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2 Índice Introdução Primeira Parte - Perspectivas teológicas Do que se trata A mística da justiça de Deus - O perfil messiânico da espiritualidade cristã Tempo e temporalidade - Sobre um problema central da teologia cristã Mística Política? - O conceito do político na nova teologia política “Teu Deus também é meu Deus” - A “sobrevivência” de Deus na morte do homem Preocupações com o perfil do cristianismo? - Um comentário sobre a liberdade de religião Segunda Parte - A mística do face a face – tentativas de aproximação Do que se trata “Velar, despertar, abrir os olhos...” Relances no magnetismo do mundo das imagens Aguçando o olhar: paixão e paixões Tantas faces, tantas perguntas Mística política do amor ao inimigo? Com o olhar do inimigo Convite a todos – face a face A vida na ordem – “com os olhos abertos” Diante das faces apagadas “Eu busco sua face” - Uma conjetura sobre a Visio Dei Beatifica “Ó Salvador, escancara os céus...” Um estímulo à oração A coragem de interromper - Teses pentecostais A história messiânica como história do sofrimento A Páscoa como experiência - Breves comentários aos textos do Novo Testamento O retorno da questão da teodiceia à linguagem da oração dos cristãos A religião traz felicidade? Mensagem de alegria? Etsi Deus daretur – A oração de um cético A cristologia da sucessão e sua mística Uma cristologia de Sábado de Aleluia A face de um teólogo: Karl Rahner Terceira Parte - Uma Igreja sem interesse em aprender? O começo de um começo? - Um olhar sobre o Concílio Vaticano II A rebelião da esperança - Lembrando o documento de um sínodo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Apêndice NOSSA ESPERANÇA - Uma decisão do conjunto dos sínodos dos bispados da República Federal da Alemanha 3 O INTRODUÇÃO objetivo deste livro é tratar, sob uma perspectiva teológica, a questão atualmente tão difundida quanto indefinida da “espiritualidade” e das “espiritualidades”. Com minha sugestão de uma “mística de olhos abertos”, pretendo não só dar voz a um perfil imprescindível da espiritualidade cristã, mas também penetrar nas discussões sobre as crises que cercam Deus, a Igreja, as religiões e os mundos seculares. Há décadas utilizo a metáfora da “mística de olhos abertos” para explicar o fundamento espiritual do meu trabalho teológico, sem poder recorrer à pesquisa específica sobre a mística e a espiritualidade. A meu ver, é muito mais importante e interessante para toda teologia fundamental o questionamento do dualismo cada vez mais aguçado entre a história da fé e a história de vida, entre o mundo da fé e o mundo da razão, entre profissão de fé e experiência – e, de certo modo, interrompê-lo teologicamente. Numa tentativa como essa, a teologia não é totalmente isenta de biografia, o que a distingue da ciência da religião e também da filosofia da religião, com seu agnosticismo metodológico. Porém de modo algum essa distinção permite à teologia utilizar sua parte biográfica para a propagação, a seu bel-prazer, de uma história privada de vida. Para isso existe um logos da teologia sensível ao tempo e ao sofrimento! A ele dedico toda a primeira parte do livro. Nesta primeira parte, trataremos inicialmente das perspectivas teológicas, das quais se ramifica o adendo sobre uma “mística de olhos abertos”. Para aqueles leitores versados em teologia e interessados em geral, quero recomendar enfaticamente que embarquem nessa viagem, e prestem atenção se as três primeiras partes se completam argumentativamente. Naturalmente, quem se sentir irritado ou desanimado com os títulos poderá saltar esta primeira parte – além da parte sobre a “Mística da justiça de Deus” – e dar prioridade ao breve texto “Seu Deus também é meu Deus...” e possivelmente ao “Comentário sobre a liberdade de religião”, para só depois, talvez, concentrar-se na segunda parte. É que ela trata de uma espécie de protocolo de um caminho: minhas “tentativas de aproximação” a essa mística, com origens bastante diversificadas e literariamente nem um pouco uniformes. Por décadas trilhei repetidamente esse caminho da aproximação – talvez por causa da minha intensa “fome de experiência”, como teólogo. A primeira parte foi reformulada completamente, porém a segunda foi documentada com textos que já haviam sido publicados numa primeira formulação, e naturalmente também com adendos até então não publicados; mesmo assim, fiz uma revisão minuciosa desses textos publicados em primeira mão e, com isso, também modifiquei ou completei-os, visando, sobretudo, a sua coerência. 4 Na terceira parte, pergunto se um dia, na Igreja, já não estivemos muito mais adiantados, mais do que nos mostra a situação eclesiástica contemporânea. Por isso busco vislumbrar um possível panorama através de um olhar teológico retrospectivo. Naturalmente ele me confrontou constantemente com a seguinte questão: por que a Igreja pós-conciliar sempre se apresentou quase exclusivamente como uma Igreja que educa, numa hierarquia mais elevada, e não como uma Igreja que aprende? Quo Vadis, Ecclesia? Meu amigo e colega Johann Reikerstorfer pressionou-me para que eu concluísse este livro o mais depressa possível. Ele compartilha a minha opinião de que a espiritualidade cristã não está aqui para se esquivar beatificamente da atual discussão sobre as crises, ou para neutralizar com serenidade as decepções com as reformas eclesiásticas não realizadas. Nesse meio tempo, muitos sentiram profundamente essas decepções, que frequentemente se transformaram em indiferença pela vida eclesiástica. Será que, neste caso, uma espiritualidade teologicamente permeada não poderia ser útil para finalmente “despertar” a espiritualidade e promover uma ação eclesiástica na qual a Igreja – que necessariamente passaria a aprender – não fosse obrigada só a recuperar o que perdeu, historicamente, nem apenas a repetir o que já existe? Como eu acredito nessa possibilidade, e como considero o perfil católico no cristianismo eclesiástico insubstituível – num sentido marcantemente ecumênico, quando se trata de finalmente nos colocarmos de “olhos abertos” diante dos desafios de uma crise da nossa época (ou de Deus) – escrevi estes textos. Novamente, sinto-me na obrigação de enviar meus agradecimentos mais efusivos a Johann Reikerstorfer. Sem sua disposição de reunir meus pedaços de textos já existentes e finalmente de ler todo o manuscrito com uma atenção dedicada, o livro não poderia ter sido concluído nesse prazo tão curto. Por causa disso, e tendo em vista outros trabalhos conjuntos, eu pedi a ele que editasse o livro. Agradeço, sobretudo, à senhora Michaela Feiertag pela perfeita finalização do manuscrito, e, finalmente, devo meus agradecimentos ao senhor Dr. Suchla, da Editora Herder, pela colaboração, por enquanto garantida, e o seu interesse especial pela temática deste livro. Münster, março de 2011 Johann Baptist Metz 5 Primeira Parte PERSPECTIVAS TEOLÓGICAS 6 N DO QUE SE TRATA esse meio tempo, “espiritualidade” tornou-se uma palavra da moda, com muitos sentidos. Num deles, ela é a expressão, que se tornou semanticamente indefinida, de um movimento de busca pela “nova religiosidade”, no outro, é o interesse por uma espécie de “função substituta” para um tempo concebido como estritamente pós-religioso. Como sempre, numa situação como essa, parece-nos importante perguntar pela essência da espiritualidade cristã. Esta primeira parte dedica-se à questão fundamental da espiritualidade teologicamente permeada, que não se afasta, de jeito nenhum, das discussões sobre as crises atuais, mas que justamente tenta preservar-se nelas. Trata-se do perfil do cristianismo e da Igreja, e do perigo de uma atemporalidade teológica e uma privatização não dialética dos seus fundamentos bíblicos; trata-se da preservação da mística de Deus no horizonte humano, no olhar sobre os processos do Iluminismo político e a secularização em nosso mundo, e no olhar sobre o pluralismo dos mundos da religião. Não se trata de uma espiritualidade mitigadora, mas uma espiritualidade que leva ao despertar, e principalmenteà abertura.1 1 Cf. nesse contexto, a terceira parte: “Uma Igreja sem interesse de aprender?”. 7 D A MÍSTICA DA JUSTIÇA DE DEUS O perfil messiânico da espiritualidade cristã1 eus caritas est, “Deus é amor” – enfatizava a primeira grande encíclica de Bento XVI. Porém existe outro nome bíblico de Deus, incluído na mensagem de Deus no Novo Testamento, e que por isso não deve desaparecer da memória dos cristãos: Deus et iustitia est, “Deus é (também) justiça”. “Este é o nome com que o chamarão... Iaweh, nossa justiça” (Jr 23,6). Para a fé cristã, a justiça não é apenas um tema político nem ético-social, mas estritamente teológico: uma mensagem da fé em Deus e seu Cristo. A justiça como um dos nomes de Deus pode parecer secundária para o discurso sobre um Deus platônico, de ideias, mas é imprescindível para o Deus da história, biblicamente testemunhado nos dois testamentos da fé cristã. Esse Deus histórico expõe a afirmação de fé “Deus é amor” à visibilidade das nossas experiências históricas e à responsabilidade concreta da nossa fé, que surge delas. Por isso o discurso cristão sobre Deus precisa ser um discurso sensível ao tempo, que não só explica e ensina, mas também experimenta e aprende. É nisso que se situa uma das origens da grande necessidade de fé de muitos cristãos de hoje, uma necessidade provavelmente mais profunda do que a linguagem da fé geralmente praticada possa considerar e perceber. Na raiz da crença bíblica de Deus sempre paira uma questão não resolvida sobre a justiça: a questão da justiça para as vítimas inocentes sofredoras da nossa história. Essa questão se refere, na linguagem erudita, sobretudo à versão teológica da assim chamada teodiceia, portanto, à questão de Deus diante da história do sofrimento no mundo, no “seu” mundo. Como podemos virar as costas para todo esse sofrimento, e nos preocuparmos apenas com nossa salvação e nossa redenção? Aquele que fala de Deus no sentido de Jesus assume o questionamento das certezas religiosas pré- estabelecidas, diante da infelicidade gritante dos outros. Nenhum ser humano tem o direito de justificar essa infelicidade dos outros. A meu ver, nada poderia ter deixado mais evidente a relação indissolúvel entre a questão de Deus e da justiça do que o fato de a Igreja, no seu mais recente concílio, ter considerado a si mesma não só como uma Igreja mundial dogmática, mas também empírica, na qual as histórias sociais e culturais do sofrimento no mundo foram introduzidas na visão de mundo de uma Igreja até então eurocentricamente nivelada e tranquila. São processos que não parecem transcorrer tranquilamente em meio às turbulências atuais da globalização, mas que ameaçam se aguçar cada vez mais sob a pressão anônima dessa globalização dos mercados. A pátria literária da relação entre a questão de Deus e a da justiça pode ser encontrada nos textos bíblicos e sua teodiceia, portanto, ali onde a história da paixão do ser humano é introduzida desde o início na mensagem de salvação da humanidade, produzida pela justiça. A linguagem dessas tradições procura dar uma memória ao grito dos seres humanos, e uma temporalidade, i.e., seu respectivo prazo, ao tempo do 8 mundo. A introdução tardia da ideia de temporalidade nas religiões e culturas do mundo por meio do apocalipse bíblico – sustentada pelo discurso dos profetas sobre as crises e pela linguagem de sofrimento dos salmos – pode ser reconhecida, por enquanto, como válida, na totalidade da história religiosa e cultural.2 Em sua essência, esses textos apocalípticos da Bíblia não são, de modo algum, fantasias levianas ou insufladas sobre o fim do mundo. São documentos literários de uma percepção de mundo em que se “revelam” as faces das vítimas, são documentos de uma visão de mundo que “vela” e “desvela” o que realmente “vem ao caso” – a tendência presente em todas as visões de mundo de se ocultar a gritante infelicidade no mundo, mítica ou metafisicamente, e toda aquela amnésia cultural que até hoje deixa invisíveis todos os sofredores do passado, e também torna seus gritos inaudíveis. O apocalipse bíblico “desvela” a trilha dos sofredores na história da humanidade. Ele pode nos estimular a formular aquela única grande narrativa, aquela única “grande história” que ainda permanece – depois da crítica da religião e da ideologia do Iluminismo, depois do marxismo, de Nietzsche e da fragmentação pós-moderna da história – ou seja, a legibilidade do mundo como história da paixão dos seres humanos. Ele formula – por assim dizer, por uma via negativa, ou seja, numa dialética negativa da memoria passionis – as origens daquele universalismo histórico que obrigatoriamente faz parte do monoteísmo do discurso cristão de Deus. Portanto, esse discurso só pode ser universal – e não só um tema da Igreja, mas também da humanidade – se for, na sua essência, um discurso sensível e de busca de justiça para o sofrimento alheio. Em seu princípio transcultural, esse universalismo seria antitotalitário e aberto ao pluralismo. “Bem aventurados os que sofrem” diz Jesus no Sermão da Montanha. “Bem aventurados os que esquecem”, anuncia Nietzsche, como profeta do pós-modernismo. Mas o que aconteceria se, um dia, as pessoas só pudessem defender-se da infelicidade e dos sofredores do mundo com as armas do esquecimento? Se um dia só pudessem construir a própria felicidade esquecendo-se impiedosamente das vítimas, portanto, uma amnésia cultural, na qual um tempo que se imagina ilimitado deverá curar todas as feridas? De onde, então, seria extraída a força para a revolta pelos inocentes e pelos que sofrem injustamente? O que, então, poderia inspirar uma justiça maior, uma luta por um “nível mais elevado do olhar” de todos os seres humanos num mundo único? E o que aconteceria se, em nosso mundo secular, a visão de uma última grande justiça se apagasse definitivamente? Se aquilo que gostamos de chamar hoje em dia de nossa “espiritualidade” não fosse mais tocado por essa visão de uma justiça de Deus (para todos, na coalizão de vivos e mortos)? Eu sei que nesse meio tempo “espiritualidade” tornou-se uma palavra da moda, quase sem conteúdo. Talvez se possa dizer que, no mundo ocidental, ela tenha se tornado um lema que designa a essência opaca de uma percepção pós-moderna de vida. Assim, ao longo do seu uso sem limites, ela perdeu quase toda a sua determinação conceitual. As confusões semânticas parecem inevitáveis. A forma como a palavra “espiritualidade” é usada hoje já se afasta multiplamente de todo 9 contexto religioso, ou semelhante à religião. Mesmo no âmbito dos mundos religiosos ela surge nas mais diversas conotações. Nessas múltiplas proposições, o que ainda podemos chamar de “espiritualidade cristã”?3 Eu gostaria de apresentar duas sugestões para a sua semântica (e para uma avaliação mais minuciosa, indicar os textos que se seguem). A meu ver, nos mundos religiosos deveríamos, por um lado, fazer a distinção entre mística e espiritualidade religiosa, e restringir o uso da palavra “mística” às religiões monoteístas, pois sua espiritualidade trata expressamente da experiência de uma proximidade especial com Deus. Por outro lado, eu gostaria de enfatizar que os cristãos – diante das oscilações de significado referentes à espiritualidade, predominantes no próprio cristianismo eclesiástico – deveriam levar em conta outra orientação básica. Os cristãos são sempre lembrados da característica messiânica fundamental do cristianismo e sua espiritualidade, por meio da mencionada relação indissolúvel da questão de Deus com a da justiça. Nesse sentido, estamos nos referindo ao “perfil messiânico da espiritualidade cristã”. O que quer dizer isso? O primeiro olhar de Jesus é um olhar messiânico. Ele não se destina, em primeiro lugar, aos pecados dos outros, mas aos seus sofrimentos. Essa sensibilidade messiânica ao sofrimento não renega o peso bíblico da culpa e do pecado.4 A ênfase nessa perspectiva messiânica da mensagem do Novo Testamento pretende ser um corretivo diante de um absolutismo unilateral do pecado, que sempreressurge na história da Igreja (como o último, mas não menos importante sermão aos “pequenos e inocentes”) e que depois, na modernidade, levou a um perigoso antagonismo entre consciência de liberdade e consciência de pecado e à deturpação do conceito de “pecado” para o de “culpa”. Essa sensibilidade messiânica ao sofrimento não tem nada a ver com plangência, com um culto tristonho ao sofrimento, mas tem tudo a ver com uma mística bíblica de justiça: paixão por Deus como empatia pelo sofrimento alheio, como mística prática da compaixão. Um cristianismo que se apega à sua raiz bíblica volta sempre a se deparar com isso. Enfatizo tão expressamente essa empatia pelo sofrimento alheio derivada da paixão por Deus porque, na sua mensagem, o cristianismo já teve, desde cedo, muitas dificuldades com a sensibilidade elementar ao sofrimento. No processo teológico do cristianismo, a meu ver, a questão – profundamente inquietante para as tradições bíblicas – da justiça para os inocentes sofredores foi transformada depressa demais na questão da salvação dos culpados. A doutrina cristã da salvação dramatizou a questão do pecado e negligenciou a questão do sofrimento. Mas será que isso não paralisou a sensibilidade elementar pelo sofrimento dos outros e não obscureceu a visão bíblica da grande justiça de Deus que, segundo Jesus, deveria valer para toda e qualquer fome e sede? Será que os cristãos não se afastaram depressa e cedo demais da questão bíblica da justiça? Será que o cristianismo – ao longo do tempo – não se considerou exclusivamente demais uma religião sensível ao pecado e muito pouco sensível ao sofrimento? Por que a Igreja encontra mais dificuldade em lidar com as vítimas inocentes do que com os malfeitores culpados? Será que não expulsamos da nossa 10 linguagem de fé cristã, depressa e tranquilamente demais, os gritos que soam na história do insondável sofrimento humano no mundo? Essa pergunta não deve ser considerada meramente especulativa, e nem com apelo moral. Ela toca na própria concepção de direito e de constituição da nossa Igreja. Será que existe uma concepção eclesiástica de direito, colocada sob a primazia de uma justiça salvadora para as vítimas inocentes sofredoras e, finalmente, também para os malfeitores que sofrem com a culpa?5 Ou será que isso continua bloqueado por causa da persistente sobreposição do antigo direito romano sobre nosso direito eclesiástico? Até hoje fiquei devendo um acompanhamento mais preciso dessa questão da relação entre justiça e direito, entre a justiça escatológica de Deus e o direito eclesiástico (justamente no interesse da nova teologia política), certamente por causa da minha falta de competência jurídica, mas talvez também por causa da minha falta de coragem civil teológica. Em todo caso, a fé cristã é uma fé que busca a justiça. Certamente por isso os cristãos também são místicos, mas não exclusivamente místicos no sentido de uma experiência espiritual pessoal, porém no sentido de uma experiência espiritual de solidariedade. Eles são, sobretudo, “místicos de olhos abertos”. Sua mística não é uma mística natural, sem face. Ela é muito mais uma mística que busca essa face, que leva esses místicos ao encontro do outro, sofredor, ao encontro da face dos infelizes e vítimas do mundo. Ela obedece, em primeiro lugar, à autoridade dos sofredores. Para essa mística da justiça que busca uma face, a experiência que desabrocha dessa obediência e se define nela torna-se um modelo terreno da proximidade de Deus com seu Cristo: “‘Senhor, quando foi que te vimos com fome...’ Ao que lhes responderá o rei: ‘Em verdade vos digo, cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’” (cf. Mt 25,31-46). Essa mística da compaixão não tem como objetivo exclusivo uma experiência sem olhos, direcionada ao interior, mas aquela experiência da “interrupção”, introduzida pela situação “face a face”, na relação com o outro. Ela é, ao mesmo tempo, mística e política.6 Ela é “mística” na medida em que pode ser o início de uma experiência de Deus, no mínimo uma espécie de “atmosfera de Deus”.7 Ela é e continua sendo ao mesmo tempo “política”, porque nessas “interrupções” interpessoais, os outros, feridos e vulneráveis, poderão ser percebidos (tornando-se visíveis) numa última invulnerabilidade, impressa por toda nossa ação política. Portanto, essa mística política não é uma mística da política ou dos políticos, assim como Jesus não foi um político. Mas essa mística é, sim, política, assim como Jesus não é, de modo algum, apolítico em sua mensagem.8 Essa mística política da compaixão não é um convite ao heroísmo ou a uma santidade excepcional. Ela pretende ser razoável com todos, e dar um significado de estruturação futura à virtude básica dos cristãos e às formas de comunidade marcadas pelo princípio da paróquia popular-territorial da Igreja; comunidades nas quais a história da fundação do cristianismo (no caso a comunidade dos seguidores de Jesus, reunida para lembrar e contar histórias durante a ceia eucarística) se repete diante dos olhos do mundo, e a crença nela, sempre buscando a justiça, evita que se transforme 11 numa seita. Com essa conotação bíblico-apocalíptica e seu pathos de justiça, o cristianismo sensível ao tempo e ao sofrimento preocupa-se também com a luta por uma autoridade reconhecida universalmente, numa sociedade mundial estritamente pluralista. Será que existe, por exemplo, uma autoridade que esteja à frente, ou na base de todos os processos de consenso, e que seja uma autoridade com a qual todos possam concordar, sem violência? Existe também, no modernismo esclarecido, algo como um direito racional universal, que leve em conta o pluralismo? A pista revelada pelas tradições judaico-cristãs diz: é a memória passionis, a lembrança do sofrimento alheio, que garante o caráter humano da nossa moderna racionalidade. Essa memória passionis, em sua dialética negativa, é a tentativa teológica de formular um direito racional universal, que leve em conta o pluralismo (inclusive tendo em vista uma fundamentação no direito humano).9 No final, o que impede que o mundo globalizado sucumba à eclosão de combates incontroláveis entre religiões e culturas, por exemplo, de um lado o cristianismo, de outro o Islã – de um lado o Ocidente e de outro o mundo oriental? O que poderá manter a paz neste mundo? A proposição da igualdade elementar de todos os seres humanos, essa mais forte suposição a respeito da humanidade, possui um fundamento bíblico.10 Seu lado prático, tal como aceito pelo cristianismo e anunciado pela mensagem da unidade indissolúvel do amor de Deus e ao próximo, da paixão de Deus e da compaixão, diz o seguinte: não existe sofrimento no mundo que não nos diga respeito.11 Assim, essa proposição da igualdade elementar de todos os seres humanos nos remete ao reconhecimento de uma autoridade acessível e racional para todas as pessoas, uma autoridade dos sofredores, das vítimas inocentes que sofrem injustiças. Ela visa uma autoridade que, diante de qualquer escolha ou entendimento, garanta o compromisso de todas as pessoas, sim, todas, religiosas ou seculares, e que por isso não possa ser iludida e relativizada por nenhuma cultura humana contrária à igualdade de todas as pessoas, por nenhuma religião, e nem mesmo pela Igreja. Por isso o reconhecimento dessa autoridade transcultural seria um critério para o discurso religioso e cultural nos relacionamentos globalizados. Finalmente, ela seria a base de um ethos de paz para um relacionamento global estritamente pluralista. Mas será que, de acordo com isso, o secularismo moderno não permaneceria – no sentido de uma “dialética da secularização” – atrelado a uma visão não passível de secularização, ou seja, a visão de uma igualdade definitiva de todos os seres humanos, em sua dignidade e responsabilidade na vida? Será que essa visão não se direciona de fato apenas a uma justiça do vencedor, apenas a uma igualdade sem destino dos “últimos seres humanos”? Ou essa visão ainda não foi tocadapor aquela “mística da justiça de Deus”, tal como expressa na mensagem bíblica da ressurreição dos mortos e do Juízo Final? Deus caritas est, Deus et iustitia est. O que Deus uniu, nem o cristianismo pode separar. Daí o seu caminho, o seu “curso” (Paulo) pela história, como história – com as experiências de não identidade e a mística cristã de 12 uma justiça de Deus salvadora.12 1 Nesse formato, ainda não publicado; parcialmente impresso em: Die Zeit, de 15 de abril de 2010. 2 Cf. o capítulo: “Tempo e temporalidade. Um problema central da teologia cristã”. 3 Cf. meu prefácio a J. D. PRINZ, Endangering Hunger for God. Johann Baptist Metz and Dorothee Sölle at the Interface of Biblical Hermeneutik and Christian Spirituality, Münster, 2007, XV-XX. 4 Cf. Memória passionis, passim, Exkurs, § 11. 5 Quem admite de antemão a suspeita de que nem tudo pode ser redimido, a favor da empatia humana de Deus, também admite o próprio Deus redentor. A suposição de que tudo será redimido expressa uma suposição de inocência de todos os seres humanos, o que torna supérflua toda mensagem de redenção. Essa suposição subtrai toda seriedade e dramaticidade da nossa livre responsabilidade histórica. (Cf. Unsere Hoffnung[Nossa Esperança] I, 4.) 6 Caso ainda possamos perguntar (na pós-modernidade) à teologia quais são seus interesses, o NT já nos responde, com a “Fome e sede de justiça”, aliás, com uma justiça integral para todos; o interesse nessa justiça integral de Deus faz parte, na prática, das premissas da teologia. 7 A “interrupção” que surge na situação face a face é o fundamento perceptível de que Deus é aquele Deus maior, aquela maior possibilidade (cf. a fórmula de analogia no 4º Concílio Lateranense, da maior dissimilitude, em toda imagem semelhante a Deus, nos homens). 8 Para o uso do conceito “mística política”, cf. o texto incluso nesta primeira parte: “Mística política? O conceito do político na nova teologia política”. 9 Veja as diversas passagens em Memória passionis, especialmente a partir do § 14. 10 Não é a morte que confirma a ideia de igualdade de todos os seres humanos, mas a transcendência da justiça de Deus em seu Juízo Final. Só ele garante a igualdade elementar de todos os seres humanos em sua dignidade e também sua responsabilidade ao longo da vida, uma igualdade que não é prerrogativa dos tardios vencedores de uma história de sucesso humano, mas vale para todos, na grande coalizão de vivos e mortos; ela é uma igualdade de todos os seres humanos, considerando-se as mais diversas condições de vida e de atuação, uma igualdade que não flexibiliza a responsabilidade concreta na vida do indivíduo, nem a ignora. As tradições bíblicas e eclesiásticas falam de uma justiça de Deus que promove a visão dessa igualdade, uma justiça que não visa à retaliação, mas à salvação. 11 Essa proposição foi formulada anteriormente por Peter Rottländer, meu amigo fiel e antigo assistente. 12 Não foi levada em consideração, neste caso, uma aproximação à “mística da justiça de Deus” com raiz na Bíblia, sobre partes importantes da literatura da sabedoria do Antigo Testamento; porém está previsto um texto de complementação a esse assunto. 13 E TEMPO E TEMPORALIDADE Sobre um problema central da teologia cristã u também poderia ter dado o seguinte título a este capítulo: “A salvação da honra do apocalipse bíblico – diante dos que o desprezam, teologicamente”. Ou então: “Sobre uma tardia (ou adiada) reabilitação do nominalismo”. Mas as duas sugestões soariam estranhas demais. O que quero dizer com a formulação: “Sobre um problema central da teologia cristã”? Vamos avançar passo a passo. O que liga este texto às reflexões anteriores sobre a “mística da justiça de Deus”? Trata-se de um esclarecimento cautelar sobre a demanda de universalidade do discurso bíblico de Deus nos nossos tempos. Universalismo teológico na era do pluralismo reconhecido oficialmente? Será que a teologia não estaria se afastando do âmbito de competência da razão crítica moderna? Será que não é a renúncia a toda possibilidade de uma comunicação entre a crença baseada nesse discurso bíblico de Deus e a moderna razão crítica? Mas essa demanda de universalidade do discurso bíblico de Deus não pretende remetê-la nem apenas reduzi-la à razão crítica; ela só pretende “elaborar” ou concretizar sua universalidade (imaginada no logos grego) de forma temporal e sensível ao sofrimento, para garantir o caráter humano dessa moderna razão crítica. Quanto a isso, parto da ideia sustentada pela ciência da religião, de que a temporalização do tempo na verdade só penetrou na história da religião e da cultura por meio do apocalipse bíblico, com a história do sofrimento nele articulado.1 A meu ver, esse surgimento tardio da ideia de temporalidade no apocalipse bíblico, essa relevante passagem teórico-temporal do “tempo eterno” à temporalização, i.e., à fixação de prazos, pode ser vista como característica exclusiva da religião judaico- cristã, no âmbito da história das religiões da humanidade. Essa ideia bíblica da temporalidade era desconhecida não só dos (pré) asiáticos, mas também dos contextos religiosos e culturais greco-mediterrâneos. Isso vale tanto para o “tempo eterno” dos pré-socráticos (renovado quase pós-modernamente por F. Nietzsche) quanto para o “cosmo eterno” do classicismo grego. Naturalmente a história de Jesus é uma história apocalíptica, na qual a abstrata universalidade da razão (grega) é transformada definitivamente em tempo e história. Aliás, essa mudança não foi pensada na logocultura de Atenas, mas na cultura anamnésica de Israel, onde se tinha uma consciência de temporalização, algo que devia parecer aos gregos uma “tolice” (1Cor 1,23). O discurso bíblico de Deus acabou com o sortilégio do “tempo eterno”. A questão que me preocupa é a seguinte: será que o cristianismo, na sua evolução teológica, não abandonou depressa demais esse pensamento apocalíptico da temporalidade? Será que a teologia cristã não tentou superar o problema da assim chamada postergação parusiana, a crise da assim chamada esperança próxima, do 14 antigo cristianismo, eliminando totalmente a temporalização das atitudes de esperança, e, sobretudo, idealizando-as (portanto generalizando-as, na ausência de temporalização) com ajuda das categorias do médio platonismo? Será que assim já não se inicia uma funesta eliminação da temporalização de todo o mundo conceitual teológico? Não apenas os platônicos cristãos, mas também os aristotélicos teológicos – como Tomás de Aquino – tinham muita dificuldade em lidar com essa temporalização do seu mundo, para não caírem no dualismo gnóstico do tempo sem salvação e da salvação sem o tempo, aquele dualismo que ameaça a história da teologia do cristianismo desde o início (até hoje).2 Nesse contexto, podemos lembrar também o comentário de H. Blumenberg, de que até mesmo a grande teologia medieval com sua doutrina da analogia não conseguiu superar o dualismo gnóstico.3 Será que a alteração radical histórico-conceitual no assim chamado nominalismo (teológico) não introduziu uma transposição – mesmo muito incerta,4 quanto à sua categoria – à temporalização a fim de afastar o perigo de um engano semântico na linguagem da teologia cristã?5 Para a teologia cristã, essa alteração nominalista (múltipla, até hoje) pode ser considerada, na sua totalidade não dialética, como o início de uma história de declínio da razão e do pensamento em geral. Ela mal quis reconhecer esse nominalismo como o surgimento desse pensamento, biblicamente inspirado, no horizonte do tempo temporalizado, e como uma entrada – naturalmente ainda não amadurecida, quanto à sua categoria – nos primeiros processos históricos de aprendizado da Idade Moderna. Será que, na verdade, para a teologia cristã, o que deveria ser dito é: Hic Logos, hic salta? Mas diante dessa avaliação teológica habitual do nominalismo, temos a impressão de que a teologia cristã levantou com o pé errado na alvorada da Idade Moderna. Por isso, a meu ver, a recuperação teológica da essência temporale histórica do cristianismo não pode ocorrer por meio de uma escatologia, numa identidade lógica purificada de todas as experiências de interrupção, mas apenas por uma ideia de não identidade tocada pelo apocalipse bíblico e sua teodiceia, e que preserve uma memória do grito das pessoas e de uma finitude no tempo da humanidade. Será que, com a tentativa de retirarmos o tempo do nosso mundo conceitual da teologia e sua total idealização não jogamos fora o bebê junto com a água do banho? O que ainda significa para nós “velar”, “esperar” ou “ter expectativas”? Finalmente, o que significa “ter esperanças” e “sentir falta”, no horizonte de um tempo estritamente isento de temporalidade? Qual é a esperança que celebramos em nossas liturgias (“... até chegares em toda glória”)? Será que, enquanto isso, oferecemos aos cristãos do mundo o espetáculo de pessoas que, apesar de falarem de esperança em Deus e no seu “reino”, na verdade não esperam mais nada? Será que ainda esperamos um fim, um fim para toda a humanidade – e não apenas para o indivíduo, na situação isolada “sem esperanças” da morte individual?6 O que significam todos esses conceitos diante da sistemática retirada da temporalização do mundo conceitual da teologia? Será que há muito não relegamos ao reino do mito a expectativa de um fim universal, porque, para nós, o tempo em si tornou-se uma eternidade vazia, livre de surpresas, e porque, 15 por causa disso também, nunca mais haverá tempo para o final dos tempos? Na questão da temporalidade do tempo, não se trata apenas do “meu” tempo, mas também do “seu” tempo, finalmente, do tempo de todos os outros; e na questão do “final do tempo” não se trata apenas da “minha” morte, mas também da “sua” morte, da morte de todos os outros. Portanto, a matriz da esperança cristã não é o tempo de vida isolado de cada um, mas sempre também, e inevitavelmente, o tempo dos outros. Não apenas o próprio declínio na morte, mas o declínio dos outros; a morte dos outros é que mantém viva a intranquilidade sobre o fim do tempo nos nossos corações. A temporalização do logos da teologia cristã aqui cobrada é uma “relativização” contrária à verdade apenas para aquele que possui uma relação com a verdade sem temporalidade, idealizadora, inconveniente para o caráter de evento temporal da mensagem cristã. Uma Igreja que professa a humanização de Deus na história não deveria apenas ensinar aos fiéis qual é a vontade do Deus que se tornou homem, mas também “estudar”, ela mesma, essa vontade divina nas experiências históricas. Por exemplo, não seria uma primeira etapa de aprendizado da Igreja não deixá-los esquecer que, em Jesus Cristo, Deus não se tornou simplesmente “humano”, mas judeu? Não nos parece que a nossa teologia cristã de hoje teria preferido que Deus tivesse se tornado “grego”? Na Suábia, dizemos de algo que aconteceu há muito tempo: “Já faz tanto tempo que logo não será mais verdadeiro”. Não podemos nos esquivar teologicamente da consequência desse ditado mencionado por Hegel,7 respondendo à questão da relação entre a verdade e o tempo com a idealização atemporal da verdade (Atenas), porém só levando em conta os preceitos de temporalização da noção de verdade (“fidelidade”) nas tradições bíblicas (Jerusalém),8 e assim nos colocando, a nós mesmos e nossas atitudes cristãs, sob a pressão do tempo. A temporalização do logos (da teologia) não leva, de modo algum, ao abandono imprudente de um passado com laços afetivos. Nessa temporalização há o trabalho da dialética da razão anamnésica (dotada de memória): na configuração de uma consciência de sentimento de ausência, na criação de passados abertos, e na configuração de lembranças perigosamente libertadoras ao futuro da humanidade.9 Nesse contexto, tomo a liberdade de acrescentar um pequeno texto de 1970.10 Memória libertadora de Jesus Cristo: nós a celebramos no meio de uma sociedade cuja consciência e formas de vida são cada vez menos marcadas pela lembrança. Em proporções crescentes, as tradições estão perdendo seu poder de determinação da vida e sua força direta de compromisso, e, frequentemente, ainda servem apenas como cenário de uma eventual celebração, como interpretação da existência. Nosso mundo, administrado de forma técnico-científica, está ficando cada vez mais sem história. A tradição está se tornando um material de crítica histórica distanciada, e o futuro, um objeto exclusivo do planejamento tecnológico. O passado parece ter perdido definitivamente a capacidade de estabelecer laços, e o futuro, o seu mistério. Mas justamente o exame crítico das nossas tradições tinha todo fundamento. Na 16 prática, ele nos libertava das falsas opressões. No caso, não se deve, de jeito nenhum, restringir sua legitimidade, ou imprescindibilidade. Só uma relação crítica com o passado, e não romântica ou doutrinária, pode preservar sua herança tão valiosa e desvalorizada. Porém, essa crítica não pode ignorar que lembrança e tradição são inerentes a todo reconhecimento crítico. Hoje o perigo consiste em igualarmos à superstição e relegarmos ao bel-prazer privado e à ausência de apego do indivíduo tudo o que é determinado pela lembrança e a tradição em nossa consciência, e que não obedece ao cálculo da nossa razão técnico-pragmática. Mas, com isso, o ser humano não se torna mais livre. Ele sucumbe mais facilmente às ilusões dominantes, aos “contextos ofuscantes” do seu presente sem passado. Ele se torna vulnerável à sedução, de uma nova maneira. De repente ele se curva ao feitiço das ideias e atitudes predominantes da atualidade. Em relação ao nosso mundo, deve-se explicar o que significa a fé cristã como lembrança de Jesus Cristo. Nesse caso, essa fé poderia se expressar como uma lembrança perigosa, que nos desperta, assustados, da precipitada reconciliação com os “fatos” da nossa atualidade unidimensional. Nela, a fé cristã poderia se expressar como uma lembrança que nos deixa livres para sofrermos o sofrimento dos outros, apesar da negatividade do sofrimento em nossa sociedade parecer cada vez mais intolerável; como uma lembrança que nos deixa livres para a contemplação, apesar de parecer que estamos sempre, nos recônditos espaços da consciência, hipnotizados com o trabalho, o desempenho e o planejamento; como uma lembrança que finalmente nos deixa livres para calcular nossa finitude e nossa dubiedade, apesar de nossa vida pública estar sempre à mercê da sugestão de uma vida cada vez mais “perfeita”. Aqui a fé cristã poderia se expressar como uma lembrança que nos deixa livres para levarmos em conta os sofrimentos e a esperança do passado, para enfrentarmos o desafio de não deixarmos de ser solidários com os mortos, aos quais nos juntaremos amanhã, e para quem uma sociedade avançada, que acredita apenas no planejamento, só tem perturbações, ceticismo ou esquecimento. Nisso tudo se revela algo daquilo que poderíamos chamar de liberdade crítico-social da memória cristã. “A lembrança do passado”, diz o filósofo Herbert Marcuse, “pode trazer à tona visões perigosas, e a sociedade estabelecida parece temer os conteúdos subversivos da memória”. Não é à toa que a destruição da lembrança constitui-se numa medida típica do domínio totalitário. Os modernos cínicos do poder político e tecnocrático sempre se confrontam com a memória de Jesus Cristo, que não empresta sua força perigosa e libertadora a nenhum poder que se sobreponha ao poder da verdade e do amor, tal como surgiu em Jesus Cristo. No final, ela não cria nenhum vínculo além daqueles que a ligam aos pensamentos oniricamente coloridos, às ideias destituídas, reprimidas e combatidas, às expectativas inconformistas e renitentes e às esperanças mortalmente ameaçadas das pessoas. E isso já é o bastante. 1 Cf., por exemplo, Norman COHN, Die Erwartung der Endzeit. Vom Ursprung der Apokalypse, Frankfurt a. M., 1997. Cohn enfatiza a cesura qualitativa nos apocalipses judeus diante de certos supostos sintomas apocalípticos – Zaratustra! – no antigo Oriente. Cf. p. 216. 2 A concepção histórica das tradições bíblicasnão é, em sua essência, marcada pelo dualismo. Na verdade, não existe uma história do mundo “natural” e além dela uma história “sobrenatural” de salvação. Existe somente aquela única história, e a história da salvação é aquela história do mundo na qual os passados inconclusos e uma esperança num tempo final são defendidos para todos. Veja também, sobre isso, o artigo de E. Jüngel (nota 7). 3 Cf. H. BLUMENBERG, “Säkularisierung und Selbstbehauptung”. Nova edição ampliada e revista de Die Legitimität der Neuzeit, primeira e segunda 17 partes, Frankfurt a. M., 1974. 4 Cf. sobre isso, o trabalho ainda muito importante, para mim, de J. GOLDSTEIN, Nominalismus und Moderne. Zur Konstituiton neuzeitlicher Subjektivität bei Hans Bumenberg und Wilhelm Von Ockham, Freiburgo em Breisgau, Munique, 1998. Cf. também, sobre Goldstein, a seguinte nota 5. 5 Já tentei explicar essa mudança nominalista na minha obra “Christliche (n) Anthropozentrik” (Munique, 1962) não como habitualmente uma decadência do tipo de pensamento histórico, mas como sintoma da história, biblicamente inspirada, de um surgimento. Cf. “Ein sekundärer Nominalismus?” em: Memoria passionis, p. 44-48. Antes disso, “Verzeitlichung von Ontologie und Metaphysik”, em: Zum Begriff § 8. Para o todo, cf. também J. GOLDSTEIN, “Bemerkungen zur nominalistischen Tiefengeschichte der Neuen Politischen Theologie”, em: Jahrbuch Politische Theologie 2, 1997, p. 173-187. Sobre o peso das análises histórico-conceituais, cf. os trabalhos de R. KOSELLECK, p. e. Begriffsgeschichten, stw (Suhrkamp Taschenbuch Wirtschaft), Editora Suhrkamp, 1926, Frankfurt a. M., 2010; e também “Begriffene Geschichte – Beiträge zum Werk Reinhard Kosellecks”, ed. H. JOAS e P. VOGT, stw (Suhrkamp Taschenbuch Wirtschaft), Editora Suhrkamp, 1927, Frankfurt a. M., 2010, e nisso também o texto de H. Joas, onde ele aponta criticamente que, em Koselleck, apesar da sua “compreensão da história, radicalmente consciente das contingências... encontra-se a ideia simplificadora de um processo constante de secularização” (p. 330). Para mim, isso ocorre porque Koselleck não utiliza o conceito de “dialética” (como crítica de ausência de tempo e história). Sobre a “dialética da secularização”, cf. o capítulo seguinte “Mística política? O conceito do político na nova teologia política”. 6 Cf. as reflexões no capítulo “Seu Deus é também meu Deus. A ‘sobrevivência’ de Deus na morte do ser humano”. Sobre o tema “orar e observar”, cf. também a nova redação do meu texto “Estímulo à oração”, na segunda parte do livro. 7 Citado em E. JÜNGEL, “Wirkung durch Entzug. Eine theologische Anmerkung zum Begriff der Wirkungsgeschichte”, em Internationales Jahrbuch für Hermeneutic, vol. 7, Tubinga, 2008, p. 23-38. 8 Cf. Memoria passionis § 2,2; § 16; § § 7-10. É pena que M. Heidegger, em seu tema do centenário “Ser e tempo”, não tenha consultado o apocalipse bíblico, mas os pré-socráticos. 9 Veja o discurso sobre a principal razão dialética no âmbito da “Cristologia do seguimento e sua mística” no correspondente capítulo. 10 De: Befreiendes Gedächtnis Jesu Christi, Mainz, 1970, p. 12-16. 18 O MÍSTICA POLÍTICA? O conceito do político na nova teologia política texto anterior já define a “mística da justiça de Deus” como uma “mística política”. Para evitar confusões semânticas, falsas cobranças ou condenações crítico-ideológicas, devemos falar brevemente do citado “conceito do político”. Comecemos com uma simples (demais?) diferenciação, ou seja, com a diferenciação entre a antiga teologia política, de certo modo “clássica”, e a nova teologia política. A primeira desenvolve-se num espaço de tempo que vai do estoicismo até Carl Schmitt, e seus desdobramentos no século XX.1 Apesar de essa teologia política de estado sempre ter atraído e continuar atraindo as atenções, sobretudo em tempos de maior incerteza, foi o próprio Carl Schmitt (1963) que deu a última palavra sobre o assunto: “A época do estadismo está no fim. Não se deve mais perder tempo com isso”.2 Seria bom se os irmãos pios e seus simpatizantes no Vaticano também soubessem disso! Mas eles continuam a praticar amplamente a teologia política como uma visão de mundo estatizada – na busca pelo “estado católico”. E no que se refere à nova teologia política, falo, sobretudo, da situação na teologia católica, naturalmente sempre com uma proposta ecumênica. Por causa da minha promessa de ser breve, expressa no início deste capítulo, permito-me descrever resumidamente essa nova teologia política do ponto de vista da minha biografia teológica. Ela é marcada sobretudo por um nome, o do meu professor e amigo Karl Rahner. Com sua “transição antropológica” do discurso sobre Deus, ele levou a teologia católica a um confronto crítico-produtivo com o espírito da modernidade, como nenhum antes dele. Os questionamentos críticos a Rahner não se referem à “transição antropológica” como tal, mas à forma como é conduzida.3 A meu ver, ela não pode ser praticada de uma forma apenas filosoficamente consciente – portanto, a estilo de uma ideia de identidade transcendental, individualmente assimilada –, mas deve levar em conta o ser humano na história e na sociedade, i.e., a estilo de uma noção dialética de temporalidade. Talvez eu devesse ter definido essa preocupação como uma forma de “teologia dialética” (na qual a “dialética” se relacionasse, sobretudo, à crítica da ausência do tempo e da história no logos da teologia cristã), mas eu falei exclusivamente de uma “teologia política”, despreocupado demais com a pressão semântica que a teologia política “clássica” (desde o estoicismo até Carl Schmitt) exerceria sobre esse conceito. Em todo caso, a nova teologia política utiliza o conceito com um propósito estritamente teológico. No princípio, ela se chamou “política” para a caracterização da sua contestação contra uma teologia católica pós- escolástica que, com uma tendência à privatização e individualização não dialéticas de seu logos (que enquanto isso passou pela transição antropológica), tentou superar 19 os desafios do Iluminismo político, sem ter passado através dele. No caso dessa nova teologia política, tratava-se, desde o início, de uma nova avaliação teológica dos processos do modernismo já em implantação na escolástica tardia e, sobretudo, no nominalismo, e especialmente dos processos do Iluminismo político com a transição, a ele agregada, do conceito de “político”, sem que a nova teologia política realizasse uma adequação não dialética, cega às contradições internas desses modernos processos de aprendizado. Jürgen Habermas, em sua recente entrevista com Eduardo Mendieta, confirma que, para ele, também existem dois tipos de teologia política, uma anti-iluminista e – tendo em vista a nova teologia política – outra que aceita as tradições do Iluminismo e que, em sua “sensibilidade ao tempo”, pode constituir uma ponte da filosofia para a teologia contemporânea.4 Meu questionamento crítico a Habermas refere-se à sua caracterização não dialética do pensamento “temporal” por meio da palavra “pós” – pós-tradicional, pós- metafísico, pós-secular –, como se “tradição”, “metafísica” e também “secularização” não tivessem mais nenhum tipo de atuação na atualidade. Com essa observação crítica, a nova teologia política não pretende questionar novamente sua aceitação dos processos de aprendizado da razão moderna e o resultante Iluminismo político, mas apenas chamar a atenção para ele. A meu ver quando, em nome do Iluminismo, a razão moderna tenta se afastar completamente da dialética histórica da memória e do esquecimento, a fim de deixar para trás qualquer “dialética do Iluminismo”, ela está forçosamente baseando os modernos processos de Iluminismo no esquecimento, e, sem querer, estabilizando a amnésia cultural existente hoje em dia, com sua extremamente fraca consciência daquilo “que falta”, daquilo que “clama aos céus”.5 Fortalecer essa consciência e mantê-la alerta faz parte do “político”, na época atual da sua coletividade, portanto também do “conceito do político” nanova teologia política, que distingue muito bem a secularização do estado da dialética da secularização na sociedade. Por isso ela não considera, de jeito nenhum, uma “religião burguesa” surgida na corrente da adequação não dialética aos processos sociais de Iluminismo como uma repetição convincente da história da fundação do cristianismo na modernidade europeia,6 e também não simplesmente como a procurada meta dos processos eclesiásticos de aprendizado e renovação.7 O famoso “Axioma de Böckenförde”, pelo qual o secular estado democrático de direito vive de pressupostos que ele mesmo não consegue garantir, não se refere diretamente à religião, para essas garantias, mas à sociedade, da qual naturalmente J. Habermas também diz que: “O conceito do ‘político’ transferido do estado à sociedade civil garante uma relação com a religião, inclusive no interior do secular esta- do constitucional”.8 O mandamento da neutralidade no mundo vale para o estado, mas não da mesma forma para a socieda- de. E.-W. Böckenförde fala de uma “neutralidade aberta”. Como sempre, o mandamento restrito ou aberto da neutralidade do estado não vale também para os 20 cidadãos do estado. Por isso o “político” da nova teologia política engloba muito mais do que “a política” do estado democrático de direito. Ele engloba não só a “ética da responsabilidade” de políticos democráti- cos, mas também correntes de uma “ética de mentalidade”, para evitar que na vida política, na inevitável pragmática da política, “a chama da mentalidade pura” (M. Weber) simplesmente se apague. Inclusive as utopias sociais, as sugestões sociocríticas motivadas pela religião, as iniciativas da ciência, da literatura, da arte etc. devem ser acessíveis aos discursos públicos no estado democrático de direito, como politicamente legítimas. 1 Para mais detalhes, cf. Memoria passionis § 18. 2 Citado em R. SPAEMANN, “Legitimer Wandel der Lehre”, em FAZ, 1/10/2009, p. 7. 3 Cf. mais adiante: “A face de um teólogo: Karl Rahner” (Sobre a fidelidade teológica a Karl Rahner. Trecho de uma carta). 4 Deutsche Zeitschrift für Philosophie 58, 2010, 1ª ed., p. 3-16. 5 J. HABERMAS, “Ein Bewsstsein von dem, was fehlt”, em M. REDER; J. SCHMIDT (orgs.), Ein Bewusstsein von dem was fehlt. Eine Diskussion mit Jürgen Habermas, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2008, p. 26-36, 31; e também Memoria passionis § 5. 6 Cf. J. B. METZ, Jenseits bürgerlicher Religion. Reden über die Zukunft des Christentums, Mainz, 1980. 7 Cf. os detalhes na terceira parte. 8 Cf. nota 4. 21 U “TEU DEUS TAMBÉM É MEU DEUS” A “sobrevivência” de Deus na morte do homem m amigo estrangeiro, gravemente enfermo, confessou-me há pouco: “Quero estar lúcido quando morrer, se o meu Deus morrer comigo”. Minha tardia tentativa de resposta foi: “Essa frase quer dizer que o ‘meu Deus’ também vai morrer com você? Se minha suposição estiver correta, você está proclamando uma sentença de morte a Deus. E ela quer dizer o seguinte: se o ‘seu’ Deus é de fato Deus, então ele só é o ‘seu’ Deus se também for o ‘meu’ Deus, portanto, também sempre o Deus ‘dos outros’, na verdade o Deus de ‘todas as pessoas’. E só quando você ‘desprivatizar’ seu Deus, nesse sentido, o ‘seu’ Deus poderá ser para você algo mais e diferente do que apenas sua própria projeção, do que seu desejo particular, que será enterrado com você. Portanto, fico com minha objeção, por sua e minha causa”. Nós nos separamos com um longo aperto de mãos. E depois disso eu ainda anotei – resumidamente: – Como devoto, depender da fé dos outros não é uma fraqueza de fé. – Existe uma transcendência de Deus para cada morte individual. O Deus bíblico não é apenas um tema particular de cada um, mas – assim como a morte, o sofrimento e a culpa – um tema da humanidade, um tema “universal” que a teologia deveria formular sempre de novo, absolutamente livre de violência e aberto ao pluralismo. A meu ver, esse discurso sobre Deus naturalmente só pode ser “universal”, nesse sentido, quando se realiza “à altura dos olhos” – como um discurso sensível às faces dos outros e à busca da grande justiça, com paixão e misericórdia. – Será que tudo isso não é “antropocêntrico” demais? O que acontece com o outro mundo, sobretudo o mundo dos animais? Foi o que me perguntaram, recentemente. Minha tentativa de resposta foi: só posso esperar que o “antropocentrismo cristão” tome consciência logo, e de forma consequente, de que o mundo dos seres humanos, desde o início, não existe sem o mundo dos animais. E que por isso os animais, pelo menos enquanto pertencerem ao mundo dos humanos, também têm um futuro “paradisíaco”. (De qualquer modo, com a promessa de uma melhoria. No momento, estou lendo o conto de fadas de Amos Oz, “De repente, nas profundezas do bosque”.)1 – Você acredita na sua ideia de Deus ou em Deus? Caso acredite em Deus, então sua crença chama-se velar,2 despertar. “A maioria de nós tem uma ideia geral daquilo que quer dizer: crer, temer, amar e obedecer. Mas não entendemos muito bem o que quer dizer velar” (John H. Newman). Portanto, informe-se sobre o “velar”! Tente ficar desperto. A história ainda não terminou, nem mesmo para você. “Velar” é uma condição que Paulo também aconselha para o logos da 22 cristologia. Alguma coisa ainda acontece ao redor de Cristo. Paulo relaciona a ressurreição de Cristo “no” tempo com a ressurreição dos mortos “como fim” do tempo. “Se não houver uma ressurreição dos mortos, Cristo também não terá ressuscitado... Se tivermos esperança em Cristo apenas nesta vida, então nossa miséria será maior do que a de todos os outros seres humanos” (1Cor 15,13.19). Sem “velar” no tempo, sem uma visão de final do tempo, não há cristologia. Em nossa fidelidade a Cristo, ainda há muita coisa a descobrir e a aprender. Em consonância com uma frase de D. Bonhoeffer, eu poderia dizer que o cristianismo nunca poderá “possuir” Cristo, se também não tiver de esperar por ele. Isso também marca nossa cristologia? – Na ação etsi deus daretur, etsi Christus daretur há uma luz (cf. Ef 5,14), uma inteligibilidade, uma clareza do mundo que nossa curiosidade puramente teórica não consegue produzir. O Deus bíblico não é uma ideia platônica, mas – que seja – desde o início um pensamento prático (do qual os cristãos se certificam nas histórias da partida, do regresso e do seguimento). A dialética teoria-prática (ou entre a lembrança e o esquecimento) é na verdade uma invenção bíblica! 1 Editora Companhia das Letras, 1ª ed., São Paulo, 2007. 2 Não há uma tradução literal em português para o verbo alemão “wachen”. O mais próximo é “velar” ou “observar”, “estar desperto”, “em vigília”. (N.T.) 23 N PREOCUPAÇÕES COM O PERFIL DO CRISTIANISMO? Um comentário sobre a liberdade de religião ão só os círculos do Vaticano, mas também representantes da Igreja e da política do país muitas vezes agem com uma estranha reserva em suas declarações sobre a liberdade de religião. Falam exclusivamente da liberdade positiva de religião: “Indubitavelmente o cristianismo pertence à Alemanha, indubitavelmente o judaísmo pertence à Alemanha e enquanto isso o Islã também pertence à Alemanha”.1 E o que mais? O que mais pertence à Alemanha, quando se trata da questão da liberdade religiosa? Minha pergunta não se dirige a outras comunidades religiosas (possivelmente menores). O que acontece com o número crescente de não religiosos, de cidadãos estritamente seculares em nossa sociedade? Depois da frase tantas vezes citada do nosso presidente, será que não temos a impressão de que, no final, a Alemanha é mesmo um estado religioso “monoteísta”? Será que agora até mesmo os teólogos devem nos chamar a atenção, dizendo que o direito fundamental da liberdade de religião não parte, histórica e politicamente, em primeiro lugar e nem mesmo exclusivamente, da liberdade positiva de religião, portanto, da liberdade “para” a religião, mas também e justamente da liberdade negativa de religião, portanto, da possibilidade da liberdade “de” ou “em relação” à religião? Quando hoje nossa Igreja reinvidica parasi (e também para outras religiões) a liberdade de pensamento, de consciência, de religião, ela precisa ouvir sua consciência histórica, em que muitas vezes essas liberdades precisaram ser implantadas contra ela mesma – por exemplo, na Reforma e no Iluminismo político. A Igreja perde credibilidade quando acredita poder ignorar ou até eliminar essa consciência histórica autocrítica com a ajuda de um idealismo teológico totalmente atemporal. A disposição ao diálogo com aqueles que consideram essa liberdade negativa de religião como uma conquista civilizatória, portanto, a disposição ao diálogo com os não fiéis, sugerido expressamente aos católicos2 pelo Concílio Vaticano II em sua constituição pastoral, não significa que os fiéis devam se adequar de forma incondicional e não dialética ao Iluminismo continental-europeu,3 para reafirmar o conteúdo de liberdade e de emancipação do Iluminismo político e validá-lo tanto no interior da Igreja quanto, especialmente, no diálogo aberto com as religiões.4 A Igreja só não deve reagir às críticas a ela dirigidas, a partir do Iluminismo político, no mesmo nível argumentativo. Num pequeno decreto “sobre a liberdade religiosa”,5 na conclusão do Concílio Vaticano II, ela mesma indica sua disposição de considerar a abertura da visão de mundo pluralista, surgida na corrente do Iluminismo político, na medida em que não fala de um direito da verdade, sem sujeito e abstrato, mas enfatiza 24 o direito da dignidade humana, do sujeito, na sua verdade. Mas será que nós cristãos não temos cada vez mais preocupações com nosso perfil? Não só no âmbito dos mundos religiosos, portanto no sentido da liberdade positiva de religião, como também diante de um mundo estritamente secular, portanto no sentido da liberdade negativa de religião? A liberdade de religião no sentido positivo só poderá ser implantada no mundo inteiro quando as religiões deixarem de lutar por essa liberdade e reivindicá-la apenas para si mesmas, e quando cada uma das religiões defender e aceitar essa liberdade para outras religiões também. Só uma religião que, em seus países de origem, garante a liberdade para religiões estrangeiras poderá reclamar para si essa liberdade em todos os lugares do mundo, sem violência. A meu ver, esse critério é decisivo para o futuro de um diálogo promissor entre o cristianismo e o Islã. Isso seria absolutamente desejável. Pois a memória do sofrimento acumulado nas religiões da humanidade não pode ser ignorada, se não quisermos que os processos atuais da globalização produzam um nivelamento cultural e moral. Afinal, essa memória poderia ser a base para uma coalizão de todas as religiões, especialmente as religiões monoteístas, na realização de um levante público contra um terrorismo cruel e de desprezo pelo ser humano, praticado “em nome de Deus” (que Deus?). No cristianismo atual também existem preocupações com seu perfil diante dos contemporâneos estritamente seculares, não religiosos – no sentido da liberdade negativa de religião. Preocupações de uma cristandade da (pós) modernidade, cuja atuação há muito tornou-se burguesa demais, e cada vez mais sem face e sem voz; enfim, preocupações com uma religião burguesa ajustada, não dialeticamente, sem perfil, e que – numa apologética reveladora – facilmente nos leva a reduzir, desde o início, a questão da visão pluralista a uma questão do âmbito dos mundos religiosos atuais, para não termos de nos expor à configuração de uma época de “crise de Deus”, que afeta não só as Igrejas, não só as religiões, mas na verdade todos os seres humanos.6 Certamente, o encontro dos fiéis com os não fiéis, estimulado pelo concílio, deve levar em conta que atualmente estamos lidando principalmente com não fiéis de uma era pós-ateísta. Cada vez mais a falta de fé de hoje tem deixado de ser uma descrença direta, de certo modo combativa. Apesar de alguns casos um tanto espetaculares, de tempos diferentes, principalmente na Inglaterra, atualmente essa falta de fé não surge mais como uma visão de mundo contra a fé (dos cristãos); na verdade, ela é entendida como proposta de uma imagem de mundo e de ser humano, de uma bem sucedida humanidade sem fé. O ateísmo militante não é mais objeto dos descrentes, mas em todos os casos é o pressuposto histórico deles, que se entendem principalmente como humanistas consequentes, como contemporâneos estritamente seculares. Eles também não querem, de jeito nenhum, ser considerados “pagãos” inocentes, em todo caso, não como aqueles que já “têm atrás de si” experiências históricas com a religião cristã, e que, pela decepção com a imagem do ser humano batizado hoje, olham para trás, para uma antiga imagem do ser humano – numa espécie de segunda Renascença. Mostrar o perfil cristão no diálogo com os não crentes, diante dos nossos 25 contemporâneos estritamente seculares, quer dizer fundamentar-se7 na “dialética da secularização” das nossas sociedades iluministas, e quer dizer também mostrar solidariedade na luta pela ameaçada humanidade dos seres humanos. Naturalmente, a própria invocação do “humanum” e da “humanidade” diante das nossas experiências históricas já não seria, ela mesma, altamente abstrata (pelo menos tão distante historicamente quanto supostamente o discurso sobre “Deus”)? Será que ela não corresponde a uma antropologia abstrata que há muito já perdeu de vista o questionamento sobre o mal e a “visão da teodiceia” na história da humanidade? Será que eu posso, nesse contexto, lembrar mais uma vez a Shoah, aquela grande catástrofe, na qual – partindo da Alemanha nazista – a Europa deveria ser transformada num “cemitério de judeus”? Afinal, essa catástrofe não destruiu o elo de solidariedade entre tudo o que possui uma face humana? Não podemos pecar à vontade sobre o nome do ser humano. Aparentemente, não só o ser humano como indivíduo, mas também a ideia de ser humano e de humanidade são muito vulneráveis. Não existe apenas uma história superficial da espécie humana, mas também uma história profunda, amplamente vulnerável. Será que, atrás do escudo da amnésia cultural, a “força normativa do factual” não estaria desagregando a confiança civilizatória primordial, aquelas reservas morais e culturais nas quais se fundamenta a humanidade dos seres humanos? Em que medida essas reservas são utilizáveis e utilizadas? Será que, no caso, não estaria ocorrendo a despedida daquela imagem de ser humano tal como nos é e foi historicamente familiar? Será que o ser humano, entorpecido numa amnésia cultural, não só perdeu Deus, mas esteja cada vez mais perdendo a si mesmo, perdendo aquilo que até então chamamos empaticamente de sua “humanidade”? O que permanece, então, se sempre conseguimos fechar todas as feridas? Se a amnésia cultural se consolidou? O que permanece? O ser humano? Mas que ser humano? Hoje existe o perigo de que o homem moderno tente se esquivar totalmente, em nome do esclarecimento da dialética histórica entre lembrança e esquecimento, e finalmente exponha a tensão entre experiência e memória. Então, naturalmente ele trabalharia numa imagem humana que teria como fundo a mencionada amnésia cultural,8 na imagem humana de um logos que se esqueceu do sofrimento, com uma consciência cada vez menor da ausência, uma atrofiante consciência do que “falta” e do que “grita aos céus”.9 Será que o ser humano não dialético se tornaria totalmente secularizado? Um ser humano que “não se ilude com mais nada”, um ser humano sem visões, mas com muitas utopias de formato tecnológico, um ser humano que, diante do sofrimento, da culpa e da morte não expressa mais gestos com experiências limítrofes? Um ser humano que – tranquilamente – supõe ser o último pedaço de natureza ainda não totalmente testado? Que ser humano? Que “espiritualidade”? Talvez a “espiritualidade” como sonho de uma autoproduzida vida imortal, que não sente mais falta de nada, mas que, por isso, também não sente mais curiosidade nem saudade? Será que então ele seria o ser humano “perfeito”? Ou muito mais um 26 monstro petrificado na falta de sentimentos,depois da morte do ser humano? Nesse caso existem várias oportunidades para a religião cristã mostrar seu perfil e insistir nele, para que o ser humano que nos é familiar e nos foi confiado seja algo mais do que seu próprio experimento. Até hoje ele não deve sua existência apenas aos seus genes, mas também às suas histórias, e se quiser se descobrir, deve não só construir o mundo a partir dos seus projetos, mas também permitir que o lembrem das coisas e lhe contem as histórias. Certamente, a reação contra a amnésia cultural nas imagens humanas contemporâneas não encontra apenas um suporte na religião. Também encontra o apoio de uma literatura que ensina a enxergar o cenário histórico com os olhos das suas vítimas, e, no geral, o apoio de uma arte que, de certo modo, concretiza-se como forma de concepção da memória do sofrimento humano e chama à memória do olhar as situações de sofrimento e de culpa, algo que, de certa maneira, a proposta de objetividade da historiografia científica não consegue fazer. Todos eles possuem, literalmente, um caráter “ressentido”. Os apaixonados pelo esquecimento carregam o ressentimento, a mágoa da lembrança. Neles podemos adivinhar – com os olhos abertos – a história dos seres humanos como uma história da paixão, já referida pela religião. 1 Apesar de haver bons motivos, nesse contexto, para já se falar, preferencialmente, de “muçulmanos e muçulmanas” na Alemanha, em vez de “Islã”. Sobre isso, cf. também a entrevista de E.-W. BÖCKENFÖRDE, “Freiheit ist ansteckend”, em Frankfurter Rundschau, 2 de novembro de 2010, p. 32. 2 GS 21. 3 Para a diferenciação entre processos iluministas continentais-europeus e anglosaxões-americanos (do ponto de vista da religião), cf. meu livro Zum Begriff der Neuen Politischen Theologie, Mainz, 1997, § 10. 4 Eu me pergunto como as recentes declarações idealizadoras não históricas sobre a liberdade de religião feitas por Bento XVI (em sua mensagem na celebração do “Dia Mundial da Paz”, em 1 de janeiro de 2011) combinam com o que ele enfatizou na recepção de Natal para a cúria romana em dezembro de 2006, referente ao diálogo com o Islã, ou seja, “que o mundo islâmico hoje encontra-se, com a máxima urgência, diante de tarefas muito semelhantes às que os cristãos enfrentaram desde o Iluminismo, e para as quais foram encontradas soluções concretas, no âmbito da Igreja Católica, no Concílio Vaticano II, como fruto de uma longa luta. Trata-se do posicionamento da comunidade diante dos pontos de vista e exigências que surgiram no Iluminismo...” (cit. por E.-W. BÖCKENFÖRDE, “Die Reinigung des Glaubens”, em FAZ, de 16 de setembro de 2010, p. 32). Sobre o tema da capacidade de aprendizado da Igreja e sua teologia, cf. o capítulo “Tempo e temporalidade. Um problema central da teologia cristã”, neste livro. 5 DiH. Cf., sobre esse decreto do concílio e seus efeitos, os textos inclusos na obra de E.-W. Böckenförde. Esse pequeno documento provocou as controvérsias mais veementes e até hoje mais persistentes da Igreja Católica. 6 Cf. “In der Zeit der Gotteskrise”, em Memoria passionis §§ 3-6. 7 Cf. acima “Mística política? O conceito do político na nova teologia política”. 8 Cf. Memoria passionis § § 7-10 9 Cf. nota 5 em “Mística política? O conceito do político na nova teologia política.” 27 Segunda Parte A MÍSTICA DO FACE A FACE – TENTATIVAS DE APROXIMAÇÃO 28 C DO QUE SE TRATA omo já mencionamos na introdução, trata-se do protocolo de um caminho de aproximação a uma “mística de olhos abertos”. Na busca pelos rastros da experiência da fé, dividi esse caminho em quatro estações: rastros de uma mística do face a face em nosso mundo (p. 47-91), no mundo da oração dos fiéis (p. 92-149), no mundo do pensamento da cristologia (p. 150-159) e, finalmente, no encontro com um teólogo: Karl Rahner (p. 160-181). Os textos, bastante diferentes e resultantes dos mais diversos estímulos, formulados literariamente de modo bem diverso, devem falar por si mesmos. Todos pretendem afirmar que os olhos também podem ser um órgão de bênçãos, e o que eles veem pode nos levar ao centro da fé, para satisfazer nossa “fome de experiências”, pelo menos por alguns instantes, e também nos permitir julgar e agir, movidos pela força inspiradora desses olhos despertos. 29 Q “VELAR, DESPERTAR, ABRIR OS OLHOS...”1 uero enfatizar que, em suas partes essenciais, este texto foi elaborado em 1990 – portanto, numa época em que a Alemanha ainda não era um país de imigração, e por isso também encarava os “estrangeiros” primariamente como hóspedes (prestativos) com um tempo limitado de permanência. Naquela época o discurso sobre o multiculturalismo e o intercâmbio cultural não era um sonho idílico, mas uma primeira (às vezes talvez até exagerada) tentativa de abertura para a situação vigente, que resultou numa política tardia de integração. I. Desde o início, o cristianismo contém em sua essência um experimento multicultural. O Novo Testamento fala de um conflito com muitas consequências, a briga de Pedro e Paulo sobre a circuncisão (cf. Gl 2,11). O cristão judeu Paulo recusava-se a submeter os cristãos pagãos à circuncisão. Desde o início a diversidade cultural deveria se multiplicar no solo do cristianismo, o próprio cristianismo deveria aceitar e gerir uma convivência de diversos mundos culturais. Naturalmente essa visão contém uma premissa relevante, tanto para a religião quanto para a cultura: o cristianismo precisava ligar sua pretensão de mensagem universal com uma cultura da sensibilidade, com uma cultura do reconhecimento do outro, em sua diferença. Essa cultura da sensibilidade não tinha nada de sentimental, ela não visava transfigurar e romantizar o outro, o ser estranho. Tratava-se apenas de excluir do experimento intercultural do cristianismo a vontade de poder e a lógica do domínio, ou o ajustamento que ela impunha. A história da Europa não é muito caracterizada por essa cultura da sensibilidade. O que se vê mais claramente são os indícios de uma enorme insensibilidade da Europa e do cristianismo europeu. Quando foi que, em vez de conquistas, as “descobertas” europeias produziram encontros? Seria conveniente lembrarmos mais uma vez o “descobrimento” da América. Com que olhos esse continente foi “descoberto”? A cultura da sensibilidade teve um papel importante nisso? Ou será que o processo de cristianização da América não teria sido dirigido, e, em todo caso, dirigido até demais por um pensamento insensível de dominação e ajustamento, que não tinha olhos para os indícios de Deus na alteridade dos outros, e, por isso, sempre degradou culturalmente esse outro que não era entendido, tornando- o sua vítima? Em seu livro A conquista da América, o problema do outro,2 o filósofo e linguista búlgaro T. Todorov mostra que essa conquista teve êxito no séc. XVI, sobretudo porque os europeus eram hermeneuticamente superiores aos nativos. Por exemplo, os astecas, no México, só conseguiram reconhecer e avaliar (erroneamente, 30 no caso) o pequeno grupo militar do espanhol Cortez no contexto da sua própria visão de mundo. Por outro lado, o europeu estava em condições de reconhecer esses estranhos, em sua alteridade, dentro do seu próprio “sistema”. Como sabemos, esse reconhecimento do outro em seu diferente modo de ser não serviu exatamente para a sua aceitação, porém muito mais ao interesse da possibilidade de avaliá-lo e depois enganá-lo. Era a expressão de uma hermenêutica de dominação, e não de uma aceitação sem qualquer ação violenta ou “vontade de poder” no reconhecimento do outro, em sua diferente maneira de ser. No legado do cristianismo também existem afirmações e estímulos para a cultura da sensibilidade tão em falta hoje em dia. Os “próximos”, citados no mandamento bíblico mais importante que fala do amor ao próximo, não são apenas os próximos, mas também os outros, os estranhos. E a metáfora de Jesus sobre o Juízo Final (Mt 25,31-46) contém um critério inquietante: “O que determina a salvação ou a desgraça, o céu ou o inferno, não é o que pensamos de Deus,mas como nos comportamos em relação aos outros, aos estranhos”. Existem imperativos comportamentais primordiais na Bíblia que podem ser considerados elementos construtivos de uma ética de convívio, e que sustentam a cultura da sensibilidade. Certamente, uma retórica puramente moralizadora não nos salva da hostilidade, hoje tão difundida, contra os estrangeiros; no final, seu efeito é bem mais contraproducente. Por isso, muitos defensores da cordialidade para com os estrangeiros e do pluralismo cultural geralmente descartam uma argumentação moral. Eles enfatizam, sobretudo, o ponto de vista da utilidade econômica, valorizando a argumentação meramente pragmática: “Deem atenção aos estrangeiros, pois precisamos deles, nós mesmos os chamamos, afinal eles promovem nosso bem-estar, sem eles nossa economia entraria em colapso...”. Por mais importantes e adequados que sejam esses pontos de vista, eles não tornam a perspectiva moral supérflua. No caso, o estrangeiro não é mais do que uma simples força de trabalho. E o ódio contra ele também seria condenável, mesmo se ele não contribuísse com o Produto Social Bruto. (Logo se torna evidente que, esporadicamente, o ódio contra o estrangeiro é transposto também aos deficientes, idosos e enfermos, em suma, a todos que são considerados “inúteis”.) Em longo prazo, uma vida em sociedade de pessoas de diversos mundos culturais não poderá ser bem sucedida sem uma ética do convívio e sem uma cultura da sensibilidade sustentada por ela. Um cristianismo que se apega às suas raízes tem muito a contribuir para isso. E assim, a questão discutida aqui não só se torna um teste para nossa democracia, mas também para as reservas morais do cristianismo. II. Sem nenhuma pretensão à perfeição, quero apenas citar aqueles dois imperativos bíblicos de importância decisiva para uma ética no convívio intercultural. Tudo depende da pergunta: será que os principais sistemas de valores ainda podem ser agregados às nossas sociedades e instituições “clássicas”, ou seja, à família, à escola, à Igreja etc., diante da sua insidiosa desagregação? Afinal, elas ainda são os espaços mais importantes para o seu aprendizado e sua transmissão em nossa sociedade. 1. “Velar, despertar, abrir os olhos”: essa advertência sempre perpassa as afirmações 31 bíblicas. Ela pode até valer como um imperativo categórico das tradições bíblicas. De acordo com isso, o cristianismo também deve ser, sobretudo, uma escola da visão, da observação exata, com a crença de que se pode equipar o ser humano com olhos bem abertos, com olhos para os outros, para aqueles que, no círculo dos rostos conhecidos, geralmente permanecem invisíveis. Naturalmente nós, cristãos, gostamos de conferir invisibilidade, distanciamento de percepção, “graça invisível” a coisas como Deus e salvação. Contrariamente ao discurso corrente da “fé cega”, as tradições bíblicas, e, sobretudo, o próprio Jesus, mantêm a sua visibilidade, estão sempre visíveis, e possuem uma disposição e sentido de obrigação maiores em relação à percepção. Não é a fé que nos deixa cegos, o que nos cega é o ódio, que não enxerga o outro e não permite que enxerguemos a nós mesmos. Portanto, o cristianismo não é um tipo especial de sonolência, como na metáfora do Novo Testamento sobre as virgens imprudentes, nem um encantador cego de almas (cf. Mt 25,1-13). Nessas tradições bíblicas, as pessoas são sempre caracterizadas como aquelas que “veem, porém não enxergam” (cf. Mc 8,18) e são sempre advertidas a respeito de seus narcisismos, seus temores elementares de uma visão mais precisa, daquele “ver” que as entrelaça inextricavelmente com o que é visto, e não as deixa passar sem culpa. Afinal, não só os ouvidos são órgãos de sentido da graça, mas os olhos também. E afinal, não existem deficiências especiais de visão hoje em dia? Qual o efeito, em longo prazo, daquela ausência de uma comunicação face a face, “na rede”? É justamente a constante inundação de imagens que nos deixa facilmente cegos. A enorme velocidade em que vivemos, as trocas precipitadas nos relacionamentos e no consumo não garantem mais uma visão confiável. Nossas percepções vão ficando cada vez mais sem face, sem visibilidade, porque muitas vezes só conseguimos vislumbrar tudo ligeiramente, de certa forma só olhar para as costas das pessoas e das coisas que encontramos. O “ver”, o “olhar” precisa de um tempo só seu, ele se fundamenta num outro ritmo, ele retira a pressa da nossa vida. Muitas palavras e metáforas de Jesus sugerem isso, principalmente a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,25-37), que nos incentiva a um exercício constante e especial do olhar. Na estrada entre Jerusalém e Jericó, um homem é assaltado por ladrões. O sacerdote passa por ele, olha, mas não vê; o levita passa por ele, também olha, mas não vê. A religiosidade deles não tem olhos para o outro. Jesus insiste: aquele que não desperta, que não abre os olhos, em suma, que não olha direito, também não está preparado para o templo – o mistério divino está velado para ele. A luz, a visibilidade de Deus entre nós, começa na descoberta, no ato de “ver” aquelas pessoas que, no nosso dia a dia, gostam de se esquivar, e que por isso geralmente permanecem invisíveis – então já nos encontramos no rastro de Deus. O despertar, o olhar preciso, também tem sua própria dignidade moral. Sim, ele é parte da raiz de cada moral. “Olha e saberás”, formulou uma vez o filósofo Hans Jonas, e tornou o ato de ver, de olhar para os outros, uma raiz para uma cultura da sensibilidade e um novo tipo de moral universalista. Segundo ele, a “consciência” também é um conhecimento que se origina desse olhar, e não existe sem ele, sem a 32 tentativa de se encarar a face desafiadora da pobreza e o olhar sem sonhos e desejos dos infelizes. O que chamamos de voz da nossa consciência é nossa resposta ao tormento que enxergamos na face estranha, sofredora. 2. “Não deverás criar imagens em teu pensamento”. Esse imperativo bíblico faz parte de uma ética do convívio. Ele nos adverte contra o pré-julgamento, as projeções, as “transferências”. É como abrirmos o outro lado daquele primeiro imperativo sobre os olhos abertos: quem olha também é olhado. Você não deve se deixar dominar por clichês cegos. Deve se deixar olhar, simplesmente. Será que em nós também não se esconde um medo elementar de ser visto, ser olhado? Quem consegue suportar a torrente de olhares mudos, os inúmeros olhos da miséria que gritam aos céus ou nem gritam mais porque há muito essa miséria toda sufocou sua fala? A partir do momento em que as pessoas são “olhadas”, surge um horizonte de responsabilidade por condições e situações não causadas por nós. Esses olhos sem sonhos e desejos pedem uma solidariedade que vai muito além da nossa moral já conhecida, familiar e de vizinhança. Por que nossos debates atuais sobre a integração continuam tão assustadores? Por que o relacionamento com os estrangeiros culturalmente diferentes sempre produzem crises? Por que o estrangeiro é visto como perigoso, até como um inimigo? Por que nós – como afirma essa regra bíblica de comportamento – não vamos ao encontro desse estranho real, mas da imagem que criamos dele, e de nós mesmos nessa imagem, na qual até nós somos estranhos e assustadores, somos nosso próprio inimigo? A psicologia, repetindo um ponto de vista bíblico, diz que o ódio ao estranho é a projeção do ódio a si mesmo, é uma descarga em cima do outro, do estranho. A proibição bíblica de imagens também nos adverte contra a utilização de estereótipos, de conceitos coletivos como “os turcos”, “os escravos”, como se em nossa história recente não tivéssemos vivenciado a violência mortal dos estereótipos preconceituosos, o poder destruidor dos clichês cegos: “os judeus”, “tipicamente judeu” etc. O mandamento bíblico mais provocador, aquele do amor ao inimigo, enfatiza que até mesmo os inimigos possuem uma face, um nome. E os estranhos? Os que sempre cruzam nossos caminhos, as pessoas de outras culturas e outros mundos religiosos? “Não deverás criar uma imagem
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