Buscar

Revista_Brasileira_de_Literatura_Comparada_-_05

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 209 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 209 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 209 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-0103-6963l é uma publicação 
anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralicl. entidade civil de 
caráter cultural que congrega professores universitários. pesquisadores e estudiosos de 
Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. 
DIRETORIA 1998-2000 
Presidente: Evelina Hoisel (UFBA); Vice-Presidente: Eneida Leal Cunha (UFBA) 
Primeira Secretária: Ana Rosa Ramos (UFBA); Segunda Secretária: Liv Sovik (UFBA) 
Primeira Tesoureira: Antonia Herrera (UFBA); Segunda Tesoureira: Maria de Lourdes 
Netto Simões (UESC) 
CONSELHO 
Beatriz Resende (UFRJ); Eduardo Coutinho (UFRJ); Gilda Neves da Silva (CFRGS) 
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFMS); Raul Antelo (UFSC); 
Reinaldo Martins (UFMG); Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC) 
Renato Cordeiro Gomes (PUC-RI); Suplentes: Maria Luisa B. da Silva (UFRGS) 
Vera Lúcia Romariz de Araújo (UFAL) 
CONSELHO EDITORIAL 
Benedito Nunes, Bóris Schnaiderrnann, Dirce Cortes Riedel, Eneida Maria de Souza, 
Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar, 
Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raúl Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, 
Tania Franco Carvalhal, Yves Chevrel. 
Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva responsabilidade 
de seus autores. 
© 2000. Associação Brasileira de Literatura Comparada. 
Todos os direitos reservados. 
Nenhuma partedesta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais 
forem os meios empregados, sem permissão por escrito. 
Revisão 
Cássia Lopes 
Jane Lemos 
Editoração 
Bete Capinan 
Impressão 
Tiragem 
1000 exemplares 
Apoio 
Instituto de Letras 
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação 
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA FONTE 
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ 
R349 Revista brasileira de literatura comparada. - N. 1 (1991) - Rio de Janeiro: 
Abralic, 2000 - v. 
Anual 
Descrição baseada em: N. 3 (1996) 
ISSN 0103-6963 
1 Literatura comparada - Periódicos. I Associação Brasileira de Literatura 
Comparada. 
CDD 809.005 
CDU 82.091 (05) 
Apresentação 
Os trabalhos reunidos no número cinco da Revista Brasileira de 
Literatura Comparada atestam o profícuo debate que se dissemina hoje 
no âmbito dos estudos comparatistas. A pluralidade de perspectivas, de 
abordagens teóricas e críticas dos trabalhos apresentados traduzem a 
multiplicidade de questões que caracterizam a Literatura Comparada 
neste final/início de milênio. Nesta diversidade, perpassa contudo uma 
espécie de fio condutor que enlaça os ensaios deste volume: a questão 
dos trànsitos culturais, estímulo para as reflexões sobre viagens, tradi-
ção, identidades, culturas,tradução, globalização, transnacionalidade. 
Estes temas, desenvolvidos sob o prisma da releitura e da reversão dos 
valores culturais, impõem variadas formas de diálogos que se estabele-
cem entre o local e o global, o nacional e o trasnacional, o passado e o 
contemporâneo. 
Evelina Hoise! 
Sumário 
o estatuto do poema de&critivo de Elizabeth Bishop 
Si/viano Santiago 9 
"Alteridade" desde Sartre até Bhabha: 
um surf para a história do conceito 
Ellen Spielmann 1 9 
Teoria e prática de Antonio Candido 
João Alexandre Barbosa 29 
Que faremos com esta tradição? 
Ou: relíquias da casa velha 
Renato Cordeiro Gomes 43 
Antropofagia no país de sobremesa 
Vera Lúcia F ollain de Figueiredo 5 7 
A pedra flexível do discurso: 
imagens do Brasil na Alemanha de Goethe 
MyriamÁvila 65 
Goethe, um teórico da transnacionalidade 
Eloá Heise 77 
De traduções, tradutores e 
processos de recepção literária 
Tania Franco Carvalhal 85 
Literatura e música: 
trânsitos e traduções culturais 
Solange Ribeiro de Oliveira 93 
Tránsitos intranquilos: Carlos Gardel y Carmen 
como símbolos nacionales 
Florencia Garramufío 1 O 1 
Fluidez y transformación: religión, arte y género 
en las fronteras de norte y sudamérica 
Malgorzata Oleszkiewicz 1 1 3 
Entre o global e o local: cultura popular 
do Vale do Jequitinhonha e reciclagens culturais 
Reinaldo Marques- 1 25 
8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
"Las dos Américas" de Carlos Fuentes. 
La tradición hispánica y la búsqueda deI lugar común 
Graciela M. Barberia 1 4 1 
Cultura brasileira: a África e a Índia dentro de nós 
Vera Romariz Correia de Araújo 1 49 
Nota de pé de página e espaço romanesco: 
discursos de trânsitos e traduções culturais 
em A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins 
Ilza Matias de Souza 1 65 
A vocação para o abismo: 
errância e labilidade em Clarice Lispector 
Lucia Helena 1 79 
EI discurso zapatista, 
(,un nuevo discurso o un discurso emergente? 
Alejandro Raiter e Irene Munoz 1 9 1 
'Trabalho apresentado na con-
ferência internacional "The art 
üf Elizabeth Bishop" , realiza-
da em Ouro Preto, entre os 
dias 1ge21 de maio de 1999, 
o estatuto do poema descritivo 
de Elizabeth Bishop* 
Silvia no Santiago 
Universidade Federal Fluminense 
Você faz com que me sinta analfabeta! [ ... ] Os cenários, ou 
descrições, dos meus poemas são quase sempre fatos simples 
- ou o mais próximo que consigo chegar dos fatos. Mas, 
como eu disse , acho fascinante você ver que o meu poema 
desperta tantas referências literárias em você! 
Carta de Elizabeth Bishop a Jerome Mazzaro, 
27 de abril de 1978. 
Uma das questões que a poesia de Elizabeth Bishop coloca é a do esta-
tuto epistemológico do poema descritivo na contemporaneidade, vale di-
zer, na modernidade tardia [high modernity]. De início, vamos aprovei-
tar algumas das suas próprias palavras, retrabalhando-as com rompan-
tes de sabotagem, como é de se esperar numa leitura crítica. Começarei 
por repetir, com a sua ajuda, que o poema descritivo da autora de North 
& South encena um jogo lingüístico que se passa entre a visualização 
objetiva do que "realmente aconteceu" e a sucessiva tradução sensível 
[rendering] do acontecimento privilegiado, tarefa a ser executada pela 
palavra poética. Dada a altitude da poesia em análise, esse jogo lingüís-
tico traz implícita uma obsessiva e, por isso, interminável, aposta do eu 
lírico com a busca da verdade sobre o fato descrito. 
10 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
A experiência vivida do poeta - observamos melhor - não é (e 
pode até ter sido - mas não é disso que estamos falando) gravada em 
palavras imediatamente derramadas pela folha de papel em branco, em 
consonância com o calor da hora e a espontaneidade sentimental. Seriam 
estas as características das anotações apressadas e das impressões de 
turista ou de viajante por distantes terras. A experiência vivida que se 
encaminha para a forma poema - excepcional pelo seu retomo obsessi-
vo e inadiável no cotidiano do poeta, simbólica pelo lugar soberano que 
passa a ocupar nas suas mais básicas e elevadas preocupações literárias, 
- fica gravada e aprisionada em outro e mais espaçoso e mais elástico 
lugar, como veremos, até que possa ser entregue ao leitor como poema. 
Em cima da grafia da experiência vivida, por mais fugaz que esta 
tenha sido, o poeta exerce paradoxalmente um controle a posteriori [apres 
coup] que espicha o instante da visualização, os momentos da observação 
aguda e as horas de encantamento por um longo e revivido tempo, época 
alongada por anos a fio em que se acentua o lento e metódico processo de 
trabalho com as palavras, com os versos do futuro poema. Essa luta insana 
com as palavras, trabalho propriamente poético, está situada a posteriori 
de toda e qualquer experiência de vida e é detalhe importante da poética de 
Bishop. Amigos e também poetas, como é o caso de Robert Lowell, foram 
extremamente sensíveis a ele. No poema "For Elizabeth Bishop 4", per-
gunta-lhe Lowell: "DoI you still hang your words in air, ten years/ 
unfinished, glued to your notice board, with gaps/ or empties for the 
unimaginable phrase - unerring Muse who makes the casual perfect?"l 
Essa espera silenciosa diante da grafia da experiência - marca 
do autênticolabor poético, alquimia que transforma o casual em pelfect, 
para retomar as percucientes palavras de Lowell- se dá nos bastidores 
do poema como recolhimento2 do ser na memória e na saudade. Pergun-
ta Bishop no poema "Santarém": "Claro que eu posso estar lembrando 
tudo errado/ depois de - quantos anos mesmo?" Tudo está lembrado na 
memória de maneira correta, corretíssima, como dois e dois são cinco-
adiantemos um pouco o raciocínio. 
A espera silenciosa diante da grafia da experiência serve ainda 
para colocar o poema descritivo de Bishop, apesar da alta carga de sub-
jetividade que ele comporta, ao lado dos poemas escritos pelos chama-
dos poetas modernos construtivistas, ou seja, dos poetas que, desde 
Mallarmé, passando por Paul Valéry e o Ezra Pound editor de The Waste 
Land, acreditam que "cada átomo de silêncio/ é a chance de um fruto 
maduro", como está no célebre poema "Palmes", de Paul Valéry3. 
Essa mesma espera trabalhadora e silenciosa do poeta diante da 
grafia da experiência, recolhimento do ser humano na memória e na sau-
I "Ainda penduras tuas pala-
vras no ar por dez anos, ina-
cabadas. coladas no teu qua-
dro de avisos, com lacunas ou 
vazios para a expressão incon-
cebível- Musa infalível que 
tomas o espontãneo perfeito?" 
2 Palavra tipicamente baude-
laireana_ Veja o soneto de mes-
mo nome "Recueillement": 
"Sois sage, ô ma douleur, et 
tient-toi plus tranquille ___ " So-
bre o conhecimento que 
Bishop tinha da poesia de 
Baudelaire, leiam-se os co-
mentários extraordinários e 
sutis que faz às traduções do 
amigo Robert Lowell (v_ carta 
de I" de março de 1961: "É 
claro que as únicas traduções 
que tenho condições de julgar 
são as do francês ___ ")_ 
3 Patience, Patience./ Patience 
dans l' azur!/ Chaque atome de 
silence/ Est la chance d ' un 
fruit mOr!" Comenta o filóso-
fo Alain: "Pafience, Pafience 
- tel est le maftre moI. On 
admire ces longs silences du 
poête; je ne m' en étonne point. 
Si Hugo avait refusé tes vers 
trop faciles, quels sitences!" 
4 Estamos tomando o conceito 
de labol'de maneira aproxima-
da ao tomado por Marcia 
Tucker, diretora do The New 
Museum of Contemporary Art 
~ responsável, juntamente com 
Isabel Venero, pela exposição 
--The Labour of Love", reali-
zada em 1996 na cidade de 
Nova Iorque. 
o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 11 
dade, é que aproxima Elizabeth Bishop dos poetas brasileiros de sua 
predileção, entre eles Carlos Drummond de Andrade ("Itabira é apenas 
uma fotografia na parede.! Mas como dói!") e João Cabral de Melo Neto 
("Há vinte anos não digo a palavra! que sempre espero de mim. Ficarei 
indefinidamente contemplando! meu retrato eu morto"). 
Clarice Lispector, outra das escritoras favoritas brasileiras de 
Elizabeth Bishop, utiliza a palavra cuidado para descrever o processo 
muito especial- um misto de espera, paciência, atenção e de trabalho 
- que leva as coisas e os seres humanos a crescerem harmoniosamente, 
visto que por causa dele é que escapam às injustiças e desmandos de uma 
visão pragmática e masculína de progresso. "Tudo é passível de aperfei-
çoamento ... " -lê-se no conto "Amor". Em carta a amigos, Bishop ano-
ta: "Na cama estou lendo todo o Dickens, livro por livro, com a estranha 
ambição de escrever- ou melhor, terminar- um soneto sobre ele". O 
cuidado, alerta Clarice, não pode ser confundido com o trabalho material, 
no sentido em que o empregam as teorias econômicas, impostas como 
universais à sociedade pelo homem. O cuidado seria, na falta de outra 
palavra, o labor", o labor familiar em Clarice Lispector, o labor poético 
em Elizabeth Bishop, Carlos Drummond ou João Cabral. Complementa 
João Cabral: "a forma atingida! como a ponta de novelo! que a atenção 
lenta,! desenrola,/ aranha; como o mais extremo/ desse fio frágil, que se 
rompe! ao peso, sempre, das mãos! enormes", 
O labor, em Clarice Lispector (e ousamos acrescentar: em Elizabeth 
Bishop e tantos outros poetas), é manifestação não da força humana 
alienada em trabalho socialmente útil e aferido pelos índices de produti-
vidade, mas do cuidado, manifestação do "trabalho" que contribui para 
o progresso qualitativo do indivíduo e, por conseqüência, do ser huma-
no. Escreve Bishop a Kit e Ilse Barker: "Tenho pena de pessoas que não 
conseguem escrever cartas. Mas desconfio também de que eu e você, 
Use, adoramos escrever cartas porque é como trabalhar sem estar de 
fato trabalhando [grifo nosso]". O cuidado re-orienta a história social 
tal como movimentada e explicada pelo macho trabalhador. O cuidado 
pode levá-lo a perceber, caso abandone as intransigências do falocentrismo 
teórico, que existe uma forma suplementar de "progresso" que, sem tra-
zer à tona as injustiças desmascaradas pela análise do modo de produção 
capitalista tal como o faz a teoria econômica marxista, ou trazendo-as de 
maneira "oblíqua", para usar uma palavra cara a Clarice, é também e 
principalmente útil à vida humana, tornando-nos mais dignos de convi-
ver com os seres dos reinos animal, vegetal ou mineral. Nas sociedades 
modernas, é o labor que reequilibra o processo da circulação hierárqui-
ca das pessoas entre outras pessoas e o processo de circulação das pes-
12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
soas entre animais, plantas e minerais, e é ele que, finalmente, não deixa 
que seja o homem que ordene de maneira imperiosa e destrutiva a natu-
reza, Carlos Drummond já clamara contra a falta de cuidado dos minei-
ros no poema" A montanha pulverizada", Começa por constatar: "Che-
go à sacada e vejo a minha serra,/ a serra do meu pai e meu avô", para 
em seguida descobrir estupefato: "Esta manhã acordo e/ não a encontro.! 
Britada em bilhões de lascas/ deslizando em correia transportadora/ en-
tupindo 150 vagões/ no trem-monstro de 5 locomotivas .. ," 
Retomemos. Aquilo que "realmente aconteceu" vai ser dramatiza-
do no poema descritivo de Elizabeth Bishop como um dom da aventura, 
vale dizer, um dom da vida ao sujeito. A resposta humana mais óbvia ao 
fato marcante acontecido é a dada pelo arrepio e, principalmente, pelo 
grito. Eis algumas frases bem conhecidas de todos os presentes que, à 
guisa de exemplo, extraímos do conto "Uma aldeia": "Um grito, o eco de 
um grito paira na aldeia." "É assim que o grito permanece suspenso, 
inaudível, na memória, no passado, no presente e nos anos que os sepa-
ram". O grito que estoura os tímpanos - epifânico, esplendor e frag-
mento significativo do que "realmente aconteceu" - tem um tempo que 
lhe é próprio, circunscrito e circunspecto, tempo empírico, metrificado 
pela emoção do sujeito e os ponteiros do relógio. Trata-se de um tempo 
límpido que nem relâmpago e logo apagado, esquecido, mas sempre pres-
tes a ser movimentado novamente em forma de eco. O grito tem também 
um tempo que extravasa os moldes recalcados da percepção instantânea 
e se esgueira delirante, em eco do eco do eco, pela memória, já sob a 
forma de sucessivos traços mnésicos, onde o presente é a letra morta do 
passado que se perpetua em pequenas mortes e lentas e incompletas res-
surreições. De maneira bem mais clara, fala Elizabeth Bishop no conto 
"Primeiras letras": "O nome verdadeiro dessa sensação é memória. Tra-
ta-se de uma lembrança que nem preciso tentar evocar, ou recuperar; 
está sempre presente, clara e completa". 
Como escreveu, na mesma época, o poeta Ferreira Gullar no poe-
ma intitulado "Galo Galo": "Grito, fruto obscuro/ e extremo dessa árvo-
re: galo.! Mas que, fora dele,/ é mero complemento de auroras" . O grito 
é dentro e é fora. É fruto e é complemento de auroras. É sopro e é eco. É 
subjetivo e é comunitário. É o alvoroço da mente que se exprime pelo 
sopro; é o eco que orquestra o alvoroço e os ruídos da cidade. O grito 
obriga-nos a querer distanciar do sofrimento que representa, ao mesmo 
tempo em que traz, guardado a sete chaves, secretamente, o gosto amar-
go do seu retorno, incansável e inesgotável. Distanciar, abandonar a cena 
e o local do grito. Deixá-lospara trás, mesmo sabendo que a vida se 
desenha por rastros e circula pelo globo em singraduras. 
5 Lembro-me de uma cena do 
filme Nick's n/ovie, em que o 
~ineasta alemão Win Wenders 
relata os últimos dias de vida 
Jo diretor Nicholas Ray. Em 
Jeterminado momento, repro-
Juz · se na tela um velho 
>l'estern de Ray em que o ator 
Robert Mitchum, já velho, 
volta ao rancho onde foi cria-
do. Escorrega por debaixo da 
casa em palafitas e descobre, 
escondidos, alguns gibis . Co-
menta Ray: "Toda a minha 
obra foi sobre a idéia do lar". 
o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 13 
Viajar toma-se para Elizabeth Bishop uma necessidade imperiosa 
e a cartografia dos deslocamentos, das derrapagens e dos imprevistos 
transforma-se num deleite para os olhos, o corpo e a imaginação. No 
poema "Questions of traveI", lê-se: "But surely it would have been a 
pity/ not to have seen the trees along this road,/ really exaggerated in 
their beauty,/ not to have seen them gesturing/ like noble pantomimists, 
robed in pink." Viajar traz sempre matéria nova, dura e incandescente, 
que precisa ser ordenada pelas palavras a fim de que, ao se escapar da 
vida no momento em que é vivida, não se escape pelo esquecimento à 
essência da biografia. Lembrar é preciso. A grafia da vida, no poema 
descritivo de Elizabeth Bishop, se impõe como letra morta. Letras ao ar, 
como diz Robert Lowell; roupas lavadas, diremos nós, que são esticadas 
no varal da imaginação à espera do sol da atenção, da chuva que as 
enxágua uma vez mais tomando-as mais limpas, do dia que incorpora 
novas sombras ao quadro, da noite que oferta o acaso das descobertas. 
Letras ao ar à espera do "casual perfect". O poema. 
A viagem não significa necessariamente distanciamento geográfi-
co de um lugar para outro e novo lugar, deste novo lugar para outro 
diferente. "Should we have stayed at home, wherever that may be" -
pergunta Elizabeth Bishop. E, por isso, acrescentamos, a viagem signifi-
ca distanciamento, mas desde que se entenda a geografia por uma lógica 
que, imperiosa, doloridamente esquarteja e redistribui o ser pelas mil e 
uma diferentes partes do planeta - norte e sul, leste e oeste - para 
poder melhor englobá-lo no seu home. 5 Em "Crusoe in England", lê-se: 
"I told myself/ "Pity should begin at home." So the morei pity 1 felt, the 
more 1 felt at home". Foi preciso que Elizabeth Bishop viajasse ao Brasil 
para que re-escrevesse a qualidade única da sua grafia de vida menina na 
Nova Escócia. Não é assim que devemos entender esta frase escrita a Kit 
e Use Barker, em 12 de setembro de 1952: "É engraçado - eu venho 
para o Brasil e começo a me lembrar de tudo o que me aconteceu na 
Nova Escócia - pelo visto, a geografia ainda é mais misteriosa do que 
a gente pensa". Quatro anos depois, ainda em Petrópolis, escreve um 
longo poema que se passa na Nova Escócia, "The moose", poema dedi-
cado à tia Grace. 
(E o poema é também uma letra morta cuja ressurreição se dá a 
cada nova leitura.) 
Escrever poemas. Desenterrar e ressuscitar paisagens, desenter-
rar e ressuscitar cadáveres, desenterrar e ressuscitar lembranças, desen-
terrar e ressuscitar emoções, desenterrar e ressuscitar anotações, desen-
terrar e ressuscitar leituras, e assim ad infinitum - eis o trabalho religi-
oso e sacrílego do poeta com as palavras. Esse trabalho acabou por ter 
14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
o nome com quatro letras de uma musa e por receber uma lógica econô-
mica determinada pelo amor e por Camões: "que quanto mais vos pago, 
mais vos devo". Elizabeth Bishop escreve em carta: "Detesto perder gen-
te". Viajar é um longo aprendizado nas artes pouco recomendáveis da 
necrofilia e os mapas são as tábuas anatômicas em que se expõem à 
análise paisagens, cadáveres, lembranças, emoções, anotações e livros. 
Assim sendo, o que foi considerado no parágrafo inicial desta palestra de 
"tradução do acontecimento" vem balizado por um discurso poético que 
se apresenta sob a forma constante de autoconhecimento (o "conhece-te 
a ti mesmo socrático"), ainda que muitas vezes, no poema descritivo de 
Elizabeth Bishop, os dados propriamente autobiográficos se represen-
tem escamoteados, ou camuflados na superfície da escrita asséptica e 
necrófila. 
Elizabeth Bishop não é uma modernista, ou vanguardista como 
dizem os anglo-saxões. Por isso, seus poemas descritivos, mesmo os 
mais calçados pela influência de João Cabral de Melo Neto ("The Burglar 
of Babylon") ou da sua amiga Lota Macedo Soares ("Manuelzinho"), 
pouco ou nada têm a ver com estéticas nacionalistas ou ufanistas ("I 
somehow never thought of there being a flag" - não deixa de ser um 
verso emblemático). Elizabeth Bishop é uma modernista tardia, ou seja, 
uma high modernist. Nos seus poemas descritivos, devemos içar os da-
dos autobiográficos do fundo do poço do poema num processo que equi-
vale ao de freqüentar com carinho e sensibilidade certas e inúmeras "fon-
tes", hoje guardadas como pequenos caixões de anjos nas alcovas das 
bibliotecas norte-americanas. Fontes como cartas enviadas e recebidas, 
anotações rápidas e travessas, relatos de conversa, entrevistas, depoi-
mentos, rascunhos de possíveis obras, diários íntimos próprios e alheios, 
etc., etc. Um cotejo desses inumeráveis papéis avulsos com o texto final-
mente dado à luz como digno do nome poema acaba sendo revelador da 
intensidade das impressões subjetivas no processo de elaboração do 
poema descritivo de Elizabeth Bishop. 
Por intensidade das impressões subjetivas devemos entender basi-
camente pressões internas/externas ao poema. As pressões que o poeta 
sofre em sucessivos instantes passageiros. Estamos falando, portanto, 
das pressões exercidas seja pelo convívio social com os familiares ou 
sucedâneos, seja pelo pequeno mundo cosmopolita que a escritora fre-
qüenta, seja ainda pelo vasto mundo lá fora que lhe chega pelos meios de 
comunicação de massa ou por simples cartas; estamos falando das pres-
sões impostas pela flora e fauna circundantes, anotadas com cuidado em 
cadernos e papel de carta; estamos falando, ainda e sobretudo, das pres-
sões, na maioria das vezes inconscientes, exercidas pela leitura tanto de 
o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 15 
textos literários, quanto de textos não-literários. Nesse exercício, como 
em outros, Elizabeth é antes de mais nada intrometida. Em carta a Frani 
Blaugh, escreve: "Espero que você traga [de Nova Iorque] alguns livros. 
Os livros que mais gosto de ler são sempre os que tiro de alguém que 
ainda os está lendo". A anotação despreocupada traz algo antecipatório 
da arte de vida e da estética de Bishop. A leitura do livro tomado à amiga 
passa a dar continuidade à primeira leitura, e vice-versa, na medida em 
que ambas se repousam no eixo do empréstimo, ou seja, de uma troca em 
que alguém perde para que o outro ganhe, em que alguém ganhe para 
que o outro perca. "The art of losing isn't hard to master". 
Vamos a um único exemplo de pressão de textos nitidamente auto-
biográficos sobre o texto do poema, pois o tempo ruge. Um lugar de 
Petrópolis. O sítio de Alcobacinha. Ali, diz ela em carta à doutora Anny 
Baumann, "umas nuvens despencam das montanhas igualzinho a cacho-
eiras em câmara lenta", esse lugar, essas palavras exercem pressão auto-
biográfica sobre o poema "Questões de viagem", onde se encontram trans-
critas em laboriosos versos: "and the pressure of so many c10uds on the 
montaintops/ makes them spill over the sides in soft slow-motion,/ tuming 
to waterfalls under our very eyes". 
Diante das palavras por que começamos esta palestra, tão diretas 
na sua simplicidade e tão excludentes na sua postura teórica, já é chega-
do momento de tomar. um definitivo cuidado epistemológico. Aquilo que 
"realmente aconteceu", para usar agora a linguagem freudiana, é já e 
sempre um traço mnésico. O que estamos chamando de "tradução do 
acontecimento" não se refere, pois, a apenas um movimento dos olhos, 
do olhar observador,que determina pelos sentimentos pessoais a pala-
vra, numa ligação direta entre a emoção do sujeito e a paisagem vista ou 
entrevista. Não se refere tampouco à redução da história do indivíduo a 
um determinismo linear que considere apenas a ação do passado sobre o 
presente. Refere-se antes a um reordenamento dos traços mnésicos que 
estão sempre já [toujours déjà] inscritos na memória do poeta, 
reordenamento que é proporcionado ou ditado pela atenção ao instante 
que já não é mais o presente mas o passado no seu devir. 
Ao contrário do que pode sugerir o poema "Santarém", a lem-
brança nunca erra. Ela está sempre acertando, ao transformar, ao 
reordenar os traços mnésicos, como quis Jacques Lacao e Jacques Derrida 
ao relerem Freud. Escreve este em carta a William Fliess, datada de 6 de 
dezembro de 1896: "[ ... ] trabalho na hipótese de que o nosso mecanismo 
psíquico se tenha estabelecido por estratificação: os materiais presentes 
sob a forma de traços mnésicos sofrem de tempos em tempos, em função 
de novas condições, uma reorganização, uma reinscrição" [os grifos 
16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
são dele]. Acrescentam Laplanche e Pontalis: "A remodelação posterior 
é acelerada pelo aparecimento de acontecimentos e de situações, ou por 
uma maturação orgânica, que vão permitir ao indivíduo acesso a um 
novo tipo de significações e a reelaboração das suas experiências anteri-
ores". Como passar de "lacunas e vazios" à "expressão inconcebível"? 
- não é assim que se refere Lowell ao mistério da poesia de Bishop e, 
principalmente, à busca da perfeição por parte dela? 
No caso de Elizabeth Bishop, a opção pela escrita poética descri-
tiva aponta a priori na direção de um feixe complexo e globalizador de 
discursos (em que a distância rígida entre elevado/sublime/erudito e bai-
xo/popular/pop toma-se precária, substituída que deve ser pela noção de 
intensidade, de pressão, e, conseqüentemente, pelo deslizamento sub-
reptício das repetições em diferenças). A opção pela escrita poética des-
critiva serve também para recobrir uma ética que lhe é muito particular: 
a do modo confessional no campo das Letras; ética que tem sido recoberta 
pelos adjetivos tímida, discreta, sorrateira, etc. Lembro-me de Paul 
Valéry que, em carta a André Gide, lhe dizia que há coisas que são ditas 
"pour toi" [para ti] e outras que são ditas "pour tous" [para todos]. Con-
fundir o modo confessional instaurado pelo "pour toi" com o "pour tous" 
pode levar a desentendimentos éticos definitivos na leitura da sua poesia. 
Seria correto questionar o glamour com que Elizabeth Bishop cercou o 
privado sem cercear curtas incursões pelo público? 
Reorganizando as idéias, complementemos que a busca da verda-
de pelo sujeito no poema descritivo de Elizabeth Bishop, produto incan-
sável da reorganização e reinscrição dos traços mnésicos no mecanismo 
psíquico, dá-se de duas formas. Primeiro, como produto de uma concor-
rência inesgotável de discursos paralelos, complementares ou suplemen-
tares. O poeta, enquanto ser humano em sociedade, está sempre fabri-
cando novos feixes de discurso que, nas mãos do leitor, passam a ser 
"fontes" inesgotáveis do aprimoramento da leitura de tal ou qual poema. 
Segundo, serve para estabelecer o que podemos chamar de protocolos 
éticos (no concreto do dia-a-dia profissional e no vulgar das fofocas , 
alguém pode dizer tudo, mas tudo depende do que esse alguém diz, do 
modo como o diz e a quem diz). 
As traduções do acontecimento, isto é, as reorganizações do traço 
mnésico, podem e devem ser consideradas como alegorias do eu, inde-
pendente do fato de o poema descritivo tematizar uma paisagem, um 
animal ou seres humanos. Nesse sentido, talvez, não seja tão prudente (a 
não ser por critérios exclusivamente didáticos) estabelecer distinções 6 
entre alegorias impessoais, onde domina a presença da flora e da fauna, 
e alegorias subjetivas, onde dominam as experiências propriamente pes-
6 As distinções binárias (vida/ 
morte , certo/errado ... ) não 
eram do gosto de Bishop. De-
viam diluir-se em "deslumbran-
te dialética" (v. "Santarém"). 
o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 17 
soais, e distinguir ainda entre as duas formas e as alegorias sociais, onde 
domina a presença do Outro, em geral de classe social mais baixa. O 
leitor pode e deve trabalhar com um sistema de dominância, pois é este 
sistema que chega a melhor explicar o interesse e a atenção do poeta em 
dada circunstância (não falaremos mais do foco dos olhos, mas do traba-
lho necrófilo da memória). Esse sistema de dominância é que possibilita-
rá a leitura de uma visão de mundo diferenciada ou uma concepção 
evolutiva do fazer poético. 
"Alteridade" 
desde Sa rtre até Bha bha: 
um surf poro o história do conceito 
Ellen Spielmann 
Universida Livre de Berlim 
Como proceder para traçar um mapa, levantar uma cartografia deste 
campo? Começo por imaginar uma situação concreta: "Moço, por favor, 
como faço para chegar na Praça da Alteridade, na Place de l'Alterité? 
- "Muito fácil". Até esta praça conduziram, ao fim dos anos 40, três 
avenidas principais. Estas avenidas foram ampliadas ao fim dos anos 
50, e finalmente, como vocês sabem, desde o começo dos anos 60 fo-
ram recolocadas pelas auto-estradas e pelos serviços de helicóptero. 
As avenidas chamam-se O ser e o nada (L 'être et neant) de Jean Paul 
Sartre de 1943, O tempo e o outro (Le temps et f'autre) de Emmanuel 
Lévinas de 1946 e O segundo sexo (Le deuxieme sexe) de Simone de 
Beauvoir de 1949. A ampliação destas avenidas começou com Jacques 
Lacan desde seu discurso de Roma em 1953, e com Frantz Fanon no 
lapso que vai desde Rostos negros, máscaras brancas (Peau noire, 
masques blancs) de 1952 e Os condenados da terra (Les damnés de 
la terre) de 1958. Os engenheiros da auto-estrada chamam-se Edward 
Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha. 
Voarei agora sobre a Place de r Alterité com Gayatri Spivak. 
Ela ressalta, em 1989, a propósito da exposição Magiciens de la terre, 
no Centre Pompidou de Paris, que alteridade é um conceito que aparece 
em inglês somente em meados dos anos 80 como tomado do francês 
através da discussão sobre os trabalhos de Emmanuel Lévinas, quer 
PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
dizer, com 40 anos de atraso, e - digo de passagem - também a 
senhora Spivak chega com certo atraso à Place de /'Alterité. Ela toma 
o conceito de Lévinas do totalmente Outro sua "chama de rebate" para 
que o "totalmente outro" (le tout-autre) não seja reduzido ao mesmo/ 
ao próprio. Lévinas diz no livro O tempo e o outro: "O outro é o futuro; 
a relação com o outro é a relação com o futuro". E continua: "Eu defino 
o outro não através do futuro, senão o futuro através do outro, pois justo 
o futuro consta da alteridade total da morte". O outro que narramos, 
compreendemos, dominamos une-se e afiança-se com o mesm% outro 
através de um mecanismo: "o estado do espelho" - stade du miroir, 
(nas palavras de Lévinas face a face avec autrui, elaborado e formu-
lado por Jacques Lacan. 
A prevenção de Lévinas, segundo Gayatri Spivak, está unida à 
exigência de que antes de qualquer "ontologia" ou "fenomenologia trans-
cendental" introduz-se uma ética da ética do "outro absoluto" (tout autre). 
Se pensamos o discurso de Lévinas sobre o outro até suas últimas conse-
qüências, estamos diante de uma radical generosidade no momento da 
aproximação na qual o mesmo move-se em direção ao outro. E se for-
mos um passo mais além, diremos que, em última instância, ele (o dis-
curso) pede que o outro não agradeça. 
Durante o vôo que realiza Gayatri Spivak, em 1989, sobre a Place 
de I 'Alterité a partir do convite para comentar o conceito, ela só se preocu-
pa frente a um campo: a "subalteridade" - subalternity: campo que ela 
define como ainda não determinado pela dinâmica de política, cultura po-
lítica, política cultural, cultura para a política. Para os sujeitos subalter-
nos, não lhes outorga, nãolhes concede uma posição de sujeito. No seu 
trabalho, Spivak situa a subaltemidade como arena ofiudgement ar testin 
( "arena de julgamento ou teste") porque - é esta a forma como argumen-
ta - porque nem a lógica da democracia parlamentária, nem a planifica-
ção socialista, nem a da identidade cultural dão conta dela. Escreve: 
This space is not, "uncontaminated" by the West, and certainly 
not apart" by collective social choice. Although cultural or 
political institutions, by definition, do not give them any support 
for them to be constituted as social agency ofjudgement,for my 
own work ( .. .) Therefor I will say no more than that is for us a 
space of anxiety. It is also a space of a genuine aporia of history. 
Both culturalism and the politics of of the nation-state will 
transform this ambiguous placel. 
Em seguida, tratando por um lado da genealogia da noção filosó-
fica "alteridade", procuro descrever e discutir diretamente cada uma das 
I Gayatri Spivak. Oulside in lhe 
leaching machinc. New York : 
Routledge, 1993, p. 213-14. 
"Alteridade" desde Sartre até Bhabha ... 21 
distinções. Emerge a pergunta: o que é alteridade nos anos 40? Por outro 
lado, dou peso ao momento mediato: a conexão com outros debates e, 
com eles, a introdução de um metadiscurso dos discursos sobre alteridade. 
Jean Paul Sartre publicou, três anos antes de O tempo e o outro de 
Lévinas, seu primeiro livro de filosofia, O ser e o nada, onde desenvol-
ve, programaticamente, uma fenomenologia do outro e da alteridade. Tal 
filosofia constitui-se em nível dos indivíduos no marco de uma filosofia 
existencialista. Para isso, Sartre apropriou-se da dialética de "O senhor 
e o escravo" de Hegel para levá-la ao seu extremo e assim reformulá-Ia. 
Bem, há que se advertir que a estratégia de Sartre faz parte de 
uma constante na filosofia francesa do século Xx. A relação maitre et 
esc/ave une em francês dois momentos-chave da filosofia do outro: tra-
ta-se da relação "Senhor e escravo" em Hegel e "Senhor e escravo" em 
Friedrich Nietzsche. Com essa espécie de passo de prestidigitação, surge 
um duplo teclado conceitual por cujo intermédio um conceito vai ser 
usado para revelar o outro. Sartre intervém em favor de um sujeito forte, 
capaz de pensar o outro. O que é alteridade em 1943? A argumentação 
de Sartre é universalista: o outro é sempre uma ameaça, representa um 
pôr em questão da minha experiência, dotado com o poder de objetivar-
me e mover-me para auto-objetivar-me. É claro que essa dinâmica entre 
o mesmo e o outro deve-se pensar em termos de reciprocidade. A rigoro-
sa ontologia de Sartre divide de maneira cortante consciência e corpo 
para mover-se dentro dos limites da metafísica. Sem dúvida nenhuma, 
Sartre é um clássico do século XX e por isso uma figura suscetível de 
celebrar-se. No ano 2000, publica-se meia dúzia de novos livros, por 
exemplo: Le siec/e de Sartre por Bemard-Henri Lévy (Paris: Grasset). 
Mas, ao mesmo tempo, estou completamente de acordo com as leituras 
de O ser e o nada, que comprovam o fracasso do seu projeto de ontologia. 
Pois inclusive, na última página do livro, não se sabe ainda o que seja "o 
ser" e o que seja "o nada" e como se comportam entre si. No entanto, é 
precisamente a ontologia de Sartre que dá vocação a Octavio Paz para 
incluir na língua castelhana o conceito de otredad como conceito- chave 
no Ellaberinto de la soledad (1959). Na metade dos anos 50, um grupo 
de intelectuais em tomo da revista Contorno orienta-se no rumo do 
existencialismo de Sarte, para mencionar pelo menos dois exemplos lati-
no-americanos. 
Na metade dos anos 40, para resumir, a interpretação existencia-
lista de Hegel serviu para propor um conceito ampliado de razão e da 
compreensão acerca de "o que em nós e nos outros encontra-se antes e 
sobre a razão", segundo a fórmula que propunha Maurice Merleau-Ponty. 
Em geral, menciona-se Simone de Beauvoir junto com Sartre sem maior 
PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nQ 5, 2000 
diferenciação. Porém, seus conceitos de alteridade diferem entre si. Em 
que reside exatamente a diferença? Simone de Beauvoir adota a catego-
ria existencial do outro. Converte-a também em categoria constitutiva da 
consciência: a consciência humana fundamenta-se no outro. Bem, sua abor-
dagem dá-se - e com isso ultrapassa o núcleo da posição de Sartre - na 
adoção do conceito de alteridade na sua função crítica cultural. Este origi-
na-se no marco de análises sobre o que divide os sexos (ela não fala em 
diferença) e sobre as relações de poder e dominação. 
Para Simone de Beauvoir, as mulheres existem como outro. Ela 
foi a primeira a criticar a hierarquização e fixação das assimetrias dos 
gêneros, que tem em Lévinas seu expoente, seguindo-se, nos rastros dela, 
Luce lrigaray, Jacques Derrida e Gayatri Spivak. Contradizendo Lévinas, 
ela declara: 
Je suppose que M. Lévinas n 'oublie pas que lafemme est aussi 
pour soi conscience. Mais i! estfrappant qu'i! adopte delibérément 
un point de vue d'homme sans signales la récipocité du sujet et 
de l'objet. Quand il écrit que lafemme est mystere, il sous-entend 
qu 'elle est mystere pour l'homme. Si bien que cette description 
que se veut objetive est en fait une ajfirmation du pril'ilege 
masculin2. 
As mulheres seriam, segundo Simone de Beauvoir, o negativo dos 
homens, a carência. No entanto, ela realiza um decisivo deslocamento. 
Para ela, a identidade de gênero não designa um ser substancial, mas sim 
uma dimensão cultural e histórica. Na interpretação mais corrente, Si-
mone de Beauvoir aparece intervindo em favor do direito da mulher, a 
chegar a ser um sujeito existencial, a ser incluída numa universalidade 
abstrata. Porém, deve-se destacar que sua posição implica também uma 
crítica fundamental da descorporalização do sujeito cognitivo masculino 
abstrato, como assinalava Judith Butler, em 1986, no ensaio Sex and 
gender in Beauvoir's Second Sex 3 • De maneira que Simone de Beauvoir 
reformula a dialética "amo-servo", colocando-a sob o signo da assimetria 
não mútua entre os gêneros. Ela afirma: o corpo feminino deve ser para 
as mulheres "situação" e "instrumento" da liberdade e não uma essência 
definitória e limitadora. "Situação" , aqui, deve ser entendida no sentido 
existencialista. E isso supõe, em último termo, a teoria da corporalidade 
de Sartre, que reproduz o dualismo corpo-espírito, apesar de seu intento 
de alcançar uma síntese entre os conceitos. Na sua leitura de Simone 
Beauvoir, Gayatri Spivak considera positiva a tentativa de Beauvoir de 
pensar corporal idade - representada pela figura Mãe - como instru-
mento para logo desconstruí-Ia. No seu ensaio Frenchfeminism revisited, 
, Simone de Beauvoir. Le 
deu.riell/ e sex e I , Pari s: 
Gallimard, 1961 , p. 16. 
3 In : Yale French Studies, Si-
mone de Beauvoir: Witness to 
a Century. n," 72. p. 74-g9. 
nov./dec. , 19g6. 
4 Spivak 1993, p. 151. 
S kan Paul Sartre. In: Frantz 
Fanon. Les damnés de la ferre. 
Paris:~aspero, 1962,p.22. 
Frantz Fanon. Peau noire , 
masques blancs. Paris: Seuil, 
1<J52, p. 178 (a tradução é 
minha). 
"Alteridade" desde Sartre até Bhabha ... 23 
Spivak escreve: I read with sympathy, though against the grain, 
Beauvoir' s figure of lhe M olher provides an asymmetrical site ofpassage 
}I,ith lhe possibility of a strong framing of appropriation that has been 
protectedfrom a philosophical anthropology, yet not preserved in trans-
cendental tall(~ . No Segundo sexo - publicado em 1949 - há uma 
nota de pé de página referente aos trabalhos de um tal Dr. Lacan. É 
óbvio que sua teoria acerca-se da constituição do sujeito - conhecida 
como "o estado de espelho" - apresentada pela primeira vez em 1936 
no Congresso Internacional de Psicanálise, em Marienbad. Era conheci-
da exclusivamente por um grupo muito pequeno de intelectuais france-
ses. Era quase um dado de insiders. 
No começo dos anos 50, entra em cena um psiquiatra e médico da 
Martinica. Seu nome é Frantz Fanon. O martinicanoFanon ampliou a 
avenida da alteridade até convertê-la em modelo analítico da experiência 
colonial. Já com Rostos negros, máscaras brancas (1952), radicalizou e 
sobressaltou as colocações de seus referenciais franceses. No prólogo 
aos Condenados da terra (1958), Sartre chega até a afirmar: "Fanon 
põe adiante dos nossos olhos o Ocidente desnudo, a civilização desnuda 
como num strip-tease"s. (Porém o problema consiste ao meu ver em que 
esse pôr a nu não tem a fascinação da sedução, mas sim a de horror). 
O que é alteridade em Frantz Fanon? Fanon transferiu, transplan-
tou o conceito às relações entre as raças, à divisão e à assimetria dos 
gêneros (esboçados e descritos por Simone de Beauvoir). O decisivo é o 
seguinte: Fanon transformou o conceito do outro, visto como estrutura 
fundamental da consciência, com ajuda do instrumentário psicoanalítico, 
para descrever e situar o sujeito colonial. Fanon refere-se ao "estado do 
espelho" estabelecido por Lacan e assim escreve: "Quando se há enten-
dido este processo descrito por Lacan, não pode restar nenhuma dúvida 
que o verdadeiro outro do branco foi e segue sendo o negro e vice-versa. 
Somente que "o outro", destaca Fanon, "é percebido pelo branco ao ní-
vel da imagem corporal em forma absoluta, como o não Eu"6 . 
Fanon remete ao mesmo tempo para os limites das categorias 
psicoanalíticas quando inclui realidades históricas e econômicas no seu 
diagnóstico da situação colonial. Também em Fanon, desta vez referin-
do-se às questões de raça, o corpo é compreendido em termos de "situa-
ção" e "instrumento". E por conseguinte nas suas análises do colonialis-
mo resulta que o corpo toma-se instrumento de liberação. Fanon postu-
la uma igualdade entre liberdade e consciência. A consciência possui a 
capacidade de expressar dúvida. Consciência, raça e corpo se relacio-
nam entre si. A propósito do seu grande mestre, anota Fanon: "Jean Paul 
Sartre tem esquecido que o negro sofre com seu corpo de outra maneira 
PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
que o branco" e, em seguida, agrega "inclusive se os estudos de Sartre 
sobre a existência do outro mantêm sua vigência (na medida em que O 
ser e o nada descreve a consciência alienada), sua aplicação à consciên-
cia negra revela-se como falsa: porque o branco não é somente o outro, 
mas sim o-real-ou-imaginário-amo". Fanon utiliza no fim de Rostos ne-
gros. máscaras brancas a expressão "alteridade originária". Assume, 
assim, a problemática da "dupla consciência", formulada em The Souls 
of Black Folk de 1903 pelo intelectual negro W.E. Du Bois. Este termo 
designa a situação do double bind dos americanos negros. À pressão 
para assimilar-se to bleach his negro soul,? a resposta de Du Bois é de 
um rechaço sem nenhum compromisso. Esta postura estratégica vale 
também para Fanon. De particular interesse para os debates atuais é sua 
posição sobre o papel da violência na política da luta da liberação naci-
onal contra o colonialismo. Fanon declara em 1958, durante a época da 
guerra na Argélia: " O colonialismo francês é uma guerra com violência, 
deve ser derrotado com violência. Nenhuma diplomacia, nenhum gênio 
político, nenhuma habilidade pode dominar ele." Até hoje posições como 
essa dão lugar a notórias irritações entre aqueles teóricos da alteridade 
que seguem linhas dominantes. Tzvetan Todorov considera o momento 
"curativo" das reações de violência e de vingança com suspeita no seu 
livro La conquête de /'Amérique. La question de l'autre (1982) .. 
Pode-se afirmar que na filosofia e nas ciências sociais dos anos 40 
e 50, incluídas a antropologia social e a psicanálise, o outro teve o papel 
de um limite que devia servir para ampliar a razão e o conhecimento, 
para compreender enfim o irracional. 
A experiência da alteridade das mulheres, a que me referi, já que 
ultrapassa os limites da razão, tomou-se objeto de pesquisa. O mesmo 
vale para as experiências de psicóticos e neuróticos, primitivos e selva-
gens. Resulta que serviram para ampliar o conceito da razão. Somente a 
geração de pensadores e cientistas dos anos 60 e 70, segundo anota Vincent 
Descombes, pôs fim aos esforços de integração do outro dentro de um 
conceito ampliado de razão. 
Os intentos desenvolvidos até então para ultrapassar o heterogê-
neo, dotar sentido ao absurdo e traduzir o outro na linguagem do mesmo 
levaram a uma reorientação com efeitos às vezes de choque. Michel 
Foucault toma posição na Praça da Alteridade e escreve uma história da 
psiquiatria resumível pelo seguinte apotegma: "O psiquiatra fala de lou-
cos, mas os loucos não falam". 
O fenômeno da loucura reside, segundo afirma Foucault, naquela 
cadeia de divisão da razão cujas origens encontram-se na separação en-
tre o "mesmo" e o "outro". A reorientação epistemológica estabelece-se 
) WlIiam E. B. Du Bois. In: 
Three neli ro classics. New 
York: Avon Books, 1965, p. 
213-390, p. 215 . 
, 
Jacques Derrida. Violence 
et métaphys ique . In : Id . 
L'écrilure el la différence , 
Paris: Seuil, p. 135-6. 
"Alteridade" desde Sartre até Bhabha ... 25 
em nova forma. Os caminhos que segue Foucault são a revisão do con-
ceito do sujeito e a problematização das representações do outro. A lei-
tura desconstrutivista de Lévinas que pratica Jacques Derrida em Violence 
et metaphysique enfoca a fenomenologia de Husserl e a ontologia de 
Heidegger, que ignoram a alteridade, para assim estabelecer as conseqü-
ências disso na ética de Lévinas. Jacques Derrida escreve: 
La conséquence en serait double, a) Ne pensant pas l'autre, elles 
n'ont pas le temps. N 'ayant pas le temps, elles n'ont pas l'histoire. 
L'altérité absolue des instants, sans laquelle il n'y aurait pas de 
temps, ne peut être produite - constituée - dans l'identité du 
sujet ou de l'existant. Elle vient au temps par autrui. Bergson et 
Heidegger l'auraient ignoré, Husserl encore davantage. B) Plus 
gravement, se priver de l'autre (non par quelque sevrage, en s'en 
séparant, ce qui est justement se rapporter à lui, le respecter, mais 
en l'ignorant, c'est-à-dire en le connaissant, en l'identifiant, en 
l'assimilant), se priver de l'autre, c'est s'enfermer dans une 
solitude ... et réprimer la transcendance éthique. En effet, si la 
tradition parménidienne - nous savons maintenant ce que cela 
veut dire pour Levinas - ignore I ' irréductible solitude de 
l'''existant'', elle ignore par la même le rapport à l'autre8 • 
Este contexto seria também o lugar para aludir-se a outras bus-
cas que têm ajudado no projeto da arqueologia do saber, na genealogia e 
na desconstrução. O ponto de partida dessas buscas é a abertura das 
teorias do discurso às vozes daqueles que têm sido constituídos como 
outros. Penso em particular na antropologia pós-moderna, nos trabalhos 
desenvolvidos a partir do seminário Writing cu/ture de Santa Fé e, mais 
em particular, nas abordagens de James Clifford. A consideração do tra-
balho do antropólogo como trabalho de escritura e das etnologias como 
textos andou junto com a crise da autoridade etnológica, quer dizer, da 
crise da autoridade do etnógrafo para inventar com sua escritura o outro 
e a outra cultura. Um campo especial de análise inovadora são as teori-
zações do discurso colonial. 
Os termos-chave da teoria pós-colonial são "o outro" e "a 
alteridade". Seu engenheiro mais importante é Edward Said. Ele desen-
volveu com Orientalism (1978) um modelo de análise para mostrar de 
que maneira funcionam autodescrições e autodefinições através do pro-
cesso de assumir estereótipos da civilização ocidental. Said mostra, nas 
suas investigações sobre o passado imperial e o presente pós-imperial, 
de que maneira a constelação estabelecida por Foucault, entre saber e 
poder, atua em concreto e como dentro dessa relação estreita de inter-
PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
câmbio funcionam - com êxito - controle imperial e a política de 
expansão européia, 
Said une a afirmação de Foucault com a relação reformuladapor 
Sartre entre amo e servo, vinda de Hegel, transpondo-a em dicotomia 
entre o mesmo e o outro, Said argumenta que a relação colonial entre 
colonizadores e colonizados, o outro marginal, é uma relação hierárqui-
ca que não supõe intercâmbio mútuo, quer dizer, saber sobre o outro 
possibilita representação, apropriação do outro, cria e legitima o direito 
de terminação arbitrária e de controle de acordo com os próprios interes-
ses econômicos e geopolíticos. Em Culture and imperialism (1993), ele 
escreve: 
In time, culture comes to be associated often aggressiveley, with 
the nation or the state; this differentiates "us" from "them", almost 
always with some degree ofxenophobia. Culture in this sense is a 
source of identity, and a rather combative one at that, as we see in 
recent "returns" to culture and tradition. These "returns" 
accompany rigorous codes of intellectual and moral behavior that 
are opposed to the permissiveness associated with such relatively 
liberal philosophies as multiculturalism and hybridity. In the 
formerly colonized world, these "retums" have produced varities 
ofreligious and nationalist fundamentalism9 • 
Dentro da disciplina fundada por Edward Said, podem-se situar 
os trabalhos de Homi Bhabha. A autorização dos conceitos "the Other" 
e "alterity" sofre uma importante mudança entre dois textos chaves. 
The other question (1983) e Post-colonial criticism (1992). No primei-
ro texto "Alterity" está unido como processo ao conceito de "mimicry" . 
desprendido de uma leitura de Lacan: trata-se do intento de um desloca-
mento da posição e dos efeitos do sujeito colonial através dos movimen-
tos da repetição, da iteração e da variação. Porque, assim argumenta 
Bhabha: The colonial stereotype is a complexo ambil'alent. contradicrO/}' 
mode of representation, as anxious as ir i5 asserrire. and demands nor 
only that we extend our criticaI and political objetil'es but that }l'e change 
the object of analysis itself 10 • 
No segundo texto, o processo "of alterity" também adquire um 
papel decisivo, porém há que se precisar que se trata de um papel trans-
formado. Bhabha define a perspectiva pós-colonial como algo que:for-
ces us to rethink the profound limitations ofa consensual and collusive 
'liberal' sense ofcultural community. Que papel tem a alteridade dentro 
da perspectiva pós-colonial? A resposta de Homi Bhabha não pode ser 
mais conclusiva. Bhabha declara: "Insisto em que a identidade cultural e 
9 Edward Said. Culfll1'e and 
imperialism. NewYork: 
Knopf, p. XIII. 
In 
Homi Bhabha. The other 
questiono In: Screen, vol. 24 
n. °.6, p. I l{-35, p.22. 1983. 
11 Homi Bhabha. In: Stephen 
Greenblatt/Giles Gunn ed. , 
Redrawing lhe boundaries: 
the lransformalion of english 
and american lilerary sludies, 
N ew York: MLA, p. 437-65, p. 
441,1992. 
12 In: Casa de las Américas, 
n° 98, p. 36-57, p. 51. 
11 Fredric Jameson. Third 
World Lileralure in lhe Era of 
Hullinarional Capiralism.ln: 
Social Texl, n.o 15, p. 65-88, 
1986. 
"Alteridade" desde Sartre até Bhabha ... 27 
política é construída através de um processo de alteridade." O núcleo 
decisivo de suas propostas é o seguinte parágrafo: 
Questions of race and cultural differences overlay issues of 
sexuality and gender and overdeterrnine the social alliancesof class 
and democratic socialismo The time for' assimilating' minorities 
to holistic and organic notions of culture value has dramatically 
passed. The very language of cultural community needs to be 
rethought from a post-colonial perspective 11 • 
Resta colocar a questão dos debates sobre alteridade na América 
Latina. Concentra-seno debate sobre Próspero e Caliban, retomado pelo 
intelectual cubano Roberto Femandez Retamar, em 1971, depois da cri-
se pós-revolucionária, quando a identidade cubana estava em questão. 
Provocado pelo affaire de Padilla, Femandez Retamar retomou a histó-
ria de colonizadores e colonizados, de Próspero e Caliban, para pensar e 
resolver esse problema central através da construção do sujeito coletivo. 
Na re-Ieitura de Femandez Retamar está fixada a dicotomia coloniza-
ção/anticolonização e imperialismo/anti-imperialismo, o outro é os EUA. 
O grande mérito de Femandez Retamar encontra-se na postura estratégi-
ca da inversão das relações opostas entre Próspero e Caliban, assim que 
consegue valorizar a própria cultura. Em Nuestra América y Occidente 
(1976), ele sublinha a idéia de que os verdadeiros latino-americanos não 
"são europeus" e declara: "es decir "occidentales" (. .. ) Los grandes 
enclaves indígenas de nuestra América ( ... ) no requieren argumentar 
esa realidad obvia: herederos diretos de las primeras víctimas de lo 
que Martí llamó "civi!ización a devastadora" , sobreviven la destrucción 
de sus civilizaciones como pruebas vivientes de la bárbara irrupción 
de outra civilización en estas tierras"12. 
No ato da inversão das posições, ele reduz o conceito de alteridade 
a simples atitude: reproduzir o outro. Ademais, suas reflexões inscritas 
no dicurso nacional não chegam a adaptar o conceito psicoanalítico de 
Fanon. Caliban y otros ensaios. Nuestra América y el mundo (1976) é 
o único texto traduzido que circula nos Estados Unidos. Publicado em 
1989, com introdução de Fredric Jameson, o texto foi criticado pelo seu 
esquematismo de cunho anti-ocidental pela crítica. Continua a ser criti-
cado com toda razão, mesmo quando Femandez Retamar introduz em 
versão ampliada o terrno"postoccidentalismo". O interesse de Jameson 
pela literatura do chamado Terceiro Mundo surgiu em 1986, quando ele 
propôs uma leitura tout-cour: ler todas as obras dessa literatura como 
alegoria nacional 13 • No prefácio de Caliban salta à vista: a estratégia de 
Jameson é inscrever-se no debate pós-colonial e assim ganhar peso. O 
PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
prefácio serve para transfonnar Caliban em texto de articulação de dife-
rença cultural e, ao mesmo tempo, transfonnar a si mesmo em teórico 
pós-colonial. 
Reflexões de outra linha vêm do lado do teólogo de libertação 
Enrique Dussel. Ele dá peso à necessidade de postular o ofro latinoame-
ricano zu postulieren, colocando argumentos éticos 14. O problema é que 
Dussel não deixa claro quais são as condições históricas concretas para 
o outro agir. Outro vazio branco que se encontra na perspectiva teológi-
ca tomada por Dussel é: as mulheres desvanecem no horizonte 15. A falta 
do debate sobre o conceito Alteridade ou seu atraso l6 , na América Lati-
na, explica-se pela força e presença do conceito da mestiçagem. O pro-
cesso de mestiçagem como ato para valorizar o índio como outro, cons-
truído pela síntese com o espanhol/português, alcançou o mesmo nível 
do colonizador. A síntese e a valorização da cultura própria nacional 
bloquearam pensar e conceitualizar "alteridade". Dentro da nova etapa 
da globalização cultural, observamos no debate uma série de mudanças 
e deslocamentos. Isso se mostra em particular no campo das teorias cul-
turais, as quais buscam traçar novas cartografias. 17 
1" Enrique Dussel. COmines 
de la liberaciôn larinoameri-
cana, Tomo. 2 Teología de la 
liberación y ética, Buenos 
Aires: Latinoamérica Libras 
1974. 
1; Marta Zapata. Filosofia de 
la liberaciôn y liberaciôn de 
la mujer.ln: Debate Feminis-
ta, Vo1.l6, p. 69-97, 1997. 
16Em 1996 publicou-se o nu-
mero titulado Orredad da re-
vista Debate Feminista, colo 
cando a pergunta : cómo 
asume 01 otm , ai diferente, aI 
extraiio, Vol. 13 , p. IV, Abril 
1996. 
17 
Ve Roman de la Campa. y 
Larinoamérica y sus nuevos 
carrlÍgrajós: Discurso posco-
lonial. diásporas intelec-
ruales y enunciación fronte -
ri:a.ln: Mahel Moraiia (ed.), 
Crítica cu ltural reoría 
lit eraria latil10america , 
Revista /heroamericana , n° 
/ 76- / 77, p . 697-7/7. 
1 
Teoria e prática 
de Antonio Candido 
João Alexandre Barbosa 
Universidade de São Paulo 
No início de um ensaio sobre o que chamou de "timidez do romance", 
Antonio Candido soube caracterizar aquilo quehá de secreto e pungen-
te na atividade literária, marcando as incertezas que dominam muitas 
vezes os criadores, mesmo os maiores, com relação a suas próprias 
obras e o lugar que ocupam entre outras atividades sociais. Eis o trecho 
que quero destacar: 
A literatura é uma atividade sem sossego. Não só os 'homens práticos', 
mas os pensadores e moralistas questionam sem parar a sua validade, 
concluindo com freqüência e pelos motivos mais variados que não se 
justifica: porque afasta de tarefas 'sérias', porque perturba a paz da 
alma, porque corrompe os costumes, porque cria maus hábitos de deva-
neio. Outro modo de questioná-la, às vezes inconscientemente, é 
justificá-la por motivos externos, mostrando que a gratuidade e a fanta-
sia podem ser convenientes como disfarce de coisa mais ponderável. 
Este ponto de vista do tipo Manequinho da Praia de Botafogo ('sou útil 
mesmo brincando') está, por exemplo, na base do realismo socialista, 
como foi ensinado nos anos do stalinismo. Mas, no fundo, Platão e 
Bossuet, Tolstói e Jdanov, por motivos diversos e com diversas formu-
lações, manifestam a desconfiança permanente em face de uma ativida-
de que lhes parece fazer concorrência perigosa aos messianismos e 
dogmas que defendem. 
30 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
"Isto faz que a literatura quase nunca tenha consciência tranqüila e 
manifeste instabilidades e dilaceramentos, como tudo que é reprimido 
ou contestado: tem dramas morais, renuncia, agride, exagera a própria 
dignidade, bate no peito e se justifica sem parar. Não é raro ver os 
escritores envergonhados do que fazem, como se estivessem pratican-
do um ato reprovável ou desertando de função mais digna. Então enxer-
tam na sua obra um máximo de não-literatura, sobrecarregando-a de 
moral ou política, de religião ou sociologia, pensando justificá-la deste 
modo, não apenas ante os tribunais da opinião pública, mas ante os 
tribunais interiores da própria consciência".) 
Embora o texto seja apenas o começo de um estudo sobre o ro-
mance francês do século XVII, existem nele elementos interessantes 
como maneira do crítico armar a sua leitura, a partir mesmo da frase 
inicial, de grande generalidade, e que só aos poucos vai sendo particula-
rizada. Deste modo, a afirmação de que "a literatura é uma atividade 
sem sossego" que, a princípio, poderia parecer referir-se somente ao 
próprio trabalho crítico, logo remete o leitor à indagação por sua valida-
de, em primeiro lugar desencadeada por juízes do pensamento e da moral 
que avaliam de sua "seriedade" em meio a tarefas tidas por mais impor-
tantes, e, em segundo lugar, justificada a partir de argumentos extraídos 
de uma concepção de literatura que a vê como ornamento da imagina-
ção capaz de instilar lições mais aproveitáveis. 
Neste sentido, entre a busca pela validade e as justificativas para 
a existência, a frase inicial é retomada, expandida, no parágrafo final do 
texto pela afirmação da intranqüilidade que contamina a atividade literá-
ria, travestindo-se de política, moral , religião ou sociologia, elementos com 
que joga para pacificar as tensões que a caracterizam de base. É natural, 
portanto, que o texto se encerre com uma anotação da "mauvaise conscien-
ce" que domina os escritores para quem a literatura não é senão um 
sucedâneo de serviços mais importantes a serem prestados à sociedade. 
Por outro lado, sem que ocorra qualquer demarcação temporal no 
texto, as observações do crítico possuem uma generalidade, por assim 
dizer, teórica e que, passando pela prática das análises pontuais de obras 
que realiza no ensaio, é retomada ao final, mas aí já tendo percorrido um 
longo caminho de ataques e defesas da ficção, quando extrai da leitura de 
um esquecido teórico do século XVII - o cônego François Langlois, 
vulgo Fancan, e matéria principal do ensai02 - a justificativa maior para a 
literatura de ficção, qual seja, a de que "se a História representa o desejo 
da verdade, o romance representa o desejo da efabulação, com a sua pró-
pria verdade. Esta é a sua grande, real justificativa; e, ao propô-la, Fancan 
realizou a melhor apologia possível do gênero ameaçado pelo Ministro da 
Justiça de então, mostrando que não se trata de um recurso estratégico 
I Cf. "Timidez no romance", 
em A educação pela noite e 
outros ensaios. São Paulo: 
Editora Ática, 19R7, p.82-3. 
(O ensaio foi publicado, pela 
primeira vez, com o subtítulo de 
"Estudo sobre as justificativas 
da ficção no começo do século 
XVII"', na revista Alfa da Fa-
culdade de Filosofia. Ciências 
e Letras de Marília, em 1973) 
" Prova disto é que, na edição 
em espanhol do ensaio, o seu 
título é modificado para "Fan-
can, olvidado teórico de la 
novela"'. Cf. Antonio Candido, 
Ensayos y comentarios. Cam-
pinas/México: Editora da 
Unicamp/Fondo de Cultura 
Económica de México, 1995, 
p.189-21O. 
3 
Op. cit . , p. 99 . 
Teoria e prática de Antonio Cândido 31 
para reforçar os valores sociais, ideologicamente conceituados; mas de 
resposta a uma necessidade do espírito, que se legitima a si mesma".3 
A leitura de todo o ensaio, entretanto, aponta para um aspecto curio-
so: o texto transcrito funciona, na verdade, como uma espécie de gancho 
para aquilo que será o seu argumento central, na medida em que se trata de 
um ensaio de teor histórico-literário articulado por uma vigorosa hipótese 
teórica que está, de certo modo, encapsulada neste texto. E esta hipótese é 
de que modo o romance, um gênero de ficção encarado sob suspeição por 
entre os gêneros maiores, como a epopéia e o teatro, foi encontrando justi-
ficativas para a sua validade na sociedade francesa do século XVII. 
Neste sentido, não obstante todo o aparato erudito de que se reves-
te o ensaio (e as notas e observações biobibliográficas são uma demons-
tração inequívoca disto), não se trata de um ensaio historiográfico na 
acepção tradicional, em que a coleta de novos dados, visando renovar as 
interpretações, fosse o seu maior objetivo. Nem tampouco significa que o 
miolo histórico-literário seja uma mera demonstração de tese a ser defen-
dida, mas daquilo mesmo que já ficou insinuado: de uma articulação em 
que o que era hipótese teórica no texto transcrito vai, aos poucos, inte-
grando-se como história na leitura crítica, de tal maneira que, a partir de 
um dado momento, o leitor não mais distingue teoria e história pois ambas 
foram, por assim dizer, resolvidas pela escrita crítica. 
Sem a teoria, a história não seria senão descrição sucessiva de 
dados e fatos; sem a história, a teoria não deixaria o patamar das espe-
culações generalizadoras. É como se entre a história propriamente lite-
rária - aqui representada pelo gênero romance em seus inícios france-
ses - e a história circunstancial, que aqui se representa pela sociedade 
francesa do século XVII, a teoria, isto é, a hipótese teórica das tensões 
entre validade e justificativa do romance como gênero, funcionasse como 
metáfora crítica das articulações históricas, capaz, por isso, de operar a 
convergência de literatura e história, sem perda das tensões básicas que 
caracterizam suas relações. 
Deste modo, entre a frase inicial do texto e a justificativa final, 
expressa através de Fancan, teoria e história foram soldadas pela leitura 
analítica que corresponde ao momento central do ensaio. Como, no en-
tanto, a generalidade do texto transcrito é atemporal , a hipótese teórica 
não é concludente mas se abre para outras leituras possíveis de tempos e 
espaços literários: a afirmação da validade da ficção é tarefa que acaba 
por se impor como da própria natureza do trabalho com o imaginário. 
Sendo assim, a validade será sempre uma conquista de cada obra, 
independente, de alguma maneira, da consciência do escritor que, com 
freqüência, tem dificuldade em reconhecer a sua legítima condição na 
32 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 
sociedade. Por aí, deste modo, é possível recuperar a frase inicial com 
valor positivo: o desassossegoda atividade literária é próprio da nature-
za ficcional da literatura. 
2 
Quinze anos depois do ensaio considerado anteriormente, Anto-
nio Candido escreveu o texto que passo agora a examinar: O direito à 
li te ratura . 4 
Embora tendo uma finalidade inteiramente diversa do escrito an-
terior, e sendo diferentes no próprio movimento da escrita, o primeiro 
mais ensaístico, o segundo mais didático, creio que ambos coincidem 
num ponto central e decisivo, embora, no primeiro, o porta-voz da idéia 
seja o teórico Fancan, e, no segundo, seja o próprio autor-conferencista: 
a literatura, ou a ficção em geral, como necessidade profunda do ho-
mem, instrumento capaz de intensificar um processo de humanização 
que advém precisamente das construções do imaginário. Eis um trecho 
selecionado do ensaio: 
Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as cria-
ções de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de 
uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos 
folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produ-
ção escrita das grandes civilizações. 
Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação uni-
versal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há 
homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em 
contacto com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham 
todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia 
sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegu-
ra durante o sono a presença indispensável deste universo, independen-
temente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou poé-
tica, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está 
presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito - , como anedota, 
causo, história em quadrinho, noticiário policial, canção popular, moda 
de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoro-
so ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão 
ou na leitura seguida de um romance. 
Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no 
universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo 
.. Tendo sido inicialmente um a 
palestra em curso sobre direi-
tos humanos proferida em 
198R, e publicado no livro 
Direitos humanos e . .. , em 
1989, O texto pode ser lidu 
hoje em Vários escritos. Ter-
ceira edição revista e amplia-
da. São Paulo: Livraria Duas 
Cidades, 1995, p.235-263. 
5 
Idem, p. 242-44. 
6 Idem, p.24S. 
Teoria e prática de Antonio Cândido 33 
a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal. que 
precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. 
Alterando um conceito de Ono Ranke sobre o mito, podemos dizer que 
a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como 
não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono. 
talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator 
indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na 
sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsci-
ente e no inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equiva-
lente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a 
educação familiar, grupal ou escolar.( ... ). A literatura confirma e nega, 
propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de 
vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a 
literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes 
sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas 
predominante. 
A respeito destes dois lados da literatura, convém lembrar que ela não é 
uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar proble-
mas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é 
imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador da 
personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a 
força indiscriminada e poderosa da própria realidade. Por isso, nas mãos 
do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco. Daí a 
ambi valência da sociedade em face dele, suscitando por vezes condena-
ções violentas quando ele veicula noções ou oferece sugestões que a 
visão convencional gostaria de proscrever".5 
Esta defesa do que chama, em certo momento, de "necessidade 
universal" da literatura, fundada em seu caráter de fabulação, e por aí 
respondendo ao traço construtivo e humanizador do imaginário, não sig-
nifica, como se pode ver, a aceitação parcial daquilo que, na literatura, é 
também adequação à realidade, mas insiste nas inadequações possíveis, 
geradoras, como observa o crítico, de "problemas psíquicos e morais". 
O que significa, mais uma vez, enfatizar o que de desassossego existe 
na atividade literária, agora do ponto de vista do receptor. 
Por outro lado, o que é notável, sobretudo para a compreensão do 
método crítico do autor, é como Antonio Candido, em seguida, e sem 
qualquer alarde metodológico, consegue aproximar a dialética da ade-
quação e inadequação, que no texto selecionado parece somente tradu-
zir os problemas de conteúdo da literatura, à questão mais árdua de sua 
própria formalização. E isto ocorre, sobretudo, na quarta parte do texto, 
a partir mesmo de uma afirmação essencial: 
Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de obje-
to construído; e é grande o poder humanizador desta construção. en-
quanto construção.6 
34 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5,2000 
A expressão em itálico, que está no texto, diz tudo: a função 
humanizadora da experiência literária é dependente de uma organiza-
ção imposta pelo criador em seu material, as palavras, de tal maneira 
que estas passam, como diz o autor, a exercer um "papel ordenador 
sobre a nossa mente". Neste sentido, não são os conteúdos que são 
responsáveis por aquela função, mas o modo pelo qual são organizados 
e chegam ao leitor e isto, como se vai ver em seguida, independe da 
maior ou menor transparência da linguagem ou da clareza com que são 
referidos os aspectos da realidade. Diz o crítico: 
Por isso, um poema hermético, de entendimento difícil, sem nenhuma 
alusão tangível à realidade do espírito ou do mundo, pode funcionar 
neste sentido, pelo fato de ser um tipo de ordem, sugerindo um modelo 
de superação do caos. A produção literária tira as palavras do nada e as 
dispõe como todo articulado. Este é o primeiro nível humanizador, ao 
contrário do que geralmente se pensa. A organização da palavra comu-
nica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, 
a organizar o mundo. Isto ocorre desde as formas mais simples, como a 
quadrinha, o provérbio, a história de bichos, que sintetizam a experiên-
cia e a reduzem a sugestão, norma, conselho ou simples espetáculo 
mental,7 
Os dois exemplos colhidos por Antonio Candido - um provérbio 
e um verso de estrofe de uma das Liras de Tomás Antonio Gonzaga -
esclarecem de que tipo de construção se trata, estabelecendo como 
fator de eficácia dos textos, em sua diversidade de conteúdo, o jogo com 
a linguagem capaz de criar aquilo que se poderia também chamar de 
poeticidade dos textos, ou seja, o exercício, para usar a terminologia de 
Roman Jakobson, da própria função poética da linguagem. 
No caso do provérbio - "Mais vale quem Deus ajuda do que 
quem cedo madruga" -, diz o autor: 
Este provérbio é uma frase solidamente construída, com dois membros de 
sete sílabas cada um, estabelecendo um ritmo que realça o conceito, tor-
nado mais forte pelo efeito da rima toante: 'aj-U-d-A' , 'madr-U-g-A' . A 
construção consistiu em descobrir a expressão lapidar e ordená-la segun-
do meios técnicos que impressionam a percepção.8 
Sendo assim, o conceito, que é a base do conselho proverbial, tem 
o seu efeito sobre aquele que lê ou escuta como dependente de escolhas 
e organizações operadas na linguagem e a impressão provocada estávinculada a este trabalho construtivo. Ou, para deixar o autor falar: 
Quando digo que um texto me impressiona, quero dizer que ele im-
pressiona porque a sua possibilidade de impressionar foi determinada 
7 
Idem, p.245-6. 
, Idem. p.246. 
9 Idem, ibidem. 
10 
Idem, p.247-8. 
Teoria e prática de Antonio Cândido 35 
pela ordenação recebida de quem o produziu. Em palavras usuais: o 
conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, 
uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe 
e que sugere.9 
Da mesma maneira, os efeitos, agora de tipo emocional, que de-
correm da leitura da estrofe de Gonzaga são vinculados, por Antonio 
Candido, a procedimentos de construção nitidamente desenhados na or-
ganização verbal da estrofe, que é a seguinte: 
Propunha-me dormir no teu regaço 
As quentes horas da comprida sesta; 
Escrever teus louvores nos olmeiros, 
Toucar-te de papoulas na floresta. 
E não resisto em transcrever o comentário analítico do crítico, 
dada a sua importância como elemento caracterizador de seu método. 
Ei-lo: 
A extrema simplicidade desses versos remete a atos de devaneio dos 
namorados de todos os tempos: ficar com a cabeça no colo da namora-
da, apanhar flores para fazer uma grinalda, escrever as respectivas inici-
ais na casca das árvores. Mas na experiência de cada um de nós esses 
sentimentos e evocações são geralmente vagos, informulados, e não 
têm consistência que os tome exemplares. Exprimindo-os no enquadra-
mento de um estilo literário, usando rigorosamente os versos de dez 
sílabas, explorando certas sonoridades, combinando as palavras com 
perícia, o poeta transforma o informal ou o inexpresso em estrutura orga-
nizada, que se põe acima do tempo e serve para cada um representar 
mentalmente as situações amorosas deste tipo. A alternância regulada 
de sílabas tônicas e sílabas átonas, o poder sugestivo da rima, a cadên-
cia do ritmo - criaram uma ordem definida que serve de padrão para 
todos e, deste modo, a todos humaniza, isto é, permite que os sentimen-
tos passem do estado de mera emoção para o da forma construída, que 
assegura a generalidade e a permanência. Note-se, por exemplo, o efeito 
do jogo de certos sons expressos pelas letras T e P no último verso, 
dando transcendência a um gesto banal de namorado: 
Toucar-Te de PaPoulas na floresTa. 
Tês no começo e no fim, cercando os Pês do meio e formando com eles 
uma sonoridade mágica que contribui para elevar a experiência amorfa 
ao nível da expressão organizada, figurando o afeto por meio de ima-
gens que marcam com eficiência a transfiguração do meio natural. A 
forma permitiu que o conteúdo ganhasse maior significado e ambos 
juntos aumentaram a nossa capacidade de ver e sentir. 10 
É esta capacidade de ampliação que o autor identifica com o que, 
diversas vezes no texto, chama de função humanizadora da literatura: "o 
36 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5,2000 
processo que confinna no homem aqueles traços que reputamos essenciais, 
corno o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição 
para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de pene-
trar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da comple-
xidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor" .11 
Mas, atenção!, é urna ampliação conquistada tanto pelas mensa-
gens de que a literatura é portadora quanto, e sobretudo, pelo modo de 
organização dessas mensagens, de que depende a sua eficácia. Daí a 
afinnação exemplar que se lê logo adiante: 
A eficácia humana é função da eficácia estética, e portanto o que na 
literatura age como força humanizadora é a própria literatura, ou seja, a 
capacidade de criar formas pertinentes. 12 
Por isso não basta a qualidade da mensagem para a detennina-
ção do valor da obra, nem mesmo uma positividade ou urna negatividade 
anterior à realização da obra: a criação de "fonnas pertinentes", em que 
leio aquelas que são isomórficas em relação ao que se quer dizer, é que 
instaura o valor da literatura enquanto prática social. Algo semelhante 
àquilo que foi dito por outro grande ensaísta latino-americano, Octavio 
Paz, em texto intitulado Forma y significado: 
Las verdaderas ideas de un poema no son las que se le ocurren aI poeta 
antes de escribir el poema sino las que después, con o sin su voluntad, 
se desprenden naturalmente de la obra. El fondo brota de la forma y no 
a la inversa. O mejor dicho: cada forma secreta su idea, su visión deI 
mundo. La forma significa; y más: en arte sólo las formas poseen 
significación. La significación no es aquello que quiere decir el poeta 
sino lo que efectivamente dice el poema. Una cosa es lo que creemos 
decir y otra lo que realmente decimos.1 3 
A função humanizadora da literatura, ou suas funções psicológi-
ca, social e histórica, portanto, não está vinculada à adequação aos as-
pectos da realidade, mas passa, antes, pelas incertezas e pelos desas-
sossegos da própria construção da literatura enquanto literatura e, deste 
modo, pelas inadequações, contradições e paradoxos, substratos da lin-
guagem. 
l I 
Idem, p. 249. 
12 
Idem, p. 251. 
1J Cf. Corriente {I/terna. Mé-
xico: Siglo Veintiuno Edito-
res, 7a.ed.,1973, p.7-8. 
1+ 
Cf. Literatura e sociedade. 
EsTUdos de teoria e história 
literária. São Paulo: Compa-
nhia Editora Nacional. 1965, 
p.3-17. 
1\ Idem, p.3-4. 
Teoria e prática de Antonio Cândido 37 
3 
Não se chegou a este tipo complexo de reflexão sobre as 
intrincadas relações da literatura com a vida social sem uma larga expe-
riência e é de vinte e três anos antes do texto anterior (OU mesmo vinte 
e sete, se contarmos com o fato de que "é o desenvolvimento de uma 
pequena exposição feita sob a forma de intervenção nos debates" de 
congresso de crítica em 1961, conforme se esclarece em nota de rodapé) 
aquele que, a partir de agora, passo a comentar: o ensaio Crítica e 
sociologia, publicado em 1965. 1-1 Eis o trecho inicial do ensaio: 
Nada mais importante para chamar a atenção sobre uma verdade do que 
exagerá-la. Mas também, nada mais perigoso, porque um dia vem a rea-
ção indispensável e a relega injustamente para a categoria do erro, até 
que se efetue a operação difícil de chegar a um ponto de vista objetivo, 
sem desfigurá-la de um lado nem de outro. É o que tem ocorrido com o 
estudo da relação entre a obra e o seu condicionamento social, que a 
certa altura do século passado chegou a ser vista como chave para 
compreendê-la, depois foi rebaixada como falha de visão, - e talvez só 
agora comece a ser proposta nos devidos termos. Seria o caso de dizer, 
com ar de paradoxo, que estamos avaliando melhor o vínculo entre a 
obra e ambiente depois de termos chegado à conclusão de que a análise 
estética precede considerações de outra ordem. 
De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma 
obra dependiam dela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que 
este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se 
à posição oposta, procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é 
secundária, e que a sua importância deriva das operações formais pos-
tas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a toma de fato inde-
pendente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, conside-
rado inoperante como elemento de compreensão. 
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma 
dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo 
texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tan-
to o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o 
outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente inde-
pendente, se combinam como momentos necessários do processo inter-
pretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, 
não como causa, nem como significado, mas como elemento que desem-
penha um certo papel na constituição da estrutura, tomando-se, portan-
to, interno. 15 
Sem desprezar o fato de que

Outros materiais