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A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-0103-6963l é uma publicação anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralicl. entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários. pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. DIRETORIA 1998-2000 Presidente: Evelina Hoisel (UFBA); Vice-Presidente: Eneida Leal Cunha (UFBA) Primeira Secretária: Ana Rosa Ramos (UFBA); Segunda Secretária: Liv Sovik (UFBA) Primeira Tesoureira: Antonia Herrera (UFBA); Segunda Tesoureira: Maria de Lourdes Netto Simões (UESC) CONSELHO Beatriz Resende (UFRJ); Eduardo Coutinho (UFRJ); Gilda Neves da Silva (CFRGS) Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFMS); Raul Antelo (UFSC); Reinaldo Martins (UFMG); Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC) Renato Cordeiro Gomes (PUC-RI); Suplentes: Maria Luisa B. da Silva (UFRGS) Vera Lúcia Romariz de Araújo (UFAL) CONSELHO EDITORIAL Benedito Nunes, Bóris Schnaiderrnann, Dirce Cortes Riedel, Eneida Maria de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raúl Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal, Yves Chevrel. Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva responsabilidade de seus autores. © 2000. Associação Brasileira de Literatura Comparada. Todos os direitos reservados. Nenhuma partedesta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito. Revisão Cássia Lopes Jane Lemos Editoração Bete Capinan Impressão Tiragem 1000 exemplares Apoio Instituto de Letras Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ R349 Revista brasileira de literatura comparada. - N. 1 (1991) - Rio de Janeiro: Abralic, 2000 - v. Anual Descrição baseada em: N. 3 (1996) ISSN 0103-6963 1 Literatura comparada - Periódicos. I Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05) Apresentação Os trabalhos reunidos no número cinco da Revista Brasileira de Literatura Comparada atestam o profícuo debate que se dissemina hoje no âmbito dos estudos comparatistas. A pluralidade de perspectivas, de abordagens teóricas e críticas dos trabalhos apresentados traduzem a multiplicidade de questões que caracterizam a Literatura Comparada neste final/início de milênio. Nesta diversidade, perpassa contudo uma espécie de fio condutor que enlaça os ensaios deste volume: a questão dos trànsitos culturais, estímulo para as reflexões sobre viagens, tradi- ção, identidades, culturas,tradução, globalização, transnacionalidade. Estes temas, desenvolvidos sob o prisma da releitura e da reversão dos valores culturais, impõem variadas formas de diálogos que se estabele- cem entre o local e o global, o nacional e o trasnacional, o passado e o contemporâneo. Evelina Hoise! Sumário o estatuto do poema de&critivo de Elizabeth Bishop Si/viano Santiago 9 "Alteridade" desde Sartre até Bhabha: um surf para a história do conceito Ellen Spielmann 1 9 Teoria e prática de Antonio Candido João Alexandre Barbosa 29 Que faremos com esta tradição? Ou: relíquias da casa velha Renato Cordeiro Gomes 43 Antropofagia no país de sobremesa Vera Lúcia F ollain de Figueiredo 5 7 A pedra flexível do discurso: imagens do Brasil na Alemanha de Goethe MyriamÁvila 65 Goethe, um teórico da transnacionalidade Eloá Heise 77 De traduções, tradutores e processos de recepção literária Tania Franco Carvalhal 85 Literatura e música: trânsitos e traduções culturais Solange Ribeiro de Oliveira 93 Tránsitos intranquilos: Carlos Gardel y Carmen como símbolos nacionales Florencia Garramufío 1 O 1 Fluidez y transformación: religión, arte y género en las fronteras de norte y sudamérica Malgorzata Oleszkiewicz 1 1 3 Entre o global e o local: cultura popular do Vale do Jequitinhonha e reciclagens culturais Reinaldo Marques- 1 25 8 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 "Las dos Américas" de Carlos Fuentes. La tradición hispánica y la búsqueda deI lugar común Graciela M. Barberia 1 4 1 Cultura brasileira: a África e a Índia dentro de nós Vera Romariz Correia de Araújo 1 49 Nota de pé de página e espaço romanesco: discursos de trânsitos e traduções culturais em A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins Ilza Matias de Souza 1 65 A vocação para o abismo: errância e labilidade em Clarice Lispector Lucia Helena 1 79 EI discurso zapatista, (,un nuevo discurso o un discurso emergente? Alejandro Raiter e Irene Munoz 1 9 1 'Trabalho apresentado na con- ferência internacional "The art üf Elizabeth Bishop" , realiza- da em Ouro Preto, entre os dias 1ge21 de maio de 1999, o estatuto do poema descritivo de Elizabeth Bishop* Silvia no Santiago Universidade Federal Fluminense Você faz com que me sinta analfabeta! [ ... ] Os cenários, ou descrições, dos meus poemas são quase sempre fatos simples - ou o mais próximo que consigo chegar dos fatos. Mas, como eu disse , acho fascinante você ver que o meu poema desperta tantas referências literárias em você! Carta de Elizabeth Bishop a Jerome Mazzaro, 27 de abril de 1978. Uma das questões que a poesia de Elizabeth Bishop coloca é a do esta- tuto epistemológico do poema descritivo na contemporaneidade, vale di- zer, na modernidade tardia [high modernity]. De início, vamos aprovei- tar algumas das suas próprias palavras, retrabalhando-as com rompan- tes de sabotagem, como é de se esperar numa leitura crítica. Começarei por repetir, com a sua ajuda, que o poema descritivo da autora de North & South encena um jogo lingüístico que se passa entre a visualização objetiva do que "realmente aconteceu" e a sucessiva tradução sensível [rendering] do acontecimento privilegiado, tarefa a ser executada pela palavra poética. Dada a altitude da poesia em análise, esse jogo lingüís- tico traz implícita uma obsessiva e, por isso, interminável, aposta do eu lírico com a busca da verdade sobre o fato descrito. 10 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 A experiência vivida do poeta - observamos melhor - não é (e pode até ter sido - mas não é disso que estamos falando) gravada em palavras imediatamente derramadas pela folha de papel em branco, em consonância com o calor da hora e a espontaneidade sentimental. Seriam estas as características das anotações apressadas e das impressões de turista ou de viajante por distantes terras. A experiência vivida que se encaminha para a forma poema - excepcional pelo seu retomo obsessi- vo e inadiável no cotidiano do poeta, simbólica pelo lugar soberano que passa a ocupar nas suas mais básicas e elevadas preocupações literárias, - fica gravada e aprisionada em outro e mais espaçoso e mais elástico lugar, como veremos, até que possa ser entregue ao leitor como poema. Em cima da grafia da experiência vivida, por mais fugaz que esta tenha sido, o poeta exerce paradoxalmente um controle a posteriori [apres coup] que espicha o instante da visualização, os momentos da observação aguda e as horas de encantamento por um longo e revivido tempo, época alongada por anos a fio em que se acentua o lento e metódico processo de trabalho com as palavras, com os versos do futuro poema. Essa luta insana com as palavras, trabalho propriamente poético, está situada a posteriori de toda e qualquer experiência de vida e é detalhe importante da poética de Bishop. Amigos e também poetas, como é o caso de Robert Lowell, foram extremamente sensíveis a ele. No poema "For Elizabeth Bishop 4", per- gunta-lhe Lowell: "DoI you still hang your words in air, ten years/ unfinished, glued to your notice board, with gaps/ or empties for the unimaginable phrase - unerring Muse who makes the casual perfect?"l Essa espera silenciosa diante da grafia da experiência - marca do autênticolabor poético, alquimia que transforma o casual em pelfect, para retomar as percucientes palavras de Lowell- se dá nos bastidores do poema como recolhimento2 do ser na memória e na saudade. Pergun- ta Bishop no poema "Santarém": "Claro que eu posso estar lembrando tudo errado/ depois de - quantos anos mesmo?" Tudo está lembrado na memória de maneira correta, corretíssima, como dois e dois são cinco- adiantemos um pouco o raciocínio. A espera silenciosa diante da grafia da experiência serve ainda para colocar o poema descritivo de Bishop, apesar da alta carga de sub- jetividade que ele comporta, ao lado dos poemas escritos pelos chama- dos poetas modernos construtivistas, ou seja, dos poetas que, desde Mallarmé, passando por Paul Valéry e o Ezra Pound editor de The Waste Land, acreditam que "cada átomo de silêncio/ é a chance de um fruto maduro", como está no célebre poema "Palmes", de Paul Valéry3. Essa mesma espera trabalhadora e silenciosa do poeta diante da grafia da experiência, recolhimento do ser humano na memória e na sau- I "Ainda penduras tuas pala- vras no ar por dez anos, ina- cabadas. coladas no teu qua- dro de avisos, com lacunas ou vazios para a expressão incon- cebível- Musa infalível que tomas o espontãneo perfeito?" 2 Palavra tipicamente baude- laireana_ Veja o soneto de mes- mo nome "Recueillement": "Sois sage, ô ma douleur, et tient-toi plus tranquille ___ " So- bre o conhecimento que Bishop tinha da poesia de Baudelaire, leiam-se os co- mentários extraordinários e sutis que faz às traduções do amigo Robert Lowell (v_ carta de I" de março de 1961: "É claro que as únicas traduções que tenho condições de julgar são as do francês ___ ")_ 3 Patience, Patience./ Patience dans l' azur!/ Chaque atome de silence/ Est la chance d ' un fruit mOr!" Comenta o filóso- fo Alain: "Pafience, Pafience - tel est le maftre moI. On admire ces longs silences du poête; je ne m' en étonne point. Si Hugo avait refusé tes vers trop faciles, quels sitences!" 4 Estamos tomando o conceito de labol'de maneira aproxima- da ao tomado por Marcia Tucker, diretora do The New Museum of Contemporary Art ~ responsável, juntamente com Isabel Venero, pela exposição --The Labour of Love", reali- zada em 1996 na cidade de Nova Iorque. o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 11 dade, é que aproxima Elizabeth Bishop dos poetas brasileiros de sua predileção, entre eles Carlos Drummond de Andrade ("Itabira é apenas uma fotografia na parede.! Mas como dói!") e João Cabral de Melo Neto ("Há vinte anos não digo a palavra! que sempre espero de mim. Ficarei indefinidamente contemplando! meu retrato eu morto"). Clarice Lispector, outra das escritoras favoritas brasileiras de Elizabeth Bishop, utiliza a palavra cuidado para descrever o processo muito especial- um misto de espera, paciência, atenção e de trabalho - que leva as coisas e os seres humanos a crescerem harmoniosamente, visto que por causa dele é que escapam às injustiças e desmandos de uma visão pragmática e masculína de progresso. "Tudo é passível de aperfei- çoamento ... " -lê-se no conto "Amor". Em carta a amigos, Bishop ano- ta: "Na cama estou lendo todo o Dickens, livro por livro, com a estranha ambição de escrever- ou melhor, terminar- um soneto sobre ele". O cuidado, alerta Clarice, não pode ser confundido com o trabalho material, no sentido em que o empregam as teorias econômicas, impostas como universais à sociedade pelo homem. O cuidado seria, na falta de outra palavra, o labor", o labor familiar em Clarice Lispector, o labor poético em Elizabeth Bishop, Carlos Drummond ou João Cabral. Complementa João Cabral: "a forma atingida! como a ponta de novelo! que a atenção lenta,! desenrola,/ aranha; como o mais extremo/ desse fio frágil, que se rompe! ao peso, sempre, das mãos! enormes", O labor, em Clarice Lispector (e ousamos acrescentar: em Elizabeth Bishop e tantos outros poetas), é manifestação não da força humana alienada em trabalho socialmente útil e aferido pelos índices de produti- vidade, mas do cuidado, manifestação do "trabalho" que contribui para o progresso qualitativo do indivíduo e, por conseqüência, do ser huma- no. Escreve Bishop a Kit e Ilse Barker: "Tenho pena de pessoas que não conseguem escrever cartas. Mas desconfio também de que eu e você, Use, adoramos escrever cartas porque é como trabalhar sem estar de fato trabalhando [grifo nosso]". O cuidado re-orienta a história social tal como movimentada e explicada pelo macho trabalhador. O cuidado pode levá-lo a perceber, caso abandone as intransigências do falocentrismo teórico, que existe uma forma suplementar de "progresso" que, sem tra- zer à tona as injustiças desmascaradas pela análise do modo de produção capitalista tal como o faz a teoria econômica marxista, ou trazendo-as de maneira "oblíqua", para usar uma palavra cara a Clarice, é também e principalmente útil à vida humana, tornando-nos mais dignos de convi- ver com os seres dos reinos animal, vegetal ou mineral. Nas sociedades modernas, é o labor que reequilibra o processo da circulação hierárqui- ca das pessoas entre outras pessoas e o processo de circulação das pes- 12 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 soas entre animais, plantas e minerais, e é ele que, finalmente, não deixa que seja o homem que ordene de maneira imperiosa e destrutiva a natu- reza, Carlos Drummond já clamara contra a falta de cuidado dos minei- ros no poema" A montanha pulverizada", Começa por constatar: "Che- go à sacada e vejo a minha serra,/ a serra do meu pai e meu avô", para em seguida descobrir estupefato: "Esta manhã acordo e/ não a encontro.! Britada em bilhões de lascas/ deslizando em correia transportadora/ en- tupindo 150 vagões/ no trem-monstro de 5 locomotivas .. ," Retomemos. Aquilo que "realmente aconteceu" vai ser dramatiza- do no poema descritivo de Elizabeth Bishop como um dom da aventura, vale dizer, um dom da vida ao sujeito. A resposta humana mais óbvia ao fato marcante acontecido é a dada pelo arrepio e, principalmente, pelo grito. Eis algumas frases bem conhecidas de todos os presentes que, à guisa de exemplo, extraímos do conto "Uma aldeia": "Um grito, o eco de um grito paira na aldeia." "É assim que o grito permanece suspenso, inaudível, na memória, no passado, no presente e nos anos que os sepa- ram". O grito que estoura os tímpanos - epifânico, esplendor e frag- mento significativo do que "realmente aconteceu" - tem um tempo que lhe é próprio, circunscrito e circunspecto, tempo empírico, metrificado pela emoção do sujeito e os ponteiros do relógio. Trata-se de um tempo límpido que nem relâmpago e logo apagado, esquecido, mas sempre pres- tes a ser movimentado novamente em forma de eco. O grito tem também um tempo que extravasa os moldes recalcados da percepção instantânea e se esgueira delirante, em eco do eco do eco, pela memória, já sob a forma de sucessivos traços mnésicos, onde o presente é a letra morta do passado que se perpetua em pequenas mortes e lentas e incompletas res- surreições. De maneira bem mais clara, fala Elizabeth Bishop no conto "Primeiras letras": "O nome verdadeiro dessa sensação é memória. Tra- ta-se de uma lembrança que nem preciso tentar evocar, ou recuperar; está sempre presente, clara e completa". Como escreveu, na mesma época, o poeta Ferreira Gullar no poe- ma intitulado "Galo Galo": "Grito, fruto obscuro/ e extremo dessa árvo- re: galo.! Mas que, fora dele,/ é mero complemento de auroras" . O grito é dentro e é fora. É fruto e é complemento de auroras. É sopro e é eco. É subjetivo e é comunitário. É o alvoroço da mente que se exprime pelo sopro; é o eco que orquestra o alvoroço e os ruídos da cidade. O grito obriga-nos a querer distanciar do sofrimento que representa, ao mesmo tempo em que traz, guardado a sete chaves, secretamente, o gosto amar- go do seu retorno, incansável e inesgotável. Distanciar, abandonar a cena e o local do grito. Deixá-lospara trás, mesmo sabendo que a vida se desenha por rastros e circula pelo globo em singraduras. 5 Lembro-me de uma cena do filme Nick's n/ovie, em que o ~ineasta alemão Win Wenders relata os últimos dias de vida Jo diretor Nicholas Ray. Em Jeterminado momento, repro- Juz · se na tela um velho >l'estern de Ray em que o ator Robert Mitchum, já velho, volta ao rancho onde foi cria- do. Escorrega por debaixo da casa em palafitas e descobre, escondidos, alguns gibis . Co- menta Ray: "Toda a minha obra foi sobre a idéia do lar". o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 13 Viajar toma-se para Elizabeth Bishop uma necessidade imperiosa e a cartografia dos deslocamentos, das derrapagens e dos imprevistos transforma-se num deleite para os olhos, o corpo e a imaginação. No poema "Questions of traveI", lê-se: "But surely it would have been a pity/ not to have seen the trees along this road,/ really exaggerated in their beauty,/ not to have seen them gesturing/ like noble pantomimists, robed in pink." Viajar traz sempre matéria nova, dura e incandescente, que precisa ser ordenada pelas palavras a fim de que, ao se escapar da vida no momento em que é vivida, não se escape pelo esquecimento à essência da biografia. Lembrar é preciso. A grafia da vida, no poema descritivo de Elizabeth Bishop, se impõe como letra morta. Letras ao ar, como diz Robert Lowell; roupas lavadas, diremos nós, que são esticadas no varal da imaginação à espera do sol da atenção, da chuva que as enxágua uma vez mais tomando-as mais limpas, do dia que incorpora novas sombras ao quadro, da noite que oferta o acaso das descobertas. Letras ao ar à espera do "casual perfect". O poema. A viagem não significa necessariamente distanciamento geográfi- co de um lugar para outro e novo lugar, deste novo lugar para outro diferente. "Should we have stayed at home, wherever that may be" - pergunta Elizabeth Bishop. E, por isso, acrescentamos, a viagem signifi- ca distanciamento, mas desde que se entenda a geografia por uma lógica que, imperiosa, doloridamente esquarteja e redistribui o ser pelas mil e uma diferentes partes do planeta - norte e sul, leste e oeste - para poder melhor englobá-lo no seu home. 5 Em "Crusoe in England", lê-se: "I told myself/ "Pity should begin at home." So the morei pity 1 felt, the more 1 felt at home". Foi preciso que Elizabeth Bishop viajasse ao Brasil para que re-escrevesse a qualidade única da sua grafia de vida menina na Nova Escócia. Não é assim que devemos entender esta frase escrita a Kit e Use Barker, em 12 de setembro de 1952: "É engraçado - eu venho para o Brasil e começo a me lembrar de tudo o que me aconteceu na Nova Escócia - pelo visto, a geografia ainda é mais misteriosa do que a gente pensa". Quatro anos depois, ainda em Petrópolis, escreve um longo poema que se passa na Nova Escócia, "The moose", poema dedi- cado à tia Grace. (E o poema é também uma letra morta cuja ressurreição se dá a cada nova leitura.) Escrever poemas. Desenterrar e ressuscitar paisagens, desenter- rar e ressuscitar cadáveres, desenterrar e ressuscitar lembranças, desen- terrar e ressuscitar emoções, desenterrar e ressuscitar anotações, desen- terrar e ressuscitar leituras, e assim ad infinitum - eis o trabalho religi- oso e sacrílego do poeta com as palavras. Esse trabalho acabou por ter 14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 o nome com quatro letras de uma musa e por receber uma lógica econô- mica determinada pelo amor e por Camões: "que quanto mais vos pago, mais vos devo". Elizabeth Bishop escreve em carta: "Detesto perder gen- te". Viajar é um longo aprendizado nas artes pouco recomendáveis da necrofilia e os mapas são as tábuas anatômicas em que se expõem à análise paisagens, cadáveres, lembranças, emoções, anotações e livros. Assim sendo, o que foi considerado no parágrafo inicial desta palestra de "tradução do acontecimento" vem balizado por um discurso poético que se apresenta sob a forma constante de autoconhecimento (o "conhece-te a ti mesmo socrático"), ainda que muitas vezes, no poema descritivo de Elizabeth Bishop, os dados propriamente autobiográficos se represen- tem escamoteados, ou camuflados na superfície da escrita asséptica e necrófila. Elizabeth Bishop não é uma modernista, ou vanguardista como dizem os anglo-saxões. Por isso, seus poemas descritivos, mesmo os mais calçados pela influência de João Cabral de Melo Neto ("The Burglar of Babylon") ou da sua amiga Lota Macedo Soares ("Manuelzinho"), pouco ou nada têm a ver com estéticas nacionalistas ou ufanistas ("I somehow never thought of there being a flag" - não deixa de ser um verso emblemático). Elizabeth Bishop é uma modernista tardia, ou seja, uma high modernist. Nos seus poemas descritivos, devemos içar os da- dos autobiográficos do fundo do poço do poema num processo que equi- vale ao de freqüentar com carinho e sensibilidade certas e inúmeras "fon- tes", hoje guardadas como pequenos caixões de anjos nas alcovas das bibliotecas norte-americanas. Fontes como cartas enviadas e recebidas, anotações rápidas e travessas, relatos de conversa, entrevistas, depoi- mentos, rascunhos de possíveis obras, diários íntimos próprios e alheios, etc., etc. Um cotejo desses inumeráveis papéis avulsos com o texto final- mente dado à luz como digno do nome poema acaba sendo revelador da intensidade das impressões subjetivas no processo de elaboração do poema descritivo de Elizabeth Bishop. Por intensidade das impressões subjetivas devemos entender basi- camente pressões internas/externas ao poema. As pressões que o poeta sofre em sucessivos instantes passageiros. Estamos falando, portanto, das pressões exercidas seja pelo convívio social com os familiares ou sucedâneos, seja pelo pequeno mundo cosmopolita que a escritora fre- qüenta, seja ainda pelo vasto mundo lá fora que lhe chega pelos meios de comunicação de massa ou por simples cartas; estamos falando das pres- sões impostas pela flora e fauna circundantes, anotadas com cuidado em cadernos e papel de carta; estamos falando, ainda e sobretudo, das pres- sões, na maioria das vezes inconscientes, exercidas pela leitura tanto de o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 15 textos literários, quanto de textos não-literários. Nesse exercício, como em outros, Elizabeth é antes de mais nada intrometida. Em carta a Frani Blaugh, escreve: "Espero que você traga [de Nova Iorque] alguns livros. Os livros que mais gosto de ler são sempre os que tiro de alguém que ainda os está lendo". A anotação despreocupada traz algo antecipatório da arte de vida e da estética de Bishop. A leitura do livro tomado à amiga passa a dar continuidade à primeira leitura, e vice-versa, na medida em que ambas se repousam no eixo do empréstimo, ou seja, de uma troca em que alguém perde para que o outro ganhe, em que alguém ganhe para que o outro perca. "The art of losing isn't hard to master". Vamos a um único exemplo de pressão de textos nitidamente auto- biográficos sobre o texto do poema, pois o tempo ruge. Um lugar de Petrópolis. O sítio de Alcobacinha. Ali, diz ela em carta à doutora Anny Baumann, "umas nuvens despencam das montanhas igualzinho a cacho- eiras em câmara lenta", esse lugar, essas palavras exercem pressão auto- biográfica sobre o poema "Questões de viagem", onde se encontram trans- critas em laboriosos versos: "and the pressure of so many c10uds on the montaintops/ makes them spill over the sides in soft slow-motion,/ tuming to waterfalls under our very eyes". Diante das palavras por que começamos esta palestra, tão diretas na sua simplicidade e tão excludentes na sua postura teórica, já é chega- do momento de tomar. um definitivo cuidado epistemológico. Aquilo que "realmente aconteceu", para usar agora a linguagem freudiana, é já e sempre um traço mnésico. O que estamos chamando de "tradução do acontecimento" não se refere, pois, a apenas um movimento dos olhos, do olhar observador,que determina pelos sentimentos pessoais a pala- vra, numa ligação direta entre a emoção do sujeito e a paisagem vista ou entrevista. Não se refere tampouco à redução da história do indivíduo a um determinismo linear que considere apenas a ação do passado sobre o presente. Refere-se antes a um reordenamento dos traços mnésicos que estão sempre já [toujours déjà] inscritos na memória do poeta, reordenamento que é proporcionado ou ditado pela atenção ao instante que já não é mais o presente mas o passado no seu devir. Ao contrário do que pode sugerir o poema "Santarém", a lem- brança nunca erra. Ela está sempre acertando, ao transformar, ao reordenar os traços mnésicos, como quis Jacques Lacao e Jacques Derrida ao relerem Freud. Escreve este em carta a William Fliess, datada de 6 de dezembro de 1896: "[ ... ] trabalho na hipótese de que o nosso mecanismo psíquico se tenha estabelecido por estratificação: os materiais presentes sob a forma de traços mnésicos sofrem de tempos em tempos, em função de novas condições, uma reorganização, uma reinscrição" [os grifos 16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 são dele]. Acrescentam Laplanche e Pontalis: "A remodelação posterior é acelerada pelo aparecimento de acontecimentos e de situações, ou por uma maturação orgânica, que vão permitir ao indivíduo acesso a um novo tipo de significações e a reelaboração das suas experiências anteri- ores". Como passar de "lacunas e vazios" à "expressão inconcebível"? - não é assim que se refere Lowell ao mistério da poesia de Bishop e, principalmente, à busca da perfeição por parte dela? No caso de Elizabeth Bishop, a opção pela escrita poética descri- tiva aponta a priori na direção de um feixe complexo e globalizador de discursos (em que a distância rígida entre elevado/sublime/erudito e bai- xo/popular/pop toma-se precária, substituída que deve ser pela noção de intensidade, de pressão, e, conseqüentemente, pelo deslizamento sub- reptício das repetições em diferenças). A opção pela escrita poética des- critiva serve também para recobrir uma ética que lhe é muito particular: a do modo confessional no campo das Letras; ética que tem sido recoberta pelos adjetivos tímida, discreta, sorrateira, etc. Lembro-me de Paul Valéry que, em carta a André Gide, lhe dizia que há coisas que são ditas "pour toi" [para ti] e outras que são ditas "pour tous" [para todos]. Con- fundir o modo confessional instaurado pelo "pour toi" com o "pour tous" pode levar a desentendimentos éticos definitivos na leitura da sua poesia. Seria correto questionar o glamour com que Elizabeth Bishop cercou o privado sem cercear curtas incursões pelo público? Reorganizando as idéias, complementemos que a busca da verda- de pelo sujeito no poema descritivo de Elizabeth Bishop, produto incan- sável da reorganização e reinscrição dos traços mnésicos no mecanismo psíquico, dá-se de duas formas. Primeiro, como produto de uma concor- rência inesgotável de discursos paralelos, complementares ou suplemen- tares. O poeta, enquanto ser humano em sociedade, está sempre fabri- cando novos feixes de discurso que, nas mãos do leitor, passam a ser "fontes" inesgotáveis do aprimoramento da leitura de tal ou qual poema. Segundo, serve para estabelecer o que podemos chamar de protocolos éticos (no concreto do dia-a-dia profissional e no vulgar das fofocas , alguém pode dizer tudo, mas tudo depende do que esse alguém diz, do modo como o diz e a quem diz). As traduções do acontecimento, isto é, as reorganizações do traço mnésico, podem e devem ser consideradas como alegorias do eu, inde- pendente do fato de o poema descritivo tematizar uma paisagem, um animal ou seres humanos. Nesse sentido, talvez, não seja tão prudente (a não ser por critérios exclusivamente didáticos) estabelecer distinções 6 entre alegorias impessoais, onde domina a presença da flora e da fauna, e alegorias subjetivas, onde dominam as experiências propriamente pes- 6 As distinções binárias (vida/ morte , certo/errado ... ) não eram do gosto de Bishop. De- viam diluir-se em "deslumbran- te dialética" (v. "Santarém"). o estatuto do poema descritivo de Elisabeth Bishop 17 soais, e distinguir ainda entre as duas formas e as alegorias sociais, onde domina a presença do Outro, em geral de classe social mais baixa. O leitor pode e deve trabalhar com um sistema de dominância, pois é este sistema que chega a melhor explicar o interesse e a atenção do poeta em dada circunstância (não falaremos mais do foco dos olhos, mas do traba- lho necrófilo da memória). Esse sistema de dominância é que possibilita- rá a leitura de uma visão de mundo diferenciada ou uma concepção evolutiva do fazer poético. "Alteridade" desde Sa rtre até Bha bha: um surf poro o história do conceito Ellen Spielmann Universida Livre de Berlim Como proceder para traçar um mapa, levantar uma cartografia deste campo? Começo por imaginar uma situação concreta: "Moço, por favor, como faço para chegar na Praça da Alteridade, na Place de l'Alterité? - "Muito fácil". Até esta praça conduziram, ao fim dos anos 40, três avenidas principais. Estas avenidas foram ampliadas ao fim dos anos 50, e finalmente, como vocês sabem, desde o começo dos anos 60 fo- ram recolocadas pelas auto-estradas e pelos serviços de helicóptero. As avenidas chamam-se O ser e o nada (L 'être et neant) de Jean Paul Sartre de 1943, O tempo e o outro (Le temps et f'autre) de Emmanuel Lévinas de 1946 e O segundo sexo (Le deuxieme sexe) de Simone de Beauvoir de 1949. A ampliação destas avenidas começou com Jacques Lacan desde seu discurso de Roma em 1953, e com Frantz Fanon no lapso que vai desde Rostos negros, máscaras brancas (Peau noire, masques blancs) de 1952 e Os condenados da terra (Les damnés de la terre) de 1958. Os engenheiros da auto-estrada chamam-se Edward Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha. Voarei agora sobre a Place de r Alterité com Gayatri Spivak. Ela ressalta, em 1989, a propósito da exposição Magiciens de la terre, no Centre Pompidou de Paris, que alteridade é um conceito que aparece em inglês somente em meados dos anos 80 como tomado do francês através da discussão sobre os trabalhos de Emmanuel Lévinas, quer PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 dizer, com 40 anos de atraso, e - digo de passagem - também a senhora Spivak chega com certo atraso à Place de /'Alterité. Ela toma o conceito de Lévinas do totalmente Outro sua "chama de rebate" para que o "totalmente outro" (le tout-autre) não seja reduzido ao mesmo/ ao próprio. Lévinas diz no livro O tempo e o outro: "O outro é o futuro; a relação com o outro é a relação com o futuro". E continua: "Eu defino o outro não através do futuro, senão o futuro através do outro, pois justo o futuro consta da alteridade total da morte". O outro que narramos, compreendemos, dominamos une-se e afiança-se com o mesm% outro através de um mecanismo: "o estado do espelho" - stade du miroir, (nas palavras de Lévinas face a face avec autrui, elaborado e formu- lado por Jacques Lacan. A prevenção de Lévinas, segundo Gayatri Spivak, está unida à exigência de que antes de qualquer "ontologia" ou "fenomenologia trans- cendental" introduz-se uma ética da ética do "outro absoluto" (tout autre). Se pensamos o discurso de Lévinas sobre o outro até suas últimas conse- qüências, estamos diante de uma radical generosidade no momento da aproximação na qual o mesmo move-se em direção ao outro. E se for- mos um passo mais além, diremos que, em última instância, ele (o dis- curso) pede que o outro não agradeça. Durante o vôo que realiza Gayatri Spivak, em 1989, sobre a Place de I 'Alterité a partir do convite para comentar o conceito, ela só se preocu- pa frente a um campo: a "subalteridade" - subalternity: campo que ela define como ainda não determinado pela dinâmica de política, cultura po- lítica, política cultural, cultura para a política. Para os sujeitos subalter- nos, não lhes outorga, nãolhes concede uma posição de sujeito. No seu trabalho, Spivak situa a subaltemidade como arena ofiudgement ar testin ( "arena de julgamento ou teste") porque - é esta a forma como argumen- ta - porque nem a lógica da democracia parlamentária, nem a planifica- ção socialista, nem a da identidade cultural dão conta dela. Escreve: This space is not, "uncontaminated" by the West, and certainly not apart" by collective social choice. Although cultural or political institutions, by definition, do not give them any support for them to be constituted as social agency ofjudgement,for my own work ( .. .) Therefor I will say no more than that is for us a space of anxiety. It is also a space of a genuine aporia of history. Both culturalism and the politics of of the nation-state will transform this ambiguous placel. Em seguida, tratando por um lado da genealogia da noção filosó- fica "alteridade", procuro descrever e discutir diretamente cada uma das I Gayatri Spivak. Oulside in lhe leaching machinc. New York : Routledge, 1993, p. 213-14. "Alteridade" desde Sartre até Bhabha ... 21 distinções. Emerge a pergunta: o que é alteridade nos anos 40? Por outro lado, dou peso ao momento mediato: a conexão com outros debates e, com eles, a introdução de um metadiscurso dos discursos sobre alteridade. Jean Paul Sartre publicou, três anos antes de O tempo e o outro de Lévinas, seu primeiro livro de filosofia, O ser e o nada, onde desenvol- ve, programaticamente, uma fenomenologia do outro e da alteridade. Tal filosofia constitui-se em nível dos indivíduos no marco de uma filosofia existencialista. Para isso, Sartre apropriou-se da dialética de "O senhor e o escravo" de Hegel para levá-la ao seu extremo e assim reformulá-Ia. Bem, há que se advertir que a estratégia de Sartre faz parte de uma constante na filosofia francesa do século Xx. A relação maitre et esc/ave une em francês dois momentos-chave da filosofia do outro: tra- ta-se da relação "Senhor e escravo" em Hegel e "Senhor e escravo" em Friedrich Nietzsche. Com essa espécie de passo de prestidigitação, surge um duplo teclado conceitual por cujo intermédio um conceito vai ser usado para revelar o outro. Sartre intervém em favor de um sujeito forte, capaz de pensar o outro. O que é alteridade em 1943? A argumentação de Sartre é universalista: o outro é sempre uma ameaça, representa um pôr em questão da minha experiência, dotado com o poder de objetivar- me e mover-me para auto-objetivar-me. É claro que essa dinâmica entre o mesmo e o outro deve-se pensar em termos de reciprocidade. A rigoro- sa ontologia de Sartre divide de maneira cortante consciência e corpo para mover-se dentro dos limites da metafísica. Sem dúvida nenhuma, Sartre é um clássico do século XX e por isso uma figura suscetível de celebrar-se. No ano 2000, publica-se meia dúzia de novos livros, por exemplo: Le siec/e de Sartre por Bemard-Henri Lévy (Paris: Grasset). Mas, ao mesmo tempo, estou completamente de acordo com as leituras de O ser e o nada, que comprovam o fracasso do seu projeto de ontologia. Pois inclusive, na última página do livro, não se sabe ainda o que seja "o ser" e o que seja "o nada" e como se comportam entre si. No entanto, é precisamente a ontologia de Sartre que dá vocação a Octavio Paz para incluir na língua castelhana o conceito de otredad como conceito- chave no Ellaberinto de la soledad (1959). Na metade dos anos 50, um grupo de intelectuais em tomo da revista Contorno orienta-se no rumo do existencialismo de Sarte, para mencionar pelo menos dois exemplos lati- no-americanos. Na metade dos anos 40, para resumir, a interpretação existencia- lista de Hegel serviu para propor um conceito ampliado de razão e da compreensão acerca de "o que em nós e nos outros encontra-se antes e sobre a razão", segundo a fórmula que propunha Maurice Merleau-Ponty. Em geral, menciona-se Simone de Beauvoir junto com Sartre sem maior PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nQ 5, 2000 diferenciação. Porém, seus conceitos de alteridade diferem entre si. Em que reside exatamente a diferença? Simone de Beauvoir adota a catego- ria existencial do outro. Converte-a também em categoria constitutiva da consciência: a consciência humana fundamenta-se no outro. Bem, sua abor- dagem dá-se - e com isso ultrapassa o núcleo da posição de Sartre - na adoção do conceito de alteridade na sua função crítica cultural. Este origi- na-se no marco de análises sobre o que divide os sexos (ela não fala em diferença) e sobre as relações de poder e dominação. Para Simone de Beauvoir, as mulheres existem como outro. Ela foi a primeira a criticar a hierarquização e fixação das assimetrias dos gêneros, que tem em Lévinas seu expoente, seguindo-se, nos rastros dela, Luce lrigaray, Jacques Derrida e Gayatri Spivak. Contradizendo Lévinas, ela declara: Je suppose que M. Lévinas n 'oublie pas que lafemme est aussi pour soi conscience. Mais i! estfrappant qu'i! adopte delibérément un point de vue d'homme sans signales la récipocité du sujet et de l'objet. Quand il écrit que lafemme est mystere, il sous-entend qu 'elle est mystere pour l'homme. Si bien que cette description que se veut objetive est en fait une ajfirmation du pril'ilege masculin2. As mulheres seriam, segundo Simone de Beauvoir, o negativo dos homens, a carência. No entanto, ela realiza um decisivo deslocamento. Para ela, a identidade de gênero não designa um ser substancial, mas sim uma dimensão cultural e histórica. Na interpretação mais corrente, Si- mone de Beauvoir aparece intervindo em favor do direito da mulher, a chegar a ser um sujeito existencial, a ser incluída numa universalidade abstrata. Porém, deve-se destacar que sua posição implica também uma crítica fundamental da descorporalização do sujeito cognitivo masculino abstrato, como assinalava Judith Butler, em 1986, no ensaio Sex and gender in Beauvoir's Second Sex 3 • De maneira que Simone de Beauvoir reformula a dialética "amo-servo", colocando-a sob o signo da assimetria não mútua entre os gêneros. Ela afirma: o corpo feminino deve ser para as mulheres "situação" e "instrumento" da liberdade e não uma essência definitória e limitadora. "Situação" , aqui, deve ser entendida no sentido existencialista. E isso supõe, em último termo, a teoria da corporalidade de Sartre, que reproduz o dualismo corpo-espírito, apesar de seu intento de alcançar uma síntese entre os conceitos. Na sua leitura de Simone Beauvoir, Gayatri Spivak considera positiva a tentativa de Beauvoir de pensar corporal idade - representada pela figura Mãe - como instru- mento para logo desconstruí-Ia. No seu ensaio Frenchfeminism revisited, , Simone de Beauvoir. Le deu.riell/ e sex e I , Pari s: Gallimard, 1961 , p. 16. 3 In : Yale French Studies, Si- mone de Beauvoir: Witness to a Century. n," 72. p. 74-g9. nov./dec. , 19g6. 4 Spivak 1993, p. 151. S kan Paul Sartre. In: Frantz Fanon. Les damnés de la ferre. Paris:~aspero, 1962,p.22. Frantz Fanon. Peau noire , masques blancs. Paris: Seuil, 1<J52, p. 178 (a tradução é minha). "Alteridade" desde Sartre até Bhabha ... 23 Spivak escreve: I read with sympathy, though against the grain, Beauvoir' s figure of lhe M olher provides an asymmetrical site ofpassage }I,ith lhe possibility of a strong framing of appropriation that has been protectedfrom a philosophical anthropology, yet not preserved in trans- cendental tall(~ . No Segundo sexo - publicado em 1949 - há uma nota de pé de página referente aos trabalhos de um tal Dr. Lacan. É óbvio que sua teoria acerca-se da constituição do sujeito - conhecida como "o estado de espelho" - apresentada pela primeira vez em 1936 no Congresso Internacional de Psicanálise, em Marienbad. Era conheci- da exclusivamente por um grupo muito pequeno de intelectuais france- ses. Era quase um dado de insiders. No começo dos anos 50, entra em cena um psiquiatra e médico da Martinica. Seu nome é Frantz Fanon. O martinicanoFanon ampliou a avenida da alteridade até convertê-la em modelo analítico da experiência colonial. Já com Rostos negros, máscaras brancas (1952), radicalizou e sobressaltou as colocações de seus referenciais franceses. No prólogo aos Condenados da terra (1958), Sartre chega até a afirmar: "Fanon põe adiante dos nossos olhos o Ocidente desnudo, a civilização desnuda como num strip-tease"s. (Porém o problema consiste ao meu ver em que esse pôr a nu não tem a fascinação da sedução, mas sim a de horror). O que é alteridade em Frantz Fanon? Fanon transferiu, transplan- tou o conceito às relações entre as raças, à divisão e à assimetria dos gêneros (esboçados e descritos por Simone de Beauvoir). O decisivo é o seguinte: Fanon transformou o conceito do outro, visto como estrutura fundamental da consciência, com ajuda do instrumentário psicoanalítico, para descrever e situar o sujeito colonial. Fanon refere-se ao "estado do espelho" estabelecido por Lacan e assim escreve: "Quando se há enten- dido este processo descrito por Lacan, não pode restar nenhuma dúvida que o verdadeiro outro do branco foi e segue sendo o negro e vice-versa. Somente que "o outro", destaca Fanon, "é percebido pelo branco ao ní- vel da imagem corporal em forma absoluta, como o não Eu"6 . Fanon remete ao mesmo tempo para os limites das categorias psicoanalíticas quando inclui realidades históricas e econômicas no seu diagnóstico da situação colonial. Também em Fanon, desta vez referin- do-se às questões de raça, o corpo é compreendido em termos de "situa- ção" e "instrumento". E por conseguinte nas suas análises do colonialis- mo resulta que o corpo toma-se instrumento de liberação. Fanon postu- la uma igualdade entre liberdade e consciência. A consciência possui a capacidade de expressar dúvida. Consciência, raça e corpo se relacio- nam entre si. A propósito do seu grande mestre, anota Fanon: "Jean Paul Sartre tem esquecido que o negro sofre com seu corpo de outra maneira PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 que o branco" e, em seguida, agrega "inclusive se os estudos de Sartre sobre a existência do outro mantêm sua vigência (na medida em que O ser e o nada descreve a consciência alienada), sua aplicação à consciên- cia negra revela-se como falsa: porque o branco não é somente o outro, mas sim o-real-ou-imaginário-amo". Fanon utiliza no fim de Rostos ne- gros. máscaras brancas a expressão "alteridade originária". Assume, assim, a problemática da "dupla consciência", formulada em The Souls of Black Folk de 1903 pelo intelectual negro W.E. Du Bois. Este termo designa a situação do double bind dos americanos negros. À pressão para assimilar-se to bleach his negro soul,? a resposta de Du Bois é de um rechaço sem nenhum compromisso. Esta postura estratégica vale também para Fanon. De particular interesse para os debates atuais é sua posição sobre o papel da violência na política da luta da liberação naci- onal contra o colonialismo. Fanon declara em 1958, durante a época da guerra na Argélia: " O colonialismo francês é uma guerra com violência, deve ser derrotado com violência. Nenhuma diplomacia, nenhum gênio político, nenhuma habilidade pode dominar ele." Até hoje posições como essa dão lugar a notórias irritações entre aqueles teóricos da alteridade que seguem linhas dominantes. Tzvetan Todorov considera o momento "curativo" das reações de violência e de vingança com suspeita no seu livro La conquête de /'Amérique. La question de l'autre (1982) .. Pode-se afirmar que na filosofia e nas ciências sociais dos anos 40 e 50, incluídas a antropologia social e a psicanálise, o outro teve o papel de um limite que devia servir para ampliar a razão e o conhecimento, para compreender enfim o irracional. A experiência da alteridade das mulheres, a que me referi, já que ultrapassa os limites da razão, tomou-se objeto de pesquisa. O mesmo vale para as experiências de psicóticos e neuróticos, primitivos e selva- gens. Resulta que serviram para ampliar o conceito da razão. Somente a geração de pensadores e cientistas dos anos 60 e 70, segundo anota Vincent Descombes, pôs fim aos esforços de integração do outro dentro de um conceito ampliado de razão. Os intentos desenvolvidos até então para ultrapassar o heterogê- neo, dotar sentido ao absurdo e traduzir o outro na linguagem do mesmo levaram a uma reorientação com efeitos às vezes de choque. Michel Foucault toma posição na Praça da Alteridade e escreve uma história da psiquiatria resumível pelo seguinte apotegma: "O psiquiatra fala de lou- cos, mas os loucos não falam". O fenômeno da loucura reside, segundo afirma Foucault, naquela cadeia de divisão da razão cujas origens encontram-se na separação en- tre o "mesmo" e o "outro". A reorientação epistemológica estabelece-se ) WlIiam E. B. Du Bois. In: Three neli ro classics. New York: Avon Books, 1965, p. 213-390, p. 215 . , Jacques Derrida. Violence et métaphys ique . In : Id . L'écrilure el la différence , Paris: Seuil, p. 135-6. "Alteridade" desde Sartre até Bhabha ... 25 em nova forma. Os caminhos que segue Foucault são a revisão do con- ceito do sujeito e a problematização das representações do outro. A lei- tura desconstrutivista de Lévinas que pratica Jacques Derrida em Violence et metaphysique enfoca a fenomenologia de Husserl e a ontologia de Heidegger, que ignoram a alteridade, para assim estabelecer as conseqü- ências disso na ética de Lévinas. Jacques Derrida escreve: La conséquence en serait double, a) Ne pensant pas l'autre, elles n'ont pas le temps. N 'ayant pas le temps, elles n'ont pas l'histoire. L'altérité absolue des instants, sans laquelle il n'y aurait pas de temps, ne peut être produite - constituée - dans l'identité du sujet ou de l'existant. Elle vient au temps par autrui. Bergson et Heidegger l'auraient ignoré, Husserl encore davantage. B) Plus gravement, se priver de l'autre (non par quelque sevrage, en s'en séparant, ce qui est justement se rapporter à lui, le respecter, mais en l'ignorant, c'est-à-dire en le connaissant, en l'identifiant, en l'assimilant), se priver de l'autre, c'est s'enfermer dans une solitude ... et réprimer la transcendance éthique. En effet, si la tradition parménidienne - nous savons maintenant ce que cela veut dire pour Levinas - ignore I ' irréductible solitude de l'''existant'', elle ignore par la même le rapport à l'autre8 • Este contexto seria também o lugar para aludir-se a outras bus- cas que têm ajudado no projeto da arqueologia do saber, na genealogia e na desconstrução. O ponto de partida dessas buscas é a abertura das teorias do discurso às vozes daqueles que têm sido constituídos como outros. Penso em particular na antropologia pós-moderna, nos trabalhos desenvolvidos a partir do seminário Writing cu/ture de Santa Fé e, mais em particular, nas abordagens de James Clifford. A consideração do tra- balho do antropólogo como trabalho de escritura e das etnologias como textos andou junto com a crise da autoridade etnológica, quer dizer, da crise da autoridade do etnógrafo para inventar com sua escritura o outro e a outra cultura. Um campo especial de análise inovadora são as teori- zações do discurso colonial. Os termos-chave da teoria pós-colonial são "o outro" e "a alteridade". Seu engenheiro mais importante é Edward Said. Ele desen- volveu com Orientalism (1978) um modelo de análise para mostrar de que maneira funcionam autodescrições e autodefinições através do pro- cesso de assumir estereótipos da civilização ocidental. Said mostra, nas suas investigações sobre o passado imperial e o presente pós-imperial, de que maneira a constelação estabelecida por Foucault, entre saber e poder, atua em concreto e como dentro dessa relação estreita de inter- PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 câmbio funcionam - com êxito - controle imperial e a política de expansão européia, Said une a afirmação de Foucault com a relação reformuladapor Sartre entre amo e servo, vinda de Hegel, transpondo-a em dicotomia entre o mesmo e o outro, Said argumenta que a relação colonial entre colonizadores e colonizados, o outro marginal, é uma relação hierárqui- ca que não supõe intercâmbio mútuo, quer dizer, saber sobre o outro possibilita representação, apropriação do outro, cria e legitima o direito de terminação arbitrária e de controle de acordo com os próprios interes- ses econômicos e geopolíticos. Em Culture and imperialism (1993), ele escreve: In time, culture comes to be associated often aggressiveley, with the nation or the state; this differentiates "us" from "them", almost always with some degree ofxenophobia. Culture in this sense is a source of identity, and a rather combative one at that, as we see in recent "returns" to culture and tradition. These "returns" accompany rigorous codes of intellectual and moral behavior that are opposed to the permissiveness associated with such relatively liberal philosophies as multiculturalism and hybridity. In the formerly colonized world, these "retums" have produced varities ofreligious and nationalist fundamentalism9 • Dentro da disciplina fundada por Edward Said, podem-se situar os trabalhos de Homi Bhabha. A autorização dos conceitos "the Other" e "alterity" sofre uma importante mudança entre dois textos chaves. The other question (1983) e Post-colonial criticism (1992). No primei- ro texto "Alterity" está unido como processo ao conceito de "mimicry" . desprendido de uma leitura de Lacan: trata-se do intento de um desloca- mento da posição e dos efeitos do sujeito colonial através dos movimen- tos da repetição, da iteração e da variação. Porque, assim argumenta Bhabha: The colonial stereotype is a complexo ambil'alent. contradicrO/}' mode of representation, as anxious as ir i5 asserrire. and demands nor only that we extend our criticaI and political objetil'es but that }l'e change the object of analysis itself 10 • No segundo texto, o processo "of alterity" também adquire um papel decisivo, porém há que se precisar que se trata de um papel trans- formado. Bhabha define a perspectiva pós-colonial como algo que:for- ces us to rethink the profound limitations ofa consensual and collusive 'liberal' sense ofcultural community. Que papel tem a alteridade dentro da perspectiva pós-colonial? A resposta de Homi Bhabha não pode ser mais conclusiva. Bhabha declara: "Insisto em que a identidade cultural e 9 Edward Said. Culfll1'e and imperialism. NewYork: Knopf, p. XIII. In Homi Bhabha. The other questiono In: Screen, vol. 24 n. °.6, p. I l{-35, p.22. 1983. 11 Homi Bhabha. In: Stephen Greenblatt/Giles Gunn ed. , Redrawing lhe boundaries: the lransformalion of english and american lilerary sludies, N ew York: MLA, p. 437-65, p. 441,1992. 12 In: Casa de las Américas, n° 98, p. 36-57, p. 51. 11 Fredric Jameson. Third World Lileralure in lhe Era of Hullinarional Capiralism.ln: Social Texl, n.o 15, p. 65-88, 1986. "Alteridade" desde Sartre até Bhabha ... 27 política é construída através de um processo de alteridade." O núcleo decisivo de suas propostas é o seguinte parágrafo: Questions of race and cultural differences overlay issues of sexuality and gender and overdeterrnine the social alliancesof class and democratic socialismo The time for' assimilating' minorities to holistic and organic notions of culture value has dramatically passed. The very language of cultural community needs to be rethought from a post-colonial perspective 11 • Resta colocar a questão dos debates sobre alteridade na América Latina. Concentra-seno debate sobre Próspero e Caliban, retomado pelo intelectual cubano Roberto Femandez Retamar, em 1971, depois da cri- se pós-revolucionária, quando a identidade cubana estava em questão. Provocado pelo affaire de Padilla, Femandez Retamar retomou a histó- ria de colonizadores e colonizados, de Próspero e Caliban, para pensar e resolver esse problema central através da construção do sujeito coletivo. Na re-Ieitura de Femandez Retamar está fixada a dicotomia coloniza- ção/anticolonização e imperialismo/anti-imperialismo, o outro é os EUA. O grande mérito de Femandez Retamar encontra-se na postura estratégi- ca da inversão das relações opostas entre Próspero e Caliban, assim que consegue valorizar a própria cultura. Em Nuestra América y Occidente (1976), ele sublinha a idéia de que os verdadeiros latino-americanos não "são europeus" e declara: "es decir "occidentales" (. .. ) Los grandes enclaves indígenas de nuestra América ( ... ) no requieren argumentar esa realidad obvia: herederos diretos de las primeras víctimas de lo que Martí llamó "civi!ización a devastadora" , sobreviven la destrucción de sus civilizaciones como pruebas vivientes de la bárbara irrupción de outra civilización en estas tierras"12. No ato da inversão das posições, ele reduz o conceito de alteridade a simples atitude: reproduzir o outro. Ademais, suas reflexões inscritas no dicurso nacional não chegam a adaptar o conceito psicoanalítico de Fanon. Caliban y otros ensaios. Nuestra América y el mundo (1976) é o único texto traduzido que circula nos Estados Unidos. Publicado em 1989, com introdução de Fredric Jameson, o texto foi criticado pelo seu esquematismo de cunho anti-ocidental pela crítica. Continua a ser criti- cado com toda razão, mesmo quando Femandez Retamar introduz em versão ampliada o terrno"postoccidentalismo". O interesse de Jameson pela literatura do chamado Terceiro Mundo surgiu em 1986, quando ele propôs uma leitura tout-cour: ler todas as obras dessa literatura como alegoria nacional 13 • No prefácio de Caliban salta à vista: a estratégia de Jameson é inscrever-se no debate pós-colonial e assim ganhar peso. O PB Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 prefácio serve para transfonnar Caliban em texto de articulação de dife- rença cultural e, ao mesmo tempo, transfonnar a si mesmo em teórico pós-colonial. Reflexões de outra linha vêm do lado do teólogo de libertação Enrique Dussel. Ele dá peso à necessidade de postular o ofro latinoame- ricano zu postulieren, colocando argumentos éticos 14. O problema é que Dussel não deixa claro quais são as condições históricas concretas para o outro agir. Outro vazio branco que se encontra na perspectiva teológi- ca tomada por Dussel é: as mulheres desvanecem no horizonte 15. A falta do debate sobre o conceito Alteridade ou seu atraso l6 , na América Lati- na, explica-se pela força e presença do conceito da mestiçagem. O pro- cesso de mestiçagem como ato para valorizar o índio como outro, cons- truído pela síntese com o espanhol/português, alcançou o mesmo nível do colonizador. A síntese e a valorização da cultura própria nacional bloquearam pensar e conceitualizar "alteridade". Dentro da nova etapa da globalização cultural, observamos no debate uma série de mudanças e deslocamentos. Isso se mostra em particular no campo das teorias cul- turais, as quais buscam traçar novas cartografias. 17 1" Enrique Dussel. COmines de la liberaciôn larinoameri- cana, Tomo. 2 Teología de la liberación y ética, Buenos Aires: Latinoamérica Libras 1974. 1; Marta Zapata. Filosofia de la liberaciôn y liberaciôn de la mujer.ln: Debate Feminis- ta, Vo1.l6, p. 69-97, 1997. 16Em 1996 publicou-se o nu- mero titulado Orredad da re- vista Debate Feminista, colo cando a pergunta : cómo asume 01 otm , ai diferente, aI extraiio, Vol. 13 , p. IV, Abril 1996. 17 Ve Roman de la Campa. y Larinoamérica y sus nuevos carrlÍgrajós: Discurso posco- lonial. diásporas intelec- ruales y enunciación fronte - ri:a.ln: Mahel Moraiia (ed.), Crítica cu ltural reoría lit eraria latil10america , Revista /heroamericana , n° / 76- / 77, p . 697-7/7. 1 Teoria e prática de Antonio Candido João Alexandre Barbosa Universidade de São Paulo No início de um ensaio sobre o que chamou de "timidez do romance", Antonio Candido soube caracterizar aquilo quehá de secreto e pungen- te na atividade literária, marcando as incertezas que dominam muitas vezes os criadores, mesmo os maiores, com relação a suas próprias obras e o lugar que ocupam entre outras atividades sociais. Eis o trecho que quero destacar: A literatura é uma atividade sem sossego. Não só os 'homens práticos', mas os pensadores e moralistas questionam sem parar a sua validade, concluindo com freqüência e pelos motivos mais variados que não se justifica: porque afasta de tarefas 'sérias', porque perturba a paz da alma, porque corrompe os costumes, porque cria maus hábitos de deva- neio. Outro modo de questioná-la, às vezes inconscientemente, é justificá-la por motivos externos, mostrando que a gratuidade e a fanta- sia podem ser convenientes como disfarce de coisa mais ponderável. Este ponto de vista do tipo Manequinho da Praia de Botafogo ('sou útil mesmo brincando') está, por exemplo, na base do realismo socialista, como foi ensinado nos anos do stalinismo. Mas, no fundo, Platão e Bossuet, Tolstói e Jdanov, por motivos diversos e com diversas formu- lações, manifestam a desconfiança permanente em face de uma ativida- de que lhes parece fazer concorrência perigosa aos messianismos e dogmas que defendem. 30 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 "Isto faz que a literatura quase nunca tenha consciência tranqüila e manifeste instabilidades e dilaceramentos, como tudo que é reprimido ou contestado: tem dramas morais, renuncia, agride, exagera a própria dignidade, bate no peito e se justifica sem parar. Não é raro ver os escritores envergonhados do que fazem, como se estivessem pratican- do um ato reprovável ou desertando de função mais digna. Então enxer- tam na sua obra um máximo de não-literatura, sobrecarregando-a de moral ou política, de religião ou sociologia, pensando justificá-la deste modo, não apenas ante os tribunais da opinião pública, mas ante os tribunais interiores da própria consciência".) Embora o texto seja apenas o começo de um estudo sobre o ro- mance francês do século XVII, existem nele elementos interessantes como maneira do crítico armar a sua leitura, a partir mesmo da frase inicial, de grande generalidade, e que só aos poucos vai sendo particula- rizada. Deste modo, a afirmação de que "a literatura é uma atividade sem sossego" que, a princípio, poderia parecer referir-se somente ao próprio trabalho crítico, logo remete o leitor à indagação por sua valida- de, em primeiro lugar desencadeada por juízes do pensamento e da moral que avaliam de sua "seriedade" em meio a tarefas tidas por mais impor- tantes, e, em segundo lugar, justificada a partir de argumentos extraídos de uma concepção de literatura que a vê como ornamento da imagina- ção capaz de instilar lições mais aproveitáveis. Neste sentido, entre a busca pela validade e as justificativas para a existência, a frase inicial é retomada, expandida, no parágrafo final do texto pela afirmação da intranqüilidade que contamina a atividade literá- ria, travestindo-se de política, moral , religião ou sociologia, elementos com que joga para pacificar as tensões que a caracterizam de base. É natural, portanto, que o texto se encerre com uma anotação da "mauvaise conscien- ce" que domina os escritores para quem a literatura não é senão um sucedâneo de serviços mais importantes a serem prestados à sociedade. Por outro lado, sem que ocorra qualquer demarcação temporal no texto, as observações do crítico possuem uma generalidade, por assim dizer, teórica e que, passando pela prática das análises pontuais de obras que realiza no ensaio, é retomada ao final, mas aí já tendo percorrido um longo caminho de ataques e defesas da ficção, quando extrai da leitura de um esquecido teórico do século XVII - o cônego François Langlois, vulgo Fancan, e matéria principal do ensai02 - a justificativa maior para a literatura de ficção, qual seja, a de que "se a História representa o desejo da verdade, o romance representa o desejo da efabulação, com a sua pró- pria verdade. Esta é a sua grande, real justificativa; e, ao propô-la, Fancan realizou a melhor apologia possível do gênero ameaçado pelo Ministro da Justiça de então, mostrando que não se trata de um recurso estratégico I Cf. "Timidez no romance", em A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 19R7, p.82-3. (O ensaio foi publicado, pela primeira vez, com o subtítulo de "Estudo sobre as justificativas da ficção no começo do século XVII"', na revista Alfa da Fa- culdade de Filosofia. Ciências e Letras de Marília, em 1973) " Prova disto é que, na edição em espanhol do ensaio, o seu título é modificado para "Fan- can, olvidado teórico de la novela"'. Cf. Antonio Candido, Ensayos y comentarios. Cam- pinas/México: Editora da Unicamp/Fondo de Cultura Económica de México, 1995, p.189-21O. 3 Op. cit . , p. 99 . Teoria e prática de Antonio Cândido 31 para reforçar os valores sociais, ideologicamente conceituados; mas de resposta a uma necessidade do espírito, que se legitima a si mesma".3 A leitura de todo o ensaio, entretanto, aponta para um aspecto curio- so: o texto transcrito funciona, na verdade, como uma espécie de gancho para aquilo que será o seu argumento central, na medida em que se trata de um ensaio de teor histórico-literário articulado por uma vigorosa hipótese teórica que está, de certo modo, encapsulada neste texto. E esta hipótese é de que modo o romance, um gênero de ficção encarado sob suspeição por entre os gêneros maiores, como a epopéia e o teatro, foi encontrando justi- ficativas para a sua validade na sociedade francesa do século XVII. Neste sentido, não obstante todo o aparato erudito de que se reves- te o ensaio (e as notas e observações biobibliográficas são uma demons- tração inequívoca disto), não se trata de um ensaio historiográfico na acepção tradicional, em que a coleta de novos dados, visando renovar as interpretações, fosse o seu maior objetivo. Nem tampouco significa que o miolo histórico-literário seja uma mera demonstração de tese a ser defen- dida, mas daquilo mesmo que já ficou insinuado: de uma articulação em que o que era hipótese teórica no texto transcrito vai, aos poucos, inte- grando-se como história na leitura crítica, de tal maneira que, a partir de um dado momento, o leitor não mais distingue teoria e história pois ambas foram, por assim dizer, resolvidas pela escrita crítica. Sem a teoria, a história não seria senão descrição sucessiva de dados e fatos; sem a história, a teoria não deixaria o patamar das espe- culações generalizadoras. É como se entre a história propriamente lite- rária - aqui representada pelo gênero romance em seus inícios france- ses - e a história circunstancial, que aqui se representa pela sociedade francesa do século XVII, a teoria, isto é, a hipótese teórica das tensões entre validade e justificativa do romance como gênero, funcionasse como metáfora crítica das articulações históricas, capaz, por isso, de operar a convergência de literatura e história, sem perda das tensões básicas que caracterizam suas relações. Deste modo, entre a frase inicial do texto e a justificativa final, expressa através de Fancan, teoria e história foram soldadas pela leitura analítica que corresponde ao momento central do ensaio. Como, no en- tanto, a generalidade do texto transcrito é atemporal , a hipótese teórica não é concludente mas se abre para outras leituras possíveis de tempos e espaços literários: a afirmação da validade da ficção é tarefa que acaba por se impor como da própria natureza do trabalho com o imaginário. Sendo assim, a validade será sempre uma conquista de cada obra, independente, de alguma maneira, da consciência do escritor que, com freqüência, tem dificuldade em reconhecer a sua legítima condição na 32 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5, 2000 sociedade. Por aí, deste modo, é possível recuperar a frase inicial com valor positivo: o desassossegoda atividade literária é próprio da nature- za ficcional da literatura. 2 Quinze anos depois do ensaio considerado anteriormente, Anto- nio Candido escreveu o texto que passo agora a examinar: O direito à li te ratura . 4 Embora tendo uma finalidade inteiramente diversa do escrito an- terior, e sendo diferentes no próprio movimento da escrita, o primeiro mais ensaístico, o segundo mais didático, creio que ambos coincidem num ponto central e decisivo, embora, no primeiro, o porta-voz da idéia seja o teórico Fancan, e, no segundo, seja o próprio autor-conferencista: a literatura, ou a ficção em geral, como necessidade profunda do ho- mem, instrumento capaz de intensificar um processo de humanização que advém precisamente das construções do imaginário. Eis um trecho selecionado do ensaio: Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as cria- ções de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produ- ção escrita das grandes civilizações. Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação uni- versal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegu- ra durante o sono a presença indispensável deste universo, independen- temente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou poé- tica, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito - , como anedota, causo, história em quadrinho, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoro- so ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance. Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo .. Tendo sido inicialmente um a palestra em curso sobre direi- tos humanos proferida em 198R, e publicado no livro Direitos humanos e . .. , em 1989, O texto pode ser lidu hoje em Vários escritos. Ter- ceira edição revista e amplia- da. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995, p.235-263. 5 Idem, p. 242-44. 6 Idem, p.24S. Teoria e prática de Antonio Cândido 33 a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal. que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito. Alterando um conceito de Ono Ranke sobre o mito, podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono. talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsci- ente e no inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equiva- lente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar.( ... ). A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante. A respeito destes dois lados da literatura, convém lembrar que ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar proble- mas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade. Por isso, nas mãos do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco. Daí a ambi valência da sociedade em face dele, suscitando por vezes condena- ções violentas quando ele veicula noções ou oferece sugestões que a visão convencional gostaria de proscrever".5 Esta defesa do que chama, em certo momento, de "necessidade universal" da literatura, fundada em seu caráter de fabulação, e por aí respondendo ao traço construtivo e humanizador do imaginário, não sig- nifica, como se pode ver, a aceitação parcial daquilo que, na literatura, é também adequação à realidade, mas insiste nas inadequações possíveis, geradoras, como observa o crítico, de "problemas psíquicos e morais". O que significa, mais uma vez, enfatizar o que de desassossego existe na atividade literária, agora do ponto de vista do receptor. Por outro lado, o que é notável, sobretudo para a compreensão do método crítico do autor, é como Antonio Candido, em seguida, e sem qualquer alarde metodológico, consegue aproximar a dialética da ade- quação e inadequação, que no texto selecionado parece somente tradu- zir os problemas de conteúdo da literatura, à questão mais árdua de sua própria formalização. E isto ocorre, sobretudo, na quarta parte do texto, a partir mesmo de uma afirmação essencial: Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de obje- to construído; e é grande o poder humanizador desta construção. en- quanto construção.6 34 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5,2000 A expressão em itálico, que está no texto, diz tudo: a função humanizadora da experiência literária é dependente de uma organiza- ção imposta pelo criador em seu material, as palavras, de tal maneira que estas passam, como diz o autor, a exercer um "papel ordenador sobre a nossa mente". Neste sentido, não são os conteúdos que são responsáveis por aquela função, mas o modo pelo qual são organizados e chegam ao leitor e isto, como se vai ver em seguida, independe da maior ou menor transparência da linguagem ou da clareza com que são referidos os aspectos da realidade. Diz o crítico: Por isso, um poema hermético, de entendimento difícil, sem nenhuma alusão tangível à realidade do espírito ou do mundo, pode funcionar neste sentido, pelo fato de ser um tipo de ordem, sugerindo um modelo de superação do caos. A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo articulado. Este é o primeiro nível humanizador, ao contrário do que geralmente se pensa. A organização da palavra comu- nica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo. Isto ocorre desde as formas mais simples, como a quadrinha, o provérbio, a história de bichos, que sintetizam a experiên- cia e a reduzem a sugestão, norma, conselho ou simples espetáculo mental,7 Os dois exemplos colhidos por Antonio Candido - um provérbio e um verso de estrofe de uma das Liras de Tomás Antonio Gonzaga - esclarecem de que tipo de construção se trata, estabelecendo como fator de eficácia dos textos, em sua diversidade de conteúdo, o jogo com a linguagem capaz de criar aquilo que se poderia também chamar de poeticidade dos textos, ou seja, o exercício, para usar a terminologia de Roman Jakobson, da própria função poética da linguagem. No caso do provérbio - "Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga" -, diz o autor: Este provérbio é uma frase solidamente construída, com dois membros de sete sílabas cada um, estabelecendo um ritmo que realça o conceito, tor- nado mais forte pelo efeito da rima toante: 'aj-U-d-A' , 'madr-U-g-A' . A construção consistiu em descobrir a expressão lapidar e ordená-la segun- do meios técnicos que impressionam a percepção.8 Sendo assim, o conceito, que é a base do conselho proverbial, tem o seu efeito sobre aquele que lê ou escuta como dependente de escolhas e organizações operadas na linguagem e a impressão provocada estávinculada a este trabalho construtivo. Ou, para deixar o autor falar: Quando digo que um texto me impressiona, quero dizer que ele im- pressiona porque a sua possibilidade de impressionar foi determinada 7 Idem, p.245-6. , Idem. p.246. 9 Idem, ibidem. 10 Idem, p.247-8. Teoria e prática de Antonio Cândido 35 pela ordenação recebida de quem o produziu. Em palavras usuais: o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere.9 Da mesma maneira, os efeitos, agora de tipo emocional, que de- correm da leitura da estrofe de Gonzaga são vinculados, por Antonio Candido, a procedimentos de construção nitidamente desenhados na or- ganização verbal da estrofe, que é a seguinte: Propunha-me dormir no teu regaço As quentes horas da comprida sesta; Escrever teus louvores nos olmeiros, Toucar-te de papoulas na floresta. E não resisto em transcrever o comentário analítico do crítico, dada a sua importância como elemento caracterizador de seu método. Ei-lo: A extrema simplicidade desses versos remete a atos de devaneio dos namorados de todos os tempos: ficar com a cabeça no colo da namora- da, apanhar flores para fazer uma grinalda, escrever as respectivas inici- ais na casca das árvores. Mas na experiência de cada um de nós esses sentimentos e evocações são geralmente vagos, informulados, e não têm consistência que os tome exemplares. Exprimindo-os no enquadra- mento de um estilo literário, usando rigorosamente os versos de dez sílabas, explorando certas sonoridades, combinando as palavras com perícia, o poeta transforma o informal ou o inexpresso em estrutura orga- nizada, que se põe acima do tempo e serve para cada um representar mentalmente as situações amorosas deste tipo. A alternância regulada de sílabas tônicas e sílabas átonas, o poder sugestivo da rima, a cadên- cia do ritmo - criaram uma ordem definida que serve de padrão para todos e, deste modo, a todos humaniza, isto é, permite que os sentimen- tos passem do estado de mera emoção para o da forma construída, que assegura a generalidade e a permanência. Note-se, por exemplo, o efeito do jogo de certos sons expressos pelas letras T e P no último verso, dando transcendência a um gesto banal de namorado: Toucar-Te de PaPoulas na floresTa. Tês no começo e no fim, cercando os Pês do meio e formando com eles uma sonoridade mágica que contribui para elevar a experiência amorfa ao nível da expressão organizada, figurando o afeto por meio de ima- gens que marcam com eficiência a transfiguração do meio natural. A forma permitiu que o conteúdo ganhasse maior significado e ambos juntos aumentaram a nossa capacidade de ver e sentir. 10 É esta capacidade de ampliação que o autor identifica com o que, diversas vezes no texto, chama de função humanizadora da literatura: "o 36 Revista Brasileira de Literatura Comparada, nº 5,2000 processo que confinna no homem aqueles traços que reputamos essenciais, corno o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de pene- trar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da comple- xidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor" .11 Mas, atenção!, é urna ampliação conquistada tanto pelas mensa- gens de que a literatura é portadora quanto, e sobretudo, pelo modo de organização dessas mensagens, de que depende a sua eficácia. Daí a afinnação exemplar que se lê logo adiante: A eficácia humana é função da eficácia estética, e portanto o que na literatura age como força humanizadora é a própria literatura, ou seja, a capacidade de criar formas pertinentes. 12 Por isso não basta a qualidade da mensagem para a detennina- ção do valor da obra, nem mesmo uma positividade ou urna negatividade anterior à realização da obra: a criação de "fonnas pertinentes", em que leio aquelas que são isomórficas em relação ao que se quer dizer, é que instaura o valor da literatura enquanto prática social. Algo semelhante àquilo que foi dito por outro grande ensaísta latino-americano, Octavio Paz, em texto intitulado Forma y significado: Las verdaderas ideas de un poema no son las que se le ocurren aI poeta antes de escribir el poema sino las que después, con o sin su voluntad, se desprenden naturalmente de la obra. El fondo brota de la forma y no a la inversa. O mejor dicho: cada forma secreta su idea, su visión deI mundo. La forma significa; y más: en arte sólo las formas poseen significación. La significación no es aquello que quiere decir el poeta sino lo que efectivamente dice el poema. Una cosa es lo que creemos decir y otra lo que realmente decimos.1 3 A função humanizadora da literatura, ou suas funções psicológi- ca, social e histórica, portanto, não está vinculada à adequação aos as- pectos da realidade, mas passa, antes, pelas incertezas e pelos desas- sossegos da própria construção da literatura enquanto literatura e, deste modo, pelas inadequações, contradições e paradoxos, substratos da lin- guagem. l I Idem, p. 249. 12 Idem, p. 251. 1J Cf. Corriente {I/terna. Mé- xico: Siglo Veintiuno Edito- res, 7a.ed.,1973, p.7-8. 1+ Cf. Literatura e sociedade. EsTUdos de teoria e história literária. São Paulo: Compa- nhia Editora Nacional. 1965, p.3-17. 1\ Idem, p.3-4. Teoria e prática de Antonio Cândido 37 3 Não se chegou a este tipo complexo de reflexão sobre as intrincadas relações da literatura com a vida social sem uma larga expe- riência e é de vinte e três anos antes do texto anterior (OU mesmo vinte e sete, se contarmos com o fato de que "é o desenvolvimento de uma pequena exposição feita sob a forma de intervenção nos debates" de congresso de crítica em 1961, conforme se esclarece em nota de rodapé) aquele que, a partir de agora, passo a comentar: o ensaio Crítica e sociologia, publicado em 1965. 1-1 Eis o trecho inicial do ensaio: Nada mais importante para chamar a atenção sobre uma verdade do que exagerá-la. Mas também, nada mais perigoso, porque um dia vem a rea- ção indispensável e a relega injustamente para a categoria do erro, até que se efetue a operação difícil de chegar a um ponto de vista objetivo, sem desfigurá-la de um lado nem de outro. É o que tem ocorrido com o estudo da relação entre a obra e o seu condicionamento social, que a certa altura do século passado chegou a ser vista como chave para compreendê-la, depois foi rebaixada como falha de visão, - e talvez só agora comece a ser proposta nos devidos termos. Seria o caso de dizer, com ar de paradoxo, que estamos avaliando melhor o vínculo entre a obra e ambiente depois de termos chegado à conclusão de que a análise estética precede considerações de outra ordem. De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam dela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua importância deriva das operações formais pos- tas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a toma de fato inde- pendente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, conside- rado inoperante como elemento de compreensão. Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tan- to o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente inde- pendente, se combinam como momentos necessários do processo inter- pretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desem- penha um certo papel na constituição da estrutura, tomando-se, portan- to, interno. 15 Sem desprezar o fato de que
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