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Apologia de Raymond Sebond 
Ensaios II - Montaigne 
Trechos escolhidos 
 
Deixemos de lado essa infinita confusão de opiniões, encontradiça entre os próprios 
filósofos, e essa perpetua e universal discussão acerca do conhecimento que temos das coisas, pois é 
evidente que os homens, e os mais sábios e sinceros, e os mais capazes, não estão de acordo acerca 
de nada, nem mesmo em que o céu se encontra acima de nossas cabeças, porquanto os que duvidam 
de tudo duvidam disto também. E os que negam possamos compreender o que quer que seja, negam 
que compreendamos estar o céu nesta posição. E estas duas opiniões, consistindo uma em duvidar 
da outra em negar, são as mais fortes. Alem dessa inumerável diversidade de opiniões, é fácil 
verificar, pela confusão em que nos joga e a incerteza que todos sentem, que nosso julgamento não 
tem fundamento sólido. Quantas vezes julgamos diversamente as coisas? Quantas vezes mudamos 
de idéia? O que hoje admito e creio, admito e creio na medida do possível: todas as nossas 
faculdades, todos os nossos órgãos se apossam desta opinião por ela respondem quando podem; não 
poderiam aceitar outra verdade nem a conservar com maior convicção; a ela dei-me por inteiro.Mas 
não me aconteceu, e não um vez porem cem ou mil, e diariamente, ter aceito do mesmo modo 
alguma coisa que posteriormente considerei valso? Que ao menos nos tornemos sensatos a expensas 
nossas? Se tantas vezes fui traído por meu julgamento, se essa pedra de toque em geral defeituosa, 
se a balança esta mal regulada, que garantia a mais posso ter desta vez? Não será tolice deixar- 
enganar por semelhante guia? E no entanto, ainda que destino nos leve a mudar quinhentas vezes de 
idéia, a ultima, a atual será a verdadeira, a infalível. Por esta sacrificaremos nossos bens a honra, a 
vida, a salvação: “a ultima nos desgosta da primeira e a desacredita em nosso espírito”.1 O que quer 
que nos pregue o que quer que aprendemos, é sempre precioso lembrar que o homem o da e o 
homem o recebe: a mão de um mortal oferece e a mão de um mortal aceita. Só as coisas que vem do 
céu tem direito de persuasão e a indispensável autoridade: só elas trazem a marca da verdade mas 
nossos olhos não as destinge se não as obtemos por nossos próprios meios. Essa santa e grande 
imagem não elegeria domicilio e tão miserável barraca, se Deus por especial favor não a houvesse 
preparado parra isso, não a houvesse transformado e fortificado com sua graça. Nossa condição tão 
sujeita a desfalecimento, deveria inspirar-nos mais moderação e descrição em nossas variações; 
deveríamos lembrar que, quaisquer que sejam as impressões de nossa inteligência muitas vezes são 
coisas falsas e que as percebemos com esses mesmos instrumentos que amiúde se enganam. Não a 
como estranhar que =se enganem, pois as menores ocorrências os falseiam e imbotam. É certo que 
nossa compreensão, nosso julgamento e as faculdades de nossa alma sofrem de conformidade com 
o corpo e suas continuas alterações. Não temos o espírito mais atinado, a memória mais viva, o 
raciocínio mais rápido, quando a saúde é boa? A alegria não nos predispõe a aceitar as impressões 
de maneira diferente da tristeza? Crede que os versos de Catulo ou de Safo agradem a um velho 
avarento e rabugento tanto quanto a um jovem vigoroso e entusiasta? 
 
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E para cúmulo, a menos que esteja no apogeu e já sem cura, não é fácil descobrir essa 
doença que oblitera nosso julgamento, tanto mais como a razão, sempre tão falha e manca, se 
acomoda à mentira como à verdade: o que faz com que seja difícil. Saber quando se regula e 
quando podemos confiar nela. Dou esse nome de razão a essa aparência de juízo que cada um forja 
em si mesmo e que a respeito de um mesmo assunto pode levar a cem apreciações diversas e 
contraditórias, instrumento feito de chumbo e cera, que se estica e dobra e se ajeita a todas as 
circunstâncias, a todos os compromissos, e um pouco de habilidade basta para levar a moldar-se a 
quaisquer moldes por melhor que seja sua intenção, se não se examinar de perto, o que pouca gente 
faz um juiz pode ser solicitado pela benevolência (para com um amigo ou um parente) tanto quanto 
 
1 Lucrécio 
pela idéia de vingança. Sem ir tão longe, uma simples tendência instintiva ou impele a uma 
predileção, ao escolher, sem razão, entre dois objetos idênticos; um imperceptível impulso qualquer 
pode atuar sobre seu julgamento e o predispor favorável ou desfavoravelmente a dada causa, 
forçando ma balança a pender para um lado ou para o outro. 
 
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Não a assunto que provoque controvérsias mias violenta entre os filósofos do que o 
soberano bem.Em que consiste?Varo afirma que duzentas e oitenta e oito seitas nasceram dessa 
questão. “Ora, desde que não concordemos a cerca de soberano bem, nossas opiniões divergirão a 
respeito de toda filosofia”.2 Percebe me ver três convivas de gostos diferentes; que lhes dar? Que 
não lhes dar privas um do que ele aprecia e o que ofereces lhes desagradam”3. Eis a resposta que a 
natureza devia dar as suas discussões.Uns acham nosso bem soberanos esta na virtude ;outros na 
volúpia;outros que ele consiste em deixar que a natureza opere;outros encontram na ciência;outros 
na ausência de sofrimento;outros em não se deixar levar pelas aparências. A esta ultima maneira de 
ver, liga-se aquela do tempo de Pitágoras: “Nada admirar. Numício, é quase o único meio de 
assegurar a felicidade”4, objetivo visado pela seita de Pirro. Aristóteles qualificava de magnitude 
nada admirar: E Arcesilau dizia que o bem se consistia em ter o julgamento reto e inflexível, junto a 
tudo que contribui para assim o manter. E que o vicio e o mal resultam das concessões e aplicações 
que lhes determinamos. É verdade que, apresentando essas preposições como isentas de dúvida, 
Arcersilau fugia ao procedimento habitual dos pirronicos. Quando esses dizem que o soberano bem 
é Átaraxia, isto é, a calma perfeita, a imobilidade do julgamento, não que querem afirmar de 
maneira absoluta. O mesmo estado de espírito que os impele a evitar um precipício, preservar-se do 
frio da noite, leva-os a emitir essa idéia e rechaçar outra; a afirmação carece para eles de 
conseqüência. 
Como eu desejaria que, enquanto vivo, alguém, Justo Lípsio, por exemplo, o homem mais 
sábio que possuímos, culto, judicioso, primo-irmão, desse ponto de vista, de meu Tournebus, 
tivesse vontade, saúde e lazeres para coligir e classificar por categorias, com toda a sinceridade as 
opiniões dos filósofos antigos acerca de nosso ser e nossos costumes, bem como as controvérsias de 
que foram objeto, o credito de que gozaram. E também como seus autores aplicaram tão 
memoráveis e edificantes preceitos em sua vida. Seria uma obra bela e útil! 
A que confusão chegaríamos se buscássemos em nos mesmos uma orientação para as nossas 
condutas! O que a razão aconselha, e com aparência de verdade, é que cada qual observe as leis de 
seu país. É a opinião de Sócrates, inspirada, diz ele, pela divindade. E que quer esta dizer com isso, 
se não em nosso dever se subordina ao acaso? Se o homem conhecesse a justiça e o certo, se 
tivessem em mira tipos reais, se os pudesse representar em sua essência, não os faria consistir na 
obediência a tais os quais costumes; não seria na fantasia dos Persas ou Indianos que se 
consubstanciaram. Nada mais do que as leis esta sujeito a variações continuas. Desde que nasci vi 
mudarem três ou quatro vezes as dos Ingleses e não somente quanto à política interna, que se admite 
não ser fixa mas também com referencia ao ponto mais importante de todos: a religião. Sinto-me 
envergonhado e despeitado porquanto nossa religião já teve ligações com esse país e em minha 
família ainda sobram vestígio de antigo parentesco com esse povo. Em nossa província aqui mesmo 
vi atos que constituíam crimes passiveis de pena de morte tornarem-se legais. E atualmenteobedientes a um partido, estamos expostos, segundo os azares da guerra, a nos tornarmos um dia 
criminosos de lesa-humanidade e divindade. Pois se o partido adverso triunfasse, as idéias 
contrárias prevaleceriam e nossa justiça passaria a ser injustiça. Não podia aquele deus da 
antiguidade mais claramente mostrar a que ponto o homem ignora o ser divino, e ensinar- lhe que 
sua religião era produto da imaginação, útil apenas a consolidação da sociedade, quando 
declaravam aos que consultavam “que o verdadeiro culto consiste em que cada qual obedeça aos 
 
2 Cícero 
3 Horácio 
4 Id 
usos e costumes locais”. Quanto devemos ser gratos à bondade de nosso soberano criador por nos 
haver esclarecido acerca da tolice de nossa fé em tais cultos e por ter feito o que nossa crença 
assente hoje no alicerce de sua palavra sagrada! 
Nesse ponto capital a filosofia diz-nos que segamos as leis “leis de nosso país”, isto é esse 
mar agitado das opiniões de um povo ou de um príncipe que pintam a justiça com tão variadas cores 
e a transf0ormam segundo suas paixões. Meu juízo não tem flexibilidade bastante para aceitar tal 
solução. Em que consiste esse bem que amanha já o não será e que a simples travessia de um rio o 
modifica? Que verdade será essa que é uma aquém e outra além das montanhas? São divertidos os 
que, afim de outorgar maior autenticidade as leis dizem que as há imutáveis, perpetuas a que 
chamam leis naturais, as que seriam inatas no homem e em numero de três, segundo uns e de quatro 
segundo outros; e outros afirmam que existem mais, e outros menos sinal revelador de ser a duvida 
permitida, aqui como alhures. Infortunados! Pois não posso qualificar se não como infortúnio o fato 
de, nesse numero infinito de leis não haver ao menos uma porventura que o consenso geral aceite 
como universal. São tão desgraçados, que dessas três ou quatro leis escolhidas nenhuma só há que 
não seja controvertida e negada e não apenas por um povo mas por muitos. Ora, a aceitação de 
todos seria a única característica a invocar-se como prova da existência de leis naturais, pois o que a 
natureza nos tivesse realmente ordenado, nos o observaríamos de comum acordo, porque qualquer 
povo, qualquer homem mesmo, se sentiria constrangido e violentado por quem agisse em sentido 
contrario. 
 
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A autoridade das leis provem de existirem e terem passados para os costumes; é perigoso 
faze-las retornarem à sua origem. Como os rios que se avolumam com o rolar das águas elas 
adquirem importância e consideração em si aplicando. Remontai- lhe o curso até a nascente e vereis 
um significante filete de água. Investigai os motivos que no inicio deram impulso a essa torrente de 
leis e costumes, hoje considerável e cheio de dignidade, temor e veneração. Vos os achareis tão 
frágeis tão pequenos, que não é estranho que esses filósofos que tudo perscrutam, que tudo 
submetem ao exame da razão, nada admitindo sem autoridade, os julgar tão diferentemente do resto 
do mundo. Tomo por modelo a imagem primeira da natureza e não há como nos espantarmos de 
que, na maioria de suas opiniões desviem do caminho comum.

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