o “descobrimento” da América. Com que olhos esse
continente foi “descoberto”? A cultura da sensibilidade teve um papel importante
nisso? Ou será que o processo de cristianização da América não teria sido dirigido, e,
em todo caso, dirigido até demais por um pensamento insensível de dominação e
ajustamento, que não tinha olhos para os indícios de Deus na alteridade dos outros, e,
por isso, sempre degradou culturalmente esse outro que não era entendido, tornando-
o sua vítima? Em seu livro A conquista da América, o problema do outro,2 o filósofo
e linguista búlgaro T. Todorov mostra que essa conquista teve êxito no séc. XVI,
sobretudo porque os europeus eram hermeneuticamente superiores aos nativos. Por
exemplo, os astecas, no México, só conseguiram reconhecer e avaliar (erroneamente,
30
no caso) o pequeno grupo militar do espanhol Cortez no contexto da sua própria visão
de mundo. Por outro lado, o europeu estava em condições de reconhecer esses
estranhos, em sua alteridade, dentro do seu próprio “sistema”.
Como sabemos, esse reconhecimento do outro em seu diferente modo de ser não
serviu exatamente para a sua aceitação, porém muito mais ao interesse da
possibilidade de avaliá-lo e depois enganá-lo. Era a expressão de uma hermenêutica
de dominação, e não de uma aceitação sem qualquer ação violenta ou “vontade de
poder” no reconhecimento do outro, em sua diferente maneira de ser.
No legado do cristianismo também existem afirmações e estímulos para a cultura da
sensibilidade tão em falta hoje em dia. Os “próximos”, citados no mandamento
bíblico mais importante que fala do amor ao próximo, não são apenas os próximos,
mas também os outros, os estranhos. E a metáfora de Jesus sobre o Juízo Final (Mt
25,31-46) contém um critério inquietante: “O que determina a salvação ou a desgraça,
o céu ou o inferno, não é o que pensamos de Deus,mas como nos comportamos em
relação aos outros, aos estranhos”. Existem imperativos comportamentais primordiais
na Bíblia que podem ser considerados elementos construtivos de uma ética de
convívio, e que sustentam a cultura da sensibilidade. Certamente, uma retórica
puramente moralizadora não nos salva da hostilidade, hoje tão difundida, contra os
estrangeiros; no final, seu efeito é bem mais contraproducente. Por isso, muitos
defensores da cordialidade para com os estrangeiros e do pluralismo cultural
geralmente descartam uma argumentação moral. Eles enfatizam, sobretudo, o ponto
de vista da utilidade econômica, valorizando a argumentação meramente pragmática:
“Deem atenção aos estrangeiros, pois precisamos deles, nós mesmos os chamamos,
afinal eles promovem nosso bem-estar, sem eles nossa economia entraria em
colapso...”. Por mais importantes e adequados que sejam esses pontos de vista, eles
não tornam a perspectiva moral supérflua. No caso, o estrangeiro não é mais do que
uma simples força de trabalho. E o ódio contra ele também seria condenável, mesmo
se ele não contribuísse com o Produto Social Bruto. (Logo se torna evidente que,
esporadicamente, o ódio contra o estrangeiro é transposto também aos deficientes,
idosos e enfermos, em suma, a todos que são considerados “inúteis”.)
Em longo prazo, uma vida em sociedade de pessoas de diversos mundos culturais
não poderá ser bem sucedida sem uma ética do convívio e sem uma cultura da
sensibilidade sustentada por ela. Um cristianismo que se apega às suas raízes tem
muito a contribuir para isso. E assim, a questão discutida aqui não só se torna um
teste para nossa democracia, mas também para as reservas morais do cristianismo.
II.
Sem nenhuma pretensão à perfeição, quero apenas citar aqueles dois imperativos
bíblicos de importância decisiva para uma ética no convívio intercultural. Tudo
depende da pergunta: será que os principais sistemas de valores ainda podem ser
agregados às nossas sociedades e instituições “clássicas”, ou seja, à família, à escola,
à Igreja etc., diante da sua insidiosa desagregação? Afinal, elas ainda são os espaços
mais importantes para o seu aprendizado e sua transmissão em nossa sociedade.
1. “Velar, despertar, abrir os olhos”: essa advertência sempre perpassa as afirmações
31
bíblicas. Ela pode até valer como um imperativo categórico das tradições bíblicas. De
acordo com isso, o cristianismo também deve ser, sobretudo, uma escola da visão, da
observação exata, com a crença de que se pode equipar o ser humano com olhos bem
abertos, com olhos para os outros, para aqueles que, no círculo dos rostos conhecidos,
geralmente permanecem invisíveis. Naturalmente nós, cristãos, gostamos de conferir
invisibilidade, distanciamento de percepção, “graça invisível” a coisas como Deus e
salvação. Contrariamente ao discurso corrente da “fé cega”, as tradições bíblicas, e,
sobretudo, o próprio Jesus, mantêm a sua visibilidade, estão sempre visíveis, e
possuem uma disposição e sentido de obrigação maiores em relação à percepção. Não
é a fé que nos deixa cegos, o que nos cega é o ódio, que não enxerga o outro e não
permite que enxerguemos a nós mesmos. Portanto, o cristianismo não é um tipo
especial de sonolência, como na metáfora do Novo Testamento sobre as virgens
imprudentes, nem um encantador cego de almas (cf. Mt 25,1-13).
Nessas tradições bíblicas, as pessoas são sempre caracterizadas como aquelas que
“veem, porém não enxergam” (cf. Mc 8,18) e são sempre advertidas a respeito de
seus narcisismos, seus temores elementares de uma visão mais precisa, daquele “ver”
que as entrelaça inextricavelmente com o que é visto, e não as deixa passar sem
culpa. Afinal, não só os ouvidos são órgãos de sentido da graça, mas os olhos
também.
E afinal, não existem deficiências especiais de visão hoje em dia? Qual o efeito, em
longo prazo, daquela ausência de uma comunicação face a face, “na rede”? É
justamente a constante inundação de imagens que nos deixa facilmente cegos. A
enorme velocidade em que vivemos, as trocas precipitadas nos relacionamentos e no
consumo não garantem mais uma visão confiável. Nossas percepções vão ficando
cada vez mais sem face, sem visibilidade, porque muitas vezes só conseguimos
vislumbrar tudo ligeiramente, de certa forma só olhar para as costas das pessoas e das
coisas que encontramos. O “ver”, o “olhar” precisa de um tempo só seu, ele se
fundamenta num outro ritmo, ele retira a pressa da nossa vida.
Muitas palavras e metáforas de Jesus sugerem isso, principalmente a parábola do
bom samaritano (cf. Lc 10,25-37), que nos incentiva a um exercício constante e
especial do olhar. Na estrada entre Jerusalém e Jericó, um homem é assaltado por
ladrões. O sacerdote passa por ele, olha, mas não vê; o levita passa por ele, também
olha, mas não vê. A religiosidade deles não tem olhos para o outro. Jesus insiste:
aquele que não desperta, que não abre os olhos, em suma, que não olha direito,
também não está preparado para o templo – o mistério divino está velado para ele. A
luz, a visibilidade de Deus entre nós, começa na descoberta, no ato de “ver” aquelas
pessoas que, no nosso dia a dia, gostam de se esquivar, e que por isso geralmente
permanecem invisíveis – então já nos encontramos no rastro de Deus.
O despertar, o olhar preciso, também tem sua própria dignidade moral. Sim, ele é
parte da raiz de cada moral. “Olha e saberás”, formulou uma vez o filósofo Hans
Jonas, e tornou o ato de ver, de olhar para os outros, uma raiz para uma cultura da
sensibilidade e um novo tipo de moral universalista. Segundo ele, a “consciência”
também é um conhecimento que se origina desse olhar, e não existe sem ele, sem a
32
tentativa de se encarar a face desafiadora da pobreza e o olhar sem sonhos e desejos
dos infelizes. O que chamamos de voz da nossa consciência é nossa resposta ao
tormento que enxergamos na face estranha, sofredora.
2. “Não deverás criar imagens em teu pensamento”. Esse imperativo bíblico faz
parte de uma ética do convívio. Ele nos adverte contra o pré-julgamento, as
projeções, as “transferências”. É como abrirmos o outro lado daquele primeiro
imperativo sobre os olhos abertos: quem olha também é olhado. Você não deve se
deixar dominar por clichês cegos. Deve se deixar olhar, simplesmente. Será que em
nós também não se esconde um medo elementar de ser visto, ser olhado? Quem
consegue suportar a torrente de olhares mudos, os inúmeros olhos da miséria que
gritam aos céus ou nem gritam mais porque há muito essa miséria toda sufocou sua
fala? A partir do momento em que as pessoas são “olhadas”, surge um horizonte de
responsabilidade por condições e situações não causadas por nós. Esses olhos sem
sonhos e desejos pedem uma solidariedade que vai muito além da nossa moral já
conhecida, familiar e de vizinhança.
Por que nossos debates atuais sobre a integração continuam tão assustadores? Por
que o relacionamento com os estrangeiros culturalmente diferentes sempre produzem
crises? Por que o estrangeiro é visto como perigoso, até como um inimigo? Por que
nós – como afirma essa regra bíblica de comportamento – não vamos ao encontro
desse estranho real, mas da imagem que criamos dele, e de nós mesmos nessa
imagem, na qual até nós somos estranhos e assustadores, somos nosso próprio
inimigo? A psicologia, repetindo um ponto de vista bíblico, diz que o ódio ao
estranho é a projeção do ódio a si mesmo, é uma descarga em cima do outro, do
estranho. A proibição bíblica de imagens também nos adverte contra a utilização de
estereótipos, de conceitos coletivos como “os turcos”, “os escravos”, como se em
nossa história recente não tivéssemos vivenciado a violência mortal dos estereótipos
preconceituosos, o poder destruidor dos clichês cegos: “os judeus”, “tipicamente
judeu” etc. O mandamento bíblico mais provocador, aquele do amor ao inimigo,
enfatiza que até mesmo os inimigos possuem uma face, um nome. E os estranhos? Os
que sempre cruzam nossos caminhos, as pessoas de outras culturas e outros mundos
religiosos?
“Não deverás criar uma imagem

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