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Indaial – 2020 Sociologia BraSileira Prof. Renan Subtil Torres 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2020 Elaboração: Prof. Renan Subtil Torres Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: T693s Torres, Renan Subtil Sociologia brasileira. / Renan Subtil Torres. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 170 p.; il. ISBN 978-65-5663-347-3 ISBN Digital 978-65-5663-342-8 1. Sociologia brasileira. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 300 apreSentação Saudações, caro acadêmico! O presente material, o qual se encontra em suas mãos ou na tela de seus aparelhos digitais, é fruto de um zeloso trabalho da UNIASSELVI que almeja apresentar a você a relevância das principais abordagens e autores trabalhados na Sociologia Brasileira. Por meio de nosso livro didático, entraremos em contato com o desenvolvimento da Sociologia em território brasileiro, tão como conheceremos um pouco do trabalho intelectual de cada um dos autores que mais contribuíram para o pensamento acerca da sociedade de nosso país. A Sociologia Brasileira é responsável pelos estudos das particularidades da dinâmica social brasileira que, apesar de influenciada por toda uma série de acontecimentos globais, desenvolve-se de maneira única. A recente descoberta e vastidão de nosso território, a mistura dos povos originários com invasores e escravos, a abundância de nossos recursos naturais, a exploração colonialista dentre outras características, são o pano de fundo para a ocorrência de fenômenos sociais específicos e complexos. Sendo assim, nosso material de estudos apresentará os principais temas e teorias que contemplam nossa realidade, sempre de maneira clara e objetiva. O livro de Sociologia Brasileira desenvolvido pela UNIASSELVI pretende apresentar a você, acadêmico, de uma maneira ao mesmo tempo consistente e didática, as principais discussões sobre as tribulações sociais brasileiras. Também será abordado o desenvolvimento de nossas problemáticas por meio da reconstrução histórica dos mais importantes objetos de estudo que reproduzem a formação do Brasil. A escolha dos autores foi realizada de maneira com a qual possamos enxergar a realidade nacional da maneira mais objetiva e menos abstrata possível, auxiliando-nos a nos situar em meio a uma complexa realidade. A Unidade 1 abordará o desenvolvimento do pensamento social brasileiro, apresentando a maneira com a qual se pensava a sociedade anteriormente aos séculos XIX e XX, as particularidades das análises sociais que compreendem o período posterior. Feito isso, trabalharemos o processo de sistematização da Sociologia em território brasileiro, finalizando com a formalização e institucionalização da Sociologia no Brasil. Para tanto, utilizaremos de autores que lançaram mão de análises sociais em tais períodos, mesmo que anteriores à formação das Ciências Sociais tal como a concebemos hoje. Também apresentaremos as ideias de importantes autores nacionais que interpretam as análises sociais de tempos passados e reconstroem a dinâmica social por meio de análises históricas que devem ser consideradas. Na Unidade 2 estudaremos interpretações clássicas sobre o Brasil por meio de autores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior. Tais pensadores desenvolveram Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novi- dades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagra- mação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilida- de de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assun- to em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA teorias sobre a formação social brasileira desde o período colonial, processo de modernização nacional, relações raciais no país além de cultura, política e economia locais. Trata-se de grandes nomes da investigação acerca da dinâmica social de nosso território e importantes teóricos do processo histórico de construção nacional. Finalmente, na Unidade 3, trabalharemos alguns dos principais temas abordados pela Sociologia Brasileira. Dentre eles estão assuntos como raça e identidade sob a perspectiva de pensadores das Ciências Sociais brasileiras, o processo de modernização do Brasil e a Sociologia Brasileira após a década de 1970. Esperamos que aproveitem o conteúdo preparado pela UNIASSELVI e ampliem seus conhecimentos sobre o contexto social de nosso país! Bons estudos! Prof. Renan Subtil Torres Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complemen- tares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE Sumário UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX ........... 1 TÓPICO 1 — A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA .................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 O BRASIL ANTES DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA ......................................................... 3 3 DO PERÍODO COLONIAL À REPÚBLICA VELHA ................................................................... 8 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 19 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 20 TÓPICO 2 — A SISTEMATIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL .................................... 23 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 23 2 A CONSTITUIÇÃO DO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO ..........................................23 3 PRINCIPAIS ABORDAGENS DA TEORIA SOCIAL BRASILEIRA ...................................... 30 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 32 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 33 TÓPICO 3 — A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL ......................... 35 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 35 2 O NASCIMENTO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL ................................................................... 35 3 A SOCIOLOGIA BRASILEIRA E SEUS PRINCIPAIS DESAFIOS ......................................... 39 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 49 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 51 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 52 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 54 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL ..................................... 57 TÓPICO 1 — A SOCIOLOGIA E A INTERPRETAÇÃO DO BRASIL ....................................... 59 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 59 2 OS GRANDES INTÉRPRETES DO BRASIL E SUAS PRINCIPAIS ABORDAGENS .................................................................................................................................. 59 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 68 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 69 TÓPICO 2 — GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO ................................................................. 71 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 71 2 GILBERTO FREYRE E A ESCRAVIDÃO NO BRASIL .............................................................. 71 3 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E O DESENVOLVIMENTO SOCIAL DO BRASIL 79 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 88 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 89 TÓPICO 3 — FLORESTAN FERNANDES E CAIO PRADO JÚNIOR ...................................... 91 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 91 2 FLORESTAN FERNANDES: RELAÇÕES SOCIAIS E ESTRUTURA DE CLASSES NA SOCIEDADE BRASILEIRA .................................................................................. 91 3 CAIO PRADO JÚNIOR: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA ........................................................................................................................ 96 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 101 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 106 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 107 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 109 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA ....................................................... 111 TÓPICO 1 — RAÇA E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO .............................................................................................................. 113 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 113 2 O DEBATE RACIAL NO BRASIL ................................................................................................ 113 3 O DEBATE ACERCA DA IDENTIDADE DE GÊNERO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO ...................................................................................................................... 121 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 127 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 128 TÓPICO 2 — MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA ......................................................................... 131 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 131 2 A MODERNIZAÇÃO DO BRASIL NO SÉCULO XIX ............................................................. 131 3 O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO BRASILEIRO PÓS-PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL ...................................................................................................................... 135 4 A MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA SOB OS OLHARES DE ÁLVARO VIEIRA PINTO, RUY MAURO MARINI, CAIO PRADO JÚNIOR E FLORESTAN FERNANDES .................................................................................................................................... 139 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 146 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 147 TÓPICO 3 — A SOCIOLOGIA BRASILEIRA PÓS-1970: NOVOS OLHARES ....................... 149 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 149 2 SOCIOLOGIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: DA DITADURA MILITAR NO BRASIL ÀS PRINCIPAIS ABORDAGENS SOCIOLÓGICAS NOS DIAS ATUAIS ........................................................................................................................ 149 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 160 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 165 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 166 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 168 1 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • apresentar o processo de transformação do pensamento sociológico brasileiro por meio de registros do período colonial; • reconstruir as principais abordagens anteriores à formalização da Sociologia em território brasileiro; • evidenciar o processo de sistematização da Sociologia no Brasil; • abordar a institucionalização da Sociologia brasileira; • apresentar autores cujas ideias foram importantes à compreensão do processo de formação da Sociologiae da sociedade brasileira como um todo. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO TÓPICO 2 – A SISTEMATIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL TÓPICO 3 – A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 — A UNIDADE 1 FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA 1 INTRODUÇÃO Pensar a sociedade na qual estamos inseridos demanda um esforço no sentido de considerarmos todos os elementos que a constitui. Isso significa que o pensamento sociológico lançado a determinado território parte da ideia de que toda sociedade é constituída por seus aspectos sociais. Ou seja, toda sociedade é constituída por suas condições materiais e históricas, tão como por todo e qualquer tipo de manifestação humana, sendo ela cultural, artística ou filosófica. A Sociologia Brasileira emergiu de um longo processo interdisciplinar que leva em conta todos os registros possíveis acerca dos povos originários, invasores, escravos e sua interrelação, passando pela realidade material que é única de cada região do mundo. Sendo assim, estudaremos no primeiro tópico da Unidade 1 de nosso material, as condições em meio às quais emergiu o pensamento social brasileiro, passando por uma breve história do Brasil, do período pré-colonial aos primeiros estudos sobre as populações nativas e seu contato com os invasores europeus e os escravizados por eles. Bons estudos! 2 O BRASIL ANTES DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA Antes de iniciarmos nossos estudos acerca do Brasil como era anteriormente à invasão portuguesa do ano de 1500, devemos considerar alguns pontos importantes com relação ao conceito de pensamento social. Primeiramente, não devemos considerar apenas análises sociológicas, antropológicas, históricas ou provenientes de outros campos do saber de forma separada. A sociedade é um fenômeno complexo que deve ser analisado sob o máximo de perspectivas possíveis. Segundo, devemos pensar a sociedade de maneira macro e micro concomitantemente, ou seja, analisar o indivíduo em sua subjetividade, de forma isolada, como um elo que compõe a totalidade da realidade e, não menos importante, analisar a sociedade como um todo, um grupo de indivíduos capaz de modificar a realidade e construir a história do território onde habita. Em terceiro lugar, para se pensar sociologicamente, devemos estudar a maior variedade possível de fontes de informação, sejam elas escritas, ouvidas, vivenciadas, formais ou não formais. Dessa maneira conseguimos conceber a dinâmica social de maneira mais fiel possível à realidade. O autor Freitas Pinto (2002, p. 144-145) acredita que: UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX 4 A ideia de pensamento social corresponde em parte à constatação de que a riqueza dos processos sociais e culturais jamais é revelada plenamente quando utilizamos tão somente os métodos e recursos de uma determinada disciplina como a sociologia, a antropologia ou história. O pensamento social é construído transpondo barreiras e limites de disciplinas e campos de conhecimento, combinando, em muitos casos, dados empíricos e fatos com percepções extraídas da poesia, do romance, do teatro. Sabendo os pressupostos sociológicos apresentados anteriormente, comecemos nossos estudos respeitando uma ordem cronológica de fatos que se iniciam antes da colonização portuguesa, antes mesmo de nosso país se chamar Brasil. Estima-se que o continente americano abrigava aproximadamente uma centena de milhão de pessoas, e é importante destacar que o território – o qual, hoje, corresponde ao nosso país – era habitado por cerca de 1 a 5 milhões de pessoas, dependendo da fonte informativa. Devido ao fato da ausência de registros escritos, uma vez que os povos originários transmitiam seus conhecimentos por meio, principalmente, da fala, é difícil o acesso àquelas culturas existentes anteriormente à invasão portuguesa. FIGURA 1 – TRIBO BRASILEIRA XINGU FONTE: <https://www.sohistoria.com.br/ef2/indios/index_clip_image002.jpg>. Acesso em: 30 abr. 2020. É importante saber que o povo nativo se organizava em grupos sociais comumente conhecidos como “tribos”. Os indivíduos foram chamados de “índios” pelos colonizadores e esse tratamento perdura até hoje. Isso se deve ao fato de os portugueses supostamente estarem buscando um caminho alternativo à Índia ao se depararem com as terras brasileiras, referindo-se a elas como Índias Ocidentais por determinado período. Esse tipo de tratamento acabou por generalizar as centenas de etnias e línguas que foram classificadas por estratos linguísticos centrais. São eles: tupis-guaranis, que habitavam a região do litoral, macro-jê ou tapuias, região do Planalto Central, aruaques ou aruak, da Amazônia e caraíbas ou karib, também da região amazônica. TÓPICO 1 — A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA 5 As múltiplas sociedades nativas eram complexas, porém possuíam algumas características comuns como a divisão social do trabalho. Geralmente, os homens eram responsáveis pela caça, pesca, construção de habitações, guerras dentre outras atividades. As mulheres costumavam se incumbir dos cuidados com a família, confecção de vestimentas, preparo de alimentos, agricultura do milho, feijão, abóbora, batata-doce, amendoim, mandioca e outros tipos de trabalho. Quase sempre havia uma hierarquia bem estabelecida e líderes específicos, além de pessoas especializadas nos cuidados à saúde e referências espirituais. Era comum a domesticação de alguns animais considerados selvagens pelo homem branco e a harmonia com a natureza era plena quando comparada à contemporaneidade. Costumava-se utilizar apenas recursos indispensáveis à sobrevivência humana, como madeira, peles de animais, penas, corantes naturais, fibras de plantas diversas além de uma riquíssima medicina da floresta, infelizmente soterrada e discriminada pela cultura europeia. Hoje existem alguns poderosos remédios remanescentes da cultura nativa, utilizados na cura de diversas doenças e terapias. Um bom exemplo é o chamado Santo Daime ou Ayahuasca, chá de folhas e cipós utilizados em ritos e tratamentos para males como a depressão, ansiedade e vícios em substâncias químicas diversas. O embate entre as culturas originárias e europeias resultaram no soterramento dos costumes dos povos nativos. Em outras palavras, a miscigenação – que era em parte consequência de estupros realizados pelos portugueses colonizadores –, o processo de catequização e ensino da língua portuguesa à população genuinamente brasileira, foram alguns dos fatores que acabaram por descaracterizar o modo de vida dos chamados povos indígenas. A esse processo se dá o nome de aculturação: quando uma cultura perde suas características ou deixa de existir devido à influência de uma cultura exterior. Muitos dos registros acerca da cultura dos povos nativos, que viveram na época das primeiras expedições portuguesas ao Brasil, foram retratados pela Carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da expedição de Pedro Álvares Cabral, que destinou, ao então rei de Portugal, Dom Manuel, suas primeiras impressões sobre o território recém explorado. A carta pode ser acessada por meio do endereço eletrônico a seguir: http:// objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf. É bastante interessante analisarmos o ponto de vista dos invasores europeus às terras dos tupiniquins – primeiros povos a entrar em contato com os portugueses recém- chegados. DICAS UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX 6 A colonização de nossas terras não foi a primeira ideia dos portugueses após a chegada de Pedro Álvares Cabral em sua primeira expedição ao Brasil, cujo desembarque foi no dia 22 abril de 1500, onde hojeé o estado da Bahia. Buscando por insumos comercializáveis, que poderiam ser alternativa ao então lucrativo comércio oriental de especiarias, os portugueses se decepcionaram à primeira vista, pelo fato de não encontrarem recursos naturais como metais preciosos no litoral brasileiro. Logo descobriram o Ibirapitanga ou Arabutã, que tempos depois ficaria conhecida como Pau-brasil. Tratava-se de uma árvore abundante em território nacional, tão como em diversas outras localidades da América e ilhas próximas. O nome dela tem origem da cor vermelha de seu interior, que lembrava brasa. Chamada inicialmente de pau-de-tinta pelos portugueses, logo ficou conhecida como Pau-brasil que, tempo depois, inspiraria o nome de nosso país. O comércio do Pau-brasil, apesar de lucrativo, não chegava perto da lucratividade que o comércio de especiarias no ocidente proporcionava a Portugal. Com a ajuda dos povos nativos, seduzidos por meio do escambo. Tratava-se da troca de serviços braçais por quinquilharias diversas, oferecidas pelos portugueses, configurando uma transação comercial primitiva entre povos estrangeiros e originários. O Pau-brasil foi explorado de maneira devastadora, chegando à beira da extinção tempos após suas primeiras extrações. Isso se devia à utilidade da tinta da madeira no tingimento de tecidos brancos, muito valorizados na Europa após coloridos com o vermelho de sua seiva. FIGURA 2 – EXPLORAÇÃO DO PAU-BRASIL POR MEIO DA MÃO DE OBRA NATIVA FONTE: <https://escolaeducacao.com.br/wp-content/uploads/2020/01/ciclo-do-pau-brasil- -2-750x430.jpg>. Acesso em: 6 maio 2020. A extração da madeira no Brasil demandava uma autorização concedida pelo rei de Portugal. Essa autorização se chamava estanco. A primeira pessoa a receber o estanco foi Fernando de Noronha, que hoje é o nome de uma das ilhas do litoral nordestino brasileiro. O Pau-brasil extraído pelas pessoas que recebiam o estanco da realeza portuguesa era armazenado em feitorias, ou seja, armazéns espalhados pela costa brasileira que serviam de depósito para a madeira que, posteriormente, era enviada por meio de embarcações para a metrópole europeia. TÓPICO 1 — A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA 7 Toda essa movimentação de mercadorias ao longo da costa brasileira atraía a atenção de outros povos. Os franceses eram os principais interessados nessa nova fonte de riquezas. Eles faziam alianças com tribos inimigas dos portugueses e atacavam o litoral em busca do domínio da transação mercantil do Pau-brasil. A fim de se defender dos ataques franceses, Portugal decide organizar expedições guarda-costas para o Brasil, que eram caravelas armadas enviadas para patrulhar os mais de 8 mil quilômetros de litoral e refrear a ameaça estrangeira. Diante às disputas que pelo vasto território brasileiro e seus abundantes recursos naturais, surge a demanda pela garantia dessas terras por parte de Portugal. Foi assim que, no ano de 1534, o então rei português, Dom João III, decide implementar um programa de ocupação efetiva do Brasil. Esse ano foi o marco final do chamado Período Pré-Colonial, a partir do qual a coroa portuguesa decide enviar pessoas para colonizar o território brasileiro. Tal estratégia serviu para estabelecer os domínios portugueses sobre as terras recém-tomadas pelos europeus, dificultando a entrada de outros povos que estavam em busca das riquezas encontradas em terras tupiniquins. Vale salientar que o Pau-brasil era apenas um dos inúmeros recursos naturais descobertos, até então, no que hoje corresponde aos limites brasileiros. Diversas outras riquezas ainda viriam a ser descobertas pelos invasores portugueses, ampliando ainda mais seus interesses sobre o território dominado a partir do ano de 1500. Podemos sintetizar o Período Pré-Colonial como um tempo de descobertas para os povos europeus que aqui desembarcaram em busca da ampliação de seus domínios comerciais. Marcada pela aculturação dos povos nativos frente à cultura europeia, a época pré-colonial foi fundada na descoberta do valor comercial do Pau-brasil, e do conveniente trabalho braçal do povo originário, intermediado pelo escambo e fundamental para a extração daquela madeira. O estanco era a autorização provida pela coroa portuguesa para a extração do Pau-brasil, que era armazenado em feitorias espalhadas pelo litoral brasileiro e, logo depois, transportado para a Europa por meio de embarcações. As expedições guarda- costas serviam de intimidação frente às invasões estrangeiras, principalmente de franceses, que objetivavam a disputa dos recursos materiais brasileiros. O referido período, classificado como pré-colonial, encerra-se em 1534, quando Portugal envia pessoal para ocupar o Brasil de maneira definitiva. O quadro a seguir salienta os principais aspectos desse período, que perdura do ano de 1500 até 1534: QUADRO 1 – PERÍODO PRÉ-COLONIAL • Duração – de 1500 a 1534. • Principal atividade econômica – extrativismo. • Principal matéria-prima – Pau-brasil. • Regime de trabalho – utilização da mão de obra nativa intermediada pelo regime de escambo. • Autorização real para a atividade – estanco. • Depósito da matéria-prima bruta – feitoria. • Principais ameaças – ataques de franceses aliados a tribos nativas rivais aos portugueses. • Principal defesa portuguesa – expedições guarda-costas. FONTE: O autor UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX 8 Agora que exploramos as principais características do primeiro período após à entrada dos portugueses no território que hoje corresponde ao Brasil, estudaremos outra fundamental fase da ocupação dessas terras: o Período Colonial. Por meio dos estudos dessa outra importante etapa do desenvolvimento social brasileiro, construiremos as bases para a investigação acerca da produção e desenvolvimento do pensamento sociológico de nosso país. 3 DO PERÍODO COLONIAL À REPÚBLICA VELHA Tendo em vista que a coroa portuguesa reconheceu a potencialidade do Brasil em termos de riquezas, que já estavam atraindo forças estrangeiras que as disputavam com os pioneiros europeus, Dom João III, então rei de Portugal, decide, em 1534, colonizar essas terras com o objetivo de estabelecer sua dominação. Cabe salientar que já ocorriam revoltas e diversas resistências em nome das terras brasileiras, antes mesmo da chegada de Portugal ao país. Desde o ano de 1494, o Tratado de Tordesilhas já dividia legalmente o Brasil que conhecemos hoje em duas partes. As coroas de Portugal e Espanha, na época Reino de Portugal e Coroa de Castela, já se interessavam no chamado “novo continente”, a América recém invadida pela expedição marítima capitaneada por Cristóvão Colombo em 1492. O tratado consistia em uma divisão de terras por meio de uma linha imaginária. Essa linha cortava o Brasil de norte a sul, do que hoje corresponde ao estado do Pará até Santa Catarina. De acordo com o tratado que objetivava pôr fim às disputas pelas terras americanas entre os dois reinos, tudo o que situava a oeste da linha pertenceria à Coroa Castela e, a leste, do Reino de Portugal. Anos depois esse tratado foi revogado a pedido dos portugueses ao perceberem a vastidão ainda inexplorada ao centro e a oeste do que hoje corresponde à América Latina. Por volta do ano de 1534, o então rei de Portugal, Dom João III, divide o Brasil em sesmarias, que consiste em pedaços de terras demarcados por meio de linhas imaginárias traçadas vertical e horizontalmente com relação ao mapa do território nacional. Cada um desses pedaços de terra era destinado a um nobre escolhido pelo rei. As terras delimitadas não eram posse de seus destinatários, os chamados donatários. Cada donatário tinha direito de ocupar o território e produzir riquezas dentro dele, porém, a decisão acerca da destituição dos territórios e/ou substituição dos donatários estava nas mãos do rei. Cada um dos donatários recebia uma Carta de Doação, que consistia em um documento que assegurava que cada uma das sesmarias eradelegada a um administrador específico. A Carta Foral, por sua vez, era o documento em que constavam as diretrizes de posse da sesmaria, ou seja, as instruções acerca daquilo que o donatário pode ou não pode fazer em relação à ocupação do espaço que tomaria conta a partir do momento em que recebesse sua Carta de Doação. TÓPICO 1 — A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA 9 As faixas de terra, cuja gestão era passada de pais para filhos, foram batizadas de Capitanias Hereditárias. A partir do ano de 1934, o país passou a ser dividido em 15 Capitanias Hereditárias que seriam distribuídas entre 12 donatários. Cada uma das sesmarias que vieram a se tornar Capitanias Hereditárias, recebia um nome e era concedida aos respectivos donatários, incumbidos da tarefa de ocupar e produzir riquezas em seus territórios. • Capitania do Maranhão: João de Barros e Aires da Cunha e Fernando Álvares de Andrade. • Capitania do Ceará: Antônio Cardoso de Barros. • Capitania do Rio Grande: João de Barros e Aires da Cunha. • Capitania de Itamaracá: Pero Lopes de Sousa. • Capitania de Pernambuco: Duarte Coelho Pereira. • Capitania da Baía de Todos os Santos: Francisco Pereira Coutinho. • Capitania de Ilhéus: Jorge de Figueiredo Correia. • Capitania de Porto Seguro: Pero do Campo Tourinho. • Capitania do Espírito Santo: Vasco Fernandes Coutinho. • Capitania de São Tomé: Pero de Góis da Silveira. • Capitania de São Vicente: Martim Afonso de Sousa. • Capitania de Santo Amaro: Pero Lopes de Sousa. • Capitania de Santana: Pero Lopes de Sousa. FIGURA 3 – DIVISÃO POLÍTICA ESTABELECIDA PELO TRATADO DE TORDESILHAS FONTE: <http://opiniaoenoticia.com.br/wp-content/uploads/tordesilhas.jpg>. Acesso em: 15 maio 2020. UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX 10 É importante termos em mente que o processo de formação colonial de nosso país não se deu de maneira pacífica, muito menos democrática. A terra, que já possuía moradores há milênios, fora dividida em vários pedaços que agora passariam a ser jurisdição de um donatário europeu, mesmo que sem a aprovação de muitos povos nativos. Foram muitas as batalhas que foram travadas entre nativos e colonizadores europeus. Anteriormente ao loteamento e distribuição das terras litorâneas do Brasil, existiam conflitos em torno da ocupação de seu território vasto e rico em recursos naturais. Além da diversidade da fauna e da flora brasileira, a água é abundante e escoa por meio de gigantescos rios. Diversas populações vivenciavam disputas por territórios que dispunham de tais recursos fundamentais para a sobrevivência. O século XVI foi marcado por batalhas como o Cerco de Igarassu que, conforme Hans Staden (1945), consistiu em um levante realizado pelos índios caetés contra os portugueses que, dentre outros fatores motivacionais, escravizaram membros de sua etnia. O cerco ocorreu em uma vila de Pernambuco, entre 1549 e 1551, conforme alguns historiadores, os quais nem sempre entram em consenso quanto à data oficial da resistência. Em 1562, foi realizado o Cerco de Piratininga, que foi a união entre índios carijós, guaianás, guarulhos e tupiniquins, organizados contra a dominação portuguesa. O fato ocorreu em São Paulos dos Campos de Piratininga, quando as etnias indígenas reunidas atacaram a vila onde portugueses aliados a tupiniquins se defenderam da ofensiva. Isso evidencia a existência da aliança, não só entre índios de diferentes tribos, mas entre “homens brancos” (europeus) e indígenas (nativos). A imagem a seguir ilustra um pouco da relação amistosa que os colonizadores conseguiram estabelecer com os antigos donos das terras de São Paulo dos Campos de Piratininga, os índios tupiniquins. Embora a aliança entre brancos e indígenas favorecesse ambas as partes, outros povos e, inclusive os próprios tupiniquins, levantaram-se contra essa jovem vila, então com dois anos de idade. Observe: FIGURA 4 – ALIANÇA ENTRE HOMENS BRANCOS E TRIBOS NATIVAS FONTE: < https://cutt.ly/ggbanjn >. Acesso em: 15 maio 2020. TÓPICO 1 — A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA 11 Mais tarde, entre os anos de 1554 a 1567, foi formada a Confederação dos Tamoios que era composta majoritariamente pelo povo Tupinambá, por sua vez composto por tribos Tupiniquins, Aimorés e Terminós. Tratava-se de um dos primeiros grandes conflitos entre os povos originários, que reivindicavam sua liberdade tão como a retomada de suas terras, e homens brancos, especialmente portugueses e franceses, que ocupavam um território que compreendia parte do litoral paulista e fluminense. A Guerra dos Aimorés foi outro importante episódio de resistência por parte dos povos nativos. Os Aimorés eram povos que habitavam o território que hoje corresponde aos estados de Minas Gerais e Espírito Santo e resistiram à colonização portuguesa por mais de um século. Essa guerra, que durou aproximadamente de 1555 a 1673, foi composta por diversas batalhas, dentre elas a Batalha do Cricaré. Essa batalha ocorreu na Capitania de Espírito Santo, mais especificamente no Povoado de Cricaré, onde uma ofensiva liderada por Vasco Fernandes Coutinho, donatário responsável pela referida sesmaria, desembarcou com sua armada vinda do litoral do que hoje corresponde à Bahia. Apesar da difícil batalha que custou a vida de vários nativos e colonizadores, os Aimorés conseguiram afastar a tropa que defendia os domínios de Vasco Fernandes Coutinho, cujo comandante, Fernão de Sá, morrera neste combate. Após a retirada dos colonizadores invasores, os Aimorés destruíram as feitorias dos bandeirantes por volta do ano de 1558. Outro importante episódio da história da ocupação dos Brasil por invasores europeus se materializou com a Guerra dos Bárbaros (1650-1720). O conflito ocorreu entre os nativos Tapuias e colonizadores portugueses que, com o fim da União Ibérica, em 1640, e a expulsão dos holandeses, em 1654, passaram a concentrar sua atenção nas terras nordestinas, mais especificamente da Bahia ao Maranhão, para a consolidação do cultivo da cana-de-açúcar e expansão da pecuária. Foram aproximadamente 70 anos de combates entre os povos nativos e os invasores portugueses, custando a vida de centenas de índios e muitos colonizadores portugueses. Para Puntoni (1999, p. 196): A Guerra dos Bárbaros mais se aproximou de uma série heterogênea de conflitos entre índios e luso-brasileiros do que de um movimento unificado de resistência. Resultado de diversas situações criadas ao longo da segunda metade do século XVII, com o avanço da fronteira da pecuária e a necessidade de conquistar e “limpar” as terras para a criação de gado, esta série de conflitos envolveu vários grupos e sociedades indígenas contra moradores, soldados, missionários e agentes da coroa portuguesa. A Guerra dos Bárbaros foi um massacre contra o povo Tapuia, que era composto por grupos culturais que compreendia o povo Jê, Tarairiu, Cariri e outros grupos que não eram classificados pelos cronistas da época. Alguns dos povos que podem ser citados entre os não batizados pelos colonizadores são os Sucurú, os Bultrim, os Ariu, os Pega, os Panati, os Corema, os Paiacu, os Janduí, os Tremembé, os Icó, os Carateú, os Carati, os Pajok, os Aponorijon e os Gurgueia. Toda essa diversidade fora ignorada pelos invasores europeus que, por meio de um processo de aculturação que operava através da catequização e alfabetização UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX 12 compulsória de nativos às línguas e crenças europeias, apagou culturas altamente complexas e de ciência avançada. O domínio dos Tapuia sobre os saberes advindos da interação homem-natureza, poderiam, hoje, nos proporcionar diversas soluções à vida em sociedade, como a cura de diversos males e doenças, tão como uma dinâmica social mais harmoniosa e menos destrutiva em relação aos recursos naturais e seres humanos que coexistem contemporaneamente. A chegada massiva e compulsória de outro povo foi determinante à formação de nossa culturae de pensamento social brasileiro: o negro africano. Os negros foram trazidos da África pelos colonizadores europeus como alternativa à mão de obra indígena, fosse ela livre ou escrava. A expansão da economia canavieira do século XVI, trouxe consigo a demanda por um trabalho intensificado nas lavouras. Os povos africanos, fisicamente adaptados às rígidas condições de sobrevivência de seu continente de origem, foram a solução ao trabalho indígena. As razões da opção pelo escravo africano foram muitas. É melhor não falar em causas, mas em um conjunto de fatores. A escravização do índio chocou-se com uma série de inconvenientes, tendo em vista os fins da colonização. Os índios tinham uma cultura incompatível com o trabalho intensivo e regular e mais ainda compulsório, como pretendido pelos europeus. Não eram vadios ou preguiçosos. Apenas faziam o necessário para garantir sua subsistência, o que não era difícil em uma época de peixes abundantes, frutas e animais. Muito de sua energia e imaginação era empregada nos rituais, nas celebrações e nas guerras. As noções de trabalho contínuo ou do que hoje chamaríamos de produtividade eram totalmente estranhas a eles (BORIS, 1996, p. 28). A mão de obra escrava proveniente dos negros africanos foi fruto do tráfico de pessoas, intensificado durante as expedições portuguesas à costa africana no século XV. Após esse período, o comércio escravista se tornou uma atividade muito lucrativa para os colonizadores. Os escravos negros possuíam habilidades, tanto no cultivo da cana-de-açúcar – que já era uma das atividades portuguesas “Uma índia-velha cachimbeira conta a seus netos a história de luta de seus antepassados contra as invasões dos colonizadores do nordeste do Brasil, provocadas pela expansão da pecuária bovina. A historiografia oficial denominou os confrontos de guerra dos bárbaros. Resta-nos saber se são bárbaros os índios ou os europeus”, tal frase se encontra na descrição da animação feita sob direção de Júlia Manta, recontando sob a perspectiva de uma índia Tapuia remanescente do terrível massacre que, entre os séculos XVII e XVIII, tirou a paz dos povos nativos do nordeste brasileiro: A Guerra dos Bárbaros: vale a pena conferir essa interessante obra brasileira que retrata, por meio de desenhos, a força e resistência dos povos originários do Brasil contra as mazelas da colonização europeia. O vídeo pode ser assistido por meio do sítio eletrônico a seguir: https://www.youtube.com/ watch?v=e5duD0qNCrU. DICAS TÓPICO 1 — A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA 13 nas ilhas do Atlântico – quanto na criação de gado. Conforme Boris (1996), entre os anos de 1550 e 1855, cerca de 4 milhões de negros, em sua maioria jovens e do sexo masculino, entraram no Brasil pelos portos utilizados para seu comércio. Não por acaso, a partir da década de 1570 incentivou-se a importação de africanos, e a Coroa começou a tomar medidas através de várias leis, para tentar impedir o morticínio e a escravização desenfreada dos índios. As leis continham ressalvas e eram burladas com facilidade. Escravizavam-se índios em decorrência de "guerras justas", isto é, guerras consideradas defensivas, ou como punição pela prática de antropofagia. Escravizava-se também pelo resgaste, isto é, a compra de indígenas prisioneiros de outras tribos, que estavam para ser devorados em ritual antropofágico. Só em 1758 a Coroa determinou a libertação definitiva dos indígenas. Mas, no essencial, a escravidão indígena fora abandonada muito antes pelas dificuldades apontadas e pela existência de uma solução alternativa (BORIS, 1996, p. 28-29). O povo negro, assim como os nativos brasileiros, também resistiu contra a cruel dominação europeia sobre as terras do Brasil. Foram inúmeros os levantes, guerras e batalhas contra o sistema escravagista da época. É muito importante nos lembrarmos que o nosso país foi o último a abolir legalmente a escravidão dos negros africanos que para cá foram trazidos. No ano de 1758 fora abolida a escravidão dos índios e, somente em 13 de maio de 1888, os escravos negros do Brasil foram libertados das senzalas por meio da assinatura da Lei Áurea. Contudo, a abolição da escravatura em terras brasileiras não foi um simples ato de benevolência da nobreza, mas resultado de intensas e sangrentas batalhas em nome da liberdade. Cabe salientar que o povo negro brasileiro muito sofreu após a abolição da escravidão. Assolados pela fome, escassez de empregos remunerados, falta de moradias, o povo negro foi empurrado para longe do convívio do branco, concentrando-se em localidades que hoje são chamadas de periferias. Ao português estranho ao continente cumpre juntar o negro, igualmente alienígena. A importação começou desde o estabelecimento das capitanias e avultou nos séculos seguintes, primeiro por causa da cultura da cana, mais tarde por causa do fumo, das minas, do algodão e do café. Depois da supressão do tráfico em 1850, o café provocou deslocações consideráveis na distribuição interna; o mesmo efeito produziu a abolição (ABREU, 2009, p. 16). FIGURA 5 – TRANSPORTE DE NEGROS AFRICANOS PARA COMPOSIÇÃO DE MÃO DE OBRA ESCRAVA FONTE: <https://www.olharconceito.com.br/imgsite/noticias/1(85).jpg>. Acesso em: 16 maio 2020. UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX 14 Diversos foram os personagens e acontecimentos que marcaram a resistência negra em território brasileiro. Desde o suicídio das pessoas que não mais aguentavam os maus-tratos de uma vida sob regime de escravidão, os abortos induzidos pelas escravas negras que eram estupradas recorrentemente pelos seus senhores, até as paralisações, assassinatos e guerras contra os escravocratas, são exemplos de reação do povo negro trazido para cá. Muitos mártires, símbolos da violência e crueldade cometidas contra o povo negro no Brasil, são hoje considerados heróis que contribuíram no processo de libertação que se arrasta até os dias de hoje. Os escravos negros, muitas vezes, conseguiam fugir das senzalas, que eram os barracões e outras habitações insalubres e inseguras construídas pelos senhores de escravos (“donos” das pessoas que eram traficadas para mão de obra escrava) para abrigar o povo capturado em terras africanas. Esses escravos, então, associavam-se e formavam comunidades denominadas quilombos, onde passavam a se concentrar e acolher os demais negros fugitivos. Os quilombolas, moradores dos quilombos, eram comumente surpreendidos por ofensivas de capitães do mato, empregados dos senhores de escravos que caçavam e castigavam os fugitivos. Cabe salientar que muitos desses capitães do mato eram negros que ganhavam algumas regalias de seus senhores em troca de seus serviços, dentre elas a delação de escravos que planejavam fugir e a aplicação de penas físicas e diversos tipos de tortura. No interior das senzalas, os negros escravizados manifestavam sua fé e cultura, na medida do possível. As más condições das habitações resultavam em doenças e outros tipos de mazelas que dificultavam ainda mais a vida dos escravos. Já nos quilombos, que eram assentamentos mais isolados, escondidos da ação dos senhores de escravos e capitães do mato, os costumes dos negros escravizados podiam se manifestar de forma mais livre. Até hoje, no Brasil, existe certo preconceito em relação à cultura e religião de matriz afrodescendente. O senso comum dos brasileiros recorrentemente associa as crenças religiosas dos negros à feitiçaria ou a chamada “macumba”, expressão utilizada para estigmatizar a cultura negra. Houve muitas grandes e sangrentas revoltas decorrentes da tentativa de emancipação do povo negro em nosso país. Alguns dos principais símbolos de resistência negra e batalhas em nome da libertação dos escravos negros no Brasil estão listadas no quadro a seguir: QUADRO 2 – ALGUMAS DAS RESISTÊNCIAS DE ESCRAVOS NEGROS NO BRASIL • Quilombo dos Palmares: liderado por Zumbi dos Palmares e sua esposa Dandara, foi o maior quilombobrasileiro, situado onde hoje fica o estado do Alagoas, concentrando boa parte dos escravos fugitivos e soltos voluntariamente. TÓPICO 1 — A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA 15 • Fuga do Engenho Santana: em 1789, um grupo de escravos fugitivos constituiu um quilombo dentro do qual se organizaram e construíram um trato para apresentar aos senhores daquele engenho. Dentre as principais reivindicações estavam o direito ao lazer, folgas e liberação das manifestações culturais daquele grupo. • Revolta dos Malês: rebelião organizada por negros livres e escravos da Bahia em busca da abolição. Esse levante ocorreu no ano de 1835 e foi uma das dezenas de greves só no estado baiano. • Rebelião de Carrancas: outra importante rebelião ocorrida, dessa vez, em Minas Gerais no ano de 1833. • Revolta de Manoel Congo: levante organizado por Manoel Congo no município de Vassouras, no Rio de Janeiro. Ocorreu no ano de 1838. • Balaiada: resistência que ocorreu entre os anos de 1839 a 1842 no Maranhão, na qual escravos liderados por Cosme Bento das Chagas preocuparam as elites. FONTE: O autor Muito contribuiu para o fim da escravidão formal no Brasil as ações do chamado Movimento Abolicionista, composto por diversas classes sociais. Artistas, membros da elite, intelectuais, negros alforriados, escravos e mulheres promoveram diversos tipos de trabalho a favor da abolição da escravatura no Brasil. Isso não significa que os outros tipos de resistência já mencionados, além de muitos outros, não configurem movimentos abolicionistas. Todavia, o movimento passa a ter maior visibilidade e ascensão quando as camadas mais privilegiadas da sociedade brasileira interviram de forma mais ativa. Esse fato ilustra o severo grau de racismo incrustado em nossa sociedade, desde seus primórdios, quando a discriminação em relação às vontades dos negros era ainda mais explícita. FIGURA 6 – MOVIMENTO ABOLICIONISTA FONTE: <https://cutt.ly/6gbdOZ2>. Acesso em: 17 maio 2020. UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX 16 Consideradas as bases de nossa sociedade, formada pelos povos nativos, colonizadores europeus e escravos negros trazidos da África, avançaremos para os períodos posteriores à era colonial. O advento da união do território brasileiro a Portugal no ano de 1815, somado às crises financeiras e políticas da coroa portuguesa, impulsionaram uma demanda pela Independência do Brasil, que já não sustentava tantas cobranças por parte também da Inglaterra. As elites portuguesas pressionavam pela volta do regime colonial no Brasil, enquanto as elites já estabelecidas em nossas terras não possuíam esse anseio. O então rei de Portugal, Dom João VI, deixa seu filho – que viria a se tornar Dom Pedro I – tomando conta da política brasileira até que, no ano de 1889, é proclamada a República Brasileira. Nos primeiros anos da República Velha (1889-1930), nosso povo se encontrava sob regime militar. Esse período é chamado de República da Espada (1889-1894). Deodoro da Fonseca entra como Presidente da República, substituindo o regime provisório dos militares. No ano é estabelecida a Constituição de 1891, cujos principais pressupostos eram o as eleições diretas para homens alfabetizados com mais de 21 anos de idade, o federalismo, que consistia no confio de certa autonomia para os estados, divisão do poder em Legislativo, Executivo e Judiciário. Nessa época o Brasil também passa a emitir moedas em papel, medida adotada por Rui Barbosa, o então Ministro da Fazenda. O período que vai de 1894 até 1930 é chamado de República Oligárquica, quando fora eleito Prudente de Moraes, primeiro presidente civil eleito. A política do Brasil era comandada por uma oligarquia rural, ou seja, por grandes produtores. O Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM) eram os partidos que mais lançavam presidentes. A Política Café com Leite, batizada em referência às duas maiores atividades econômicas da época, era o regime eleitoral predominante, no qual os governadores dos estados brasileiros e os presidentes da República acordavam de maneira tanto legal quanto ilegal para não haver oposição à presidência vigente e garantia de autonomia estatal. De outro modo, a Política Café com Leite consistia em trocas de favores entre presidentes e governadores de forma a manipularem o jogo político. O coronelismo era o regime em que os coronéis, grandes proprietários de terra que exerciam influência direta sobre o povo que vivia no interior de seus domínios, conduziam o voto de cabresto. O voto de cabresto era a imposição do voto ao povo, que era submisso e financeiramente dependente dos violentos coronéis que o ameaçava. Tal regime provocou grandes desigualdades e exclusão no Brasil republicano, fato que motivou o nascimento dos chamados movimentos sociais do período. É válido ressaltarmos que as resistências indígena e negra do período colonial brasileiro também foram modalidade de movimento social, pois consistia na reivindicação por melhores condições de vida por parte das classes menos privilegiadas da sociedade. TÓPICO 1 — A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA 17 Entre 1893 e 1897, ocorre no Brasil a chamada Guerra de Canudos no nordeste brasileiro. Frente às condições de miséria vivenciadas pelo povo nordestino, assolado pela fome, seca e violência crescentes, Antônio Conselheiro, autointitulado um “enviado de Deus”, toma a frente de um movimento que resulta na formação do povoado de Canudos. As gigantescas proporções que o resultado dos discursos de Conselheiro tomou, abriu espaço para uma ofensiva das forças republicanas que massacraram o povo de Canudos. Há relatos que em torno de 20 mil, dos 25 mil habitantes de Canudos, foram mortos pelo exército. Além disso, aquela cidade foi totalmente destruída nesse ataque genocida ao povo nordestino, protagonizado pelas forças armadas brasileiras. Dentre os mais notáveis movimentos sociais da época estava a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, onde diversas pessoas estavam insatisfeitas com os constantes desalojamentos determinados pelo estado. Os despejos eram realizados para a manutenção viária e construção de espaços públicos, além disso, nesse mesmo período foi imposta a obrigatoriedade da vacinação contra as epidemias que assolavam o Rio. O acúmulo de lixo era um problema que trazia graves doenças para a população, dentre elas estão: a varíola, a peste bubônica e a febre amarela, doenças que matavam milhares de pessoas na época. Frente às drásticas medidas adotadas pelo então presidente Rodrigues Alves, eleito em 1902, o povo carioca se amotinou. FIGURA 7 – REVOLTA DA VACINA FONTE: <https://cutt.ly/Mgbd04S>. Acesso em: 17 maio 2020. A Revolta da Chibata (1910) foi um movimento social por meio do qual os marinheiros brasileiros de baixa patente reivindicavam o fim dos maus tratos que sofriam. O líder deles era João Cândido, conhecido como almirante negro, que fomentava os pedidos por melhor condições de trabalho, alimentação e a anistia daqueles que se envolveram na referida revolta. O movimento foi duramente reprimido pelo governo. Mais tarde, entre 1912 e 1917, ocorre a Guerra do Contestado, entre as fronteiras do estado do Paraná e Santa Catarina. UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX 18 O conflito sócio-político se originou da construção de uma estrada de ferro que ligaria São Paulo ao Rio Grande do Sul e demandou a expulsão de muitas pes- soas de suas terras. José Maria de Santo Agostinho, líder que se sensibilizou com o sofrimento daqueles camponeses, posicionou-se contra o regime republicano brasi- leiro e logo seu movimento de resistência foi desmantelado pelas forças do governo. O declínio do regime republicano oligárquico se deu com a ascensão do tenentismo. Os tenentes eram jovens oficiais que eram contra as oligarquias ruralistas que conseguiram implantar o voto secreto no Brasil. Em meio a uma crise econômica que afetou o mercado brasileirodo café, enfraquecendo as elites aqui estabelecidas, existiu também um conflito político entre Minas Gerais e São Paulo. No ano de 1930, o então presidente Washington Luís, lançado por São Paulo, estava em seu último ano de mandato, apoiando o candidato Getúlio Vargas que perdera as eleições para Júlio Prestes, de Minas Gerais. Sob suspeitas de fraudes eleitorais agravadas pelo o assassinato de João Pessoa, vice de Getúlio Vargas, Júlio Prestes é deposto por militares que, por meio de um golpe, nomeiam Vargas presidente da República no ano de 1930. Tal fato marca o fim do período da República Velha. A breve síntese que acabamos de fazer acerca da formação social do Brasil nos apresenta alguns dos elementos que formam a base de nossa sociedade. Nosso povo, nossa cultura, costumes, crenças e tradições, são fruto de um complexo e amplo processo histórico que envolveu diversos povos, de diversos cantos do Planeta. No próximo tópico continuaremos com a síntese histórica nacional sob a perspectiva de diversos autores fundamentais à teoria social brasileira. 19 Neste tópico, você aprendeu que: • O território que hoje corresponde ao Brasil era habitado por nativos de diversas etnias antes da chegada dos invasores portugueses. • Os povos indígenas, como são conhecidos até hoje os povos nativos brasileiros, possuíam uma cultura altamente desenvolvida, além do domínio sobre os recursos naturais aqui existentes. • A invasão portuguesa trouxe consigo a escravidão, tanto dos povos nativos quanto dos negros trazidos da África para cá. • Muitos movimentos de resistência e luta pela emancipação de nossos povos foram travadas em território brasileiro. • O chamado período republicano foi marcado por diversas revoltas populares e regimes políticos variados. • A sociedade brasileira foi formada por elementos advindos das culturas nativa, negra e europeia. RESUMO DO TÓPICO 1 20 1 Antes mesmo de ser conhecido como Brasil, o território no qual vivemos era habitado por diversas etnias nativas. Esses povos eram, em sua maioria, pessoas que viviam em harmonia com a natureza, além de possuírem política bem organizada e altos conhecimentos sobre os recursos naturais – que eram muito mais abundantes antes da invasão portuguesa. A chegada dos europeus em terras brasileiras foi motivo de muitos conflitos e resistência por parte dos povos que aqui habitavam. Covardemente explorados pelos colonizadores, os chamados e até hoje conhecidos como indígenas, foram submetidos a trabalhos braçais por objetos que recebiam em troca por meio do escambo, quando não eram explicitamente escravizados. De acordo com as lutas por emancipação protagonizadas pelos povos indígenas no Brasil, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) Houve grandes cercos a cidades e vilas ocupadas por colonizadores europeus em busca da libertação de pessoas escravizadas, muitos deles terminando em sangrentos confrontos entre nativos e invasores. ( ) Alguns grupos indígenas faziam acordos com colonizadores, conforme às demandas por melhores condições de vida às suas tribos, o que não impedia que membros da mesma tribo não concordassem com os termos estabelecidos pelos portugueses e outros europeus. ( ) Aconteceram conflitos nos quais diversos grupos indígenas diferentes se associaram para lutar em resistências às más condições de vida impostas pela colonização europeia, alguns terminando na expulsão ou morte de colonos invasores. ( ) Os índios submetidos ao escambo não estavam sendo explorados, pois as trocas estabelecidas pelos portugueses eram sempre justas e supriam as necessidades dos povos nativos, sem demanda por conflitos. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – V – F. b) ( ) V – V – V – V. c) ( ) F – V – V – V. d) ( ) F – V – F – V. e) ( ) F – F – F – V. 2 O povo negro que foi trazido por meio de tráfico negreiro e hoje compõe mais da metade da população brasileira, sempre foi combativo em relação aos abusos cometidos pelos senhores de engenho do período colonial brasileiro e às sequelas sociais iniciadas nesse tempo. Embora sejam diversos os relatos históricos que atribuem à Princesa Isabel e ao 13 de maio à liberdade do povo negro no Brasil, estudamos que o trabalho realizado a favor da plena emancipação dessas pessoas continua contemporaneamente, porém, protagonizado pelo próprio movimento. Foram diversos os levantes AUTOATIVIDADE 21 dos escravos negros, que se rebelavam e se concentravam em quilombos, reivindicando por direitos que vão desde melhores condições de vida nas senzalas à liberdade de manifestações culturais e religiosas. Com base nos principais conflitos que ocorreram em nome da liberdade do povo negro no Brasil, analise as sentenças a seguir: I - Zumbi dos Palmares foi um grande líder negro que orientou a resistência do quilombo dos Palmares, o maior e mais populoso do Brasil, onde ele e sua esposa Dandara trabalharam a favor da emancipação de seu povo. II - Era muito comum a prática do suicídio entre o povo negro na época das senzalas, tão como os abortos realizados por escravas que eram vítimas frequentes de estupros cometidos pelos senhores de escravos. III - Dentre as práticas de resistência, que fizeram parte da luta a favor da emancipação do povo negro no período colonial, estão as greves e os levantes contra os abusos sofridos durante o regime escravagista. IV - Apesar da Lei Áurea propor, no dia 13 de maio de 1888, a libertação dos escravos no Brasil, as dificuldades sociais junto à discriminação e preconceito contra os negros são sequelas do período escravista até os dias de hoje. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente a sentença I está correta. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) Somente a sentença III está correta. d) ( ) As sentenças I, II, III e IV estão corretas. 3 O período do Brasil República, dividido em vários momentos conforme historiadores, foi marcado por diversas revoltas populares e militares. Os novos movimentos sociais emergentes no final do século XIX e início do século XX coexistiam com diversos movimentos e dinâmicas sociais baseadas na autoridade e no militarismo. De acordo com os conhecimentos absorvidos no primeiro tópico de nosso livro de Sociologia Brasileira, disserte acerca dos conceitos de coronelismo, tenentismo e sobre a Guerra de Canudos e a Revolta da Vacina. 22 23 TÓPICO 2 — A UNIDADE 1 SISTEMATIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO A Sociologia no Brasil emergiu de um processo histórico no qual as demandas pela construção de uma teoria social que atendesse a alguns tipos de interesse. No presente tópico, abordaremos o processo de organização da Sociologia Brasileira anterior a sua formalização e institucionalização. Ou seja, analisaremos o período de nascimento das primeiras análises sociais documentadas por autores genuinamente brasileiros, que vivenciaram boa parte da história de nosso povo e nossa sociedade. Desse modo, conseguiremos acompanhar, mesmo que de maneira resumida, a trajetória que percorreram as análises sociais brasileiras. Serão estudadas desde as experiências de estudo social pioneiras, realizadas em ambiente e por profissionais não pertencentes ao meio propriamente sociológico, até o pensamento social científico/acadêmico contemporâneo, metodologicamente mais avançados. Começaremos pela contextualização do período no qual escreveram os principais autores de nosso pensamento social, partindo para a análise das ideias de diversos outros influentes pensadores nacionais, tão como aqueles que são considerados marginais, tanto acadêmica quanto popularmente. Então começaremos pelas principais abordagens dos estudos sociais do Brasil. 2 A CONSTITUIÇÃO DO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO O conflito entre classes foi o objeto de estudo mais enfatizado das Ciências Sociais em seu período de nascimento. Isso ocorria em todo o mundo e na América Latinanão foi diferente. O pensamento social foi muito influenciado pelas teorias marxistas (MARX, 2013), pois a principal preocupação dos primeiros pensadores a investigar a dinâmica social do continente era a condição de exploração das então colônias europeias. A pobreza, conflitos étnico-raciais, a violência de maneira geral e o processo histórico que resultaram em tais fatores foram as principais abordagens da época. O pensamento social no Brasil, naturalmente, foi constituído por pensadores que não eram considerados sociólogos, teóricos políticos ou outras classificações intelectuais e/ou acadêmicas. Basta lembrarmos que o reconhecimento dos campos do saber de maneira isolada, como hoje é feito na Academia, é um fenômeno bastante recente. 24 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX As primeiras formações acadêmicas de pesquisadores sociais, ocorre na década de 1930 em nosso país. As Ciências Sociais brasileiras foram impulsionadas, em grande parte, por autores independentes que relatavam suas impressões sobre o período histórico no qual viveram e seu passado. Conforme os estudos de Cândido (2006), podemos dividir a Sociologia Brasileira em dois períodos, de acordo com os pensadores e o contexto no qual escreveram. O referido autor sustenta que o primeiro período de produção do pensamento social brasileiro está compreendido entre os anos de 1880 e 1930, sendo o período de 1930-1940 considerado um momento de transição para a produção intelectual voltada à sociedade brasileira a partir da década de 1940. A partir daí a Sociologia estaria mais estruturada e seus autores cada vez mais especializados na investigação dos fenômenos sociais nacionais. No Brasil, podemos distinguir nitidamente, na evolução da Sociologia, dois períodos bem configurados (1880-1930 e depois de 1940), com uma importante fase intermédia de transição (1930-1940). No primeiro, é praticada por intelectuais não especializados, interessados principalmente em formular princípios teóricos ou interpretar de modo global a sociedade brasileira. Além disso, não se registra o seu ensino, nem a existência da pesquisa empírica sobre aspectos delimitados da realidade presente (CÂNDIDO, 2006, p. 271). Considerado o trecho anterior, partiremos das análises de autores do século XIX para então compreendermos o processo histórico pelo qual se desenvolveu o pensamento social brasileiro. Iniciaremos nossos estudos sobre a constituição do pensamento social brasileiro a partir da obra de Constância Duarte (2010) sobre Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, nascida em Papari, no Rio Grande do Norte, no ano de 1810. Ela foi um grande nome do pensamento social do século XIX e uma das pioneiras do debate de gênero nacional. Quando observamos o percurso realizado pelas mulheres na conquista de seus direitos mais elementares, como o de ser alfabetizada, poder frequentar escolas ou simplesmente ser considerada dotada de inteligência, verificamos o quanto esse trajeto foi penoso. Em parte, é possível vislumbrá-lo através das trilhas deixadas por algumas escritoras em seus textos, conscientes de que faziam parte de uma reduzida elite de mulheres letradas, e que a educação era importante para a valorização social do gênero feminino. Dentre as que participaram desse debate, ao longo do século XIX, está a norte-rio- grandense Nísia Floresta Brasileira Augusta, autora de importantes títulos sobre a mulher, professora e fundadora de colégios para meninas, que muito contribuiu para o avanço da educação feminina em nosso país (DUARTE, 2010, p. 11). Além dos direitos da mulher, Nísia Floresta reivindicava, por meio de seus escritos, pelos direitos fundamentais dos índios e dos escravos negros brasileiros. Ela escreveu sobre os direitos das mulheres e os abusos cometidos pelos homens na sociedade patriarcal na qual estamos inseridos. TÓPICO 2 — A SISTEMATIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 25 Foi um grande exemplo de resistência feminina que, em tempos quando a mulher era dificilmente alfabetizada, forçada a ficar em casa cuidando exclusivamente da família e dos afazeres domésticos, Nísia Floresta viajou por países como Portugal, Inglaterra, Alemanha, Grécia, Itália e França, estudando e lecionando para meninas. Umas de suas obras mais notáveis é Direitos das mulheres e injustiça dos homens (FLORESTA, 1839), publicada pela primeira vez no ano de 1833. Pode ser considerada uma das precursoras do movimento feminista brasileiro, inspirando não só mulheres, mas diversos estratos sociais menos privilegiados, explorados e escravizados. FIGURA 8 – RETRATO DE NÍSIA FLORESTA FONTE: Duarte (2010, p. 10) Um dos grandes nomes do abolicionismo brasileiro é o de Joaquim Na- buco (1849-1910). Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo foi um político, di- plomata, advogado e historiador pernambucano que publicava poesias e chegou a ser Deputado Geral da Província no ano de 1878. Fundou em sua casa, na praia do Flamengo, uma Sociedade Contra a Escravidão. No ano de 1884, Nabuco apoiava o Gabinete liberal Sousa Dantas, que propôs diversas medidas que objetivavam extinguir gradualmente a escravidão no Brasil. Em 1985 é promulgada a Lei dos Se- xagenários e, em 1887, Nabuco se torna deputado de Pernambuco. Em discurso na Câmara condena a utilização do Exército na perseguição dos escravos fujões. Teve forte atuação nos trâmites para a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888. FIGURA 9 – JOAQUIM NABUCO FONTE: <https://cutt.ly/egmJcqE>. Acesso em: 19 maio 2020. 26 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX No dia 29 de maio de 1867, nascia em Aracati, no Ceará, Adolfo Ferreira Caminha, um escritor naturalista que publicou poemas e fundou a Padaria Espiritual, movimento literário-político que sustentava a importância da educação no que diz respeito aos avanços sociais. Nasceu em tempos difíceis nos quais a seca assolava o nordeste brasileiro. Simpatizava com o abolicionismo e publicou o jornal O Pão. Sua difícil vida que se findou aos seus 30 anos de idade, inspirou obras grandes e quase sempre trágicas. FIGURA 10 – ADOLFO CAMINHA FONTE: <https://cutt.ly/3gmJSud>. Acesso em: 19 maio 2020. Outro grande nome do pensamento social brasileiro é João da Cruz e Sousa, poeta, filho de escravos, que nasceu em 1861, na cidade de Nossa senhora do Desterro. Teve a oportunidade de estudar no Liceu Provincial de Santa Catarina apesar da dura discriminação racial que sofria. Quem financiou seus estudos foram os antigos “proprietários” de seus pais, que eram aristocratas. Escreveu para o jornal abolicionista Tribuna Popular e é patrono da Academia Catarinense de Letras. Colaborou com o jornal Folha Popular e escreveu também para revistas. Era ativista a favor do fim do racismo e seus textos quase sempre tratavam dos temas escravidão, solidão e dor. Pode ser considerado um símbolo da difícil ascensão do povo negro aos cargos tradicionalmente brancos, tão como um dos negros pioneiros da Academia no Brasil. Apesar das dificuldades provocadas pelo racismo que sofria, era bastante reconhecido entre seus colegas e chegou a ser apelidado de “Dante Negro”, em referência ao escritor humanista da Itália, Dante Alighieri. TÓPICO 2 — A SISTEMATIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 27 FIGURA 11 – CRUZ E SOUSA FONTE: <https://cutt.ly/WgmJ0ss>. Acesso em: 19 maio 2020. Domingos José Gonçalves de Magalhães, que viria a se tornar o Visconde do Araguaia, é outro dos grandes nomes da política e pensamento social do século XIX. Foi um carioca que construiu uma densa carreira, trabalhando como médico, professor, diplomata, político, poeta e ensaísta. Divulgou a cultura brasileira por meio da Revista Niterói, fundada por ele junto aos escritores brasileiros Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879) e Francisco de Sales Torres Homem (1812-1876). Foi Deputado do Rio Grande do Sul e diplomata no cargo de Ministro de Negócios de paísescomo Paraguai, Argentina, Uruguai, Estados Unidos, Itália, Vaticano, Áustria, Rússia e Espanha. Também atuou como professor de Filosofia e possui uma extensa obra. FONTE: <https://www.todamateria.com.br/goncalves-de-magalhaes/>. Acesso em: 19 maio 2020. FIGURA 12 – GONÇALVES DE MAGALHÃES FONTE: <https://cutt.ly/ngmKvvm>. Acesso em: 19 maio 2020. 28 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX O poeta, professor, crítico de história, jornalista, teatrólogo e etnólogo, Antônio Gonçalves Dias, nasceu em Caxias, no Maranhão, no ano de 1823, sendo um dos pensadores que ajudaram a construir o pensamento social brasileiro. Fundou a Revista Literária Guanabara e escreveu para diversos jornais da época. O autor mestiço foi autor do livro Os Últimos Cantos e grande divulgador da grandeza indígena do Brasil. Exaltava o povo nativo brasileiro, atribuindo o papel de protagonista aos índios de seus contos. É autor da famosa Canção do Exílio. FIGURA 13 – GONÇALVES DIAS FONTE: <https://s.ebiografia.com/assets/img/authors/go/nc/goncalves-dias-l.jpg>. Acesso em: 19 maio 2020. Por fim, consideremos a obra de Machado de Assis, que foi um jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nascido no ano de 1839, no Rio de Janeiro. Joaquim Maria Machado de Assis é considerado um dos maiores, senão o maior nome da literatura brasileira. Foi criado no Morro do Livramento, estudou de acordo com suas condições e se tornou um grande revisor e escritor brasileiro. Também colaborou com o indianismo, dedicando várias de suas obras ao povo nativo brasileiro. No quadro a seguir, encontram-se algumas de suas principais obras e suas sínteses: QUADRO 3 – AS OBRAS MAIS IMPORTANTES DE MACHADO DE ASSIS Memórias Póstumas de Brás Cubas – Nesta criação de 1881, o autor nos mostra a perspectiva de um narrador, Brás Cubas, que decide contar sua história de vida após sua morte. O livro é cercado de ironia e críticas aos privilégios e a elite da época, uma das principais obras de Machado de Assis e sempre exigido nos vestibulares. Dom Casmurro – Esta obra foi publicada pela primeira vez em 1899 e traz o olhar minucioso do autor sobre a sociedade e um tema polêmico: o ciúme. Isso, além de uma das mais famosas personagens da literatura brasileira: Capitu. TÓPICO 2 — A SISTEMATIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 29 A Mão e a Luva – Segundo romance de Assis, a obra foi publicada em 1874, em folhetins. Dessa forma, se comparada aos livros anteriores, sua escrita é algo mais superficial e simples, com um tom novelesco. A trama gira em torno dos relacionamentos burgueses e da personagem Guiomar, protagonista considerada heroína da história. Helena – Com a trama ambientada em Andaraí, no Rio de Janeiro, acompanhamos um romance cercado de surpresas, amor proibido e personagens dramáticos. Dividido no total de 28 capítulos, esta obra de Machado de Assis faz críticas à sociedade e foi publicada em formato de folhetim, em 1876. Quincas Borba – Lançado em 1891, neste livro acompanhamos a história de Rubião, um ingênuo rapaz que decide seguir os ensinamentos do filósofo Quincas Borba. Narrado em terceira pessoa, o livro possui traços realistas para a época, com muita ironia e certas doses de pessimismo. Iaiá Garcia – Marcando o fim da fase romântica de Machado de Assis, o livro de 1878, também reúne detalhes da sociedade daquela época: os interesses, questões de poder, amores proibidos e casamentos arranjados. Ressurreição – Esta obra de Machado de Assis, de 1872, marca o estilo “machadiano”, com os traços de romance, a intimidade com o leitor e o pessimismo presente em quase todos os seus livros. No enredo temos Félix, um rapaz descrente da própria vida amorosa até se apaixonar por Lívia. Depois, somos cercados pela desconfiança do personagem e, mais uma vez, pelo ciúme cego do protagonista. FONTE: <https://beduka.com/blog/materias/literatura/principais-obras-machado-assis/>. Acesso em: 19 maio 2020. FIGURA 14 – MACHADO DE ASSIS FONTE: <http://machado.mec.gov.br/templates/machado/img/machado.png>. Acesso em: 19 maio 2020. 30 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX É claro que o pensamento social brasileiro foi construído por diversos outros autores que, infelizmente, não poderemos apresentar no presente material. Todavia, a partir da obra de tais intelectuais, conseguimos identificar os principais problemas sociais brasileiros vivenciados até o século XIX. A partir daí, podemos explorar as principais abordagens das Ciências Sociais brasileiras, por mais que ainda não existisse um campo do saber específico dedicado a esses estudos até então. As principais inquietações dos autores tributários ao pensamento social do Brasil serão abordadas no próximo subtópico, que ampliará nosso repertório de autores fundamentais à formação da Sociologia Brasileira tal como a concebemos hoje. É importante salientar que as sínteses apresentadas no presente tópico são de caráter introdutório. A complexidade e vastidão da produção da Teoria Social brasileira demanda pesquisas mais aprofundadas, tendo em vista o caráter fundamental da História do Brasil para o entendimento da problemática social nacional. 3 PRINCIPAIS ABORDAGENS DA TEORIA SOCIAL BRASILEIRA O subtópico anterior nos apresentou alguns dos tributários da Teoria Social Brasileira que evidenciam os principais objetos de estudo do período que se inicia com a chegada dos portugueses ao Brasil até o Período Colonial. Agora, destacaremos as abordagens predominantes intrínsecas ao pensamento social brasileiro, inserindo o ponto de vista de outros autores fundamentais à composição das Ciências Sociais no Brasil. No século XIX, o autor Tobias Barreto de Menezes já tecia reflexões sobre temas que abarcavam a Filosofia e Psicologia a fim de compreender o pensamento humano. Desde o referido período, Menezes (1889) já expressava suas inquietudes em relação à condição humana e nossos direitos fundamentais. A dominação de determinadas classes e os efeitos sociais do sistema capitalista faziam parte do pensamento desse autor que reconhecia a importância da literatura para a construção do pensamento social. Espíritos medíocres que tiveram a ventura de apparecer á hora própria, poderam facilmente conseguir uma reputação intelectual, acima do seu mérito e dos seus esforços. De dia em argumentando e capitalisando esse renome indebto, fructo do commercio com a ignorância geral, chegaram enfim ao ponto de immobilisar, por assim dizer, na pessoa deles, todas as honras literárias, e tornal-as para outros de uma quasi impossível acquisição (sic) (MENEZES, 1889, p. 113-114). Outras abordagens da sociedade brasileira foram realizadas por Sílvio Romero, que considerava imprescindível levarmos em conta as condições climáticas e geográficas do Brasil, os três povos fundamentais que o formaram tão como os aspectos morais de nosso povo para compreendermos nossa realidade (MORAES FILHO, 1999). O autor sustenta a ideia de que os estudos sociais devem contemplar análises antropológicas, biológicas, filosóficas e políticas para que sejam consistentes. TÓPICO 2 — A SISTEMATIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 31 [...] Sílvio Romero avança a hipótese de que o estudo deve considerar o conjunto de elementos assim classificados: primários (ou naturais); secundários (ou étnicos) e terciários (ou morais). No primeiro plano as questões mais importantes dizem respeito ao clima e ao meio geográfico. Aponta-os: “o excessivo calor, ajudado pelas secas na maior parte do país; as chuvas torrenciais no vale do Amazonas, além do intensíssimo calor; a falta de grandes vias fluviais entre o S. Francisco e o Paraíba: as febres de mau caráter reinantes na costa”. A isto acrescenta: “o mais notável dos secundários é a incapacidade relativa das três raças que constituíram a população do país. Os últimos – os fatores históricos chamados política, legislação, usos, costumes, que são efeitos que depoisatuam também como causas”. Em síntese, as diversas doutrinas acerca do Brasil chamaram a atenção para aspectos isolados, que cabia integrar num todo único. O destino do povo brasileiro, a exemplo do que se dava em relação à espécie humana, estaria traçado numa explicação de caráter biosociológica, como queria Spencer (MORAES FILHO, 1999, p. 51). A construção da nacionalidade brasileira foi abordada por Adolfo Varnhagen (1957 apud GUIMARÃES, 1988), que aborda a relação entre o homem branco, a nação e o Estado para tentar entender o fenômeno do nacionalismo. Varnhagen (1857 apud GUIMARÃES, 1988, p. 18), em relação a sua metodologia de estudos, evidencia que: “Em geral busquei inspirações de patriotismo sem ser no ódio a portugueses ou à estrangeira Europa, que nos beneficia com ilustrações; trarei de pôr um dique a tanta declamação e servilismo à democracia; e procurei ir disciplinando produtivamente certas ideias soltas de nacionalidade”. Devemos considerar o fato de que o Brasil foi construído à base de mão de obra negra e indígena, explorada pelos europeus colonizadores. A partir de tais pilares, desenvolveram-se diversos tipos de problemas sociais que hoje são investigados pela Sociologia Brasileira. A dominação de classes, raças e interesses é tema de múltiplas pesquisas que, até os dias de hoje, são desafio para os estudiosos que produzem a Teoria Social Brasileira. A economia baseada na agricultura, que carrega a herança da mão de obra escrava, reflete em diversas problemáticas sociais como a desigualdade, a violência, a miséria, o racismo e diversos outros problemas. No próximo tópico abordaremos o processo de institucionalização da Sociologia no Brasil, apresentando o desenvolvimento e a formalização da disciplina como campo do saber independente, tão como a Sociologia foi inserida no âmbito acadêmico brasileiro. Para tanto, evidenciaremos o desenrolar histórico das Ciências Sociais no país, seu contexto de formação e seus principais produtos iniciais. 32 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • A Teoria Social brasileira foi constituída, inicialmente, por diversos pensadores de distintas áreas do conhecimento que acompanhavam os problemas sociais do período histórico no qual viveram. • Dentre os autores que relataram as principais problemáticas sociais brasileiras estão tributários do abolicionismo, indianismo, feminismo entre outros. • O pensamento social brasileiro já se manifestava por meio da literatura, jornalismo, política entre outros meios, antes mesmo de se tornar um campo do saber independente. • As principais abordagens sociais estabelecidas anteriormente à formalização das Ciências Sociais no Brasil giram em torno da questão racial, colonizadora, escravista e econômica. 33 1 A Teoria Social brasileira nasceu anteriormente à formação das Ciências Humanas formais. Foram diversos os pensadores que já problematizavam, principalmente a partir do século XVIII, a sociedade que se consolidava no Brasil. Dentre os principais assuntos abordados por tais intelectuais estavam a dominação de classes, patriarcado, escravidão, formação do povo brasileiro, colonialismo e outros. Considerando a produção intelectual voltada à Teoria Social brasileira, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) Nísia Floresta, por ser considerada uma das pioneiras não só dos debates feministas brasileiros como também da ascensão acadêmica feminina, tendo em vista as dificuldades que a mulheres sofriam e sofrem até hoje em relação ao ingresso na carreira de educador no Brasil. ( ) Dentre os autores nacionais que escreviam, ainda no século XVIII, sobre o cenário social brasileiro, muitos trabalhavam como jornalistas, professores, políticos, poetas e diversas outras ocupações. ( ) Os autores que trabalhavam a favor do abolicionismo escravocrata no Brasil nem sempre eram de origem afrodescendente, sendo alguns deles políticos, intelectuais, artistas e outros simpatizantes não negros da causa. ( ) O indianismo é uma das vertentes que surgiram da necessidade que alguns autores tiveram de resgatar o protagonismo indígena na formação do povo brasileiro, ou seja, reatribuir aos povos nativos do Brasil o título de brasileiros legítimos, cuja cultura e etnia foram reduzidas drástica e cruelmente frente à dominação europeia. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – V – F. b) ( ) V – V – V – V. c) ( ) F – V – V – V. d) ( ) F – F – V – V. e) ( ) F – F – F – V. 2 O contexto histórico-geográfico no qual se formou o Brasil é único, assim como em cada um dos países colonizados ou não. As condições materiais de cada território, tão como as especificidades de cada povo que habita determinada região são fatores particulares que ajudam a moldar as civilizações que ocupam qualquer tipo de espaço. No caso do Brasil, a riqueza de recursos naturais e a multiplicidade de etnias que aqui habitavam antes da invasão portuguesa, são os pilares de nossa história, que continuou após a chegada dos colonizadores e do povo negro trazido da África para serem escravizados aqui. Frente à diversidade dos elementos que constituem a sociedade brasileira, foram tecidas análises sociais que, desde a chegada dos europeus às terras tupiniquins, serviram de base para formação da Teoria Social brasileira. Com base nas afirmações sobre as principais abordagens do pensamento social brasileiro do Período Colonial, analise as sentenças a seguir: AUTOATIVIDADE 34 I- Um dos temas mais discutidos entre os pensadores do Período Colonial brasileiro é o da exploração do povo nativo, êxodos e o a mão de obra escrava com todas suas implicações. II- Os autores do século XVIII e início do século XIX relataram diversos tipos de conflitos entre colonizadores e povos nativos, europeus e escravos negros além de alianças entre alguns povos distintos. III- São frequentes os relatos de lutas entre indígenas e negros que disputavam o território brasileiro, tão como a união entre povos europeus para escravização e comercialização do povo nativo em terras estrangeiras. IV- Muitos dos relatos dos precursores do pensamento social brasileiro são referentes às resistências que culminaram na expulsão de alguns grupos de colonizadores das terras por ele invadidas. Assinale a alternativa CORRETA? a) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas. b) ( ) As sentenças I, II e IV estão corretas. c) ( ) As sentenças I e II estão corretas. d) ( ) As sentenças I e IV estão corretas. e) ( ) As sentenças II, III e IV estão corretas. 3 A ocupação de nosso território por colonizadores europeus é comumente retratada como o “descobrimento do Brasil”, todavia, sabemos que aqui já existia uma multiplicidade de povos e etnias com dinâmicas sociais muito diferentes da europeia, antes mesmo do ano de 1500. O processo de aculturação “soterrou” uma grande variedade de culturas, crenças, conhecimentos e maneiras de se interagir com a natureza e seus recursos. Sabendo isso, faça uma reflexão sobre um Brasil contemporâneo, caso os colonizadores não tivessem ocupado as terras dos povos originários. Disserte sobre como seria, em sua opinião, um Brasil formado pelos povos nativos, sem a interferência do restante do mundo, sem a presença da dinâmica capitalista de superprodução, acumulação e consumo, sem exploração dos povos e recursos naturais aqui existentes. 35 TÓPICO 3 — UNIDADE 1 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO No presente tópico, daremos sequência à reconstituição e síntese histórica iniciada no primeiro tópico, contextualizando o nascimento da Sociologia no Brasil como campo do conhecimento independente. Trabalharemos também a trajetória dos estudos sociais brasileiros, analisando a maneira com a qual é inserida, suspensa e retorna à educação pública nacional. Para tanto, iniciaremos nossas analises a partir da Revolução de 1930, quando se inicia a Era Vargas,período da História do Brasil em que as ciências sociais ganham um novo escopo, uma nova dinâmica política emerge e a Sociologia ganha um espaço no qual jamais esteve inserido. Acompanhe, então, como evoluiu e as transformações que sofreu a Sociologia Brasileira com o desenrolar do processo histórico. 2 O NASCIMENTO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL No período que compreende os anos de 1930 a 1945, intitulado Era Vargas, o Brasil passa por profundas mudanças políticas, econômicas e sociais. Com a tomada de poder por Getúlio Vargas, que assumiu o governo do país por meio de um Golpe de Estado apoiado principalmente por militares, a dinâmica da Política Café com Leite é rompida, afastando as oligarquias da alternância de poder no Brasil. Uma de suas primeiras medidas com relação à Economia nacional foi a queima de uma grande parte do café produzido e estocado no país a fim de valorizar o produto, tendo em vista que a Crise Econômica de 1929 havia prejudicado o preço do café. Outra importante medida adotada por Getúlio Vargas foi o investimento na indústria com o intuito de substituir a antiga economia baseada no comércio de produtos agrícolas. Nesse período, mais especificamente no ano de 1932, foi publicado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, um documento escrito por intelectuais brasileiros com o objetivo de orientar uma transformação social por meio de políticas públicas educacionais brasileiras. Dentre os principais pressupostos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova estava o enaltecimento dos direitos dos cidadãos brasileiros no que tange à educação. 36 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX O material propunha que a educação brasileira fosse única, gratuita, obrigatória e laica, respeitando o protagonismo da sociedade brasileira sobre nosso desenvolvimento social. O Estado, a partir daí, teria maiores responsabilidades sobre a educação no país, garantindo o acesso e a permanência de jovens nas escolas. A Reforma Capanema foi uma reforma educacional promovida pelo ministro da Educação e da Saúde de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema, que implementou, no ano de 1942, uma política educacional alinhada ao seu ideário. A referida reforma foi responsável pela regulamentação do ensino primário, criou o supletivo para as pessoas que não puderam concluir os estudos no tempo estabelecido, organizou o ensino ginasial (4 anos) e colegial (3 anos), estabeleceu o ensino profissional de nível médio além da criação do “Sistema S” de formação profissional. De acordo com a Agência Senado, Sistema S é um: A adoção da Reforma Capanema revela uma característica fundamental no propósito da educação brasileira no início do século XX. Os investimentos eram majoritariamente voltados à formação profissional do povo, tendo em vista a tentativa de industrialização do Brasil durante a Era Vargas. Os estudos de Torres (2016) identificam que essa tendência perdura contemporaneamente nas políticas públicas educacionais brasileiras. Todavia, foi também durante a Era Vargas que a Sociologia emerge como campo especializado do saber em terras tupiniquins. Como Cândido (2006) já nos revelava no ano de 1956, de acordo com suas pesquisas, a Sociologia no Brasil pode ser considerada existente desde o século XIX, sendo, até a década de 1930, constituída por juristas e diversos outros tipos de profissionais. De 1930 a 1940, o Brasil passa por um período de transição que profissionaliza os pesquisadores da Teoria Social. Os estudos de Liedke Filho (2005) revelam parte da história da Sociologia no Brasil, tão como algumas etapas de sua evolução, suas influências europeias e norte-americanas entre outros aspectos que moldaram a Sociologia Brasileira. Liedke Filho (2005) aponta que a emergência e a evolução da Sociologia como uma disciplina acadêmico-científica no Brasil e na América Latina se divide em duas etapas, cada uma por sua vez passa por dois períodos fundamentais. Observe: Termo que define o conjunto de organizações das entidades corporativas voltadas para o treinamento profissional, assistência social, consultoria, pesquisa e assistência técnica, que além de terem seu nome iniciado com a letra S, têm raízes comuns e características organizacionais similares. Fazem parte do sistema S: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai); Serviço Social do Comércio (Sesc); Serviço Social da Indústria (Sesi); e Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac). Existem ainda os seguintes: Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar); Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop); e Serviço Social de Transporte (Sest). FONTE: <https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/sistema-s>. Acesso em: 3 jun. 2020. TÓPICO 3 — A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 37 • A Herança Histórico-cultural da Sociologia: o Período dos Pensadores Sociais. o Período da Sociologia de Cátedra. • Etapa Contemporânea da Sociologia: o Período da Sociologia Científica. o Período de Crise e Diversificação. Liedke Filho (2005) concorda com Cândido (2006) ao caracterizar o primeiro período da primeira etapa, a Herança Histórico-Cultural da Sociologia Brasileira (século XIX até início do século XX). O período dos Pensadores Sociais, também chamado por alguns autores de período Pré-Científico, corresponde historicamente ao período que se estende das lutas pela Independência das nações latino-americanas até o início do século XX. Durante esse período, a elaboração de teoria social tendeu a ser desenvolvida por pensadores e mesmo homens de ação (políticos), sob a influência de ideias filosófico-sociais europeias ou norte-americanas, por exemplo, o iluminismo francês, o ecletismo de Cousin, o positivismo de Comte, o evolucionismo de Spencer e Haeckel, o social-darwinismo americano de Sumner e Ward e o determinismo biológico de Lombroso. Sob as influências desses autores buscava- se equacionar duas problemáticas centrais – a formação do Estado nacional brasileiro, opondo liberais e autoritários, e a questão da identidade nacional, tendo como núcleo a questão racial opondo os que sustentavam uma visão racista e os inspirados pelo relativismo étnico- cultural (LIEDKE FILHO, 2005, p. 377). Após o momento que os primeiros Pensadores Sociais informais emergem no Brasil, o período da Sociologia de Cátedra se desenvolve de forma a fortalecer as bases da Teoria Social Brasileira. O período da Sociologia de Cátedra iniciou-se nos países latino- americanos em fins do século passado, quando cátedras de Sociologia foram introduzidas nas Faculdades de Filosofia, Direito e Economia. No Brasil, esse período teve início em meados da década de vinte, quando foram criadas as primeiras cátedras de Sociologia em Escolas Normais (1924-25), enquanto disciplina auxiliar da pedagogia, dentro do esforço democratizante do movimento reformista pedagógico que tem sua expressão maior no movimento da Escola Nova. Neste momento, ocorreu a proliferação de publicações como os manuais e coletâneas para o ensino de Sociologia, os quais procuravam divulgar as ideias de cientistas sociais europeus e norte-americanos renomados, tais como Durkheim e Dewey, bem como ideias sociológicas acerca de problemas sociais como urbanização, migrações, analfabetismo e pobreza. Ao mesmo tempo, a questão da miscigenação racial no Brasil passou a ser tratada em uma perspectiva otimista como em Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre (2000) (LIEDKE FILHO, 2005, p. 380-381). O segundo momento, a Etapa Contemporânea da Sociologia, é subdividido em Período da Sociologia Científica e Período de Crise e Diversificação. No primeiro período ocorre um fenômeno muito importante à Sociologia Brasileira: a institucionalização da Sociologia no Brasil. 38 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX A institucionalização acadêmica da Sociologia no Brasil ocorreu em meados da década de 1930, com a criação da Escola Livre de Sociologiae Política de São Paulo (1933) e com a criação da Seção de Sociologia e Ciência Política da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (1934). As tentativas, de relacionar o ensino e a pesquisa em Sociologia, ainda que limitadas e parciais em ambas as instituições, demarcam o início da chamada etapa da Sociologia Científica, a qual viria a ter seu apogeu em fins dos anos de 1950 (LIEDKE FILHO, 2005, p. 382). O atual momento da Sociologia Brasileira se inicia com o Período de Crise e Diversificação da Sociologia no Brasil. No bojo da crise social e política brasileira e latino-americana do final dos anos 50 e início da década de 60 [...], verificou-se o início do período de crise e diversificação da Sociologia brasileira. Este momento foi caracterizado pela crise institucional e profissional da Sociologia e das ciências sociais em geral, sob o efeito das medidas repressivas (cassações, prisões, exílios e desaparecimento) dos regimes autoritários. O Golpe de 1964 no Brasil inaugura este ciclo autoritário, também chamado de ciclo do novo autoritarismo, caracterizado pela transformação dos estados desenvolvimentistas-populistas da região em estados burocrático-autoritários, na terminologia proposta por Guillermo O’Donnell (1982), e seguido por uma sucessão de golpes militares, como os ocorridos na Argentina (golpes de 1966 e 1976) e no Uruguai (golpe de 1973) (LIEDKE FILHO, 2005, p. 384). O quadro a seguir sintetiza os principais momentos da trajetória do Pensamento Social Brasileiro, dos primeiros pensadores que lançaram mão das primeiras análises sociais no Brasil à institucionalização e principais crises da Sociologia nacional. Observe: QUADRO 4 – A SOCIOLOGIA NO BRASIL Período aproximado Entre 1888 e 1934 Entre 1934 e 1957 Entre 1957 e 2002 Influências Lombroso; Spencer; Comte; Durkheim; Dewey. Escola de Chicago; Marx; Weber; Manheim; Goldman; Luckàcks; Sartre. Gramsci; Althusser; Elias; Habermas; Foucault; Giddens; Bourdieu; Weber. TÓPICO 3 — A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 39 Temas Identidade Nacional; Miscigenação Racial (Visão Pessimista); Escola Nova e Democratização; Miscigenação Racial (Visão Otimista). Relações Raciais e Democracia Racial; Estudos de Comunidade; Transição para a Modernidade; Dois Brasis. Multiculturalismo; Raças; Gênero; Direitos Humanos; Violência; Desigualdades Sociais; Religiões; Representações Sociais; Identidades Sociais; Novos Movimentos Sociais; Reativação da Sociedade Civil Problemáticas Visão Racista X Relativismo; Questão Racial; Liberais X Autoritários; Formação do Estado Nacional. Sociedade Tradicional e Sociedade Moderna; Modernização, Dependência e Nacionalismo; Subdesenvolvimento e Desenvolvimento. Autoritarismo X Democratização. Etapas da sociologia PENSADORES SOCIAIS (Não formais); SOCIOLOGIA DE CÁTEDRA (Cátedras em Escolas Normais). SOCIOLOGIA CIENTÍFICA (Cursos de Sociologia e Política na USP; Escola Livre Sociologia e Política). CRISE E DIVERSIFICAÇÃO (Cassações e Censura); NOVA IDENTIDADE SOCIOLÓGICA (Contemporaneidade). FONTE: Adaptado de Liedke Filho (2005) Podemos concluir que o estabelecimento da Sociologia no Brasil passou por diversas etapas desde sua construção, institucionalização até sua autonomia e profissionalização. Agora, concentraremos nossas análises nos principais desafios enfrentados pelos brasileiros em busca da ascensão da Sociologia no Brasil. 3 A SOCIOLOGIA BRASILEIRA E SEUS PRINCIPAIS DESAFIOS Prosseguindo sob as análises de Liedke Filho (2005), acompanharemos as principais tribulações da Sociologia Brasileira. Iniciaremos do período de Crise e Diversificação da Sociologia Brasileira que, desde a crítica marxista emergente no fim da década de 1950 e início dos anos 1960, implicou uma mudança de paradigma no que se refere ao pensamento social brasileiro. As mudanças político-culturais das décadas de 1960 e 1970 no mundo inteiro colaboraram com as mudanças estruturais da Teoria Social, inclusive no Brasil. 40 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX FIGURA 15 – REFLEXÃO SOBRE AS DIFICULDADES DE ESTABELECIMENTO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL FONTE: <https://cafecomsociologia.com/wp-content/uploads/2016/02/Untitled- -1-2280x1052_c.jpg>. Acesso em: 3 jun. 2020. Partindo do pressuposto que a Sociologia é uma fundamental ferramenta utilizada a favor da conscientização e mudanças sociais contemporâneas, devemos refletir sobre os motivos pelos quais esse campo do saber enfrenta diversos obstáculos para sua inserção e estabelecimento na educação básica brasileira. As segunda onda de sequentes ditaduras militares na América Latina, ocorrida a partir da década de 1960, teve início no Brasil no ano de 1964, passando pela Bolívia (1964), Argentina (1966 e, posteriormente, 1976) e pelo Chile e Uruguai no mesmo ano (1973), foram marco de sucessivas repressões armadas, cassações, prisões, exílios, desaparecimentos e censuras aos pensadores das Ciências Sociais. O Golpe Militar de 1964, que deu início ao período da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), foi marco de inúmeros retrocessos às Ciências Sociais brasileiras. Alguns dos acontecimentos mais notáveis foram o fechamento, em 1964, do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), criado pelo Decreto nº 37.608, de 14 de julho de 1955, como órgão do Ministério da Educação e Cultura, e as cassações na Universidade de São Paulo, no ano de 1969. Em contrapartida, surgiram alguns centros privados de pesquisas como o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea) e o IDESP (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo). O impacto negativo da instauração do regime autoritário sobre a evolução sociológica brasileira está relacionado diretamente com o golpe de 1964 e com o “golpe dentro do golpe” de 1968 que tem no AI-5 seu marco principal. O fechamento do ISEB, em 1964, os IPM e as cassações pareciam indicar que as ciências sociais brasileiras estavam entrando em um período recessivo. O fechamento do ISEB em 1964 pelo regime militar e as cassações de cientistas sociais em 1969, assim como o impacto negativo da repressão cultural-educacional aos níveis universitários e das condições de exercício profissional, correspondem plenamente às características gerais da quarta etapa de evolução da Sociologia na América Latina. Todavia, em contraste com TÓPICO 3 — A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 41 a evolução adversa da Sociologia em outros países latino-americanos, particularmente do Cone Sul, sob as condições autoritárias, a Sociologia no Brasil experimentou uma razoável expansão institucional do ensino e da pesquisa (LIEDKE FILHO, 2005, p. 396). O regime militar reavivou um costume que já se praticava no Brasil desde a Era Vargas: a queima de livros considerados subversivos. O regime militar brasileiro, além de queimar diversos títulos considerados nocivos à ordem estabelecida pelo exército nacional, fechou as portas de diversas instituições de ensino, bibliotecas e centros de estudos onde literaturas libertárias eram compartilhadas. A imagem a seguir ilustra a queima de livros como ato de repressão às ideias consideradas contrárias à hegemonia política vigente no Brasil na década de 1930. A partir da análise de tal tipo de censura de conhecimento, podemos concluir que os saberes produzidos não só na academia, mas por diversas categorias de intelectuais do Brasil, são, há muito tempo, considerados subversivos e, portanto, alvo de diversas retaliações políticas. FIGURA 16 – REFLEXÃO SOBRE A QUEIMA DE LIVROS COMO REPRESSÃO INTELECTUAL NO BRASIL FONTE: <https://www.correio24horas.com.br/fileadmin/acervo/tt_news/Midia_Santana/recor- te_jornal013.jpg>. Acesso em: 4 jun. 2020. A perseguição de intelectuais e suas obras é recorrente em regimes ditatoriais, ou seja, que não aceite e, consequentemente,reprimem outros tipos de manifestação política. A ditadura militar brasileira não atuou de maneira diferente, silenciando boa parte da população brasileira sustentando falsos argumentos baseados no crescimento e modernização do Brasil. A referida ação é, além de antidemocrática, nociva à evolução e emancipação intelectual do povo brasileiro. 42 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX O Relatório Final da Comissão da Verdade da UFES (2016), destaca a fase da Universidade em tempos de ditadura como uma época de contradições. Por um lado se apresentava um projeto de modernização da sociedade em que as Universidades ocupavam um lugar de destaque, e por outro lado e ao mesmo tempo é estruturada uma política de estado voltada para a repressão e o silenciamento da sociedade, que constitui o alicerce principal do projeto de hegemonia do grupo político que assumiu o poder no Brasil em 1964. As universidades tinham papel estratégico na construção do ideal do “Brasil Grande” elaborado pelo regime militar (LIMA, 2017, p. 43). Dentre alguns intelectuais censurados e exilados durante o período da ditadura militar estão: • Ferreira Gullar Militante do Partido Comunista Brasileiro, o poeta foi preso logo após a assinatura do Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968. Atuando na clandestinidade desde então, somente em 1971 é que Gullar deixou o país. Durante os anos de exílio, passou por Moscou, na Rússia; Santiago, no Chile; Lima, no Peru; e Buenos Aires, na Argentina. Seu retorno ao Brasil aconteceu somente em março de 1977. FONTE: <https://www.dw.com/pt-br/exilados-durante-a-ditadura-militar/g-17517116>. Acesso em: 4 jun. 2020. • Oscar Niemeyer Membro do Partido Comunista Brasileiro desde 1945, o arquiteto foi perseguido pelo governo após o golpe. Impedido de trabalhar no Brasil, em 1967 seguiu para a França, onde se instalou em Paris, e recebeu autorização de Charles de Gaulle para exercer sua profissão no país. Reconhecido e valorizado no exterior, Niemeyer só voltou para o Brasil no início da década de 1980. FONTE: <https://www.dw.com/pt-br/exilados-durante-a-ditadura-militar/g-17517116>. Acesso em: 4 jun. 2020. • Ana Maria Machado Ana Maria Machado nasceu em Santa Teresa, Rio de Janeiro, em 24 de dezembro de 1941. É casada com o músico Lourenço Baeta, do quarteto Boca Livre, tendo o casal uma filha. Do casamento anterior com o médico Álvaro Machado, Ana Maria teve dois filhos. Estudou no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no MoMa de Nova York, participou de salões e exposições individuais e coletivas no país e no exterior, enquanto fazia o curso de Letras (depois de desistir do curso de Geografia). Formou-se em Letras Neolatinas, em 1964, na então Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, TÓPICO 3 — A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 43 e fez estudos de pós-graduação na UFRJ. Em janeiro de 1970, deixou o Brasil e partiu para o exílio. Na bagagem, levava cópias de algumas histórias infantis que estava escrevendo, a convite da revista Recreio. Trabalhou como jornalista na revista Elle em Paris e no Serviço Brasileiro da BBC de Londres, além de se tornar professora de Língua Portuguesa na Sorbonne. Nesse período, participou de um seleto grupo de estudantes na École Pratique des Hautes Études cujo mestre era Roland Barthes, sob cuja orientação terminou sua tese de doutorado em Linguística e Semiologia, em Paris. O trabalho resultou no livro Recado do Nome (1976), sobre a obra de Guimarães Rosa. FONTE: <http://www.academia.org.br/academicos/ana-maria-machado/biografia>. Acesso em: 4 jun. 2020. FIGURA 17 – ANA MARIA MACHADO FONTE: <https://www.academia.org.br/sites/default/files/academicos/fotografias/ana-maria-ma- chado.jpg>. Acesso em: 4 jun. 2020. • Glauber Rocha O aumento da repressão durante a ditadura fez com que o cineasta partisse para o exílio em 1971. Durante a temporada fora do Brasil – que duraria cinco anos –, Rocha passou por diversos países da América Latina, Europa e nos EUA. Executou uma série de projetos no período em que ficou no exterior e retornou ao Brasil apenas em 1976. FONTE: <https://www.dw.com/pt-br/exilados-durante-a-ditadura-militar/g-17517116>. Acesso em: 4 jun. 2020. 44 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX • Fernando Gabeira No final dos anos 1960, o jornalista e ex-deputado ingressou na luta armada contra a ditadura militar, tendo participado do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. Foi preso e, depois de ser libertado, partiu para o exílio. Durante este tempo, passou por Chile, Suécia e Itália. Ficou dez anos fora do Brasil. Retornou com a anistia, no fim de 1979. FONTE: <https://www.dw.com/pt-br/exilados-durante-a-ditadura-militar/g-17517116>. Acesso em: 4 jun. 2020. • Augusto Boal A entrada em vigor do AI-5 fez com que o dramaturgo deixasse o país com o Teatro Arena, em uma excursão de um ano, entre 1969 e 1970, por EUA, México, Argentina e Peru. Quando voltou ao Brasil, foi preso e torturado e decidiu seguir para a Argentina. Boal passaria ainda por uma série de outros países antes de voltar ao Brasil, em 1984. FONTE: <https://www.dw.com/pt-br/exilados-durante-a-ditadura-militar/g-17517116>. Acesso em: 4 jun. 2020. • Álvaro Vieira Pinto Álvaro Vieira Pinto nasceu em Campos (RJ), no dia 11 de novembro de 1909. Formado em medicina em 1932, pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro, em 1934 ingressou na Ação Integralista Brasileira (AIB), organização de inspiração fascista, liderada por Plínio Salgado. No campo profissional, dedicou-se aos estudos e pesquisas laboratoriais. Paralelamente, completou os cursos de física e matemática na Universidade do Distrito Federal (UDF). Alceu Amoroso Lima, então reitor da UDF, indicou-o para ensinar lógica matemática, disciplina pela primeira fez oferecida no país. Exilou-se a princípio na Iugoslávia e posteriormente no Chile. FONTE: <https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/biografias/alvaro_vieira_pinto>. Acesso em: 4 jun. 2020. • Darcy Ribeiro Formado em antropologia, dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia (1946-1956). Nesse período, criou o Museu do Índio e formulou o projeto de TÓPICO 3 — A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 45 criação do Parque Indígena do Xingu. Elaborou para a Unesco um estudo sobre o impacto da civilização sobre grupos indígenas brasileiros no século XX e, em 1954, colaborou com a Organização Internacional do Trabalho na preparação de um manual sobre os povos aborígenes de todo o mundo. Foram 12 anos exilado entre o Uruguai, Venezuela, Chile, Peru e México. FONTE: <http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/darcy-ribeiro/>. Acesso em: 4 jun. 2020. • Paulo Freire Quando os militares tomaram o poder em 1º abr. 1964, depondo o então presidente João Goulart, Paulo Freire vivia com a família em Brasília, a serviço do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Envolvido com o trabalho de formação de professores em Goiânia, era sua assistente, Carmita Andrade, quem o mantinha informado sobre a intensa movimentação política na capital. Na Câmara dos Deputados, políticos conservadores se revezavam na condenação permanente de seu método de alfabetização. Em 18 de abril, o deputado Emival Caiado, do partido conservador União Democrática Nacional (UDN), denunciou Mauro Borges, então governador de Goiás e aliado do ex-presidente Jango, de implantar o comunismo no Estado: “O método comunizante do sr. Paulo Freire teve entusiástica acolhida do Governo goiano. O sr. Mauro Borges deu total e completa cobertura a órgãos estudantis dominados por comunistas”. Caiado concluiu, aos brados: “Não creio que em nenhum outro Estado o comunismo tenha se infiltrado tanto!”. Paulo se rendeu ao apelo feito por vários de seus amigos, entre eles o professor de literatura e líder católico Alceu AmorosoLima, conhecido também como Tristão de Ataíde, e buscou exílio na embaixada da Bolívia. Antes disso, tentara sem sucesso a representação diplomática do Chile, que recusara seu pedido. Muitos colegas também tentaram encontrar formas de acolhê-lo no exterior, caso de Ivan Illich, educador austríaco radicado no México, que conhecera Paulo em uma visita ao Recife, mas nada havia dado certo até então. FONTE: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/22/cultura/1571754417_189523.html>. Acesso em: 4 jun. 2020. 46 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX FIGURA 18 – PAULO FREIRE FONTE: <https://cutt.ly/zgm0atEl>. Acesso em: 4 jun. 2020. Dentre as pessoas que foram exiladas, mortas e/ou desaparecidas durante o regime militar no Brasil, grande parte eram mulheres, estudantes, professores e outras categorias de intelectuais que lutaram contra os abusos de poder cometidos durante o período. Em sua obra, Costa et al. (1980) constitui um apanhado de relatos de mulheres que muito sofreram com a ditadura. A seguir consta um dos depoimentos de uma vítima de tortura cometida pelos militares que defendiam o governo ditatorial: [...] me puseram numa cela e jogaram Sandra noutra, perto da minha, uma cela suja, sem cama. Ela gritava muito porque entravam e torturavam ali mesmo. A cada momento chegava um tenente daqueles que queria forçar até estuprá-la e tudo. E eu passei a noite assim, andei o resto da noite com este tipo de tortura na minha cabeça. Ela gritando de um lado e eu, sem condições de pensar direito nem nada, num estado nervoso, tremendo, querendo raciocinar... pensar... (COSTA et al., 1980, p. 165). A chamada Nova República, período posterior à ditadura militar, e a implementação da nova Constituição de 1988 (BRASIL, 2002), trouxe consigo uma nova abordagem sociológica no Brasil. Liedke Filho (2005) sintetiza as consequências da “transição democrática” em relação à produção da Teoria Social no país, apontando uma tendência microssociológica de tais análises. Ou seja, as análises sociais brasileiras se voltaram ao estudo de movimentos menores, que não concernem mais à resolução de problemas estruturais maiores, como o do sistema político-econômico-social vigente. A Sociologia no Brasil, no período dos anos 1960 e 1970 para os anos 1990, vivenciou uma passagem de análises macrossociológicas de crítica ao modelo econômico-social excludente do “milagre” e de crítica ao modelo autoritário para uma microssociologização dos estudos. Em grandes linhas, verificou-se uma evolução temática da Sociologia brasileira nos seguintes termos: de grandes interpretações macroestruturais do modelo econômico-político-cultural do regime anterior, passou-se para a análise dos agentes e características da transição democrática, seguida dos temas da democratização TÓPICO 3 — A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 47 necessária, dos movimentos sociais e da estratégia de reativação da sociedade civil. Rapidamente, ocorreu uma dissociação da questão dos movimentos sociais em relação a condições macroestruturais, passando a Sociologia a dedicar-se massivamente a enfocar as identidades e representações sociais dos movimentos urbanos e rurais, do movimento sindical, dos movimentos feministas e gay, do movimento negro e dos movimentos ecológicos. Filosoficamente poder-se-ia dizer que, em termos clássicos, ocorreu um tipo de passagem do privilegiamento da questão do “para-si” para o “em-si” dos movimentos sociais (LIEDKE FILHO, 2005, p. 425-426). Darcy Ribeiro é um dos grandes nomes do Pensamento Social Brasileiro. Intelectual formado em Medicina e Ciências Sociais, Darcy Ribeiro se interessava por temas ligados aos povos nativos brasileiros, Cultura e Educação, trabalhando no Ministério da Cultura e da Educação e também como Chefe da Casa Civil. Com a implantação do regime militar, exilou-se em diversos países da América Latina onde continuou sua atuação política, assessorando diretamente presidentes como Allende, no Chile, e Velasco Alvarado, no Peru. Em uma entrevista concedida ao programa Roda Viva da TV Cultura no ano de 1988, Darcy tece observações sobre o regime militar brasileiro e suas consequências à Cultura, Educação e Política brasileiras. O vídeo pode ser acessado por meio do endereço eletrônico a seguir: https://www. youtube.com/watch?v=6r7QDo9yHJk. Suas análises são muito importantes e capazes de ampliar nossas perspectivas sobre a Ditadura Militar no Brasil e suas implicações na Ciência, em especial, as Ciências Sociais brasileiras. O programa Roda Viva da TV Cultura foi responsável por entrevistas coletivas com grandes nomes do pensamento social do Brasil e do mundo, portanto, é altamente recomendável o acesso a esse canal informativo que representa uma excelente ferramenta a favor da compreensão da dinâmica política mundial, especialmente da América Latina. DICAS Contemporaneamente, o Brasil enfrenta sérias dificuldades em relação ao ensino das disciplinas, sobretudo, do campo das Ciências Humanas nas escolas públicas. Apesar de a Sociologia se tornar, no ano de 2009, conteúdo obrigatório nas escolas de ensino médio brasileiras, que era facultativo depois do ano de 1980 até então, é visível a tentativa de boicote da disciplina por parte dos últimos governantes brasileiros. Podemos associar tal fenômeno a partir das análises de Ianni (1997) acerca da importância da Sociologia como instrumento de compreensão, inserção e construção social. Observe: A Sociologia pode ser vista como uma forma de autoconsciência da realidade social. Essa realidade pode ser local, nacional, regional ou mundial, micro ou macro, mas cabe sempre a possibilidade de que ela possa pensar-se criticamente, com base nos recursos metodológicos e epistemológicos que constituem a Sociologia como disciplina científica. [...] Ocorre que a Sociologia pode tanto decantar a tessitura e a dinâmica da realidade social como participar da constituição dessa tessitura e dinâmica. Na medida em que o conhecimento sociológico 48 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX se produz, logo entra na trama das relações sociais, no jogo das forças que organizam e movem, tensionam e rompem a tessitura e a dinâmica da realidade social (IANNI, 1997, p. 25). Dentre as tentativas de restrição ao ensino das Ciências Humanas, com destaque à Sociologia no Brasil, estão as recentes leis referentes às reformas do Ensino Médio no ano de 2017. Com a implementação da Lei da Reforma do Ensino Médio (13.415/2017), que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, o Ensino de Sociologia perdeu o seu caráter de obrigatoriedade, assim como várias outras disciplinas importantes à formação cidadã e crítica da juventude brasileira. Um imenso retrocesso considerando que: A presença da Sociologia no Ensino Médio é de grande relevância para os jovens brasileiros. Primeiramente, porque é capaz de cumprir com a proposta expressa pela Lei nº 9.394/96 (LDB/96) de associar conhecimentos de sociologia ao exercício da cidadania. Mesmo que a disciplina Sociologia não seja a única capaz de fomentar nos alunos a propensão a discorrer sobre assuntos ligados à cidadania, seu conteúdo programático contém preceitos diretamente relacionados a esse conceito. Um curso de Sociologia pressupõe a apreensão de temas e autores oriundos da Ciência Política (o que engloba noções de sistemas políticos, formas de exercício do poder, participação popular na política, eleições etc.), da Antropologia e sua abordagem relativista (capaz de contrastar de forma linear diferentes modelos de organização social), além dos conceitos e teorias fundamentais da Sociologia, que contribuem para a compreensão das relações sociais (tais como desigualdades, gênero, cor/raça, mobilidade social, família, religião etc.). Desse modo, é inegável que, se não é a única disciplina capaz de incutir nos estudantes um espírito que os leve a atuarde forma cidadã, a Sociologia conta com ferramentas adequadas a propiciar uma formação reflexiva, que parte da teoria fundamentada para a apreensão do real e do cotidiano (BRASIL, 2006a) (MACHALA, 2017, p. 17). Podemos concluir que o estudo da Sociologia é fundamental para o desenvolvimento cognitivo, cívico, moral, ético entre outras instâncias individuais, além de ser forte aliado ao processo de conscientização que, para Paulo Freire (1980), é importante ferramenta de emancipação intelectual e física dos indivíduos. Frente aos aspectos emancipadores intrínsecos à Sociologia, diversas barreiras foram impostas ao estudo, desenvolvimento e ensino da Teoria Social no Brasil e no mundo. O período do regime militar brasileiro foi responsável pela imposição de diversas barreiras ao desenvolvimento da Sociologia Brasileira, as quais persistem até os dias atuais. TÓPICO 3 — A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA SOCIOLOGIA NO BRASIL 49 A DIALÉTICA DO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NO BRASIL Ruy Mauro Marini O golpe militar que depôs o presidente constitucional do Brasil, João Goulart, em abril de 1964, foi apresentado pelos militares brasileiros como uma revolução e definido um ano depois por um de seus porta-vozes como uma “contrarrevolução preventiva”. Por suas repercussões internacionais, sobretudo na América Latina, e diante das concessões econômicas aos capitais norte- americanos, muitos consideraram o golpe simplesmente como uma intervenção disfarçada dos Estados Unidos. Essa opinião é compartilhada por determinados setores da esquerda brasileira que, no entanto, nunca souberam explicar por que, precisamente quando pareciam chegar ao poder, este lhes foi inesperadamente arrebatado sem que se disparasse um só tiro. Parece-nos que nenhuma explicação sobre um fenômeno político pode ser boa se o reduzir a apenas um de seus elementos, e é decididamente ruim se tomar como chave justamente um fator condicionante externo. Em um mundo caracterizado pela interdependência e, mais que isso, pela integração, ninguém negaria a influência dos fatores internacionais sobre as questões internas, principalmente quando se trata de uma economia como a daquelas denominadas centrais, dominantes ou metropolitanas e de um país periférico, subdesenvolvido. Mas em que medida esta influência é exercida? Qual é sua força diante dos fatores internos específicos da sociedade sobre a qual atua? O Brasil, com seus 90 milhões de habitantes e uma economia industrialmente diversificada, é uma realidade social complexa, cuja dinâmica foge às interpretações unilaterais, ainda que esteja condicionada e limitada pelo marco internacional no qual está inserida. Sem uma análise da problemática brasileira, das relações de força existentes entre os grupos políticos e das contradições de classe que se desenrolavam sobre a base de uma dada configuração econômica, não se compreenderá a transformação política ocorrida a partir de 1964. Mais grave, não será possível relacionar esse desenrolar político à realidade econômico-social que se encontra em sua base, nem estimar as perspectivas prováveis de sua evolução. Perspectivas que, no final das contas, não se referem apenas ao Brasil, mas a toda a América Latina. 1 Política e luta de classes A história política brasileira apresenta, no século XX, duas fases bem caracterizadas. A primeira, que vai de 1922 a 1937, é de grande agitação social, marcada por várias rebeliões e por uma revolução: 1930. Suas causas podem ser buscadas na industrialização verificada no país na década de 1910, devida sobretudo à guerra de 1914, que leva a economia brasileira a realizar um considerável esforço de substituição de importações. A crise mundial de 1929 e suas repercussões sobre o mercado internacional manteriam a capacidade de importação do país em níveis baixos, acelerando, assim, seu processo de industrialização. LEITURA COMPLEMENTAR 50 UNIDADE 1 — O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO DOS SÉCULOS XIX E XX As transformações operadas na estrutura econômica nesse período se expressam, socialmente, no surgimento de uma nova classe média - isto é, de uma burguesia industrial diretamente vinculada ao mercado interno - e de um novo proletariado, que passam a pressionar os antigos grupos dominantes para obter um lugar próprio na sociedade política. O resultado das lutas desencadeadas por esse conflito é, por intermédio da Revolução de 1930, um compromisso - o Estado Novo de 1937, sob a ditadura de Getúlio Vargas - através do qual a burguesia se estabiliza no poder, em associação aos latifundiários e aos velhos grupos comerciantes, ao mesmo tempo em que estabelece um esquema particular de relações com o proletariado. Neste esquema, o proletariado será beneficiado por toda uma série de concessões sociais (concretizadas sobretudo na legislação trabalhista do Estado Novo) e, por outro lado, será enquadrado em uma organização sindical rígida, que o subordina ao Governo, dentro de um modelo de tipo corporativista. FONTE: MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2013. p. 73-75. 51 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A Sociologia Brasileira nasceu das teorias sociais formuladas por diversos intelectuais das mais variadas áreas do conhecimento, porém, foi reconhecida como campo independente do saber apenas no início do século XX. • A institucionalização da Sociologia no Brasil foi um processo lento e contou com a influência da Teoria Social europeia e norte-americana. • A década de 1930 trouxe consigo diversos avanços para a Sociologia e para a Educação de maneira geral no Brasil. • A Sociologia sofreu com diversos embargos, censuras e outros tipos de obstáculos durante o período militar no Brasil. • A Sociologia Brasileira é atacada até a contemporaneidade com obstáculos em forma de reformas educacionais e outros tipos de ações que dificultam seu desenvolvimento e ensino. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 52 1 O início do século XX foi marco de uma série de eventos importantes ao desenvolvimento da Sociologia Brasileira. Do processo de formalização e institucionalização da Sociologia no Brasil, de sua ascensão nos ensinos médio e universitário, até os diversos momentos no qual foi atribuído à disciplina um caráter obrigatório e/ou facultativo nas escolas brasileiras, a Sociologia resiste no Brasil e ainda constitui uma fundamental ferramenta utilizada a favor da conscientização e consequente emancipação do povo brasileiros. Sobre os principais eventos que fizeram parte da história da Sociologia em território nacional, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas. ( ) A Sociologia foi reconhecida e difundida de forma mais ampla no início do século XX, quando as primeiras instituições que trabalhavam com as Ciências Sociais começaram a formar seus profissionais e reconhecê-los como acadêmicos. ( ) A Teoria Social Brasileira sofreu uma série de repressões e censuras, sendo o tempo que compreendeu a Ditadura Militar um período de vultosos silenciamentos, exílio de intelectuais e diversos outros tipos de contenção do desenvolvimento da Sociologia. ( ) A Sociologia, após reconhecida academicamente e ensinada nas escolas de todo o Brasil, não sofreu alterações quanto a sua obrigatoriedade nos ensinos fundamental, médio e superior. ( ) O incentivo à Sociologia no Brasil é um fator que colabora com a formulação de políticas públicas e resolução de problemas sociais. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – V – F. b) ( ) V – V – V – V. c) ( ) V – F – V – F. d) ( ) V – V – F – F. e) ( ) F – V – F – F. 2 A Teoria Social possui grande potencial de refletir em decisões políticas importantes e, quando disseminada de forma democrática e horizontal, pode fornecer a conscientizaçãonecessária à ação política popular. Ou seja, quando a maioria da população possui acesso aos principais debates políticos, ao conhecimento das principais e mais importantes problemáticas sociais e outros fenômenos concebidos por meio da Sociologia, as chances de uma política mais justa e voltada a serviço dos propósitos coletivos são maiores. AUTOATIVIDADE 53 Essa teoria pode fundamentar algumas políticas adotadas durante o período da Ditadura Militar do Brasil, principalmente quando consideramos o esforço por parte dos militares para fechar as universidades, proibir o ensino de Sociologia nas escolas, censurar literaturas e manifestações artísticas, exilar e matar muitos intelectuais brasileiros. De acordo com algumas teorias sociais, o referido tipo de prática é voltado à perpetuação de determinada dinâmica política imposta a certo território. Com base nos possíveis impactos da Sociologia na política brasileira quando disseminada por meio da educação pública, analise as sentenças a seguir: I - Diversos intelectuais da Teoria Social brasileira foram perseguidos, exilados ou mortos sob o argumento de subversão às práticas repressivas que ocorreram durante o período ditatorial no Brasil. II - De acordo com Paulo Freire, a conscientização pode ser trabalhada por meio do estímulo à capacidade reflexiva da população em relação à Sociedade, que, por meio desse e outros recursos educacionais, ampliam a capacidade individual de agir politicamente. III - Darcy Ribeiro foi um dos grandes nomes da Teoria Social brasileira que se exilou em diversos países durante o período ditatorial brasileiro. IV - Apesar dos diversos silenciamentos, perseguições, mortes e exílios realizados durante a Ditadura Militar brasileira, ainda sim houve pensadores e militantes que continuaram no Brasil atuando politicamente. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente a sentença I está correta. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) Somente a sentença III está correta. d) ( ) As sentenças I, II, III e IV estão corretas. 3 O Pensamento Social Brasileiro passou por diversas etapas, dentre elas ascensão e declínios, principalmente quando consideramos o ensino de Sociologia nas escolas públicas brasileiras. De acordo com o conteúdo apreendido no último tópico da presente unidade, disserte em um parágrafo resumindo a trajetória da Sociologia Brasileira desde o início do século XX até os dias atuais, enfocando os principais avanços e retrocessos em relação à propagação da Teoria Social por meio da Educação. 54 REFERÊNCIAS ABREU, C. Capítulos da história colonial. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2009. 195 p. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/ kp484/pdf/abreu-9788579820717.pdf. Acesso em: 5 jun. 2020. BORIS, F. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1996. 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No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – A SOCIOLOGIA E A INTERPRETAÇÃO DO BRASIL TÓPICO 2 – GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO TÓPICO 3 – FLORESTAN FERNANDES E CAIO PRADO JÚNIOR Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 58 59 UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O presente tópico tem como objetivo introduzir a trajetória e as principais colaborações dos autores que são considerados os pensadores clássicos da Teoria Social Brasileira. A partir do contexto histórico-espacial, no qual cada um deles foi formado e produziu, entenderemos alguns fatores que os influenciaram a tecer seus estudos e atuação política em seus respectivos objetos de interesse. Posteriormente, serão apresentadas as teorias de cada um dos autores de forma separada e mais aprofundada. Os referidos autores são GilbertoFreire, com suas teorias sobre as relações sociais brasileiras do Período Colonial, Sérgio Buarque de Holanda e suas análises historiográficas e sociológicas acerca do desenvolvimento social do Brasil, Florestan Fernandes e seus estudos das relações raciais brasileiras e, finalmente, Caio Prado Júnior com a formação da sociedade brasileira contemporânea. Bons estudos! 2 OS GRANDES INTÉRPRETES DO BRASIL E SUAS PRINCIPAIS ABORDAGENS Iniciaremos a apresentação de nossos principais nomes da Teoria Social Brasileira por Gilberto Freyre (1900-1987). Gilberto de Mello Freyre nasceu em Recife, no dia 15 de março de 1900, que atuou como sociólogo, historiador, ensaísta, jornalista, professor e político, revolucionando o Pensamento Social Brasileiro de seu tempo, contribuindo, até os dias de hoje, com a Sociologia Brasileira. FIGURA 1 – GILBERTO FREYRE FONTE: <http://editoraunesp.com.br/blog/icone/homenagem-a-gilberto-freyre>. Acesso em: 11 jun. 2020. TÓPICO 1 — A SOCIOLOGIA E A INTERPRETAÇÃO DO BRASIL UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL 60 Gilberto Freyre trabalhou também como antropólogo e artista plástico, considerado contemporaneamente como um dos mais importantes sociólogos brasileiros. Filho de Francisca de Mello Freyre e do professor, advogado e juiz Alfredo Freyre, Gilberto é considerado um ensaísta, diferente de outros grandes nomes do pensamento social de sua época. Isso se deve ao fato de que ele não obedeceu à risca os pormenores acadêmicos já estabelecidos durante sua produção, ou seja, foi um autor que trabalhou de maneira mais informal em relação à produção da Academia, embora sua leitura seja obrigatória nos mais diversos cursos da área de Ciências Humanas do Brasil. Freyre estudou no Colégio Americano Gilreath, hoje conhecido como Americano Batista, onde se formou bacharel em Letras, além de receber aulas particulares em sua residência. No ano de 1918 partiu para os Estados Unidos, onde se formou em Artes Liberais e se especializou em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Baylor. Na Universidade de Colúmbia, o brasileiro cursou seu mestrado e doutorado em Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais. O título de sua tese foi A Vida Social no Brasil em Meados do século XIX. Retornou ao Brasil, na década de 1920, após concluir seus estudos nos Estados Unidos e viajar diversas vezes pela Europa. Retorna a sua casa em Recife, de onde prosseguiria com boa parte de sua produção intelectual. No ano de 1926, Gilberto Freyre participa da formulação do Manifesto Regionalista, cujo grupo era contrário à Semana de Arte Moderna de 1922, de ideologia nacionalista. Os regionalistas reivindicavam o fim da imposição da cultura europeia pelos modernistas no Brasil, em detrimento da cultura local, valorizando nossa cultura em tempos em que pouco se fazia em benefício da mesma. Sua principal obra é Casa-Grande & Senzala (FREYRE, 2003), publicada no ano de 1933, extremamente polêmica, é alvo de fortes críticas e elogios até os dias atuais. O texto possui grande influência da Antropologia Cultural Norte-Americana, tradição de seu professor Franz Boas, importante nome da Antropologia mundial. Uma das maiores críticas gira em torno da romantização da miscigenação, comumente estabelecida por meio do estupro de mulheres brasileiras pelo homem branco e a hipersexualização de nosso povo. Em outras palavras, Freyre é muito criticado por naturalizar a sexualidade, muitas vezes compulsória, entre diferentes povos que habitavam o Brasil colonial. Apesar das críticas, a obra foi responsável pela quebra de paradigmas relacionados às raças presentes no Brasil, como a supremacia racial: ideia de que existem raças superiores e inferiores. A obra propõe uma reconstrução do processo de miscigenação que ocorria em meio aos engenhos brasileiros, os quais descreveu do ponto de vista arquitetônico, e as construções mais comuns que os compunham: casa-grande, senzala, casa de moer e capela. Sua obra foi muito criticada e marginalizada pela ala conservadora nacional que era adepta à ideia de superioridade da raça branca, dificultando o acesso a tal obra que, com o passar do tempo, foi ressurgindo em meio aos estudos acadêmicos brasileiros. TÓPICO 1 — A SOCIOLOGIA E A INTERPRETAÇÃO DO BRASIL 61 FIGURA 2 – PRIMEIRA EDIÇÃO DE CASA-GRANDE & SENZALA DE 1933 FONTE: <https://d2xsuil29zvzbt.cloudfront.net/imagens/img_m/717/364971.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2020. O segundo nome do Pensamento Social Brasileiro, considerado um clássico, é Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). O escritor, sociólogo, historiador, jornalista e crítico literário paulista nasceu no dia 11 de julho de 1902. Era filho de Heloísa Buarque de Holanda e de Cristóvão Buarque de Holanda, farmacêutico e professor universitário. Contribuiu com o mesmo Movimento Modernista que resultou na Semana de Arte Moderna de 1922 criticada por Gilberto Freyre. Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) e sua principal obra é Raízes do Brasil (HOLANDA, 1995), na qual o autor disserta sobre a formação do povo brasileiro. FIGURA 3 – SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA FONTE: <https://s3.static.brasilescola.uol.com.br/be/2020/03/sergio-buarque-de-holanda.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2020. UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL 62 Sérgio Buarque concluiu seu bacharelado em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, no ano de 1925, escrevendo, também, contos e poemas enquanto cursava sua graduação. Trabalhou em diversos jornais brasileiros até viajar à Europa, convidado por Assis Chateaubriand, um jornalista, empresário e político brasileiro que atuava em diversas outras áreas. Na Alemanha e na Polônia teve acesso à obra de Max Weber, autor da Sociologia Clássica que muito influenciou a produção intelectual de Sérgio Buarque de Holanda. Retornando ao Brasil, na década de 1930, devido ao crescimento do movimento nazista alemão, trabalhou para estatais de notícias. As anotações trazidas da Europa serviram como base de seu livro sociológico e historiográfico intitulado Raízes do Brasil, primeira e mais influente obra do autor. Raízes do Brasil (HOLANDA, 1995) é uma obra publicada no ano de 1936 e que aborda a formação do povo brasileiro, um dos clássicos do Pensamento Social Brasileiro. O texto reflete sobre a colonização do Brasil e suas implicações a respeito da sociedade brasileira moderna. Sérgio Buarque também tece reflexões acerca da fragilidade da hierarquia dos colonizadores do país, apontando que o território brasileiro foi dominado não só pela nobreza de Portugal, mas também pela Espanha. O autor também disserta sobre a relação entre disciplina e obediência característicos da educação jesuítica, predominante no período colonial brasileiro. FIGURA 4 – PRIMEIRA EDIÇÃO DE RAÍZES DO BRASIL DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA FONTE: <https://sebodomessias.com.br/imagens/produtos/0/3665_866.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2020. A referida obra ainda introduz o conceito de “Cultura da Cana”, muito influenciado pela produção weberiana. Trata-se de um conjunto de elementos que refletiam na cultura brasileira e que nasciam da produção açucareira. Tais elementos essenciais eram as grandes propriedades, o trabalho escravo e o mercado exterior, sobre os quais nossa cultura foi moldada. Outro elemento fundamental na formação do povo brasileiro, segundo Sérgio Buarque, se encontra no conceito de Homem Cordial, que consiste em um povo que age TÓPICO 1 — A SOCIOLOGIA E A INTERPRETAÇÃO DO BRASIL 63 conforme suas emoções, submisso aos mandos e desmandos de seus superiores e que consideravam mais os bens privados de sua vida em detrimento dos bens públicos. De outro modo, o Homem Cordial era aquele que dava preferência aos interesses próprios, familiares, deixando de lado as relações públicas quando a demanda é auxiliar os membros de seu grupo. O terceiro teórico que trabalharemos na presente unidade é Florestan Fernandes(1920-1995). Ele foi um político, sociólogo e ensaísta paulista, filho de imigrante portuguesa de nome Maria Fernandes. Não chegou a conhecer seu pai e foi criado por Hermínia Bresser de Lima, que o incentivou a estudar. De origem muito pobre, começou a trabalhar aos seis anos de idade para ajudar sua mãe, interrompendo seus estudos ainda no ensino fundamental. Aos 17 anos de idade, retorna aos estudos e conclui o que hoje equivale aos ensinos fundamental e médio entre 1938 e 1940. FIGURA 5 – FLORESTAN FERNANDES FONTE: <https://www.pragmatismopolitico.com.br/wp-content/uploads/2017/06/diagnostico- -florestan-fernandes-racismo-resgatado.jpg>. Acesso em: 12 jun. 2020 A vida acadêmica de Florestan Fernandes se iniciou no ano de 1941, quando ingressou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), concluindo seu bacharelado em Ciências Sociais no ano de 1943 e a licenciatura em 1944. Em 1943, já escrevia para jornais e se filiou ao Partido Socialista Revolucionário (PSR). Cursou pós-graduação em Sociologia e Antropologia pela Escola Livre de Sociologia e Política, em seguida atuou como pesquisador e professor. Em 1947, concluiu seu mestrado em Ciências Sociais pela mesma Escola, quando escreveu sua dissertação intitulada A Organização Social do Tupinambá, que mais tarde viria a se tornar uma das principais obras do Pensamento Social Brasileiro. No ano de 1951, conclui seu doutorado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), escrevendo a tese de título A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. É um autor de tradição marxista, embora também tenha sido influenciado pelas ideias weberianas e durkheimianas. Dentre suas diversas obras, podemos destacar A Organização Social do Tupinambá (FERNANDES, 1963) e A Integração do Negro na Sociedade de Classes (FERNANDES, 1978). A primeira obra foi baseada UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL 64 em cronistas do tempo colonial e foi responsável por uma quebra de paradigma relacionado à imagem dos povos indígenas que era disseminada até então. Rompendo com o estigma associado aos povos originários brasileiros pelos colonizadores, Fernandes (1963) desmente o caráter preguiçoso comumente associado aos índios brasileiros, inserindo uma análise das complexas relações sociais existentes entre os Tupinambá. Muitos aspectos culturais foram descritos por Florestan, revolucionando a maneira com a qual se pensava os povos indígenas até o século XX. FIGURA 6 – UMA DAS EDIÇÕES DO LIVRO A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DO TUPINAMBÁ DE FLORESTAN FERNANDES FONTE: <https://d1o6h00a1h5k7q.cloudfront.net/imagens/img_m/7863/3358961.jpg>. Acesso em: 12 jun. 2020. A obra intitulada A Integração do Negro na Sociedade de Classes (FERNANDES, 1978) o autor disserta sobre as dificuldades enfrentadas pelo povo negro no Brasil após a abolição da escravidão. Ele relata as consequências sociais, culturais e morais do longo período de escravidão do Brasil, último país a abolir formalmente a escravidão, embora não tenha significado o fim do racismo no país. Ao mostrar a difícil ascensão dos negros aos moldes capitalistas de trabalho livre, Fernandes desmente anteriores teorias como a da democracia racial brasileira, evidenciando que as heranças da escravidão constituem um sólido cenário de sofrimento, exploração, discriminação e violência contra o povo negro brasileiro. TÓPICO 1 — A SOCIOLOGIA E A INTERPRETAÇÃO DO BRASIL 65 FIGURA 7 - UMA DAS EDIÇÕES DO LIVRO A INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE DE CLASSES DE FLORESTAN FERNANDES FONTE: <https://cutt.ly/kgm59oQ>. Acesso em: 12 jun. 2020. O último autor considerado um clássico do Pensamento Social Brasileiro que abordaremos em nosso material será Caio Prado Júnior (1907-1990). Nascido em São Paulo, de família abastada, o pensador atuou como escritor, historiador, político, sociólogo, economista, filósofo e editor de livros. Sua obra é referência quando o tema é a formação da sociedade brasileira contemporânea. Estudou no Colégio São Luís e no Chelmesford Hall, em Eastbom – Inglaterra. De tradição marxista, formou- se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco e lecionou Economia Política na universidade de São Paulo. FIGURA 8 – CAIO PRADO JÚNIOR FONTE: <https://cutt.ly/Mgm550H>. Acesso em: 12 jun. 2020. UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL 66 Os pais de Caio Prado Júnior, Caio e Antonieta Silva Prado, sempre foram ligados à política, portanto, desde jovem o sociólogo teve contato com o meio, iniciando sua carreira nas atividades no campo pelo Partido Democrático (PD) no ano de 1928, contribuindo ativamente com a Revolução de 1930. Filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), viajou para estudar na União Soviética em 1933, assumiu a vice-presidência da Aliança Nacional Libertadora, foi preso por dois anos e se exilou na Europa. Quando retornou ao Brasil, em 1940, publicou Formação do Brasil Contemporâneo (PRADO JÚNIOR, 1961), considerada sua mais importante obra e um clássico do Pensamento Social Brasileiro, no qual disserta sobre a formação histórica do Brasil. Juntamente a nomes como Monteiro Lobato, Caio Prado Júnior funda a Editora Brasiliense. Em Formação do Brasil Contemporâneo (PRADO JÚNIOR, 1961), Caio Prado Júnior analisa o processo histórico que culmina com a sociedade brasileira contemporânea, enfatizando o economicismo existente por trás das relações sociais no país. Em outras palavras, o autor afere que as relações sociais, a cultura e a política brasileira são moldadas de acordo com as atividades econômicas predominantes de cada época. A chegada do povo negro, por exemplo, foi um dos fenômenos determinados pelas demandas econômicas do período colonial, pois era lucrativo o trabalho realizado por mão de obra escrava. A principal tese do pensador é a de que, apesar de a história do Brasil ser dividida em vários períodos pelos historiadores, poucas rupturas ocorreram política e economicamente. O referido texto será melhor analisado no próximo tópico, no qual nos aprofundaremos nos principais textos de cada um dos autores. FIGURA 9 – CAPA DE UMA DAS VERSÕES DA OBRA FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO DE CAIO PRADO JÚNIOR FONTE: <https://cutt.ly/4gm6kbC>. Acesso em: 12 jun. 2020. TÓPICO 1 — A SOCIOLOGIA E A INTERPRETAÇÃO DO BRASIL 67 Juntos, os quatro autores brevemente apresentados anteriormente, representam os principais intérpretes do Brasil, pertencentes à segunda geração de pensadores que contribuíram com a Teoria Social Brasileira: a geração científica. Como vimos na unidade anterior, a primeira geração de contribuintes do Pensamento Social Brasileiro fazia parte de um grupo ainda não formalizado de pensadores. Ou seja, não eram pensadores considerados sociólogos pelo fato de ainda não existir um campo do saber independente e destinado a ao pensamento voltado à Sociedade no Brasil. Um dos pensadores que representou a ruptura com a primeira geração dos pensadores sociais brasileiros foi Gilberto Freyre, apesar de ser um autor que pouco acompanhou as normas acadêmicas emergentes em sua época. A geração científica corresponde aos autores que foram formados no Brasil, especialmente a partir da década de 1930, para desenvolver suas teorias acerca do desenvolvimento e funcionamento da dinâmica social brasileira. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior não são os únicos pensadores pertencentes à segunda geração de teóricos da sociedade brasileira, porém, os sociólogos considerados os expoentes da teoria social no Brasil. Isso quer dizer que são os intérpretes mais bem-aceitos da Sociologia de sua época. No tópico seguinte, nos aprofundaremos nos principais debates e teorias de cada um desses quatro grandes nomes da Sociologia Brasileira. 68 Neste tópico, você aprendeu que: • O Pensamento Social Brasileiro rompeucom sua primeira geração de contribuintes no início do século XX, quando a Sociologia foi reconhecida cientificamente, como um campo independente do saber, formando seus primeiros teóricos academicamente reconhecidos. • Gilberto Freyre foi um pensador brasileiro que muito contribuiu com as análises acerca da formação do povo brasileiro, enfatizando a mestiçagem como um processo fundamental para o entendimento da mesma. • Sérgio Buarque de Holanda avançou com as análises da formação do povo brasileiro, considerando a colonização do Brasil e suas implicações a respeito da sociedade brasileira moderna. • Florestan Fernandes investigou a formação da sociedade brasileira por meio das relações entre as classes sociais aqui existentes, do protagonismo dos povos originários e do processo de inserção do povo negro na sociedade capitalista pós-abolição da escravidão. • Caio Prado Júnior enfatiza, principalmente, as condições históricas relacionadas à formação da sociedade brasileira contemporânea, evidenciando a influência dos aspectos econômicos de cada um dos períodos de nossa história sobre a dinâmica social. RESUMO DO TÓPICO 1 69 1 Sabemos que a primeira geração de pensadores que contribuiu para o desenvolvimento do Pensamento Social Brasileiro não teve sua origem intelectual dentro dos muros de universidades ou escolas especializadas na teorização acerca de nossa Sociedade. Foram indivíduos e grupos de diversas naturezas que lançaram mão das primeiras análises relacionadas à formação e funcionamento da dinâmica social do Brasil, desde os povos originários até políticos, artistas, professores jornalistas e diversos outros profissionais que somaram com a construção da Teoria Social Brasileira até o início do século XX. A partir da década de 1930, emergem no Brasil as primeiras instituições e grupos dedicados exclusivamente às investigações voltadas à Sociologia e Política, formando nossos primeiros profissionais formalmente reconhecidos pela Academia. Eis que nasce a segunda geração de pensadores sociais brasileiros: aqueles submetidos aos métodos e aceitação científicos. Sobre essa nova etapa do Pensamento Social Brasileiro, analise as sentenças a seguir: I - O começo do século XX foi de fundamental importância no que diz respeito ao avanço das Ciências Sociais no Brasil, principalmente por causa do reconhecimento da Sociologia como uma disciplina formal. II - As primeiras universidades voltadas aos estudos sociais no Brasil só emergiram a partir da década de 1930, dificultando o reconhecimento de pensadores anteriores a tal período como teóricos sociais. III - Apesar de não estarem submetidos aos métodos científico/acadêmicos, as teorias sobre a formação da sociedade brasileira formuladas até o século XIX também podem ser consideradas teorias sociais válidas. IV - Apesar de só emergir no início do século XX, a Academia já reconhecia como sociólogos até mesmo os povos originários que escreveram no Brasil. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente a sentença I está correta. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) Somente a sentença III está correta. d) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas. e) ( ) As sentenças II, III e IV estão corretas. 2 O início do século XX é marcado pela ascensão da Sociologia no Brasil. As pesquisas acadêmicas, a partir dessa época, contam com instituições que se voltam exclusivamente aos estudos sociais no país, formando seus primeiros profissionais, alguns dos quais muito contribuíram para a formação da Teoria Social Brasileira. Dentre os intelectuais que escreveram, principalmente, a partir da década de 1930, podemos destacar alguns dos expoentes do Pensamento Social Brasileiro, considerados os principais intérpretes do Brasil. Com base no exposto, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: AUTOATIVIDADE 70 ( ) Gilberto Freyre é considerado um pensador que marcou uma nova era no Pensamento Social Brasileiro. Embora não escrevesse integralmente de acordo com as normas e formalidades científicas, que acabavam de ascender no Brasil de sua época, Freyre foi responsável por gigantescas contribuições à reconstrução da história de nosso povo. ( ) Sérgio Buarque de Holanda contribuiu com análises voltadas à formação do povo brasileiro, concentrando seus estudos nos impactos que o processo de colonização provocou em na dinâmica social moderna. ( ) Florestan Fernandes devolveu aos povos originários o protagonismo na formação de nossa sociedade. A partir de sua extensa obra, o Brasil pôde observar, por meio de outra perspectiva, o papel dos povos indígenas e dos afro-brasileiros na construção social de nosso país. ( ) Caio Prado Júnior é um autor cuja obra nos auxilia no entendimento em relação à formação da sociedade brasileira contemporânea por meio, principalmente, de análises voltadas à importância das atividades econômicas em relação à construção da civilização no Brasil dos dias atuais. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – V – F. b) ( ) F – V – V – V. c) ( ) V – F – V – V. d) ( ) V – V – V – V. e) ( ) F – F – F – F. 3 O Pensamento Social Brasileiro é composto por quatro nomes que se destacaram durante o século XX e foram considerados os maiores intérpretes do Brasil. Todos eles foram bastante influentes na Sociologia Brasileira e compuseram grandiosas obras que revolucionaram a Teoria Social Brasileira em sua época. O ponto de vista de cada um deles é importantíssimo para a compreensão do que hoje concebemos como a sociedade brasileira. Apesar de vários livros e pesquisas realizadas por cada um deles, estudamos, no presente tópico, apenas as contribuições que receberam maior atenção do público que compõe o campo científico/acadêmico brasileiro. Considerando o conteúdo estudado, construa um parágrafo dissertando as principais contribuições de cada um deles. 71 UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O presente tópico pretende aprofundar os conhecimentos acerca da obra de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, dois dos principais intérpretes do Brasil. Para tanto, adentraremos seus mais notáveis escritos com o intuito de melhor compreendermos as contribuições desses intelectuais ao Pensamento Social Brasileiro, principalmente no que toca a formação e desenvolvimento do povo brasileiro. Apresentaremos então as problemáticas mais relevantes abordadas por cada um dos autores citados anteriormente, buscando esclarecer pontos importantes de seus discursos com o objetivo de remontarmos da maneira mais simples e clara possível o processo de formação de nosso povo. Esse trabalho demanda a leitura de seus textos além da perspectiva de intérpretes especialistas na obra de tais estudiosos que se debruçaram sobre a Teoria Social Brasileira. 2 GILBERTO FREYRE E A ESCRAVIDÃO NO BRASIL Iniciaremos nossos estudos a partir da obra de Gilberto Freyre, um autor que se dedicou ao processo de miscigenação no Brasil, lançando mão de uma nova perspectiva do assunto. Freyre acreditava que a miscigenação (também conhecida como mestiçagem) seria um fenômeno muito comum no Brasil, determinante para a formação de nosso povo e algo a ser considerado positivo. A obra de Freyre é considerada ensaística. Em outras palavras, trata-se de uma obra que não obedece fielmente às normas científicas, ou seja, possui uma linguagem muita mais próxima da popular do que acadêmica. Apesar de pouco se alinharem às regras tecnicistas do mundo científico/acadêmico, os textos de Freyre são considerados uma obra essencial à compreensão do Brasil, principalmente quando falamos dos elementos fundamentais que serviram de base à formação do povo brasileiro. Sua obra é responsável por desmistificar uma espécie de racismo científico que iniciava seu processo de construção no começo do século XX. Esse tipo de racismo nasce em forma de teorias científicas, que começavam a contaminar os diversos espaçosintelectuais da época com a ideia da inferioridade de algumas raças em relações a outras. Esse tipo de teoria também defendia a ideia de que a mistura entre etnias poderia ser algo negativo no sentido biológico. TÓPICO 2 — GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO 72 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL Dito de outra forma, seria a ideia de que o contato entre brancos e negros, índios e brancos, índios e negros entre a multiplicidade de outras combinações entre raças humanas, poderia afetar as instâncias física e/ou intelectuais dos descendentes dessas relações. Ou seja, a miscigenação seria algo ruim para a humanidade. Freyre (2003; 2013) rompe com tal concepção e propõe a ideia de que a miscigenação poderia ser algo positivo aos seres humanos e às sociedades. Freyre explora a fundo o tema da miscigenação em sua obra Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal (FREYRE, 2003), tomando como ponto de referência, como explícito no próprio título de seu livro, o espaço físico onde ocorria maior interação entre escravos negros e os donos de terras para os quais trabalhavam em regime de escravidão, os chamadores “senhores de engenho”. Herdando muita influência de seu professor Franz Boas, Gilberto Freyre trazia em suas obras muitas ideias advindas da Antropologia Cultural, ou Culturalismo. Isso influenciou em sua reconstrução do povo brasileiro por meio de seus principais aspectos culturais: trabalho escravo, economia agrícola e família patriarcal. Para o autor, essas são as condições preponderantes que facilitaram a mistura entre raças no Brasil. Quando em 1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical. Mudado em São Vicente e em Pernambuco o rumo da colonização portuguesa do fácil, mercantil, para o agrícola; organizada a sociedade colonial sobre base mais sólida e em condições mais estáveis que na índia ou nas feitorias africanas, no Brasil é que se realizaria a prova definitiva daquela aptidão. A base, a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada assim à cultura econômica e social do invasor (FREYRE, 2003, p. 65). O Culturalismo é uma vertente de estudos voltados à compreensão de comportamentos individuais e coletivos por meio a análise a cultura à qual o sujeito ou grupo está inserido. O Culturalismo é muito difuso em campos do saber como a Psicologia e as Ciências Sociais, no caso do último, emergiu no seio da Antropologia com os estudos de europeus direcionados aos povos, sobretudo, tribais com os quais se deparavam em meio a suas expedições. O povo Brasileiro é um documentário, disponível na plataforma YouTube, que demonstra um pouco dos estudos culturalistas brasileiros, evidenciando como a cultura de nossos povos ancestrais, nativos do Brasil, influenciaram na formação de nosso povo tal como se apresenta hoje em dia. O documentário pode ser acessado por meio do seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=TMNulMYchm0&ab_channel=F unda%C3%A7%C3%A3oLeonelBrizolaFLB-AP. Aproveite! DICAS TÓPICO 2 — GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO 73 Por meio de Casa-Grande & Senzala, Freyre (2003) consegue desmistificar a ideia de hierarquias raciais, que consiste em conceber a existência de raças e/ ou etnias superiores e inferiores. O pensador refutou as teorias que tentavam inferiorizar os negros. Além disso, a obra concebe o patriarcalismo – sistema social no qual o homem adulto possui privilégios sociais, morais, políticos entre outros – como um fator importante no que diz respeito à formação de nosso povo. Freyre (2003) acredita que o patriarcado dominou também as relações raciais, submetendo negros e índios aos mandos e desmandos dos senhores de engenho: geralmente descendentes europeus brancos que possuíam grandes propriedades de terra, nas quais a produção agrícola era impulsionada por meio da mão de obra escrava. O sistema patriarcal criara um espaço para a aproximação entre raças, principalmente entre brancos e negros, que potencializou a miscigenação entre diferentes etnias. A presença das casas-grandes – sede administrativa das fazendas onde vivia o patriarca, senhor de engenho escravocrata – que abrigava os grandes produtores e suas famílias, das quais eram administrados e a demanda por senzalas – casarões rudimentares onde viviam os escravos negros que trabalhavam na propriedade – no mesmo território, proporcionou condições para a mestiçagem dentro da dinâmica do engenho. Segue na Figura 10 uma ilustração feita por Cícero Dias no ano de 1933 e que retrata a casa-grande de um dos engenhos existentes no Brasil colonial: o Engenho Noruega, antigo Engenho dos Bois, em Pernambuco. FIGURA 10 – ENGENHO NORUEGA FONTE: <https://cutt.ly/igQtDyc>. Acesso em: 21 jun. 2020. A proximidade entre brancos e negros provocada pelo regime escravista, fez com que a mestiçagem entre esses dois povos fosse ocorrendo de maneira gradativa. Embora Freyre (2003) sustente a ideia de que a relação entre senhores de engenho e escravos no Brasil fosse mais leve quando comparada às relações 74 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL senhor-escravo de outros países, ainda sim era um sistema extremamente violento, sendo comum o fato de escravas serem frequentemente estupradas por seus “senhores”. Gilberto Freyre apresenta uma perspectiva mais complexa em relação à concepção simplista entre escravos e seus “donos”. O autor apresenta o patriarca como dono de diversos outros personagens além de seus escravos, como de sua esposa, seus filhos e demais elementos que compunham o engenho do qual eram gestores. Apesar da obra de Freyre ser um dos referenciais mais ricos e revolucionários de sua época, principalmente quando se trata de dados históricos e análises sociais, ela ainda é alvo de muitas críticas. Umas das principais críticas gira em torno da chamada romantização da mestiçagem, desconsiderando que ela é fruto, em sua maior parte, de relações abusivas entre senhores de engenho e suas escravas. A linguagem empregada por Freyre (2003, 2013) também provocou desconfortos a muitos dos críticos de sua obra, alguns dos quais julgaram como desrespeitosa. A própria Igreja de sua época condenou como chulo o palavreado comumente empregado pelo autor. Quanto à miscibilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto aos portugueses. Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato e multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com povos grandes e numerosos na extensão de domínio colonial e na eficácia de ação colonizadora. A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses compensaram-se da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas. Para tal processo preparara-os a íntima convivência, o intercurso social e sexual com raças de cor, invasora ou vizinhas da Península, uma delas, a de fé maometana, em condições superiores, técnicas e de cultura intelectual e artística, à dos cristãos louros (FREYRE, 2003, p. 70-71). O trecho anterior evidencia outro aspecto fundamental de sua teoria: a de que os portugueses já eram mestiços antes mesmo de colonizarem o Brasil. Isso aconteceu por meio do contato entre portugueses e os chamados povos “mouros” do norte africano, além do fato de Portugal ser um país costeiro, o que facilitou a mistura entre os brancos portugueses e outros povos. A teoria de Freyre é a de que a mestiçagem, ao contrário da degeneraçãobiológica em qual muitos teóricos de seu tempo acreditavam provocar, fortalecia as raças, fazendo com que os portugueses estivessem ainda mais aptos a conquistar outros territórios em detrimento de outros povos. O acesso a outras culturas também atribuiu ao povo colonizador português o caráter heterogêneo do povo brasileiro. Sendo assim, além da combinação entre europeus, nativos e negros, já existia a mestiçagem própria dos colonizadores portugueses, por isso o Brasil seria um país tão rico em termos de diferentes raças e culturas. Outros conceitos importantes na teoria de Freyre (2003) e que lhe atribuiu muitas críticas é o da sexualidade e da sensualidade dos povos tropicais. Para o autor, as condições climáticas dos trópicos seriam um fator que contribuía para a fluidez sexual dos povos nativos em relação ao que acontecia na Europa. A TÓPICO 2 — GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO 75 sensualidade de nossos povos seria então aflorada pelo clima. O pensador sustentava a ideia de que as condições climáticas colaborariam com o desenvolvimento de uma suposta falta de pudor dos brasileiros. Cabe relembrarmos que muitos relatos da mestiçagem entre brancos e negros no Brasil ocorreu de maneira compulsória, ou seja, as negras escravas eram comumente estupradas por seus senhores, sendo equivocada a perspectiva freyriana de que isso acontecia de forma natural, bonita ou romântica. A linguagem utilizada por Freyre (2003) no trecho a seguir evidencia sua perspectiva “hipersexualizada” acerca do papel da negra: mulher destinada à satisfação das inúmeras necessidades do homem branco, inclusive as sexuais. Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala. no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida. Trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo (FREYRE, 2003, p. 367). FIGURA 11 – CULTURA DO ESTUPRO NA AMÉRICA LATINA RETRATADA POR DIEGO RIVERA FONTE: <https://cutt.ly/XgQyilz>. Acesso em: 22 jun. 2020. Outra crítica à obra de Gilberto Freyre (2003) é a da supervalorização da aristocracia brasileira. Há quem interprete seu texto de maneira com a qual os senhores de escravos brasileiros pareçam figuras bondosas, caridosas, reafirmando a tese freyriana de que a escravidão no Brasil foi mais branda em relação a de outros países. Contudo, os castigos físicos eram acontecimentos corriqueiros nos engenhos, representados por meio de diversas pinturas e vários relatos das atrocidades cometidas contra os negros escravizados em nosso território. Embora Freyre (2003) acreditasse que a escravidão no Brasil tenha sido algo mais leve em relação a outros países, não muda o fato de que o regime aqui era absurdamente cruel em relação aos escravos. Essas pessoas sofriam abusos de 76 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL diversas naturezas, violência física e psicológica, torturas e castigos inimagináveis. A punição destinada aos escravos que tentavam fugir ou demostravam algum tipo de resistência às condições subumanas de existência nos engenhos brasileiros, era muitas vezes o “tronco”, no qual eram chicoteados em frente aos seus familiares, amigos e demais trabalhadores, comumente resultante na morte deles. Podemos concluir que a obra Casa-Grande & Senzala (FREYRE, 2003), ao mesmo tempo em que é alvo de críticas voltadas a sua linguagem e suposta simpatia aos senhores de engenho, é reconhecida como um dos textos mais importantes para se entender o processo de desenvolvimento do povo e da cultura brasileira. O livro consegue descrever, de maneira minuciosa, vários elementos e comportamentos com os quais teve contato, porém, é claro, sob uma perspectiva de uma pessoa pertencente à classe aristocrata de seu tempo. Devemos, portanto, considerar que sua linguagem sexualizada e/ou a visão romântica da escravidão no Brasil, pode ser explicada pela vivência do autor em detrimento da vivência dos negros que passaram pelos suplícios da escravidão. Uma personagem que ilustra muito bem as torturas sofridas pelos escravos, em especial as escravas brasileiras, é a escrava Anastácia. Ela foi um dos inúmeros exemplos de luta e resistência aos maus tratos, tortura e abusos, inclusive sexuais, cometidos pelos seus senhores. Era conhecida por uma beleza particular que chamava a atenção de seus estupradores, porém, relutante em se entregar aos abusos, sofria a ira de seus donos que a sentenciaram a usar uma máscara de ferro pelo resto de sua vida, retirada apenas quando se alimentava. Depois de uma vida inteira de sofrimento, Anastácia teve seus restos mortais enterrados na Igreja do Rosário, que logo desapareceram em um incêndio. Anastácia é considerada santa por religiões de matriz afro-brasileira e possui muitos devotos no Brasil. Segundo eles, Anastácia realizava milagres, dentre eles o da cura de enfermos e feridos. Sua biografia é recontada em diversos livros FIGURA – SANTA ANASTÁCIA FONTE: <https://cutt.ly/ngQumz4>. Acesso em: 23 jun. 2020. IMPORTANT E TÓPICO 2 — GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO 77 Antonio Candido (1993, 1995), por exemplo, foi um dos críticos a dar mais ênfase a uma interpretação dualista de Gilberto Freyre. Tanto no famoso prefácio a Raízes do Brasil, quanto no artigo “Aquele Gilberto”, publicado à época da morte de Freyre e depois republicado em Recortes, Candido constrói um esquema dualista para entender Freyre. Para ele, o autor de Casa grande & senzala seria um escritor que ainda detinha a visão senhorial e aristocrática da história brasileira e que, no entanto, também havia sido um inovador capaz de ter seus momentos progressistas e de trazer no bojo de sua interpretação do Brasil elementos que problematizavam a visão senhorial do país. Fernando Henrique Cardoso (1993, p.25) segue o mesmo padrão argumentativo de Candido ao afirmar que “[o] encanto do livro de Gilberto Freyre é que ele, ao mesmo tempo em que desvenda, oculta e mistifica”. O que se pode concluir da leitura de Candido e Cardoso é que tanto a lucidez crítica quanto a mistificação saudosista fazem parte da obra de Freyre. Entretanto, não há em seus argumentos nenhuma explicação de como essa configuração peculiar funciona, ou seja, como tais linhas de força ideológicas interagem entre si (MELO, 2009, p. 280). Quando lemos um texto conhecido, é de fundamental importância que pesquisemos suas possíveis críticas, advindas de outros leitores, com diferentes perspectivas. Esse estudo faz com que ampliemos nossa percepção do texto e que possamos enxergar com outros olhos alguns detalhes que comumente deixamos passar despercebidos, além de conceber novas interpretações daquelas palavras. Uma dica importante para o momento de leitura das críticas, especialmente se forem feitas por outros intelectuais conhecidos, é fazer uma breve pesquisa da classe social, tradição e posicionamento ideológico de cada autor. Esses fatores podem exercer muita influência na perspectiva e, consequentemente, na interpretação de determinados autores a respeito de cada Teoria Social criticada. Por exemplo: um autor ex- escravo pode ter uma perspectiva completamente diferente de um autor descendente de escravocratas. Por isso, é importante pesquisarmos os autores e críticos de todos os textos aos quais temos acesso. ATENCAO Outra notável obra de Gilberto Freyre é Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural edesenvolvimento do urbano (FREYRE, 2013), publicada alguns anos após o lançamento da primeira edição de Casa-Grande & Senzala (FREYRE, 2003) e que disserta sobre a decadência do patriarcado rural no decorrer dos séculos XVIII e XIX. Conforme Freyre (2013), enfraquecido com o declínio da escravidão e influenciada pelos movimentos modernos estrangeiros, o patriarcado rural perde gradualmente seu espaço, prestígio e poder. As elites rurais são, então, forçadas a deixar as casas-grandes e passam a viver em sobrados urbanos e seus ex-escravos, por sua vez, passam a se refugiar em casas de pau-a-pique em bairros pobres da cidade. A linguagem muito se assemelha à de sua primeira obra (FREYRE, 2003), porém o foco dessa vez seria a formação das cidades brasileiras. 78 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL Em suma, podemos afirmar que a ideia central de Gilberto Freyre foi a respeito da dinâmica da casa-grande e da senzala, que os elementos sociais, culturais, políticos e econômicos fundamentais do Brasil se moldaram. Em outras palavras, o processo histórico brasileiro seguiu mais ou menos a mesma dinâmica de seus primórdios, do período colonial. A partir desse período, houve pequenas modificações nas atividades produtivas, no sistema escravista entre outros elementos que não abalaram as estruturas sociais brasileiras. Ou seja, por mais que a aristocracia agrária tenha se retraído, os negros brasileiros não estejam mais sob regime de escravidão, as casas-grandes e senzalas se tornaram obsoletas, ainda sim existe um abismo entre as classes: uma elite social continua existindo, os sobrados se tornaram mansões nos dias de hoje, os mocambos hoje compõem as favelas e as pessoas que lá habitam são majoritariamente o povo negro, famílias migradas das zonais rurais, nordestinos e seus descendentes. Concluímos que a obra de Gilberto Freyre, apesar de duramente criticada por apresentar uma perspectiva elitista da sociedade brasileira, pela hipersexualização da mulher negra e indígena, pela criação do mito do bom senhor entre outras, ela ainda é referência no que diz respeito ao resgate histórico e na descrição dos costumes de nosso povo desde o período colonial. Portanto, devemos ler sua obra e seus intérpretes para que tenhamos maior capacidade de entender o processo pelo qual o Brasil passou até obter a configuração social dos dias atuais, tecer análises de nossa sociedade e propor mudanças matérias sólidas. Devemos, também, lembrar de tomarmos os devidos cuidados ao efetuarmos nossas leituras para que haja o mínimo de más interpretações possíveis e possamos obter o máximo de informações que expliquem nossa história. FIGURA 12 – REFLEXÃO SOBRE AS HERANÇAS DA CASA-GRANDE E DA SENZALA À SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA FONTE: <https://cutt.ly/HgQiEMt>. Acesso em: 24 jun. 2020. TÓPICO 2 — GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO 79 3 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E O DESENVOLVIMENTO SOCIAL DO BRASIL Sérgio Buarque de Holanda é autor de outra obra fundamental à compreensão da formação de nossa sociedade a partir do regime colonial no Brasil. Uma de suas mais importantes obras recebe o título de Raízes do Brasil (HOLANDA, 1995), publicada pela primeira vez no ano de 1936, na qual o pensador discorre sobre a construção das relações sociais brasileiras sob uma perspectiva de desenvolvimento histórico. Para Holanda (1995), nosso país herdou características sociais fundamentais determinadas pelo colonialismo e que refletem no tipo de política predominante até os dias de hoje. Em suma, Sérgio Buarque de Holanda nos apresenta o colonialismo como o fator que deu origem às principais heranças políticas e sociais do Brasil. O trecho a seguir introduz o pensamento central de sua obra (HOLANDA, 1995), mostrando-nos que, em sua perspectiva, a cultura e o corpo social brasileiro são fruto, principalmente, das intervenções do povo europeu em nossas terras. Em outras palavras, foi a colonização europeia o fator preponderante ao estabelecimento de uma cultura cuja estrutura central nunca se rompeu com o passar dos tempos. Ela apenas se transformou e se adaptou conforme as condições materiais e forças dominantes que regeram, e regem até os dias de hoje, nossa sociedade. A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas a sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem (HOLANDA, 1995, p. 31). Em Raízes do Brasil (Holanda, 1995) identifica uma série de fatores que, segundo ele, moldaram a cultura e a política de nossa sociedade. Representando um dos pensadores brasileiros mais importantes no que tange à compreensão da dinâmica social brasileira, Sérgio Buarque de Holanda foi bastante influenciado pelas ideias de Max Weber. O autor brasileiro usa a perspectiva weberiana de “tipos ideais” ou “tipos puros”, que é o método desenvolvido pelo autor alemão para estudar a sociedade. Tipos ideais são, basicamente, parâmetros de observação da sociedade, ou seja, um referencial para compararmos o que observamos com uma teoria sobre essa mesma observação. Os tipos ideais não são conceitos inflexíveis, que objetivam colocar fenômenos sociais dentro de caixas conceituais, mas sim, conceitos que podem variar de acordo com a evolução do raciocínio em relação a determinado objeto social. 80 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL A metodologia empregada por Holanda em Raízes do Brasil, implica concebermos a sociedade como um conjunto de modelos ou grupos de pessoas. Em outras palavras, o autor enquadra os principais atores que compõem a dinâmica social brasileira, desde o período colonial, em diferentes classes. Alguns dos exemplos de pares ideais adotados por Holanda (1995) são “aventureiros” e “trabalhadores”, “urbano” e “rural” entre outras classificações que são apresentadas no curso de toda a obra. O primeiro paradigma que Holanda (1995) quebra, quando sua obra é comparada a estudos e teorias anteriores, é o de que o Brasil fora colonizado puramente pelo povo português. Para o pensador, as terras brasileiras, assim como praticamente toda a América Latina, foram dominadas pelos povos ibéricos, ou seja, em sua maioria portugueses e espanhóis. Sérgio Buarque de Holanda identifica em Espanha e Portugal algumas características peculiares em relação ao resto da Europa, garantindo melhores condições à dominação do Brasil. O principal fator ibérico favorável à colonização, não só a do Brasil, mas de toda a América Latina, foi a proximidade geográfica espanhola e portuguesa em relação ao continente recém explorado, uma vez que os dois países possuem costa marítima voltada ao oeste. É significativa, em primeiro lugar, a circunstância de termos recebido a herança através de uma nação ibérica. A Espanha e Portugal são, com a Rússia e os países balcânicos (e em certo sentido também a Inglaterra), um dos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros mundos. Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo que, não obstante, mantêm como um patrimônio necessário (HOLANDA, 1995, p. 31). FIGURA 13 – REPRESENTAÇÃO CARTOGRÁFICA QUE EVIDENCIA A POSIÇÃO PRIVILEGIADA DOS PAÍSES IBÉRICOS EM RELAÇÃO AO CONTINENTE AMERICANO FONTE: <https://teletime.com.br/wp-content/uploads/2017/02/tratado-de-tordesilhas.jpg>.Acesso em: 12 jul. 2020. TÓPICO 2 — GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO 81 Outra notável característica que Espanha e Portugal compartilhavam, ressaltada por Holanda (1995), e que facilitou a colonização do Brasil e muitos outros países latino-americanos pelos povos ibéricos foi a ausência de uma hierarquia feudal tão imponente quanto a que havia em outros países europeus. Essa falta de uma hierarquia forte nos dois referidos países, facilitou a ascensão, crescimento e fortalecimento da burguesia mercantilista, classe que se destacou na busca pela expansão do mercado e, consequentemente, das expedições marítimas. Sérgio Buarque de Holanda sustenta a ideia de que essa falta de organização por parte das nobrezas ibéricas, que impuseram poucos limites às transações mercantis da burguesia, resultou na maior autonomia econômica de Portugal e Espanha, que tiveram mais oportunidades de se aventurar pelos mares em busca de maiores riquezas. Holanda (1995) acredita que Portugal passou por muitas mazelas governamentais, embora tenha sido um grande império, inclusive se tornando o primeiro Estado Nacional. Com o advento de ocorrências como, por exemplo, as dívidas acumuladas com a Inglaterra e conflitos com a Espanha e Holanda, Portugal se desestabilizou administrativamente. Uma das consequências de tais desafios enfrentados pela coroa portuguesa foi a concessão involuntária das boas condições de desenvolvimento das quais gozou a burguesia mercantil daquele país. A dinâmica econômica mais autônoma da península Ibérica em relação aos países europeus vizinhos constitui uma série de heranças muito importante à formação das sociedades emergentes nas terras colonizadas por Portugal e Espanha, conforme Holanda (1995). A autonomia e a capacidade de prover a si mesmo todas as suas demandas, torna-se um valor entre os povos ibéricos, que passam a atribuir mais valor àqueles que conseguem, por si só, por meio de seu próprio esforço, suprir suas necessidades e/ou de sua família. Isso viria, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1995), a influenciar diretamente a formação da cultura, especialmente as relações de trabalho, dos países colonizados. Precisamente a comparação entre elas e as da Europa de além-Pireneus faz ressaltar uma característica bem peculiar à gente da península Ibérica, uma característica que ela está longe de partilhar, pelo menos na mesma intensidade, com qualquer de seus vizinhos do continente. É que nenhum desses vizinhos soube desenvolver a tal extremo essa cultura da personalidade, que parece constituir o traço mais decisivo na evolução da gente hispânica, desde tempos imemoriais. Pode dizer-se, realmente, que pela importância particular que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de sua originalidade nacional. Para eles, o índice do valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes… – e as virtudes soberanas para essa mentalidade são tão imperativas, que chegam por vezes a marcar o porte pessoal e até a fisionomia dos homens. Sua manifestação mais completa já tinha sido expressa no estoicismo que, com pouca corrupção, tem sido a filosofia nacional dos espanhóis desde o tempo de Sêneca (HOLANDA, 1995, p. 32). 82 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL Voltando ao conceito de tipos ideais que Sérgio Buarque de Holanda herdou de Max Weber, trabalhando-o de maneira intensa em sua obra, analisaremos um par ideal considerado por ele fundamental à formação da sociedade brasileira: o “aventureiro” e o “trabalhador” (HOLANDA, 1995). De acordo com Holanda (1995), o grupo social cognominado “aventureiro”, é composto por um tipo de sujeito que não se interessa na realização de uma atividade laboral capaz de suprir de forma direta suas necessidades fundamentais, suprir as demandas básicas de sua sobrevivência e de sua família. Em outras palavras, o aventureiro não se preocupa com o tipo de trabalho necessário para alimentar sua família, que seria o cultivo, por exemplo, e suas consequências ao mundo no qual está inserido. Ele está muito mais atento às estratégias que gerariam maior lucratividade para si mesmo, como pensar a quantidade de terras que deve ocupar para o plantio e o tipo de mão de obra que irá empregar para tal atividade. O “trabalhador”, por sua vez, é o sujeito que volta sua atenção muito mais ao trabalho em sua manifestação prática e nos seus resultados diretos em relação a sua sobrevivência. Utilizando o mesmo exemplo empregado ao aventureiro, podemos dizer que o trabalhador se preocupa muito mais na forma com a qual realizará o trabalho na lavoura (que não será realizado pelo aventureiro) e na maneira com a qual ele proverá seu sustento. De outro modo, o trabalhador é aquele indivíduo que pensa no resultado imediato de seus serviços e nos motivos pelo qual dispende sua energia no trabalho por ele realizado. FIGURA 14 – REPRESENTAÇÃO DO PAR IDEAL “AVENTUREIRO-TRABALHADOR” NO PERÍODO COLONIAL BRASILEIRO FONTE: <https://cutt.ly/bgQoGp1>. Acesso em: 12 jul. 2020. A imagem da Figura 14 ilustra o par ideal composto pelo aventureiro e o trabalhador intrínsecos à “cultura do café” (termo que trabalharemos detalhadamente mais adiante) brasileira. Podemos observar o seguinte: o sujeito aventureiro, incorporado pelo homem branco montado ao cavalo no lado direito da pintura, que pode ser concebido como o proprietário da plantação de cana-de- açúcar e o trabalhador, encarnado pelos negros que dependiam diretamente de seu trabalho braçal para garantir sua sobrevivência em dado regime. TÓPICO 2 — GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO 83 Sendo o par ideal explanado anteriormente considerado uma das bases da formação social brasileira, Sérgio Buarque de Holanda enquadra os portugueses e espanhóis como sendo os aventureiros, sendo os indígenas e negros africanos concebidos como os trabalhadores que, em um primeiro momento colonial brasileiro, compuseram nosso povo e nossa cultura. Os colonizadores europeus eram aventureiros por objetivarem a multiplicação de suas riquezas com a exploração das terras dominadas, lançando-se em aventuras marítimas que culminaram com a invasão e domínio de vários territórios do Globo, inclusive o Brasil. Os africanos escravizados e trazidos para cá, junto aos povos nativos que foram submetidos ao trabalho escravo ou demasiadamente exploratório pelos europeus, dão origem a uma classe de trabalhadores que Holanda (1995) afirma existir até os tempos modernos (quem sabe, contemporâneos). O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. A mesma, em suma, que se tinha acostumado a alcançar na Índia com as especiarias e os metais preciosos. Os lucros que proporcionou de início, o esforço de plantar a cana e fabricar o açúcar para mercados europeus, compensavam abundantemente esse esforço – efetuado, de resto, com as mãos e os pés dos negros –, mas era preciso que fosse muito simplificado, restringindo-se ao estrito necessário às diferentes operações (HOLANDA, 1995, p. 49). Uma das grandes inovações que o pensamento de Holanda (1995) proporcionou à Teoria Social Brasileira, encontra-se em sua perspectiva dialética em relação às transformações ocorridas na sociedade brasileira com o desenvolver da história. Para o autor, nossa sociedade é fundada sobre bases sólidas que pouco se modificaram até a idade moderna. Para melhor ilustrar essa ideia, podemos considerar as relações de dominação entre diferentes classes (ou pares ideais) que, apesar de se adaptarem às mudanças sociais ocorridas com os passar do tempo, mantêm-seigual em sua essência. Um bom exemplo é a relação de dominação dos povos brancos europeus sobre os nativos e negros africanos: em regime escravocrata os negros eram dominados de forma mais direta, trancados em senzalas e fisicamente castigado pelos senhores de engenho. Em tese, a escravidão sofrida pelos povos negros foi formalmente abolida por meio da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888. Todavia, os descendentes de africanos ainda viviam (e vivem até hoje) submetidos a uma dinâmica sociocultural que dificulta de maneira evidente sua sobrevivência, inserção, ascensão e tratamento igualitário, em uma sociedade moderna que herda a hegemonia social dos descendentes europeus colonizadores. Sendo assim, é possível identificarmos a continuidade de uma cultura e de uma política que sofreram leves alterações em suas roupagens, embora continuem essencialmente as mesmas. 84 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL FIGURA 15 – REFLEXÃO SOBRE NOVAS ROUPAGENS PARA A CULTURA COLONIAL QUE SO- BREVIVE NA CONTEMPORANEIDADE FONTE: <http://joseliamaria.com/wp-content/uploads/2019/06/IMG_6762-1024x739.jpg>. Acesso em: 13 jul. 2020. A Figura 15 revela, quando compara à figura anterior (Figura 14), a continuidade de uma cultura colonial que se manteve praticamente intacta na contemporaneidade. Observamos um trabalhador de descendência negra trabalhando no corte da cana-de-açúcar. Embora possua condições mínimas de trabalho, como equipamentos de proteção individual (EPIs) exigidos pela legislação trabalhista vigente, não está na condição de aventureiro quando analisado pela ótica de Holanda (1995). Continua sendo um trabalhador preocupado com suas demandas cotidianas que agora são atendidas (pelo menos parcialmente) pelo salário que recebe, que não é alto o suficiente para tirar o mesmo da condição de trabalhador. Percebemos que pouca coisa mudou em relação ao mesmo trabalho realizado por meio de mão de obra escrava dos tempos coloniais. O trabalho é duro e as vezes insuficiente para a própria subsistência, enquanto os lucros provenientes de seu esforço são destinados ao proprietário da lavoura, que pode ser concebido na condição de um aventureiro. Compare-se o sistema de produção, tal como existia quando o mestre e seu aprendiz ou empregado trabalhavam na mesma sala e utilizavam os mesmos instrumentos, com o que ocorre na organização habitual da corporação moderna. No primeiro, as relações de empregador e empregado eram pessoais e diretas, não havia autoridades intermediárias. Na última, entre o trabalhador manual e o derradeiro proprietário — o acionista — existe toda uma hierarquia de funcionários e autoridades representados pelo superintendente da usina, o diretor-geral, o presidente da corporação, a junta executiva do conselho de diretoria e o próprio conselho de diretoria. Como é fácil que a responsabilidade por acidentes do trabalho, salários inadequados ou condições anti-higiênicas se perca de um extremo ao outro dessa série (HOLANDA, 1995, p. 142). O trecho anterior apresenta, por meio de outro exemplo, a transição entre duas relações de trabalho fundamentalmente iguais, que passaram por adaptações ao longo da história que mascararam as mesmas condições dos aventureiros, que, nesse caso, é o proprietário de determinada corporação e os trabalhadores, representados pelos funcionários, que perpetuam a mesma dinâmica anterior, porém, sob regime trabalhista diferente do qual eram submetidos anteriormente. TÓPICO 2 — GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO 85 Outro importante conceito de Holanda (1995), que inovou o Pensamento Social Brasileiro de sua época, foi o de homem cordial. O autor sustenta a ideia de que o homem cordial moldou as bases da cultura e política brasileiras. Trata- se de um homem que, por meio de uma política orientada por um personalismo, construiu um povo cordial. No entanto, o conceito de cordial para Sérgio Buarque de Holanda (1995), não é o sinônimo de benevolência, educação, altruísmo ou quaisquer outros adjetivos positivos. De acordo com Holanda (1995), cordial, palavra derivada do latim cordis, que significa coração, possui uma conotação de guiado pelo afeto. Isso não quer dizer que o brasileiro seja essencialmente compreensivo ou afável. Porém quer dizer que o sujeito construído por meio, principalmente, do caráter do perfil europeu colonizador, é guiado através de seus interesses particulares, em especial, interesses familiares. Simplificando, o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda (1995) é, grosso modo, o homem que coloca os interesses privados acima dos interesses públicos, comuns ao restante da sociedade. O exemplo que melhor se aplica ao exposto anteriormente, é o da ausência de separação da esfera pública da privada nas decisões políticas no Brasil. O patrimonialismo herdado dos europeus influencia no momento em que um político, eleito por vias democráticas, delega um cargo público importante a algum parente ou outra pessoa de sua confiança, independentemente de sua capacidade de exercer as tarefas inerentes à função do mesmo. Ou seja, o político brasileiro é, comumente, aquele que tem suas ações políticas guiadas por laços afetivos pessoais, particulares, privados ao invés de atender aos anseios públicos. Isso dá sentido à expressão patrimonialismo, uma vez que tal político investe em seus laços emocionais, em seu patrimônio afetivo, objetivando acumular respeito ao invés de realmente fazer uma política justa aos olhos dos demais membros da sociedade. Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “ patrimonial” , a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático (HOLANDA, 1995, p. 145-146). Esse comportamento advém, conforme Holanda (1995), das raízes culturais do povo brasileiro, que é moldada principalmente pela educação que recebemos no curso da história e pelas relações de trabalho às quais fomos submetidos. O pensador brasileiro acredita que carregamos fortes heranças da educação jesuítica que recebemos, de forma quase exclusiva, até aproximadamente o final do século 86 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL XVIII. Esse modelo de educação era baseado no culto à disciplina e obediência, que submetia nossos educandos a um tipo de respeito cego a indivíduos de prestígio, como alguns militares, por exemplo. A disciplina não era fomentada devido a uma visão estratégica, que poderia prover aos indivíduos alguns benefícios pessoais ou coletivos por meio de algum tipo específico de atitude, mas de forma a moldar os sujeitos pela imposição de um comportamento submisso, considerado ideal pelos educadores. Sendo assim, podemos dizer que fomos, durante muito tempo (quase três séculos), educados para respeitar pessoas ao invés de ideias (personalismo), obedecendo a concepções políticas individuais, privadas, em detrimento das demandas e posicionamentos coletivos, públicos. FIGURA 16 – REFLEXÃO SOBRE A PARCIALIDADE DA NOMEAÇÃO DE PESSOAS AFETIVAMENTE LIGADAS AOS GESTORES INSTITUCIONAIS NO BRASIL FONTE: <https://ospyciu.files.wordpress.com/2014/07/1.jpg>.Acesso em: 13 jul. 2020. A provocação realizada pela Figura 16 gira em torno do tema nepotismo, que consiste na nomeação de parentes e/ou pessoas de confiança de gestores estatais a cargos públicos. A cultura patrimonialista que, de acordo com Holanda (1995), está intrínseca à sociedade brasileira, pode resultar em práticas, como a denunciada anteriormente, na esfera pública. Ao analisarmos tal possível consequência, proveniente de um comportamento herdado do povo europeu pelos brasileiros, o homem cordial pode ser concebido como um sujeito antidemocrático por natureza, que prioriza seu patrimônio social, moral e material ao invés de zelar pelo bem comum. Para Holanda (1995), a família é, desde os tempos coloniais, a instituição mais importante para o brasileiro, à qual somos condicionados a dedicar nossos maiores esforços em detrimento de outras instâncias da vida social. Isso quer dizer que somos muito mais fiéis ao bem-estar de nossos familiares em relação ao restante da sociedade. A cordialidade então se limita ao recinto doméstico e à garantia dos interesses daqueles que o compõem. De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, é comum que a parcela do povo que possui acesso aos estudos e TÓPICO 2 — GILBERTO FREYRE, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO 87 cargos que demandam esforços acadêmicos, busquem a esfera pública por meio de outras funções políticas. Porém, sua atuação se limita aos valores e costumes apreendidos no seio familiar, o que a faz, comumente, lançar mão de políticas públicas alinhadas aos interesses domésticos. Essa aptidão para o social está longe de constituir um fator apreciável de ordem coletiva. Por isso mesmo que relutamos em aceitar um princípio superindividual de organização e que o próprio culto religioso se torna entre nós excessivamente humano e terreno, toda a nossa conduta ordinária denuncia, com frequência, um apego singular aos valores da personalidade configurada pelo recinto doméstico. Cada indivíduo, nesse caso, afirma-se ante os seus semelhantes indiferente à lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais, do resto do mundo (HOLANDA, 1995, p. 155). O trecho anterior pode ser entendido como uma tentativa de Holanda (1995) de explicar as raízes da tradição política do Brasil, um país fundado sobre valores estritamente familiares, personalistas e individualistas. A cordialidade se resume em um afeto destinado muito mais aos nossos iguais imediatos, ou seja, nossa família, do que uma emoção voltada ao reconhecimento de toda uma classe à qual pertencemos e que é alheia ao nosso meio familiar. Sendo assim, o contexto político brasileiro, dominado por aqueles cuja posição social privilegiada os permite estudar, herda de nossos antepassados membros quase sempre pertencentes à elite “bacharelada”, aos quais se refere Sérgio Buarque de Holanda (1995), àqueles que se formaram e ingressaram na carreira política. De qualquer modo, ainda no vício do bacharelismo ostenta-se também nossa tendência para exaltar acima de tudo a personalidade individual como valor próprio, superior às contingências. A dignidade e importância que confere o título de doutor permitem ao indivíduo atravessar a existência com discreta compostura e, em alguns casos, podem libertá-lo da necessidade de uma caça incessante aos bens materiais, que subjuga e humilha a personalidade. Se nos dias atuais o nosso ambiente social já não permite que essa situação privilegiada se mantenha cabalmente e se o prestígio do bacharel é sobretudo uma reminiscência de condições de vida material que já não se reproduzem de modo pleno, o certo é que a maioria, entre nós, ainda parece pensar nesse particular pouco diversamente dos nossos avós. O que importa salientar aqui é que a origem da sedução exercida pelas carreiras liberais vincula-se estreitamente ao nosso apego quase exclusivo aos valores da personalidade (HOLANDA, 1995, p. 157). Juntas, as obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, apesar de suas limitações naturais, contribuíram para o desenvolvimento das bases de uma nora era da Teoria Social Brasileira: a que seria trabalhada de acordo com os parâmetros científicos e acadêmicos. Sendo assim, é imprescindível a leitura da produção intelectual de ambos os autores, sempre de maneira crítica, considerando o contexto de formação de cada um deles e o que esses fatores influenciaram em seus respectivos pensamentos. 88 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • O Pensamento Social Brasileiro adentrou em seu período científico-acadêmico por meio da obra de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. • Gilberto Freyre foi um grande nome do Pensamento Social Brasileiro, contribuindo com uma perspectiva acerca da formação do povo brasileiro partindo do processo de miscigenação no Brasil. • A obra de Gilberto Freyre é, até hoje, alvo de fortes críticas, principalmente em relação à linguagem nela empregada e à romantização de fatos que representaram muito sofrimento ao povo afrodescendente e às mulheres brasileiras. • Sérgio Buarque de Holanda contribuiu com o avanço da Teoria Social Brasileira, considerando alguns aspectos fundamentais do período colonial e suas implicações sociais na modernidade. • A obra de Sérgio Buarque de Holanda evidencia algumas características que foram herdadas dos colonizadores europeus pelo nosso povo, moldando um modelo cultural e político baseado na cordialidade, personalismo, individualismo e patrimonialismo. 89 1 Gilberto Freyre é considerado um dos maiores contribuintes do Pensamento Social Brasileiro, trabalhando principalmente o processo de formação do povo brasileiro por meio de sua perspectiva sobre a mestiçagem ou miscigenação. Embora tenha sofrido muitas críticas com o passar dos tempos, sua obra contribuiu com a reconstrução dos elementos fundamentais que constituíram a dinâmica social brasileira: a casa-grande e a senzala. Partindo do pressuposto freyriano que esses dois elementos, intimamente interligados, moldaram as bases da cultura e da política brasileiras, analise as sentenças a seguir sobre o processo de formação de nosso povo: I - A miscigenação no Brasil foi um processo no qual as diferentes raças e etnias aqui inseridas (europeus e africanos), misturaram-se aos povos nativos e entre si, dando origem ao nosso povo que é considerado um dos mais ricos em termos de diversidade racial. II - Embora Gilberto Freyre tenha narrado de maneira romântica o processo de miscigenação e as comodidades da escravidão ao homem branco brasileiro, ambos foram processos violentos e que deixaram marcas em nossa sociedade até os tempos atuais. III - Embora não negue o caráter cruel e violento do regime escravocrata brasileiro, Gilberto Freyre sustenta a ideia de que a escravidão no Brasil foi “branda” em relação a outros países, sendo essa afirmação alvo de muitas críticas ao seu pensamento. IV - Gilberto Freyre foi um autor que narrou, de forma imparcial e isenta de concepções emotivas, a escravidão no Brasil, tão como o processo de mestiçagem, ao qual se referia com repúdio aos estupros e violências que ocorreram aqui durante esse período. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I, II, III e IV estão corretas. b) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas. c) ( ) As sentenças I e II estão corretas. d) ( ) As sentenças III e IV estão corretas. e) ( ) As sentenças I e III estão corretas. 2 Sérgio Buarque de Holanda revolucionou a Teoria Social Brasileira emergente no início do século XX, concebendo a cultura e a política moderna como fruto histórico de fenômenos sociais iniciados no período colonial. Para o autor, bases de nossa sociedade sofreram poucas modificações em sua essência, seguindo padrões que se originaram nos povos ibéricos que colonizaram nossas terras, antes mesmo da colonização. A modernidade seria composta, na concepçãode Holanda, por uma série de “pares ideais” que, contrapostos ou não, evoluíram de acordo com o processo histórico e moldaram a sociedade brasileira até a modernidade. De acordo com o que estudamos no presente tópico, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: AUTOATIVIDADE 90 ( ) Os tipos ideais “aventureiro” e “trabalhador”, que Sérgio Buarque de Holanda considerava as classes mais fundamentais que compuseram a sociedade brasileira, eram formados, basicamente, por aqueles que objetivavam lucrar com atividades econômicas e aqueles que trabalhavam para suprir as suas necessidades imediatas, respectivamente. ( ) Sérgio Buarque de Holanda acreditava que a sociedade brasileira carrega heranças sociais advindas do modo de vida dos povos ibéricos, uma vez que Espanha e Portugal, com suas particularidades políticas em relação ao resto da Europa, obtiveram maiores vantagens no desenvolvimento mercantilista, garantindo maior autonomia no comércio, exploração e suprimento de suas demandas familiares. ( ) O homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda, é aquele sujeito altruísta, educado e pacífico que foi responsável por solidificar nossas bases culturais e políticas voltadas ao atendimento das necessidades do povo em detrimento de suas demandas pessoais e familiares. ( ) O caráter hereditário da trama política brasileira, ou seja, a cultura da valorização dos laços familiares sobre as aptidões políticas no momento da nomeação de cargos públicos por gestores do Estado, possui pouca relação com a cordialidade intrínseca aos governos que regem o Brasil desde o período colonial. Assinale a alternativa que a presenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – V – V. b) ( ) V – F – V – V. c) ( ) V – V – F – V. d) ( ) F – F – V – V. e) ( ) V – V – F – F. 3 Sabemos que Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda são dois grandes autores brasileiros que muito contribuíram com a construção das bases da Teoria Social Brasileira, principalmente no que diz respeito à era científico/acadêmica que nasceu no início do século XX. Isso não significa que os pensadores que contribuíram com o Pensamento Social Brasileiro, anteriormente, não foram de grande importância nesse processo. Dentre limitações e perspectivas muito criticadas contemporaneamente, os referidos autores foram responsáveis por grandiosas inovações no que diz respeito à reconstrução de um Brasil ainda desconhecido por muitos até o século passado. Com base no conteúdo estudado no presente tópico, resuma, com suas palavras, as principais contribuições de cada um desses autores aos estudos de nossa sociedade. 91 UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O terceiro e último tópico da Unidade 2 de nosso material apresentará as ideias centrais de outros dois grandes nomes do Pensamento Social Brasileiro: Florestan Fernandes e Caio Prado júnior. Abordaremos os principais conceitos trabalhados em suas obras mais importantes, destacando suas abordagens e inovações em relação à perspectiva sociológica construída no Brasil. Para tanto, utilizaremos escritos desenvolvidos por diferentes intérpretes das obras de ambos os pensadores e trechos retirados de sua própria literatura, objetivando maior riqueza de análises e perspectivas. Lembrando que a leitura das obras de Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior são indispensáveis, uma vez que toda sua riqueza não pode ser expressada apenas por meio de interpretações feitas por outros estudiosos ou sínteses que objetivam a introdução ao pensamento de ambos. Bons estudos! 2 FLORESTAN FERNANDES: RELAÇÕES SOCIAIS E ESTRUTURA DE CLASSES NA SOCIEDADE BRASILEIRA Antes de iniciarmos nossos estudos das contribuições de Florestan Fernandes à Teoria Social Brasileira, devemos considerar as principais influências e métodos adotados pelo autor para composição de sua obra. Fernandes é um autor que bebe de várias fontes para construir seu ponto de vista, dentre elas devemos ressaltar o pensamento de Max Weber, Emile Durkheim e, principalmente, Karl Marx. Florestan Fernandes era considerado um autor marxista, apesar de sua influência heterogênea, pois adotou o materialismo histórico dialético de Marx como método de conceber a realidade. Trata-se, de maneira bem resumida, de considerar o mundo material como algo composto por elementos em constante mudança. Esse incessante ciclo de mudanças ocorre no mundo material, ou seja, em tudo aquilo que podemos tocar e transformar, sob o efeito de nossas necessidades, reflexão e trabalho, resultando na construção da história. Outra característica pessoal interessante de Florestan Fernandes é sua condição de pessoa negra, pobre e que vivenciou severas dificuldades em sua vida. Precisou trabalhar muito cedo, já aos seis anos de idade, para ajudar sua família, fato que talvez tenha influenciado sua concepção acerca da existência de diferentes classes sociais, e a importância do trabalho humano na construção de nossa história. É considerado um autor “militante”, ou seja, que abre mão TÓPICO 3 — FLORESTAN FERNANDES E CAIO PRADO JÚNIOR 92 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL da neutralidade proposta pela Sociologia científica, posicionando-se a favor de uma classe social específica: a trabalhadora. Bastos (2015) sustenta a ideia de que Florestan Fernandes facilitou o entendimento acerca da estrutura social brasileira, partindo do estudo da realidade das classes menos privilegiadas. [...] opera com a afirmação de que o elo mais fraco da corrente social ilustra o funcionamento da sociedade [e que, portanto,] a escolha para análise de um grupo que carrega desvantagens maiores do que outros para integrar-se socialmente implica uma admissão teórico- metodológica: a partir da periferia percebe-se melhor o movimento da sociedade, possibilitando, assim, a percepção dos princípios que a articulam (BASTOS, 2015, p. 49). Florestan Fernandes possui uma obra muito extensa, porém, as duas obras que ganharam maior destaque devido às inovações que concedeu à Teoria Social Brasileira foram, sua dissertação de mestrado intitulada A Organização Social dos Tupinambá (FERNANDES, 1963) e A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1978). Ambas as obras romperam com as ideias de Gilberto Freyre, que resultaram numa concepção de “democracia racial” existente no Brasil que, até então (década de 1940), estavam em alta entre os intelectuais da época. Embora Freyre não tenha utilizado o termo democracia racial em sua obra e desmentir essa ideia em entrevista posteriormente, era muito comentado que o pensamento freyriano induzia a crença na existência de uma igualdade entre as raças que se miscigenaram e compuseram nosso povo. Em Florestan Fernandes, as relações raciais entre brancos, índios e negros são vistas sob o prisma da exclusão social na passagem da sociedade colonial para a tradicional escravista e daí para a sociedade de classes. Consequentemente, o objeto de análise, nas obras interpretativas do Brasil não é apenas o negro ou o índio, mas o povo, a sociedade brasileira que emerge na história. Uma sociedade que comporta tanto momentos de modernização, quanto de arcaísmo; de inclusão e integração como de exclusão e discriminação. Enfim, um sistema social que apresenta, ao mesmo tempo, processos integrativos e desintegrativos (MARIOSA, 2019, p. 188). Florestan Fernandes (2008) é adepto da ideia de que as chamadas estruturas sociais são construtos socioculturais que se modificam lentamente ao desenrolar da história. Isso quer dizer que alguns hábitos sociais geram mentalidades que, por mais que operem por meio de outros moldes com o passar dos tempos, permanecem com uma estrutura fundamental intacta devido à cultura criada por esses mesmos hábitos. Utilizemo-nos novamente do exemplo da escravidão no Brasil: por mais que a abolição da escravatura tenha sido formalizada por meio da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, a cultura da diferenciação entre negros e brancos nãocessou no momento em que a ela fora outorgada. A cultura racista herdada de nosso antepassado colonizador demanda um processo histórico mais longo, além de outros fatores políticos, para ser gradualmente superada. Em termos sociológicos, as sociedades humanas que tendem ou participam de um mesmo padrão de civilização podem ostentar essa condição de várias maneiras. No essencial, a vigência de um padrão de civilização sempre pressupõe um mínimo de eficácia em TÓPICO 3 — FLORESTAN FERNANDES E CAIO PRADO JÚNIOR 93 sua atualização histórico-social. Todavia, tanto estrutural quanto funcionalmente, ocorrem amplas flutuação em torno e abaixo ou acima desse mínimo. As sociedades do Novo Mundo não constituem exceção a essa regra. Ao contrário, elas mostram como as contingências da conquista, da colonização e da integração nacional afetaram, por vezes de modo dramático e profundo, a amplitude, o curso e os efeitos de “expansão da civilização ocidental” nesta parte do globo (FERNANDES, 2008, p. 98). FIGURA 17 – REFLEXÃO SOBRE A CRÍTICA À TEORIA DA DEMOCRACIA RACIAL FONTE: < https://4.bp.blogspot.com/-arh_aAeep7c/WT10qdp9XVI/AAAAAAAAAfc/eDfhQcf-tDs- R73xQvvSeP1Jft1JxcK2rQCLcB/s1600/democracia%2Bracial.jpg >. Acesso em: 14 jul. 2020. Uma das teorias de Florestan Fernandes que ganhou destaque entre os pensadores sociais brasileiros é a do Capitalismo Dependente (FERNANDES, 1975), contexto sócio-político-econômico no qual o Brasil está inserido. Dentre outras consequências desse modelo capitalista, especialmente em relação à América Latina, está a submissão do bloco de países latino-americanos à dinâmica político- econômica capitaneada principalmente por países europeus e pelos Estados Unidos da América. A referida tese denuncia a submissão da trama produtiva brasileira não só às exigências de uma burguesia interna, mas também à burguesia estrangeira à qual a nacional está submetida. Ou seja, o trabalho de produção de riquezas brasileiro deve suprir as demandas tanto da hegemonia local, quanto das elites burguesas europeia e estadunidense. Tal sistema financeiro internacional reflete na superexploração do trabalho e na dificuldade de absorção das riquezas que produzimos pela nossa própria sociedade. O autor (FERNANDES, 1975) explica que a superação dessa condição dependente por parte do Brasil é dificultada devido à herança colonial no país. Isso significa que a ruptura com o sistema de Capitalismo Dependente demandaria uma mudança política interna drástica, de forma a voltar a produção brasileira de riquezas às demandas nacionais em detrimento da histórica atenção ao mercado exterior que explora nosso território. Essa ideia é baseada na noção de que o rompimento com as estruturas sociais construídas em solo brasileiro demanda tempo e trabalho para se concretizar. 94 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL Uma outra importante tese de Florestan (FERNANDES, 1975) é a de que o Estado brasileiro foi tomado pela estrutura burguesa que havia se estabelecido aqui. Em outras palavras, nossas instituições foram construídas por quem dominava a dinâmica cultural, política e econômica no Brasil: a burguesia colonizadora. Isso quer dizer que, com o passar do tempo, a organização política foi se moldando de forma a adquirir um aspecto mais democrático (que não quer dizer que se tornaria um governo democrático de fato). Porém, as mesmas classes que dominavam o Brasil colonial, inseriram-se na política formal e continuaram ditando seus interesses por intermédio do Estado. Ou seja, partindo do conceito de estruturas sociais sólidas, dificilmente rompidas a curto prazo, nosso território, cultura, política e economia continuaram orientados pelas mesmas pessoas que dominavam o país em regime colonial. Em uma de suas obras de maior destaque, Florestan Fernandes (1978) discorre sobre a condição do negro no Brasil pós-escravidão, associando a desigualdade racial no contexto capitalista a uma questão de dominação entre classes sociais. Para o pensador, a situação do povo negro brasileiro continuou desfavorável socialmente em relação aos brancos, que possuíam melhores oportunidades e cargos empregatícios, dentre outros privilégios. Analisando a conjuntura político-social de São Paulo do século XX, Fernandes (1978) observou que naquele estado em vias de crescimento econômico, as desigualdades sociais eram mais facilmente observáveis. Lá a discriminação racial se tornara algo mais nítido em relação a outros estados brasileiros onde a integração do negro na sociedade também era um processo difícil e desigual. Partindo do pressuposto que as ideias originárias dos discursos proferidos por pensadores, não só da área social, mas de quaisquer campos do conhecimento, são compreendidas de maneira mais clara quando acessadas em forma articulada e na íntegra, torna-se imprescindível acompanharmos suas conversas, aulas e entrevistas (quando possível, é claro). Sendo assim, apresentamos uma entrevista de Florestan Fernandes concedida ao programa Vox Populi, que pode ser acessada no endereço eletrônico a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=dPAYUfcwR0E. Por meio dela conseguimos nos aproximar ainda mais dos argumentos construídos pelo autor de forma didática, complementando a leitura de sua obra que também é fundamental ao entendimento de seu pensamento. DICAS TÓPICO 3 — FLORESTAN FERNANDES E CAIO PRADO JÚNIOR 95 FIGURA 18 – REFLEXÃO SOBRE A DIFICULDADE NO QUE TANGE À INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE DE CLASSES FONTE: <https://observatorio3setor.org.br/wp-content/uploads/2019/04/1-racismo.jpg>. Acesso em: 14 jul. 2020. A obra de Fernandes (1978) apresenta uma análise acerca da inserção do povo negro no contexto social do estado que mais se desenvolvia industrial e, consequentemente, economicamente. O texto, então, versa os desafios enfrentados pelo negro em busca de sua integração na dinâmica capitalista após a recente abolição formal da escravidão no Brasil. O autor percebe que, desde o reconhecimento do fim da escravidão no ano de 1888, o negro, apesar de legalmente protegido contra o escravismo, continuava isolado do restante da sociedade que possuía maiores chances de ingresso em um mercado de trabalho industrial nascente. Encontrando-se em uma condição desfavorável, na qual até mesmo os imigrantes europeus recém chegados ao Brasil recebiam prioridade na ocupação dos empregos gerados pela indústria emergente, o negro brasileiro se depara com um crescente processo de marginalização. Tal fato é associado por Fernandes (1978) à herança cultural colonial, que dá continuidade à mentalidade escravista que inferioriza o negro em relação ao branco. Observa-se a continuação da ideia, oriunda das classes hegemônicas, de que os negros não poderiam ocupar os mesmos cargos que os brancos. Outra tese muito importante e inovadora elaborada por Fernandes (1978), ressalta a resistência de uma parcela do povo negro brasileiro em relação a sua integração à nova dinâmica social pós-escravidão. Segundo o pensador, muitos negros que estavam inseridos ou tiveram contato direto com a trama escravista, sendo ex-escravos ou seus descendentes, tomavam consciência de que as novas modalidades de trabalho a eles oferecidas davam continuidade à exploração que sofriam durante regime de escravidão. A recusa pelos novos trabalhos que seguiam submetendo o negro brasileiro a condições precárias resultaria na busca por outras alternativas para sua sobrevivência. Atividades ilícitas, ou consideradas criminosas pela classe hegemônica brasileira, estariam cada vez mais presentes na vida do negro no Brasil. 96 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL O compromisso de Florestan Fernandes com a mudança da condição inferior do negro no Brasil se manifesta em sua obra. O sociólogo ressalta a importância da luta de classes por meio de movimentos sociais que reivindiquem melhores condições de vida ao povo negro. A organização de ações que denunciama desigualdade, o racismo, a discriminação, a falta de oportunidades dentre outras diversas dificuldades enfrentadas cotidianamente pelos negros brasileiros seriam, conforme o autor, um trabalho que proporcionaria ao negro, de forma gradual, melhores condições de vida em meio à sociedade de classes (FERNANDES, 1978). FIGURA 19 – EXEMPLO DE MANIFESTAÇÃO SOCIAL QUE DENUNCIA O SOFRIMENTO DO AFRO-BRASILEIRO NA CONTEMPORANEIDADE FONTE: <https://www.cartacapital.com.br/wp-content/uploads/2019/04/negros.jpg>. Acesso em: 14 jul. 2020. Cabe ressaltar que a obra de Florestan Fernandes é muito vasta e não se limita apenas às obras estudadas no presente subtópico. Por se tratar de um dos maiores pensadores brasileiros, que é considerado um dos maiores sociólogos da América Latina e do mundo, o estudo de sua produção intelectual é imprescindível a uma análise de aspectos fundamentais da sociedade brasileira. Portanto, é obrigatória a leitura de seus escritos àqueles que pretendem contribuir com a Teoria Social Brasileira, com a teoria e/ou com políticas em âmbito nacional. 3 CAIO PRADO JÚNIOR: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA Uma nova perspectiva acerca da formação da sociedade brasileira contemporânea é formulada por Caio Prado Júnior: outro grande pensador que contribuiu de maneira ímpar com a Teoria Social Brasileira. Caio Prado Júnior (1961) é um intelectual que também se utiliza dos métodos marxistas para compreensão da realidade, inovando em suas análises da formação do Brasil contemporâneo partindo de pressupostos econômicos. Isso quer dizer que o autor identifica, durante o desenvolver histórico de nossa sociedade, alguns fatores fundamentais que foram orientados pelo tipo de economia aqui existente. Ou seja: nossa cultura e política foram construídas a partir da dinâmica econômica estabelecida em nosso território. TÓPICO 3 — FLORESTAN FERNANDES E CAIO PRADO JÚNIOR 97 Caio Prado Júnior (1961) identifica na economia implantada no Brasil, desde o período pré-colonial, as bases de nossa cultura e política. O intelectual se depara, aos estudar os diversos ciclos econômicos brasileiros identificados pelos historiadores, com padrões culturais engendrados por cada modelo econômico aqui desenvolvido. Por exemplo, no início do século XVI, a partir da invasão dos primeiros europeus, Prado Júnior (1961) observa um tipo de cultura emergente da dinâmica extrativista do Pau-brasil. Essa cultura foi forjada devido à submissão dos povos nativos aos trabalhos de extração da madeira que era comercializada no exterior. O trabalho realizado pelos povos ditos indígenas, seduzidos pela já mencionada prática do escambo, orientaria toda uma cultura brasileira. Dos contatos iniciais que resultaram na proximidade entre europeus invasores e povos nativos, intermediada pelo escambo, influenciaria a cultura aqui estabelecida antes da chegada dos brancos. Prado Júnior (1961) enfatiza as consequências da economia imposta pelos povos europeus ao comportamento de etnias que, mais tarde, formariam alguns dos pilares fundamentais da sociedade brasileira. Um de seus conceitos centrais à compreensão do processo histórico que culminou com o Brasil contemporâneo, parte da ideia de que durante o período colonial brasileiro, fatos essenciais interferiram em nossa cultura e política. O autor introduz o “sentido da colonização” como uma sequência de fatos históricos forjados pela dinâmica colonial, sobretudo pelos seus aspectos econômicos, que constituíram as bases de nossa sociedade. Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo “sentido”. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto de fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo. Quem observa aquele conjunto, desbastando-o do cipoal de incidentes secundários que o acompanham sempre e o fazem muitas vezes confuso e incompreensível, não deixará de perceber que ele se forma de uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa, e dirigida sempre numa determinada orientação. É isto que se deve, antes de mais nada, procurar quando se aborda a análise da história de um povo, seja aliás qual for o momento ou o aspecto dela que interessa, porque todos os momentos e aspectos não são senão partes, por si só incompletas, de um todo que deve ser sempre o objetivo último do historiador, por mais particularista que seja. Tal indagação é tanto mais importante e essencial que é por ela que se define, tanto no tempo como no espaço, a individualidade da parcela de humanidade que interessa ao pesquisador: povo, país, nação, sociedade, seja qual for a designação apropriada no caso. É somente aí que ele encontrará aquela unidade que lhe permite destacar uma tal parcela humana para estudá-la à parte (PRADO JÚNIOR, 1961, p. 13). O trecho anterior introduz a ideia de que, a partir da observação dos aspectos centrais do desenvolvimento histórico de determinada sociedade, povo, nação, dentre outras denominações, podemos compreender a formação de dada cultura. Concebendo a economia como o fator preponderante à construção social do Brasil, Prado Júnior (1961) aponta o sentido que a colonização deu à nossa sociedade. O autor acredita que as atividades econômicas aqui implantadas pelos povos europeus, moldaram nossos costumes e, portanto, foram fundamentais à evolução de nossa sociedade até os dias de hoje. 98 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL O autor (PRADO JÚNIOR, 1961) aponta que entender o papel da América Latina para os povos ibéricos colonizadores, é de fundamental importância para entender a formação de nossa sociedade. Ele acredita que o fato de que território latino-americano fora muito mais para a exploração e produção de riquezas do que propriamente para a ocupação dos colonizadores, tem muito a dizer sobre o desenvolvimento de nossa cultura (PRADO JÚNIOR, 1961). O intelectual disserta sobre toda uma cultura que nasce em torno das atividades econômicas centrais do Brasil, desde sua colonização. Ele concebe, por exemplo, o clico econômico da cana-de-açúcar, como fator originário de uma “cultura da cana”, que moldou aspectos culturais e políticos brasileiros que, até a contemporaneidade, pouco sofreram mudanças estruturais significativas (PRADO JÚNIOR, 1961). FIGURA 20 – O CICLO ECONÔMICO DA CANA-DE-AÇÚCAR COMO UM DOS ORIENTADORES POLÍTICO-CULTURAIS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO FONTE: <https://cutt.ly/3gQsZMR>. Acesso em: 14 jul. 2020. Caio Prado Júnior (1961) destaca um caráter pouco racional em relação à ocupação do Brasil pelos povos ibéricos. Isso quer dizer que se houve de fato uma racionalidade em torno da utilização de nosso território, ela estaria muito mais voltada à exploração de nossos recursos do que à construção de uma sociedade voltada ao crescimento econômico e/ou à habitação do local. Nesse sentido, o conceito de “colônia de exploração” e “colônia de povoamento”. A colonização de nosso país e dos demais da América Latina, estaria muito mais voltada à exploração dos recursos naturais e produção de riquezas do que propriamente ao povoamento por parte dos europeus ibéricos. A inserção do negro na sociedade brasileira também é associada por Caio Prado Júnior (1961) aos aspectos economicistas de nosso desenvolvimento. O autor discorre que o tráfico negreiro para o Brasil foi motivado, sobretudo, pelas vantagens econômicas do trabalho escravo na produção de riquezas retiradas de nosso país. Sendo assim, a economia também seria preponderante em relação à chegada em massa dos povos africanos no Brasil. É muito importante salientar o papel da economia na introdução de uma das etnias que compõem a base do povo brasileiro, conforme os estudos do referido pensador. TÓPICO 3 — FLORESTAN FERNANDES E CAIO PRADO JÚNIOR 99 Comparando a colonização latino-americana com a colonização da América do Norte, sobretudo a consolidada nos Estados Unidos da América, CaioPrado Júnior (1961) aponta uma dualidade em relação às intenções dos colonizadores europeus na América. Enquanto na América Latina a colonização estivesse voltada muito mais à exploração e impulsionamento do capitalismo europeu, nos Estados Unidos, a colonização seria mais racionalizada no sentido da construção de um país cujo povoamento seria o objetivo maior dos europeus. Essa concepção provocou muitos debates no mundo acadêmico e, até os dias de hoje, discutem-se algumas teses do autor. Ao analisar a comparação que Prado Júnior faz entre a colonização da América do Norte e a do Sul, na sua obra História Econômica do Brasil, Adorno levanta três observações: a primeira delas, e mais significativa, diz respeito a indefinição da natureza econômico social da empresa mercantil colonizadora. Ora, não se trata de feudalismo, embora o patrimonialismo expresso pelas sesmarias apontasse nessa direção, também não se trata de capitalismo, haja vista, que não há separação radical entre trabalho e capital. Restava qualificá-lo de pré-capitalismo, mas não haveria clareza na inserção da colonização no terreno da acumulação originária do capital, já em andamento no mundo europeu, especialmente na Inglaterra (ADORNO, 1989, p. 241 apud LIMA, 2008, p. 72). Embora os conceitos do intelectual em questão sejam amplamente refutados na academia contemporânea, principalmente aqueles referentes ao capitalismo ou às etapas pelo qual seu desenvolvimento passou, Caio Prado Júnior (1961) contextualiza, de maneira original, a ocupação da América Latina e América do Norte pelos europeus. As ideias de Caio Prado Júnior (1961) representaram um grande avanço no que tange à compreensão do propósito da colonização do continente americano como um todo. O conceito de “Revolução Brasileira” é outra tese de fundamental importância na obra de Caio Prado Júnior. Conforme o pensador (PRADO JÚNIOR, 1961), para que o Brasil alcançasse sua emancipação em relação aos domínios políticos estrangeiros, que estão diretamente relacionados à condição de país economicamente dependente, nosso território necessitaria de uma modernização econômica. Por mais contraditório que pareça, o pensador sustenta a ideia de que o Brasil só poderia se desvincular politicamente dos países que dominavam a dinâmica econômica mundial, por meio do estabelecimento de uma burguesia forte. A partir dessa formação de uma base econômica sólida, o país poderia voltar sua produção de riquezas para o interior, rompendo com seu caráter de “apêndice econômico” de outros países. Isso reforça a ideia de que a economia é o fator que mais exerce influência sobre nossa história. 100 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL FIGURA 21 – REFLEXÃO ACERCA DA SOBREPOSIÇÃO DA ECONOMIA SOBRE OS DEMAIS ASPECTOS DA FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO FONTE: <https://conhecimentocientifico.r7.com/wp-content/uploads/2018/11/destaque.jpg>. Acesso em 15 de julho de 2020. Encerraremos a Unidade 2 de nosso livro didático com uma interpretação da obra de Caio Prado Júnior. TÓPICO 3 — FLORESTAN FERNANDES E CAIO PRADO JÚNIOR 101 AGRARISTAS POLÍTICOS BRASILEIROS Raimundos Santos [...] O PAPEL DO SINDICALISMO NA REFORMA DO MUNDO RURAL Relembremos agora como o “ponto de vista do trabalho” orienta a dissertação agrária. À luz da interpretação de Brasil, ela pode ser vista como marco de um campo intelectual que não restringe a reforma do mundo rural à questão fundiária. Caio Prado Júnior confere importância à ideia de uma reforma agrária não camponesa; um tema continuado sob registro diverso por outros autores no pré-64 e depois da destituição de Jango, inclusive em tempos bem recentes. Na época da Declaração de Março de 1958, embora refratado, o agrarismo de Caio Prado fez-se presente no PCB, em particular, como já aludido no princípio deste ensaio, na fórmula da reforma agrária “inicialmente não camponesa”, que se tornaria reforma agrária camponesa numa segunda fase. Por sua visão “não estagnacionista” pós-1958, o PCB adota, naqueles anos radicalizantes da “pré-revolução brasileira” (FURTADO, 1962), a proposição programática das “medidas parciais de reforma agrária”, bem ecléticas e nada catastróficas, nelas, aliás, refletindo-se o argumento não campesinista de Caio Prado. Fora desse campo, naquela época o conceito de reforma agrária ainda se amplia mediante o equacionamento propriamente nacional-desevolvimentista, como se pode ver em textos isebianos. Desperta particular interesse a modalidade de reforma agrária de Ignácio Rangel, autor que, avaliando a falta de condições políticas para um processo redistributivista, argumenta a favor de uma reforma agrária centrada em questões “não propriamente agrárias” (problemas estritamente agrícolas, como produção, preços, intermediação etc.). Em relação ao seu próprio campo, o historiador valoriza “a atenção especial com os assalariados e semiassalariados”, elemento que, no pré-64, compunha a tática agrária sindical-camponesa dos comunistas. Mas, ao mesmo tempo, via na mistura errática de reivindicações trabalhistas e camponesas – que, segundo ele, aparecia no novo agrarismo do PCB – a primazia do tema da luta pela terra, o que levava a se perder a “réstia de bom senso” que os comunistas haviam adquirido quando passaram a dar atenção ao sindicalismo rural (PRADO JÚNIOR, 1966). O modelo caiopradiano da revolução “agrária e nacional” – na aparência, simples inversão da fórmula “anticolonialista e agrária antifeudal” prescrita pela III Internacional aos países coloniais e dependentes – sugere uma grande transformação ao modo americano, no sentido de que aqui também era possível buscar dinamismo em um Oeste (o largo mercado rural) complementar a um Leste (nossa industrialização) insuficientemente modernizado. Diversamente da LEITURA COMPLEMENTAR 102 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL tradição comunista, Caio Prado atribui essa função a um protagonismo popular não camponês assentado em reivindicações trabalhistas da força de trabalho dos grandes setores da agropecuária, mobilizada por sindicatos estáveis e espalhados pelos municípios brasileiros. Fazendo decorrer a ideia de revolução agrária da sua interpretação de Brasil, o clássico pensa na renovação do mundo rural como avivamento de um capitalismo débil que, entregue à própria lógica, ver- se-ia incapaz de modernizar o país e abrir espaço aos contingentes devastados, particularmente os excluídos do sistema produtivo agrário. Ao contrário do vazio social que Gilberto Freyre debitava às nossas “revoluções políticas”, Caio Prado referencia sua ideia de revolução agrária justamente na Abolição. É esta filiação que o historiador confere – às vésperas de 1964, tempo de urgências e radicalismos – ao Estatuto do Trabalhador Rural (1963), comparando o alcance desta lei ao impacto generalizante que tivera o 13 de maio de 1888, ao conformar o contingente nacional da força de trabalho livre. No caso, como proteção de direitos, o Estatuto viria a universalizar processos socioeconômicos por meio da expansão de sindicatos nos grandes setores da agropecuária, onde estava – vale repetir o autor – o núcleo estratégico da revolução agrária, do qual se difundiriam à economia rural impulsos transformadores sustentáveis: os assalariados e semiassalariados, os “empregados agrícolas”. Em vez de um “movimento camponês” pela terra confinado em poucas regiões, Caio Prado aposta na mobilização desse campo popular, único capaz de assegurar trabalho revolucionário expansivo, “em profundidade”, como ele dizia. Para além dos termos e paradigmas pecebistas, o historiador apresenta ao partido comunista uma teorização do rural derivado da sua hipótese sobre nossa gênese e evolução no sentido de um modernismo inconcluso. Como se observou no princípio destas notas, o autor propõe essa problematização nas categorias marxianas, mas, em vez de evocar um ser demiúrgico do processo modernizador, o “Capital”,como se vê em outros constructos acadêmicos, era o trabalho mediado por uma extensa mobilização social – por meio da forma sindical moderna – que ocupava centralidade no tema da modernização e da reforma do mundo rural. Em artigo sobre o Estatuto do Trabalhador Rural publicado na Revista Brasiliense (1963), o autor diz que não se sustentava uma transformação completa da estrutura e organização dos grandes setores da economia agrária sem um amplo “movimento social reivindicatório”. Citemos o autor: “Seria naturalmente ingenuidade pura imaginar que um simples texto legal, estabelecendo a reorganização de nossas principais atividades agrárias e dando-lhes estrutura e funcionamento da produção completamente distintos e originais, tivesse a virtude, somente por si, e sem o amparo, impulso e instrumento de poderosas e ativas forças sociais, de determinar tais consequências. Ora não se apresenta nenhum sintoma ponderável da ação dessas forças. As reivindicações dos trabalhadores empregados na grande exploração rural brasileira vão noutro sentido que não o do fracionamento da base fundiária em que se assenta aquela grande exploração; e o da transformação deles, de empregados que são, em pequenos produtores individuais e autônomos. As reivindicações desses trabalhadores são as de ‘empregados’, que é a sua situação econômica e social. A saber, reivindicações por melhores condições de trabalho e emprego” (PRADO JÚNIOR, 1963, p. 6-7). TÓPICO 3 — FLORESTAN FERNANDES E CAIO PRADO JÚNIOR 103 Esse grande “movimento social reivindicatório” poderia desequilibrar, a favor da força de trabalho, a lógica estruturante do mundo rural: a “contradição” entre os monopolizadores das condições de trabalho e os despossuídos rurais. Era essa, e não a contradição antifeudal e antilatifundiária, como pensavam os comunistas e outros grupos militantes, a “dialética econômica” que tensionava o mundo produtivo e rural brasileiro (PRADO JÚNIOR, 1966). Assim, em vez da fórmula marxista-leninista, era tal desequilíbrio que estimulava os conflitos pela terra, os quais, por serem pontuais e esporádicos, não possuíam amplitude suficiente para sustentar a renovação do mundo rural ao “modo americano”. Para Caio Prado, a luta pela terra, usando expressão bem mais contemporânea, não era a “questão política do campo” (MARTINS, 1982). O acesso à terra pressupunha forma associativa moderna e permanente; movimento esse que, afinal, se firmaria com a rede sindical inicialmente assentada por todo o país a partir da estruturação da União dos Lavradores e Trabalhadores da Agricultura do Brasil (Ultab), em 1954, e da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), em 1963, construções já mencionadas anteriormente. Façamos agora um outro tipo de observação: a pequena presença de Caio Prado na controvérsia do então chamado “objetivismo burguês”. Em um dos textos publicados na referida Tribuna de debates, na qual também vê a tributação como meio para forçar o acesso à terra, Caio Prado diferencia o ponto de vista do trabalho do tributo proposto nas teses oficiais, o qual aparecia “mais como medida de incentivo à produtividade das grandes propriedades” (PRADO JÚNIOR, 1960a; 1996, p. 69). Continuemos com o autor: “Essa melhoria não será trazida pelo simples aumento da produtividade, como mostramos anteriormente; e ocorrem mesmo frequentemente situações em que o aumento da produtividade agrícola é acompanhada pelo agravamento das condições de vida do trabalhador. A contradição fundamental na economia agrária brasileira reside, como vimos, na oposição de grandes proprietários e a massa trabalhadora efetiva ou potencialmente a serviço deles, seja qual for a forma das relações de trabalho vigente – salariato, semiassalariato, parceria ou formas mistas. É no terreno da luta social em que aquela oposição se manifesta, que a reforma agrária deve ser colocada. A par das reivindicações imediatas (legislação trabalhista, regulamentação da parceria em benefício do trabalhador etc.), figurará a facilitação do acesso da massa trabalhadora à propriedade da terra, o que determinará condições mais favoráveis à luta dos trabalhadores. A tributação, como medida essencial para aquele fim de proporcionar terra aos trabalhadores, deve, portanto, visar, em primeiro e principal lugar, o barateamento e a mobilização comercial da terra, e não a simples produtividade, que será consequência da reforma e não constitui condicionamento dela” (Id.: 69-70). Mediado por tal tipo de movimento social, em Caio Prado o tema do trabalho não é mobilizado de modo impreciso nem constitui simples evocação do princípio marxista-leninista da superioridade operária em relação aos seus aliados, mas advém de uma interpretação de Brasil. Aliás, a propósito da “questão política do campo”, registre-se um ponto da bibliografia que está a merecer tratamento: por trás da busca da “questão política no campo” ou da “questão nevrálgica”, como preferia o historiador, radicam, a rigor, imagens de Brasil 104 UNIDADE 2 — INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS SOBRE O BRASIL diferenciadas por suas origens e significados singulares. Em uma comparação entre Caio Prado e José de Souza Martins, já se apontou o par exploração versus expropriação (FARIA, 1990) como uma polaridade que distingue os autores em suas ênfases no trabalhismo e na terra, respectivamente. Também se sugeriu que esse mesmo par não apenas diferencia sindicatos e ligas camponesas, negociação e confronto, pressão por políticas públicas e reivindicação de terra, como também, no fundo, configura dois estilos de mobilização agrária. Vistos de um ponto amplo, tais polaridades expressam linhagens de interpretação do Brasil, cujas construções explicitam – isso é importantíssimo – modos desiguais de conceber a conexão teoriaprática; ponto este sempre reivindicado pelos grandes nomes desses mesmos campos intelectuais, sobressaindo-se Caio Prado Júnior como outsider do primeiro deles. Vale dizer, um militante pouco valorizado pelo partido comunista como um dos clássicos do nosso ensaísmo e não assumido plenamente, mediante interpelações a sua teoria do Brasil e excursos sobre a revolução, proveitosos que teriam sido para o pecebismo contemporâneo. Assim, à luz desse tipo de associação entre pensamento social e político, Caio Prado se nos afigura não apenas como pensador agrarista, mas também um dos publicistas constituintes do marxismo político brasileiro, como temos sugerido desde o princípio destas páginas. Ou seja, e dizendo de modo paradoxal, Caio Prado e Alberto Passos Guimarães (voltando ao outro autor comunista) respondem pelos registros mais expressivos dos êxitos de um partido que se esgotou com o fim da URSS. E falamos em êxitos, não obstante o partido comunista se exaurir na passagem aos anos 1990, após haver sido, em menos de um decênio, deslocado pelos novos grupos petistas, com a ajuda da Igreja, tanto do associativismo quanto do mundo intelectual. E isto mesmo que, neste mundo intelectual, os comunistas tenham produzido controvérsias de vários temas da chamada revolução brasileira, sempre expondo os seus argumentos, intramuros e na esfera pública, quer nas suas publicações quer em espaços da mídia nacional. Com a distância do tempo e vendo as coisas a partir de hoje, podemos afirmar que a primeira e talvez a principal realização daquele partido comunista consiste em haver deixado na esquerda militante uma tradição de política democrática, anunciada em 1958 na sequência dos debates sobre o stalinismo. São elementos de uma cultura política valiosa por sua origem difícil (forçando passagem em meio ao marxismo-leninismo e a posturas dogmáticas, algumas radicalizadas); uma cultura de esquerda também muito educativa, por causa da presença de não poucas ambiguidades, persistentes no PCB ao longo do tempo, mas não só nele, já que algumas ainda são visíveis hoje em outros grupos, inclusive do PT. Depois, mas não com menor importância, está o valorda contribuição dos comunistas para a melhora do mundo rural, tanto em termos da extensão de direitos (por meio do agrarismo sindical-camponês) quanto em relação ao que chamavam de “medidas parciais de reforma agrária”, cuja proposição mais significativa – recordem-se os tempos – teve início no imediato pré-64. TÓPICO 3 — FLORESTAN FERNANDES E CAIO PRADO JÚNIOR 105 Como igualmente já referimos, aquele tipo de sindicalismo prossegue em nossos dias na Contag, que ainda mantém certos traços antigos e faz lembrar a inspiração em Caio Prado. Por sua vez, foi por meio de um agrorreformismo de “soluções positivas” e gradualista, como aquele a que tende o PCB pelo menos desde meados dos anos 1950, que viria a se consolidar – digamos ao velho modo – um campesinato, ao qual Alberto Passos Guimarães, em seu tempo, se refere como um campesinato ainda por se constituir. Um campesinato que, ao fim do “século do comunismo”, já se visualiza na figura da agricultura familiar, florescente aqui e em muitas partes do mundo desenvolvido. No entanto, como ainda veremos, Alberto Passos Guimarães e Caio Prado não são clássicos do marxismo político brasileiro apenas por trazerem até nós o registro intelectual da presença pecebista no nosso mundo rural. [...] FONTE: SANTOS, R. Agraristas políticos brasileiros. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesqui- sas Sociais, 2008. p. 13-20. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/59grm/pdf/san- tos-9788599662816.pdf. Acesso em: 7 out. 2020. 106 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • O Pensamento Social Brasileiro avançou consideravelmente a partir das contribuições dos autores marxistas Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior. • Florestan Fernandes foi um dos maiores pensadores sociais brasileiros, ressignificando o papel histórico dos povos nativos brasileiros e dos negros. • Caio Prado Júnior introduziu uma perspectiva economicista da formação do Brasil contemporâneo. • Florestan Fernandes denunciou as dificuldades ainda sofridas pelo povo negro brasileiro pós-escravidão. • Caio Prado Júnior percebeu padrões sociais no Brasil que sofreram poucas mudanças estruturais desde o período colonial. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 107 1 Florestan Fernandes é um dos pensadores brasileiros que mais contribuíram com a Teoria Social, não só brasileira, mas de um âmbito mundialmente abrangente. Sua influência marxista e sua vivência adquirida em um contexto de severas dificuldades sociais em um Brasil em pleno desenvolvimento industrial, foram características que o autor afirma contribuírem com o teor de sua vasta obra. Partindo do pressuposto que observar de perto a realidade material que nos circunda constitui, juntamente ao conhecimento do processo histórico que a moldou, uma forte base à compreensão de nossa sociedade, podemos considerar o trabalho de Florestan Fernandes uma obra completa e muito significativa, tanto dentro como fora do espaço acadêmico. Considerando o conteúdo estudado no presente tópico e as principais contribuições de Florestan Fernandes, analise as sentenças a seguir: I - Dentre uma multiplicidade de outros objetos de estudo, Florestan Fernandes se dedicou aos povos originários, sendo sua dissertação de mestrado e tese de doutorado dedicadas ao povo Tupinambá. II - Florestan Fernandes era um autor estritamente acadêmico, ou seja, não se envolvia com a política nacional e não demonstrava seus posicionamentos políticos em sua obra. III - A obra de Florestan Fernandes muito contribuiu com denúncias acerca das dificuldades que o povo negro no Brasil sofre, mesmo depois da abolição formal da escravidão. IV - O referido pensador brasileiro sustenta a ideia da existência de estruturas sociais sólidas, que só são rompidas a partir de resistências protagonizadas pelas classes que mais sofrem na sociedade. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas. b) ( ) As sentenças I, II e IV estão corretas. c) ( ) As sentenças I, III e IV estão corretas. d) ( ) As sentenças I, II, III e IV estão corretas. e) ( ) Somente a sentença I está correta. 2 Caio Prado Júnior representa outro intelectual brasileiro que inovou em sua perspectiva acerca da formação do Brasil contemporâneo. Para o sociólogo, a economia assumiu um papel importante na formação de nossa cultura e, consequentemente, de nossa política. O pensador acreditava também na existência de um “sentido da colonização”, que orientava as transformações culturais brasileiras a partir de seu desenvolvimento histórico. Outros dois conceitos importantes trabalhados em sua obra são os de “colônia de exploração” e “colônia de povoamento”, que consistem em classificações das colônias americanas de acordo com a intenção dos colonizadores europeus em relação a ocupação do novo continente. Sobre a teoria de Caio Prado Júnior, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: AUTOATIVIDADE 108 ( ) Caio Prado Júnior focou seus estudos no papel dos povos indígenas e do negro no desenvolvimento do cultural do Brasil. ( ) Ao analisarmos a obra de Caio Prado Júnior, identificamos o papel preponderante da Economia no desenvolvimento social do Brasil. ( ) Para Caio Prado Júnior, o Brasil pode ser considerado uma colônia de povoamento, uma vez que os povos ibéricos sempre tiveram a intenção de fixar colônias de seus povos aqui a fim de desenvolver a Economia da colônia. ( ) Caio Prado Júnior identificou diferentes padrões de colonização nos Estados Unidos da América em relação aos países latino-americanos. ( ) O pensador brasileiro Caio Prado Júnior, identifica em sua obra um sentido explorador no que tange à ocupação ibérica em nosso território. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – V – F – F. b) ( ) F – V – V – V – V. c) ( ) F – F – F – F – V. d) ( ) F – V – F – V – V. e) ( ) V – F – F – V – V. 3 Considerando as obras de Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior dois expoentes do Pensamento Social Brasileiro, torna-se de fundamental importância por parte do sociólogo o aprofundamento em suas respectivas literaturas. De acordo com o que estudamos no Tópico 3 do presente material, disserte sobre as principais colaborações de cada um desses pensadores em relação à Teoria Social Brasileira. 109 REFERÊNCIAS BASTOS, E. R. Sessenta anos da publicação de um relatório exemplar. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, v. 10, n. 28, p. 29-54, maio/ago. 2015. FERNANDES, F. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global, 2008. FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978. FERNANDES, F. Capitalismo dependente e classes sociais na américa latina. 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Saudosismo e crítica social em casa grande e senzala: a articulação de umapolítica da memória e de uma utopia. Estudos Avançados, São Paulo, v. 23, n. 67, 2009. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/ea/v23n67/a31v2367. pdf. Acesso em: 23 jun. 2020. PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. Brasília: Editora Brasiliense, 1961. SANTOS, R. Agraristas políticos brasileiros. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. p. 13-20. Disponível em: https://static.scielo.org/ scielobooks/59grm/pdf/santos-9788599662816.pdf. Acesso em: 7 out. 2020. 110 111 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • analisar os principais debates sobre raça e identidade no pensamento sociológico brasileiro; • reconhecer os aspectos fundamentais do processo de modernização no Brasil e suas implicações sociais; • discutir os novos moldes da Sociologia Brasileira pós-1970, seus principais contribuintes e abordagens; • abordar as principais problemáticas sociais contemporâneas do Brasil; • sintetizar a conjuntura política brasileira contemporânea, apontando possíveis soluções sociológicas. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – RAÇA E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO TÓPICO 2 – MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA TÓPICO 3 – A SOCIOLOGIA BRASILEIRA PÓS-1970: NOVOS OLHARES Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 112 113 UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO O conteúdo estudado nas unidades anteriores enfatizou, dentre outros assuntos, a multiplicidade de matrizes étnicas que compõem o Brasil. Tal fato contribui para que os debates em torno do tema raça estejam constantemente presente no meio sociológico brasileiro. Além disso, os debates identitários de maneira geral, ganham amplo espaço de discussões, sobretudo na contemporaneidade. O presente tópico abordará as discussões brasileiras mais relevantes sobre raça e identidade, apresentando o pensamento de estudiosos brasileiros de temas raciais, de gênero e outros grupos identitários. O estudo de tal temática é imprescindível à compreensão das principais lutas, resistências, preconceitos, perseguições entre outros conflitos que são envolvidos pelas representações identitárias presentes no Brasil. 2 O DEBATE RACIAL NO BRASIL Viver em um país no qual o povo foi formado a partir do contato entre uma ampla variedade étnica como no Brasil, demanda o entendimento acerca da existência dos muitos conflitos provenientes dessa multiplicidade de pessoas convivendo em um mesmo território. Vimos anteriormente que o Brasil foi formado a partir do embate entre diferentes povos, o que ocasionou a dominação e subjugação de uns por outros. Esse fenômeno foi responsável por uma cultura racialmente desigual, na qual alguns povos são, independentemente de seu grau de miscigenação, inferiorizados por outros que se sentem mais evoluídos, mais puros ou quaisquer sentimentos de superioridade. A desigualdade racial no Brasil, assim como em qualquer lugar no mundo, resulta em mazelas sociais gravíssimas, submetendo grupos inteiros de pessoas a condições de vida inferiores às pertencentes a raças hegemônicas. Essa hegemonia racial de determinados povos não significa superioridade em nenhum aspecto, mas significa que, em um dado momento histórico, essa raça mais privilegiada se impôs em detrimento de outras que terão maiores dificuldade de se inserir na dinâmica social estabelecida. TÓPICO 1 — RAÇA E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA 114 A discriminação e, consequentemente, o racismo são elementos presentes na sociedade brasileira, sendo temas amplamente discutidos em meio acadêmico, político, popular e diversas outras instâncias do pensamento social. O autor Clóvis Moura (1992), reconstrói a trajetória do povo negro no Brasil, concebendo-o como “o grande povoador” do nosso território. O sistema escravagista foi responsável pelo tráfico em massa de africanos para as terras tupiniquins tomadas à força pelos colonizadores europeus. Por isso, de acordo com o autor, os negros africanos constituem um povo de suma importância à construção política, social, econômica e cultural de nosso povo, embora tenha sido excluído do usufruto das riquezas produzidas em nossas terras. A história do negro no Brasil confunde-se e identifica-se com a formação da própria nação brasileira e acompanha a sua evolução histórica e social. Trazido como imigrante forçado e, mais do que isto, como escravo, o negro africano e os seus descendentes contribuíram com todos aqueles ingredientes que dinamizaram o trabalho durante quase quatro séculos de escravidão. Em todas as áreas do Brasil eles construíram a nossa economia em desenvolvimento, mas, por outro lado, foram sumariamente excluídos da divisão dessa riqueza (MOURA, 1992, p. 7). Partindo da ideia de que o negro impulsionou de forma imprescindível o desenvolvimento brasileiro desde o período colonial, constituindo boa parte de nossa população, devemos considerar esse povo como um dos maiores tributários de nossa sociedade. É importante destacar que, apesar de servir ao trabalho de construção política, social, econômica e cultural do Brasil de forma mais significativa do que quaisquer outros povos que compõem nossa nação, por meio de trabalho braçal forçado, pesado e extremamente desumano, o negro brasileiro sofre até os dias de hoje com a segregação racial. Isso implica na discriminação que marginaliza o povo negro, tão fundamental à constituição de nossa sociedade, submetendo-o às condições de profunda desigualdade no contexto capitalista moderno. Já mencionamos a importância do povo negro brasileiro, desde os estudos das obras de Gilberto Freyre (FREYRE, 2003; 2013), Sérgio Buarque de Holanda (HOLANDA, 1995), Florestan Fernandes (FERNANDES, 1963; 1975; 1978; 2008), Caio Prado Júnior (PRADO JÚNIOR, 1961; 1981) e outros nomes do pensamento social brasileiro. Portanto, não é novidade, pelo menos desde o começo do século XX, que os negros africanos trazidos para o Brasil constituem boa parte de nossa história. No entanto, devemos estar cientes da luta desse povo pelo reconhecimento de sua condição de ator fundamental na construção de nossa sociedade, por condições iguais de trabalho, habitação, sociabilidade e, enfim, melhores condições de vida no Brasil contemporâneo. TÓPICO 1 — RAÇA E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO 115 As lutas por emancipação do povo negro brasileiro sempre estiveram presentes durante o período escravagista e, até os dias de hoje, contribui com o processo histórico de libertação dessas pessoas que tanto sofrem os efeitos do colonialismo. Além das resistências diretas à escravidão, manifestadas por meio de levantes, revoltas, desobediências aos senhores, fugas e diversos outros tipos, a “quilombagem”, de acordo com as palavras de Moura (1992), ganha destaque entre as lutas dos negros no Brasil. Por se tratar de um processo puramente violento, o escravismo, conforme Moura (1992), demandou, e demanda até hoje, uma resposta violenta como instrumento de ruptura. Ou seja, não seriam possíveis as conquistas do povo negro, inclusive a abolição formal da escravidão (erroneamente atribuída à princesa Isabel, que outorgou a Lei Áurea), por outras vias políticas que não envolvessem o radicalismo da ação direta e violenta de emancipação do povo negro escravizado no Brasil. A quilombagem é um movimento emancipacionista que antecede, em muito, o movimento liberal abolicionista; ela tem caráter mais radical, sem nenhum elemento de mediação entre o seu comportamento dinâmico e os interesses da classe senhorial. Somente a violência, por isso, poderá consolidá-la ou destruí-la.De um lado os escravos rebeldes; de outro os seus senhores e o aparelho de repressão a essa rebeldia (MOURA, 1992, p. 22). Considerando o trecho anterior, devemos reconhecer que são legítimos quaisquer movimentos emancipacionistas por parte dos negros no Brasil, inclusive aqueles fundados sobre bases violentas. Basta refletir sobra a violência histórica que esse povo sofreu durante séculos, sobretudo, em nosso território: o último a abolir formalmente a escravidão em todo o globo terrestre. FIGURA 1 – RESISTÊNCIA NEGRA NO BRASIL. CARLOS LATUFF FONTE: <https://escravidaobrasil.weebly.com/uploads/4/2/0/7/42076079/8328419.jpg?399>. Acesso em: 4 ago. 2020. Outro autor que ressalta a importância do negro, no que tange à formação do povo brasileiro, é Darcy Ribeiro, destacando em sua obra o histórico apagamento de seu papel crucial em nossa formação como sociedade (RIBEIRO, 1995). O referido pensador, nosso conterrâneo, evidencia as sucessivas tentativas de negação e soterramento das tradições negras em nosso país por parte dos colonizadores europeus e seus descendentes ao decorrer da história do Brasil. UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA 116 A contribuição cultural do negro foi pouco relevante na formação daquela protocélula original da cultura brasileira. Aliciado para incrementar a produção açucareira, comporia o contingente fundamental da mão de obra. Apesar do seu papel como agente cultural ter sido mais passivo que ativo, o negro teve uma importância crucial, tanto por sua presença como a massa trabalhadora que produziu quase tudo que aqui se fez, como por sua introdução sorrateira mas tenaz e continuada, que remarcou o amálgama racial e cultural brasileiro com suas cores mais fortes (RIBEIRO, 1995, p. 114). Levando em consideração o conteúdo exposto anteriormente, devemos conceber como legítimos os movimentos por emancipação negra presentes, até os dias de hoje, em nossa sociedade. Afinal, apesar de legalmente abolida a escravidão no Brasil, no final do século XIX, os negros ainda sofrem com o longo processo histórico de violentos abusos vivenciados por eles em solo brasileiro. Hoje em dia, o movimento de libertação do negro, tão como diversas manifestações culturais desse povo ainda são profundamente estigmatizadas por aqui. Sua religião, costumes, inserção social e política são cotidianamente tolhidos pela dinâmica capitalista contemporânea. Atualmente, os movimentos sociais organizados pelo negro no Brasil contam com diversos coletivos que atuam em prol da liberdade, igualdade de direitos, inserção na dinâmica político-econômica, dentre uma infinidade de direitos que lhes foram historicamente negados. Um bom exemplo é o do MNU (Movimento Negro Unificado) que reúne muitos militantes favoráveis à causa negra no país. O Movimento Negro Unificado existe, oficialmente, desde o dia 7 de julho de 1978, quando foi lançado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, reunindo cerca de duas mil pessoas. O MNU (Movimento Negro Unificado) possui como principal objeto o enfrentamento ao racismo no Brasil. O MNU, por meio de seu Plano de Lutas do MNU, aprovado no 17º Congresso Nacional, realizado em Salvador/BA, em 2014, divulgou seu Plano de Enfretamento ao Racismo, cujos principais parágrafos de seu estatuto versam: realizar campanhas de enfrentamento ao racismo, ao racismo institucional, à intolerância religiosa, ao machismo, à homofobia, à lesbofobia e à transfobia; fortalecer e ampliar em nível nacional a campanha “Não dê Bola pro Racismo”; apoiar/realizar campanhas contra o tráfico de mulheres e homens negros; contra a exploração sexual e tráfico de crianças e jovens negros; organizar debate sobre economia criativa e etnodesenvolvimento voltado à população negra; realizar seminários com as seguintes temáticas: juventude, mulheres negras, LGBT, infância e adolescência; realizar seminários/encontros com operadores do direito filiados ao MNU; cobrar nos editais de concursos públicos e processos seletivos a igualdade de direitos étnicos e religiosos respeitando a expressão da identidade do povo negro e de religião de matriz africana. Mais informações podem ser acessadas por meio do endereço eletrônico a seguir: https://mnu.org.br/mnu/. ATENCAO TÓPICO 1 — RAÇA E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO 117 O movimento negro no Brasil conta, desde o ano de 1975, com o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), que fomenta a capacitação de militantes que atuam em diversas instâncias. O IPCN contribui com a luta racial negra no interior de espaços políticos, culturais, intelectuais e diversos outros, sempre buscando o fim do racismo brasileiro e os Direitos Humanos fundamentais até hoje negado aos negros. O IPCN atuou junto ao Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo (GRANESQ) e também em blocos afros, como o Agbara Dudu. Auxiliou bailes de Black Music realizados em baixo do Viaduto Negrão de Lima, no bairro de Madureira, zona norte carioca, e outros locais onde as comunidades negras se concentravam. FIGURA 2 – INSTITUTO DE PESQUISA DAS CULTURAS NEGRAS E OS MOVIMENTOS DE COMBATE AO RACISMO NO BRASIL FONTE: <http://artememoria.org/wp-content/uploads/2018/11/ATO-CONTRA-O-RACISMO- 1024x691.jpg>. Acesso em: 5 ago. 2020. O estado do Espírito Santo conta com o Coletivo Zacimba Gaba, movimento idealizado e criado com objetivo de acolhimento, diálogo, empoderamento e reflexão sobre a capoeira feminina do Espírito Santo. O grupo que incentiva a conservação da cultura afro-brasileira atua em diversos espaços capixabas e conta com o apoio de algumas instituições de ensino. Algumas atividades do Zacimba Gaba são acompanhadas por meio de sua página oficial no Facebook, acessada através do link https://www.facebook.com/Coletivo- Zacimba-Gaba-ES-628179580924265/?ref=page_internal. DICAS UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA 118 O debate racial no Brasil não se limita apenas ao povo negro trazido da África. O povo nativo brasileiro, denominado “indígena” desde a época da invasão europeia, sobrevive até os dias de hoje em meio à dominação sócio- político-cultural dos invasores. As centenas de milhões de povos originários da América, existentes anteriormente à colonização europeia, foram reduzidas à aproximadamente cinco milhões de nativos. Em terras hoje consideradas brasileiras, a predominância nativa é de povos de linguagem tupi que, por meio de um processo histórico permeado por inúmeras guerras e disputas territoriais, destacaram-se em sua ocupação. Há quem diga que os povos nativos americanos viviam em plena harmonia antes da invasão europeia, porém, a raça humana sempre foi marcada por conflitos. Darcy Ribeiro (1995) evidencia em sua obra, um pouco da dinâmica de ocupação do território que viria a ser nosso país. Explicitando o caráter dominador de algumas etnias, Ribeiro (1995) registra a trajetória de alguns grupos de nativos pela América do Sul, tão como o processo de ocupação dessas terras. A costa atlântica, ao longo dos milênios, foi percorrida e ocupada por inumeráveis povos indígenas. Disputando os melhores nichos ecológicos, eles se alojavam, desalojavam e realojavam, incessantemente. Nos últimos séculos, porém, índios de fala tupi, bons guerreiros, se instalaram, dominadores, na imensidade da área, tanto à beira-mar, ao longo de toda a costa atlântica e pelo Amazonas acima, como subindo pelos rios principais, como o Paraguai, o Guaporé, o Tapajós, até suas nascentes. Configuraram, desse modo, a ilha Brasil, de que falava o velho Jaime Cortesão (1958), prefigurando, no chão da América do Sul, o que viria a ser nosso país. Não era, obviamente, uma nação, porque eles não se sabiam tantos nem tão dominadores. Eram, tão-só, uma miríade de povos tribais, falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um dos quais, ao crescer, se bipartia, fazendo dois povos que começavam a se diferenciar e logo se desconheciam ese hostilizavam (RIBEIRO, 1995, p. 29). Para quem não sabe, Zacimba Gaba foi princesa de Cabinda, na Angola, foi captura e trazida para o Brasil há cerca de 300 anos. Quem arrematou Zacimba, entre aproximadamente doze negros trazidos para o Porto da Aldeia de São Matheus, situado na Capitania do Espírito Santo, foi o fazendeiro português José Trancoso. A princesa sofreu diversos tipos de violência durante anos, inclusive estupro. Ela é mais um, entre múltiplos exemplos de pessoas capturadas na África e trazidas ao Brasil para trabalhar sob o regime de escravidão. Prova do desrespeito branco em relação à nobreza africana, submetida aos terrores do regime escravocrata brasileiro. INTERESSA NTE TÓPICO 1 — RAÇA E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO 119 Contemporaneamente, o maior dos desafios do nativo brasileiro é a resistência às imposições sociais do homem branco invasor. Comparado aos tempos de colonização europeia no Brasil, são poucos os remanescentes de tribos indígenas concentrados no território brasileiro, menos ainda aqueles que conservam sua cultura e costumes ancestrais frente à dominação colonizadora. Ehrenreich (2014) narra em sua obra, a incapacidade dos colonizadores europeus em entender seu caráter invasor, fato que muito dificultou o avanço de sua dominação sobre os povos nativos do Brasil. Ehrenreich (2014) disserta um pouco sobre o processo de manipulação do povo Botocudo, instalados entre o que hoje corresponde aos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Dentre os povos primitivos da América do Sul, são os Botocudos ou Aimorés os que requerem o maior interesse do etnólogo. Embora ainda hoje a maioria deles se encontre no nível mais baixo dos usos e costumes, não foi sem resultado que ofereceram resistência até os tempos mais recentes frente às influências exercidas pela civilização que os cercava, ao passo que as demais tribos indígenas da costa leste do Brasil estão, em parte, completamente dizimadas e, em parte, se submeteram à raça branca e negra do país, perdendo todas as suas particularidades tribais. Desse modo, os Botocudos são ainda hoje os senhores incontestáveis de suas florestas montanhosas, apesar de o seu antigo território já ter sido muito restringido. Nas proximidades imediatas da costa, a apenas poucos dias de viagem de portos muito frequentados, estando alguns deles em fase de plena florescência, uma parte da autêntica vida primitiva dos indígenas ficou conservada nas matas virgens entre o Rio Doce e rio Pardo, de um modo como acreditamos existir somente bem no interior desse incrivelmente vasto continente (EHRENREICH, 2014, p. 43). Conforme Ehrenreich (2014), o povo Botocudo sofreu, desde a chegada dos europeus ao novo continente, diversos tipos de abusos como a coerção, escravização, embate direto dentre outros tipos de violência. A importância dessas pessoas em relação à formação do povo brasileiro é imensa. Os conhecimentos dos botocudos, quanto ao território e relações sociais locais, tão como sua força de trabalho foram explorados de maneira violenta pelo branco. Todavia, a resistência dessas pessoas sempre se fez presente, seja na forma de desobediência e/ou enfrentamento aos brancos, até hoje os botocudos são símbolo de força e coragem nativa. Hoje, no Espírito Santo, existem tribos das etnias Tupiniquim e Guarani instaladas, principalmente, na cidade de Aracruz. Lá, esses povos têm a oportunidade de se concentrar e manter vivos muitos costumes ancestrais. Embora o contato com o homem branco tenha influenciado muito nos costumes desses povos, muitos deles ainda conservam sua língua, religião e diversas outras manifestações culturais. A cidade de Aracruz é referência capixaba em estudos indígenas, que contam com a boa vontade e acessibilidade por parte de muitos índios que concordam em difundir sua história com os demais ocupantes do Brasil, independentemente de sua origem. UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA 120 FIGURA 3 – POVOS NATIVOS REMANESCENTES NO BRASIL FONTE: <http://www.aracruz.es.gov.br/arquivos/turismo/Dana_dos_Guerreiros.jpg>. Acesso em: 9 ago. 2020. Embora bastante soterrada e contada em versões advindas de descendentes colonizadores, a história do índio brasileiro ainda pode ser acessada por meio de narrativas de descendentes indígenas. Daniel Munduruku (2010) representa um dos nomes indígenas que contribuem com o reavivamento da cultura nativa brasileira, mesmo em tempos de dominação de uma ciência fundamentalmente europeia, manifestada pela produção acadêmica contemporânea. A seguir, encontra-se o trecho de Histórias de Índio que retrata a vivência nativa brasileira. Após o banho e a brincadeira, ele devia se ocupar de alguma tarefa com a mãe ou o pai. Não havia uma hora definida para começar esta atividade uma vez que Kaxi tinha percebido que os mais velhos diziam serem eles os senhores do tempo e não possuírem nenhum controlador do tempo - que ele descobriu mais tarde se tratar do kaxinug usado pelo homem branco para marcar as horas. Às vezes, saíam bem cedinho para a roça ou para a caça e a pesca, outras vezes iam só na parte da tarde, e outras, ainda, não iam a lugar nenhum, preferindo ficar em casa, conversando e pitando [...]. À medida que crescia, Kaxi ia sendo iniciado nos costumes tradicionais de sua tribo. Falava a gíria [...], caçava, pescava, plantava e colhia junto com os adultos (MUNDURUKU, 2010, p. 19). O debate racial em torno dos povos negro e nativo, hoje, transcendem o espaço acadêmico, ganhando as ruas e as mais diversas instâncias sociais. Os diálogos e enfrentamentos objetivam, principalmente, a emancipação dos povos que constituem a civilização brasileira. O sentido da palavra emancipação aqui empregado, consiste na busca por condições mais justas de sobrevivência frente à parcela da sociedade mais privilegiada em relação ao sistema social, político, econômico e cultural predominante no Brasil. Esse sistema é imposto desde os tempos coloniais brasileiros e perdura, sem grandes modificações estruturais, até os dias de hoje. Roberto Damatta é um autor brasileiro que também estuda povos nativos brasileiros. Um dos aspectos que o referido pensador ressalta acerca de povo ori- ginário do Brasil é, dentre diversos outros, sua organização social e aspectos gerais de sua cultura. O trecho a seguir diz respeito aos costumes de alguns povos nativos brasileiros e a concepção que os mesmos possuem acerco do conceito de tempo. TÓPICO 1 — RAÇA E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO 121 Assim, do mesmo modo que ocorre entre os apinayé do Brasil Central, grupo tribal que eu mesmo estudei e pesquisei (Cf. DaMatta, 1976), a organização de grupos de idades ajuda a sublinhar etapas de tempo pela referência a uma formalização típica dessas sociedades e, obviamente, não depende de qualquer característica ambiental natural. Os apinayé - como os nuer - marcam uma duração ou um evento do passado fazendo referência a um parente mais velho; como, por exemplo: "isso aconteceu no tempo em que meu Geti (avô) era moço..." Além disso, os nuer assinalam o tempo por meio de certas atividades. Mas ele jamais é individualizado como algo concreto, conforme acontece conosco. É Evans-Pritchard quem diz: "Os nuer não possuem uma expressão equivalente ao 'tempo' de nossa língua e portanto, não podem, como nós, falar do tempo como se fosse algo concreto, que passa, pode ser perdido, pode ser economizado e assim por diante. Não creio que eles jamais tenham a mesma sensação de lutar contra o tempo ou de terem de coordenar as atividades com uma passagem abstrata do tempo, porque seus pontos de referência são principalmente as próprias atividades sociais, que, em geral, têm o caráter de lazer." E conclui Evans-Pritchard, ironicamente: "Os nuer têm sorte"(Cf. EvansPritchard, 1978: 116) (DAMATTA, 1997, p. 22-23). A resistência desses povos, manifestada em todos os âmbitos da sociabilidade contemporânea, é defundamental importância à continuidade da busca por igualdade e respeito. Afinal, a base de toda nossa população é sustentada por tais etnias, sejam elas nativas ou inseridas em nosso território. Apresentamos, aqui, apenas uma amostra dos principais debates raciais brasileiros. Agora, trataremos de outros assuntos identitários de suma importância à sociedade brasileira. 3 O DEBATE ACERCA DA IDENTIDADE DE GÊNERO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO A identidade de gênero abre espaço para o debate de problemáticas delicadas e muito polêmicas em todo o mundo e, no Brasil, não é diferente: o tema ganha cada vez mais espaço ao passar dos anos. Devemos iniciar nossas ponderações sobre identidade de gênero esclarecendo o sentido que a expressão tomará em nossas análises. Por se tratar de um tema identitário, devemos ter em mente que a conversa gira em torno de um sentimento subjetivo. Ou seja, trata-se de como determinada pessoa se identifica em relação ao gênero. De outra maneira, identidade de gênero significa a maneira como um indivíduo se enxerga e suas implicações sociais. Falar de identidade de gênero significa romper com a concepção tradicional de sexo biológico. Em outras palavras, não significa falar apenas de homem e mulher, mas também de outras identidades de gênero. A identidade de gênero não está relacionada à orientação sexual da pessoa, então, não está relacionada ao tipo de gênero pelo qual sente ou deixa de sentir atração sexual. Significa, na verdade, a maneira com a qual o sujeito se identifica e a posição social que essa identidade assume. Posição social significa, UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA 122 no presente contexto, as implicações relacionais às quais sua identidade de gênero está submetida. Isso quer dizer que a sociedade assume maneiras distintas de relacionar com determinados gêneros. As relações de gênero no Brasil, assim como em boa parte do globo, estão impregnadas de valores patriarcais. O patriarcado consiste a ideia da suposta su- perioridade masculina nos mais diversos meios sociais. Isso quer dizer que, cultu- ralmente, a sociedade brasileira está inclinada a conceber a figura masculina como dominante na sociedade em detrimento de quaisquer outros gêneros. Sendo assim, pessoas que se identificam como pertencentes a gêneros não enquadrados na cate- goria “homem cis heterossexual” – expressão na qual “cis” significa que o indiví- duo assume sua sexualidade biológica, ou seja, identifica-se com o sexo com o qual nasceu –, tendem a sofrer diversos tipos de violência, principalmente por homens. A ideia da supremacia masculina, resultante do já mencionado patriarcado, engendra uma ideologia e, consequentemente, um comportamento denominado machismo. O machismo é reproduzido principalmente por homens e se manifesta em todo o mundo. O machismo existente no Brasil, apesar de suas peculiaridades, decorrentes da especificidade histórica e geográfica brasileira, serve de fundamento para inúmeras opressões no seio da sociedade. As mulheres compõem o grupo de indivíduos que mais sofrem com as imposições e violências ocasionadas pelo machismo. Todavia, toda opressão desperta naturalmente um tipo de resistência. No caso do machismo, a resistência feminina deu origem a um forte movimento que vem ganhando força ao passar dos tempos: o feminismo. FIGURA 4 – MANIFESTAÇÃO DO FEMINISMO BRASILEIRO FONTE: <https://static.todamateria.com.br/upload/fe/mi/feminismo_lobby_do_baton_bb.jpg>. Acesso em: 14 ago. 2020. O movimento feminista brasileiro emergiu no século XIX de acordo com as demandas por educação feminina, direito feminino de participação política e inserção social. A condição da mulher brasileira, desde o período colonial, é de submissão em relação ao homem, que a submete a tarefas subalternas, tanto no seio familiar como no âmbito político, seja ela escrava ou livre. TÓPICO 1 — RAÇA E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO 123 Como vimos na Unidade 1 de nosso livro, Nísia Floresta Augusta foi uma das precursoras do ideal libertário feminista no Brasil. Influenciada pelas ideias da inglesa Mary Wollstonecraft, Nísia escreveu diversas obras com o intuito de orientar as mulheres brasileiras em direção a uma vida digna e mais igual em relação aos homens. A professora brasileira foi grande influência no meio educacional e político, incentivando inúmeras mulheres a resistir aos abusos e violências patriarcais. O feminismo é um movimento libertário importantíssimo e se manifesta por meio de inúmeras vertentes. Embora seja um campo do saber e uma manifestação política protagonizada pelas mulheres, o feminismo possui vertentes que contemplam os interesses de diversas outras classes. A referida luta acaba transcendendo a problemática exclusivamente feminina, buscando a atenção de demandas de outros grupos de pessoas que não possuem acesso a determinadas informações sobre a dinâmica social. Essas classes de indivíduos, que permanecem incapazes de reagir aos abusos e violências consequentes do sistema patriarcal, recebem atenção de algumas vertentes do feminismo, dentre elas, o feminismo marxista. Mary Castro (2000) nos conta como deve ser abrangente essa categoria de resistência feminina. Engendrar um feminismo marxista, a partir de análises das experiências de mulheres de setores populares em movimentos e organizações de base, e re-acessando criticamente as teorias marxista e feminista não pode ser agenda exclusiva das feministas de esquerda, mas de todos os socialistas e comunistas inclusive, é importante que haja mais espaço e diálogo na mídia crítica marxista, nos partidos e na academia para esse conhecimento. Nestes tempos, um feminismo marxista é mais que um gênero de feminismo (CASTRO, 2000, p. 108). Outra importante autora brasileira é Heleieth Saffioti que, dentre outros assuntos, disserta sobre o lugar da mulher no sistema capitalista. Segundo Saffioti (1976), a mulher pertencente à classe trabalhadora sempre se viu obrigada a trabalhar para sustentar sua família, sobreviver e ajudar na construção das riquezas produzidas em suas respectivas nações. Ou seja, além de submetida às atividades domésticas tradicionais que o patriarcado lhe impunha, a mulher proletária trabalha, desde tempos considerados pré-capitalistas, em proporções semelhantes ao que o homem trabalha. A MULHER das camadas sociais diretamente ocupadas na produção de bens e serviços nunca foi alheia ao trabalho. Em todas as épocas e lugares, tem ela contribuído para a subsistência de sua família e para criar a riqueza social. Nas economias pré-capitalistas, especificamente no estágio imediatamente anterior à revolução agrícola e industrial, a mulher das camadas trabalhadoras era ativa: trabalhava nos campos e nas manufaturas, nas minas e nas lojas, nos mercados e nas oficinas, tecia e fiava, fermentava a cerveja e realizava outras tarefas domésticas. Enquanto a família existiu como uma unidade de produção, as mulheres e as crianças desempenharam um papel econômico fundamental (SAFFIOTI, 1976, p. 17). UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA 124 Em outra de suas obras, Saffioti (2004) aborda com mais ênfase as consequências violentas do patriarcado em relação não somente às mulheres, mas à violência sofrida por diversas outras classes devido à grande desigualdade vivida no Brasil. Além disso, a autora sustenta a teoria de que as desigualdades abrem espaço para conflitos que serão superados apenas quando a sociedade evoluir e negar suas contradições por meio do conhecimento. Saffioti (2004) acredita que o conhecimento, assim como o preconceito, é algo construído socialmente, ou seja, a desigualdade é algo que nasce, é sustentado e perpetuado pelos indivíduos. O mais preocupante são as gerações mais jovens, cujos atos de crueldade para com índios, sem teto, homossexuais revelam mais do que intolerância; demonstram rejeição profunda dos não-idênticos. As desigualdades constituem fontes de conflitos,em especial quando tão abissais como no Brasil. Em casos como este, e eles existem também em outras sociedades, as desigualdades traduzem verdadeiras contradições, cuja superação só é possível quando a sociedade alcança um outro estado, negando, de facto e de jure, o status quo. Neste estágio superior, não haverá mais as contradições presentes no momento atual. No entanto, podem surgir outras no processo do devir histórico. Numa sociedade como a brasileira, com clivagens de gênero, de distintas raças/ etnias em interação e de classes sociais, o pensa mento, refletindo estas subestruturas antagônicas, é sempre parcial (SAFFIOTI, 2004, p. 37-38). FIGURA 5 – PINTURA DA REVOLUCIONÁRIA FRIDA KAHLO QUE RETRATA A BANALIZAÇÃO DE ATOS DE VIOLÊNCIA E CRUELDADE CONTRA AS MULHERES FONTE: <https://static.todamateria.com.br/upload/un/os/unoscuantospiquetitosfridakahlo-cke.jpg>. Acesso em: 18 ago. 2020. Aproveitando as ponderações de Saffioti (2004) acerca das violências sofridas por pessoas consideradas diferentes da maioria, ou seja, os “não idênticos”, adentraremos em outro assunto, o preconceito contra a classe LGBTQ+. A sigla LGBTQ+ significa “Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Queer e outros”, também é uma sigla menos extensa para estabelecer orientações sexuais e identidades de gêneros não masculinos heterossexuais. Existem siglas mais completas como LGBTTTQQIAA: “Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Two-Spirits (Dois-Espíritos), Queer, Questionando, Intersex, Assexual, Aliado e Pansexual”. Utilizaremos a sigla LGBTQ+ para abreviar nossas abordagens. Segue, no Quadro 1, a maioria (pois a classificação está em constante expansão) das respectivas identidades de gênero definidas: TÓPICO 1 — RAÇA E IDENTIDADE NO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO BRASILEIRO 125 QUADRO 1 – LISTA COM AS PRINCIPAIS CLASSIFICAÇÕES DE ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO EMPREGADAS CONTEMPORANEAMENTE • Lésbica: mulheres que sentem atração romântica ou sexual por outras mulheres. • Gay: homens que sentem atração romântica ou sexual por homens. O termo também pode ser utilizado para mulheres homossexuais. • Bissexual: pessoas que sentem atração (afetiva ou sexual) por ambos os sexos. • Transgênero: pessoas que não se identificam com seu sexo biológico e estão em trânsito entre gêneros. • Transsexual: são pessoas que se identificam com um sexo diferente do seu nascimento. Por exemplo: uma pessoa que nasceu homem, mas se identifica como mulher, é uma mulher transgênero. • 2/Two-Spirit (Dois-Espíritos): utilizado por nativos norte-americanos para representar pessoas que acreditam ter nascido com espíritos masculino e feminino dentro delas. • Queer: pode ser considerado um termo “guarda-chuva”, englobando minorias sexuais e de gênero que não são heterossexuais ou cisgênero. • Questionando: pessoas que ainda não encontraram seu gênero ou orientação sexual – estão no processo de questionamento, ainda incertos sobre sua identidade. • Intersex: é uma variação de características sexuais que incluem cromossomos ou órgãos genitais que não permitem que a pessoa seja distintamente identificada como masculino ou feminino. • Assexual: é a falta de atração sexual ou falta de interesse em atividades sexuais – pode ser considerado a “falta” de orientação sexual. • Aliado: são pessoas que se consideram parceiras da comunidade LGBTQ+. • Pansexual: é a atração sexual ou romântica por qualquer sexo ou identidade de gênero. FONTE: <https://cutt.ly/VgYljFz>. Acesso em: 18 ago. 2020. As pessoas que se identificam como pertencentes a qualquer uma das categorias LGBTQ+, assim como as mulheres que não se identificam com o referido grupo, são comumente vítimas de preconceito e discriminação entre muitos membros da sociedade patriarcal. Essas pessoas estão organizadas no Brasil em diversos coletivos e entidades, buscando basicamente sua ascensão social, o fim da violência e condições iguais de vida em um país onde existem muitas manifestações machistas, racistas, homofóbicas dentre outras agressões. Dentre as organizações a favor dos direitos LGBTQ+ atuantes no Brasil, está a ABGLT (Associação Brasileira LGBT). A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) se define como uma organização brasileira cujo objetivo e missão são, desde o ano de 1995, a organização de ações que promovam a cidadania e os direitos humanos de pessoas que se autoidentificam como pertencentes a quaisquer uma das classificações LGBT. UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA 126 A organização contribui para a construção de uma nova sociedade, que seja democrática e na qual nenhuma pessoa seja vítima de discriminação, coerção e/ou violência, por causa de suas orientações sexuais e identidades de gênero. FIGURA 6 – IMAGEM DE MANIFESTAÇÃO LGBTQ+ ESTAMPADA NO SITE OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS, TRANSEXUAIS E INTERSEXOS (ABGLT) FONTE: < https://bit.ly/34CVKiF>. Acesso em: 18 ago. 2020. Uma das pessoas que se identifica pertencente ao grupo LGBTQ+ brasileiro e disserta sobre a problemática que envolve identidade de gênero no país é Berenice Bento (2006). Bento é uma mulher transexual que identifica em sua obra uma espécie de patologização das muitas identidades de gênero que fogem do padrão homem-cis-heterosexual (BENTO, 2006). Ou seja, foi tratado como doente, desde o século XX, toda pessoa que não se identificava com seu sexo biológico, que buscou transformações físicas ou teve sua orientação sexual voltada a pessoas do mesmo gênero. Ao mesmo tempo em que foram criados padrões de comportamento sexual e identidade de gênero, foram tratadas como anomalias psíquicas as demais concepções subjetivas acerca da sexualidade que fugia à norma tradicional da sociedade, sobretudo o que diz respeito às pessoas que se consideram transexuais. A articulação entre os discursos teóricos e as práticas reguladoras dos corpos ao longo das décadas de 1960 e 1970 ganhou visibilidade com o surgimento de associações internacionais, que se organizam para produzir um conhecimento voltado à transexualidade e para discutir os mecanismos de construção do diagnóstico diferenciado de gays, lésbicas e travestis. Nota-se que a prática e a teoria caminham juntas. Ao mesmo tempo em que se produz um saber específico, são propostos modelos apropriados para o “tratamento” (BENTO, 2006, p. 40). Podemos concluir o tópico dizendo que em uma sociedade fundada sobre terras colonizadas, na qual a escravidão foi formalmente abolida em tempos recentes e o patriarcado interfere diretamente sobre a cultura nacional, a desigualdade se torna presente no cotidiano das pessoas e engendra diversos tipos de violência. O preconceito, discriminação e demais agressões sociais são fruto de um processo histórico que só pode ser modificado por meio de resistências organizadas, portanto, coletivos e organizações de classes são sempre um caminho rumo a rupturas comportamentais no seio da sociedade. 127 Neste tópico, você aprendeu que: • O povo brasileiro foi formado por três raças fundamentais: brancos, negros e nativos americanos. • A multiplicidade de raças e identidades brasileiras engendrou conflitos raciais e diversos tipos de violência. • A resistência negra, assim como o movimento dos povos nativos brasileiros, é muito forte no Brasil, conquistando por meio de lutas, conflitos e resistências, múltiplos direitos a esses dois povos cruelmente dominados pela colonização europeia. • O movimento de luta feminista no Brasil é responsável pela emancipação e garantia de direitos de milhões de mulheres, além de ajudar no combate ao machismo e à violência contra a mulher que o sistema patriarcal estimula. • A luta LGBTQ+ é protagonista da resistência contra a homofobia e outras violências ocasionadas pela desigualdade de gênero no Brasil. RESUMO DO TÓPICO 1 128 1 O Brasil é um país cujo povo é formado pormúltiplas etnias, uma das consequências sociais de toda essa riqueza racial coexistente num mesmo território é a discriminação e o racismo – graves problemas sociais que abrem espaço para a violência. Como todo o tipo de opressão é passível a resistências de inúmeras naturezas, não seria diferente com relação à violência racial brasileira que oprime, principalmente, pessoas de matrizes étnicas africanas e nativas, desde o período colonial. Nesse contexto de desigualdade racial, emergem movimentos sociais a favor da emancipação, reivindicação por igualdade de oportunidades, fim da crueldade contra classes menos privilegiadas socialmente dentre outras lutas. Os movimentos negro e indígena do Brasil foram muito importantes para esses dois grupos étnicos. Considerando os desafios e conquistas de tais movimentos sociais, analise as sentenças a seguir: I - O movimento negro muito contribuiu com o processo de libertação dos escravos brasileiros, todavia, até a contemporaneidade, esse grupo étnico sofre com a herança histórica do colonialismo brasileiro e com as desigualdades engendradas por uma sociedade racista. II - Os nativos brasileiros, que são chamados de indígenas devido à generalização cultural praticada pelos colonizadores europeus, resistem no Brasil em algumas tribos remanescentes que conservam sua cultura ancestral, embora muitas sofram com a interferência da cultura colonizadora. III - Embora a maioria dos livros de história recontem o fim da escravidão dos negros brasileiros do ponto de vista colonizador, atribuindo o protagonismo de tal evento à princesa Isabel e à Lei Áurea, os verdadeiros protagonistas foram os próprios escravos que lutaram, resistiram e se organizaram em nome da liberdade de seus iguais. IV - Sem os movimentos negro e indígena não haveria garantia de que os mínimos direitos atribuídos a esses povos pela sociedade contemporânea seriam concedidos. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente a sentença I está correta. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) Somente a sentença III está correta. d) ( ) Somente a sentença IV está correta. e) ( ) As sentenças I, II, III e IV estão corretas. 2 Outra herança que engendra muita violência no seio da sociedade brasileira é o sistema familiar patriarcal. O patriarcado implica em uma cultura que supervaloriza a figura masculina, sobretudo, a dos homens adultos heterossexuais. Todo esse enaltecimento do masculino abre espaço para uma subcultura machista, que permeia o tecido social nacional fazendo AUTOATIVIDADE 129 vítimas. As vítimas do machismo que sofrem de maneira mais direta com tal subcultura, herdada de nossas raízes colonizadas, são as mulheres. Todavia, muitas outras pessoas também são vítimas de tais violências. Em resposta às violências sofridas pelos homens de nossa sociedade, emerge o feminismo brasileiro: conjunto de movimentos sociais e políticos que possuem como principais objetivos o empoderamento feminino, igualdade de direitos civis e ruptura com os padrões patriarcais da sociedade. Considerando esse importante movimento de luta feminina no Brasil, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) O movimento feminista no Brasil é responsável por inúmeras conquistas para as mulheres, dentre elas está sua gradual ascensão num mercado de trabalho dominado, assim como outras instâncias da vida social, pelos homens. ( ) O empoderamento feminino auxilia na resistência em relação aos abusos patriarcais e na busca por maiores níveis de respeito em um país no qual a sociedade herdou inúmeras violências e tempos coloniais. ( ) A sociedade brasileira emancipa seu povo de maneira natural, sendo assim, as mulheres brasileiras alcançarão sua liberdade e igualdade de direitos naturalmente, mesmo sem a presença de movimentos sociais que os reivindiquem. ( ) O feminismo brasileiro é uma ideologia que propõe o ódio aos homens como forma de protesto contra a violência cometida por eles. ( ) Sem uma resistência organizada por parte das mulheres brasileiras, poucos direitos teriam sido conquistados a elas desde o período colonial. Assinale a opção que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – V – F – V. b) ( ) V – V – V – F – V. c) ( ) V – V – F – F – V. d) ( ) F – F – V – V – V. e) ( ) F – V – V – V – F. 3 As pessoas pertencentes ao grupo LGBTQ+ são vítimas de ódio e violência fomentados por diversas instituições no Brasil. Não é raro aprendermos na escola, na igreja, no ciclo de amigos ou no seio familiar que identidades de gênero e/ou orientação sexual divergente da norma homem e mulher heterossexuais cis são algo que foge à natureza humana. Esse fato faz com que a discriminação e o preconceito contra essa classe de pessoas seja algo de difícil ruptura em nosso território. Em meio à violência, ódio e discriminação sofridos por essas pessoas, muitas se organizam em movimentos LGBTQ+. Considerando o que aprendemos no primeiro tópico desta unidade, disserte acerca da importância de tais movimentos sociais para a classe LGBTQ+ no Brasil. 130 131 UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO O Brasil é um país vasto em território e recursos naturais que passou por um processo histórico particular em relação à América Latina e ao mundo. Apesar de ser uma nação que foi moldada sob os ditames do imperialismo europeu e habitado de maneira exploratória, o Brasil passou por um período de vultosos avanços materiais e tecnológicos durante os últimos séculos, continuando a se desenvolver até a contemporaneidade. O presente tópico enfocará o processo de modernização brasileiro a partir da ótica de grandes autores nacionais, sintetizando os principais eventos que marcaram nosso desenvolvimento ao longo dos anos. O estudo desse tema é de fundamental importância à compreensão do desenrolar histórico de nosso país. No presente estudo, teremos acesso aos principais elementos e eventos que contribuíram com a formação do Brasil que conhecemos hoje. Aproveite! 2 A MODERNIZAÇÃO DO BRASIL NO SÉCULO XIX A economia brasileira do século XIX girava em torno, principalmente, da produção do café. Sua produção foi introduzida com sucesso no interior de São Paulo, onde a planta crescia com vigor e saúde, intensificando sua colheita. O Vale do Paraíba foi uma das localidades de destaque no início da produção cafeeira, que se expandiu para o oeste posteriormente. Embora tenha gerado bons frutos inicialmente, o cultivo do café no Vale do Paraíba declinou devido ao desinteresse dos produtores locais no investimento na modernização da agricultura, cuja principal característica no período era a adoção da mão de obra livre. Além da demanda por mão de obra livre, pois essa também seria consumidora da produção nacional, multiplicando os lucros dos grandes produtores, ainda existia a demanda por extensões mais vastas de terra para o cultivo do café. Foi o que aconteceu na expansão para a produção em direção ao oeste paulista: imensidões de mata atlântica foram derrubadas para a implantação daquela cultura extensiva. Com as terras já preparadas para o cultivo, faltava agora a modernização dos “braços” que produziam o café. Sendo assim, foram implantadas, com mais intensidade, técnicas mecanizadas transporte, pilagem, ensacamento, pesagem. entre outros. TÓPICO 2 — MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA 132 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA A alta produtividade do café, que passou a ser voltada para o mercado exterior, fez com que aumentasse a demanda por transportes em massa do produto para os portos, cuja produção partia por meio de navios para outros países. Foi assim que o Brasil passou a investir massivamente em ferrovias e grandes locomotivas para que o escoamento do café fosse realizado de maneira mais rentável. Nasce, então, uma série de importantes linhas férreas que impulsionaram a modernização brasileira. FIGURA 7 – A BARONEZA: PRIMEIRA LOCOMOTIVA DO BRASIL FONTE: <https://cutt.ly/agYzT56>. Acessoem: 25 ago. 2020. O desenvolvimento do transporte ferroviário na Inglaterra foi consequência direta da Revolução Industrial, que começou a ganhar força em 1830. Com isso, Dom Pedro II viu a necessidade de colocar o Brasil nos trilhos também. Foi aí que surgiu a ideia das construções das estradas de ferro, que seria um importante passo para uma nova era para a nação brasileira. Apesar de ser algo grandioso e que revolucionaria a economia nacional, as pessoas deram pouca importância ao fato. Foi só após Irineu Evangelista de Souza, o Visconde de Mauá, construir a primeira ferrovia do país, chamada de Estrada de Ferro Mauá, que o povo finalmente se deu conta do que estava acontecendo. A inauguração oficial aconteceu no dia 30 de abril de 1854, onde circulava pela primeira vez a Baroneza, guiada pelo Visconde num trecho de 14,5 Km a uma velocidade de 36 Km/h. O evento foi tão importante para a época que contou com a presença do Imperador Dom Pedro II e de toda a sua Comitiva Imperial. FONTE: <https://amantesdaferrovia.com.br/blog/a-baroneza-o-primeiro-trem-do-brasil>. Acesso em: 25 ago. 2020. IMPORTANT E TÓPICO 2 — MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA 133 A modernização do transporte não foi o único avanço promovido pela cultura do café no Brasil. A vida nas cidades mudou de maneira drástica com o crescimento econômico, físico e populacional de algumas delas. São Paulo, por exemplo, central econômica do Brasil, foi impulsionada pela prosperidade na produção cafeeira daquele período. Monteiro Lobato (2009) retrata em sua obra, mesmo que de uma maneira um tanto quanto romantizada, o crescimento paulista a partir da cultura do café do final do século XIX. A quem viaja pelos sertões do chamado oeste de São Paulo empolga o espetáculo maravilhoso da preamar do café. Aquela onda verde nasceu humilde em terras fluminenses. Tomou vulto, desbordou para São Paulo e, fraldejando a Mantiqueira, veio morrer, detida pela frialdade do clima, à beira da Paulicéia. Mas não parou. Transpôs o baixadão geento e foi espraiar-se em Campinas. Ali começou mestre Café a perceber que estava em casa. Corredor de mundo, viajante exótico vindo da Arábia ou da África, provara pelo caminho todos os massapés e sondara todos os climas. Franzia o nariz, porém. Veio sorrir ali, ao pisar esse oásis do rubídio que é o oeste paulista. E arranchou de vez, para sempre, em sua casa. Repete-se, então, o movimento bandeirante de outrora. Atrai o homem aventureiro não mais o ouro dissimulado em pepitas no seio da terra, mas o ouro anual das bagas vermelhas que se derriçam em balaios. A região era todo um mataréu virgem de majestosa beleza. Rasgara-o a facão o bandeirante antigo, por meio de picadas; o bandeirante moderno, machado ao ombro e facho incendiário na mão, vinha agora não penetrá-lo, mas destruí-lo. Almas fechadas ao contemplativismo, nunca lhes amolentou o pulso a beleza augusta dos jequitibás de frondes sussurrantes como o oceano, nem o vulto grave das perobeiras milenárias (LOBATO, 2009, p. 16). Lobato (2009) enfatiza o crescimento populacional de São Paulo na última década do século XIX, que passou de 64.000 habitantes para 239.000 até o ano de 1900. Esse crescimento exponencial facilitou a modernização da cidade que hoje é a mais populosa do Brasil, com cerca de 12 milhões de pessoas. Outra cidade que prosperou com o movimento de urbanização, advindo da crescente modernização do país, foi o Rio de Janeiro. A capital carioca recebeu, no mesmo período, melhorias em termos de infraestrutura, como calçamento, gás encanado, redes de saneamento entre outras. A modernização do Brasil, de meados do século XIX, refletiu também em avanços como a criação de dezenas de indústrias, diversos bancos, companhias de navegação a vapor, companhias de seguro, estradas de ferro, empresas de mineração, transporte urbano dentre diversos outros, apenas entre 1850 e 1860. A região sudeste foi a mais privilegiada pelos avanços proporcionados pela modernização, crescendo exponencialmente desde o início do referido processo. O processo de modernização brasileiro não trouxe apenas avanços e melhorias a nossa sociedade. Paralela ao progresso econômico, a desigualdade social cresceu também em ritmo acelerado. Se por um lado existe uma pequena classe que usufrui de maneira plena dos benefícios da modernização do Brasil, 134 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA por outro, existe uma maioria de indivíduos que sofre com a superexploração do trabalho, com a miséria, com a violência e outras sobras da produção de riquezas no país. Contemporaneamente, nosso território é marcado por um abismo social que pode ser retratado pela Figura 8, a qual mostra como algumas pessoas são privilegiadas economicamente, vivendo em apartamentos seguros e confortáveis no Rio de Janeiro, habitam ao lado de uma grande quantidade de brasileiros que vivem as piores mazelas do capitalismo. FIGURA 8 – MODERNIZAÇÃO E DESIGUALDADE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO FONTE: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/media/uploads/legacy/2018/11/28/favela- -rj-1116795.jpg>. Acesso em: 26 ago. 2020. Um importante sociólogo brasileiro tenta buscar as origens da desigualdade acentuada pelo processo de modernização no Brasil a partir da explicação de um fenômeno global. Ruy Mauro Marini (2013) acredita que o subdesenvolvimento brasileiro e latino-americano, é fruto de sua submissão aos mandos e desmandos do sistema econômico mundial, capitaneado principalmente pelos Estados Unidos da América. O caráter imperialista dos países que dominam a economia mundial é um dos fatores que submetem os países da América Latina, inclusive o Brasil, a sua condição de subdesenvolvimento e pobreza. A história do subdesenvolvimento latino-americano é a história do desenvolvimento do sistema capitalista mundial. Seu estudo é indispensável para quem deseje compreender a situação que este sistema enfrenta atualmente e as perspectivas que a ele se abrem. Inversamente, apenas a compreensão segura da evolução da economia capitalista mundial e dos mecanismos que a caracterizam proporciona o marco adequado para situar e analisar a problemática da América Latina (MARINI, 2013, p. 47). TÓPICO 2 — MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA 135 O processo que proporcionou aos Estados Unidos da América o domínio do sistema capitalista, teve um forte marco com o final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando o referido país conseguiu se sobressair economicamente e se tornar a maior potência de todo o globo. Sendo assim, abordaremos, no próximo subtópico, o processo de desenvolvimento e modernização brasileiros a partir do fim da Primeira Guerra Mundial. No referido período ocorreram fenômenos de suma importância em relação à modernização, desenvolvimento e desigualdade presentes até os dias de hoje no Brasil. Portanto, são imprescindíveis para o sociólogo os estudos acerca desse processo rico em acontecimento e fenômenos que compõem a história de nosso país. 3 O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO BRASILEIRO PÓS- PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL O advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) provocou profundas transformações em todo o mundo, inclusive no Brasil. Os Estados Unidos da América, que entraram no primeiro grande conflito global no final do mesmo, saíram da guerra como a maior potência econômica mundial. O Brasil, grande exportador do café, que no final da Primeira Guerra era nosso principal produto, tinha os Estados Unidos como um dos principais compradores de nossa mercadora. Nossa economia, que girava em torno da produção cafeeira, agora, nos anos 1920, era impulsionada com a entrada de novas máquinas industriais e novas tecnologias. Os meios de comunicação brasileiros avançam no pós-Guerra, trazendo benefícios àquela parcela da população nacional que tinha acesso ao rádio, por exemplo, que revolucionou o sistema informacional no Brasil. O telefone também foi uma facilidade que a prosperidade econômica brasileira proporcionou ao povo maisabastado de nosso país, encurtando distância entre as pessoas. A crescente tecnologia foi só um dos aspectos da modernização brasileira. Esse processo de transformação ocorreu em diversos âmbitos no país, inclusive o âmbito material, político, social, habitacional, econômico, produtivo dentre tantos outros. 136 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA FIGURA 9 – A MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA E AS PRIMEIRAS TRANSMISSÕES A RÁDIO OCORRIDAS NA DÉCADA DE 1920 FONTE: <https://informa.life/wp-content/uploads/2012/09/old_radio_1.jpg>. Acesso em: 24 ago. 2020 A segunda metade de século XX marcou a modernização de nosso sistema produtivo. O maquinário destinado à potencialização da produção agrícola recebeu melhorias mais acentuada a partir da década de 1960. Considerando o contexto do referido período, marcado pelo fortalecimento das políticas de caráter socialista no Brasil, torna-se válido destacar que ocorreram eventos importantes no que se refere à vida no campo. Todavia, com a imposição da ditadura militar no país foi promulgado o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964). O mesmo estatuto propunha um modelo agropecuário concentrador de terras, que modernizaria seletivamente o campo, excluindo aqueles que vivem da produção em pequenas propriedades. No dia 7 de setembro de 1922, o País celebrava os primeiros cem anos de existência fora das amarras do governo português. A cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, comemorava a data com alguns eventos oficiais – entre eles uma exposição que trazia, pela primeira vez ao território nacional, os principais aparelhos e instrumentos da tecnologia da radiodifusão, que já haviam atingido uma escala considerável em território norte-americano. Para demonstrar o funcionamento do principal “invento” da época, uma transmissão experimental foi realizada, tendo como palco o tradicional Teatro Municipal. Dali o público ouviu a voz do então presidente, Epitácio Pessoa, declamando as vantagens daquela nova tecnologia, seguida dos arranjos da ópera O Guarani, obra do compositor Carlos Gomes. Esses foram os sons da primeira transmissão radiofônica oficial da História do Brasil. FONTE: <https://informa.life/90-anos-de-radio/>. Acesso em: 24 ago. 2020. INTERESSA NTE TÓPICO 2 — MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA 137 Uma das principais ações advindas do Estatuto da Terra foi a concessão de crédito para produtores rurais investirem em suas respectivas produções. A medida foi positiva para alguns trabalhadores do campo que, com acesso a maquinários mais modernos, melhores insumos e defensivos agrícolas. Lembrando que defensivo agrícola é um nome mais brando atribuído aos agrotóxicos, contribuindo para o disfarce de algumas das consequências destrutivas ao ser humano da produção em massa. Além dos prejuízos à saúde das pessoas, outra consequência social da modernização da agropecuária no Brasil é o monopólio de alguns poucos latifundiários que, prosperando a partir das ações do Estatuto da Terra, começaram a ocupar e concentrar cada vez mais terras para produzir, cultivando verdadeiros impérios. A formação de tais impérios foi extremamente prejudicial a milhares de famílias brasileiras que vivem no campo e ficaram sem terras para produzir, formando as primeiras resistências contra os efeitos deletérios da produção latifundiária. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é a principal organização de trabalhadores rurais que luta pelos direitos fundamentais previstos no Estatuto da Terra e que não são atendidos. O pleno emprego, assim como consta no Art. 1° § 2º da Lei nº 4.504/1964, é um dos inúmeros direitos negados aos pequenos produtores rurais, que produzem a maior parte do alimento que milhões de brasileiros levam a mesa todos os dias. São esses os direitos reivindicados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ao contrário do estigma que a organização sofre no Brasil, sendo associada a invasores de terras que querem simplesmente expropriar os latifundiários quando, na verdade, buscam apenas a divisão das terras concentradas para o trabalho destinado ao sustento de suas famílias. Nos países centrais do sistema capitalista, a democratização do acesso à terra, a reforma agrária foi uma das principais políticas para destravar o desenvolvimento social e econômico, produzindo matéria prima para a nascente indústria moderna e alimentos para seus operários. No Brasil, nem mesmo as transformações políticas e econômicas para o desenvolvimento do capitalismo foram capazes de afrontar a concentração de terras. Ao longo de cinco séculos de latifúndio, também foram travadas lutas e resistências populares. As lutas contra a exploração e, por conseguinte, contra o cativeiro da terra, contra a expropriação, contra a expulsão e contra a exclusão, marcam a história dos trabalhadores. A resistência camponesa se manifesta em diversas ações e, nessa marcha, participa do processo de transformação da sociedade. FONTE: <https://mst.org.br/nossa-historia/inicio/>. Acesso em: 24 ago. 2020. ATENCAO 138 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA O MST é resultado da união de diversos outros movimentos anteriores que se uniram em busca de seus direitos fundamentais à terra, ao trabalho e à qualidade de vida digna que todo o brasileiro merece. A imagem nos mostra alguns jornais publicados pela organização dos trabalhadores rurais sem terra no Brasil, que lutam incessantemente em busca de um espaço em meio à concentração latifundiária. FIGURA 10 – JORNAIS PUBLICADOS PELOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA QUE SE ORGANIZARAM NO BRASIL FONTE: <https://mst.org.br/wp-content/uploads/2019/11/84-861.png>. Acesso em: 25 ago. 2020. A modernização brasileira e os avanços tecnológicos nascentes no Brasil em decorrência dela, implicaram em outra transformação na dinâmica social brasileira: a intensificação da imigração. Principalmente, os estados de São Paulo e Rio de Janeiro investiram em uma boa quantidade de mão de obra estrangeira antes mesmo da abolição da escravidão no final do século XIX. Desde meados do século XX, novas feições e formas de organização foram criadas na luta pela terra e na luta pela reforma agrária. Nas diferentes regiões do país, contínuos conflitos e eventos formaram o campesinato no princípio da segunda metade do século passado. A ditadura implantou um modelo agrário mais concentrador e excludente, instalando uma modernização agrícola seletiva, que excluía a pequena agricultura. O regime militar foi duplamente cruel e violento com os camponeses. Por um lado – assim como todo o povo brasileiro – os camponeses foram privados dos direitos de expressão, reunião, organização e manifestação, impostos pela truculência da Lei de Segurança Nacional e do Ato Institucional nº 5. Por outro, a ditadura implantou um modelo agrário mais concentrador e excludente, instalando uma modernização agrícola seletiva, que excluía a pequena agricultura, impulsionando o êxodo rural, a exportação da produção, o uso intensivo de venenos e concentrando não apenas a terra, mas os subsídios financeiros para a agricultura. FONTE: <https://mst.org.br/nossa-historia/inicio/>. Acesso em: 24 ago. 2020. IMPORTANT E TÓPICO 2 — MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA 139 O governo imperial brasileiro estimulou a imigração europeia em massa para o Brasil, com o intuito de ocupar regiões ainda despovoadas pelo povo colonizador, além de suprir as demandas por trabalhadores livres nas lavouras de café. Sendo assim, diversas famílias de origem italiana, alemã, dentre outras nacionalidades, vieram para o país em busca de oportunidades de emprego e melhores condições de vida, fugindo da pobreza vivida na Europa. O contato com outros povos, advindos de outros países europeus e que ainda não haviam se estabelecido no Brasil, modificou, de maneira significativa, a sociedade brasileira, sobretudo, nossas relações sociais e nosso desenvolvimento urbano. Nossa cultura ficou ainda mais miscigenada, enriquecendo,por um lado, as relações entre pessoas de diferentes nacionalidades e, por outro lado, acentuando conflitos entre diferentes etnias, resultando na potencialização de violências como o racismo. No próximo subtópico, apresentaremos a perspectiva de alguns dos mais notáveis pensadores brasileiros sobre o tema da modernização brasileira, expondo alguns aspectos de seus pontos de vista. Devido à riqueza de elementos que juntos moldaram nossa sociedade, cuja apreensão de maneira completa se torna muito difícil por parte de apenas um autor, teceremos algumas ponderações sobre as perspectivas de Álvaro Vieira Pinto, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes do referido tema, enriquecendo nosso debate e ampliando nosso aparato intelectual relativo à formação do Brasil contemporâneo. 4 A MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA SOB OS OLHARES DE ÁLVARO VIEIRA PINTO, RUY MAURO MARINI, CAIO PRADO JÚNIOR E FLORESTAN FERNANDES Iniciaremos nossas discussões acerca da modernização brasileira analisada por autores brasileiros com a perspectiva de Álvaro Vieira Pinto acerca da tecnologia e sua relação com o desenvolvimento no Brasil. Pinto (2005) explica que, em seu ponto de vista, o subdesenvolvimento é algo intrínseco ao processo de modernização, ou seja, as desigualdades e a pobreza são consequências do caráter desigual e excludente do capitalismo globalizante. Tal sistema sócio-político-econômico atua de forma a explorar uma maioria de trabalhadores, que usufrui muito menos da riqueza que produz com seu trabalho ao mesmo tempo em que uma minoria, que trabalha menos, goza dessa mesma riqueza de forma plena. O mesmo acontece com a ciência e a tecnologia. Enquanto uma parcela da humanidade trabalha para produzir saberes e tecnologias novas, outra consegue tirar maior proveito dessa produção em detrimento dos que trabalham mais. 140 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA Só há saber novo com avanço técnico. Se uma parte da humanidade já demonstrava usufruir benefícios da apropriação social da tecnologia, restava ao intelectual engajado explicar as causas dos “entraves históricos” ao desenvolvimento nacional em países como o Brasil, rico e pobre ao mesmo tempo. Aliás, se existe um traço peculiar que pode ser atribuído à “geração isebiana”, com todo o exagero que essa expressão contém, esse traço pode ser reconhecido na atenção contínua às concomitâncias da sociedade. Trata-se de outra herança da Cepal: perceber que o subdesenvolvimento não é uma situação assemelhada ao passado do mundo desenvolvido. É, ao contrário, concomitante a ele e, na maioria dos casos, resultante da deterioração nos termos de troca entre as partes (PINTO, 2005, p. 8). A situação de desigualdade que caminha junto à modernização do Brasil foi agravada, conforme Ruy Mauro Marini (2013), pelas políticas neoliberais impostas ao mercado exterior pelos Estados Unidos da América. O neoliberalismo é, de maneira resumida, uma ideologia/doutrina político-econômica que prega a liberdade de concorrência mercantil, a ausência de regulação estatal da economia, abertura para o mercado exterior, supressão de assistência social por parte dos governos entre outras características. No Brasil, o neoliberalismo ganhou maiores proporções na segunda metade do século XX, quando nossos governantes abriram espaço ao capital estadunidense que buscou a ampliação de seu mercado para países de todos os continentes de forma intensiva após o término da Primeira Guerra Mundial, a fim de superar uma crise econômica. Esse foi mais um episódio da modernização brasileira que abriu espaço a novos e graves problemas sociais em nosso país. Os governos de Café Filho e Juscelino Kubitschek, que se sucedem à grave crise política de 1954 produzida pela situação aqui descrita – encerrada pelo suicídio do presidente Vargas –, sendo, portanto, frutos do compromisso entre as classes dominantes em conflito, tratarão de encontrar uma fórmula de transação que permita superar a crise econômica, sem levar a um confronto definitivo entre as posições implicadas. O recurso escolhido foi abrir a economia brasileira aos capitais estadunidenses, a fim de romper o nó formado no setor cambial. A Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito – Sumoc (atual Banco Central) cria o marco jurídico para essa política, cujo auge é atingido com o Plano de Metas do governo de Kubitschek, que acarreta cerca de 2,5 milhões de dólares em investimentos e financiamentos e empurra de novo a expansão industrial (MARINI, 2013, p. 115). A maior abertura ao capital estrangeiro teve como uma de suas consequências a entrada de novas empresas estrangeiras em nosso território, fato que nos trouxe acesso a novos produtos, serviços e tecnologias por um lado, todavia, por outro lado, acentuou a exploração e a desigualdade social. Uma das causas desse retrocesso quanto ao abismo social entre classes econômicas no Brasil foi, dentre outras, a entrada de uma política trabalhista que desrespeita as normas da Consolidação das Leis do Trabalho brasileira. TÓPICO 2 — MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA 141 Um bom exemplo dessa precarização do trabalho decorrente do incentivo neoliberal estadunidense é o sistema de fast-food. As redes estrangeiras de alimentação rápida, submetem os brasileiros a escalas de trabalho pagas por hora, com um salário base muito inferior a um salário mínimo, sendo o complemento dessa renda responsabilidade do empregado, independentemente do movimento do comércio ou quaisquer outros fatores que influenciem as vendas. FIGURA 11 – NEOLIBERALISMO, GLOBALIZAÇÃO E EMPRESAS MULTINACIONAIS INSTALADAS NO BRASIL E NO MUNDO FONTE: <https://cutt.ly/DgYxPPZ>. Acesso em: 28 ago. 2020. A competitividade entre os trabalhadores contemporâneos que vendem sua força de trabalho nesse novo Brasil modernizado, é mais acirrada do que nunca. Essa consequência do neoliberalismo no mercado de trabalho obriga a população a dispender muito mais tempo e energia com os estudos, sejam eles cursos de aperfeiçoamento, faculdades, pós-graduações, especializações e outros tipos de qualificação para conseguirem vagas de emprego disponíveis no mercado. No interior das empresas e outras instituições que empregam os brasileiros, a competitividade incentivada pelos patrões para obtenção de melhores resultados e, consequentemente, maiores lucros, submete os funcionários a jornadas de trabalhos mais intensas em nome de bonificações, cargos mais elevados e até da própria permanência na instituição. Torres (2016) identifica que a racionalidade de gestores de empresas contemporâneas, que fomentam a competitividade, o excesso de trabalho realizado por classes sociais exploradas, o investimento no capital intelectual e financeiro que objetiva o lucro das organizações, transcendeu os espaços empresariais e adentrou à esfera pública. 142 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA Essa nova inclinação de gestores públicos – sejam eles políticos e/ou pessoas que ocupam cargos que regulamentam a dinâmica social – à adoção de técnicas utilizadas no meio empresarial para o estímulo à produtividade e ao lucro é, conforme Torres (2016), altamente prejudicial à parcela da população que trabalha mais por salários menores. Isso se deve ao tempo, ao esforço, energia, saúde e outros elementos que a classe proletária deposita na competitividade trabalhista que, quando manifestada em meio público, incide sobre a busca por resultados numéricos que representam produtividade em diversas esferas da vida em sociedade. Um dos exemplos utilizados pelo referido autor se encontra na esfera carcerária, cuja produtividade do Poder Executivo é expressada por meio de políticas públicas que fomentam a competitividade por maiores números de prisões e apreensões, superlotando as prisões brasileiras. Outra das características do neoliberalismo brasileiro é o retorno em massa das privatizações. Caio Prado Júnior (1981) reconstrói o processo histórico no qual o Brasil foicondicionado aos mecanismos econômicos estrangeiros, desde o período da colonização de nosso país. A dinâmica economicista neoliberal que vivemos contemporaneamente, seria a continuação de uma cultura exploratória a qual o Brasil foi submetido, considerando que a maior parte das riquezas aqui produzidas, quase sempre foram usufruídas por povos europeus. Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção e considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura social, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão de obra de que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, mercantil, constituir-se-á a colônia brasileira (PRADO JÚNIOR, 1981, p. 22). Pacheco Júnior (2018) faz uma interpretação acerca da racionalidade de Caio Prado Júnior, especialmente no tocante ao modo de vida de países nos quais os povos colonizadores se instalaram com o objetivo maior de habitar as novas terras americanas. Para Pacheco Júnior (2018), Caio Prado sustenta a ideia de que no Brasil e na maioria dos países da América Latina, existiu um padrão de colonização explorador, no qual o lucro destinado aos países do exterior se sobressaía em detrimento das demandas internas do país. Enquanto isso, nas zonas temperadas da América, a ocupação das terras pelos colonizadores era muito mais voltada à habitação e enriquecimento locais. TÓPICO 2 — MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA 143 Para as regiões situadas nas zonas temperadas da América, dirigiram- se fundamentalmente os ingleses, em função dos processos político- religiosos e econômicos que passavam no velho continente. Por um lado, a Inglaterra vivia um processo de privatização das suas áreas de pastagens, com os cercamentos das terras e a expulsão dos camponeses para as cidades; era o período de gestação das indústrias e uma nova forma de produção material da vida nas áreas em processo de urbanização; por outro lado, uma forte perseguição político-religiosa aos puritanos ingleses. Caio Prado (2000) nos mostra que esse tipo de colonização parte de condições e circunstâncias especiais, pois nada tem a ver com a ação de traficantes e exploradores sedentos por lucro. Cita o autor: “o que os colonos desta categoria têm em vista é construir um novo mundo, uma sociedade que lhes ofereça garantias que no continente de origem já não lhes são mais dadas” (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 15 apud PACHECO JÚNIOR, 2018, p. 32). O Brasil contemporâneo vive um período no qual as privatizações, venda de empresas estatais, estímulo à competitividade entre a classe trabalhadora e a potencialização de lucros particulares estão no auge. Se até o final do século XX existiram políticas voltadas à melhoria das condições de vida do povo brasileiro, hoje nossas empresas que geram as maiores receitas para nosso país e que poderiam ser convertidas na resolução de problemas sociais graves, estão sendo vendidas para o setor privado, ou seja, o lucro produzido por essas instituições e que seria convertido em melhorias públicas, fica retido na mão de empresas ou pessoas físicas. O neoliberalismo implica em uma dinâmica político-social economicista, na qual a economia é sempre prioridade em relação à distribuição das riquezas produzidas no seio de nossa pátria. FIGURA 12– REFLEXÃO SOBRE AS PRIVATIZAÇÕES E A VENDA CONTEMPORÂNEA DE EMPRESAS ESTATAIS BRASILEIRAS FONTE: <https://outraspalavras.net/wp-content/uploads/2020/07/ASasASasAS.jpg>. Acesso em: 28 ago. 2020. 144 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA Florestan Fernandes (1975) acredita que a modernização no Brasil faz parte de um processo histórico intitulado revolução burguesa, que influenciou a construção do país sob os moldes capitalistas europeus. Embora influenciadas pela Europa colonizadora, a cultura e a política brasileiras foram construídas de maneira peculiar, considerando as tradições nativas, colonizadoras e dos escravos trazidos para cá. [...] ao se apelar para a noção de ‘Revolução Burguesa’, não se pretende explicar o presente do Brasil pelo passado dos povos europeus. Indaga-se, porém, quais foram e como se manifestaram as condições e os fatores histórico-sociais que explicam como e porque se rompeu, no Brasil, com o imobilismo da ordem tradicionalista e se originou a modernização como processo social (FERNANDES, 1975, p. 20-21). A formação da civilização brasileira, tal como se configura hoje foi, segundo Fernandes (1975), orientada à atenção das demandas senhoriais. Ou seja, nossa cultura, política e economia foram moldadas de acordo com as necessidades dos herdeiros da riqueza produzida pela colonização. O formato do Estado, tão como o modelo econômico, as normas sociais e a modernização se desenvolveram a partir da dinâmica de produção de riquezas divididas de maneira desigual, cuja parcela da sociedade que mais trabalhou para construir nossa sociedade recebeu desproporcionalmente menos do que aqueles que herdaram os meios de produção. Enquanto veículo para a burocratização da dominação patrimonialista e para a realização concomitante da dominação estamental no plano político, tratava-se de um estado nacional organizado para servir aos propósitos econômicos, aos interesses sociais e aos desígnios políticos dos estamentos senhoriais. Enquanto fonte de garantias dos direitos fundamentais do “cidadão”, agência formal de organização política da sociedade quadro legal de integração ou funcionamento da ordem social, tratava-se de um Estado nacional liberal e, nesse sentido, “democrático” e “moderno” (FERNANDES, 1975, p. 68). Podemos afirmar que a modernização brasileira seguiu os padrões de desenvolvimento proporcionados, inicialmente, pela exploração de nosso povo nativo e dos escravos trazidos para o Brasil por meio do tráfico negreiro. Sendo assim, nossa cultura, política e economia estavam, desde o início da invasão europeia, vinculadas ao sistema produtivo aqui estabelecido pelos colonizadores. Mais tarde, durante os séculos XIX e XX, a produção cafeeira brasileira foi a grande impulsionadora de nossa economia, trazendo avanços tecnológicos à agricultura, transporte e à urbanização. A partir daí, a modernização do Brasil avançou de maneira mais intensa, refletindo no êxodo rural, crescimento exponencial das cidades e suas populações. O investimento industrial que o país recebeu durante o século XX deu prosseguimento aos avanços tecnológicos que modificaram nossas relações de trabalho, produção e distribuição das riquezas aqui produzidas. Diversos intelectuais brasileiros buscaram as raízes de nossa modernização em processos históricos que envolveram nosso modelo de colonização, o sistema produtivo aqui empregado, a exploração de nossos trabalhadores, a multiplicidade cultural miscigenada e diversos outros fatores. Os movimentos TÓPICO 2 — MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA 145 sociais também fizeram parte de nosso processo modernizador, auxiliando na luta pela distribuição de nossos recursos naturais e acesso às riquezas brasileiras àqueles que a produzem de maneira mais direta e intensa: por meio do trabalho braçal nem sempre assalariado. Outro autor cuja menção é importante, principalmente no que diz respeito ao tema trabalho, é Octávio Ianni que, em sua obra O Mundo do Trabalho, disserta acerca das principais características do mundo do trabalho contemporâneo. Para Ianni (1994), a dinâmica do trabalho dos dias atuais acompanha o processo de globalização do capitalismo que, a partir das inovações materiais e metodológicasda referida esfera, transformou não só as relações de trabalho da maioria dos países do Globo, mas a estrutural social de países como o Brasil. O que caracteriza o mundo do trabalho no fim do século XX, quando se anuncia o século XXI, é que este tornou-se realmente global. Na mesma escala em que ocorre a globalização do capitalismo, verifica- se a globalização do mundo do trabalho. No âmbito da fábrica global criada com a nova divisão internacional do trabalho e produção – ou seja, a transição do fordismo ao toyotismo e a dinamização do mercado mundial, amplamente favorecidas pelas tecnologias eletrônicas – colocam-se novas formas e significados do trabalho. São mudanças quantitativas e qualitativas que afetam não só os arranjos e a dinâmica das forças produtivas, mas também a composição e a dinâmica da classe operária. A própria estrutura social, em escala nacional, regional e mundial, é atingida pelas mudanças. Na medida em que a globalização do capitalismo, considerada inclusive como processo civilizatório, implica a formação da sociedade global, rompem-se os quadros sociais e mentais de referência estabelecidos com base no emblema da sociedade nacional (IANNI, 1994, p. 2). A obra de Ianni é de fundamental importância para o entendimento de questões nacionais e internacionais, sobretudo acerca do desenvolvimento do capitalismo globalizado e sua influência sobre diversos aspectos sociais, inclusive brasileiros. Portanto, considera-se indispensável, a qualquer estudioso do Brasil e da América Latina, a leitura de seus estudos, que contribuíram de forma significativa com a Teoria Social Brasileira. 146 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • O processo de modernização brasileiro foi impulsionado pela cultura do café consolidada no século XIX. • Os avanços tecnológicos iniciais no Brasil, provenientes da produção cafeeira, foram direcionados ao setor de transporte com a construção das primeiras ferrovias. • A modernização brasileira foi potencializada com os avanços tecnológicos, urbanos e sociais emergentes após a Primeira Guerra Mundial. • Diversos autores brasileiros concebem a modernização do Brasil como parte de um processo histórico global. • Alguns dos intelectuais nacionais consideram que a modernidade brasileira está condicionada às demandas dos países colonizadores, sobretudo os europeus e os Estados Unidos da América. 147 1 O processo de modernização do Brasil envolve uma série de fatores que constituem peculiaridades em nosso desenvolvimento quando comparado a outros países do globo. Colonizados por europeus, cujo objetivo maior era a exploração dos recursos naturais aqui existentes. Enquanto outras partes do continente americano eram ocupadas com vistas à construção de uma civilização desenvolvida, plenamente habitável e com clima semelhante ao da Europa, nossas terras eram destinadas ao lucro dos senhores e descendentes colonizadores. Isso implicou na formação de modelos de política, cultura e economia moldados de forma a dar atenção às demandas estrangeiras, à busca pelo enriquecimento dos invasores por meio da exploração da mão de obra nativa e africana, intermediada pelo escambo e a escravidão. Considerando as particularidades da modernização brasileira em relação ao resto do mundo, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) O desenvolvimento tecnológico, no Brasil, obteve grandes avanços a partir da agricultura que, além de receber investimentos em técnicas e equipamentos de produção, resultou no avanço de outros setores da economia brasileira. ( ) O processo de urbanização foi uma das principais consequências da modernização do Brasil, trazendo consigo o adensamento populacional dos grandes centros urbanos emergentes, sobretudo nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. ( ) As primeiras grandes estradas de ferro brasileiras foram fruto da modernização da produção cafeeira. ( ) O final do século XIX foi um marco da entrada das grandes multinacionais estadunidenses no Brasil. ( ) A troca da mão de obra escrava por mão de obra assalariada no Brasil fez parte do seu processo de modernização. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – V – V – V. b) ( ) V – V – V – F – V. c) ( ) V – V – F – V – V. d) ( ) F – V – V – V – F. e) ( ) V – F – V – V – V. 2 A modernização brasileira, do início do século XX, foi responsável por inúmeros avanços tecnológicos, além de impulsionar o nascimento de diversos movimentos sociais de suma importância ao avanço de nossa sociedade. O crescimento econômico impulsionado pela cultura do café, principal produto voltado ao mercado exterior do referido período, foi um dos principais elementos que contribuíram com a modernização do AUTOATIVIDADE 148 Brasil. O final da Primeira Guerra Mundial e a ascensão econômica dos Estados Unidos da América que conquistou a hegemonia mundial nesse aspecto após o primeiro grande conflito global, refletiu na intensificação da exportação cafeeira para o mesmo país norte-americano. Considerando o conteúdo estudado no Tópico 2 da terceira unidade de nosso livro didático, analise as sentenças a seguir: I - A produção de café brasileira, sobretudo do oeste paulista, refletiu na instalação da malha ferroviária em nosso país, fator que muito facilitou o transporte terrestre de pessoas e mercadorias no Brasil. II - Dentre os avanços tecnológicos que a modernização brasileira proporcionou a algumas parcelas da população, destaca-se a transmissão via rádio, que revolucionou nossa comunicação. III - A telefonia brasileira também recebeu investimentos com o advento do pós-guerra, ganhando seus primeiros aparelhos telefônicos que encurtaram as distâncias entre aquelas pessoas que podiam investir nesse tipo de tecnologia recém introduzida em nosso território. IV - A imigração europeia em massa para o Brasil também constituiu uma importante característica do modelo de modernização de nosso país, influenciando na forma com a qual o país cresceu de maneira multicultural. V - Dentre os movimentos sociais que surgiram a partir da modernização agrícola no Brasil, está o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, que possui, como principal objetivo, a reforma agrária de maneira justa entre os trabalhadores do campo. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente a sentença I está correta. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) Somente a sentença III está correta. d) ( ) As sentença IV e V estão corretas. e) ( ) As sentenças I, II, III, IV e V estão corretas. 3 Dentre alguns dos principais tributários do pensamento social brasileiro que trabalham, além de outros temas, com o processo de modernização de nosso país, estão Álvaro Vieira Pinto, Ruy Mauro Marini, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes. Esses pensadores contribuíram com os estudos do desenvolvimento histórico e os elementos centrais que influenciaram a modernidade brasileira tal como a concebemos hoje. Considerando o conteúdo estudado no presente tópico, faça um resumo das principais contribuições de cada um desses autores no que se refere ao processo de modernização do Brasil. 149 UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Devemos ter em mente que a Sociologia Brasileira, assim como qualquer outro estudo, prática, trabalho ou quaisquer manifestações humanas, passou e passa por um processo histórico que a molda de maneira constante. Isso significa que o pensamento humano, por se tratar de algo fluido e integralmente em estágio de metamorfose, está passível a sofrer modificações ao passar dos tempos, de acordo com os fatores externos, materiais e imateriais que o influenciam. O Brasil passou por diversos momentos importantes e decisivos ao desenvolvimento da Sociologia, até ela se apresentar da forma que a concebemos contemporaneamente. O último tópico de nosso material em Sociologia Brasileira, encerrará nossos estudos com uma breve reconstrução da Sociologiano Brasil, apontando os principais eventos e o desenvolvimento do referido campo do saber em um passado recente. Tal temática é de fundamental importâncias, não só para os futuros sociólogos ou pesquisadores de áreas afins, mas para todas as pessoas que almejam compreender o desenrolar de nossa história e dos dias de hoje. Aproveite! 2 SOCIOLOGIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: DA DITADURA MILITAR NO BRASIL ÀS PRINCIPAIS ABORDAGENS SOCIOLÓGICAS NOS DIAS ATUAIS A década de 1960 foi decisiva em diversos aspectos da história do Brasil. Isso se deve, principalmente, a um evento que influenciou de maneira incisiva a política, a cultura, a economia, os costumes, a educação e diversos outros âmbitos da vida brasileira em sociedade: a instauração da ditadura militar no Brasil, em 1964. O regime ditatorial em território brasileiro resultou em uma série de retrocessos ao nosso povo. Não foi diferente em relação à educação. Desde a década de 1930, no Brasil, existia um forte debate acerca do futuro da educação no país. Os Manifestos dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos edu- cadores (1959) (AZEVEDO et al., 2010), publicados nos anos de 1932 e 1959, foram importantes documentos redigidos por educadores brasileiros com o objetivo de propor novas diretrizes para a educação nacional. O Manifesto dos Pioneiros da Edu- cação Nova, escrito por 26 profissionais da educação, propôs uma nova política edu- cacional que proporcionasse a emancipação do povo, igualdade de oportunidades e rompimento com os ideais políticos dominantes desde aquele período. TÓPICO 3 — A SOCIOLOGIA BRASILEIRA PÓS-1970: NOVOS OLHARES 150 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA Nós não devíamos, nem podíamos recuar diante da resistência dos ortodoxos, em face da extensão crescente da sociologia nos domínios da educação. O manifesto, em que a educação se encara como um processo social e se põe em relevo “o predomínio da ação que exercem os fatores sociais sobre os indivíduos”, acusa, certamente, na base e no desenvolvimento de seus princípios e de seu plano, uma consciência profunda das transformações que o poder crescente da indústria e do comércio impõe aos espíritos como às coisas, e, portanto, “o ponto de vista sociológico”, que considera um fato de estrutura social as transformações consequentes no sentido e na organização das instituições pedagógicas. É desse ponto de vista sociológico que aí se estuda a posição atual do problema dos fins de educação; é ele que nos fez encarar a educação como “uma adaptação ao meio social”, um processo pelo qual o indivíduo “se penetra da civilização ambiente”; é ele ainda que nos levou a compreender e a definir a posição da escola no conjunto das influências cuja ação se exerce sobre o indivíduo, envolvendo-o do berço ao túmulo (AZEVEDO et al., 2010, p. 26-27). Podemos afirmar que, da década de 1930 ao final da década de 1950, os debates acerca de uma educação mais igualitária, libertadora e com grande potencial de transformação social estavam acalorados. Os intelectuais da época, tão como as forças dominantes, tinham plena consciência do poder transformador e libertador da Educação. Sendo assim, o conflito de interesses entre essas duas classes que, de um lado prezava pela libertação de nosso povo por meio da educação e de outro resistia em nome da exploração de nosso trabalho, intensificou-se. Os anos 1960 foram decisivos para a imposição do modelo educacional considerado ideal pela classe dominadora. A Ditadura Militar deflagrada em 1964, trouxe consigo uma dura reforma no modelo educacional nacional. O primeiro governador ditatorial do Brasil foi Castello Branco (1964-1967), cuja primeira medida promulgada por meio de um primeiro Ato Institucional (AI-1), foi a reforma universitária. Uma das primeiras políticas universitárias instituídas por Castello Branco foi o alinhamento dos professores universitários brasileiros com estadunidenses. Tratava-se do acordo MEC USAID (United States Agency for International Development). A sigla USAID traduzida para o português é Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional. Os anos 1950 e 1960 foram marcados por um intenso debate sobre a educação brasileira. Muitos intelectuais e movimentos sociais formularam propostas para a organização de um sistema nacional de ensino mais democrático e popular, que superasse as desigualdades socioculturais, formasse cidadãos consciente de seus direitos e preparados para desafios econômicos. O Brasil era considerado uma pátria “mal-educada”, com índices de analfabetismo alarmantes. A polarização política que antecedeu ao golpe de 1964 também atingiu a educação. A sociedade brasileira fervilhava com projetos educacionais humanistas e inovadores que, mais tarde, sofreram diretamente os impactos da repressão. FONTE: <http://memoriasdaditadura.org.br/livros-sob-censura/>. Acesso em: 29 ago. 2020. ATENCAO TÓPICO 3 — A SOCIOLOGIA BRASILEIRA PÓS-1970: NOVOS OLHARES 151 Os encontros dos profissionais da educação superior brasileira com os técnicos estadunidenses, resultaram na produção do Relatório Meira Matos, nome do coronel do exército que o redigiu, orientando a reforma universitária e do ensino fundamental em nosso país. Em âmbito universitário, a medida fundamental imposta pelos militares era a redução dos custos com os estudantes. Ou seja, o referido relatório estabelecia o enxugamento dos recursos destinados à educação superior pública a fim de não comprometer os demais orçamentos do ministério da educação. FIGURA 13 – REFLEXÃO ACERCA DAS REPRESSÕES CONTRA A EDUCAÇÃO E A REFORMA UNIVERSITÁRIA INSTITUÍDA PELO REGIME MILITAR NO BRASIL FONTE: <https://s1.static.brasilescola.uol.com.br/be/conteudo/images/dm10(1).jpg>. Acesso em: 29 ago. 2020. A fim de melhor compreendermos os acontecimentos que interferiram na dinâmica educacional brasileira do período militar, sugerimos que assista ao documentário Educação na Ditadura: a marca da repressão, disponível na plataforma YouTube, por meio do endereço: https://www.youtube.com/watch?v=YqDgaGNDads&ab_channel=UNIVESP. Nele temos acesso a uma série de entrevistas com especialistas sobre o assunto, que remontam as principais mudanças e retrocessos que a ditadura militar brasileira provocou ao modelo educacional do país. DICAS Rosa, Ribeiro Júnior e Torres (2018) identificam em sua obra uma tendência à adoção de métodos educacionais estadunidenses em escolas brasileiras, semelhante ao que ocorreu durante o regime militar brasileiro. Esse fato evidencia que o modelo educacional implementado durante a ditadura militar ainda possui resquícios na educação contemporânea. 152 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA O ponto que mais chama a atenção na tentativa de implementação de políticas educacionais estrangeiras, principalmente estadunidenses, revela o despreparo ou, até mesmo, a falta de interesse e nosso corpo político em uma educação libertadora para o nosso povo. Uma educação desconectada de nossa realidade material e nossa cultura, representa um grande perigo ao desenvolvimento de nosso povo, que fica à mercê das demandas políticas e econômicas de países imperialistas. A perseguição aos ideais marxistas, que se contrapunham à exploração do trabalho, à desigualdade e à miséria a qual é submetido nosso povo, foi um dos fatores que mais influenciaram os moldes educacionais brasileiros durante a ditadura militar. A educação superior foi a mais lesada com essa disputa ideológica que resultou em censuras de obras de diversas naturezas, destruição de acervos inteiros de livros, perseguição, exílio, tortura e morte de intelectuais, dentre uma infinidade de outras barbaridades cometidas pelos militares em solo brasileiro. O regime militar foi responsável por muitas modificações nas diretrizes básicas da educação brasileira. A Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, marca um momento de inserção da ideologia dos ditadores por meio da educação pública.Um dos artigos dessa legislação educacional, implementada no início da década de 1970, propõe o ensino de novas disciplinas como Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde como instrumentos de doutrinação a favor dos interesses dos dominadores. Observe: Art. 7º Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de lº e 2º graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto-Lei n. 369, de 12 de setembro de 1969. (Vide Decreto nº 69.450, de 1971) (BRASIL, 1971). Livros são fundamentais para a formação cultural e política da população, para a preservação da memória dos povos, além de serem essenciais para a educação. O regime militar brasileiro impôs a censura contra livros que considerava perigosos, subversivos ou imorais. Nessa sessão, você conhecerá uma “biblioteca proibida” de livros censurados e saberá o que os censores escreviam sobre essas obras. Ao mesmo tempo, a ditadura sustentou a modernização de grandes grupos editoriais, favorecendo a concentração do poder econômico nas mãos de poucos empresários. Mas para os militares, censurar os livros não era suficiente: era preciso incentivar uma modernização editorial com controle político rígido. Essa ação se fez com o apoio à indústria gráfica e à produção de papel, além da criação de programas governamentais de compra de livros escolares, que favoreceram determinadas empresas e difundiram manuais alinhados com os valores conservadores. FONTE: http://memoriasdaditadura.org.br/livros-sob-censura/ Acesso em: 29 ago. 2020. IMPORTANT E TÓPICO 3 — A SOCIOLOGIA BRASILEIRA PÓS-1970: NOVOS OLHARES 153 A introdução dessas novas disciplinas foi acompanhada do deslocamento das disciplinas de Filosofia e Sociologia. Isso se deve ao fato de que os principais nomes tributários de tais campos do saber, que outrora tinham seus conteúdos lecionados de maneira obrigatória nas escolas públicas brasileiras, eram considerados subversivos à ideologia dos ditadores daquele período sombrio, violento e opressivo pelo qual o Brasil passou ao ser submetido ao governo militar compulsório. FIGURA 14 – MANIFESTO ESTUDANTIL BRASILEIRO FONTE: <https://cutt.ly/7gYvDVs>. Acesso em: 30 ago. 2020. Da década de 1940 até a de 1970, a Sociologia conseguiu alcançar um nível de institucionalização mais avançado em todo o mundo. Tal processo implicou em um grau maior de formalização da disciplina dentro e fora das universidades. Isso quer dizer que a Sociologia recebeu maior atenção em diversas partes do mundo, sendo concebida como um campo independente do conhecimento em vários países. Até então, os estudos sociológicos haviam alcançado um momento de maior cientificidade e desprendimento de ideologias em relação aos períodos ante- riores. Ou seja, nascia uma ciência livre de utilitarismos e voltada muito mais à com- preensão dos fenômenos sociais do que a busca pelo enriquecimento, por exemplo. Em síntese, entre 1940 e 1970 a sociologia parecia estar assentada sobre bases sólidas. Predominou neste contexto uma preocupação de identificar e defender um paradigma teórico particular que consubstanciasse os princípios básicos da epistemologia sociológica. Embora não fosse consensual, havia por parte de muitos sociólogos um acordo tácito de que os princípios morfológicos básicos sobre os quais assentavam cientificamente o entendimento do mundo social – o grau de generalizações abstratas e universais, tanto a nível conceitual quanto metodológico – já estavam construídos ou parcialmente construídos. Nessa perspectiva, a sociologia estava entrando finalmente nos “eixos”, isto é, em processo de rigorosa delimitação do seu campo científico, cuja plena consolidação poderia estabelecer mútuas conexões entre as diferentes orientações teóricas existentes. A sociologia marchava a largos passos para finalmente atingir um estágio tão desejado de maior maturidade científica: desvincular-se definitivamente das tradições filosóficas e ideológicas. A vitória do sonho comtiano [...] (ALVES, 2010, p. 18-19). 154 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA A partir da década de 1970, o Brasil viveu a chamada Crise da Sociologia. O regime militar brasileiro foi um dos principais fatores que contribuíram para a emergência dessa crise. O choque cultural vivenciado no Brasil dos anos 1960 e a intervenção dos militares na política foram fatores que contribuíram com o declínio da Sociologia, considerada, dentre outros campos do saber, uma disciplina subversiva em relação aos preceitos dominantes. Em outras palavras, a Sociologia representava uma ameaça à ordem instaurada pelo regime ditatorial. Sendo assim, o governo dos militares instaurou uma série de reformas ao ensino da Sociologia, sobretudo o ensino universitário, adequando-o aos interesses capitalistas voltados ao crescimento econômico e alinhando seus métodos aos difundidos pela maioria das potências econômicas do mundo: os Estados Unidos da América. A chamada crise da sociologia dos anos 1970 é um fenômeno complexo, pois abarcou aspectos muitos diferentes do universo intelectual, social e político do mundo ocidental. Embora os estudos sobre esse período se utilizem de diferentes perspectivas interpretativas (Marsal, 1977; Picó, 2003), há um certo consenso de que a “crise” da sociologia desse período foi decorrente de mudanças culturais e de valores desenvolvidos pelos diversos movimentos sociais ocorridos na década de 1960. Muitos desses movimentos assinalavam para uma “revolução cultural” plasmada pelas transformações das condições materiais, de estilos de vida, de liberdades pessoais, explicitando os desajustes entre a estrutura institucional da sociedade civil (como a universidade) e uma educação mais permissiva e democrática. Exemplo significativo é a “revolta estudantil” dos anos 1960 que, para a constituição do campo sociológico, foi uma das mais expressivas, pois, entre outros aspectos, colocou em questão a qualidade do ensino, a estreiteza das estruturas científicas, a deterioração das funções universitárias e o predomínio da sociedade tecnocrática (ALVES, 2010, p. 19). O ensino dos anos 1970 passava a receber fomento estrangeiro, ou seja, incentivos financeiros por parte de outros países, principalmente os Estados Unidos, para que seus objetos de investigação estivessem muito mais voltados ao crescimento econômico daquele país do que quaisquer outros temas. A Sociologia estava perdendo seu caráter filosófico, as reflexões incentivadas pelos financiadores de nossas pesquisas, estavam muito mais interessados na produção de riquezas do que no avanço intelectual do ser humano. Nesse contexto, a sociologia objeto de ataque: pela sua colaboração com os planos reformistas; pela sua identificação com a teoria funcionalista americana; pelo seu “sociologismo” e fechamento às indagações filosóficas; pelo seu caráter nomotético e uni-paradigmático. Além do mais, a nível teórico, os movimentos sociais levantaram questões importantes. Uma delas é referente à história: são os atores sociais que constituem o sujeito da história ou a história é dotada de uma lógica imanente, constituindo um processo sem sujeito? (ALVES, 2010, p. 19-20). TÓPICO 3 — A SOCIOLOGIA BRASILEIRA PÓS-1970: NOVOS OLHARES 155 Até os anos 1970, as Ciências Sociais foram forjadas de forma a atender aos interesses reformistas dos militares no Brasil. Já, durante as décadas de 1970 e 1980, a Sociologia passa por transformações e retornam, em certa medida, aos seus moldes mais voltados ao entendimento da sociedade e seus fenômenos, desprendendo-se dos interesses estritamente dominadores e economicistas de tempos de ditadura. Sendo assim, a Sociologia retoma seu fluxo evolutivo, de maneira limitada, devido aos mandos e desmandos dos militares em nosso território, porém, retomando aos objetos de estudo anteriores e lançando mãode novas pesquisas. Sobre a manipulação das Ciências Sociais dos anos 1960 até 1970, Alves (2010, p. 28) afere que: Essa situação sofre mudanças substanciais a partir das décadas de 1970 e 1980. Com o relativo declínio do funcionalismo nos Estados Unidos e do estruturalismo na Europa, aparecem ou emergem orientações teóricas novas ou parcialmente excluídas do panteão acadêmico. Digno de nota é a preocupação que os teóricos passam a ter pela integração das dicotomias estabelecidas nas ciências sociais. Há um renovado retorno aos seus clássicos, novas propostas de sínteses teóricas são formuladas e, inevitavelmente, ressurge a preocupação com a metateorização, isto é, pelo questionamento das estruturas subjacentes à teoria. O movimento autoreflexivo, que os cientistas sociais passam a demonstrar, fez com que houvesse um retorno à filosofia. Autores mais alinhados com a filosofia do que propriamente com a sociologia – como Schutz, Merleau- Ponty, Paul Ricoeur, Michel Serres, Foucault, Habermas, Charles Taylor e Castoriadis – fazem usualmente parte nos programas das disciplinas sociológicas. Por outro lado, cientistas como Bourdieu, Giddens, Luhmann, Jeffrey Alexander escrevem artigos de caráter eminentemente filosófico. Nesse contexto, a teoria da ação social recebe novo impulso, resultando na expansão do campo conceitual das ciências sociais e, com isso, inaugurando novas problemáticas. A Sociologia Brasileira passa, a partir das décadas de 1970 e 1980, a receber maiores influências de autores, sobretudo europeus, que realizavam abordagens mais voltada à questão das subjetividades, liberdades individuais entre outras. Além disso, emerge uma interdisciplinaridade no interior da Sociologia que transcende o espaço, até mesmo, das Ciências Humanas. Estariam inseridas nos estudos sociológicos, com cada vez mais frequência, problemáticas que adentram temas mais comumente abordados nas Ciências da Natureza, Filosofia, Medicina dentre outras áreas do conhecimento humano. No presente trabalho, procuramos refletir sobre dois pontos. O primeiro refere-se ao processo de transformação da sociologia iniciado nas décadas de 1970 e 1980. Observamos que as ciências sociais (e com elas, a sociologia) perderam a relativa uniformidade disciplinar. Mais especificamente, houve uma diminuição do nível de consenso em torno das linhas de demarcação entre as ciências, sem que com isso tenha se eliminado a disciplinarização. A sociologia tem cada vez mais assumido um caráter multidisciplinar. Como resultado desse processo – e aí talvez esteja a grande novidade das ciências sociais contemporâneas – é o estabelecimento da reconciliação e novas alianças entre posições até então tidas como antinômicas entre ciências da natureza, ciências humanas e filosofia. As novas configurações que emergem das pesquisas em curso são usualmente atravessadas por polaridades múltiplas (ALVES, 2010, p. 28). 156 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA FIGURA 15 - REFLEXÃO SOBRE A REPRESSÃO AOS INTERESSES ESTUDANTIS CONSIDERADOS SUBVERSIVOS PELO REGIME MILITAR BRASILEIRO FONTE: <https://static.poder360.com.br/2018/12/Top-Midia-1-868x644.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2020. A Sociologia Brasileira contemporânea está em seu ponto culminante, em termos de abordagens. Nunca se estudou a multiplicidade de temas como hoje. A Sociologia, hoje, transcende o campo estritamente sociológico do saber, adentrando as mais diversas áreas do conhecimento, uma vez que quase todo fenômeno, ou objeto da realidade, pode influenciar a sociedade e, consequentemente, a maneira com a qual vivemos. Feita a ressalva, podemos dizer que, partindo das discussões genéricas, da divulgação e das “teorias gerais do Brasil”, a Sociologia se configurou afinal entre nós como disciplina caracterizada, embora sincrética, praticada cada vez mais por especialistas. Hoje é possível a formação adequada do sociólogo entre nós, devido à organização do ensino, relativa densidade do meio científico e solicitação crescente da sociedade, em fase de grande progresso técnico e consequente racionalização nos setores administrativo, assistencial e de planejamento. É fora de dúvida que a sociologia brasileira já existe como bloco, o que se verifica pela posição internacional que vem adquirindo aos poucos. Até aqui, projetava-se fora do país este ou aquele sociólogo, destacado como exceção graças ao mérito pessoal; hoje, sem prejuízo disso, é a nossa sociologia que começa a projetar-se em conjunto (CANDIDO, 2006, p. 301). O trecho anterior reflete sobre o recente despertar do interesse do estabelecimento de uma Sociologia do Brasil e a formação de um ponto de vista sociológico legitimamente brasileiro. Assumir uma abordagem mais brasileira significa nos aproximarmos ainda mais de nossa realidade, afinal, o Brasil é um país de sociedade com inúmeras peculiaridades em relação ao resto do mundo. Aprender sobre a dinâmica social brasileira é de suma importância, principalmente para os pesquisadores, militantes, políticos e outros profissionais que almejam direcionar seus trabalhos à melhoria de nossa sociedade. Hoje observamos uma grande demanda por estudos sociais e políticos, tendo em vista a multiplicidade de crises que vivemos hodiernamente. Os novos movimentos sociais despertam, a cada dia que passa, o interesse por temáticas sociológicas que TÓPICO 3 — A SOCIOLOGIA BRASILEIRA PÓS-1970: NOVOS OLHARES 157 auxiliam no processo de libertação de nosso povo, na ampliação das liberdades individuais, no combate à miséria e à violência, dentre outras inúmeras possíveis intervenções. Os estudos sociais brasileiros e latino-americanos podem nos servir de ferramentas utilizadas a favor da mudança de paradigmas que dificultam o desenvolvimento da humanidade, tanto daqui, como de todo o Planeta. O Brasil é um país que possui potencial para sustentar e alavancar o desenvolvimento humano durante muito tempo. Isso se deve ao fato de que nosso país possui uma vasta bacia hidrográfica, grande remanescente da Floresta Amazônica, muitos recursos minerais e muitos outros. Devido à crescente exploração irracional de tal riqueza, sobretudo durante os últimos governos brasileiros, estamos correndo o risco de perder tudo isso devido à má gestão do país por parte de governantes despreparados e políticas voltadas ao enriquecimento de uma minoria de pessoas. Sendo assim, é dever de todo o indivíduo e coletivo que almeja melhores condições de vida para os seres humanos, estudar nossa história e conjuntura política e social. FIGURA 16 – PINTURA DE JOAQUÍN TORRES GARCÍA QUE REPRESENTA A IMPORTÂNCIA DA AMÉRICA DO SUL PARA OS SERES HUMANOS FONTE: <https://iberoamericasocial.com/wp-content/uploads/2018/04/America-Invertida.jpg>. Acesso em: 30 ago. 2020. A Teoria da Dependência da América Latina foi um esforço intelectual de diversos pensadores latino-americanos que, trabalhando conjuntamente, elaboraram a tese de que: 158 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA Se a teoria do desenvolvimento e do subdesenvolvimento eram o resultado da superação do domínio colonial e do aparecimento de burguesias locais desejosas de encontrar o seu caminho de participação na expansão do capitalismo mundial; a teoria da dependência, surgida na segunda metade da década de 1960, representou um esforço crítico para compreender a limitações de um desenvolvimento iniciado num período histórico em que a economia mundial estava já constituída sob a hegemonia de enormes grupos econômicos e poderosas forças imperialistas, mesmo quando uma parte delas entrava em crise e abria oportunidade para o processo de descolonização (SANTOS, 2020, p. 18). Outro tributário da Teoria da Dependência é Ruy Mauro Marini (2011) que, em sua obra, reflete dentre outros aspectos da dependência latino-americana, a crise do socialismo europeu, a revolução técnico científica e a ascensão da doutrina neoliberal, que boicotaram com os ideais e as políticas emancipadorasemergentes na América Latina do século XX. Conforme o autor, a economia de mercado impõe, contemporaneamente, políticas que perpetuam o subdesenvolvimento desses países, fundamentais à expansão e manutenção do capitalismo moderno. A crise do socialismo europeu, a revolução técnico-científica e a difusão da doutrina neoliberal puseram em xeque, nos anos de 1980, os pontos de referência que se valiam os meios políticos e intelectuais mais progressistas da América Latina para pensar o futuro da região: os conceitos de desenvolvimento e de dependência. Seu lugar é ocupado hoje por palavras de ordem, entre os quais se destacam a economia de mercado, a inserção n processo mundial de globalização e a redução do Estado (MARINI, 2011, p. 213). André Gunder Frank é outro pensador que contribuiu com a Teoria da Dependência. Dentre outras contribuições, Frank (2005) contextualiza a formação do Brasil como resultado de forças mercantis capitalistas globais. O autor também é tributário da ideia de que as condições de desenvolvimento de nosso país fazem parte da natureza do sistema sócio-político- econômico capitalista, que produz a própria condição de desenvolvimento e subdesenvolvimento dos países que fazem parte dessa trama. O Brasil, em seu conjunto, por mais feudais que suas características possam parecer, deve sua formação e sua natureza atual à expansão e ao desenvolvimento de um único sistema mercantil-capitalista que alcança (hoje com exceção dos países socialistas) o mundo inteiro. [...] este sistema capitalista, em todo tempo e lugar – e é de sua natureza que assim seja –, produz desenvolvimento e subdesenvolvimento. Um é tão produto do sistema “capitalista” como o outro. [...] Chamar “capitalista” ao desenvolvimento e atribuir o subdesenvolvimento ao “feudalismo” é uma incompreensão séria que conduz aos mais graves erros políticos (FRANK, 2005, p. 58). Vânia Bambirra é uma intelectual brasileira que também fez parte do processo de desenvolvimento da Teoria da Dependência. Em uma entrevista, a autora marxista conta um pouco da trajetória do grupo de pensadores que compuseram essa importante teoria que nos ajuda a compreender o processo TÓPICO 3 — A SOCIOLOGIA BRASILEIRA PÓS-1970: NOVOS OLHARES 159 histórico pelo qual o Brasil esteve e está inserido. A partir da compreensão de tal processo histórico é possível entender melhor as condições de desenvolvimento de nosso país, condições que podem ajudar a explicar nossas disparidades sociais. E a gente então começou, era um grupo grande, era muita gente envolvida... nós começamos [a estudar O Capital [...] fomos interrompidos pelo golpe [...] A ideia da teoria da dependência não tinha desabrochado. Claro que nas teses da Polop já havia, já se percebia, já estava anotado que as burguesias nacionais eram vinculadas ao imperialismo, a ideia da classe dominante dominada, que a gente vai desenvolver depois no Chile... Eu me lembro que você me perguntou pelo telefone... se por acaso a teoria da dependência tinha surgido na UnB. Eu digo que não, que realmente ela desabrochou, a equipe mesmo... foi composta na Faculdade de Economia da Universidade do Chile e no Centro de Estudios Socio-Económico (Ceso) (BAMBIRRA, 2013, p. 32). O ex-presidente da República brasileira, Fernando Henrique Cardoso, é um grande sociólogo adepto da Teoria da Dependência que acredita que a solução da maioria de nossos problemas sociais seria uma mudança política radical. O autor acredita que uma das vias transformadoras de nossas condições de pobreza e desigualdade se manifestaria sob a forma de uma revolução socialista. As alternativas que se apresentariam, excluindo-se a abertura do mercado interno para fora, isto é, para os capitais estrangeiros, seriam todas inconsistentes, como o são na realidade, salvo se se admite a hipótese de uma mudança política radical para o socialismo (CARDOSO; FALETTO, 1977, p. 120). O estudo dos autores mencionados anteriormente e suas respectivas teorias são de fundamental importância no que tange ao conhecimento da dinâmica social brasileira, sobretudo acerca do processo histórico no qual o Brasil está inserido e que resultou nas desigualdades que vivemos contemporaneamente. A Teoria da Dependência é uma das grandes teorias sobre o desenvolvimento e subdesenvolvimento dos países que compõem a América Latina, portanto, cabe reforçarmos nossa compreensão do referido tema com uma leitura complementar de um dos grandes tributários desse pensamento. 160 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA SUBDESENVOLVIMENTO E REVOLUÇÃO Ruy Mauro Mariani A história do subdesenvolvimento latino-americano é a história do desen- volvimento do sistema capitalista mundial. Seu estudo é indispensável para quem deseje compreender a situação que este sistema enfrenta atualmente e as perspecti- vas que a ele se abrem. Inversamente, apenas a compreensão segura da evolução da economia capitalista mundial e dos mecanismos que a caracterizam proporciona o marco adequado para situar e analisar a problemática da América Latina. As simplificações nas quais, por sua limitação natural, este trabalho possa incorrer não devem fazer o leitor esquecer esta premissa fundamental. A vinculação ao mercado mundial A América Latina surge como tal ao se incorporar no sistema capitalista em formação, isto é, no momento da expansão mercantilista europeia do século XVI. A decadência dos países ibéricos, que primeiro se apossaram dos territórios americanos, engendra aqui situações conflitivas, derivadas dos avanços das demais potências europeias. É a Inglaterra, mediante sua dominação imposta sobre Portugal e Espanha, que finalmente prevalece no controle e na exploração desses territórios. No decorrer dos três primeiros quartos do século XIX, e concomitantemente à afirmação definitiva do capitalismo industrial na Europa – principalmente na Inglaterra –, a região latino-americana é chamada a uma participação mais ativa no mercado mundial, como produtora de matérias-primas e como consumidora de uma parte da produção leve europeia. A ruptura do monopólio colonial ibérico se torna então uma necessidade e, com isso, desencadeia-se o processo de independência política, cujo ciclo termina praticamente ao final do primeiro quarto do século XIX, dando como resultado as fronteiras nacionais em geral ainda vigentes em nossos dias. A partir desse momento se dá a integração dinâmica dos novos países ao mercado mundial, assumindo duas modalidades que correspondem às condições reais de cada país para realizar tal integração e às transformações que esta vai sofrendo em função do avanço da industrialização nos países centrais. Assim, num primeiro momento, os países que respondem mais prontamente às exigências da demanda internacional são aqueles que apresentam certa infraestrutura econômica, desenvolvida na fase colonial, e que se mostram capazes de criar condições políticas relativamente estáveis. Chile, Brasil e, pouco depois, Argentina aumentam sensivelmente neste período seu comércio com as metrópoles europeias, baseado na exportação de alimentos e matérias-primas como cereais, cobre, açúcar, café, carnes, couro e lã. LEITURA COMPLEMENTAR TÓPICO 3 — A SOCIOLOGIA BRASILEIRA PÓS-1970: NOVOS OLHARES 161 Paralelamente, utilizando inclusive o crédito oferecido pela Inglaterra, aumentam suas importações de bens de consumo não duráveis e dão início à construção de um sistema de transporte, através de obras portuárias e das primeiras ferrovias, abrindo assim um mercado complementar à incipiente produção pesada europeia. A partir de 1875 certas mudanças no capitalismo internacional se fazem sentir. Novas potências se projetam para o exterior, em especial a Alemanha e os Estados Unidos, e este último país começa a instaurar uma política própria no continente americano, muitas vezes em choque com os interesses britânicos. No próprio campo do comércio, a influência estadunidense é considerável, tornandoperceptível em alguns países, principalmente no Brasil, a tendência a direcionar suas exportações para a nova potência do norte. Nos países centrais, por sua vez, aumenta o desenvolvimento da indústria pesada, com a tecnologia que lhe corresponde, e a economia se orienta a uma maior concentração das unidades produtivas, dando lugar ao surgimento dos monopólios. Esses traços, gerados pela acumulação capitalista realizada nas etapas anteriores, aceleram o processo e forçam o capital a buscar campos de aplicação fora das fronteiras nacionais, mediante empréstimos públicos e privados, financiamentos, aplicação em ações e, em menor medida, investimentos diretos. Portanto, diferentemente dos créditos externos utilizados antes e que correspondiam a operações comerciais compensatórias, a função que assume agora o capital estrangeiro na América Latina é subtrair abertamente uma parte da mais- valia criada dentro de cada economia nacional, o que aumenta a concentração do capital nas economias centrais e alimenta o processo de expansão imperialista. Em parte pelo efeito multiplicador da infraestrutura de transportes e pelo afluxo de capital estrangeiro, mas principalmente devido à aceleração do processo de industrialização e urbanização nos países centrais, que infla a demanda mundial de matérias-primas e alimentos, a economia exportadora latino-americana conhece um auge sem precedentes. Esse auge está, no entanto, marcado por um aprofundamento de sua dependência frente aos países industriais, a tal ponto que os novos países que se vinculam de maneira dinâmica ao mercado mundial desenvolvem uma modalidade particular de integração. Efetivamente, o desenvolvimento do principal setor de exportação tende, nos países dependentes, a ser assegurado pelo capital estrangeiro através de investimentos diretos, deixando às classes dominantes nacionais o controle de atividades secundárias de exportação ou a exploração do mercado interno. Mesmo os países que haviam se integrado de forma dinâmica à economia capitalista em sua fase anterior veem seu principal produto de exportação cair nas mãos do capital estrangeiro - como é o caso do Chile, primeiro com o salitre e logo com o cobre, ou da Argentina com os frigoríficos e do Brasil com o controle da exportação de café. 162 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA Ainda que não transforme fundamentalmente o princípio sobre o qual se assenta a economia dependente latino-americana, esse processo tem implicações de certo alcance. De fato, em contraste com o que ocorre nos países capitalistas centrais, onde a atividade econômica está subordinada à relação existente entre as taxas internas de mais-valia e de investimento, nos países dependentes o mecanismo econômico básico provém da relação exportação-importação, de modo que, mesmo que seja obtida no interior da economia, a mais-valia se realiza na esfera do mercado externo, mediante a atividade de exportação, e se traduz em rendas que se aplicam, em sua maior parte, nas importações. A diferença entre o valor das exportações e das importações, ou seja, o excedente passível de ser investido, sofre, portanto, a ação direta de fatores externos à economia nacional. Contudo, nos países em que a atividade principal de exportação está sob o controle das classes dominantes locais existe uma certa autonomia das decisões de investimento – condicionada, evidentemente, pela dependência da economia frente ao mercado mundial. Em geral, o excedente é aplicado no setor mais rentável da economia, que é precisamente a atividade de exportação que mais excedente produziu (o que explica a afirmação sobre a tendência à monoprodução); porém, para atender o consumo das camadas da população que não têm acesso aos bens importados, ou então como defesa contra as crises cíclicas que afetam regularmente as economias centrais, parte do excedente se orienta também para atividades vinculadas ao mercado interno. Por isso, em alguns países – como a Argentina, o Brasil ou o Uruguai –, ao lado de uma indústria vinculada essencialmente à exportação (frigorífico, moinhos etc.), desenvolve-se uma indústria leve que produz para o mercado interno, indo além do nível artesanal e dando lugar, progressivamente, à implementação de núcleos fabris de relativa importância. E diferente a situação dos países em que a principal atividade de exportação se encontra nas mãos de capitalistas estrangeiros. A mais-valia colhida na esfera do comércio mundial pertence a capitalistas estrangeiros, e apenas uma parte dela – cuja magnitude varia de acordo com o poder de barganha de cada setor – passa à economia nacional através de tributos e impostos pagos ao Estado. Daqui se derivam duas consequências: redistribuída às classes dominantes locais – que por isso disputam o controle do Estado –, essa parte da mais-valia se converte em demanda de bens importados, reduzindo consideravelmente o excedente passível de ser reinvestido; do mesmo modo, a parte da mais-valia que permanece em mãos do capitalista estrangeiro somente é investida no país se as condições da economia central assim exigirem. Partes substanciais da mais-valia são subtraídas do país através da exportação de lucros e, nos ciclos de depressão na metrópole, ela é transferida integralmente. Deste modo, com maior ou menor grau de dependência, a economia que se cria nos países latino-americanos, ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do seguinte, é uma economia exportadora, especializada na produção de alguns poucos bens primários. Uma parte variável da mais-valia que aqui se produz é drenada para as economias centrais, pela estrutura de preços vigente no mercado mundial, pelas práticas financeiras impostas por essas economias ou pela da ação direta dos investidores estrangeiros no campo da produção. TÓPICO 3 — A SOCIOLOGIA BRASILEIRA PÓS-1970: NOVOS OLHARES 163 As classes dominantes locais tratam de se ressarcir desta perda aumentando o valor absoluto da mais-valia criada pelos trabalhadores agrícolas ou mineiros, submetendo-os a um processo de superexploração. A superexploração do trabalho constitui, portanto, o princípio fundamental da economia subdesenvolvida, com tudo que isso implica em matéria de baixos salários, falta de oportunidades de emprego, analfabetismo, subnutrição e repressão policial. A integração imperialista dos sistemas de produção A consolidação do imperialismo como forma dominante do capitalismo internacional não ocorre de forma tranquila. No curso de sua evolução terá que passar por um período extremamente difícil, que se abre com a guerra de partilha colonial de 1914, avança com a desorganização imposta ao mercado mundial pela crise de 1929 e culmina com a guerra pela hegemonia mundial de 1939. A economia que emerge deste processo reestabelece a tendência integradora do imperialismo, mas agora em nível mais alto do que o anterior, na medida em que consolida definitivamente a integração na esfera do mercado e impulsiona a etapa da integração dos sistemas de produção compreendidos em seu raio de ação. Em seu aspecto mais global, este processo dá lugar a tendências contraditórias. Por um lado, reforça o sistema imperialista, conformando um centro hegemônico de poder – os Estados Unidos – que impulsiona e coordena a integração, garantindo-a com seu poder militar. Por outro lado, conduz ao surgimento de um campo de forças opostas; o campo socialista, que nasce e se desenvolve no fogo dos conflitos engendrados pela própria integração imperialista. Dada a limitação deste ensaio à análise do que acontece no interior do sistema imperialista, não podemos aprofundar o estudo dos fenômenos específicos que se verificam nas economias centrais. Assinalemos apenas que o processo de integração se acompanhada de uma expansão acelerada do setor de bens de capital, particularmente notável nas indústrias que, dentro deste setor, encontram-se vinculadas à produção bélica. Paralelamente ocorre uma hipertrofiado aparelho estatal, que se converte no principal agente de produção e consumo da economia, especialmente no que se refere à indústria de guerra. Se bem é certo que a estatização e a militarização imperialistas se realizam em função do campo socialista, também é certo que obedecem à própria dinâmica do sistema e expressam os mecanismos básicos que o regem. Em última instância, esta dinâmica e estes mecanismos se referem à acumulação de capital no interior do sistema, que tende a concentrar – por meio da superexploração do trabalho nas economias periféricas – partes sempre crescentes da mais-valia nos centros integradores. O aumento do excedente passível de ser investido que estes centros dispõem, por muito que seja malgasto em atividades não produtivas – como a indústria bélica e a publicidade –, acarreta um aumento constante dos investimentos diretos nas economias periféricas, através dos quais se realiza progressivamente a integração do sistema produtivo destas economias ao sistema do centro integrador. 164 UNIDADE 3 — TEMAS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA Este processo se coliga com o crescimento e a diversificação do sistema periférico. Por certo, a crise do mercado imperialista, que estoura na segunda década do século XX, tem como mais importante consequência a inviabilização da antiga forma de vinculação que antes se impunha na América Latina – a forma da economia primário-exportadora. Isso se manifesta como uma tendência permanente, que não se limita apenas aos períodos de retração do mercado mundial; pelo contrário: devido ao surgimento de novas regiões produtoras (impelido pela expansão imperialista) e ao desenvolvimento de produções similares ou substitutos artificiais nas próprias economias centrais, constantemente se reduzem as possibilidades de comércio da América Latina, ao mesmo tempo em que se reduzem os termos de troca. FONTE: MARINI, R. M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2013, p. 47-54. Dis- ponível em: http://www.unirio.br/cchs/ess/Members/debora.holanda/teorias-do-brasil-2019-01/ unidade-3/ruy-mauro-marini-subdesenvolvimento-e-revolucao/at_download/file. Acesso em: 23 out. 2020. 165 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • O desenvolvimento da Sociologia no Brasil seguiu um padrão até os anos 1960, quando a intervenção militar interveio na maneira de se pensar a sociedade brasileira por meio de reformas educacionais. • A Sociologia foi uma das disciplinas banidas do currículo escolar durante o regime ditatorial. • A reforma universitária implicou no alinhamento de professores brasileiros com especialistas estadunidenses. • A educação sofreu uma significativa redução em seus investimentos durante a ditadura militar. • O ensino da Sociologia foi considerado subversivo por representar ameaça ao modelo político ditatorial. • Dentre as transformações sofridas pela Sociologia após a intervenção militar brasileira, o foco foi no economicismo e na produção de estratégias de acumulação de riquezas por parte de classes privilegiadas. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 166 1 A Sociologia no Brasil é, tão como no restante do mundo, uma disciplina responsável pela ampliação da percepção das pessoas em relação ao funcionamento da sociedade, suas implicações políticas, as injustiças e violências cometidas pelos governantes e outras classes, dentre uma infinidade de fenômenos. O poder de desconstrução de valores petrificados e, por vezes, ultrapassados, além da capacidade de elevar os níveis de consciência e níveis de raciocínio que possui a Sociologia, foram fatores que abalaram e continuam abalando as classes dominantes de todo o mundo. Isso acontece devido à alienação à qual nosso povo é submetido, pois é necessário que o povo esteja alienado da realidade social. Isso serve para que as classes dominadoras possam explorar seu trabalho e produzir riquezas das quais os trabalhadores que a produzem, de fato, não usufruem. Considerando os aspectos mencionados anteriormente acerca da importância da Sociologia, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) A Sociologia no Brasil pode ser considerada um instrumento utilizado a favor da libertação de nosso povo, tanto do modo de produção explorador dominante, como da cultura imperialista. ( ) O ensino da Sociologia pode contribuir para a formação de governantes mais conscientes, uma vez que são produzidas teorias políticas importantes no âmbito científico/acadêmico brasileiro. ( ) O regime ditatorial no Brasil foi um fator retardante em relação ao desenvolvimento da Sociologia no Brasil. ( ) A Sociologia foi considerada uma das matérias mais importantes na época da ditadura militar brasileira, recebendo incentivos por parte do exército, da marinha e aeronáutica brasileiros. ( ) O alinhamento entre professores universitários brasileiros e estadunidenses foi uma das estratégias de dominação utilizados no período ditatorial brasileiro. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – V – V – F. b) ( ) V – V – F – V – F. c) ( ) F – F – V – V – V. d) ( ) V – F – V – F – V. e) ( ) V – V – V – F – V. 2 O regime militar brasileiro foi um grande repressor, não só do ensino da Sociologia no Brasil, mas de múltiplas manifestações artísticas e culturais de diversas naturezas. O governo ditatorial se viu obrigado a reprimir todo e qualquer tipo de manifestação que se opunha à instauração de um regime que privilegiasse classes minoritárias do Brasil e outros países que se interessavam, sobretudo, na instalação de suas empresas em nosso solo. AUTOATIVIDADE 167 Nesse contexto, emergiram muitos movimentos sociais que reivindicavam por uma grande variedade de direitos tolhidos pelos militares, lutavam contra as violências e outros abusos cometidos pelo exército. A resposta dos ditadores foi truculenta, resultando no exílio, prisão, morte e tortura de diversos professores, artistas, líderes e membros de movimentos sociais libertários e contrários ao regime instaurado no ano de 1964. Considerando os absurdos cometidos pelo regime ditatorial no Brasil, e que foram relatados em nosso material de estudo, analise as sentenças a seguir: I - Diversos professores foram expulsos do Brasil durante o regime ditatorial instaurado na década de 1960, sobretudo professores marxistas que consideravam abusivas as violências cometidas pelo regime militar. II - Dentre os professores exilados pela ditadura militar brasileira, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes foram alguns dos que continuaram atuando mesmo no exterior de nosso país. III - A Sociologia e a Filosofia foram banidas do currículo obrigatório do ensino público brasileiro durante o regime militar. IV - A Sociologia era considerada subversiva pelos ditadores militares brasileiros por denunciar os abusos e incoerências das práticas dessa classe que foi responsável pela morte e tortura de milhares de brasileiros entre as décadas de 1960 e 1980 no Brasil. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente a sentença I está correta. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) Somente a sentença III está correta. d) ( ) Somente a sentença IV está correta. e) ( ) As sentenças I, II, III e IV estão corretas. 3 Durante um longo período no Brasil, a Sociologia sofreu diversos tipos de limitação, censura e reformas que impediram que a disciplina se desenvolvesse de maneira natural. O período da ditadura militar brasileira foi um dos grandes entraves ao pleno desenvolvimento das investigações sociais brasileiras. De acordo com o que aprendemos no presente tópico, disserte acerca dos principais retrocessos que a Sociologia sofreu no período militar brasileiro. 168 REFERÊNCIAS ALVES, P. C. 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