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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Reitora Roselane Neckel Vice-Reitora Lúcia Helena Martins Pacheco EDITORA DA UFSC D iretor Executivo Fábio Lopes da Silva C onselho Editorial Fábio Lopes da Silva (Presidente) Ana Lice Brancher Carlos Eduardo Schmidt Capela Clélia M aria Lima de Mello e Campigotto Fernando Jacques Althoff Ida M ara Freire João Luiz Dornelles Bastos Luis Alberto Gómez M arilda Aparecida de Oliveira Effting Editora da UFSC Campus Universitário - Trindade Caixa Postal 476 88010-970 - Florianópolis-SC Fones: (48) 3721-9408, 3721-9605 e 3721-9686 editora@editora.ufsc.br www.editora.ufsc.br Luiz Costa Lima MÍMESIS desafio ao pensamento 2a edição revista, com nova introdução e com posfácio de Sérgio Alcides í \Ü IIÉ editora ufsc 2014 mailto:editora@editora.ufsc.br http://www.editora.ufsc.br © 2014 Luiz Costa Lima Ia ed., Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000. Direção editorial: Paulo Roberto da Silva Capa: Leonardo Gomes da Silva Editoração: Tais Andrade Massaro Revisão: Letícia Tambosi Ficha Catalográfica (Catalogação na publicação pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina) L732m Lima, Luiz Costa Mímesis : desafio ao pensamento / Luiz Costa Lima. 2. ed. rev. - Florianó polis: Ed. da UFSC, 2014. 336 p. Inclui bibliografia e índice 1. Mimese na literatura. 2. Literatura - Filosofia. I. Título. CDU: 82.09 ISBN 978-85-328-0680-2 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem prévia permissão por escrito da Editora da U FSC . Impresso no Brasil You must go on, I carít go on, I ’ll go on. Samuel Beckett, The unnamable, 1949 Wir wollen gehen; dann brauchen w ir die Reibung. Zurück aufdenn rauhen Boden! (Queremos seguir! Por isso precisam os de atrito. R egressar à terra áspera) Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, #107,1953, texto póstumo, edit. por G. E. M. Ascombe, G. H. von Wright, R. Rhees 306 M ÍMESIS: DESAFIO AO PENSAMENTO X EN O FO N T E : M emorabilia, trad . e anotações de A. L. B onnette , C ornell U niversity Press, Ithaca e Londres, 1994. Z A M M IT O , J. H.: The genesis o fK a n t ’s C ritique of judgem ent (1992), T he U niversity of C hicago Press, C hicago-L ondres. Posfácio Um livro-limite Sérgio Alcides “A mímesis, portanto, lança o sujeito para fora de si” - afirma Luiz Costa Lima na preciosa entrevista que acompanha esta segunda edição de Mímesis: desafio ao pensamento. O teórico explicava à entrevistadora, Aline Magalhães Pinto, como a atração mimética pela alteridade move um desejo específico, uma busca de identificação que se dá em nível pré-reflexivo: não é ao entendimento e sim à imaginação que esse desejo apela. Por essa fresta se insinua a própria possibilidade da ficção. A curta frase citada parece evocar todo o itinerário teórico ao qual o autor tem dedicado seus melhores esforços, há mais de três décadas. Trata-se de um arco tão vertiginoso quanto improvável: a reconsideração da mímesis, empreendida a contrapelo de todas as expectativas, quando o velho conceito grego se achava relegado ao mais completo desprezo, num momento histórico de crise das práticas culturais que ele ajudara a criar, e a partir de um ângulo periférico, no desamparo de tradições filosóficas e teóricas próprias, que acolhessem a empreitada, a qual ainda assim não poderia ser sequer esboçada sem uma ampla rediscussão das fontes mais centrais do pensamento e da literatura do Ocidente. Mímesis: desafio ao pensamento marca um dos ápices desse itinerário, ao mesmo tempo em que imprime nele um ponto de inflexão abrupto: impossível sem o que viera antes, decisivo para o que viria depois. “O que aqui se discute é um livro-lim ite” - diz Costa Lima, na mesma entrevista. O acaso não deixou de contribuir com ironias e coincidências, no momento da primeira publicação. Era o ano 2000, arredondado para a troca de milênio, às vésperas dos acontecimentos que em setembro de 2001 trariam de volta aos corações e às mentes o terror do irrepresentável e, logo, a necessidade de compreender melhor a representação. Isto, num contexto global. O contexto local também se aproximava de uma virada, com a estagnação trazida pela adoção sistemática de políticas neoliberais que prometiam enterrar para sempre o projeto oitocentista que a editora insistia em relembrar, pelo nome, de uma “civilização brasileira”. Nesse cruzamento, o aspecto mais importante da inflexão impressa por este livro diz respeito à contribuição original e inesperada que nele Costa Lima dá à crítica contemporânea à metafísica do sujeito moderno. A descoberta de que a mímesis “lança o sujeito para fora de si” obrigava o autor a também reconsiderá- 308 MÍMESIS: DESAFIO AO PENSAMENTO lo, como um passo indispensável à reconsideração maior que se desenrolava desde muito antes. Isto implicava aumentar o risco de ser tido como um especialista em trastes obsoletos. Costa Lima já era aquele que reivindicava um termo grego contra o caráter antirrepresentacional dominante no pensamento estético desde pelo menos o início do século XX . Agora chegara sua vez de questionar também a “morte do sujeito” declarada por alguns dos maiores nomes do “pós-estruturalismo”, ao som de amém nas principais universidades do mundo e do país. No entanto, seria impossível confundir a divergência aqui com o reacionarismo de quem simplesmente tapa os ouvidos, os olhos e a boca diante de tudo o que não conste no sumário de seus velhos manuais escolares. Em Costa Lima, a retomada da mímesis não significa a volta a um primado da realidade na teoria da representação; ao contrário, seus dois momentos inaugurais trataram de distingui-la da mera reprodução de semelhança (como “produção de diferença”) e dos mal-entendidos despertados pela tradução do termo grego por imitatio, em latim. Da mesma forma, ao reabrir a questão do sujeito, o autor faz o oposto do que seria um plaidoyer pela solaridade do “eu” substancial e cogitológico, fonte estável de sua identidade e de suas manifestações: o “sujeito fraturado” aqui descrito se mostra, antes, acêntrico e heterodirigido. Uma vez empreendido, o enfrentamento da questão do sujeito neste livro parece uma tendência quase espontânea do itinerário teórico que Costa Lima vinha seguindo desde que abandonara a orientação estruturalista de seus primeiros trabalhos - ao se aproximar do campo das estéticas da recepção e do efeito, no final da década de 1970. É neste sentido que se pode dizer que Mímesis: desafio ao pensamento leva a um ponto-limite as implicações despertadas na teoria do “controle do imaginário”. Esta mostrara como os modos dominantes da razão ao longo dos tempos modernos procuraram levantar barreiras aos potenciais disruptivos da imaginação, uma instância não movida nem pelo entendimento nem pela percepção sensória. Mas essa correlação não estaria inteiramente esclarecida sem o exame crítico da concepção de sujeito que está pressuposta nessa racionalidade, e que com ela se desenvolveu historicamente. O controle do imaginário se exerce exatamente a partir da ideia de um sujeito unitário, comandante de suas representações: “sendo a mímesis um modo de representação”, diz Costa Lima, “ela não passaria de uma das emanações do sujeito”. Isto nos ajuda a entender a relação de desdobramento e aprofundamento que se nota quando relemos este livro pensando nos primeiros pontos altos da retomada costalimiana da mímesis, que se dão na seqüência iniciada com O controle do imaginário: razão e imaginação no Ocidente (1984, revisto em 1989) e continuada com Sociedade e discurso ficcional (1986) e com O fingidor e o censor, no Ancien Régime, no Iluminismo e hoje (1988). E significativo que só depois de levar o “desafio ao pensamento” à zona limítrofe do “sujeito fraturado” Costa Lima tenha se animado a reunir esses três livros anteriores, em Trilogiado controle (2007). Mais que um evento P o s f á c io | UM LIVRO-LIM ITE 309 editorial e uma oportunidade de revisão, tratava-se ali de consolidar uma versão acabada. E o volume resultante saiu do prelo com esse ar de pedra fundamental, com a espessura de suas quase mil páginas. No entanto, a chegada a um limite também funda uma origem, um recomeço. Daí não ser possível compreender sem este livro os principais acréscimos que vieram depois, já neste século: História. Ficção. Literatura (2006), O controle do imaginário & a afirmação do romance (2009) e A ficção e o poema. Antonio Machado, W. H. Auden, P. Celan, Sebastião Uchoa Leite (2012). O primeiro deles reata e desenrola uma série de problemas que vinham surgindo como questões subsidiárias ao veio principal da teorização de Costa Lima, sobretudo quanto à discussão sobre os aspectos discursivos da historiografia - questão à qual o autor se dedicou com bastante intensidade nos anos 1990, mas ainda parecia uma espécie de “ponta solta” da sua obra. Salvo engano, é em Mímesis: desafio ao pensamento que o autor percebe com inteira nitidez que seu interesse pela teoria da história não era uma digressão e sim uma demanda da própria teoria do controle. Por exemplo, quanto ao privilégio do factual sobre o representacional, que liga o prestígio da história à sua disposição “montada sobre representações validadas por fatos comprováveis”. Ou quanto ao atrelamento entre a literatura e a nação: “a história nacional da literatura reintroduzira a mímesis, ainda quando, teoricamente, a renegasse (como sinônimo de imitação)”. Esses aspectos e outros serão repensados e aprofundados em conjunto na primeira parte de História. Ficção. Literatura - mas sempre a partir da base estabelecida neste livro, principalmente no que concerne à rediscussão da teoria do sujeito. Porque é neste livro que o autor destaca as conseqüências da concepção unitária do sujeito moderno, entre as quais está “o privilégio da história como a encarnação da ciência do homem pour excellence”. Sobre o segundo ponto alto entre as obras mais recentes do autor, seria possível apontar muitos laços com o legado de Mímesis: desafio ao pensamento, inclusive por se tratar de uma nova revisão da teoria do controle a partir dos ramais percorridos por Costa Lima desde o livro-limite do ano 2 0 0 0 . Era como repisar o itinerário de sua questão vital, mas usando calçados novos em folha, que permitiam a visita a desvios antes inacessíveis. Mas talvez o nexo mais arrojado se dê apenas no terceiro dos grandes livros “zerocentistas” - e é justamente com a teorização que lhe serve de abertura, sobre a “mímesis zero”. O estudo dessa formulação é particularmente sugestivo, por exemplificar bem o entra e sai das ideias de Costa Lima. “Sequer lembrava que a nomeara”, disse o autor à sua arguta entrevistadora, em 2007, antes de ele finalmente se deter sobre o assunto, alguns anos depois. No livro-limite, a “mímesis zero” aparece repentinamente, depois de uma “pequena nota” em torno de Freud, ao final do capítulo decisivo acerca do sujeito moderno. Este aparecera aí caracterizado como ser fraturado, constituidor do horizonte de expectativas onde se projeta 310 M ÍMESIS: DESAFIO AO PENSAMENTO uma “representação-efeito”, irredutível a uma cena referencial que lhe embasasse empiricamente. Diz Costa Lima que “a mímesis já traz consigo as formas sociais da realidade”, para em seguida indagar: “Mas que dizer daquele instante em que a mímesis apenas parte, sem ainda estar imantada por um objeto? Chamemos esse estado de mímesis zero”. Vinha então a leitura de “M attina”, uma espécie de poema instantâneo de Giuseppe Ungaretti. Era apenas o amanhecer de uma indagação que não poderia ter nascido antes dos conceitos de “sujeito fraturado” e “representação- efeito” - que são as principais contribuições teóricas deste livro. Praticamente isento de referências, o poema italiano prescinde de interpretação, “movimento que nasce de o receptor procurar dar sentido ao efeito que o mímema lhe proporcionou” (grifo do autor). Costa Lima então remete à perspectiva “não hermenêutica” aberta por seu interlocutor Hans Ulrich Gumbrecht, mas acaba desenhando uma noção que este certamente levaria em conta em trabalho posterior: essa “mímesis zero” estaria ligada a uma “experiência da presença”, na qual o sentido se dá sem demandar que interpretem sua base. No entanto, é como se a ideia ocorresse ao teórico brasileiro apenas como arremate para o capítulo que expunha uma visão do sujeito como “multiplicidade de fraturas”. “Em casos excepcionais”, conclui Costa Lima, “sua produção se dá entre essas próprias fraturas. Ou melhor, na simulação de um estado anterior às suas fraturas” (grifo do autor). A condição limítrofe deste livro permite então que esse mero raiar de um problema evoque uma fonte muito anterior, recuada até o momento inaugural mesmo do deslanchar da obra madura de Costa Lima. A mímesis zero, diz ele, se distingue “porque pouco deve ao mundo, mas, ao contrário cria uma situação de mundo”. Surpreendentemente, o autor então a identifica como a “mímesis da produção” teorizada em Mímesis e modernidade (1980) e aí contraposta a uma “mímesis da representação”, levando ao argumento que propunha estar a operação mimética mais voltada para a diferença do que para a semelhança. Em 2007, instigado pela pergunta recebida, o entrevistado volta a se exercitar em volta da mesma noção, que reconhece ter desaparecido de sua mente. “Hoje”, afirma, “a pensaria como a mímesis em estado puro”, ou seja, “anterior a alguma configuração concreta”. Essa pureza mimética haveria então de levar em conta os parâmetros que o teórico neste livro considerou como próprios da mímesis: “a pré- reflexividade demandante de uma identificação (o desejo)”. Era ainda bem pouco diante da primeira versão mais acabada dessa frente de trabalho, que o autor apresentou no encerramento de um ajornada Luiz Costa Lima que foi realizada em M ariana-M G, no Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto (ICHS, Ufop), em novembro de 2010. A forma final apareceu como um preâmbulo de A ficção e o poema, já desprendida da noção de pureza que se insinuara no meio-tempo, mas novamente associada, embora de outro modo, à obra de Freud. A mímesis zero já começa a ser aí delineada como concernente PdSFÁC IO | UM LIVRO-LIM ITE 311 não àphysis, ao mundo, e sim a si mesma, pela “energia que nela vibra”. O conhecedor dos primeiros meandros de O controle do imaginário certamente lembrará então da rediscussão da Poética de Aristóteles com que Costa Lima impugnou a tradição da imitatio - por excluir precisamente a enérgeia que o estagirita incluía na alçada mimética, que assim se estendia também à natura naturans, para além da natura naturata, como imitação não apenas do que já é, mas da própria possibilidade do ser em processo, da própria condição criadora da natureza. Mas a importância que Aristóteles tem para aquele momento do itinerário de Costa Lima é comparável à que Kant passará a ter justamente a partir de Mímesis: desafio ao pensamento, com a ressalva de que o pensador prussiano já tinha sido abordado com maior profundidade em obra intermediária, Limites da voz (1993, reeditada em 2005). E a ideia apenas enunciada no livro-limite poderia então ser desenvolvida, com um surpreendente cruzamento entre a estética transcendental kantiana e a teoria freudiana da libido. Entre outras operações teóricas, o autor correlaciona a teoria da sublimação da libido de Freud e a proposição da Terceira Crítica de Kant sobre o belo como “finalidade sem fim”. Argumenta Costa Lima então que a mímesis “se desvia do fim a que a libido, enquanto associada à pulsão, está condicionada” (grifo do autor). Esse desvio lhe permite “condensar sua energia no ‘corpo’ artificial que cria”, o qual assim se torna uma “finalidade sem fim”. A partir daí as pontas são reatadas com a conclusãoa que chegara um comentador de Freud, Mikkel Borch-Jacobsen, também antes citada e examinada no livro-limite: o verbo fundamental do desejo não é ter (usufruir de) e sim ser (ser como) - no que ele se equipara com o desafio da mímesis e sua irredutibilidade a uma cena referencial que a anteceda e determine. “O propósito”, explica o teórico, “não é de ter um outro” e sim “fazer surgir um outro: o ser do mímema” (COSTA LIMA, 2012, p. 27, grifo do autor). A mímesis zero, mais propriamente do que uma pureza, é teorizada por fim como um potencial inato, uma espécie de pulsão humana, independente da realidade e da própria subjetividade - instâncias que a atualização dela contribui decisivamente para configurar. Assim, este livro tem uma importância ao mesmo tempo consolidadora e inseminadora - e é esta a especificidade contida na sua condição limítrofe. O que em nada diminui as contribuições inestimáveis que foram geradas nessa mesma interseção entre o já feito e o por fazer. Sobressaem aí os conceitos de “sujeito fraturado” e “representação-efeito”. A articulação entre ambos é torneada de um modo tão habilidoso que só pode ser descrito com uma palavra: elegância. Uma simples frase basta para explicitá-la, apesar da extrema complexidade que ela oculta: "Muito embora a representação-efeito continue a ter como sede engendradora o sujeito, sua tematização perturbava a concepção de um sujeito unitário”. Daí que esses dois construtos teóricos indefectivelmente costalimianos brotem um do outro e se entrelacem numa espécie de dança que só foi possível porque Costa Lima decidiu aceitar o “desafio ao pensamento” levantado pela mímesis.
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