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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Direito e Ciências do Estado Programa de Pós-Graduação em Direito Temporalidade do trabalho e do não trabalho: efeitos e sentidos da regulamentação jurídica Nara Abreu Santos Belo Horizonte 2019 Temporalidade do trabalho e do não trabalho: efeitos e sentidos da regulamentação jurídica Nara Abreu Santos Orientador: Prof. Dr. Pedro Augusto Gravatá Nicoli Belo Horizonte 2019 Versão final da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, na linha de pesquisa “História, Poder e Liberdade”, área de estudo “Trabalho e Democracia”, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Santos, Nara Abreu S237t Temporalidade do trabalho e do não trabalho: efeitos e sentidos da regulamentação jurídica / Nara Abreu Santos. — 2019. Orientador: Pedro Augusto Gravatá Nicoli. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. 1. Direito do Trabalho – Teses 2. Relações trabalhistas – Teses 3. Regimes flexíveis de trabalho 4. Lazer – Aspectos sociais – Teses I.Título CDU(1976) 331.1 Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Junio Martins Lourenço CRB 6/3167. A Alice, Que chegou antes do tempo E antecipou minha felicidade. Agradecimentos Manifesto minha sincera gratidão a cada pessoa que, de alguma forma, contribuiu para a minha formação pessoal e profissional, pois a elaboração da presente dissertação é fruto de um processo contínuo de amadurecimento. Agradeço aos professores que tive pelo caminho, pelos ensinamentos e instigações. Em especial, agradeço ao Professor Pedro, pela inspiradora convivência, pela confiança depositada e por despertar em mim verdadeira admiração pelo seu brilhantismo, tanto intelectual quanto humano. Agradeço a minha primeira família, a que tive a sorte de nascer. Aos meus pais que desde cedo e até hoje dedicaram seu tempo e seus esforços para criar um ambiente saudável e as condições para o meu crescimento por meio do exemplo e dos estudos. Aos meus irmãos, que estavam lá antes de eu chegar, pela presença e apoio constantes, sobretudo minha irmã, parceira de vida. A quem veio depois, meu estimado cunhado e meu amado afilhado, pelos imprescindíveis momentos de lazer. Agradeço a minha segunda família, a que tenho encontrado pelo caminho. Aos meus amigos tão queridos, por nossos laços tão estreitos que superam as distâncias e nos fazem comemorar as conquistas uns dos outros, em especial minhas queridas amigas-irmãs. Aos companheiros que a pós-graduação me presenteou, por compartilharmos nossas incertezas e alegrias. Agradeço a minha terceira família, a que estou construindo. Ao Luiz Filipe, por toda a paciência amorosa, por cuidar tão bem da nossa menina, pelas risadas, pelos cafés, pelos impalpáveis livros, por todas as dicas de quem vai longe na caminhada acadêmica. A sua família que me recebeu com tanta generosidade e carinho. A Alice, por me transformar a cada dia em uma nova pessoa, ao mesmo tempo mais sensível e mais forte. Por fim, agradeço ao destino pela felicidade de estar em tão boa companhia. Riqueza é tempo disponível, e nada mais. Panfleto anônimo, intitulado A fonte e a solução das dificuldades nacionais, 1821. Todos os homens se dividem, em todos os tempos e também hoje, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito. Friedrich Nietzsche, em Humano, Demasiado Humano, §283, 1878. O ócio, que não é a negação do fazer, mas ocupar-se em ser o humano do homem. Ortega y Gasset, em Meditações da técnica, 1933. O colapso ou a decadência do status conferido ao trabalho acarreta, para uns, a falta de trabalho e a inutilidade para o mundo; e, para outros, o excesso de trabalho e a indisponibilidade para o mundo; duas formas diferentes de morte social. Alain Supiot, em Le travail em perspectives, 1998. MUNCH, Edvard. Workers on their way home, 1913. WATERHOUSE, John William. Dolce Far Niente, 1879. RESUMO SANTOS, Nara Abreu. Temporalidades do trabalho e do não trabalho: efeitos e sentidos da regulamentação jurídica. 2019. 189p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2019. Na sociedade contemporânea, o Direito do Trabalho, ao regular a relação entre tempo e trabalho, organiza as experiências individuais e coletivas das pessoas, afetando sua vida profissional, mas também sua vida pessoal. Deste modo, propõe-se uma pesquisa bibliográfica e legislativa sobre a nova morfologia do trabalho à luz da categoria tempo, bem como sobre a natureza dos tempos de não trabalho, com o objetivo de investigar se e de que forma as normas e figuras jurídicas podem contribuir para a garantia de tempos efetivamente livres. Inicialmente, de forma panorâmica, percorre-se o caminho do estabelecimento de uma jornada padrão no sentido tradicional até sua atual despadronização no contexto do capitalismo global, caracterizado pela flexibilidade e pela precarização. Em seguida, passa-se a um estudo pormenorizado da divisão dos tempos sociais entre tempos de trabalho e de não trabalho, por meio de reflexões teóricas, no sentido de revisitar seus conceitos e sentidos, revelando inclusive desigualdades de gênero neles contidas. Em conclusão, se o modelo regulatório do tempo de trabalho, em suas três dimensões – extensão, intensidade e distribuição – conforma os valores e princípios políticos de uma comunidade, o presente estudo demonstra que as modulações dos tempos de trabalho e de não trabalho não tem sido operadas de acordo com as essenciais necessidades humanas, mas de modo conveniente a atender à produção e ao consumo que sustentam o sistema capitalista. Finalmente, em tempos de retrocessos na legislação trabalhista, compreender o papel e a relevância de se ter controle sobre o próprio tempo é fundamental para se garantir a saúde dos indivíduos, bem como devolver a eles, dentro e fora da relação de trabalho, a liberdade sobre suas vivências. Palavras-chave: Direito do Trabalho. Tempo de trabalho. Tempo de não trabalho. Precarização. Flexibilização. ABSTRACT SANTOS, Nara Abreu. Working and non-working temporalities: effects and meanings of legal regulation. 2019. 189p. Dissertation (Masters of Law) – Federal University of Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2019. Labour Law regulates the relationship between time and work in contemporary society, it organizes individual and collective experiences, and it also affects in both professional and personal lives. Thus, this research proposes a bibliographic and legislation study on the new morphology of work based on time as a category, as well as on the nature of non-working times, with the aimof investigating if and how can legal standards assure effective free time. Initially, in a panoramic way, it follows the path from the establishment of standard working time until its current dismantling in the context of global capitalism, which is characterized by, in legal terms, flexibility and precariousness. Furthermore, it carries out a thorough study on the division of social times into two groups: working times and non-working times. This research was held through theoretical reflections, in the sense of revisiting concepts and meanings, that revealed even gender inequalities. In conclusion, if the regulatory model of working time, in its three dimensions – extension, intensity, and distribution – complies with the political values and principles of a community, this research demonstrates that modulations of working times and non-working times have not been operated according to basic human needs, but in a convenient way to satisfy the production and consumption demands of the capitalist system. Finally, in times of retrograde step in social terms, to understand the role and relevance of having control over someone’s own time is indispensable for ensuring individual health, inside and outside of the employment relationship. Keywords: Labour Law. Working time. Non-working time. Precariousness. Flexibilization. Sumário Introdução .......................................................................................................................................................... 13 Capítulo 1 - Tempo, trabalho e direito: do paradigma clássico à disrupção contemporânea ................ 17 1.1 Tempo e trabalho: o paradigma jurídico na modernidade ................................................................ 17 1.1.1 O paradigma jurídico na modernidade .................................................................................................... 18 1.1.2 A regulamentação jurídica do trabalho livre assalariado no Brasil .......................................................... 30 1.2 Um novo espírito do tempo? ................................................................................................................. 37 1.2.1 O velho e o novo espírito do capitalismo .................................................................................................. 37 1.2.2 Os marcos da competitividade e do consumismo ....................................................................................... 41 1.3 Nova morfologia do trabalho ................................................................................................................ 52 1.3.1 A precarização global ............................................................................................................................ 52 1.3.2 A reforma trabalhista no Brasil ............................................................................................................. 60 Capítulo 2 - Tempos de trabalho: dimensões e regulamentação jurídica ................................................. 69 2.1 A extensão da jornada ............................................................................................................................. 69 2.1.1 A divisão do tempo e sua ordenação social sob o prisma da duração da jornada ....................................... 69 2.1.2 As formas contemporâneas de expansão da jornada no direito brasileiro .................................................. 78 2.2 A intensidade da jornada ......................................................................................................................... 86 2.2.1 Para além do relógio, o ritmo tenso e intenso: mecanismos de intensificação do trabalho ............................ 86 2.2.2 Modelos de gestão, a perplexidade do Direito e a consequente debilidade jurídica ..................................... 94 2.3 A distribuição da jornada ...................................................................................................................... 102 2.3.1 Trabalho flexível, trabalhadores moldáveis ........................................................................................... 102 2.3.2 O contrato de trabalho intermitente: flexibilização máxima do tempo .................................................... 112 Capítulo 3 - Tempos de não trabalho: entre liberdades, promessas e sujeições .................................... 121 3.1 Tempos de trabalho não remunerado e direito à desconexão ........................................................ 121 3.1.1 O trabalho reprodutivo: natureza de trabalho, ausência de remuneração ................................................ 122 3.1.2 Tempos conexos: qualificar-se e deslocar-se ............................................................................................ 129 3.1.3 Tempos desconexos: o direito à desconexão ............................................................................................ 135 3.2 Tempos involuntários de não trabalho ............................................................................................... 139 3.2.1 Capitalismo 24/7 e a colonização da noite: sempre é tempo de trabalho (ou de busca pelo trabalho) ...... 139 3.2.2 O desemprego e os tempos de trabalho ................................................................................................... 143 3.2.3 Efeitos dos contratos de trabalho com jornada extremamente reduzida sobre a saúde e a vida do trabalhador ..................................................................................................................................................................... 149 3.3 Tempos livres: descanso, ócio, lazer e atividades edificantes .......................................................... 155 3.3.1 O tempo livre, de quê? ......................................................................................................................... 157 3.3.2 O lazer como um direito ....................................................................................................................... 163 Conclusão ......................................................................................................................................................... 171 Referências Bibliográficas .............................................................................................................................. 174 Anexo ................................................................................................................................................................ 188 13 Introdução O tempo está em tudo. Raduan Nassar, em Lavoura Arcaica, 1975. O tempo é o mundo. Parafraseando Jorge Luis Borges, ele é a substância de que as pessoas são feitas, aproximando o ser humano dos demais seres vivos e elementos da natureza.1 A percepção do tempo pelos indivíduos, porém, é variável em suas expressões conforme os valores da sociedade em que está inserido, podendo se falar em uma “multiplicidade de tempos sociais”2. Assim, em vez de tomar “o tempo no singular, como uma trama homogênea, uma linha contínua percorrida por um movimento linear, orientado em mão única e irreversível”,3 na presente dissertação, o tempo é cuidadosamente pensado no plural, no sentido de múltiplos tempos ou, numa palavra, de uma temporalidade, o que justifica a terminologia escolhida. Com este sentido, toma-se como objeto da pesquisa a disciplina dos tempos de trabalho e de não trabalho pelo sistema normativo brasileiro, sem desconsiderar o contexto em que está inserido – no sentido tanto de normas internacionais de proteção social quanto de práticas globais tendentes à precarização –, revelando-se no país um movimento no sentido da flexibilização da jornada de trabalho, com invasão dos tempos supostamente livres dos trabalhadores. Diante dessa situação descrita, a pergunta que norteiao presente estudo é: a regulamentação jurídica, especialmente por meio de normas de natureza trabalhista, é capaz de contribuir para a construção de tempos efetivamente livres? 1 “O tempo é a substância de que sou feito./ O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; / É um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre;/ É um fogo que me consome, mas eu sou o fogo”. BORGES, Jorge Luis. Nova refutação do tempo. In: BORGES, Jorge Luis. Outras inquisições. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 218. 2 GURVITCH, Georges. The spectrum of social time. Dordrecht-Holland: D. Reidel Publishing Company, 1964, p. 20-21. Originalmente, a obra do sociólogo e jurista russo foi publicada em francês como “La multiplicité des temps sociaux”, em 1958. 3 OST, François. Temporalidade jurídica. In: ARNAUD, André-Jean (org.). Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. Trad. Patrice Charles, F.X Willaume. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 780. Também sobre a temporalidade, mas sob uma perspectiva histórica: "Em, suma, é no âmbito da temporalidade que se encontra o homem entendido nas implicações da sua existência e da sua vida vivida, e o tempo objectivado na caracterização da sua imagem". CASTRO, Zília Osório de. O tempo e a temporalidade na história das ideias políticas (séculos XVIII-XIX). Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, n. 12, Edições Colibri, p. 317-324, 1998, p. 319. 14 No processo de investigação e escrita, recorre-se a pesquisa bibliográfica e legislativa, num minucioso exame teórico dos tempos de trabalho e dos tempos de não trabalho, constatando nessas leituras a materialidade dos efeitos e sentidos decorrentes da sua regulamentação jurídica ou mesmo de sua desregulamentação ou não regulamentação pelo campo do Direito. A dissertação é elaborada, portanto, sob a ótica do Direito do Trabalho, por meio de reflexões teóricas em conjunto com institutos e normas que ilustram o tratamento do tema pelo ordenamento jurídico, porém sem deixar de dialogar com pesquisas feitas em outras áreas do conhecimento, pois se trata de fenômeno a tal ponto determinante na sociedade capitalista contemporânea que manifesta seus efeitos em outras esferas sociais e individuais. A pesquisa se justifica ainda pelo fato de, não obstante a relevância do tema, ainda se carecer de estudos voltados à questão da disciplina jurídica do tempo de trabalho à luz dos seus efeitos diretos nos tempos de não trabalho, bem como de seus sentidos na vida não só dos trabalhadores, mas também sobre os demais membros da comunidade. No entanto, logo se percebe que as consequências não são uniformes, atingindo as pessoas de maneira desigual, com destaque para a perspectiva de gênero; assim, a divisão sexual do trabalho, embora não seja objeto da presente pesquisa, permeia todo o texto, pois implica também uma divisão sexual do não trabalho, com reflexos por exemplo na contratação de trabalho com jornadas involuntariamente curtas, na duração do desemprego e nas formas de uso do tempo livre.4 Os resultados desse estudo estão organizados e apresentados em três capítulos, consistindo o primeiro deles em um excurso teórico sobre como se construiu na modernidade um paradigma jurídico de disciplina do tempo de trabalho, baseado no espírito do capitalismo da época, além de uma narrativa sobre a transição, na contemporaneidade, para um novo espírito e, por conseguinte, uma nova morfologia do trabalho – disruptiva e precária, adiante-se. No Brasil, o fenômeno é agravado pela aprovação da reforma trabalhista – operada sobretudo pela Lei n. 13.467, de 2017 –, em 4 Registre-se que também perpassam o texto outras consequências da regulamentação jurídica dos tempos de trabalho e de não trabalho, tais como as relativas a: pobreza de tempo e de renda, desocupação e subocupação, enfraquecimento da organização coletiva dos trabalhadores. Contudo, pela natureza e limitações próprias da dissertação de mestrado, essas questões não foram aprofundadas. 15 que se alteram até mesmo os critérios para o cálculo do que seja tempo de trabalho, relativizando o tempo à disposição, reduzindo e suprimindo intervalos e pausas, desconsiderando sua natureza de norma de saúde e segurança dos trabalhadores. No segundo capítulo, de forma didática, os tempos de trabalho são apresentados em cada uma de suas três dimensões, a saber: extensão, intensidade e distribuição5. Uma a uma elas são analisadas detalhadamente em seus aspectos conceituais, suas características e o tratamento normativo recebido, submetendo-se a uma avaliação crítica à luz da categoria tempo figuras jurídicas como a jornada 12x36 e o contrato de trabalho intermitente. Quanto à extensão, o próprio conceito de jornada e as finalidades de seu alongamento ou redução são debatidos, não se deixando de denunciar ainda a falta de controle de jornada em relação a alguns empregados; quanto à intensidade, revela-se uma debilidade jurídica no seu tratamento, embora bem estabelecidos os mecanismos de intensificação com base nas escolas de gestão e seus efeitos na saúde dos trabalhadores; quanto à distribuição, registra- se a tendência de despadronização da jornada, alocando-se o tempo de trabalho ao longo do dia, semana, mês e ano, de acordo com os interesses do capital, retirando completamente do trabalhador o controle sobre seus próprios tempos. No terceiro capítulo, dedica-se ao estudo dos tempos de não trabalho tomados em sua acepção ampla, em oposição aos tempos de trabalho. Dessa forma, os tempos de não trabalho servem como uma moldura dentro da qual se reúnem expressões variadas das possibilidades humanas no uso dos tempos cotidianos: seja ocupando-os com trabalhos domésticos e de cuidado não remunerados, seja aplicando-os a atividades conexas ao trabalho (qualificação profissional e deslocamento até o trabalho e retorno, por exemplo); seja involuntariamente não os ocupando no mercado formal de trabalho, de modo total ou parcial, em razão de desemprego ou contratos de jornada extremamente reduzida; seja dedicando-os ao consumo; seja consagrando-os à liberdade, ao ócio e à contemplação. Para fins de sistematizar tão matizadas e diversas situações, os tempos de não trabalho também são divididos em três categorias: os que, embora não sejam contratados nem remunerados, 5 Embora existam outras formas de se classificar os tempos de trabalho, nesta dissertação optou- se por adotar a sua divisão tridimensional, com base na trilogia proposta pelo pesquisador Sadi Dal Rosso: DAL ROSSO, Sadi. A jornada de trabalho na sociedade: O castigo de Prometeu. São Paulo: LTr, 1996; DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho! A intensificação do trabalho na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008; DAL ROSSO, Sadi. O ardil da flexibilidade: Os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo: Boitempo, 2017. 16 são tempos de efetivo trabalho ou de trabalho conexo (falsos tempos de não trabalho); aqueles que não são dedicados ao trabalho, mas só não o são por falta de oportunidade (tempos involuntários de não trabalho); por fim, os tempos em que se está liberado do trabalho (tempos livres). Ao final, a questão da possibilidade de contribuição da ordem jurídica, sobretudo do ramo trabalhista, para a garantia da construção de tempos efetivamente livres encontra respostas no direito ao lazer, à saúde e à desconexão, porém esbarra na deturpação do lazer pelo consumo, da saúde pelos modos de extensão, intensificação e flexibilização da jornada e da desconexão pelas exigências ininterruptas do capitalismo 24/7. 17 Capítulo 1 - Tempo, trabalho e direito: do paradigma clássico à disrupção contemporânea O tempo é o campodo desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono, das refeições, etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia. E, no entanto, toda a história da moderna indústria demonstra que o capital, se não se lhe põe um freio lutará, sempre, implacavelmente e sem contemplações, para conduzir toda a classe operária a este nível de extrema degradação. Karl Marx, em Salário, Preço e Lucro Partindo do entendimento de que a apreensão do tempo guarda estreita relação com a organização do trabalho, o estabelecimento de uma jornada padrão, com limitação máxima de duração foi uma das mais importantes conquistas dos trabalhadores. Ainda hoje, num contexto de desregulamentação dos direitos trabalhistas e despadronização da jornada, o tempo é usado como “um indicador-chave do tipo ou espécie de trabalho”.1 Este capítulo inicial propõe-se justamente a percorrer o trajeto da regulamentação jurídica do tempo de trabalho, bem como seus intervalos e pausas, desde o paradigma da modernidade até os dias atuais. 1.1 Tempo e trabalho: o paradigma jurídico na modernidade Eight hours to work, eight hours to play, eight hours to sleep, eight shillings a day. Reivindicações operárias na Inglaterra, no início do século XIX, sobre da divisão de tempo de trabalho e de não trabalho. Sem pretender aqui remontar aos primórdios da relação humana de transformação da natureza por meio do trabalho – e ainda que se conheça os riscos de se assumir uma perspectiva histórica do tipo evolucionista e eurocêntrica2 –, o que se pretende nesta 1 CONAGHAN, Joanne. Time to Dream? Flexibility, Families, and the Regulation of Working Time. In: FUDGE, Judy; OWENS, Rosemary. Precarious Work, Women, and the New Economy: The Challenge to Legal Norms. Oxford: Hart Publishing, 2006, p. 104. Segundo aponta a autora, várias são as modalidades contratuais de trabalho que tomam o tempo como referencial, por exemplo: em tempo integral, em regime de tempo parcial, temporário e por prazo determinado. 2 OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurabi: a pesquisa sociojurídica na pós-graduação 18 primeira seção é descrever um breve panorama de como se deu a regulamentação da jornada de trabalho na modernidade, na construção do paradigma jurídico da época, para, em seguida, apresentar um recorte da regulamentação do trabalho livre assalariado, a partir do Direito do Trabalho brasileiro. 1.1.1 O paradigma jurídico na modernidade Inicialmente, é preciso lembrar que o trabalho escravo foi a marca da Antiguidade,3 tanto em Roma4 quanto na Grécia, sendo que a pessoa escravizada não era sequer considerada sujeito de direito, mas mero objeto de propriedade do seu senhor, a cujas vontades (e maus-tratos) encontrava-se submetida, trabalhando, muitas vezes de forma pesada e humilhante, e sem nenhuma limitação de horário, fosse dia ou noite, ainda que houvesse uma certa preocupação em manter a sua saúde e produtividade, pois o dano ao escravo ou mesmo a sua morte significava um prejuízo material ao seu proprietário.5 Já na Idade Média, embora houvesse ainda escravos e uma pequena população urbana, formada por artesãos e comerciantes, a sociedade feudal europeia era dividida basicamente em três estamentos: o clero, a nobreza e os servos, sendo que aos primeiros cabia rezar; aos segundos, combater; aos últimos, trabalhar.6 Assim, a organização do trabalho agrário na Europa era comandada em grande parte pelos senhores feudais, os em Direito. In: OLIVEIRA, Luciano. Sua Excelência o comissário e outros ensaios de sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004, p. 137-167. 3 Ainda que o trabalho na Antiguidade não seja o objeto da presente dissertação, outras sociedades antigas tinham diferentes formas de organização do trabalho, que não o escravo. Assim, a título exemplificativo, no Egito Antigo, embora houvesse escravos, a economia nunca foi escravista, no sentido em que o foi na Grécia clássica e helenística e a do Império Romano. Já na América pré- colombiana, as civilizações Inca, Maia e Asteca eram sociedades teocráticas com alto grau de organização social, inclusive do trabalho, o qual era realizado por camponeses livres, bem como por escravos. Sobre o tema: CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1982; CARDOSO, Ciro Flamarion S. América pré-colombiana. São Paulo: Brasiliense, 1986. 4 Conquanto, no direito romano, houvesse a figura da locatio condutio para regular a prestação de serviços, essa modalidade era escassa quando comparada à escravidão. Sobre o tema: BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 11. ed. Atualizada por Jessé Claudio Franco de Alecar. São Paulo: LTr, 2017, p. 47. 5 VASCONCELOS, Beatriz Avila. O escravo como coisa e o escravo como animal: da Roma Antiga ao Brasil Contemporâneo In: FIGUEIRA, Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes; SANT´ANNA JÚNIOR, Horácio de (org.). Trabalho escravo contemporâneo: um debate transdisciplinar. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011, p. 179-194. 6 FRANCO JUNIOR, Hilário. O feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 34. 19 quais, em troca do uso da terra e de proteção contra ataques externos ou em caso de guerras, exigiam obrigações de seus servos, entre elas a de que trabalhassem em sua gleba três ou quatro dias por semana. À diferença do escravo, o servo – conquanto algumas restrições lhe fossem impostas – gozava do status legal de homem livre e tinha direito de posse sobre a terra que ocupava, sendo que, após pagar o devido ao senhor feudal, o que produzisse em sua gleba, a ele pertencia. Ocorre que, por meio das obrigações feudais, acabava vinculado de uma forma muito peculiar ao seu senhor, a quem devia obediência e lealdade. Ademais, além de trabalhar para o senhorio, cuidando no manejo dos animais e no plantio e colheita, entre outros afazeres, o camponês servil, diferentemente do escravo, ainda tinha que trabalhar para o seu próprio sustento e de sua família, nos demais dias da semana. Assim, embora as jornadas fossem determinadas pelos senhores feudais, os servos trabalhavam seguindo basicamente os tempos da natureza – isto é, o nascer e o por do sol, o clima, as intempéries, as fases da lua e as estações do ano – e de acordo com os tempos religiosos, impostos pela Igreja, resguardando feriados e dias santos. Foi apenas no ocaso do período medieval, a partir do século XII, que foi surgindo lenta e gradualmente o trabalho livre e assalariado, pois, com o progresso das cidades e do comércio – não mais baseado em trocas de bens, mas no uso da moeda –, aumentou o número de artesãos, os quais passaram a contar com o auxílio não só de parentes, mas de ajudantes externos à família. Com o Renascimento, a ruptura das relações feudais e a associação dos trabalhadores em Corporações de Ofício,7 passou a haver uma regulamentação não só da formação dos aprendizes e do salário a ser pago, mas também da jornada a ser cumprida, fosse no ambiente doméstico, fosse nas pequenas oficinas onde o trabalho era realizado. A partir daí, na Inglaterra, surgiram as primeiras normatizações heterônomas estatais sobre das relações de trabalho: o primeiro estatuto dos trabalhadores data de 1349, durante o reinado de Eduardo III, tendo sido editado no contexto da grande peste, fixando salário e limites da jornada de trabalho. Ainda sobre o tema, no reinado de Henrique VII, a jornada 7 Essas instituições atuavam na proteção dos interesses da categoria profissional, assegurando “a lealdade da fabricaçãoe a excelência das mercadorias vendidas” e viveram seu “apogeu no século XIII e decaíram a partir do século XV”, tendo sido extintas em 1776, pelo Edito de Turgot, e pela lei Chapelier, de 1791. Sobre o tema: BARROS, Alice Monteiro de. Op. cit., p. 49-50. 20 prevista para os artesãos e os trabalhadores agrícolas, pelo estatuto inglês de 1496, estendia- se das 5 horas da manhã até ao anoitecer, mas com intervalos intrajornadas para café da manhã, almoço e jantar, que totalizavam quatro horas de duração. Mantida a jornada, estes intervalos foram reduzidos, pelo estatuto de 1562, sob o reinado de Elizabeth I.8 Assim, durante a Idade Moderna, isto é, entre os séculos XV e XVIII, houve a transição do feudalismo para o mercantilismo, marcado este pela expansão das atividades comerciais nas cidades, impulsionada também pelas Grandes Navegações. Quanto às relações produtivas, nas colônias foi ampla e escancaradamente usado o trabalho escravo, enquanto nas metrópoles os trabalhadores foram separados de seus meios de produção, e passaram a fazer apenas parte do processo produtivo, tendo em vista a divisão do trabalho nas oficinas, manufaturas e, mais tarde como se verá, nas fábricas.9 Na Europa desta época, diante do trabalho assalariado de homens juridicamente livres – ainda que subordinados aos comandos diretivos e organizativos dos donos dos meios de produção – surgiu o pressuposto histórico-material para a formação, anos mais tarde, do direito do trabalho, com seus institutos, regras e princípios próprios.10 Desde o princípio, uma das grandes questões regulamentadas pelo ramo justrabalhista ao lado da remuneração, foi justamente a jornada de trabalho, pois a tendência do capital logo se revelou a de explorar ao máximo as forças dos trabalhadores. Finalmente e de forma bastante sucinta, o início da Idade Contemporânea – cujo marco inaugural foi a Revolução Francesa de 1789 – caracterizou-se, no plano político, pelo fim do Estado absolutista, no plano econômico, pela transição do capitalismo comercial para o industrial e, no plano social, pelo antagonismo entre as classes burguesa e proletária. No presente trabalho, interessa sublinhar que no século XVIII, as inovações técnicas 8 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 344-345. 9 Registre que, na teoria decolonial latino-americana há uma forte crítica à linearidade escravidão- servidão-trabalho livre, isso porque, mesmo no capitalismo contemporâneo, anda coexistem essas formas de exploração da força de trabalho. Contesta-se, pois, a periodização histórica que dá a entender que a escravidão e a servidão seriam fenômenos pré-capitalistas que, mais cedo ou mais tarde, eliminadas do cenário atual, bem como se contesta a divisão geográfica do globo que entende essas formas como localizadas apenas na periferia e não nos países do centro. Sobre o tema: QUIJANO, Anibal. El trabajo. Argumentos: Estudios críticos de la sociedade. UAM-Xochimilco, México, ano 26, n. 72, p. 145-163, mayo/ago. 2013. 10 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019, p. 97 e ss. 21 trazidas no contexto da Revolução Industrial alteraram significativamente o modo de produção material e houve uma transformação da concepção social do próprio tempo, o qual foi convertido de um processo da natureza em uma mercadoria, passível de ser medida, comprada e vendida.11 Revolucionada pelo uso fabril da força da água, do vapor e da maquinaria têxtil, a produção passou a ser feita em larga escala, dentro de ambientes fabris. Ademais, houve uma consolidação da divisão técnica do trabalho, já que o trabalhador, em vez de participar de forma ativa e global no processo de elaboração de um produto, passou a contribuir de forma passiva e parcial, ao alimentar, vigiar, manter e reparar a máquina que o substituiu. O tempo tornou-se sinônimo de dinheiro e passou a ser cronometrado: o tempo de trabalho pelos relógios das fábricas; o tempo de não trabalho pelos sinos das igrejas e dos prédios públicos das cidades.12 A função de cronometrista era desempenhada rigorosamente, pois, na lógica de que o tempo do trabalhador pertence ao capital, cada pausa para descanso é um “pequeno furto” e, por sua vez, há relatos de manipulações dos relógios por fabricantes fraudulentos, com o intuito de explorar alguns minutos a mais por dia do tempo do trabalhador.13 Ademais, os donos dos meios de produção passaram a reclamar dos prejuízos causados se tivessem que deixar a maquinaria ociosa durante o período noturno, fosse porque teriam que mantê-las em funcionamento à noite, mas sem trabalhadores, fosse porque teriam que desligá-las ao fim do dia para ter que novamente ligá-las pela manhã do dia seguinte, o que exigiria muito combustível para reacender os fornos de fundição, por exemplo.14 Sob essa justificativa, muitas fábricas passaram a exigir o trabalho noturno, organizando os trabalhadores em turnos de no mínimo doze horas. 11 WOODCOCK, George. La dictadura del reloj. In: BAIGORRIA, Osvaldo (org.). Con el sudor de tu frente: argumentos para la sociedad del ocio. Buenos Aires: Interzona, 2014, p. 37-42. Para o autor: “Socialmente, el reloj tuvo una influencia más profunda que cualquier otra máquina, porque fue el medio por el cual se pudo lograr la regularización y regimentación de la vida, tan necesarias para un sistema de explotación industrial”. 12 Na verdade, os sinos das igrejas, “desde o século VI, marcavam o tempo em unidades religiosas do dia”; porém, no início da Idade Média, passaram a marcar também “as horas de trabalhar e as de comer, além das de rezar”. Mais adiante, “relógios mecânicos haviam substituído os sinos das igrejas, e em meados do século dezoito os relógios de bolso achavam-se em uso generalizado”. Cf. SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009, p. 40. 13 MARX, Karl. Op. cit., p. 314-317; WOODCOCK, George. Op. cit., p. 37-42. 14 MARX, Karl. Op. cit., p. 336. 22 Tudo isso levou a grandes modificações nas rotinas e nas relações sociais dos trabalhadores. E foi, portanto, a partir do nascimento da grande indústria no final do século XVIII, que se derrubaram “todas as barreiras erguidas pelos costumes e pela natureza, pela idade e pelo sexo, pelo dia e pela noite”.15 Neste contexto, o capital apossou-se de toda a classe trabalhadora – homens, mulheres e crianças – e de todo o tempo – todos os dias da semana,16 mesmo os religiosos, e até mesmo do período noturno. O trabalho realizado fora do ambiente doméstico, levando os trabalhadores a permanecerem horas a fio confinados em fábricas em condições precárias, sem os necessários intervalos para descanso e alimentação, tornou nítida a demarcação entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho. Porém, a divisão revelou-se muito desigual como expressa Marx: […] a jornada de trabalho contém 24 horas inteiras, deduzidas as poucas horas de repouso sem as quais a força de trabalho ficaria absolutamente incapacitada de realizar novamente seu serviço. […] Tempo para a formação humana, para o desenvolvimento intelectual, para o cumprimento das funções sociais, para relações sociais, para o livre jogo das forças vitais físicas e intelectuais, mesmo o tempo livre do domingo […] é pura futilidade! [O capital] usurpa o tempo para o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção saudável do corpo. Rouba o tempo requerido para o consumo de ar puro e de luz solar. Avança sobre o horário das refeições e os incorpora,sempre que possível, ao processo de produção, fazendo com que os trabalhadores, como meros meios de produção, sejam abastecidos de alimentos do mesmo modo como a caldeira é abastecida de carvão, e a maquinaria, de graxa ou óleo. O sono saudável, necessário para a restauração, renovação e revigoramento da força vital, é reduzido pelo capital a não mais do que um mínimo de horas de torpor absolutamente imprescindíveis ao reavivamento de um organismo completamente exaurido. Não é a manutenção normal da força de trabalho que determina os limites da jornada de trabalho, mas, ao contrário, o maior dispêndio diário possível de força de trabalho, não importando quão insalubre, compulsório e doloroso ele possa ser, é que determina os limites do período de repouso do trabalhador.17 Além do sobretrabalho exaustivo, os controles dos tempos passaram a ser feitos de forma rigorosa e externa ao trabalhador, exigindo deste uma sincronicidade e uma 15 MARX, Karl. Op. cit., p. 350. 16 Ainda que não fosse verdadeiramente um dia santo como sugere o nome, havia na Inglaterra pré- industrial uma tradição de absenteísmo ao trabalho às segundas-feiras, que era denominada “Saint Monday”. POLLAR, Sidney apud TEIXEIRA, Kleber Garcia. A máquina e o tempo: dialética das forças produtivas e do tempo de trabalho em Marx. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010, p. 160. 17 MARX, Karl. Op. cit., p. 337-8. 23 regularidade, às quais ele não estava habituado. Diante deste contexto, o controle sobre os tempos do trabalhador assume posição fundamental na luta de classes, pois significa também o controle da própria atividade produtiva, no que diz respeito à fixação do ritmo, da intensidade e dos resultados, perpassando o embate pela alocação do tempo, dentro e fora da relação de trabalho.18 Assim, embora haja uma tendência capitalista de simples aplicação da lei de troca de mercadorias à relação de trabalho, esta se trata de uma negociação bem particular, pois a “mercadoria” força de trabalho precisa ser reproduzida a cada dia para ser novamente vendida no dia seguinte. Neste sentido, o sociólogo francês Pierre Naville complementou a análise de estrutura da jornada de trabalho de Karl Marx,19 ao dizer que, além da parte consagrada a ganhar o salário e a parte para produzir mais-valor, a jornada de trabalho possui um elemento, que a diferencia de outras unidade de tempo de trabalho: ela é cíclica.20 Ou seja, ela está intrinsecamente vinculada ao aspecto natural do dia e da noite e às funções biológicas do ser humano.21 Neste ponto, interessante notar que todos os trabalhadores, na condição de seres humanos, além do descanso, necessitam de outros zelos com o corpo, tais como higiene e alimentação, bem como o local onde vivem e os utensílios e roupas que usam também requerem tempo para sua manutenção. Quanto às pessoas em tenra idade ou em idade avançada e as que não gozam de plena saúde física ou mental, demandam cuidado de outras 18 TEIXEIRA, Kleber Garcia. Op. cit., p. 158. 19 Idem, p. 306. 20 NAVILLE, Pierre apud SILVA, Josué Pereira. Três discursos, uma sentença: tempo e trabalho em São Paulo - 1906/1932. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1996, p. 39. 21 Interessante a analogia que fazem Boltanski e Chiapello sobre os custos de manutenção e reprodução do trabalho: “O ‘recurso humano’ não pode ser consumido como os outros, pois supõe um custo de manutenção e reprodução que deveria ser indissociável de seu custo de utilização. Aquele que compra um tomate paga, em princípio, seu custo de fabricação desde a geração da semente, passando pela terra, pela fertilização e pelos cuidados que lhe foram dispensados. Ele não se limita a alugar o tomate pelo tempo que este demora para passar do prato ao estômago. No entanto, é diante de uma situação desse tipo que nos vemos com frequência cada vez maior no que se refere ao trabalho, pois estão sendo cada vez mais separados dos salários pagos os custos incorridos antes do emprego (escola, formação, sustento durante períodos de inatividade e folgas), ou depois dele (reconstituição das foras, desgaste e envelhecimento), sem contar que o efeito da intensificação do trabalho sobre a saúde física e mental não é positivo. Essa situação é mais problemática porque a ‘produção’ do ‘recurso humano’ é demorada, tal como ocorre com certas árvores que são plantadas muito tempo antes da colheita; os efeitos da situação atual, portanto, se farão sentir ao longo de várias décadas”. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 279-280. 24 pessoas, o que vem sendo deixado a cargo do gênero feminino.22 Ou seja, é o trabalho reprodutivo, geralmente desempenhado pelas mulheres, que garante e mantém o dito trabalho produtivo, atribuído aos homens. Ocorre que, segundo relata Karl Marx, o desenvolvimento da maquinaria tornou prescindíveis a força muscular e mesmo o desenvolvimento corporal completo. Assim, num dado momento, o capital apropriou-se do trabalho feminino e infantil, de forma depreciada, usurpando ao mesmo tempo a recreação das crianças e o trabalho familiar realizado pelas mulheres, com consequente rebaixamento do valor da força de trabalho masculina e dos salários em geral. De modo que a produção mecanizada ampliou o material humano a ser explorado, bem como o grau de exploração.23 Se quase toda a família passava o dia na fábrica, quem realizava o trabalho doméstico e quem cuidava dos bebês, dos doentes e dos idosos? Karl Marx explica que alguma parte do trabalho poderia ser substituída por mercadorias prontas (por exemplo, a costura de roupas), não sem demandar um dispêndio maior de dinheiro; entretanto, outras funções da família não poderiam ser inteiramente suprimidas (por exemplo, a amamentação e os cuidados com os dependentes).24 Em consequência, além da deterioração física e intelectual das crianças e adolescentes que trabalhavam, o lar teria se convertido em um lugar miserável e descuidado e a taxa de mortalidade dos filhos dos trabalhadores e trabalhadoras em seus primeiros anos de vida atingira índices alarmantes.25 Por sua vez, Friedrich Engels 22 Sobre a passagem de sociedades organizadas com base no direito materno para as fundado no direito paterno, com subjugo das mulheres em relação aos homens, atribuindo-lhes funções social e economicamente desvalorizadas, cf. ANDRADE, Joana El-Jaick. O marxismo e a questão feminina: as articulações entre gênero e classe no âmbito do feminismo revolucionário. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 31 e ss. 23 MARX, Karl. Op. cit., p. 469. 24 O cuidado como categoria de trabalho é um termo multidimensional e polissêmico que questiona inclusive o conceito de dependência, a qual é “inerente à condição humana”. Sobre o tema: VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Cuidado como trabalho: uma interpelação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva de gênero. 2018. 236 p. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 22-23. 25 “Na Inglaterra, há 16 distritos de registro civil que apresentam, na média anual, apenas 9.085 casos de óbito (em um distrito, apenas 7.047) para cada 100 mil crianças vivas com menos de 1 ano de idade; em 24 distritos, entre 10 mil e 11 mil; em 39 distritos, entre 11 mil e 12 mil; em 48 distritos, entre 12 mil e 13 mil; em 22 distritos, mais de 20 mil; em 25 distritos, mais de 21 mil; em 17, mais de 22 mil; em 11, mais de 23 mil; em Hoo, Wolverhampton, Ashton-under-Lyne e Preston, mais de 24 mil; em Nottingham, Stockporte Bradford, mais de 25 mil; em Wisbeach, 26.001; e em Manchester, 26.125. Como evidenciou uma investigação médica oficial em 1861, desconsiderando- se as circunstâncias locais, as altas taxas de mortalidade se devem principalmente à ocupação 25 denunciou a corrupção moral decorrente da exploração capitalista do trabalho de mulheres e crianças, alegando que o ambiente da fábrica prejudicaria o “desenvolvimento do caráter feminino”, incapacitando as mulheres para as tarefas domésticas e incentivando a promiscuidade, bem como invertendo os papéis sociais no âmbito do trabalho e da família.26 Na contemporaneidade, ainda que exista uma igualdade jurídica entre homens e mulheres, ainda subsiste uma divisão sexual do trabalho,27 segundo a qual os cargos e funções caracterizados por baixa qualificação e remuneração e com jornadas parciais são ocupados, em geral pelas mulheres, seguindo a ideia de que sua renda é meramente complementar e que só elas (e não os homens) desejam e precisam conciliar a vida profissional com a vida familiar.28 Neste contexto, mesmo quando as mulheres ingressam no mercado de trabalho, continuam responsáveis pelas tarefas domésticas e de cuidado, ou acabam delegando-as a outras mulheres, sejam da família ou sejam contratadas como empregadas domésticas.29 Assentada em uma premissa separatista hierarquizante e territorializada entre o trabalho produtivo e o reprodutivo,30 perdura, portanto, uma divisão sexual não só dos espaços e tempos de trabalho, mas também dos de não trabalho, como será visto adiante. Ademais, é preciso atentar para o fato de que sempre existiu e ainda existe uma “avidez por mais-trabalho”,31 um “impulso do capital por uma sucção ilimitada da força de extradomiciliar das mães, que acarreta o descuido e os maus-tratos infligidos às crianças , aí incluindo, entre outras coisas, uma alimentação inadequada ou a falta dela, a administração de opiatos etc., além do inatural estranhamento das mães em relação a seus filhos, que resulta em sua esfomeação e envenenamento intencionais. Já nos distritos agrícolas, em que a ocupação feminina é mínima, a taxa de mortalidade é, ao contrário, a menor de todas”. MARX, Karl. Op. cit., p. 471. 26 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. Analia. C. Torres. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 182-186. 27 NOGUEIRA, Claudia Mazzei. O trabalho duplicado: a divisão sexual no trabalho – um estudo das trabalhadoras de telemarketing. São Paulo: Expressão Popular, 2006. 28 Sobre o tratamento dado ao tema na legislação trabalhista brasileira: VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Op. cit., p. 129. 29 CURVO, Isabelle Carvalho. O trabalho da mulher entre a produção e a reprodução. In: TEODORO, Maria Cecília Máximo (coord.). Direito Material e Processual do Trabalho: I Congresso Latino-Americano de Direito Material e Processual do Trabalho. V. 1. São Paulo: LTr, 2015, p. 93. 30 ABRAMO, Laís Wendel. A inserção da mulher no mercado de trabalho: uma força de trabalho secundária? Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 72 e ss. 31 MARX, Karl. Op. cit., p. 309. 26 trabalho” que não se abala nem em momentos de crise.32 Assim, havendo ou não incerteza econômica, a regulamentação da duração da jornada apresenta-se como uma luta crucial entre os interesses dos donos dos meios de produção, que compram a força de trabalho, e dos trabalhadores, que a vendem. Importante lembrar que no momento do embate de forças, o capitalista “é apenas capital personificado”,33 enquanto o trabalhador “não é mais do que tempo de trabalho personificado”.34 De forma que, para o capitalista, a duração da vida do trabalhador passa a ser menos importante que sua produtividade enquanto ela durar.35 Diante desse embate, foi constatada a necessidade de um controle social uniformizante a respeito do trabalho, sobretudo das questões salariais e de jornada de trabalho e suas pausas. Assim, a consolidação de uma jornada de trabalho foi, consoante Marx, o resultado de longas lutas entre as classes capitalista e trabalhadora:36 de um lado, as investidas dos donos do meios de produção e os inúmeros abusos na exploração da força de trabalho; de outro, a resistência dos trabalhadores, bem como os protestos e as manifestações contrárias às manobras do capital. Na Inglaterra, onde a Revolução Industrial teve maior destaque, a jovem classe operária, descontente com a exploração sofrida, opunha-se à mecanização do trabalho que substituía operários por máquinas e permitia a inserção de mulheres e crianças no ambiente fabril. Sem encontrar forma mais eficiente de se manifestar, a partir de 1810, os operários passaram a expressar sua indignação por meio da destruição das máquinas (outras formas de resistência da classe operária eram o boicote aos produtos de determinada fábrica e a sabotagem às engrenagens).37 Esse conjunto de ações de revolta por meio da quebra de máquinas foi denominado luddismo, em homenagem ao operário Ned Ludd, tendo sido enfraquecido em 1812, quando o Parlamento inglês aprovou a Frame Breaking Act, lei que punia os “quebradoras de máquinas” com a pena de morte. 32 Pelo contrário, quando a produção é reduzida e as fábricas funcionam por menos dias na semana, aí a sede do capital pelo mais-trabalho é ainda maior. “Quanto menos negócios são feitos, maior deve ser o ganho sobre o negócio feito. Quanto menos tempo se trabalha, maior é o tempo excedente de trabalho a ser extraído”. MARX, Karl. Op. cit., p. 315. 33 Ibid., p. 307. 34 Ibid., p. 317. 35 Ibid., p. 339. 36 Ibid., p. 355. 37 CANDIDO FILHO, José. O movimento operário: o sindicato, o partido. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 26. 27 Outro recurso usado pelo proletariado era o movimento grevista, forma de manifestação mais eficaz consistente na paralisação parcial ou total das atividades, elevando o nível de organização e consciência do proletariado, porém não sem a resposta repressiva e violenta por parte dos donos dos meios de produção. Porém, os trabalhadores organizados em sindicatos (as trade unions), encontravam muitas dificuldades, pois agiam clandestinamente já que entre 1799 e 1812 existia uma proibição legal da associação de trabalhadores.38 Após as insurreições dos trabalhadores, as primeiras leis regulamentadoras da jornada foram editadas inicialmente na Inglaterra – tanto que Karl Marx denomina os trabalhadores fabris ingleses como paladinos da classe trabalhadora.39 No entanto, durante a primeira metade do século XIX, as limitações se deram por meio de uma legislação fabril de caráter excepcional, aplicável somente a determinadas fábricas e manufaturas têxteis e a determinados trabalhadores, tais como crianças, menores e mulheres. Em verdade, as cinco leis trabalhistas aprovadas entre 1802 e 1833 pelo Parlamento inglês permaneceram como “letra morta”. Entretanto, seguiram-se de outras cinco que foram, entre avanços e retrocessos, limitando os abusos do capital: a lei fabril de 1833; a de 1844 (que limitava o trabalho infantil); a de 1847 (que ficou conhecida como Lei das 10 horas, com plena aplicação a partir de 1º de maio de 1848); a de 1850 (que institui uma nova lei fabril, estando revogada a Lei das 10 horas); e a de 1853 (que emenda a lei de 1850).40 Assim como a Inglaterra, outros países que se destacaram na regulamentação da jornada nos primórdios do direito do trabalho foram a França e sua “Lei das 12 horas”, de 1848,41 e os Estados Unidos, onde em 1866 houve, no Congresso Geral dos Trabalhadores, 38 A primeira lei sobre o direito à livre associação e a organização sindical só foi aprovada em 1824, para facilitar a negociação entre os operáriose os empresários ingleses, mas também para identificar as lideranças, interferir e controlar sua atuação. Com o direito de associação, além de melhores condições de trabalho, os trabalhadores ingleses passaram a exigir direitos políticos, dando origem ao movimento denominado cartismo, por ter se originado na Carta do Povo, escrita por William Lovett, em maio de 1838. 39 MARX, Karl. Op. cit., p. 370-371. Registre-se que a publicação do Manifesto Comunista, por Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848, ao mesmo tempo refletiu o movimento dos trabalhadores e sobre sua organização exerceu influência. 40 Idem, p. 349-370. 41 Para uma análise pormenorizada da experiência francesa quanto ao tempo de trabalho: FRACALANZA, Paulo Sérgio. Redução do tempo de trabalho: uma solução para o problema do desemprego? Tese (Doutorado em Ciências Econômicas) – Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. 28 em Baltimore, um forte movimento pela jornada de trabalho de 8 horas, o que veio a ser regulamentado para os trabalhadores do serviço público federal.42 Em 1877, foi a vez de a Suíça fixar o máximo em 11 horas; em 1885, a Áustria adotou o máximo de 10 horas; em 1897, a Rússia estipulou o limite de 10 horas.43 Não se pode deixar de mencionar que mesmo a Igreja Católica em sua Encíclica Rerum Novarum, em 15 de maio de 1891, apontou que “o número de horas de trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade de repouso deve ser proporcionada à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários”. 44 Ainda que não estipulasse exatamente a quantidade de horas para cada atividade, posicionava-se contra o abuso da exigência de trabalho excessivo, que embrutecia o espírito e enfraquecia o corpo, sendo que cada operário deveria ter direito ao descanso, o qual deveria ser dedicado ao repouso festivo, consagrado à religião.45 De todo modo, no início do século XX, o movimento pelas 8 horas diárias de trabalho se intensificou46. A ideia de dividir o dia em três partes iguais, uma para o sono, 42 Segundo Josué Pereira Silva, as primeiras reivindicações pela jornada de 8 horas datam de 1833, na Inglaterra, e foram feitas pelos trabalhadores nas fiações de algodão. SILVA, Josué Pereira. Op. cit., p. 33. Nos Estados Unidos, o movimento operário pela redução da jornada prosseguiu, sendo que em 1º de maio de 1886, cinco operários foram enforcados na cidade de Chicago. Cf. DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice et al. (org.). Reconfiguração das relações de gênero no trabalho. São Paulo: CUT Brasil, 2004, p. 25. 43 NASCIMENTO, Sônia A. C. Mascaro. Flexibilização do horário de trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 14. 44 LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Rerum Novarum. Sobre a condição dos operários. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l- xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html>. Acesso em: 02 abr. 2019. 45 Deixando a Igreja Católica, como visto, uma margem para que a quantidade de trabalho se amoldasse ao contexto local, no Brasil o discurso era pela manutenção da jornada diária em 10 horas. Em seu livro sobre a implementação no Brasil da jornada de trabalho de oito horas, o sociólogo brasileiro Josué Pereira Silva analisa a sociedade industrial de São Paulo no período de 1906 a 1932, dedicando um capítulo para cada um dos seguintes grupos sociais: operários, empresários e governantes. Antes, porém, no seu capítulo introdutório, lembra o discurso de um padre, feito no interior de Minas Gerais, em 1925, bastante representativo do ideário da época: pregava sobre os benefícios do trabalho – o qual “ilustra a inteligência, enriquece o caráter, aperfeiçoa o cidadão” –, mas exaltava que para ser “fator de progresso” deveria ser “perseverante na sucessão de dias, na sucessão das horas”. Enfim, era favorável a que se trabalhasse dez horas por dia, e não oito, posicionando-se contrário ao que viria a ser aprovado pelo Decreto n. 21.186, de 1932, o qual, regulando o horário para o trabalho no comércio, fixou o limite de 8 horas, como se verá adiante. Cf. SILVA, Josué Pereira. Op. cit., p. 19. 46 Sobre a adoção da pauta da jornada de oito horas pelo Congresso Socialista Internacional, em 1889, em Paris, e sua influência na construção dos limites para duração do trabalho: SÜSSEKIND, Arnaldo. Duração do trabalho. In: SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de direito do trabalho. 22. ed. São Paulo: LTr, 2005. v. 2, p. 700-739. 29 outra para o trabalho, e a última para o lazer se espalhou pelo movimento operário, tal como exemplifica o desenho feito por Jules Grandjouan que ilustrou a capa da revista francesa L’Assiette au Berre, em 1º de maio de 1908.47 Houve, então, uma generalização da jornada de 8 horas, tendo outros países aderido a esse limite: em 1901, Austrália; em 1908, Chile (para trabalhadores estatais) e Inglaterra (para os mineiros); em 1909, Cuba (para trabalhadores estatais); em 1915, Uruguai, Suécia e França; em 1916, Equador (para mineiros e arsenais da Marinha); em 1917, México (pela primeira vez na história com status constitucional), Rússia e Finlândia; em 1918, Alemanha (para mineiros e industriários); em 1919, Itália (para ferroviários, marítimos e rodoviários) e Inglaterra (para os demais trabalhadores).48 Em 1911, uma transformação teórica de grande influência veio dos Estados Unidos, com a publicação do livro Princípios de administração científica, de Frederick Taylor, o qual, discorrendo sobre a organização do trabalho e a divisão das tarefas, apontava entre os seus benefícios a redução das horas de trabalho. Essas ideias foram adotadas pelo empresário Henry Ford na indústria automobilística norte-americana, a partir de 1914, utilizando-se da linha de montagem e implementando a jornada de oito horas.49 É preciso ponderar que, apesar da redução da extensão da jornada, houve um significativo aumento da intensidade, elevando o ritmo de trabalho, como será visto adiante. No plano internacional, só após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, a jornada de 8 horas de trabalho diárias (e 48 horas semanais) foi recomendada, pelo Tratado de Versalhes e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), então recém-criada. O próprio preâmbulo da Constituição da OIT, com a redação dada pela Declaração da Filadélfia, de algumas décadas depois, leva em consideração, entre outras questões atinentes, “que é urgente melhorar essas condições [de trabalho] no que se refere, por exemplo, à regulamentação das horas de trabalho, à fixação de uma duração máxima do dia 47 Trata-se do desenho de três moças nuas, representando cada uma delas: oito horas de trabalho, oito horas de lazer e oito horas de sono, com inspiração nas Horas, divindades da mitologia grega. SILVA, Josué Pereira. Op. cit., p. 20. 48 NASCIMENTO, Sônia A. C. Mascaro. Op. cit., p. 14. 49 Esse modelo taylorista/fordista teve seu ápice no pós Segunda Guerra Mundial e seu declínio na década de 1970, com a crise do petróleo e a expansão, a partir do Japão, do modelo toyotista de produção, baseado na “acumulação flexível”, caracterizada pela extrapolação da jornada por meio de horas extras, realizadas no próprio local de trabalho ou não. 30 e da semana de trabalho”.50 Além da Convenção n. 1 sobre as horas de trabalho (indústria), de 1919, outras convenções da OIT se dedicaram à limitação dos tempos de trabalho e das pausas: Convenção n. 14 sobre descanso semanal (indústria), de 1921; Convenção n. 30 sobre as horas de trabalho (comércio e escritórios), de 1930; Convenção n. 47 sobre as quarenta horas semanais, de 1935; Convenção n. 106 sobre descanso semanal (comércio e escritórios), de 1957. Destaca-se também a Recomendação n. 116 da OIT (reduçãoda jornada de trabalho), de 1962, a qual incentiva o modelo de 40 horas semanais.51 Ainda no plano internacional, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos dispôs que todos têm “direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas”, mesmo que não previsse exatamente quantas horas de trabalho e quantos dias de férias seriam. Do que se expôs até aqui, nota-se que desde os primórdios do sistema capitalista, o tempo dedicado ao trabalho sempre foi objeto de disputa entre capitalistas – que, ao pagarem o salário, se entendiam donos, se não dos corpos dos trabalhadores, pelo menos do seu tempo – e trabalhadores – que pretendiam sua redução. Sendo certo que na Modernidade, à época da Revolução Industrial, os trabalhadores fabris europeus, enquanto estivessem despertos, dedicavam suas horas ao trabalho, sobrando-lhes pouquíssimo tempo para se alimentar e descansar. E atualmente, após avanços e recuos, na Contemporaneidade, a regulação da jornada de 40 horas e descanso semanal, é uma realidade em boa parte do mundo.52 1.1.2 A regulamentação jurídica do trabalho livre assalariado no Brasil No contexto brasileiro, levando em consideração as mudanças político-ideológicas e constitucionais havidas, não há consenso doutrinário quanto aos marcos divisórios da 50 OIT. Constituição da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo- brasilia/documents/genericdocument/wcms_336957.pdf> . Acesso em: 08 mar. 2019. 51 Sobre o tema: TEBALDI, Eliegi. A redução da jornada de trabalho e seus impactos no direito do trabalho. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013; ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 26-27. 52 LEE, Sangheon; MCCANN, Deirdre; MESSENGER, Jon C. Op. cit., p. 149. 31 regulamentação da jornada.53 Da intrusão dos colonizadores europeus no século XVI até a sucinta, porém notória, Lei Áurea – que em 13 de maio de 1888 declarou extinta a escravidão a partir de então, – não havia quase nada no quadro legislativo referente ao trabalho nem mesmo no texto constitucional e, quando havia, a garantia de direitos era não ao prestador, mas ao tomador dos serviços.54 No ano seguinte, a partir de 15 de novembro de 1889, considera-se o início do período denominado República Velha e a Constituição de 1891 refletia o caráter liberal da época, continuando silente sobre o tema do direito do trabalho.55 Porém, o início da industrialização no país e os movimentos operários56 e acadêmicos acerca da questão social fizeram surgir, entre 1888 e 1930, os primeiros diplomas legislativos nacionais regulamentadores do trabalho livre, ainda que não cuidassem especificamente de disciplinar a jornada de trabalho.57 No plano do direito coletivo, a primeira lei sindical no país foi o Decreto n. 979, de 1903 e cuidava da associação de trabalhadores da agricultura e indústria rurais em sindicato 53 Sobre a trajetória evolutiva do direito do trabalho no Brasil, ver: SILVA, Walküre Lopes Ribeiro. Direito do trabalho brasileiro: principais aspectos de sua evolução histórica e as propostas de modernização. Revista TST, Brasília, v. 69, n. 2, p. 120-138, jul./dez. 2003. 54 A primeira Constituição do Império do Brasil de 1824 apenas reconhecia a liberdade de trabalho, num país majoritariamente escravocrata, e extinguia eventuais corporações de ofício. CATHARINO, José Martins. Compêndio de direito do trabalho. V. 1. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 15. Sobre as leis esparsas da época que tratavam de regular a locação de serviços (Lei de 1830 e Lei de 1837): GOMES, Orlando. Direito do trabalho: estudos. São Paulo: LTr, 1980, p. 28-29. 55 Também no início do ano de 1891, havia sido editado o Decreto n. 1.313, o qual pretendia regularizar o trabalho dos menores empregados nas fábricas da Capital Federal, estabelecendo limites máximos para a jornada de aprendizes, de 8 a 12 anos, e menores do sexo feminino, de 12 a 15 anos, e do sexo masculino, de 12 a 14 anos. Contudo, apesar da relevância histórica, o âmbito de abrangência do diploma era muito limitado, além de não ter havido aplicação efetiva, em virtude da falta de fiscalização. Sobre o tema: TEBALDI, Eliegi. Op. cit., p. 26; SILVA, Walküre Lopes Ribeiro. Op. cit. 56 No período entre 1890 e 1920, atrás apenas do aumento salarial, o segundo motivo que mais levou os trabalhadores à greve foi a redução de jornada. Uma das maiores greves do país no início do século XX foi a greve geral de 1903, a qual teve início entre os trabalhadores da indústria têxtil, mas abrangeu várias categorias profissionais, reivindicando a conquista de direitos, sendo o principal deles a jornada de 8 horas de trabalho diário. Sobre essa greve: GOLDMACHER, Marcela. A “Greve Geral” de 1903: O Rio de Janeiro nas décadas de 1890 a 1910. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, 2009. 57 Entre os diplomas legislativos da época, destacam-se os seguintes Decretos: n. 979, de 1903; n. 1.637, de 1907; n. 4.682 (Lei Elói Chaves), de 1923; n. 4.982, de 1925. Nenhum deles limitava a jornada, ainda que este último previsse o direito de férias a alguns empregados. O próprio Código Civil (Lei n. 3.071, de 1916) trazia vários artigos sobre locação de serviços e empreitada (art. 1216 e ss.), sem mencionar a jornada de trabalho. Ver: GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 43. 32 para defesa de seus interesses, ampliado esse direito para os trabalhadores urbanos, inclusive profissionais liberais pelo Decreto n. 1.637, de 1907.58 Neste contexto normativo, associado à chegada massiva de trabalhadores imigrantes, vindos sobretudo da Itália, é realizado o 1º Congresso Operário Brasileiro em 1906 e a greve geral de 1917, que trazia entre as pautas, a reivindicação da jornada de oito horas.59 A partir de 1930, abre-se uma nova fase para o direito do trabalho pátrio, tendo a jornada sido regulada pela primeira vez no âmbito nacional pelo Decreto n. 21.186, de 1932, o qual, regulando o horário para o trabalho no comércio, fixou o limite de 8 horas diárias ou 48 horas semanais, além de um dia de descanso obrigatório. Em seguida, a Constituição da República de 1934 foi pioneira ao tratar da ordem econômica e social, traçando, de forma inédita no país, balizas constitucionais referentes à duração da jornada: oito horas diárias, aplicáveis aos trabalhadores, excluídos os agrícolas, que seriam objeto de regulamentação especial. Desde então, embora o país tenha transitado entre regimes ditatoriais e democráticos – com reflexos sobretudo nas relações coletivas de trabalho e na liberdade da organização sindical –, quanto à questão da duração da jornada, não houve alteração significativa nos textos constitucionais seguintes.60 Também no tocante ao tema, este período histórico foi marcado, no plano infraconstitucional, pela publicação do Decreto-lei n. 2.308, de 1940, que dispôs, conforme ementa, sobre a duração do trabalho em quaisquer atividades privadas, salvo aquelas subordinadas a regime especial declarado em lei,61 uniformizando e regulamentando inclusive a prestação de horas extras, os períodos de descanso, o trabalho noturno e as formas de fiscalização do cumprimento das normas. E, em 1º de maio de 1943, foi publicado o Decreto-Lei n. 5.452, aprovando a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que sistematizou o tratamento jurídico conferido à relação de emprego, reunindo, organizando e completando as leis anteriores.6258 AROUCA, José Carlos. Organização sindical no Brasil: passado, presente, futuro? 2. ed. São Paulo: LTr, 2019, p. 322. 59 Ibid., p. 22-23. 60 A partir daí, a limitação de jornada esteve prevista nas Constituições brasileiras de 1934 (art. 121, § 1º, c), 1937 (art. 137, i), 1946, (art. 157, V), 1967 (art. 158, VI) e 1988 (art. 7º, XIII). BARROS, Alice Monteiro de. Op. cit., p. 54-60. 61 Segundo o art. 6º, estavam excluídos do regime deste decreto-lei: os trabalhadores agrícolas; os viajantes e os pracistas; os vigias, cujo horário, entretanto, não deveria exceder de dez horas; os domésticos; os gerentes ou administradores; os que trabalhassem na estiva. 62 Apesar do nome de consolidação, ela “é quase um código” e “em certo sentido, até mais que um 33 Por disposição expressa em seu art. 7º, a CLT – que, embora tenha sofrido várias alterações, continua vigente – não se aplica aos empregados domésticos, aos trabalhadores rurais e aos servidores públicos.63 Especificamente quanto à jornada, em seu artigo 58, foi previsto o limite de 8 horas diárias, desde que não expressamente fixado outro limite – a exemplo das normas especiais de tutela do título III da CLT (art. 224 e ss.) – e excluídas algumas categorias que não contam com nenhum limite a não ser o bom senso do empregador.64 Por fim, a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1888 marcou o início da atual fase dos direitos trabalhistas no país, elevando-os ao status de direitos fundamentais e estendendo-os a quase todos os trabalhadores. Assim, embora continuem excluídos da CLT, nas garantias constitucionais, os rurais foram equiparados aos urbanos (art. 7º, caput), fazendo jus a todos os direitos elencados no artigo 7º da Constituição; já aos servidores públicos (art. 39, § 3º) e aos empregados domésticos (art. 7º, parágrafo único), o texto constitucional garantiu apenas alguns desses direitos.65 No que concerne ao limite diário de 8 horas,66 foi complementado pelo limite semanal de 44 horas, além da previsão de adicional a ser pago em caso de trabalho em hora extraordinária, de no mínimo 50% a mais que a hora normal).67 Registre-se que há muito a código”. VIANA, Márcio Túlio. 70 anos de CLT: uma história de trabalhadores. Brasília: Tribunal Superior do Trabalho, 2013, p. 91. 63 Embora tenham sido bastante diversas as trajetórias de cada uma dessas categorias, atualmente, por previsão constitucional, a todas elas se aplica inciso XIII do artigo 7º da CF/88, ou seja, a limitação de 8 horas diárias e 40 horas semanais. Especificamente quanto ao trabalho doméstico, interessante a análise feita por Regina Vieira, a partir de uma perspectiva de gênero: VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Op. cit., p. 142 e ss. 64 Segundo a redação original do art. 62, não se compreendiam no regime de jornada: os vendedores pracistas, os viajantes e os que exerciam, em geral, funções de serviço externo não subordinado a horário; os vigias, cujo horário, entretanto, não deveria exceder de dez horas; os gerentes; os que trabalhavam nos serviços de estiva e nos de capatazia nos portos sujeitos a regime especial. Em 1985, a Lei n. 7.313 retirou desse rol os vigias. Em 1994, a redação do artigo 62 da CLT foi alterada pela Lei n. 8.966, de modo que passaram a não ser abrangidos pelo regime apenas os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho e os gerentes. Em 2017, a reforma trabalhista (Lei n. 13.467) inseriu nesse rol os empregados em regime de teletrabalho, excluindo-os, pois, da proteção da jornada máxima. 65 Registre-se que, à época da Assembleia Constituinte, diversos movimentos sociais apresentaram sugestões e pleitos no sentido da extensão plena dos direitos trabalhistas e previdenciários aos trabalhadores domésticos. Cf. VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Op. cit., p. 145 e ss. 66 Nos turnos ininterruptos de revezamento, a jornada diária máxima é de seis horas., salvo negociação coletiva, consoante inciso XIV do artigo 7º da CRFB/88. 67 Muitas críticas são feitas à monetização do labor extraordinário e à sua transformação em componente estrutural do regime de trabalho no Brasil. Cf. TEBALDI, Eliegi. Op. cit., p. 129. No 34 reivindicação obreira consiste na redução do limite semanal para 40 horas, sem perda salarial68, pauta presente na Proposta de Emenda à Constituição n. 231, de 1995 e renovada na Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, realizada em 2010, que resultou na apresentação de um Manifesto e de uma Agenda da classe trabalhadora.69 Vale registrar ainda que o direito à limitação de jornada só veio a ser estendido aos domésticos com a Emenda Constitucional n. 72, de 2013, regulamentada pela Lei Complementar n. 150, de 2015. Sendo assim, atualmente no Brasil, os únicos empregados que não gozam de proteção quanto à jornada são aqueles que restaram desprotegidos pelo artigo 62 da CLT, isto é, os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho; os gerentes; e os empregados em regime de teletrabalho.70 Como visto, a luta, a princípio era pela limitação diária do trabalho; em seguida, pela limitação semanal. Já o cômputo mensal de horas é a regra no Brasil para fins de remuneração e salário.71 Atualmente, também tem sido discutido o contrato anual de horas de trabalho, modalidade que permite uma grande flexibilidade, o que pode acarretar desvantagens ao trabalhador.72 Por fim, um outro possível parâmetro para se medir a mesmo sentido: “não adianta limitar a duração da jornada, sem controlar, com rigor, o trabalho extraordinário. A simples oneração do valor da hora extra não tem sido suficiente para desestimular a sua prática”. Cf. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 4. ed. São Paulo: LTr, 2002, p. 157. 68 Antes da promulgação da CF/88, já havia o pleito da redução para 40 horas semanais, culminando na greve de 1985; em 1995, foi apresentada a PEC n. 231, visando reduzir a jornada semanal para 40 horas, bem como aumentar para 75% a remuneração do serviço extraordinário. Sobre o tema: MELLO, Roberta Dantas de. O Brasil e a redução da duração semanal de trabalho para 40 horas: um debate contemporâneo. Revista LTr: doutrina, São Paulo, v. 75, n. 11, p. 1367- 1376, nov. 2011, p. 1368. 69 RAMOS FILHO, Wilson. Trabalho e regulação: o direito capitalista do trabalho e as crises econômicas. In: RAMOS FILHO, Wilson (coord.). Trabalho e regulação no Estado constitucional. Curitiba: Juruá, 2010, p. 340-380. 70 Existe uma discussão doutrinária sobre a recepção ou não do artigo 62 da CLT pela CF/88, sobretudo porque com os modernos meios de comunicação as atividades laborais, ainda que externas, seriam passíveis de controle de jornada. Neste sentido, o inciso III do mesmo dispositivo, inserido pela Lei n. 13.467, de 2017, seria inconstitucional. Sobre o tema: MEDEIROS, Alexandre Alliprandino. O artigo 62 da CLT continua inconstitucional. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, ano VIII, n. 75, fev. 2019, p. 99-111. Disponível em: <https://ead.trt9.jus.br/moodle/pluginfile.php/49211/mod_resource/content/1/Revista%20El etrônica%20%28FEV%202019%20-%20nº%2075%20- %20Teletrabalho%20e%20a%20Reforma%20Trabalhista%29.pdf> Acesso em: 04 abr. 2019. 71 Com base no disposto pelo art. 64 da CLT, a doutrina e a jurisprudência adotam o divisor 220 para cálculo do valor da hora do trabalhador. Vide Decreto n. 9.661, de 2019, que estabelece o atual salário mínimo mensal, bem como os correspondentes valores diário e horário. 72 Interessante seria – em acréscimo aos limites diário e semanal – a limitação do excesso de horas 35 duração do trabalho é a permanência dos trabalhadores na vida ativa, que se relaciona com a época de ingresso no trabalho – que possui limitesetários mínimos e vem sendo postergada pela exigência de qualificação prévia – e com a época de saída do trabalho – que é diretamente afetada pela expectativa de vida e vem sendo alongada pelas reformas previdenciárias.73 Ocorre que, mesmo quando se considera o trabalho ao longo da vida do trabalhador, o tempo total de horas de trabalho não se dividirá de forma igualitária ao longo dos anos de vida ativa. Pelo contrário, pode-se perceber que existem padrões de jornada conforme a faixa etária: mais curtas para os trabalhadores de menos de 25 anos, aumentando entre os 25 e os 54 anos e declinando dos 55 aos 64 anos de idade.74 Ademais, para além da duração do trabalho, também a regulamentação dos períodos de não trabalho faz parte da dinâmica da vida do trabalhador. No Brasil, no tocante aos períodos de descanso, gozam de status constitucional apenas o repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos, e as férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal (CF, art. 7º, XV e XVII). Acerca da duração do repouso semanal remunerado, será de 24 horas, consoante art. 1º da Lei n. 605, de 1949; já no tocante às férias anuais, elas serão de 12 a 30 dias corridos, a depender da assiduidade do trabalhador (CLT, art. 130). Por sua vez, consoante disposto no art. 60 da CLT, em regra, os trabalhadores brasileiros não estão sujeitos ao trabalho em dias feriados, os quais são regulamentados por lei federal, estadual ou municipal; enquanto isso, os intervalos intra e interjornadas também são disciplinados na CLT, variando sua duração de acordo com a duração da jornada e com extras ao longo do ano, corrigindo distorções trazidas pelo atual sistema brasileiro de compensação de horários (banco de horas). Um bom exemplo dessa limitação de forma escalonada conforme o tamanho da empresa pode ser encontrado no art. 228 do Código do trabalho português, Lei n. 7, de 2009. 73 DAL ROSSO, Sadi. A jornada de trabalho na sociedade: O castigo de Prometeu. São Paulo: LTr, 1996, p. 48-53. 74 “[O padrão dominante de jornada de trabalho por faixa etária] fica talvez mais bem ilustrado pelo caso do Brasil, que mostra claramente jornada semanal de trabalho média aumentando de 37,4 horas por semana na faixa mais jovem de idade até o pico de 42,1 horas na faixa de 25-39 anos, declinando então gradualmente até atingir a mínima de 32,5 horas por semana na faixa de maior idade (65 anos ou mais)”. Fonte: LEE, Sangheon; MCCANN, Deirdre; MESSENGER, Jon C. Duração do Trabalho em Todo o Mundo: tendências de jornadas de trabalho, legislação e políticas numa perspectiva global comparada. Trad. Oswaldo de Oliveira Teófilo. Brasília: OIT, 2009, p. 81. Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro- lima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_229714.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2019. 36 as particularidades de cada categoria,75 e ainda atualmente sujeitos à prevalência do que for coletivamente negociado (CLT, art. 611-A, III).76 De tudo exposto até agora, pode-se perceber que atualmente a limitação da jornada entre 40 e 48 horas é uma realidade nos tratados internacionais e na legislação interna da maioria dos países – inclusive no Brasil –, então, quais são as questões que se colocam acerca da duração dos tempos de trabalho e de não trabalho? Primeiramente, a duração prevista normativamente muitas vezes não coincide com o que efetivamente ocorre no mundo fático, havendo relatos de muitos trabalhadores que cumprem jornadas superiores a 48 horas semanais, enquanto outros possuem jornadas extremamente curtas, sem receber a remuneração que permitiria o seu sustento.77 E, como se verá, há uma forte tendência à flexibilização das normas referentes à duração da jornada e das pausas, o que, sem uma representação sindical forte, deixa o trabalhador à mercê dos interesses capitalistas de máxima extração do mais-valor. Ocorre que, além da extensão cronométrica, existem outras dimensões dos tempos de trabalho que demandam um olhar mais aprofundado, quais sejam: a intensidade e a distribuição, temas a serem estudados nas seções seguintes (itens 2.2 e 2.3, respectivamente). Ademais, na contemporaneidade, a emancipação humana exige um resgate dos tempos de não trabalho, os quais tem se embaralhado aos tempos de trabalho, sendo capturados pela lógica capitalista. Antes, porém, cabe uma análise mais pormenorizada da relação – tanto do capital quanto do trabalho – com o tempo em geral, seja de trabalho ou de não trabalho. Sob esse olhar, os próximos itens serão dedicados ao estudo das características do novo espírito do tempo no capitalismo atual (seção 1.2) e da nova morfologia do trabalho inserida neste contexto (seção 1.3). 75 Sobre os feriados, ver: Lei n. 605, de 1949; Lei n. 662, de 1949; Lei n. 6.802, de 1980; Lei n. 9.093, de 1995; Lei n. 9.335, de 1996; Lei n. 10.607, de 2002. Sobre os intervalos, ver: art. 66 e seguintes da CLT, além das normas especiais de tutela do título III da CLT (art. 224 e ss). 76 Após a reforma trabalhista (Lei n. 13.467, de 2017), passou a haver permissão legal para que, por meio de negociação coletiva, sejam suprimidas ou reduzidas regras sobre duração do trabalho e intervalos, pois para estes fins, elas deixaram de ser consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho (CLT, art. 611-B, parágrafo único). 77 DAL ROSSO, Sadi. A jornada de trabalho na sociedade: O castigo de Prometeu. São Paulo: LTr, 1996, p. 62. 37 1.2 Um novo espírito do tempo? O que chamais de espírito da época é simplesmente o espírito dos senhores da época. Johann Wolfgang Goethe Qual o espírito que anima a atual sociedade capitalista? Esse modo de pensar e agir determina uma nova forma de se perceber e de se despender o tempo? Qual o papel da ideologia gerencialista no fomento da competividade e do consumismo no paradigma da sociedade de consumo? Na presente seção, ainda que en passant, será descrita – à luz dos seus reflexos no tempo – a transição ocorrida da ética protestante do primeiro espírito do capitalismo para o individualismo da “cultura de massas”78 vigente no capitalismo contemporâneo. 1.2.1 O velho e o novo espírito do capitalismo Ainda na Antiguidade, por volta do final do século VIII ou começo do século VII a.C., o poeta grego Hesíodo escreveu O trabalho e os dias, versos destinados a seu irmão Perses, “invejoso e preguiçoso”, com quem litigava acerca da divisão da herança do pai de ambos. Ao tratar do próprio trabalho, dedicado à agricultura, dirigia-se ao irmão, enaltecendo a disciplina do trabalho como meio de combater a preguiça, a cobiça e a leviandade.79 Assim, a referida obra literária representa a essencialidade do trabalho para a organização da vida, ideia que passou por períodos de desvalorização, já que mesmo na Antiguidade o trabalho manual era visto como inferior ao intelectual, e na Idade Média a religião relacionava o trabalho como punição divina e como forma de redenção dos pecados 78 O conceito de indústria cultural refere-se a forma como a cultura passa a ser produzida e reproduzida, isto é, de forma padronizada e voltada para o consumo das massas. A existência de um padrão de comportamento imposto no âmbito coletivo dificulta a resistência no plano individual. Para Edgar Morin, “as necessidades de bem estar de felicidade, na medida em que se universalizam no século XX, permitem a universalização da cultura de massa. Reciprocamente, a cultura de massa universaliza essas necessidades. Isto significa que a difusão da cultura de massa não resulta apenas da mundialização de uma civilização nova, ela desenvolve essa mundialização. Desperta as necessidades humanas subdesenvolvidas, masem toda parte virtuais, contribui para a expansão da nova civilização”. Cf. MORIN, Edgar. Cultura de Massas no século XX: o espírito do tempo. Trad. Maura Ribeiro Sardinha. 3a edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1975, p. 143. 79 Cf. HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1996. 38 humanos. Foi no século XVI, com a ética protestante luterana que, segundo Max Weber, o trabalho passou de castigo para vocação divina e prevenção de uma vida desonesta. Na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicada pela primeira vez em 1904, o intelectual alemão correlacionou o progresso capitalista de alguns países à ética protestante neles difundida, desfazendo a ideia de que o capitalismo fosse influenciado apenas pela situação histórico-política do local em que se desenvolve. Segundo demonstrou, o sistema econômico capitalista também pode ser considerado como decorrente de um espírito, isto é, um modo de pensar e agir, que se coaduna com essa forma de produção, permitindo seu crescimento.80 Assim, Max Weber apresentou o que chamou de “delineamento provisório” do que seria o “espírito” do capitalismo na modernidade e que, na Europa ocidental e na América do Norte, equivalia a uma “filosofia da avareza”, no sentido de uma ética peculiar que impunha a cada indivíduo o dever de aumentar suas posses, como um fim em si mesmo, ou seja, sem usufruir do dinheiro obtido. Para esse desiderato, seria necessário conservar virtudes como a honestidade, ou pelo menos a aparência delas – numa visão utilitarista dos comportamentos morais –, bem como exercer habilmente uma profissão, ou seja, o trabalho era visto como um dever.81 Esse espírito do “impulso aquisitivo” não se tratava de uma exclusividade do capitalismo nestes locais e no dado momento histórico, mas foi onde e quando se desenvolveu de forma mais avançada, por haver uma conexão entre a capacidade de adaptação ao capitalismo e fatores religiosos presentes nestas sociedades predominantemente protestantes. Explica Max Weber que os influxos religiosos, segundo os quais cada um teria uma vocação profissional, uma missão dada por Deus, mas sobretudo a doutrina da predestinação calvinista, contribuíram para a “cunhagem qualitativa e a expansão quantitativa desse ‘espírito’ ”.82 Tudo isso se refletiu no ritmo da vida das pessoas, pois, se na Idade Média as pessoas viviam, do ponto de vista ético, “da mão para a boca”,83 ou seja, trabalhavam para ganhar 80 Sobre o tema: WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 81 WEBER, Max. Op. cit., p. 42-48. 82 Ibid. p. 82. 83 No original: “von der Hand in der Mund”. Ibid., p. 105. 39 o sustento de cada dia, a partir da Idade Moderna, sob o espírito do capitalismo e da ascese racional protestante, o dever passou a ser o de trabalhar o máximo possível a serviço da glória de Deus, descansando apenas aos domingos:84 Ócio e prazer, não; só serve a ação, o agir conforme a vontade de Deus inequivocamente revelada a fim de aumentar a sua glória. A perda de tempo é, assim, o primeiro e em princípio o mais grave de todos os pecados. Nosso tempo de vida é infinitamente curto e precioso para “consolidar” a própria vocação. Perder tempo com sociabilidade, com “conversa mole”, com luxo, mesmo com o sono além do necessário à saúde – seis, no máximo oito horas – é absolutamente condenável em termos morais.85 Ou seja, o tempo cotidiano deveria ser dedicado o quanto possível ao trabalho, sendo interrompido este apenas para satisfação das funções biológicas e ainda assim o sem “perder tempo”, pois a ideia era a de brevidade da vida e consequente preciosidade do tempo. Para o espírito do capitalismo moderno descrito por Weber, o tempo de trabalho deveria ser máximo e o tempo de não trabalho, mínimo. Porém, na contemporaneidade marcada em âmbito global pela competitividade e pelo consumismo hedonista, este modo de pensar e agir, pautado pelo amealhar sem gastar, não se sustenta. No final do século XX, no ano de 1999, a expressão espírito do capitalismo voltou a ser adotada, pelos estudiosos franceses Luc Boltanski e Ève Chiapello, para designar o arcabouço ideológico que explicaria o fenômeno atual de um amplo engajamento no capitalismo – inclusive por aqueles que não são favorecidos por esse sistema econômico. Segundo os autores, o “espírito” do capitalismo seria indispensável para justificar a inserção tanto de capitalistas como de assalariados em um sistema que sob muitos aspectos, é um sistema absurdo,86 necessitando de razões morais para reunir aliados e legitimar o processo de acumulação. O espírito do capitalismo é justamente o conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os modos de ação e as disposições coerentes com ela. Essas justificações, sejam elas gerais ou práticas, locais ou globais, expressas em 84 Outra obra do autor, menos conhecida, denominada “A Psicofísica do Trabalho Industrial”, publicada em 1908, investigou, entre outros, os efeitos das alterações de tempo de trabalho e pausas tanto na produtividade quanto no aparato psicofísico dos trabalhadores, analisando a fadiga e a recreação. Cf. WEBER, Max. A Psicofísica do Trabalho Industrial. Serie Ciências Sociais na Administração, Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração, FGV- EAESP. São Paulo: Alphagraphics, 2009. 85 WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 143. 86 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 38. 40 termos de virtude ou em termos de justiça, dão respaldo ao cumprimento de tarefas mais ou menos penosas e, de modo mais geral, à adesão a um estilo de vida, em sentido favorável à ordem capitalista.87 Ainda de acordo com os pesquisadores, o espírito do capitalismo acompanha as modificações profundas das condições de vida e trabalho, bem como das expectativas dos trabalhadores,88 encontrando-se atualmente no seu terceiro estado histórico. O primeiro deles, descrito em fins do século XIX, estava mais próximo de valores utilitaristas da família burguesa, capazes de sacrifícios na busca pelo progresso, e baseava-se em relações de trabalho marcados pela pessoalidade. A partir do desenvolvimento fabril, essas relações de produção passaram a ser pautadas pela organização racional do trabalho, e o segundo espírito do capitalismo adquiriu a tônica coletiva de solidariedade institucional e socialização da produção, da distribuição e do consumo.89 Já atualmente, diante do capitalismo globalizado e em rede, caracterizado por avanço tecnológico e relações de trabalho precarizadas, seria necessário um terceiro e novo espírito do capitalismo, ainda em formação; a fase corrente, portanto, é de emergência de uma nova configuração ideológica que se adapte ao mundo conexionista, em que os indivíduos manifestam “o desejo de conectar-se com os outros, de relacionar-se de estabelecer elos, para não ficarem isolados”.90 Assim, ao analisar as mudanças provocadas pelo novo espírito do capitalismo no plano moral, de forma resumida, concluíram os autores que o primeiro espírito do capitalismo correspondia a uma moral da poupança e o segundo, a uma moral do trabalho e da competência, enquanto o novo espírito é “marcado por uma mudança tanto da relação com o dinheiro quanto da relação com o trabalho”.91 Na verdade, o senso de poupança que se aplicava ao dinheiro persiste no mundo 87 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 42. 88 Ibid., p. 51. 89 Idem. 90 Ibid.,p. 143. Para a filósofa norte-americana Nancy Fraser, a segunda onda do feminismo, ainda que de forma involuntária, tem fornecido ao novo espírito do capitalismo um ingrediente-chave: um projeto de aumento de autonomia e liberdade, avanço feminino e justiça de gênero, do qual o capitalismo desorganizado se apropria como discurso, porém em um contexto de degradação das condições de trabalho, principalmente para as mulheres. Ou seja, as mulheres acabam contribuindo para um modelo de mercado de trabalho que, no entanto, as desfavorece. Cf. FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Mediações, Londrina, v. 14, n. 2, p. 11-33, jul./dez. 2009, p. 25. 91 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 189. 41 conexionista atual, porém, em vez de poupar capital e propriedades, poupa-se tempo. Não sendo o tempo um recurso estocável, poupá-lo não consiste em simplesmente guardá-lo para nada, nem significa apenas não o desperdiçar inutilmente; ele deve ser dedicado à busca de informações e ser reinvestido permanentemente. Quanto à relação com o trabalho, há um “desvanecimento da separação entre vida privada e vida profissional” que, entre outras consequências, torna difícil a separação entre os tempos de uma e de outra. Além dessa mescla dos tempos de trabalho e de não trabalho, o ritmo e a distribuição de ambos foram alterados: na vida profissional, o “executivo assalariado de tempo integral” foi substituído pelo “colaborador intermitente, cuja atividade pode ser remunerada de diferentes maneiras”; na vida privada, a moral do trabalho também se impõe, valorizando a atividade e o movimento, em detrimento da inação e da estabilidade.92 1.2.2 Os marcos da competitividade e do consumismo Ainda sobre as transformações do capitalismo, os autores destacam a desconstrução sofrida pelo mundo do trabalho, sendo interessante notar como o fenômeno da precarização das condições de trabalho pode afetar a duração da jornada, seja por excesso ou por escassez: A utilização de horários de trabalho para criar flexibilidade não passa obrigatoriamente pelo tempo parcial. O mecanismo também pode funcionar em sentido inverso e passar pelo crescimento da carga de trabalho além do horário legal. Assim, enquanto encurtava para alguns (a parcela de pessoas que trabalhavam menos de 6 horas por dia passou de 7,8% em 1984 para 9,3% em 1991), a jornada de trabalho aumentava para outros (a parcela dos que trabalhavam mais de 10 horas, no mesmo período, passou de 17,9% para 20,4%). Do mesmo modo, a parcela dos que trabalham 5 dias por semana está em baixa, e em alta a dos que trabalham menos de 5 dias ou mais de 5 dias.93 Esses procedimentos flexibilizatórios adotados pelas empresas visam à redução dos custos de produção e, por conseguinte, ao aumento do lucro e ao barateamento dos preços dos seus produtos ou serviços. Num capitalismo mundializado – marcado pela aproximação econômica, política, social e cultural entre diversas sociedades –, imperam a 92 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 193. 93 Ibid., p. 249. 42 competitividade e o consumismo: “as empresas se globalizam para se tornarem incontornáveis”;94 as pessoas são valorizadas pelo consumo e estimuladas ao gozo imediato e descartável. Se antes, os valores eram a poupança e o labor, agora o que rege é o “hedonismo materialista da sociedade de consumo”.95 Assim, se há um novo espírito que anima o capitalismo na contemporaneidade, ele parece passar pela necessidade de conexões, que, no plano individual, faz despertar o desejo de pertencimento – ainda que este seja preenchido pelo consumo padronizado e insustentável. Para o sociólogo francês Vincent de Gaulejac, o capitalismo perdeu sua ética, embora tente “justificar as desigualdades que provoca e apagar as contradições que suscita”.96 De forma que tem sido difundida uma ideologia gerencialista, que busca preencher esse vazio com base na ética do resultado, a que os trabalhadores são levados a “voluntariamente” aderir: “a repressão é substituída pela sedução, a imposição pela adesão”;97 incute-se o desejo de ter sucesso e a ideia de que o trabalhador é o único responsável por obtê-lo.98 Assim, prossegue Gaulejac, as técnicas de gestão que antes, numa perspectiva foucaultiana, exerciam seu poder e dominação sobre os corpos dos empregados, agora passam a exercê-los sobre a psique, tornando-a energia produtiva e submissa. A vigilância deixou de ser física e passou a comunicacional, no sentido de que a cobrança, em vez de incidir sobre o tempo e o espaço – duração da jornada e local de trabalho –, ocorre pela exigência de engajamento pessoal e de resultados alcançados: Trata-se não tanto de regular o emprego do tempo e de quadricular o espaço, e sim de obter uma disponibilidade permanente para que o máximo de tempo seja consagrado à realização dos objetivos fixados e, além disso, a um engajamento total para o sucesso da empresa. Trata-se, portanto, sempre de constituir um tempo integralmente rentável. […] E como os horários de trabalho não bastam mais para responder a essas exigências, a fronteira entre o tempo de trabalho e o tempo fora do trabalho vai tornar- se cada vez mais porosa.99 94 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 376. 95 Ibid., p. 62. 96 GAULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: Ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. 3. ed. Trad. Ivo Storniolo. Aparecida, SP: Editora Idéias & Letras, 2007, p. 126. 97 Ibid., p. 109. 98 Sobre a cobrança pela qualificação do trabalhador, vide seção 3.1 desta dissertação. 99 GAULEJAC, Vincent de. Op. cit., p. 110-111. 43 Segundo essa lógica que mistura o profissional e o privado, “convém trabalhar a qualquer momento e em qualquer lugar”, numa espécie de “colonização progressiva do espaço-tempo íntimo por preocupações profissionais”, que não é autoritária, mas incutida por estratagemas de gestão. A duração do trabalho se estende, a sua intensidade aumenta e os tempos ficam mais flexíveis ou, nas palavras de Gaulejac, “o tempo da planificação, da exatidão, da programação linear do emprego do tempo é substituído pela policronia, pela urgência e pelo aleatório na gestão do tempo”.100 Se se considera que, em sua raiz, o capitalismo consiste no sistema no qual algumas pessoas vendem sua força de trabalho a outras, detentoras dos meios de produção, então o capitalismo atual, apesar de grandes modificações, continua radicalmente fundado na mesma relação capital-trabalho, desde os primórdios do mercantilismo. Assim, ainda que se afirme que o conflito social atual abrange outras questões, não girando apenas em torno da propriedade, não se pode negar que o antagonismo da luta de classes é inerente ao sistema capitalista e, mesmo em uma sociedade de risco,101 certamente a vulnerabilidade social é maior para os despossuídos. Ou seja, ainda que, pelo “efeito elevador” as classes tenham sido transportadas a um estágio superior, com uma melhoria coletiva da renda e do acesso a bens e serviços, seria ingenuidade pensar que o risco afeta a todas as pessoas da mesma forma, independentemente da classe social, do poder aquisitivo ou mesmo do gênero. Ora, pode-se concluir que não obstante o conteúdo do capitalismo seja fundamentalmente o mesmo – a exploração cada vez maior da força de trabalho pelo capital para produzir lucro –, as formas de que se reveste e as justificações de que se serve são moldáveis. Neste sentido, as modulações do tempo de trabalho e não trabalho também são feitas de modo conveniente ao capitalismo. Tanto é assim que o tempo de trabalho homogêneo, último avatar do modelo fordista e taylorista, era definido por simples oposição ao tempo livre não produtivo; porém, atualmente, se está diante de um tempo de trabalho cadavez mais heterogêneo e o espírito do tempo, para alguns, poderia se traduzir 100 GAULEJAC, Vincent de. Op. cit., p. 112. 101 Cf. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2011. A ideia é de que os riscos geram situações de perigo social que afetam as pessoas de forma diferenciada, pois mesmo aos mais poderosos não é possível escapar de todos os riscos (efeito boomerang). 44 pela “falta de tempo”.102 Essa sensação de falta de tempo, num mundo em que as distâncias foram encurtadas pelos novos meios de comunicação e transporte e em que há máquinas para fazer – inclusive com maior velocidade – o trabalho antes feito pelo homem, parece ser uma contradição. O problema reside na forma como os novos aparatos técnicos são introduzidos e aplicados no processo produtivo capitalista: “uma máquina não entra em uma fábrica para facilitar o trabalho, mas para reduzir os custos e ampliar a produtividade do trabalho”,103 resultando em maior acumulação de capital, precarização das condições de trabalho e desemprego. Ademais, o incentivo ao consumo infla os desejos, que se tornam praticamente impossíveis de serem concretizados com os recursos de que, em média, as pessoas dispõem. Neste sentido, o capitalismo das últimas décadas caracteriza-se sobretudo pela globalização e pela revolução tecnológica e comunicacional, formando o que o sociólogo espanhol Manuel Castells chama de capitalismo informacional, típico das atuais sociedades em rede que vêm se formando a partir dos anos 1980. Para ele, o fundamento ético ainda passa pelo espírito empresarial de acumulação e o renovado apelo do consumismo, mas existe um espírito do informacionalismo. Isso porque, de forma inédita na história, em vez de um sujeito individual (o empresário ou a família empresarial) ou de um sujeito coletivo (a classe capitalista, a empresa ou o Estado), “a unidade básica da organização econômica passou a ser uma rede, composta por vários sujeitos e organizações”.104 Essa rede, embora plural, mutável e adaptável, encontra-se unida não só por alianças, mas sobretudo por uma “dimensão cultural própria”, um “código cultural comum”, uma “cultura virtual multifacetada”. O espírito continua existindo, todavia agora de uma maneira mais fluida e efêmera, na forma de cultura da destruição criativa schumpeteriana,105 para não correr o 102 BENITO, Luis Enrique Alonso. La crisis de la ciudadanía laboral. Barcelona: Anthropos Editorial, 2007, p. 88-90. 103 TEIXEIRA, Kleber Garcia. Op. cit., p.12. 104 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Trad. Roneide Venancio Majer. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 257. 105 O economista austríaco Joseph Schumpeter reconheceu que, por natureza, o capitalismo não possui um caráter estacionário, tendo se dedicado a estudar seu caráter evolutivo, enfatizando justamente os movimentos de retração e expansão capitalista. Demonstrou como esses ciclos econômicos coincidiam com ondas de inovação, que surgiam e substituíam produtos anteriores, que se tornavam, por sua vez, obsoletos. Assim, para ele “o impulso fundamental que põe e mantém em funcionamento a máquina capitalista procede dos novos bens de consumo, dos novos 45 risco de obsolescência.106 Para além dos produtos e serviços, o fenômeno da destruição criativa atinge o próprio sistema capitalista, bem como os trabalhadores, os quais precisam se reinventar, apresentando-se ao mercado de trabalho como recursos humanos versáteis, multivalentes e atualizados.107 Quanto às tendências criativo-destrutivas do capitalismo, o geógrafo britânico David Harvey lembra a capacidade desse sistema econômico de se desfazer e se refazer, reinventando-se e sobrevivendo, “apesar de muitas previsões sobre sua morte iminente”. Conclui o acadêmico que o sistema “tem fluidez e flexibilidade suficientes para superar todos os limites, ainda que não, como a história das crises periódicas também demonstra, sem violentas correções”.108 Segundo a professora e pesquisadora brasileira Graça Druck esse “movimento de metamorfose” do capitalismo leva a uma “mundialização inédita do capital”,109 ou seja, num grau nunca anteriormente atingido viabilizado por um quadro de flexibilização e “precarização social do trabalho”. Ou seja, esse processo de transformação e adequação do capitalismo110 gera mudanças havidas no cotidiano dos indivíduos, com repercussões nos seus tempos de trabalho e de não trabalho. Por mais que se tente suavizar, a competitividade está enraizada no espírito do capitalismo contemporâneo, tendo a gestão se tornado uma ideologia, com a “preconização de uma competição generalizada”. Neste contexto, o ambiente laboral não fica imune à métodos de produção ou transporte, dos novos mercados e das novas formas de organização industrial criadas pela empresa capitalista”. SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961, p. 110. Embora tenha vivido apenas até 1950, descreveu o processo da destruição criativa, que é largamente observado ainda hoje. 106 CASTELLS, Manuel. Op. cit., p. 257-258. 107 RIBEIRO, Ailana Santos; SANTOS, Nara Abreu. A “(auto)destruição criativa” do trabalhador e o princípio da alteridade na pós-modernidade. In: COUTINHO, Aldacy Rachid; WANDELLI, Leonardo Vieira (org.). Anais do II Encontro Renapedts: rede nacional de pesquisas e estudos em direito do trabalho e da seguridade social. Florianópolis: Empório do Direito, v. 1, p. 41-50, 2016. 108 HARVEY, David. O enigma do Capital: e as crises do capitalismo. Trad. João Alexandre Peschanski. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 46. 109 DRUCK, Graça. Trabalho, precarização e resistências: novos e velhos desafios? Caderno CRH, Salvador, v. 24, n. esp. 1, p. 37-57, 2011, p. 41-42. 110 Para o teórico esloveno Slavoj Zizek, o Zeitgeist – isto é, o espírito da época, demonstrado pelas ideias e crenças de um determinado período da história – típico da pós-modernidade convoca constantemente o sujeito a se recriar. Cf. ZIZEK, Slavoj. Vivendo o fim dos tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 41. 46 ideia de que, “para ser o melhor, é preciso ser o primeiro, sem se preocupar com as consequências negativas desse princípio”.111 Ocorre que, segundo a filósofa Olgária Matos, “a partir da concorrência pode ser que se melhorem as mercadorias, mas certamente se pioram os homens”.112 E se pode acrescentar: pioram-se as condições de trabalho, inclusive nas suas relações com o tempo, pois na lógica concorrencial, o trabalhador passa a dedicar o seu tempo livre à sua qualificação ou à resolução de problemas relacionados ao trabalho, como será visto (seção 3.1). Diante do contexto descrito, as empresas, para se tornarem mais competitivas, passam a escolher, conforme a sua conveniência, qual será o seu domicílio empresarial, qual será o lugar de produção e qual será o destino dos investimentos, beneficiando-se das menores proteções aos trabalhadores e da redução ou isenção da tributação em países subdesenvolvidos, ao mesmo tempo que usufruem dos elevados padrões de consumo encontrados em países desenvolvidos.113 Essa espécie de dumping social está relacionada ao afrouxamento ou mesmo à desregulamentação das condições de trabalho por parte de algum país, permitindo a exploração dos trabalhadores pelas empresas que ali se instalem, em desrespeito a um patamar civilizatório mínimo.114 À mobilidade das empresas que exploram, disponibiliza-se a flexibilidade dos trabalhadores explorados, confinados a uma “precariedade angustiante, que não lhe dá a liberdade de ser móvel, quando não a destrói”.115 O dumping social, pois, revela-seoutro marco do capitalismo global atual, embora seja uma conduta já denunciada em 1919, no preâmbulo da parte XIII do Tratado de Versalhes, que serve como Constituição da OIT. Neste documento, prenuncia-se o que se veio posteriormente a denominar dumping social, ao afirmar que “a não adoção por qualquer nação de um regime de trabalho realmente 111 GAULEJAC, Vincent de. Op. cit., p. 145. 112 MATOS, Olgária. O mal-estar na contemporaneidade: performance e tempo. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 59 n. 4, p. 455-468, out./dez. 2008, p. 459. 113 BECK, Ulrich. Capitalismo sem trabalho. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 18, n. 1, 1997, p. 41- 55, p. 52. 114 A prática descrita configura uma forma desvirtuada do que se denomina dumping social, cuja forma clássica é definida como a “prática reincidente, reiterada, de descumprimento da legislação trabalhista, como forma de possibilitar a majoração do lucro e de levar vantagem sobre a concorrência”. Cf. ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Op. cit., p. 109. Sobre essa forma de dumping social caracterizada pelo deliberado desrespeito por parte do empresariado às normas trabalhistas existentes: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz et al. Dumping social nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2014, p. 23-24. 115 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 379. 47 humano cria obstáculos aos esforços das outras nações desejosas de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus próprios territórios”.116 Por certo, nesse regime de trabalho de cunho humanitário mencionado no texto, devem ser inseridas regras que regulem a jornada e as suas pausas, para que a hora de trabalho em cada país não tenha valores tão díspares entre si. Na verdade, mesmo em termos de consumo no âmbito global, “o tempo de trabalho oferece a medida exata da geografia das riquezas e da pobreza”.117 Isso significa que o lugar onde alguém vive e trabalha é determinante para saber quanto tempo terá que trabalhar para adquirir um determinado bem de consumo: de forma diretamente proporcional, quanto mais desregulamentadas e precarizadas as garantias trabalhistas, maior o tempo de trabalho exigido. Numa sociedade hedonista e consumista como a atual, essas questões importam. Em 1929, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, comparando os padrões de consumo de sua época aos praticados no século XVIII, já constatava: No século XVIII existiam também grandes fortunas, mas havia pouco para comprar. O rico, se queria algo mais que o breve repertório de mercadorias existente, tinha de inventar um apetite e o objeto que o satisfaria, tinha de buscar o artífice que o realizasse e dar tempo a sua fabricação. Em todo este intricamento intercalado entre o dinheiro e objeto complicava-se aquele com outras forças espirituais – fantasia criadora de desejos no rico, seleção do artífice, trabalho técnico deste, etc. – de que se fazia, sem querer, dependente. Agora um homem chega a uma cidade e aos quatro dias pode ser o mais famoso e invejado habitante dela sem mais trabalho que passear ante as vitrinas, escolher os objetos melhores – o melhor automóvel, o melhor chapéu, o melhor isqueiro, etc. – e comprá-los. Caberia imaginar um autômato provido de um bolso em que metesse mecanicamente a mão e chegasse a ser o personagem mais ilustre da urbe.118 Indiscutivelmente, o consumo é uma necessidade, mas em sua forma exagerada, denominada consumismo, é prejudicial tanto no âmbito individual – causando um rombo às finanças pessoais e trazendo uma inquietação pelo ter – quanto no coletivo – ampliando 116 OIT. Constituição da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo- brasilia/documents/genericdocument/wcms_336957.pdf> . Acesso em: 08 mar. 2019. 117 MATOS, Olgária. Op. cit., p. 460. 118 ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Trad. Felipe Denardi. São Paulo: Vide Editorial, 2016, p. 116-117. 48 significativamente o impacto da humanidade no planeta.119 Não obstante, de forma manipulatória, os meios publicitários, que ganham novos e ampliados formatos pós revolução informática e comunicacional, acabam por reforçar o consumo de massa, penetrando nas subjetividades e relativizando as possibilidades reais de escolha.120 Com efeito, o desenvolvimento do marketing e da publicidade dá novo vigor ao consumo, criando uma liberdade ilusória, de modo que: (…) o consumidor, aparentemente livre, na verdade está inteiramente submetido ao império da produção. Aquilo que ele acredita ser desejo próprio, proveniente de sua vontade autônoma como indivíduo singular é, sem que ele perceba, produto de uma manipulação por meio da qual sua imaginação é subjugada por aquele que oferece os bens. Ele deseja aquilo que querem que ele deseje. O efeito da oferta subjuga e determina a demanda ou, como diz Marx (1957, p. 157), “a produção não produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”. Ora, visto que a oferta de bens, por meio da qual se realiza o lucro, é por natureza ilimitada no contexto do capitalismo, o desejo deve ser estimulado incessantemente para se tornar insaciável.121 Em razão dessa lógica de consumo, em que a pessoa é o que – e enquanto – ela consome, os indivíduos passam a identificar a si mesmos e aos outros, já não mais como trabalhadores-cidadãos, mas como consumidores-cidadãos, o que gera um afrouxamento da capacidade de resistência dos trabalhadores às investidas exploratórias do capital, além de um desestímulo em relação às lutas políticas.122 Assim, com a perda do referencial de alteridade e pautada em ideias hedonistas, a “sociedade do consumo”123 caracteriza-se, portanto, pelo fetichismo da mercadoria e associa o consumo não apenas à satisfação de necessidades individuais, mas também ao prazer e à felicidade. Conscientemente ou não, a insatisfação no trabalho leva a uma evasão 119 Sobre o tema do consumo, cf. PADILHA, Valquíria. Shopping center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Editora Boitempo, 2006, p. 113 e ss.; RIBEIRO, Ailana Santos. A crise ética do direito do trabalho na sociedade do consumo. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017. 120 VIANA, Márcio Túlio; TEODORO, Maria Cecília Máximo. Misturas e fraturas do trabalho: do poder diretivo à concepção do trabalho como necessidade. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 114, p. 299-343, jan./jun. 2017. 121 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 427. 122 Para uma análise sobre “como as mudanças na maneira de consumir alteraram as possibilidades e as formas de exercer a cidadania”: CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 13 e 22. 123 BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995. In: PADILHA, Valquíria. Shopping center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Editora Boitempo, 2006, p. 127. 49 para o lazer, seja este de forma ativa, seja passiva, apenas para “matar o tempo”: A áspera caça à diversão pode ser, no homem frustrado no seu trabalho, um dos indícios pelos quais se manifesta a busca de compensação por todos os meios ao seu alcance [ ... ]. O homem “alienado”, na civilização técnica do capitalismo, é infeliz: “ao consumir diversão, procura reprimir a consciência de sua infelicidade. Empenha-se em ganhar tempo e, em seguida, se inquieta em matar o tempo que ganhou”.124 Ou seja, o próprio tempo de não trabalho, quando dedicado ao lazer, tem sido tomado pelo consumo alienado, na busca por mero entretenimento, fomentado pela “indústria cultural”.125 Esta indústria da cultura e do lazerconstitui, segundo o filósofo Robert Kurz, uma nova esfera do trabalho abstrato capitalista, transformado o lazer numa forma de continuação do trabalho, de forma que “não apenas quando ganha dinheiro, mas também quando o gasta o homem capitalista é um trabalhador. A ditadura do tempo abstrato também ocupou o lazer”.126 Parte integrante dessa indústria cultural nos tempos atuais, têm ganhado destaque os shopping centers, os quais são denominados pela socióloga Valquíria Padilha como “não- lugares”, pois eles se apresentam como praticamente idênticos em qualquer lugar do mundo, além de replicar e ampliar problemas urbanos de deslocamentos e de acessibilidade. São espaços onde a atual “sociedade de consumo” gasta seu tempo disponível, como local híbrido de compras e lazer para determinadas camadas sociais, promovendo uma nova sociabilidade acultural, marcada pelo divertimento como válvula de escape para o cansaço físico e mental dos trabalhadores.127 Seguindo esse raciocínio, poder-se-ia afirmar que os shopping centers são também “não-tempos”, pois a própria arquitetura é planejada para que se tenha uma sensação de tempo suspenso: o ambiente é climatizado; a iluminação é em boa parte artificial; não há relógios. Todos os signos – desde a música até a disposição das peças nas lojas e vitrines – seduz e convida ao consumo de necessidades alienadas, artificiais, desconectadas do momento presente.128 124 FRIEDMANN, Georges. O trabalho em migalhas. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 170. 125 ADORNO, Theodor W. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Trad. Maria Helena Ruschel. Petrópolis-RJ: Vozes, 1995, p. 70-82. Sobre o tema, será tratado em capítulo posterior. 126 KURZ, Robert. A ditadura do tempo abstrato. In: SESC/WLRA (org.). Lazer numa sociedade globalizada. São Paulo: SESC São Paulo/World Leisure, 2000, p. 43. 127 PADILHA, Valquíria. Op. cit., p. 239 e ss. 128 Ibid., p. 121, 242-245. 50 Seja o consumo feito nessa “catedral de mercadorias”,129 seja feito em comércio de rua, seja mesmo pela internet, é preciso que o trabalhador tenha tempo para exercer seu papel de consumidor, diante do que a liberação de tempo é mais uma questão acerca da regulação da jornada de trabalho no contexto da sociedade de consumo: A duração do trabalho, elemento central dessa troca, é necessariamente o alvo principal de preocupação. Sem a correta limitação do tempo de trabalho e do tempo de descanso, não há como regular a troca, nem como desenvolver a lógica capitalista, centrada que é na necessidade de consumo. E para consumir, também precisamos de tempo.130 Portanto, o tempo é elemento fundamental para o capitalismo: é a medida do trabalho produtivo, mas é também necessário ao trabalho reprodutivo e ao consumo. Dessa forma, talvez com exceção do sono,131 o tempo cotidiano dos trabalhadores é absolutamente dedicado direta ou indiretamente ao capital, pois os indivíduos, no seu tempo de trabalho e no seu tempo de não trabalho, produzem e reproduzem o sistema capitalista. E por que agem assim? Porque, como visto, existe um espírito do capitalismo que os seduz por meio da apropriação dos seus desejos de conexão e pertencimento. Assim, na contemporaneidade marcada pela concorrência exacerbada – inclusive pela ocupação dos postos de trabalho –, a lógica racional, para além dos tempos de trabalho capitalista, invade os tempos que seriam de não trabalho, alterando nos trabalhadores os modos de se relacionar com os outros e de organizar o próprio tempo livre, sempre em busca de melhor qualificação profissional e de maior produtividade. Além disso, sendo ainda uma época de consumo crescente e ininterrupto, o tempo destinado ao trabalho é a forma socialmente aceita para que aqueles que não possuem propriedade dos meios de produção obtenham recursos financeiros para ter acesso aos bens e serviços; enquanto o tempo dedicado a atividades de lazer é desvirtuado para a categoria de mero entretenimento, com vistas a fortalecer as relações de compra e venda que também alimentam e fortalecem o capitalismo. 129 Expressão usada por Valquíria Padilha, que também usa a expressão “templo” de consumo e de lazer, em referência ao “culto das mercadorias” que ali se realiza. PADILHA, Valquíria. Op. cit., p. 21, 31, 32, 34, 37, 44, 107, 108, 242 e 245. 130 ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Op. cit., p. 23. 131 Se se considera o sono mera reparação das energias físicas e mentais para o retorno ao trabalho, até ele seria voltado para o capitalismo. Porém, para Jonathan Crary, o sono, ao contrário da maioria das necessidades humanas, ainda não foi transformado em mercadoria: é uma verdadeira interrupção no roubo do tempo humano pelo capitalismo. CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Trad. Joaquim Toledo Jr. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 20. 51 De modo que foi preciso percorrer esse breve excurso teórico para se demonstrar como a ética e o espírito que animam o sistema capitalista transformaram-se de modo a paradoxalmente acomodar em seu bojo os anseios dos trabalhadores por mais tempo de não trabalho e a demanda capitalista por mais tempo de trabalho. Neste diapasão, no embate de forças entre capital e trabalho, ambos se modificam, sendo que a história recente tem mostrado uma capacidade de adaptação do sistema capitalista, adotando um espírito mais adequado à sociedade contemporânea, e uma tendência crescente de imposição de precarizações ao trabalho, alterando sua morfologia, como será visto no próximo tópico (seção 1.3). 52 1.3 Nova morfologia do trabalho O Brasil não pode mais esperar. Nós, parlamentares, legítimos representantes do povo, precisamos responder aos anseios e necessidades de todos aqueles que esperam soluções concretas aos problemas atuais. Não podemos nos esconder atrás de cortinas de fumaça, não podemos nos valer de discursos panfletários e fugir da realidade concreta que se apresenta à nossa frente. Temos o dever de, dentro dos limites que nos impõe a nossa Constituição, propor medidas legislativas que permitam às pessoas alcançar os seus desejos. Nos parece muito claro quais são esses desejos. O povo anseia por liberdade, anseia por emprego, deseja poder empreender com segurança. Relatório da Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei n. 6.787, de 2016, do Poder Executivo, também denominado de “Reforma Trabalhista”. Na presente seção, analisar-se-á a tendência global de precarização não só das relações e condições do trabalho, mas também a correlata precarização do trabalhador, delimitando uma classe-em-construção denominada precariado. Num segundo momento, dedicar-se-á a um mapeamento preliminar de algumas figuras centrais trazidas pela recente reforma legislativa ocorrida no Brasil (Lei n. 13.467, de 2017) e que refletem diretamente no controle dos tempos dos trabalhadores. 1.3.1 A precarização global Nos últimos anos, não apenas o espírito do capitalismo passou por adaptações, mas também o mundo do trabalho vem sofrendo significativas alterações, tanto no plano objetivo quanto no plano subjetivo. Na verdade, o próprio processo reestruturativo do capitalismo global fez emergir uma nova precariedade, que alterou o modo de ser do trabalho assalariado, levando parte da doutrina a falar em uma nova morfologia social do trabalho,132 marcada pela flexibilização dos salários, das jornadas e das formas de contratação, com repercussão nos tempos de trabalho, mas também na sua relação com os 132 ALVES, Giovanni. A nova morfologia do trabalho: reestruturação produtiva e crise do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2000; ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a morfologiado trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005; MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira. Morfologia do direito do trabalho na atualidade: um diagnóstico acerca das relações de trabalho e de emprego. In: REIS, Daniela Muradas; MELLO, Roberta Dantas de; COURA, Solange Barbosa de Castro (orgs.). Trabalho e Justiça Social: um tributo a Maurício Godinho Delgado. São Paulo: LTr, 2013, p. 115-128. 53 tempos de não trabalho. Assim, iniciando pelas principais mutações na objetividade e subjetividade trabalhista, numa análise sucinta, os sociólogos brasileiros Giovanni Alves e Ricardo Antunes enumeram as seguintes: a redução do proletariado tradicional e estável, combinado com o aumento do novo proletariado precarizado e dos desempregados; o crescimento do contingente feminino, porém com menores salários; a crescente exclusão dos mais jovens e dos mais idosos; a expansão do setor de serviços e do trabalho em domicílio; a transnacionalização do capital e do sistema produtivo.133 Diante desse contexto de mudanças, o economista britânico Guy Standing chega a falar em uma nova estrutura de classes,134 destacando a formação na base social de uma classe-em-construção, a do precariado, marcada pela incerteza e pela insegurança crônicas. As relações produtivas do precariado caracterizam-se por um trabalho flexível de natureza frágil e instável, sem garantias ou proteção social, sem cidadania, sem “direito a ter direitos”.135 Neste viés flexibilizatório, o precariado não possui sequer o controle sobre o seu tempo, seja de trabalho, seja de não trabalho, pois em um e outro momento: seus membros vivem num estado de permanente prontidão, que acorrem a atividades várias, ficam à espera que haja trabalho, realizam quantidades de trabalho ainda maiores quando a tal chamados, porque nunca sabem qual a forma melhor de gerir o tempo. Daí poder afirmar-se que o precariado padece do mal epidêmico da mente precarizada, que o torna incapaz de se concentrar e o desvia de objetivos viáveis. O precariado precisa de políticas que lhe permitam assumir o controle do seu próprio tempo.136 133 ALVES, Giovanni; ANTUNES, Ricardo. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, v. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004, p. 336- 341. 134 Essa nova estrutura de classes seria profundamente diferente da anteriormente existente: em vez de apenas duas e antagônicas – burguesia em oposição ao proletariado –, haveria sete grupos, não necessariamente classes, passíveis de serem organizados por ordem decrescente de rendimento médio da seguinte forma: elite, assalariados, proficians (profissionais e técnicos), proletariado, precariado, desempregados e desajustados. Cf. STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Trad. Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 24-25. 135 Expressão usada por Hannah Arendt para designar a situação jurídica dos apátridas. Cf. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 300 e ss. 136 STANDING, Guy. O precariado e a luta de classes. Trad. João Paulo Moreira. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 103, p. 9-24, maio 2014, p. 21. O autor identifica sete formas de segurança que eram garantidas ao velho proletariado e que não são mais garantidas ao precariado: garantia de mercado de trabalho, garantia de vínculo empregatício, segurança no emprego, segurança no trabalho, garantia de reprodução de habilidade, segurança de renda e garantia de representação. Ibid., p. 28. 54 Ou seja, no narrado contexto capitalista atual, o que se vem observando no âmbito do trabalho é a precarização das relações de trabalho, empurrando para zonas de vulnerabilidade social trabalhadores que eram até então estáveis, desestruturando-os e retirando-os da segurança e previsibilidade, inclusive quanto ao tempo cotidiano. Interessante registrar que, embora global, não se trata de um fenômeno uniforme nem quanto a suas formas de apresentação, nem quanto aos trabalhadores por ele atingidos: Por meio de múltiplos formatos, representados pelo trabalho falsamente autônomo, trabalho a tempo parcial, terceirizado, trabalho intermitente, trabalho do encarcerado, trabalho informal, há a pulverização da precarização entre trabalhadores e trabalhadoras brasileiras que estão fora do núcleo de proteção do Direito do Trabalho. No entanto, tal exclusão jurídica do sujeito do trabalho no Brasil, assim como em todos os países do sul, não é uniforme: ela atinge prevalentemente trabalhadores e trabalhadoras interseccionalmente oprimidos pela raça e gênero, desde o colonialismo, e que continuam silenciados por uma narrativa única de matriz eurocêntrica de celebração transhistórica da liberdade pelo trabalho subordinado.137 Para o sociólogo francês Robert Castel, do ponto de vista do trabalho, são, portanto, pelo menos três fenômenos que caminham juntos na nova questão social: a desestabilização dos estáveis, isto é, trabalhadores bem qualificados que passaram a ser precários ou mesmo desempregados; a instalação da precariedade e do desemprego recorrente, isto é, de trajetórias de alternâncias entre emprego e não-emprego, em resposta à exigência de flexibilidade; e o déficit de postos de trabalho e o crescimento vertiginoso dos inúteis para o mundo, isto é, sujeitos e grupos que passaram à condição de supernumerários, trabalhadores sem trabalho.138 Não é, pois, só o desemprego que passou a ser um elemento massivo e estrutural do capitalismo, a precarização laboral encontra-se generalizada, de forma que suas dimensões estendem-se, atingindo, em maior ou menor grau, a atividade de inúmeros trabalhadores. Ela se caracteriza por um conjunto de fatores,139 isolada ou combinadamente, entre os quais 137 MURADAS, Daniela; PEREIRA, Flávia Souza Máximo. Decolonialidade do saber e direito do trabalho brasileiro: sujeições interseccionais contemporâneas. Rev. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2117-2142, out./dez. 2018, p. 2136. 138 CASTEL, Robert. Las metamorfosis de la cuestión social: una crónica del salariado. Trad. Jorge Piatigorsky. Barcelona: Paidós, 1995, p. 344-346. 139 Registre-se que o fenômeno da precarização social, acompanhado por um maior grau de exploração do trabalho – caracterizado pela pouca exigência de qualificação, pela baixa remuneração e pelas jornadas parciais – é considerado o aspecto negativo da “feminização do trabalho”, ao lado do aspecto positivo trazido pela emancipação feminina. Sobre o tema: 55 Valquíria Padilha destaca: a) desregulamentação e perdas dos direitos trabalhistas e sociais (flexibilização das leis e direitos trabalhistas); b) legalização de trabalhos temporários, em tempo parcial, e da informalização do trabalho; c) terceirização e quarteirização (“terceirização em cascata”); d) intensificação do trabalho; e) aumento de jornada (duração do trabalho) com acúmulo de funções (polivalência); f) maior exposição a fatores de riscos para a saúde; g) rebaixamento dos níveis salariais; h) aumento de instabilidade no emprego; i) fragilização dos sindicatos e das ações coletivas de resistência; j) feminização da mão-de-obra; e k) rotatividade estratégica (para rebaixamento de salários).140 Assim, analisando esses fatores de precarização e seus efeitos na vida dos trabalhadores, a socióloga apresenta alguns critérios para definir a qualidade de vida no trabalho (QVT), enumerando, entre eles, a conciliação entre trabalho e vida pessoal.141 Isso significa que há um período de tempo de vida a ser preenchido pelo trabalho, sendo que os compromissos e tensões da vida profissional não deveriam invadir o tempo de vida privada; entretanto, esse equilíbrio tem sido dificultado pela intensificação do trabalhoe a diversificação das formas de contrato, emprego e horários, enfim pela precarização.142 Ademais, a precarização das relações de trabalho caminha lado a lado com a transformação tecnológica e administrativa do trabalho e das relações produtivas, de maneira que existe, consoante Manuel Castells, um novo paradigma informacional, orientando e transformando o processo de trabalho, com a introdução de novas formas de NOGUEIRA, Claudia Mazzei. A feminização no mundo do trabalho: entre a emancipação e a precarização. In: ANTUNES, Ricardo e SILVA, Maria Aparecida Moraes (orgs.). O avesso do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2004; NOGUEIRA, Claudia Mazzei. O trabalho duplicado: a divisão sexual no trabalho – um estudo das trabalhadoras de telemarketing. São Paulo: Expressão Popular, 2006. Também sobre a feminização do trabalho, cf. FUDGE, Judy; OWENS, Rosemary. Precarious Work, Women, and the New Economy: The Challenge to Legal Norms. Oxford: Hart Publishing, 2006, p. 12-13. 140 PADILHA, Valquíria. Qualidade de vida no trabalho num cenário de precarização: a panacéia delirante. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 549-563, nov. 2009/fev. 2010, p. 550. 141 PADILHA, Valquíria. Op. cit., p. 556. Existe inclusive uma correlação entre a precariedade econômica e a familiar apontada por BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 596, nota 27. 142 Segundo esse critério, Valquíria Padilha conclui que as dificuldades na conciliação entre vida laboral e vida privada variam conforme o gênero, sendo o equilíbrio mais difícil de ser alcançado por mulheres. Contudo, Boltanski e Chiapello demonstram que não é só isso: a própria precariedade e eventual exclusão social atingem de forma diferente os trabalhadores, não apenas de acordo com gênero, mas também com faixa etária, nacionalidade, etnia, entre outros fatores. Cf. PADILHA, Valquíria. Op. cit., p. 556; BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 261. 56 divisão técnica e social do trabalho.143 Admite o sociólogo espanhol que, “sob o paradigma informacional, os tipos de emprego mudam em quantidade, qualidade e na natureza do trabalho executado”.144 Dessa forma, alterada a organização da produção, altera-se o tempo de trabalho e introduz-se um “novo modelo de trabalho flexível e um novo tipo de trabalhador: o trabalhador de jornada flexível”.145 Para Giovanni Alves, o fenômeno atual não é apenas a “precarização do trabalho”, que se caracteriza por tratar e consumir a força de trabalho como mercadoria,146 mas também a “precarização do homem que trabalha”, que se caracteriza por desconstituir o homem como ser genérico: A nova precariedade salarial, ao alterar a dinâmica da troca metabólica entre o espaço-tempo de vida e o espaço-tempo de trabalho, em virtude da “desmedida” jornada de trabalho, corrói o espaço-tempo de formação de sujeitos humano-genéricos, aprofundando, deste modo, a auto-alienação do homem que trabalha. Nesse caso, transfigura-se a cotidianidade de homens e mulheres que trabalham, com a redução da vida pessoal a mero trabalho assalariado […] Por outro lado, a incerteza e instabilidade das novas modalidades de contratação salarial e a vigência da remuneração flexível alteram, do mesmo modo, a troca metabólica entre o homem e os outros homens (a dimensão da sociabilidade); e entre o homem e si-próprio (a dimensão da auto-referência pessoal). Deste modo, a precarização do trabalho e a precarização do homem que trabalha implicam a abertura de uma tríplice crise da subjetividade humana: a crise da vida pessoal, a crise de sociabilidade e a crise de auto-referência pessoal.147 No mesmo sentido, Graça Druck, diante da “rapidez inédita do tempo social”,148 143 CASTELLS, Manuel. Op. cit., p. 304 e ss. 144 Ibid., p. 328. 145 Ibid., p. 329. 146 A precarização subjetiva (do ser trabalhador) decorre diretamente da precarização objetiva (do trabalho em si), pois um e outro (trabalhador e trabalho) não passíveis de cisão de fato, mas apenas por meio de uma ficção. Neste sentido, já em 1944, o cientista social austro-húngaro Karl Polanyi afirmava que uma economia de mercado só pode existir numa “sociedade de mercado”. Por esta razão, terra, trabalho e dinheiro foram “mercantilizados”, isto é, por meio de uma ficção, passaram a ser tratados como mercadorias e, por conseguinte, foram colocados à venda. Embora a mercantilização de cada um dos três elementos seja fictícia e danosa para a sociedade, o autor destaca essa nocividade particularmente em relação ao trabalho, por se tratar de uma atividade humana que integra a própria vida, não podendo ser dela destacada, e tampouco podendo ser impelida, utilizada indiscriminadamente, armazenada ou mobilizada, sem que com isso se afete o indivíduo. Cf. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Trad. Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 93-95. 147 ALVES, Giovanni. Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório. Disponível em: <http://www.giovannialves.org/Artigo_GIOVANNI%20ALVES_2010.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2018. 148 DRUCK, Graça. Op. cit., p. 41. Consoante o filósofo belga François Ost, essa velocidade do 57 conclui que existe um novo modo de trabalho e de vida, “sustentado na volatilidade, efemeridade e descartabilidade sem limites de tudo o que se produz e, principalmente, dos que produzem – os homens e mulheres que vivem do trabalho”.149 Recorrendo a metamorfoses, a flexibilização e a precarização do trabalho assumem, pois, novas dimensões e configurações.150 Não passam, porém, de uma “estratégia de dominação”151 ilimitada e imoral, pois, sob a justificativa de modernização e políticas de austeridade em tempos de crise econômica, revela-se uma postura ideológica falaciosa – que se vale da ameaça de desemprego estrutural criada pelo próprio capitalismo – de ataque aos direitos sociais, que tem promovido, no plano jurídico, desregulamentações e reformas cada vez mais desestruturantes, aumentando a vulnerabilidade e a desigualdade social, bem como gerando insegurança e incerteza nos trabalhadores. A propósito do pretexto da crise econômica, é preciso dizer que ela é, na expressão de Manuel Carlos Palomeque Lopez, “um companheiro histórico de viagem do Direito do Trabalho”,152 tendo o professor espanhol definido esta relação entre direito do trabalho e crise econômica como um vínculo estreito e mais ou menos perene ao longo do tempo, ainda que com breves intermitências. Assim, por ser inerente ao sistema capitalista e por seu caráter cíclico, a crise não pode servir para justificar o desmantelamento e a flexibilização de direitos e garantias dos trabalhadores.153 tempo denota o caráter de urgência de uma temporalidade que deveria ser adotada apenas em situações excepcionais, mas que se impõe atualmente como o tempo normal. Cf. OST, François. O Tempo do Direito. Trad. Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005, p. 338. 149 DRUCK, Graça. Op. cit., p. 41. 150 Ibid., p. 42. 151 Ibid., p. 43. 152 Tradução livre. No original: “un compañero de viaje histórico del derecho del trabajo” LÓPEZ, Manuel Carlos Palomeque. Un compañero de viaje historico del derecho del trabajo: la crisis económica. Revista de Política Social, Madrid, n. 143, p. 15-21, julio/septiembre 1984. Disponível em: <http://www.cepc.gob.es/publicaciones/revistas/fondo- historico?IDR=10&IDN=903&IDA=31297>. Acesso em: 6 fev. 2019. 153 No mesmo sentido, Antonio Baylos entende que a aceitação da desregulamentação do direito do trabalho como uma consequência inevitável da crise econômica é uma contradição, pois esta “se presenta como la validación empírica de que el modelo hegemónico de regulación social es un modelo económico, social y político que se caracteriza por su violencia,desigualdad e injusticia, y que ha producido una concentración máxima de poder económico junto con el crecimiento exponencial de las desigualdades en todo el planeta”. In: BAYLOS, Antonio. Crisis, modelo europeu y reforma laboral. Revista Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, Estado y mercado en situación de crisis, Madrid, n. 14, p. 109-120, 2010. Disponível em: <http://afduam.es/wp- content/uploads/pdf/14/crisis,%20modelo%20europeo%20y%20reforma%20laboral%20antoni o%20baylos.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2019. 58 Porém, o que se vê é o imediatismo na adoção de políticas ditas de austeridade, que tem dado margem à aceleração do tempo jurídico,154 isto é, ao ritmo apressado de transformação e de alteração das normas trabalhistas, inclusive com apropriação discursiva da reivindicação de autonomia das classes trabalhadoras.155 Ademais, existe um certo fatalismo na maneira com que se tem promovido reformas e costuras normativas, como se fossem a fórmula a ser inevitavelmente seguida, repetindo o mote de que “não há alternativa”.156 Ou ainda, nas palavras de Renata Queiroz Dutra Ao eleger a expressão “modernização” como justificativa, os defensores dessa posição colocam o “moderno”, no sentido de novo ou atual, como um caminho único, linear e inexorável, em relação ao qual poderíamos tão somente marchar à frente, parar ou recuar, sem jamais encontrarmos bifurcações que impliquem escolhas políticas, a serem travadas na esfera pública e margeadas pelos compromissos constitucionais que outrora assumimos.157 Essas reformas tem sido levadas a cabo em vários países, acarretando uma deturpação dos fins e sentidos do direito do trabalho, o qual tem sido usado como mero instrumento variável para atendimento das necessidades da economia, numa sorte de “mercado dos produtos legislativos”.158 Assim, vive-se numa espécie de “darwinismo normativo”, segundo o qual somente sobreviveriam na economia globalizada os países 154 Consoante François Ost, o “caráter instável, efêmero, aleatório da produção jurídica contemporânea tornou-se uma banalidade”, pois já se acostumou “com a inflação legislativa, cuja obsolescência programada dos textos é, afinal de contas, apenas uma consequência”. OST, François. Op. cit., p. 337. 155 No entendimento do filósofo francês Bernard Edelman, é bastante perigosa a estratégia do capital de se apropriar das demandas da classe trabalhadora, promovendo formas de participação tão somente com o objetivo de desviá-la de suas verdadeiras necessidades, integrando-a ao capital. Ele ilustra com o próprio direito do trabalho, o qual traz para o campo estatal – por meio de uma mediação jurídica – o enfrentamento entre capital e trabalho, em prejuízo deste. Segundo o autor, o direito do trabalho, embora conte com um socialismo dos juristas, na verdade não seria um direito operário, mas apenas um direito burguês que se ajusta ao trabalho, impedindo a radicalização, até mesmo pela imposição à classe operária de “uma língua que não é a sua, a língua da legalidade burguesa”. Cf. EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. Trad. Marcus Orione. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 19. 156 Slogan político atribuído a Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, no período em que foi Primeira- Ministra do Reino Unido (1979-1990). Tradução de “There Is No Alternative (TINA)”. 157 DUTRA, Renata Queiroz. Como modernizar o Direito do Trabalho: A novidade é “um paradoxo estendido na areia”. Revista Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, Centro Universitário do Distrito Federal, Brasília, DF, v. IV, n. 3, p. 94-101, set./dez. 2018, p. 94. 158 AMADO, João Leal. Perspectivas do direito do trabalho: um ramo em crise identitária? Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, n. 47, p. 181-202, jul./dez. 2015, p. 187. 59 adaptados159 e ajustados a uma agenda neoliberal, que impõe “os desígnios econômicos como única alternativa, esvaziando a esfera pública como espaço adequado para a tomada de decisões políticas fundamentais sobre interesses comuns”.160 Neste contexto, o professor António Casimiro Ferreira concluiu, acerca do direito europeu, que se antes o direito do trabalho tinha um caráter protetivo e tinha por vezes suas normas violadas – o que ele denomina “efeito ‘al Capone’” –, após as reformas esse direito do trabalho subversivo dá lugar a um “direito do trabalho de exceção”.161 Perde, pois, sua eficácia simbólica diante do estado de necessidade do trabalhador que se depara com o drama do desemprego e é levado a preferir manter ou conseguir um mau emprego a não ter nenhum.162 Ademais, o direito do trabalho de exceção é considerado “sociologicamente problemático”, pois falaciosamente anula o caráter conflitual das relações laborais e do próprio direito do trabalho, integrando de forma artificial grupos com interesses opostos.163 Segundo João Leal Amado,164 há nesse novo direito do trabalho, uma tendência de se substituir o clássico conflito social165 – entre detentores dos meios de produção e detentores da força de trabalho – pelo novo conflito interclasse – de um lado, trabalhadores com vínculo estável e por tempo indeterminado (insiders), de outro, os com vínculo precário ou sem vínculo algum, tais como os falsos trabalhadores independentes e os desempregados (outsiders). Prossegue o professor português alertando para a crise identitária que atravessa esse ramo do direito, o qual, desde os anos 1970, tem sido colocado no “banco dos réus”, “acusado de irracionalidade regulativa” com “consequências danosas” para a competitividade e para a geração de empregos. Em consequência, o direito do trabalho tem 159 SUPIOT, Alain. Lei e trabalho: um mercado mundial de regras. Trad. Rinaldo José Varussa. Rev. Tempos Históricos, Online, v. 17, p. 157-169, jan./jun. 2013, p. 160. 160 DUTRA, Renata Queiroz. Op. cit., p. 100. 161 FERREIRA, António Casimiro. Sociedade da austeridade e direito do trabalho de exceção. Porto: Vida Económica, 2012, p. 98. 162 Ibid., p. 106. 163 Ibid., p. 136 164 AMADO, João Leal. Op. cit., p. 183. 165 Contudo, é importante lembrar que a luta de classes é a contradição fundamental que move a história do capitalismo, ditando, por conseguinte, a tônica do direito do trabalho, que regulamenta ou pretende regulamentar esse antagonismo social. Cf. MACHADO, Gustavo Seferian Scheffer. A ideologia do contrato de trabalho: contribuição à leitura marxista da relação jurídica laboral. São Paulo: LTr, 2016, p. 81. 60 seus princípios questionados, numa verdadeira “colonização economicista”,166 passando a perseguir valores próprios da política econômica, inclusive por meio de flexibilização das normas juslaborais, por uma lógica de produtividade laboral e competitividade empresarial.167 Assim, transformar o contrato de trabalho em contrato de direito civil é o que Boaventura de Sousa Santos descreve como projeto neoliberal de cunho fascista. O catedrático português explica que o fascismo contratual é uma forma de fascismo social que ocorre quando a diferença de poder entre as partes de um contrato é de tal monta que leva a parte mais débil a aceitar condições que lhe são desfavoráveis. Junto a outras formas de fascismo social, leva a um momento em que o “as sociedades são politicamente democráticas e socialmente fascistas”.168 A narrativa acima é de uma opção político-econômica do capitalismo global que atinge também ao Brasil: reflete também, pois, o cenário atual no país, onde os direitos trabalhistas têm sofrido um rápido desmanche não só das normas sociais, mas também do aparato estatal que permite que seu cumprimento seja facilitado, fiscalizado e, quando necessário, imposto coercitivamente. Neste sentido, a modernização é apontada como necessária e inevitável para as leistrabalhistas e previdenciárias, bem como para os sindicatos e a Justiça do Trabalho, todos alvos de notícias falsas e ataques com vistas a seu desmantelamento. 1.3.2 A reforma trabalhista no Brasil Para Graça Druck, a precarização social do trabalho aqui se trata de um fenômeno ambíguo – ao mesmo tempo velho e novo –, pois consiste no processo de 166 AMADO, João Leal. Op cit., p. 183. 167 No Brasil, exemplo dessa tendência de contratualização civilista para regular a prestação de serviços, como tentativa de prevalecer a autonomia da vontade, sem transcendência social, em detrimento dos princípios basilares e protetivos que regem o direito do trabalho foi a alteração da redação do art. 8º da CLT pela Lei n. 13.467, de 2017. O dispositivo aponta o direito comum, isto é, o direito civil, como fonte subsidiária do direito do trabalho, tendo sido retirada a ressalva de que a aplicação civilista só poderia ocorrer naquilo que não fosse incompatível com os princípios fundamentais do ramo trabalhista. 168 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org). Epistemologias do Sul. Coimbra: Ed. Almedina, 2009, p. 37-39. 61 “institucionalização da flexibilização e da precarização moderna do trabalho, que renova e reconfigura a precarização histórica e estrutural do trabalho no Brasil, agora justificada pela necessidade de adaptação aos novos tempos globais”.169 Apesar de, ao longo dos anos, mudanças pontuais terem sido feitas, o ponto culminante e que recebeu a denominação “reforma trabalhista” foi a aprovação da Lei n. 13.467, em 13/07/2017,170 a qual alterou a legislação laboral brasileira – criando, revogando ou modificando a redação de mais de cem artigos da CLT – para, segundo sua ementa, “adequar a legislação às novas relações de trabalho”. Desde a criação da CLT, trata-se da “mais abrangente reforma na arquitetura normativa trabalhista”171 no Brasil, contendo vários pontos de violação ao princípio da proibição do retrocesso social e até de controvertida constitucionalidade.172 No que tange aos tempos de trabalho e de não trabalho, a reforma veio conferir legitimidade a práticas flexibilizatórias que, a pretexto de acolher anseios dos trabalhadores, os deixa mais propensos a sofrer abusos por parte dos empregadores. Ora, a ordenação do tempo de trabalho é crucial para a regulamentação jurídica – para determinar as retribuições de natureza salarial, por exemplo –, mas sua maior relevância vem mesmo do fato de ela também condicionar a vida dos trabalhadores, já que, sabendo quanto e quando irá trabalhar, o sujeito pode organizar seu tempo livre. Quanto à extensão da jornada, a reforma promoveu sua ampliação tanto em relação a sua duração normal quanto a extraordinária, consistindo, por conseguinte, num dos pontos de maior retrocesso da reforma, porque, em vez de melhorar as condições de trabalho, viola o direito à limitação da duração diária e semanal, o qual, como visto, foi conquistado a duras penas pelos trabalhadores, alcançando amparo constitucional e 169 DRUCK, Graça. Op. cit., p. 41. 170 BRASIL. Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13467.htm>. Acesso em: 30 jan. 2019. 171 PAULA, Gáudio Ribeiro de. Lei n. 13.467/17: Uma análise didática da reforma trabalhista. São Paulo: LTr, 2018, p. 17. 172 Cf. OLIVEIRA, Marcos Paulo da Silva; TEODORO, Maria Cecília Máximo. A contrarreforma trabalhista e o trabalho intermitente. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 39, vol. esp., p. 175-191, dez. 2018. 62 previsão em acordos internacionais ratificados pelo Brasil. No que concerne à duração normal da jornada, a reforma autorizou a realização de horas ordinárias superiores às oito diárias, por mero acordo entre empregador e empregado, individual ou coletivamente, ao possibilitar a pactuação de jornadas de 12 horas de trabalho, seguidas por 36 horas de descanso, em qualquer profissão, indistintamente173 (CLT, art. 59- A), inclusive em atividades insalubres, dispensada a autorização prévia por parte das autoridades competentes (CLT, art. 60, parágrafo único). A chamada jornada 12 x 36 – a qual será analisada mais detidamente na seção 2.1 – é tão longa que permite: (a) fixar, como normal, um tempo de trabalho que supera até mesmo a limitação máxima de dez horas diárias (que acontece quando o trabalhador atinge o teto de oito horas da jornada ordinária, acrescida de duas horas da jornada extraordinária), além de (b) exceder – semana sim, semana não – a limitação máxima de quarenta e quatro horas semanais e (c) comprometer – necessária e também alternadamente – a preferência de o descanso semanal remunerado recair aos domingos.174 Outra questão acerca da duração da jornada foi a ampliação das permissões legais para prestação de labor em jornada extraordinária, que agora pode ser previamente pactuada: sem exigência de forma escrita (CLT, art. 59, caput); com empregados em regime de tempo parcial cuja jornada normal não exceda a 26 horas semanais (CLT, art. 58-A, caput); por meio de negociação coletiva, em atividades insalubres (CLT, art. 611-A, XIII); prescindindo do intervalo prévio de 15 minutos, antes concedido às trabalhadoras (revogação do art. 384 da CLT). Ainda quanto ao tempo de trabalho, é preciso lembrar que, segundo a doutrina justrabalhista, existem três critérios principais de cálculo da extensão da jornada, a serem adotados pelas legislações nacionais, geralmente de forma combinada. São eles: o tempo efetivamente laborado, o tempo à disposição no centro de trabalho e o tempo despendido no deslocamento da residência do empregado ao trabalho e seu retorno.175 No Brasil, por expressa disposição legal, o tempo em que o empregado esteja “à 173 Até então, essa jornada 12x36 não tinha previsão legal, mas era permitida em caráter excepcional e com ressalvas pelo TST (Súmula 444). 174 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019, p. 1078. 175 Ibid. p. 1031 e ss. 63 disposição do empregador, aguardando ou executando ordens”, é considerado como de serviço efetivo, “salvo disposição especial expressamente consignada” (CLT, art. 4º, caput). Ocorre que, por meio da reforma, o próprio dispositivo celetista que em seu caput previa a regra, passou também, em seu novo parágrafo, a prever algumas hipóteses de exceção, em que o tempo do empregado não será considerado como tempo à disposição e tampouco, por conseguinte, será computado como tempo de trabalho. São situações tidas como “tempo de fruição estritamente individual”, 176 em que o empregado adentra ou permanece nas dependências da empresa, seja para preservar sua incolumidade física, protegendo-se de “insegurança nas vias públicas ou más condições climáticas”, seja para “exercer atividades particulares” (CLT, art. 4º, §2º),177 ainda que o tempo exceda a tolerância legal de cinco minutos, ou seja, dure o tempo que durar. Interessante notar que, embora o critério básico de fixação da jornada pela legislação brasileira seja, em regra, o do tempo à disposição, especificamente no contrato de trabalho intermitente, criado pela reforma trabalhista, o empregado, aindaque fique aguardando convocação pelo empregador para o trabalho, não será remunerado por esse tempo, mas apenas pelo tempo efetivamente laborado (CLT, art. 452-A, §5º). Isso porque, perante a lei, não estaria à disposição do empregador,178 nem sequer em regime análogo ao de sobreaviso, previsto para os ferroviários (CLT, art. 244, § 2º), quando na realidade cria-se uma espécie daninha e atípica de sobreaviso, a qual é duradoura, não remunerada e estendida a todas as categorias. Além do tempo à disposição, outro tempo que era computado na jornada dos trabalhadores no Brasil era o tempo de deslocamento casa-trabalho e trabalho-casa, quando se tratasse de “local de difícil acesso ou não servido por transporte público” e o empregador 176 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019, p. 1042. 177 O rol exemplificativo do § 2º do art. 4º da CLT inclui o exercício de: I - práticas religiosas; II - descanso; III - lazer; IV - estudo; V - alimentação; VI - atividades de relacionamento social; VII - higiene pessoal; VIII - troca de roupa ou uniforme, quando não houver obrigatoriedade de realizar a troca na empresa. 178 Não seria sobreaviso porque o empregado, se for chamado, o será “por qualquer meio de comunicação eficaz” (CLT, art. 452-A, §1º), pelo que se conclui que não há uma exigência de que permaneça em sua residência. Assim, perante a lei, além da liberdade de ir e vir, ele gozaria da liberdade de contratar com outro empregador (CLT, art. 452-A, §5º, in fine) e mesmo de recusar eventual chamado, sem que se lhe seja imposta, teoricamente, nenhuma sanção. 64 fornecesse a condução. A nova redação da CLT, ao dispor que não será computado na jornada de trabalho o tempo gasto pelo empregado “desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno” (CLT, art. 58, §2º), excluiu o pagamento pelas denominadas horas in itinere, bem como pelo período de deslocamento entre a portaria e o local de trabalho, qualquer que seja o meio de transporte ou a duração dos trajetos. A partir dessa alteração, a questão da locomoção até o trabalho – embora seja um tempo conexo ao de trabalho – passou a ser considerada pela ótica dos tempos de não trabalho, a ser abordada nesta dissertação, com a ressalva de não ser um tempo disponível para o livre gozo pelo trabalhador (seção 3.1). Ou seja, no que tange à duração da jornada, além da ampliação da sua extensão, a reforma agravou o critério de sua aferição, deixando clara a tendência à “eliminação ou, pelo menos, atenuação, da clássica correlação trabalhista […] entre o tempo do trabalho ou de disponibilidade do trabalhador perante o empregador e as condições contratuais, inclusive a retribuição salarial obreira”.179 Quanto ao grau de intensidade do trabalho, apesar de ser entre as três dimensões, a que gera tem potencial de gerar maior adoecimento psíquico,180 a reforma trabalhista perdeu a oportunidade de regular juridicamente os modernos mecanismos de intensificação, entre eles a exigência de polivalência e versatilidade e a gestão por resultados, consoante se verá mais a frente (seção 2.2). Já em relação à distribuição do tempo de trabalho, o já mencionado contrato de trabalho intermitente, com a promessa de criação de mais empregos e de flexibilização para o trabalhador conciliar vida profissional e familiar, revelou-se uma forma de modulação do tempo de trabalho, de modo a atender uma exigência de alocação das demandas do empregador, deixando o empregado à mercê das flutuações do mercado, tema a ser aprofundado adiante (seção 2.3). No que tange ao tempo de não trabalho, interessa tratar de algumas pausas e descansos, representados pelos intervalos intrajornada e interjornada, bem como pelo repouso semanal remunerado, os feriados e as férias anuais. Neste ponto, como será 179 DELGADO, Mauricio Godinho. Op. cit., p. 122. 180 Sobre os efeitos da intensificação do trabalho sobre a saúde e a segurança dos trabalhadores: MACEDO, Kátia Barbosa et al. (org.). Organização do trabalho e adoecimento: uma visão interdisciplinar. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2016. 65 abordado na seção 3.3, a reforma autorizou a supressão ou a redução de regras sobre duração do trabalho e intervalos, por convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, já que, para fins de negociação coletiva, por ficção jurídica, elas “não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho” (CLT, art. 611-B, XVII e parágrafo único). Neste quesito, a única ressalva que o legislador fez foi o respeito ao “limite mínimo de trinta minutos” de duração do intervalo intrajornada “para jornadas superiores a seis horas” (CLT, art. 611-A, III). Ou seja, o trabalhador pode-se ver numa situação de laborar por 12 horas, com apenas um intervalo de 30 minutos. E pior: os intervalos para repouso e alimentação devem ser “observados ou indenizados” (CLT, art. 59-A, caput), legalizando- se a possibilidade de monetização da saúde do trabalhador. Ora, trata-se de realmente de uma distorção jurídica não considerar a modulação dos tempos de trabalho e de não trabalho como norma de saúde, higiene e segurança, uma vez que visa à “redução dos riscos inerentes ao trabalho”, consoante ditame constitucional (CF, art. 7º, XXIII) e internacional (Convenção n. 155 da OIT, de 1981, sobre segurança e saúde dos trabalhadores e meio ambiente de trabalho, ratificada pelo Brasil).181 Sem mencionar os horários de trabalho indiscutivelmente nocivos à saúde, tais como aqueles realizados em turnos ininterruptos de revezamento e/ou em período noturno, basta a duração excessiva da jornada para aumentar a probabilidade de ocorrência de doenças profissionais ou acidentes do trabalho.182 As pausas, por sua vez, podem evitar a fadiga, a exaustão e o esgotamento, sobretudo em atividades insalubres, perigosas ou penosas, que exigem “maior tempo para restabelecimento do organismo”.183 Pela nova regra, quando o empregador, não levando em consideração a infortunística do trabalho, deixa de conceder os intervalos ou o faz apenas parcialmente, haverá pagamento de natureza indenizatória e apenas do período suprimido (CLT, art. 71, 181 Segundo o art. 3º, e, da referida Convenção, o termo “saúde”, com relação ao trabalho, deve ser tomado em sentido amplo, abrangendo “não só a ausência de afecção ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene no trabalho”. 182 DELGADO, Mauricio Godinho. Op. cit., p. 1026. 183 GOSDAL, Thereza Cristina. Histórico das relações de trabalho e seu reflexo na organização e gestão do trabalho: do assédio moral ao assédio moral organizacional. In: MACEDO, Kátia Barbosa et al. (org.). Organização do trabalho e adoecimento: uma visão interdisciplinar. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2016, p. 102. 66 §4º). Diferentemente era antes da reforma, quando o descumprimento, total ou parcial, da norma concessiva de intervalo intrajornada gerava o pagamento total e de natureza salarial, desempenhando um papel compensatório de remuneração ao empregado pelo período trabalhado, mas também punitivo e pedagógico em relação ao comportamento ilegal do empregador. Por fim, afora melhorias pontuais,184 pode-se afirmar que o conjunto normativo trazido pela reforma da legislação trabalhista evidencia o fato de que ela é desestruturante de direitos dos trabalhadores. Notadamente quanto aos tempos de trabalho e não trabalho, resta ainda mencionar que a reforma trouxe duas outras questões: (a) criou uma novamodalidade de contrato de trabalho, o contrato de trabalho intermitente, sem diversas das proteções e garantias dos demais empregados (CLT, art. 452-A, caput e §§); (b) alterou o regramento acerca do teletrabalho, forma de prestação laborativa agora descrita em capítulo próprio (CLT, art. 75-A a 75-E). Dentre as inovações trazidas pela Lei n. 13.467, de 2017, o contrato de trabalho intermitente é uma das mais disruptivas, ao prever a duração diferida do contrato de trabalho, isto é, a alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, colocando o trabalhador à disposição do empregador, quando e se este precisar dos seus serviços, contudo, como visto, sem considerar os períodos de inatividade como tempo à disposição do empregador (CLT, art. 452-A, §5º). Quanto ao teletrabalho, a despeito da exclusão dos empregados em regime de teletrabalho do capítulo da duração do trabalho, deixando-os sem limitação máxima de jornada (CLT, art. 62, III), existe, na verdade, nesta forma de execução do trabalho uma propensão à “exacerbação da disponibilidade obreira às demandas do trabalho no ambiente virtual”,185 tendente a violar o direito do trabalhador à desconexão. Neste sentido, é questionável a constitucionalidade da criação de uma verdadeira exceção ao limite máximo, diário e semanal, da duração da jornada de trabalho. 184 Assim que, com a reforma trabalhista, no que concerne ao tema dos tempos de trabalho e não trabalho, foi apenas quanto às férias anuais que houve, embora pequenas, duas alterações em benefício dos trabalhadores: a duração das férias dos empregados em regime de tempo parcial foi equiparada à dos demais empregados, ou seja, de 12 a 30 dias corridos, de acordo com a sua assiduidade (CLT, art. 58-A, §7º c/c art. 130); e foi vedado que o início da concessão das férias ocorra “no período de dois dias que antecede feriado ou dia de repouso semanal remunerado” (CLT, art. 134, §3º). 185 DELGADO, Mauricio Godinho. Op. cit., p. 1070. 67 Ainda no tocante ao tempo à disposição, percebe-se que: (a) Se o empregado de contrato intermitente não está efetivamente trabalhando, mas encontra-se aguardando o chamado do empregador, está em um período de tensão e expectativa ininterruptas. Não se afasta demasiado do provável local de prestação do labor; deixa de ir a locais onde seja difícil a comunicação; enfim, não se desconecta, mesmo nos momentos de lazer, refeição e descanso. Está, pois, à disposição.186 (b) Se o empregado em regime de teletrabalho está cumprindo ordens de seu empregador, ainda que esteja em sua casa, na eventual companhia de familiares, seu tempo, seu corpo, sua mente estão à disposição do empregador. Na verdade, a atividade laboral em domicílio pode trazer “uma intrusão do trabalho na vida familiar” e muitas vezes significa um “aumento da duração do trabalho acompanhado de intensificação”.187 Ora, como relata Rodrigo Carelli: “tempo à disposição é todo tempo à disposição”.188 E não remunerar o tempo à disposição é explorar o tempo de vida do outro. E não limitar o tempo exigido para que o outro fique à disposição, é comprometer sua saúde e segurança, o que pode gerar adoecimento, acidentes e prejuízos para empregador, empregado, seus familiares e mesmo terceiros. A respeito da nova morfologia do trabalho precarizado e da reforma trabalhista que a legitima no Brasil, é preciso dizer que: ainda que o leque de instrumentos ofertado pela Lei n. 13.467, de 2017 não venha a ser aplicado de modo absoluto e imediato, o simples fato de ter havido uma reforma tão deformante do sistema protetivo justrabalhista indica quão arraigada está, no país, a exploração do trabalho pelo capital. Em vez de uma reforma imposta por meio do artifício argumentativo de uma inexorável necessidade de modernização, há uma outra reforma que poderia ter sido feita: diante da narrada precarização das relações trabalhistas, uma alternativa possível seria a tutela dos trabalhadores em face da prática abusiva de horas extras e a longa duração das 186 A possibilidade de poder prestar serviços para outro trabalhador não faz com que o trabalhador intermitente não esteja à disposição; se vier a ser convocado ao trabalho por outra pessoa, pode tentar conciliar mais de uma prestação de serviços, aceitando jornadas exaustivas. Outra situação possível é a de ser convocado por um empregador durante as férias perante outro (CLT, art. 452- A, §9º). 187 PADILHA, Valquíria. Op. cit., p. 557. 188 CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Tempo à disposição é todo tempo à disposição. In: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SEVERO, Valdete Souto (org.). Resistência: aportes teóricos conta o retrocesso trabalhistas. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 267-280. 68 jornadas, contra a flexibilização e a intensificação do tempo de trabalho, promovendo a redução de jornada e o direito à desconexão do trabalho.189 Não tendo sido em prol dos trabalhadores a modernização promovida pela reforma, e tendo em vista o cenário atual da regulamentação jurídica no país, se faz pertinente e urgente a investigação dos tempos de trabalho e não trabalho, inclusive com a retomada da análise dos efeitos da reforma trabalhista sobre eles. Por ordem didática, passa-se, primeiro, ao estudo do tempo de trabalho e suas dimensões para, depois, por exclusão deste, analisar os demais tempos sociais, aqui denominados tempos de não trabalho. 189 DUTRA, Renata Queiroz. Como modernizar o Direito do Trabalho: A novidade é “um paradoxo estendido na areia”. Revista Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, Centro Universitário do Distrito Federal. Brasília, DF, v. IV, n. 3, p. 94-101, set./dez. 2018, p. 99-100. 69 Capítulo 2 - Tempos de trabalho: dimensões e regulamentação jurídica Eu às vezes fico a pensar/ Em outra vida ou lugar/ Estou cansado demais Eu não tenho tempo de ter/ O tempo livre de ser/ De nada ter que fazer (...) Eu acordo pra trabalhar/ Eu durmo pra trabalhar/ Eu corro pra trabalhar Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, em Capitão de indústria. Seguindo a divisão e a ordenação propostas pelo professor Sadi Dal Rosso, os tempos de trabalho compõem-se de três dimensões:1 a extensão, isto é, a duração da jornada normal e extraordinária, o número total de horas laboradas; a intensidade em que são executadas, que tem a ver com o ritmo de trabalho e as pausas; e a distribuição das cargas de trabalho em horários rígidos ou flexíveis.2 No presente capítulo, cada uma delas será objeto de reflexões teóricas, seguidas da análise de figuras jurídicas ilustrativas do tratamento disruptivo que têm recebido na legislação trabalhista brasileira. 2.1 A extensão da jornada Hoje, o trabalho sequestrou de forma radical o tempo Adauto Novaes A respeito da dimensão extensiva das jornadas laborais, na presente seção, serão examinadas, num primeiro momento, a distribuição social dos tempos e sua inserção no âmbito do direito; numa segunda parte, os aspectos e a regulamentação jurídica da duração no direito brasileiro, à luz das alterações feitas pela recente reforma trabalhista. 2.1.1 A divisão do tempo e sua ordenação social sob o prisma da duração da jornada Antes de adentrar no tema das dimensões dos tempos de trabalho, cabe explicar 1 Vale registrar que existem outras classificações possíveis para a jornada, a exemplo daquela binária apresentada pelo professor José Dari Krein, que fala em dimensão cronométrica (duração) e cronológica (distribuição e ritmo) do trabalho. KREIN, José Dari. Tendências recentes nas relações de emprego no Brasil 1990-2005. 2007. 345 f. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de Economia, Universidade de Campinas,Campinas, 2007, p. 210. 2 DAL ROSSO, Sadi. O ardil da flexibilidade: Os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 16. 70 melhor a opção pela divisão do cotidiano da vida humana em tempos de trabalho e de não trabalho, como categorias sociais organizadoras. Primeiramente, é preciso reconhecer que tem havido atualmente uma reaproximação entre os dois tempos – sobretudo com a invasão da racionalidade do trabalho na vida privada –, consoante assevera Álvaro Tenca: O processo histórico marcado pelo aumento contínuo da produtividade que pode ser observado já a partir da revolução industrial do fim do século XVIII tem sido acompanhado de uma, também contínua, diminuição do tempo livre, resultando na sobreposição do tempo do trabalho, reino da necessidade. A razão do trabalho invade o espaço do tempo livre, reino da liberdade.3 Tão graves são as consequências dessa restrição do tempo livre que o referido professor afirma que a base sobre a qual se sustenta a sociedade capitalista contemporânea é o “confisco do tempo”, 4 para dizer da liberdade confiscada pela racionalização, por meio do uso de aparatos destinados ao controle do tempo que sobra depois do trabalho, transformando-o em tempo não disponível. Dessa forma, após satisfazer o reino da necessidade, com a manutenção e a reprodução da vida – reino que exige cada vez mais tempo por meio dos subterfúgios do consumo voraz e irracional, “fundado no culto do descartável, alimentador do desperdício”–, pouco tempo resta para viabilizar o reino da liberdade, restringindo, por conseguinte, tanto as manifestações artísticas quanto a pluralidade da ação política de homens livres sobre o espaço público.5 Diante deste contexto, a próxima consideração que cabe fazer é que a divisão da vida humana em tempos de trabalho e de não trabalho é de cunho didático, até porque o indivíduo é um só, e, por conseguinte, ainda que decomponha seu tempo de vida, este é finito e, a cada dia, limitado a 24 horas. Por esta razão, as vivências que uma pessoa experimenta no trabalho repercutem em sua vida íntima (e vice-versa), como conclui a filósofa francesa Simone Weil, após sua experiência da vida de fábrica: Que bom seria poder depositar a alma, à entrada, no cartão de ponto, e retomá-la intacta à saída! Mas é o contrário que se dá. Ela vai com a gente para a fábrica, onde sofre; de noite este esgotamento como que a anulou, e as horas de lazer são inúteis.6 3 TENCA, Álvaro. Senhores dos trilhos: racionalização, trabalho e tempo livre nas narrativas de ex-alunos do curso de ferroviários da antiga paulista. São Paulo: Unesp, 2006, p. 44. 4 Ibid., p. 44. 5 Ibid., p. 54. 6 WEIL, Simone. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Seleção e apresentação de Ecléa Bosi. 2. ed. rev. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 161. 71 A terceira observação a ser feita é que essa categorização faz sentido dentro da sociedade capitalista, caracterizada pelo trabalho alienado, o qual ocupa a maior parte do tempo desperto das pessoas. De modo que Karl Marx afirmava serem imiscíveis o trabalho e a liberdade, pois esta só tem início quando cessa a necessidade. Ou seja, o tempo livre começa apenas quando termina o tempo de trabalho, já que este é meio de satisfação de necessidades, sejam elas naturais ou sociais.7 Consoante essa concepção, então, embora o trabalho seja condição para a liberdade, o desfrute desta não pode ser no trabalho, mesmo que não alienado. Dessa forma, o único caminho possível para o florescimento do reino da liberdade passa pela redução da jornada de trabalho, tornando o tempo disponível para o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmas.8 Em quarto lugar, a cisão entre os tempos e espaços de trabalho e os de não trabalho visa lançar luzes principalmente sobre essas outras temporalidades e locais relegados ao dito não trabalho, promovendo uma revisão da sua natureza, pois a “limitação do trabalho à esfera das instituições produtoras, bem como quase que exclusivamente ao universo masculino, impediu [entre outras coisas] a compreensão do trabalho doméstico como trabalho”. 9 Por fim, esta dissertação pretende, ao analisar as dimensões dos tempos de trabalho, bem como ao questionar a dinâmica e o grau de liberdade dos tempos de não trabalho, tentar descobrir se e de que forma o Direito do Trabalho pode contribuir para a garantia de tempos realmente livres. Mas qual é a relação entre o tempo e o Direito do Trabalho? Segundo o sociólogo alemão Norbert Elias, o tempo é um símbolo, um meio que as pessoas utilizam para se orientar, baseadas numa série de experiências prévias, apreendidas, 7 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 1819-1820. 8 Para Marx, essa redução do tempo de trabalho dependeria de um controle comum da produção e, por conseguinte, um trabalho não alienado, o que não seria possível no sistema capitalista. Diferentemente de Marx, o filósofo da Escola de Frankfurt Herbert Marcuse entendia que, com as condições históricas da sociedade do consumo, tais como o avanço tecnológico e a automação produtiva, já estariam eliminadas as atividades laborais mais penosas e degradantes, tornando possível a busca da liberdade dentro do trabalho, e não fora dele. E vai além, ao atribuir ao trabalho não alienado o status de verdadeira expressão da liberdade e da felicidade humana. Cf. TENCA, Álvaro. Op. cit., p. 45-46. Sobre a utopia do trabalho libertado, cf. MÉDA, Dominique. O trabalho: um valor em vias de extinção. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de Século, 1999, p. 143 e ss. 9 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Tempos de trabalho, tempos de não trabalho: vivências cotidianas de trabalhadores. 14/08/2007. 352p. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 27. 72 acumuladas e transmitidas de geração em geração, num processo de aprendizagem contínua.10 Assim, a percepção do tempo, pelo menos do ponto de vista sociológico, serve como um “mecanismo de regulação” para os atos sociais da vida humana, com função de coordenação e integração, dotado de força coercitiva, externa e interna, por meio da autodisciplina.11 Servindo como instrumento de regulação, tanto da conduta quanto da sensibilidade humanas, afirma ainda o autor que a pressão do tempo é bastante sentida, sobretudo “no caso das funções superiores de coordenação social, onde a interseção de um número cada vez maior de cadeias de interdependência incita os homens a submeterem sua atividade profissional a um horário cada vez mais exato”.12 Deste modo, a partir do momento em que um indivíduo livre passa a dedicar parte do seu tempo de vida a trabalhar para outrem, em troca de um determinado valor, esse tempo de trabalho será quantificado e poderá servir como medida da remuneração recebida. Para tratar da duração da jornada, é preciso resgatar a revolução ocorrida na modernidade quando se inaugurou a marcação do tempo por meio do uso do relógio, afetando os costumes e os valores sociais, bem como impondo uma nova disciplina do tempo, inclusive do tempo de trabalho.13 A partir daí, a regulação e a sincronização do tempo de trabalho foram, pois, internalizadas pela sociedade, como se fosse algo natural e imutável. Neste sentido narra José Luis Bolzan de Morais: (…) no processo de estabelecimento da sociedade industrial, impõe-se, no conjunto, a conformação de uma nova estrutura disciplinar que consiga transformar o tempo dos homens em tempo de trabalho, seja como produção propriamente dita, seja como recuperação das forças para uma nova jornada. O que importa é que o tempo do trabalhador,a sua vida toda, seja utilizada da melhor forma pelo aparelho produtivo, pois o controle não é feito apenas no interior da fábrica, mas estendido à vida cotidiana.14 10 ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 33-34. 11 Ibid., p. 39 e 44. 12 Ibid., p. 11. 13 THOMPSON, Edward Palmer. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 267-304. 14 MORAIS, José Luis Bolzan de. A subjetividade do tempo: Uma perspectiva transdisciplinar do direito e da democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998, p. 28. 73 Assim, a assimilação dessa percepção do tempo e de seu “uso econômico” como um valor vem sendo ensinada desde a infância, pois, de um lado, na família a rotina costuma ser construída com base nos horários de trabalho dos adultos e, de outro lado, nas escolas incute-se nas crianças uma rígida disciplina temporal. O controle do tempo, portanto, para além de expressar uma manifestação de poder dentro da jornada e do ambiente laboral, estende-se e alcança até mesmo pessoas que sequer estão inseridas no mercado de trabalho. Por parte dos trabalhadores, eles passaram a experimentar o trabalho como a comercialização de horas, minutos e segundos, subtraídos do seu tempo de vida. Uma vez que o controle do processo produtivo passou a ser gerido e administrado pelos empregadores, o simples bater do ponto pelos trabalhadores na entrada e na saída da fábrica, mais que significar a sua renda, simbolizava a própria luta sobre a alocação do tempo.15 Essa lógica da racionalização do tempo de trabalho, aliada à valorização do trabalho e à avidez do capital por mais-valor – ainda hoje vigentes –, no contexto da revolução industrial, não encontrando limites jurídicos, submeteu os trabalhadores a condições tanto insalubres quanto perigosas e mesmo penosas, bem como alongou as jornadas até durações desumanas, ainda que houvesse resistência por parte dos trabalhadores. Conforme alerta Karl Marx, no sistema capitalista, em momentos de crise ou bonança, haverá um impulso imanente de apropriação do trabalho para que se aproxime o máximo possível das 24 horas por dia.16 Dessa forma, a jornada de trabalho não é uma grandeza fixa e constante, mas fluida e variável.17 Se não puder tirar todo esse tempo de um só trabalhador, serão instituídos, por exemplo, sistemas de revezamento para que o funcionamento empresarial abarque não só o período diurno, mas também o noturno, bem como os finais de semana, enfim, as horas “não sociais”.18 Contudo, ainda que a atividade empresarial seja diuturna, ininterrupta e em rede, cada contrato individual de trabalho se caracteriza por uma duração diária limitada, 15 TEIXEIRA, Kleber Garcia. A máquina e o tempo: dialética das forças produtivas e do tempo de trabalho em Marx. 245p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010, p. 159. Sobre a luta em torno dos limites da jornada de trabalho: MARX, Karl. O Capital. Livro I. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 309. 16 MARX, Karl. Op. cit., p. 329 e ss. 17 Ibid., p. 306. 18 DAL ROSSO, Sadi. Op. cit., p. 30. 74 devido à “inseparabilidade do trabalho em relação a pessoa que o realiza”.19 E Karl Marx apresenta uma importante pergunta, qual seja: “o que é uma jornada de trabalho?”20 Sabe-se que é menos que um dia natural de vida, mas quanto menos? Ainda na contemporaneidade a resposta a essa pergunta vem sendo debatida; à época de Marx, o seu próprio genro, Paul Lafargue, tentou responder. Opondo-se à corrente de moralização do tempo de trabalho vigente no século XIX, o revolucionário publicou, em 1880, um manifesto intitulado O direito à preguiça, no qual vinculava a moral capitalista à moral cristã, lamentando que o corpo do trabalhador fosse condenado ao papel de máquina, suprimindo suas alegrias e suas paixões.21 Afirmou ainda que o trabalho seria um dogma desastroso e taxou de loucura a paixão pelo trabalho, que, no entanto, era santificada pelos padres, economistas e moralistas da época,22 em contraponto à preguiça, considerada inclusive como um dos sete pecados capitais para a Igreja Católica. Para ele, três horas ao dia seria tempo suficiente para se dedicar ao trabalho. Em 1935, o filósofo inglês Bertrand Russell publicou um ensaio sobre a necessidade de redução da jornada de trabalho, em que teceu críticas à crença na virtude do trabalho e propôs uma jornada de quatro horas diárias, as quais “deveriam ser suficientes para dar as pessoas o direito de satisfazer as necessidades básicas e os confortos elementares da vida, e que o resto de seu tempo deveria ser usado da maneira que lhes parecesse mais adequada”.23 Assim, o modelo regulatório do tempo de trabalho conforma os valores e princípios políticos de uma sociedade, o modo como ela se desenvolve e como se dá a convivência entre os sujeitos: se são toleradas jornadas extenuantes ou se é assegurado tempo suficiente para o desenvolvimento das potencialidades.24 19 Tradução livre. No original: “inescindibilidad del trabajo a la persona que lo realiza”. Cf. BAAMONDE, María Emilia Casas. Distribución irregular de la jornada, flexibilidad del tiempo de trabajo y tiempo de vida personal y familiar. Revista Jurídica de la Universidad de León, n. 4, p. 3-24, 2017, p. 4. 20 MARX, Karl. Op. cit., p. 306-7. Mais à frente, Marx retoma a pergunta (p. 337). 21 LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. Trad. J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 4-5. 22 Ibid., 1999, p. 7. 23 RUSSELL, Bertrand. O elogio ao ócio. Trad. Pedro Jorgensen Júnior. Rio de Janeiro: Sextante, 2002, p. 33. 24 PÁRRAGA, Francisco José Trillo. Prefácio. In: SILVA, José Antônio Ribeiro de Oliveira. Flexibilização da jornada de trabalho e a violação do direito à saúde: uma análise comparativa dos sistemas jurídicos brasileiro e espanhol. São Paulo: LTr, 2013. 75 Quanto ao controle, atualmente seguindo uma ideologia gerencialista,25 ainda se espera que os indivíduos mesmo fora do trabalho, na vida cotidiana, tenham uma vida cronometrada (com horário para dormir e acordar cedo, por exemplo) e conservem um comportamento sóbrio, a fim de recuperar as forças para a jornada seguinte, reduzindo o absenteísmo e aumentando a produtividade. No que concerne à extensão da jornada, se à época de publicação dos textos, as durações por eles sugeridas eram consideradas utópicas, mesmo hoje elas seguem audaciosas. Isso porque existe sempre um propósito implícito ou explícito ao se regulamentar a duração da jornada, podendo ser, a título exemplificativo: o de uniformizar a jornada, evitando o dumping social, seja no plano interno ou internacional, como visto; o de diminuí-la para distribuir o tempo de trabalho entre os trabalhadores, como estratégia de combate ao desemprego; o de aumentá-la com o pretexto de afastar os trabalhadores dos maus hábitos. O alongamento da jornada, aliás, é quase sempre fruto de alguma finalidade deturpada: desde o início do capitalismo, a duração estendida foi usada para extrair mais- valor do trabalhador. Isso porque, muito além de um caráter de organização social, não se pode deixar de notar que o tempo de trabalho carrega consigo um forte viés político- econômico, pois, consoante lição de Karl Marx, ele significa a soma do tempo de trabalho socialmente necessário – “aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer sob as condições normais para uma dada sociedade e com o grau social médio de destreza e intensidade dotrabalho”26 – com o tempo de trabalho excedente (“surplusarbeitszeit”)27 exigido pelo empregador (mais-valor). Ademais, o aumento da jornada vem, muitas vezes, acompanhado por um argumento de doutrinação social. Assim, em 1935, Bertrand Russell, no mencionado ensaio, já alertava que a imposição de se trabalhar muitas horas serve para sustentar o lazer dos mais abastados, tendo sido justificada, durante o período da Revolução Industrial, como meio de afastar os adultos dos vícios e as crianças da criminalidade;28 deixando, na verdade, 25 GAULEJAC, Vincent de. Op. cit., p. 63. 26 MARX, Karl. Op. cit., p. 117. 27 Ibid., p. 293. 28 Josué Pereira Silva, como visto, narra a história do sermão do padre que critica a redução da jornada de trabalho para 8 horas, porque impediria o trabalhador de escolher entre um bem, que consistiria em trabalhar, e um “bem melhor”, que seria trabalhar mais. E mais: tiraria a pessoa da “escola do trabalho” para introduzi-la na “escola do vício”. SILVA, Josué Pereira. Op. cit., p. 19. 76 aos assalariados a “opção” de escolher entre o sobretrabalho ou a privação do necessário para viver.29 No que tange à redução da jornada, ela tem sido, ao longo da história, um dos principais pleitos do movimento operário. Atualmente, tem sido apontada, por alguns governantes e autores, como forma de combate ao desemprego30 – baseado na hipótese de que a falta de trabalho decorreria dos avanços tecnológicos relacionados à automação e à robótica, que permitiriam produzir mais, dispensando grande parte do trabalho humano. Ocorre que existe uma busca desenfreada pela redução de custos de produção – seja para ampliar a margem de lucro dos donos dos meios de produção, seja para reduzir o preço da mercadoria, tornando-a mais competitiva – que faz com que o capitalista exija dos trabalhadores um esforço máximo. Assim, o capitalista acelera a produção para reaver logo o valor investido na aquisição do aparato tecnológico e faz cortes na folha de pagamento, reduzindo a quantidade de pessoal.31 Entretanto, a redução da jornada, por si só, não atende aos trabalhadores; para isso, é preciso que ela ocorra sem perda de remuneração e direitos. Quanto à questão do desemprego, o que se tem visto, é um aumento dos postos de trabalho precarizados, e com direitos trabalhistas flexibilizados, melhorando os índices estatísticos, mas sem solucionar a mazela social.32 Por fim, à época de Marx, a existência de um exército de reserva – isto é, de uma população trabalhadora excedente – criava a condição capaz de manter os salários baixos.33 Atualmente, a ideia parece ser a de trazer de volta os desempregados para a relação de emprego, agora desprotegida, e desproteger também os que antes eram estáveis e seguros, mantendo baixos os salários de todos.34 Para garantir que cada pessoa trabalhe menos, é 29 RUSSELL, Bertrand. Op. cit., p. 29-30. 30 Por todos: AZNAR, Guy. Trabalhar menos para trabalharem todos. São Paulo: Scritta, 1995; LIPIETZ, Alain. Audácia: Uma alternativa para o século 21. São Paulo: Nobel, 1991; RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: O declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 1996. 31 TEIXEIRA, Kleber Garcia. Op. cit., p. 172-173. 32 MÉSZÁROS, István. Desemprego e precarização: Um grande desafio para a esquerda. Revista Vinculando, Online. Disponível em: <http://vinculando.org/brasil/desemprego1.html>. Acesso em: 05 mar. 2019. 33 TEIXEIRA, Kleber Garcia. Op. cit., p. 172-173. 34 CASTEL, Robert.Op. cit. Las metamorfosis de la cuestión social: una crónica del salariado. Trad. Jorge Piatigorsky. Barcelona: Paidós, 1995, p. 344-346. 77 importante, entre outros fatores, que ela receba remuneração compatível com os gastos médios; caso contrário, ela será levada a ter outro emprego, ocupando dois postos de trabalho, ou a exercer alguma atividade informal e, portanto, desprotegida. Outra questão a ser debatida é a relativa à tendência atual a uma diminuição da duração média das jornadas em vários países,35 e mesmo no Brasil36. Contudo, é preciso ser cauteloso, pois, consoante alerta Guy Standing: […] as estatísticas gerais sobre trabalho produzem números harmoniosamente impressionantes que indicam que o adulto médio “trabalha 8,2 horas por dia” (ou qualquer que seja o número) durante cinco dias por semana, ou que a taxa de participação da força de trabalho é de 75%, dando a entender que três quartos da população adulta está trabalhando oito horas por dia, em média. Ao considerar como o precariado – e outros – aloca o tempo, tais números são inúteis e enganosos.37 Dessa forma, a média das horas de trabalho pode ocultar a coexistência de jornadas longas e reduzidas, fenômeno comum em países em desenvolvimento e denominado “bifurcação de jornadas de trabalho”38 entre curtas e longas, em que estão presentes simultaneamente: um grupo de trabalhadores sobrecarregado além do limite legal, devido à fraca observância da lei de regulação (“pobreza de tempo”), e outro grupo de trabalhadores realizando poucas horas de trabalho e, consequentemente, sem obter uma renda decente, caracterizando uma situação de subemprego (“pobreza de renda”).39 Como a jornada efetivamente realizada pode ser bem diferente da jornada prevista em lei, a jornada será considerada longa, segundo a OIT, se exceder: ao previsto em lei (horas extraordinárias); aos limites recomendados para preservação da saúde e segurança 35 Neste quesito, destaca-se o estado francês, o qual passou de 39 horas semanais para a jornada de 35 horas semanais (ou 1600 horas anuais), nas seguintes fases: de modo voluntário (lei Aubry 1, de 1998) e de modo obrigatório (lei Aubry 2, de 2000), para empresas de mais de vinte empregados, em 2000; para as demais, a partir de 2002. Cf. CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 44 e ss. 36 LEE, Sangheon; MCCANN, Deirdre; MESSENGER, Jon C. Duração do Trabalho em Todo o Mundo: tendências de jornadas de trabalho, legislação e políticas numa perspectiva global comparada. Trad. Oswaldo de Oliveira Teófilo. Brasília: OIT, 2009, p. 81. Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo- brasilia/documents/publication/wcms_229714.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2019. 37 STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Trad. Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 179. 38 LEE, Sangheon; MCCANN, Deirdre; MESSENGER, Jon C. Op. cit. p. 34 e 64. 39 As jornadas curtas que, por não proporcionarem renda ao trabalhador, geram situação de subemprego, serão tratadas, em tópico próprio nesta dissertação (seção 3.3). 78 (mais de 48 horas semanais);40 ao que o trabalhador gostaria de cumprir, mesmo com a correspondente redução de renda (conceito de “emprego inadequado em relação a jornadas excessivas”). Longa ou curta, a jornada não é a mesma para todos: ela varia conforme faixa etária, gênero, raça, renda, grau de escolaridade, setor de trabalho, entre outros.41 Assim, os mais jovens e os mais velhos tendem a trabalhar menos horas;42 enquanto os negros e os de meia idade trabalham mais. Por outro ponto de vista, quanto maior a renda, maior o tempo de não trabalho;43 enquanto aqueles inseridos de forma mais precária na estrutura ocupacional – a exemplo dos trabalhadores sem registro e dos por conta própria – tendem a ter jornadas mais longas e fazer mais horas extras do que os com carteira assinada e os estatutários. 44 No que se refere às mulheres, por exemplo, costumam estar vinculadas a jornadas curtas ou mesmo de regime parcial. A explicação para isso talvez seja porque tenham sido levadas a essa condição, por dois fatores: o seu ingresso relativamente recente no mercadode trabalho considerado produtivo; a atribuição a elas, de forma exclusiva ou majoritária, da responsabilidade pelo trabalho reprodutivo não remunerado, tanto nas tarefas domésticas quando no cuidado com membros da família.45 Diante desse contexto, como está a regulamentação da jornada no Brasil, no que concerne à duração? Esse é o objeto do próximo subitem. 2.1.2 As formas contemporâneas de expansão da jornada no direito brasileiro Como visto, no plano constitucional, a jornada de trabalho é limitada a 8 horas diárias e 44 horas semanais (CF/88, art. 7º, XIII), prevendo uma remuneração no mínimo 40 Para o padrão semanal, as jornadas não podem superar 48-50 horas semanais, pois esse é o ponto além do qual o trabalho regular se torna prejudicial à saúde, conforme a literatura médica. Assim, por se tratar de uma questão de saúde, esse limite deve incluir as horas extras. Cf. LEE, Sangheon; MCCANN, Deirdre; MESSENGER, Jon C. Op. cit., p. 8 e 46. 41 GONZAGA, Gustavo; LEITE, Phillippe; MACHADO, Danielle. Quem trabalha muito e quem trabalha pouco no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento de Economia PUC-Rio, 2003. 42 LEE, Sangheon; MCCANN, Deirdre; MESSENGER, Jon C. Op. cit.., p. 81. 43 Pressupõe-se, é claro, que haja um tempo de trabalho, com exclusão, portanto de pessoas em situação de desemprego. Cf. BRAGA, Alice Morais. O tempo de trabalho e os demais tempos sociais: realidade das mães que costuram sapatos em Franca/SP. Dissertação de Mestrado em Serviço Social. Faculdade de História, Direito e Serviço Social. Unesp, Franca, 2008, p. 29. 44 KREIN, José Dari. Op. cit., p. 247. 45 Sobre o tema do trabalho de reprodução social, será tratado em capítulo adiante (seção 3.1). 79 50% maior em caso de prestação de horas extraordinárias. No plano infraconstitucional, além da definição legal do que deve ser considerado como tempo de trabalho – “o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens”46 –, encontra-se a regulamentação das jornadas diversas do padrão constitucional, tais como os módulos temporais de caráter especial aplicáveis a categorias específicas ou a trabalhadores submetidos a sistemática especial. É claro que a previsão – legal ou negociada, padrão ou especial – de um número máximo de horas ordinárias e de horas extraordinárias não impede que aconteçam burlas à limitação,47 mas ela serve como um indicativo até mesmo para relações de trabalho fora do mercado formal de empregos, orientando trabalhadores por conta própria (autônomos) ou por conta alheia, mas sem assinatura na carteira de trabalho.48 Quando as jornadas especiais são de duração inferior ao padrão constitucional, não há dúvidas de que deverão ser respeitadas. Isso acontece, por exemplo, com algumas categorias profissionais regulamentadas pela CLT ou em leis próprias (bancários, empregados em serviços de telefonia, músicos, operadores cinematográficos, empregados em minas de subsolo, jornalistas, advogados, entre outros) e nos turnos ininterruptos de revezamento, que a própria Constituição prevê que sejam de seis horas, salvo negociação coletiva. A questão, no entanto, já era complicada nos casos de previsão de jornadas superiores a 8 horas, a exemplo dos aeronautas, regulados em lei própria. Porém, a situação se agravou mesmo quando a reforma trabalhista ampliou a jornada 12 x 36 horas para 46 Assim, conforme Almiro Almeida e Valdete Souto Severo, pelo próprio aspecto topológico – a CLT dispõe sobre o tema logo em seu art. 4º –, percebe-se a fundamentalidade atribuída ao tempo na relação de emprego, pelo menos à época da publicação da CLT. Cf. ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Op. cit., p. 30 e 32. 47 Sobre isso, “é possível argumentar que a semana de trabalho de 48 horas e a de 40 horas não passam de 'tigres de papel', porque apesar de estarem estabelecidas na legislação, na prática, são escassamente cumpridas”. Cf. LEE, Sangheon; MCCANN, Deirdre; MESSENGER, Jon C. Op. cit., p. 2. 48 A jornada padrão, analogamente ao salário-mínimo, produz uma espécie de “efeito farol”, orientando as demais jornadas. GONZAGA, Gustavo; LEITE, Phillippe; MACHADO, Danielle. Quem trabalha muito e quem trabalha pouco no Brasil. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2003. Sobre o efeito farol dos salários, foi descrito em: SOUZA, Paulo Renato; BALTAR, Paulo Eduardo. Salário mínimo e taxa de salários no Brasil. Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE), Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 629-660, dez. 1979. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6982/1/PPE_v.9_n3_Salário.pdf>. Acesso em 17 abr. 2019. 80 qualquer relação de emprego. Alguns doutrinadores, como Homero Silva, apontam como possíveis vantagens da jornada 12 x 36 as seguintes: (i) menor número de vezes de deslocamento do trabalhador para a empresa; (ii) possibilidade de exercício de outra atividade; (iii) média de 42 horas na quinzena; (iv) média mensal abaixo de 220 horas; (v) tendência de a jornada ser de 11 horas ou 11 horas e meia, porque habitualmente o empregador não deduz o intervalo para refeição e descanso; (vi) folgas adicionais.49 De todas elas a única real vantagem seria perder menos tempo no deslocamento para o trabalho (i), já que a possibilidade de exercer outra atividade nas folgas (ii) poderia servir para melhorar a renda do trabalhador, mas acarretaria um desgaste físico e mental insustentável a médio prazo. A despeito de as médias quinzenais e mensais serem ligeiramente reduzidas (iii e iv), essa jornada – semana sim, semana não – desrespeita o limite máximo constitucional de 44 horas semanais, sendo que a Constituição de 1988 sequer segue a Recomendação n. 116 da OIT que, desde 1962, já indicava o limite máximo de 40 horas semanais. Essa jornada também desrespeita, em todos os dias de efetivo labor, o máximo de 8 horas diárias, sem assegurar um intervalo especial50 e sem pagamento de adicional de horas extras. Mesmo que se defenda que na quinzena ou no mês o número de horas não seja exorbitante, por questões de saúde do trabalhador, não são esses os lapsos temporais adotados como critérios pela Constituição.51 49 SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de Direito do Trabalho, vol. 2: Jornadas e pausas. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, p. 56. 50 José Augusto Rodrigues Pinto e Rodolfo Pamplona Filho deixam claro que “os repousos do trabalhador formam um sistema de equilíbrio com os períodos de trabalho durante os quais o empregado deve a prestação da energia posta à disposição dos fins da empresa, de modo a utilizá- la em três planos de aproveitamento - orgânico, social e econômico. Por isso, as legislações fundamentadas em estudos de Medicina do Trabalho, estabelecem para eles uma escala de duração em inteira correspondência com a escala de duração do trabalho, resultante da execução continuada, que é um dos caracteres do contrato individual”. Cf. PINTO, José Augusto Rodrigues; PAMPLONA, Rodolfo Filho. Repertório de conceitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2000, p. 452. Seguindo essa lógica, poder-se-ia concluir que, se a jornada de até 6 horas de duração, equivale a 15 minutos de intervalo e a de mais de 6 horas, equivale a um intervalo de uma a duas horas (CLT, art. 71), quando a jornada é de 12 horas, seria justo que o intervalo fosse maior ou que fosse concedido mais de um intervalo. 51 Para Jorge Luiz Souto Maior, o denominado regime de 12x36 “fere, frontalmente, a Constituição”, tendo em vista que a ordem jurídica trabalhista não permite trabalho em horas extras de forma ordinária. Cf. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Mecanismos jurídicos para preservar o direito ao descanso. In: ALVES, Giovanni; AMARAL, André Luís Vizzaccaro; MOTA, Daniel Pestana (orgs.). Trabalho e estranhamento:saúde e precarização do homem-que-trabalha. São Paulo, 81 Por fim, no que diz respeito aos intervalos e às folgas adicionais, as referidas vantagens (v e vi) não correspondem à realidade, respectivamente, fática e jurídica. Quanto aos intervalos, embora a lei preveja que devam ser observados ou indenizados (CLT, 59-A, caput), o que se vê, na prática, é o empregado se privando de ir ao banheiro ou se alimentando no posto de trabalho por não ter quem lhe renda no intervalo e, por vezes ainda tendo que chegar um pouco antes ou sair um pouco depois para “passar o plantão” para o colega do próximo turno. Quanto às folgas, atualmente, por expressa disposição legal, a remuneração mensal pelo trabalho 12 x 36 “abrange os pagamentos devidos pelo descanso semanal remunerado e pelo descanso em feriados, e serão considerados compensados os feriados e as prorrogações de trabalho noturno, quando houver” (CLT, 59-A, parágrafo único).52 Reforçando a importância da restrição à jornada de trabalho, o pesquisador Bruno Klippel considera-a uma forma de efetivação do direito fundamental à saúde do trabalhador e, por conseguinte, um reflexo do princípio da dignidade da pessoa humana no direito do trabalho.53 A jornada 12 x 36 viola, portanto, em última análise, o próprio direito à saúde,54 acarretando doenças ocupacionais e acidentes de trabalho, relacionados à fadiga física e mental. Na verdade, o próprio Homero Batista Mateus da Silva reconhece entre as desvantagens da jornada 12 x 36: (i) jornada de 12 horas é extenuante; (ii) produtividade do trabalhador cai de forma acentuada; (iii) execução de outra atividade nas folgas ocasionando, além de privação do sono, ausência completa do repouso, aumento da pressão por dois trabalhos concomitantes e desgastantes, bem como ocorrendo jornada de 12 x 12; (iv) a anuência da jornada 12 x 36 LTr, 2012, p. 264. 52 Sobre o tema, posiciona-se Godinho: “No tocante aos descansos semanais remunerados, a regra do parágrafo único do novo art. 59-A da CLT está efetivamente correta, pois tais d.s.r., de fato, estão contemplados no salário mensal obreiro e devidamente compensados no regime 12 X 36 horas. Contudo, no que tange aos descansos em feriados, a regra não é tecnicamente correta, pois não existe, realmente, essa abrangência salarial e/ou compensação. Por esse motivo é que a Súmula 444 do TST, que trata da jornada de plantão 12 X 36 horas (aprovada em setembro de 2012), já esclarecia a pertinência do pagamento em dobro dos feriados trabalhados (mas não dos d.s.r.). Conforme se vê, trata-se apenas de mais um artifício para a supressão de direitos trabalhistas pela Lei n. 13.467/2017”. Cf. DELGADO, Mauricio Godinho. Op. cit., p. 1153. 53 KLIPPEL, Bruno. Jornada de trabalho e direitos fundamentais. São Paulo: LTr, 2016, p. 53. 54 SILVA, José Antônio Ribeiro de Oliveira. Flexibilização da jornada de trabalho e a violação do direito à saúde: uma análise comparativa dos sistemas jurídicos brasileiro e espanhol. São Paulo: LTr, 2013, p. 160. 82 estabelece precedente perigoso para variações, por exemplo, 24 x 72, ou seja, 24 horas consecutivas de trabalho por 72 horas de repouso.55 Entre os trabalhadores que, para melhorar sua renda, trabalham em mais de um emprego, além da mencionada jornada 12x12 (iii), não é raro que façam trocas com os colegas, submetendo-se a plantões de trabalho com 24 ou até 36 horas de duração, seguidos de 12 horas de descanso, invertendo-se completa e radicalmente a previsão legal, a qual por si só já seria maléfica à saúde. No que concerne às variações de jornada (iv), destaca-se o regime de trabalho denominado SDF, em que o trabalhador presta serviços apenas aos sábados, domingos e feriados (ou dias de ponto facultativo), em jornadas sequenciais de 12 horas, seguida cada uma delas por 12 horas de descanso. Embora não haja previsão legal que o discipline, referido regime vem sendo previsto em algumas convenções coletivas, onde se encontram cláusulas estabelecendo: trabalho em domingos e feriados, sem o correspondente pagamento em dobro; possiblidade de prestação de horas extras; férias anuais menores que trinta dias, em escalas de acordo com o número de faltas ao serviço. Se negociado dessa maneira, esse regime de trabalho diferenciado conta com todos os inconvenientes e as violações às normas trabalhistas relativas a saúde e segurança dos trabalhadores, com o gravame de desrespeitar reiteradamente o descanso semanal remunerado aos domingos e estabelecer férias necessariamente menores que trinta dias, quando nem no regime de tempo parcial há mais essa restrição (CLT, art. 58-A, §7º c/c art. 130). Apesar disso, o Tribunal Superior do Trabalho acatou a validade de instrumento normativo coletivo com o referido teor, distinguindo-o do regime de tempo parcial, o qual é previsto em lei e mais protetivo.56 Por fim, a mais prejudicial regulamentação acerca da jornada 12 x 36 reside na possibilidade de ela ser colocada em prática, inclusive em ambientes insalubres, dispensada a inspeção prévia e a permissão das autoridades competentes (CLT, art. 60, parágrafo 55 SILVA, Homero Batista da. Op. cit., p. 56. 56 Cf. Tribunal Superior do Trabalho. Processo AIRR-1352-53.2013.5.09.0004. Data de Julgamento: 15.06.2016, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 24.06.2016. Disponível em: <http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do;jsessionid=91A7762 E6366E029DD7A05D1106A7D40.tst32?conscsjt=&numeroTst=1352&digitoTst=53&anoTst= 2013&orgaoTst=5&tribunalTst=09&varaTst=0004&consulta=Consultar>. Acesso em: 04 maio 2019. 83 único). Some-se a isso o fato de que muitas empresas que adotam o regime 12 x 36 mantêm seu funcionamento 24 horas por dia, sete dias por semana. Ou seja, muitos desses trabalhadores realizam a jornada no período noturno, aos domingos e em dias feriados, causando alteração do ritmo vigília-sono e privando o trabalhador do convívio familiar e social.57 Trata-se, enfim, de uma questão de garantia de direitos sociais fundamentais, pois da mesma forma que a ordem constitucional brasileira determina que o salário mínimo deve garantir o atendimento às necessidades vitais básicas do trabalhador e sua família, ela também prevê jornada máxima, descanso semanal remunerado e férias anuais remuneradas para que esse mesmo trabalhador tenha tempo disponível para se alimentar, se educar, cuidar de sua saúde, ter acesso ao lazer, enfim, gozar dos direitos sociais. Dentro desse ponto de vista, viola a Constituição a previsão celetista de afastamento de alguns empregados do direito à limitação de jornada, seja a padrão seja qualquer outra, como faz com os arrolados no artigo 62. E em 2017, por meio da reforma trabalhista, em vez de se revogar referido dispositivo, optou-se por acrescentar a ele um terceiro inciso, incluindo na referida lista os empregados em regime de teletrabalho. A postura do legislador em relação ao artigo 62 da CLT é, portanto, reveladora da falácia discursiva da reforma consistente no argumento da modernização da lei trabalhista. Que em 1943 o rol fosse mais extenso ainda se justifica pelo fato de que o controle da jornada de quem estava fora do local de trabalho era mais difícil pelos meios existentes à época. Mais recentemente, o dispositivo passou por duas alterações, sendo que ambas restringiram os empregados não sujeitos ao controle da jornada (Lei n. 7.313, de 1985 e Lei n. 8.966, de 1994). Ora, com o desenvolvimento tecnológico, a tendência natural seria justamente essa redução das hipóteses legais ou até mesmo a supressão do dispositivo. Ao revés, a Lei n. 13.467, de 2017 ampliou o rol, excluindo o trabalhador em regime de teletrabalho do recebimento da remuneração decorrente de eventualsobrejornada realizada, presumindo-se uma incompatibilidade entre o teletrabalho e o controle de jornada. Paradoxalmente, “regula-se a relação ‘nova’ desconsiderando que as mesmas tecnologias que viabilizam o trabalho a distância viabilizam, com certo grau de segurança, 57 Sobre os efeitos do labor aos domingos na sociabilidade dos trabalhadores: MASCHIETTO, Leonel. Direito ao descanso nas relações de trabalho: o trabalho aos domingos como elemento de dissolução da família e restrição do direito ao lazer. São Paulo, LTr, 2015. 84 o controle da jornada de trabalho, ainda que por meios indiretos”. 58 Também se deixa de levar em consideração que a complexidade atual não se encontra na aferição do tempo de trabalho, mas sim na garantia do direito à desconexão, o qual costuma ser violado no teletrabalho. Cabe também ao empregador limitar o tempo que seu empregado destina ao trabalho, pois uma das desvantagens mais apontadas nessa forma de trabalho é a dificuldade em separar a vida profissional da vida pessoal, o que implica, a um só tempo, a ausência de limitação do tempo dedicado ao trabalho e, logicamente, a ausência de desconexão. O fato de o trabalho ser realizado à distância não pode ser tomado como justificativa para a ausência de limitação da jornada ou a desconsideração do direito à desconexão59. É certo que os instrumentos normativos internacionais sobre o trabalho realizado em domicílio não trazem parâmetros de fixação de jornada, mas tanto a Convenção n. 177, quanto a Recomendação n. 184 da OIT, ambas de 1996 e não ratificadas pelo Brasil, preveem a aplicação da legislação nacional em matéria de saúde do trabalho, sendo que a Recomendação, na cláusula 23, inclusive menciona expressamente que o trabalhador deve poder desfrutar de descanso diário e semanal comparável ao que têm outros trabalhadores. Da forma como foi regulado pela reforma trabalhista no Brasil (CLT, art. 75-A a 75- E), o teletrabalho – admitido como espécie do gênero trabalho à distância, mas não externo, e com uso de tecnologias de informação e comunicação –, longe de garantir o direito à desconexão, permite que a todo momento ordens sejam dadas, cobranças sejam feitas e o controle seja exercido, por meio da própria máquina. Como resume Márcio Tulio Viana, “a volta ao lar que hoje se ensaia não significa menos tempo na empresa, mas – ao contrário – a empresa chegando ao lar”.60 Neste sentido, Boltanski e Chiapello61 exemplificam como novos dispositivos informáticos permitem o gerenciamento e o acompanhamento de todas as operações, “segundo por segundo”, desde 1988, com “ferramentas de controle muito mais numerosas e sensíveis”, possibilitando um “controle em tempo real e à distância” sobre o desempenho 58 DUTRA, Renata Queiroz. Como modernizar o Direito do Trabalho: A novidade é “um paradoxo estendido na areia”. Revista Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, Centro Universitário do Distrito Federal. Brasília, DF, v. IV, n. 3, p. 94-101, set./dez. 2018, p. 97. 59 ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Op. cit., p. 47. 60 VIANA, Márcio Túlio. A proteção social do trabalhador no mundo globalizado: o direito do trabalho no limiar do século XXI. Revista LTr: doutrina, São Paulo, v. 63, n. 7, p. 885-896, jul. 1999, p. 888. 61 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 275-276. 85 de cada trabalhador. E toda vez que algumas horas – ou mesmo minutos – forem acrescentadas à jornada pelo empregador, elas são subtraídas da vida do empregado. Isso vale no início ou no final da jornada e vale também nos intervalos de tempo que deveriam ser reservados às refeições e ao descanso do trabalhador.62 As lutas pela redução da jornada de trabalho, por fim, devem ter em consideração que haverá, por parte do capital, uma tendência de acumular o uso extensivo da mão-de- obra com o seu uso intensivo e que não basta, portanto, reduzir a jornada sem reduzir direitos, como a remuneração. É preciso ainda que os trabalhadores se defendam contra a imposição de ritmos intensos e adoecedores de trabalho, como se verá no próximo tópico (seção 2.2). 62 Sobre o tema, interessante relato de inspetor de fábrica acerca dos “pequenos furtos” de tempo cometidos pelos fabricantes fraudulentos pode ser lido em: MARX, Karl. Op. cit., p. 314. 86 2.2 A intensidade da jornada Festina lente [apressa-te devagar] Oxímoro latino atribuído a Augusto, imperador romano de 27 a.C. a 14 d.C. A presente seção será dedicada ao estudo da dimensão da jornada que diz respeito a sua grandeza intensiva, isto é, a sua aferição por um viés mais qualitativo que quantitativo do tempo dedicado ao trabalho. Na primeira parte, será demonstrado de que maneiras uma jornada – ainda que de curta duração e aparentemente benéfica ao trabalhador – pode demandar maior esforço físico, concentração mental ou carga emocional do trabalhador, em prejuízo de sua saúde. Por se tratar de um tempo qualitativamente mais intenso, o que ocorre é que, paradoxalmente, em uma menor quantidade de tempo o capital faz caber mais trabalho, elevando o mais-valor extraído a partir do trabalho alheio. Essa estratégia do capital tem silenciosamente sido aperfeiçoada pelos modelos de gestão, beneficiando-se do fato de ser de mais difícil percepção, quando comparada às demais dimensões (podendo aparentar ser favorável ao trabalhador, ao ser conjugada, por exemplo, com a redução da extensão). Acrescente-se que, mesmo quando detectados os instrumentos de intensificação da jornada, os trabalhadores não dispõem de recursos jurídicos suficientes e aptos a combater o aumento de sua exploração. Assim, na segunda parte, será abordado o tratamento do tema dado pelas escolas de gestão e administração do tempo, bem como a perplexidade e debilidade da regulação jurídica. 2.2.1 Para além do relógio, o ritmo tenso e intenso: mecanismos de intensificação do trabalho Para se estudar o grau de intensidade da jornada, a primeira noção que se precisa ter em conta é que: Qualquer trabalho – autônomo ou heterônomo, assalariado ou cooperativo, escravo ou servil, camponês, operário ou intelectual – é realizado segundo determinado grau de intensidade. Ela é uma condição intrínseca a todo o trabalho concreto e está presente em todo o tipo de trabalho executado, em maior ou menor grau.63 63 DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho! A intensificação do trabalho na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 20. 87 Assim, ainda que o ritmo possa ser mais facilmente percebido no trabalho físico e na produção de bens, caracterizados pela alteração da natureza, ele também é inerente ao trabalho intelectual e à prestação de serviços. Isso significa que seja o trabalho tangível ou não, haverá uma cadência própria para seu desenvolvimento, a ser ditada pelas habilidades do trabalhador seguindo o curso natural do seu organismo, ou a ser imposta externamente. A intensidade, portanto, tem a ver com o modo de realização de uma tarefa e mais precisamente diz respeito ao quanto de energia – física, intelectual e emocional – é exigido daquele que executa o trabalho.64 Ou seja, é imprescindível levar em consideração não apenas a dimensão material, das forças exigidas sobre o corpo do trabalhador, cuja fadiga se manifesta em dores e lesões musculoesqueléticas, mas também a dimensão imaterial, impalpável, que se revela em cansaço mental, adoecimentos psíquicos e dificuldades afetivo-relacionais. A medida da intensidade, por sua vez, é pautada no empenho – além do consequente desgaste e do eventual adoecimento – da pessoa do trabalhador. Não se trata, pois, de aferir o aumento da produtividade,pois esta significa tão somente a melhoria – quantitativa ou qualitativa – dos resultados, o que pode ocorrer por outros fatores, tais como transformações tecnológicas65 ou simples mudanças na organização do trabalho, a exemplo da desburocratização, ou seja, sem necessariamente ter havido impacto no esforço exigido dos trabalhadores.66 Ademais, a extenuação causada por um trabalho intenso pode provocar insatisfação com o serviço, absenteísmo, maior número de doenças e acidentes do trabalho, enfim, levar contraditoriamente a um decréscimo na produtividade.67 Como visto, a forma de organização da produção e da distribuição de bens e serviços incentiva ou mesmo impõe às pessoas determinadas necessidades artificialmente criadas e cuja satisfação “reproduz a condição de dependência a um mesmo tempo de trabalho, isto é, sem diminuir o tempo gasto com o trabalho e, não raro, com jornadas até mais 64 DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho! A intensificação do trabalho na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 21. 65 É preciso registrar que as novas tecnologias de informação e comunicação podem tornar o trabalho mais denso pelo menos de quatro maneiras distintas: a tecnologia torna-se um suporte- chave de dispositivos organizacionais; ela possibilita a ordenação dos fluxos de atividades; ela controla com precisão o uso do tempo pelo trabalhador; ela torna o trabalho mais abstrato e com sobrecarga de informações. Ibid., p. 160-161. 66 Ibid., p. 25-29. 67 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Op. cit., p. 156. 88 extensas”68 – e densas, pode-se completar – ainda que novos aparatos tecnológicos permitam uma maior produtividade. A questão que se coloca acerca dessa dimensão do tempo de trabalho ocorre quando se exige do trabalhador um grau de intensidade maior do que por ele esperado. Embora pouco debatida no meio jurídico, essa é uma situação relativamente comum, pois, em regra, o contrato de trabalho explicita apenas o horário de trabalho e, por conseguinte, o empregado fica ciente de antemão acerca do número de horas de trabalho a ser realizado. Contudo, a intensidade do labor não costuma ser objeto de discussão no momento da contratação, deixando, por vezes, um hiato entre as expectativas do empregado e as do empregador.69 O conflito acerca das dimensões da jornada é, pois, inerente à relação de trabalho alienado, tendo em vista que “o empregador compra algo de que ele não pode se apropriar totalmente, pois tanto o tempo como as capacidades físicas ou psicológicas não podem ser dissociadas do trabalhador”.70 Por um lado, a empresa visa à máxima objetivação do tempo e da capacidade dos trabalhadores; por outro, para estes “a tentativa de desassociá-los de seu tempo e de seus gestos de trabalho é fonte de muitos sofrimentos, frustrações e conflitos, afinal é muito difícil renunciar a dimensões que os constituem como sujeitos”. Dessa forma, à intensificação física ou psicológica da jornada, revidam os trabalhadores com a busca de se reapropriar subjetivamente do seu tempo e de seus movimentos.71 Assim, como visto, na dimensão da extensão a pergunta cabível era “o que é uma jornada de trabalho?”, 72 questionamento feito por Karl Marx, em 1867, para saber acerca da duração da jornada; já na dimensão da intensidade a pergunta fica por conta do filósofo francês Cornelius Castoriadis, em 1958: “o que é uma hora de trabalho?”,73 para se saber quanto trabalho cabe em uma hora. Partindo dessas premissas, a questão que se coloca é a de quão intensa é a execução de uma atividade laboral. Ocorre que, no interior do processo produtivo, o tempo para se cumprir determinada tarefa, por ser um tempo de trabalho humano, está sujeito às 68 TENCA, Álvaro. Op. cit., p. 52. 69 DAL ROSSO, Sadi. Op. cit., p. 94. 70 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 33. 71 LINHART, Danièle; MOUTET, Aimée apud CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 33. 72 MARX, Karl. Op. cit.., p. 306-307. 73 CASTORIADIS, Cornelius apud SILVA, Josué Pereira. Op. cit., p. 39. 89 vicissitudes humanas. De modo que enquanto os limites da jornada podem ser ajustados previamente por meio do contrato, “o conteúdo da jornada, isto é, a quantidade de trabalho efetivo contida numa jornada de trabalho, ou mesmo numa hora de trabalho, só pode ser conhecido a posteriori”.74 Nesta toada, por um lado, o empregador que pagará pela hora trabalhada tende a fazer com que nela caiba mais trabalho; por outro lado, o empregado tende a resistir ao incremento da intensidade. Tornando mais concreto o tema, desde o fim do século XX, pesquisadores da sociologia do trabalho vêm se debruçando sobre o tema, tal como o fez o brasileiro Sadi Dal Rosso, apontando inclusive os principais mecanismos utilizados pelo empregador para impor um ritmo maior ao trabalho, promovendo sua intensificação, a saber: alongamento das jornadas; incremento de velocidade; acúmulo de atividades; exigência de polivalência; gestão por resultados.75 Como as dimensões do tempo de trabalho são interpenetráveis, a redução e o alongamento da jornada – já oportunamente analisados como pertencentes à dimensão da duração da jornada – podem vir a densificar o trabalho pela adequação dos horários dos trabalhadores aos tempos de demanda do mercado, ou seja, flexibilizando-os – tema a ser explorado na distribuição do tempo de trabalho (seção 2.3). Por outro lado, o agravamento do ritmo é a mais antiga forma de intensificação do trabalho, utilizada diante da ilegalidade ou impossibilidade física de se alongar a duração da jornada. Imprimir maior velocidade ao trabalho, usando ou não de novas tecnologias, demanda mais energia do trabalhador e por vezes impede seus microtempos de descanso, provocando significativo desgaste à sua saúde, sobretudo corporal. Ademais, não se deve deixar de reconhecer que a mera cobrança por mais agilidade também pode gerar estresse, aumento da ansiedade e adoecimento psíquico. Já o enxugamento dos quadros de empregados das empresas pode vir a ter efeito sobre a densidade do trabalho na medida em que as funções desempenhadas por vários passam a ser exigidas de poucos remanescentes. É preciso lembrar que o determinante na intensificação é a acumulação de tarefas, já que a redução de pessoal pode ser acompanhada de redução de serviço, mantendo (ou até reduzindo) o grau de intensidade, ao mesmo tempo em que o acúmulo pode advir de simples aumento de serviço – sem passar 74 CASTORIADIS, Cornelius apud SILVA, Josué Pereira. Op. cit., p. 41. 75 DAL ROSSO, Sadi. Op. cit., p. 108. 90 necessariamente por redução de pessoal. Enfim, o acúmulo de atividades sobre os ombros de um mesmo trabalhador e a exigência de versatilidade no desempenho de funções76 são claramente formas de intensificação do labor. A seguir, segundo Sadi Dal Rosso, a polivalência não se limita apenas à capacidade de executar diferentes trabalhos, mas significa “a capacidade de realizar diversos serviços ao mesmo tempo, o que significa essencialmente realizar mais trabalho dentro da mesma duração da jornada”.77 Para atingir essa forma de intensificação, as empresas, desde a contratação, selecionam pessoal mais qualificado, competente e apto a desempenhar mais funções, mas por um mesmo salário.78 A última forma mencionada de intensificar o labor é o estabelecimento de metas e a cobrança de resultados, ou seja, a gestão por resultados. A exigência de comprometimento do trabalhador com os interesses da empresa por vezes é total, ultrapassando os limites temporais e espaciais e invadindo os momentos e locais de descanso. Ademais, como visto, novos sistemas de controle informatizados têm sido utilizados para fiscalizar – de maneira muito mais severa e eficienteque os fiscais e seus cronômetros – o trabalho dos empregados, permitindo a avaliação de desempenho e a consequente remuneração por produtividade.79 A implacável busca por qualidade total, implementada inclusive por programas específicos e divisão em equipes, acaba levando a um controle do sujeito, por meio da competitividade e da fiscalização de um funcionário por outro. Outro pesquisador do fenômeno da intensificação do tempo de trabalho, o italiano Pietro Basso, afirma que a jornada tem se tornado “cada vez mais intensa, longa e pesada”,80 explicando que a tendência é combinar o prolongamento da jornada com uma “asfixiante 76 Atualmente, o setor terciário representa o maior empregador, sendo que a versatilidade demandada de seus funcionários atinge até mesmo a designação dos próprios cargos, que passaram por uma redefinição nominativa: passaram a ser denominados, por exemplo, de “operadores”, “gerentes” ou “analistas”, visando permitir o seu aproveitamento em diversas funções. Sobre o setor terciário como maior empregador, Cf. POCHMANN, Márcio. Trabalho e formação. Educ. Real., Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 491-508, maio/ago. 2012. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/edu_realidade> Acesso em: 10 ago. 2018. Sobre as novas designações genéricas dos cargos: DAL ROSSO, Sadi. Op. cit., p. 128. 77 DAL ROSSO, Sadi. Op. cit., p. 123. 78 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 277. 79 Exemplos do uso de novas tecnologias para aumentar a intensidade do trabalho podem ser encontrados em: BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 275-277. Quanto à remuneração por resultados: Ibid., p. 278. 80 BASSO, Pietro. Tempos modernos, jornadas antigas: vidas de trabalho no início do século XXI. Trad. Patrícia Villen. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018, p. 11. 91 intensidade”, com abertura de estabelecimentos comerciais em domingos, feriados e períodos noturnos, bem como por meio do aumento de velocidade de execução de tarefas repetitivas e supressão das pausas.81 Já o sociólogo francês Jean-Pierre Durand retoma Marx para falar em expurgo da porosidade da jornada, isto é, densificação do trabalho, eliminando os tempos mortos, preenchendo cada instante de forma produtiva, não deixando margem para pequenas pausas. E adota o termo “flux tendu” para designar o princípio pós-fordista do fluxo tensionado da produção cuja organização visa à ocupação contínua do corpo e da mente do trabalhador, sem tempo de recuperação entre uma atividade e outra, exigindo-se-lhe múltiplas intervenções, ao mesmo tempo rápidas e eficazes.82 No mesmo sentido, os também franceses Boltanski e Chiapello apontam a precarização e a terceirização como formas de tornar o trabalho mais intenso, pois a primeira leva ao pagamento apenas do tempo efetivamente trabalhado, sem incluir as pausas que antes eram remuneradas, enquanto a segunda possibilita a cobrança de um grau de intensidade maior, em comparação com a contratação direta.83 Ademais, acrescentam que os novos métodos de administração criam um ambiente de concorrência dentro da empresa e transferem cursos de formação e manutenção da força de trabalho para o tempo fora do trabalho, como será visto (seção 3.1). Antes de adentrar nos modelos de gestão que conferem um suporte teórico- científico para a intensificação do trabalho, é preciso sublinhar que um dos seus desdobramentos mais devastadores e que torna o estudo profundamente relevante é o fato de que todo esse controle do tempo e imposição de uma racionalidade do trabalho cada vez mais intensa provocam danos à saúde dos trabalhadores, com aumento do ponto de vista quantitativo do número de atestados médicos, de acidentes do trabalho, de 81 Ibid., p. 14-15. O autor narra que a supressão de pausas que teria levado a uma situação vexatória um trabalhador do grupo Fiat-Chrysler cujo direito de ir ao banheiro foi negado, e que acabou urinando em si mesmo. 82 DURAND, Jean-Pierre. A refundação do trabalho no fluxo tensionado. Trad. Leonardo Gomes Mello e Silva. Revista de Sociologia da USP – Tempo Social, São Paulo, v. 15, n. 1, p. 139-158, abr. 2003. 83 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 272-273. István Mészáros corrobora esse entendimento, afirmando que, ao mesmo tempo em que crescem e se alastram a precarização e a insegurança, o que resta de trabalho estável “experimenta uma pressão em direção à intensificação sem precedentes, e em defecção à plena disponibilidade para a submissão aos mais diversificados horários de trabalho”. MÉSZÁROS, István. Op. cit. 92 adoecimentos e até de óbitos decorrentes da exaustão e esgotamento psicofísico do trabalhador.84 Neste sentido, narra a filósofa francesa Simone Weil, em uma de suas cartas a Sra. Albertine Thévenon, em 1934-1935, que a experiência de trabalhar na fábrica não lhe trouxe sentimentos de revolta, mas, pelo contrário, de docilidade resignada, que ela atribuía, além das ordens recebidas, à velocidade imposta aos movimentos, a qual impedia o pensamento, matando a sua própria alma.85 Atualmente, segundo Philippe Zarifian,86 a disciplina do trabalho tem se manifestado na forma de prazos e metas, deslocando a pressão dos gestos corporais para o pensamento, prosseguindo na contínua degradação das condições de trabalho.87 Para o sociólogo francês, a disciplina do tempo, apesar de preencher a função de organização social, contribuiu para o exercício de uma violência destruidora das individualidades corporais. Explica ainda que existe um tempo-devir, afetivo, que cada um precisa para executar uma tarefa, o qual, todavia, é completamente desprezado pela imposição de um tempo espacializado-cronométrico, usado para reduzir trabalhos concretamente heterogêneos a uma mesma medida temporal, o valor-trabalho. Dessa forma, experiências de aceleração, compressão, elasticidade e fragmentação do tempo – realizadas no campo da gestão de recursos humanos na tentativa de obter maior produtividade – a partir do aperfeiçoamento de formas de controle e dominação dos sujeitos, fazem com que os trabalhadores apresentem escalas de percepção temporal diferentes dos empregadores, uma vez que estas são variáveis em função da classe social a que pertencem os indivíduos.88 Dos três aspectos de esperança que o trabalhador deposita no trabalho considerado 84 DAL ROSSO, Sadi. Intensidade e imaterialidade do trabalho e saúde. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 65-91, mar./ago. 2006. O autor registra ainda que, do ponto de vista qualitativo, tem havido a seguinte alteração: enquanto a intensificação no trabalho material acarreta lesões físicas e adoecimentos do corpo do trabalhador, nas atividades imateriais os efeitos nocivos referem-se sobretudo a seus aspectos psíquicos e relacionais. 85 WEIL, Simone. Op. cit., p. 18-19. 86 ZARIFIAN, Philippe. O tempo do trabalho: o tempo-devir frente ao tempo espacializado. Tempo Social Rev. Sociol. USP, São Paulo, p. 1-18, out. 2002. 87 Essa degradação caracteriza-se também pelo aumento das “exigências de atenção, vigilância, disponibilidade e concentração” . Cf. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 275. 88 GURVITCH, Georges. The spectrum of social time. Dordrecht-Holland: D. Reidel Publishing Company, 1964, p. 86 e ss. 93 útil e digno – a esperança de descanso, a de fruto e a de prazer do trabalho em si –,89 o trabalho intenso: põe em risco o primeiro, pois o tempo de descanso deve ser maior que o tempo necessário à recuperação da força empregada no trabalho, a qual é bastante grande no trabalho intenso; pode até vir a suprir o segundo, por meio da remuneração; porém quase invariavelmente sacrifica o terceiro, já que o ritmo intenso desumaniza o esforço e impede o verdadeiro desfruteda atividade laboral e criativa. Até porque a velocidade imposta ao trabalho é, muitas vezes, incompatível com a qualidade do produto ou serviço que dele resulta, e a quantidade em detrimento da qualidade retira o prazer do processo produtivo, transformando o trabalhador num “observador obsessivo do relógio”,90 angustiado para estar fora do ambiente laboral. Para entender melhor como é determinado o grau de intensidade do trabalho no sistema capitalista, segue um breve aporte teórico, passando por um panorama prévio às escolas de gestão. Assim – apesar de ainda hoje ser menos estudado que a duração da jornada de trabalho –, o tema da intensificação já estava presente no final do século XIX, no pensamento de Karl Marx, o qual denunciou a tendência histórica da acumulação capitalista, no sentido de extrair de forma crescente mais-valor dos operários. Assim, diante de uma redução forçada da jornada de trabalho (imposta pelo Estado após a revolta crescente da classe operária), os donos dos meios de produção passaram a tentar compensar essa restrição por meio de “um preenchimento mais denso dos poros do tempo de trabalho”. Em outras palavras: Tão logo a redução da jornada de trabalho – que cria a condição subjetiva para a condensação do trabalho, ou seja, a capacidade do trabalhador de exteriorizar mais força num tempo dado – passa a ser imposta por lei, a máquina se converte, nas mãos do capitalista, no meio objetiva e sistematicamente aplicado de extrair mais trabalho no mesmo período de tempo. Isso se dá de duas maneiras: pela aceleração da velocidade das máquinas e pela ampliação da escala da maquinaria que deve ser supervisionada pelo mesmo operário, ou do campo de trabalho deste último.91 Em seguida, no início do século XX, Max Weber, apontou o salário por tarefa como tentativa de o empresário moderno aumentar a intensidade do trabalho.92 Porém, muitas 89 MORRIS, William. Un esfuerzo inútil. In: BAIGORRIA, Osvaldo (org.). Op. cit., p. 26-36. 90 WOODCOCK, George. La dictadura del reloj. In: BAIGORRIA, Osvaldo (org.). Op. cit., p. 37- 42. 91 MARX, Karl. Op. cit., p. 484. 92 WEBER, Max. Op. cit., p. 52-56. 94 vezes o trabalhador preferia trabalhar menos e continuar ganhando a mesma quantia a que já estava habituado, contentando-se com a mera satisfação de suas necessidades tradicionais, a ter que se esforçar mais para ganhar mais. Ou seja, a solução à época passava por mudar a mentalidade, fruto de um longo processo de educação religiosa para incutir nos trabalhadores o dever de trabalhar e o espírito de poupança, como visto (seção 1.2). Claro que os trabalhadores não aceitaram de forma pacífica a inserção social do espírito exigido pelo capitalismo.93 Houve e ainda há resistências. Todavia, atualmente, com os modelos de gestão cada vez mais aprimorados, muitos indivíduos são impregnados do novo espírito do capitalismo, o que torna relativamente fácil convencê-los das vantagens de se trabalhar “menos horas”, quando na verdade, produz-se cada vez mais a cada hora. 2.2.2 Modelos de gestão, a perplexidade do Direito e a consequente debilidade jurídica Quando a duração da jornada podia ser alongada até os limites da exaustão dos trabalhadores, a intensificação não se apresentava como uma questão tão latente. Porém, com os avanços dos modelos de gestão, aos trabalhadores foram impostos não só a duração do trabalho, mas também o ritmo, os métodos e os processos em si.94 Assim, a partir da regulamentação da extensão da jornada, a sua intensificação passou a ser objeto de estudo das escolas de gestão do trabalho, destacando-se o taylorismo, o fordismo e o toyotismo.95 Essas formas técnicas de organizar o trabalho foram incorporadas aos sistemas produtivos, como meio de controle social do trabalho humano empregado na produção.96 O primeiro deles foi elaborado, em 1911, pelo engenheiro norte-americano Frederick Winslow Taylor, o qual, pregando a identidade de interesse entre empregadores e empregados, defendia a substituição de métodos empíricos por métodos científicos, o que traria resultados econômicos promissores aos empregadores, com elevação dos salários dos 93 Ibid., p. 61. 94 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 28. 95 Visando ao rigor conceitual, Álvaro Tenca alerta que é preciso atenção no uso dos termos relacionados às escolas de gestão, “pois eles se referem, quase sempre, a práticas datadas e localizadas”. Assim, por exemplo, as ideias tayloristas foram aplicadas nos Estados Unidos no âmbito da iniciativa privada; enquanto na Itália, na Alemanha e na União Soviética elas foram disseminadas diretamente pelo poder estatal. TENCA, Álvaro. Op. cit., p. 28. 96 PINTO, Geraldo Augusto. A organização do trabalho no século 20: taylorismo, fordismo e toyotismo. São Paulo: Expressão Popular, 2007. 95 trabalhadores. Para se chegar a uma “administração científica do trabalho”, seriam necessários princípios e leis próprios e claramente definidos, e consequente padronização e classificação de insumos, ferramentas, condições de trabalho, métodos, processos e produtos. Os marcos do taylorismo que aqui se destacam são, além da divisão de trabalho entre preparação e execução,97 o rígido controle do tempo e do movimento, em franco combate ao desperdício e à “vadiagem”98 no trabalho, visando atingir o máximo de prosperidade (“menor gasto de esforço humano, combinado com o menor gasto das matérias-primas”).99 Seguindo os preceitos tayloristas de separação do trabalho intelectual e manual, de padronização do maquinário e de simplificação e controle de movimentos dos trabalhadores, o empresário norte-americano Henry Ford, em 1913, criou as linhas de montagem (“assembly lines”), que permitiam a produção em série e a baixo custo de veículos. Em relação à intensificação do trabalho, o fordismo, embora oferecesse altos salários – transformando os trabalhadores em potenciais consumidores dos carros por eles produzidos e criando condições para o desenvolvimento de uma sociedade do consumo100 – e uma jornada relativamente curta para a época – como visto, foi um dos pioneiros na adoção da jornada de 8 horas diárias –, exigia um ritmo acelerado de trabalho, estabelecendo 97 Taylor dividia o trabalho de preparação entre quatro agentes: “(1) O encarregado das ordens de execução, que acompanha as encomendas, o planejamento de execução e o seu andamento, não só de elementos que vão ser trabalhados, como ainda dos que contribuem para o trabalho. (2) O encarregado das fichas de instrução, que trata das minúcias da execução, de acordo com os planejamentos. (3) O encarregado do tempo, que registra os tempos, faz a sua apuração e controle, efetua a apuração do custo de trabalho realizado e chama a atenção dos executantes para a obediência à ficha de instrução, no que respeita aos assuntos ligados ao tempo abonado e ao salário a ser atribuído. (4) O encarregado da disciplina ou relações humanas, que trata da administração do pessoal, recrutamento, seleção, comportamento, dispensa, etc.”. Igualmente a execução também exigia outros quatro indivíduos: “(1) O encarregado-geral, para o preparo geral do trabalho a ser executado: suprimento de matéria-prima, utensílios, etc.(2) O encarregado da fabricação, para controlar o andamento dos trabalhos e o aperfeiçoamento dos trabalhadores. (3) O encarregado da inspeção, para controlar a qualidade dos produtos. (4) O encarregado da conservação, para inspecionar a limpeza, a conservação e a reparação dos equipamentos, mormente máquinas, zelando para que funcionem da melhor forma”. Cf. TAYLOR, Frederick Winslow. Princípio de administração científica. Trad. Arlindo Vieira Ramos. 8. ed. reimpr. São Paulo: Atlas, 2012, p. 15. 98 A vadiagem aque se refere o autor diz respeito à indolência e à preguiça dos trabalhadores, a ser extirpada com métodos científicos, desde a seleção e treinamento dos empregados, bem como planejamento, vigilância e bonificação (ou punição) pelo cumprimento (ou não) das tarefas determinadas. Cf. TAYLOR, Frederick Winslow. Op. cit., p. 23. 99 TAYLOR, Frederick Winslow. Op. cit., p. 19. 100 TENCA, Álvaro. Op. cit., p. 67. 96 uma política de metas a serem alcançadas.101 Segundo o próprio Ford, a pressão para se fazer melhor e mais rápido resolveria quase todos os problemas da fábrica.102 Porém, se por um lado o modelo fordista atingiu o êxito em termos de produtividade, por outro, a fragmentação das tarefas e a imposição de horários conduziu – e ainda conduz – à fadiga, à desmotivação e ao tédio dos trabalhadores, levando ao desinteresse, à frustração e à insatisfação no trabalho.103 Na primeira metade do século XX, merecem destaque dois fatos ocorridos no Brasil, dentro do contexto taylorista-fordista. Em 1927, Henry Ford resolveu implantar no estado do Pará, às margens do Rio Tapajós, uma espécie de cidade-empresa, denominada Fordlândia. A ideia era aproveitar o clima equatorial das terras brasileiras para a plantação de seringueiras com intuito de extração e beneficiamento do látex, a partir do qual seriam feitos os pneus dos automóveis fabricados nos Estados Unidos. Contudo, o projeto foi um fracasso, tendo sido encerrado em 1945, tanto por causa de problemas no plantio das árvores, quanto pela não adaptação dos trabalhadores locais à organização fordista do trabalho. Assim, assinala-se o descontentamento dos trabalhadores com o rigoroso regime de horários e até de alimentação impostos pelo padrão fordista, numa tentativa de controlar o cotidiano e os tempos e modos de vida dos trabalhadores e suas famílias.104 O segundo ponto foi a criação, em 1931, do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), associação privada situada em São Paulo, com o objetivo de difundir os princípios, métodos, regras e processos da organização científica do trabalho, por meio de cursos oferecidos e publicações periódicas. Nos anos que se seguiram, a instituição cresceu e passou a desempenhar “um papel dos mais importantes na vasta empresa voltada para o controle do tempo”,105 sobretudo na formação profissional. Assim, registra-se, a 101 Sobre o grau de intensidade imposto aos trabalhadores pelo sistema fordista, uma crítica que se popularizou foi a do filme “Tempos Modernos”, em que o protagonista tenta exaustivamente acompanhar o ritmo da linha de montagem até sofrer um colapso nervoso repetindo ininterruptamente o movimento laboral de apertar parafusos. Cf. TEMPOS Modernos. Direção: Charlie Chaplin. Nova Iorque: United Artists, 1936. 1 DVD (87 min.). 102 FORD, Henry. Minha vida e minha obra. In: FORD, Henry. Henry Ford: por ele mesmo. Sumaré, SP: Martin Claret, 1995, p. 107-159. 103 FRIEDMANN, Georges. O trabalho em migalhas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p. 32 e 65. 104 Cf. GRANDIN, Greg. Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva. Trad. Nivaldo Montingelli Júnior. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. 105 TENCA, Álvaro. Op. cit., p. 40. 97 inserção da racionalidade taylorista do trabalho também no país.106 A partir da década de 1970, ocorreu um declínio do fordismo, seguido pela ascensão do toyotismo, modelo criado por um engenheiro mecânico, de nacionalidade japonesa. Taiichi Ohno inovou ao aumentar a produtividade por meio da absoluta eliminação de desperdícios, base apoiada em dois pilares: fluxo de produção just in time e autonomação. A produção just in time visa à redução de prazos de entrega do produto ao cliente, com enxugamento de inventário, produção e estocagem (lean production); já a autonomação consiste na automação com um toque humano, isto é, máquinas acopladas a dispositivos de parada automática para controle de qualidade (um trabalhador supervisiona visualmente diversas máquinas, operando diversos processos). Assim, o toyotismo acarreta a redução do número de trabalhadores, bem como a eliminação de movimentos que sejam considerados desnecessários ou que não tenham valor adicionado (que não signifiquem algum tipo de processamento), de forma que os operários remanescentes ficam sujeitos a uma intensificação do labor, seja pela exigência de multifuncionalidade, seja pelo controle de seus movimentos, extinguindo-se as pausas.107 Dessa forma, pode-se concluir, com Christian Mañas, que: A intensificação do trabalho para extrair aumentos de produtividade não se altera ao passar do fordismo-taylorismo para a lógica pós-fordista (ou toyotista). O que muda é a sua forma. Sob o primeiro paradigma a extração ocorre mediante a especialização do trabalhador, parcelizando-o e por meio da fragmentação de tarefas. Já no segundo, a racionalização do trabalho procede pela multifuncionalidade dos trabalhadores, transformando-os em operários polivalentes.108 Como visto, muitas são as formas pelas quais o trabalho prestado a outrem pode ser intensificado: na organização taylorista-fordista, as atividades laborais desempenhadas pelo empregado são cronometradas e altamente especializadas, com controle da cadência e incremento da velocidade laboral; na organização toyotista, elas seguem controladas pelo 106 O IDORT acabou, depois, transbordando suas ideias em artigos, divulgados por meio de sua revista mensal, até para a moradia do trabalhador, ou seja, a racionalidade do trabalho imbricou os espaços íntimos e a forma de organização do tempo livre das pessoas. Cf. CORREIA, Telma de Barros; ALMEIDA, Caliane Christie Oliveira de. Habitação econômica no Brasil: o IDORT e sua revista (1932-1960). Risco: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, Online, n. 17, p. 35- 49, 2013. Em 2014, o IDORT encerrou suas atividades. 107 OHNO, Taiichi. O sistema Toyota de produção: além da produção em larga escala. Porto Alegre: Bookman, 1997. 108 MAÑAS, Christian Marcello. Tempo e trabalho: a tutela jurídica do tempo de trabalho e tempo livre. São Paulo: LTr, 2005, p. 68. 98 empregador, que passa, no entanto, a estabelecer metas e a exigir polivalência do empregado, diante do acúmulo de atividades decorrente do enxugamento de pessoal – o trabalhador deve agora cuidar de várias máquinas ao mesmo tempo, cada uma delas executando uma função.109 Sobre a intensificação e aceleração das tarefas como características da condição pós- moderna, David Harvey enumera: Os telefonistas da AT & T assinam um contrato segundo o qual devem atender um telefonema a cada 28 segundos, os motoristas de caminhão se impõem extremos de resistência e quase morrem tomando pílulas para permanecer acordados, os controladores de vôo passam por extremos de tensão, os operários da linha de produção usam drogas e álcool, e isso faz parte de um ritmo diário de trabalho fixado pela obtenção de lucros, e não pela elaboração de escalas de trabalho humanos.110 Mesmo diante desse cenário, ainda hoje, pelo menos do ponto de vista jurídico, existe uma debilidade de tratamento do tema, levando a uma perplexidade normativa diante das questões que se colocam nesta dimensão do tempo de trabalho. Assim, diferentemente do que ocorre com as dimensões da extensão e da distribuição da jornada, para as quais existem limitações jurídico-normativas, inclusive de cunho constitucional, no que concerne à dimensão da intensidade, o trabalhador conta com poucas proteções legais, ficando à mercê da sua própria capacidade de resistência e organização coletiva. Ilustrativamente, apesar do disposto na vigente Constituição Federal acerca da proteção da relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa (CF, art. 7º, I),111 não é rara a dispensa de empregadoque não tenha alcançado as metas exigidas, 109 No campo da administração, estudos mais recentes dedicados ao tema da percepção do tempo indicam cinco dimensões temporais, quais sejam: a policronicidade, isto é, a escolha, consciente ou não, de se envolver em mais de uma tarefa ou evento simultaneamente; a velocidade, ou seja, o ritmo; a pontualidade; a profundidade temporal, que é a noção de distância temporal entre passado e futuro; e o arrastamento ou ajustamento do passo de uma atividade para se adequar a outra atividade ou ao passo de outra pessoa. Cf. BLUEDORN, Allen C.; JAUSSI, Kimberly S. apud PAIVA, Kely César Martins de et al. Quanto tempo o tempo tem? Um estudo sobre o(s) tempo(s) de gestores do varejo em Belo Horizonte. Revista O&S, Salvador, v. 18, n. 59, p. 661-679, out./dez. 2011. 110 HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 17. ed. São Paulo: Loyola, 2008, p. 211-212. 111 Registre-se que se trata o referido dispositivo de norma de eficácia contida, capaz de surtir efeitos, mesmo que ainda não tenha sido editada a lei complementar a que se refere. Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 261- 263. Sobre o tema, consultar a Convenção n. 158 da OIT, a qual veda a despedida arbitrária, 99 ainda que tenha se empenhado para tal ou ainda que a meta fosse inalcançável ou alcançável apenas mediante um esforço descomunal. Assim, a ameaça de demissão e o contexto de desemprego elevado servem a uma gestão por medo e a um enfraquecimento da capacidade de resistência dos empregados.112 Ainda no plano jurídico-constitucional, uma forma de se proteger os trabalhadores contra os artifícios de intensificação da jornada passa pela constatação de que o direito ao descanso, à desconexão e ao não trabalho são perspectivas do direito à saúde (CF, art. 6º), compreendendo a higidez física e mental dos trabalhadores. Assim, se por um lado deve ser tutelado o direito constitucional a um meio ambiente de trabalho seguro, saudável, adequado e equilibrado; por outro, é preciso que o empregador não imponha uma jornada extensa e exaustiva durante o trabalho e tampouco exija uma disponibilidade ininterrupta do trabalhador nem interfira indevidamente na sua esfera existencial. Para o economista brasileiro Marcio Pochmann, com as novas tecnologias, surgem novas doenças do trabalho causadas pela profunda intensificação no local de trabalho e alongamento da jornada para além do local de trabalho.113 Em situações extremas, a cobrança abusiva por resultados gera casos de assédio moral, acidentes de trabalho, depressão,114 síndrome de burn-out (esgotamento profissional) e, em casos mais extremos, o cansaço e a exaustão podem levar a suicídio e karoshi115 (morte por excesso de trabalho). A produção capitalista “prolonga o tempo de produção do trabalhador durante certo período exigindo apresentação de justificativa pelo empregador que manifestar intenção de romper o vínculo contratual. Referida Convenção foi aprovada pela OIT em 1982 e ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 68, de 1992 (aprovação) e do Decreto n. 1.855, de 1996 (promulgação). Porém houve denúncia da Convenção, por meio do Decreto n. 2.100, de 1996. Desde 2003, está sob julgamento a ADI 1625, em que se discute a inconstitucionalidade formal do decreto presidencial por meio do qual foi dada ciência da denúncia da convenção, pois se trata de competência exclusiva do Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (CF, art. 49, I). 112 Ademais, a própria capacidade de resistência dos trabalhadores é colocada em xeque, a partir do entendimento de que o trabalho não se encontra na esfera da liberdade, mas da necessidade. Cf. VIANA, Márcio Túlio; TEODORO, Maria Cecília Máximo. Op. cit. 113 POCHMANN, Márcio. Op. cit. 114 Segundo Maria Rita Kehl, o capitalismo em estágio avançado não se limita a apropriar-se do tempo de vida do trabalhador, mas se apropria da dimensão subjetiva das pulsões, dos prazeres, dos afetos, do gozo. Para a autora, isso leva ao crescimento do número de casos de depressão como um sintoma social do capitalismo contemporâneo. Cf. KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 95-96. 115 MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. Trad. Ana Cotrim e Vera Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 150. 100 mediante o encurtamento de seu tempo de vida”; 116 ora, “o trabalho que constrói riquezas e impulsiona o progresso não pode destruir o homem, ou apressar sua morte”. 117 Apesar de o karoshi ser apontado como um efeito colateral do modelo japonês toyotista,118 a morte por excesso de trabalho – diga-se trabalho livre, em contraposição ao trabalho escravo – já ocorria desde antes das escolas de gestão do tempo e dos modelos de produção taylorista, fordista ou toyotista. Karl Marx inclusive relatou a morte prematura de uma trabalhadora aos vinte anos de idade, por simples sobretrabalho, em 1863: “Mary Anne Walkley morreu devido às longas horas de trabalho numa oficina superlotada e por dormir num cubículo demasiadamente estreito e mal ventilado”.119 As suas horas de trabalho, além de longas, eram intensas, pois trabalhava numa das melhores casas de moda de Londres e durante a alta estação tinha que concluir em pouco tempo vestidos de baile para as damas. Situação próxima dos atuais trabalhadores em domicílio, pagos por peças e trabalhando em condições insalubres, por longas e intensas jornadas. Tendo em vista a gravidade da questão e os abusos praticados pelos empregadores, no Brasil, desde 2003, a imposição ao trabalhador de jornada exaustiva passou a ser uma das formas tipificadas de crime de redução à condição análoga a de escravo (CP, art. 149, caput). Ressalta-se que para esta proteção jurídica, a jornada exaustiva não se caracteriza apenas pelo número excessivo de horas, mas também pelo trabalho intenso e degradante, ou seja, o problema pode não ser quantitativo (número de horas), mas qualitativo (como o trabalho é realizado).120 Como se pode concluir, existe uma espécie de perplexidade do direito brasileiro diante da intensidade do trabalho e – mais grave – com ênfase na falta de legislação trabalhista sobre o tema, mesmo depois da reforma trabalhista (Lei n. 13.467, de 2017),121 116 MARX, Karl. Op. cit., p. 338. 117 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Op. cit., p. 102. 118 WATANABE, Ben apud ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 11. ed. São Paulo: Cortez Editora; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2006, p. 38. 119 MARX, Karl. Op. cit., p. 327-328. 120 BRASIL. Manual de combate ao trabalho em condições análogas às de escravo. Brasília: MTE, 2011. 121 No texto da CLT não há regulamentação acerca do grau de intensidade do trabalho. Tanto é assim que o radical da palavra “intensidade” aparece poucas vezes e ainda assim relacionada à intensidade de agentes insalubres (artigos 189, 191 e 200) e à intensidade do sofrimento ou humilhação, a ser considerada para fins de reparação de danos extrapatrimoniais decorrentes da relação de trabalho (art. 223-G, incluído pela reforma trabalhista). No sentido da intensidade do 101 a despeito dos impactos diretos na saúde e na vida dos trabalhadores. O próprio Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) se posiciona pela necessidade de o tema ser objeto de legislação específica e denegociação coletiva, com objetivo de se promover, entre outros: o estabelecimento e controle do ritmo de trabalho; a criação de comissões para analisar a relação entre ritmo de trabalho e acidentes, ritmo de trabalho e doenças do trabalho; a discussão da relação entre o estabelecimento de metas e o ritmo de trabalho; a necessidade de pausas coletivas e individuais.122 Ademais, diante do exposto, é preciso se reconsiderar a luta pela redução da jornada por si só, isto é, sem as devidas garantias, pois, consoante o professor Márcio Túlio Viana: Graças à automação, aos novos métodos de organização e ao terror do desemprego, oito horas de trabalho podem exigir o esforço de doze. O operário de qualidade total economiza para o empregador contratos novos e horas-extras: melhor do que elastecer a jornada é intensificar o trabalho dentro dela.123 Portanto, interessante notar como as dimensões do tempo de trabalho não são estanques: a redução na duração da jornada pode acarretar, numa forma de compensação, maior grau de intensidade, além de uma distribuição flexível das horas, como será abordado a seguir.124 Ou seja, a redução da jornada é uma pauta legítima dos trabalhadores, mas deve ser levada em consideração todas as dimensões da jornada, sob pena de o trabalhador trabalhar menos horas, mas num grau de intensidade elevado e com horários flexibilizados, atendendo às necessidades da empresa e deixando o trabalhador afetado “em sua raiz vital”.125 labor em si mesmo, só há regulação específica do serviço ferroviário (artigos 237, 243, 245, 246 e 247). A palavra velocidade aparece no serviço de telefonia, telegrafia submarina e subfluvial, radiotelegrafia e radiotelefonia (art. 228) e motorista profissional (art. 235-C). Não há registros da palavra “ritmo”. 122 DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Redução da jornada de trabalho: uma luta do passado, presente e futuro. Nota Técnica n. 87, abr./2010, p. 7. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/notatecnica/2010/notatec87ReducaoJornadaTrabalho.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2018. 123 VIANA, Márcio Túlio. A proteção social do trabalhador no mundo globalizado: O direito do Trabalho no limiar do século XXI. Revista LTr: doutrina, v. 63, n. 7, jul./1999, p. 893. 124 Segundo Ana Claudia Moreira Cardoso, no caso brasileiro, “mesmo quando o tempo de trabalho não é reduzido, ainda assim ele é flexibilizado e intensificado”. Cf. CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 40. 125 MARX, Karl. Op. cit., p. 341. 102 2.3 A distribuição da jornada [nossas representações do tempo] elas se encontram, definitivamente, descoladas do tempo da vida humana. Elas obrigam os homens a sofrer um tempo abstrato, programado, ao contrário de suas necessidades. A temporalidade do trabalho leva a impor ritmos, cadências, rupturas que se afastam do tempo biológico, do tempo das estações, do tempo da vida humana. A medida abstrata do tempo permite desligá-lo das necessidades fisiológicas ou psicológicas: o sono, o alimento, a procriação, o envelhecimento etc. o indivíduo submetido à gestão deve adaptar-se ao tempo do trabalho, às necessidades produtivas e financeiras. A adaptabilidade e a flexibilidade são exigidas em mão única: cabe ao homem adaptar-se ao tempo da empresa e não o inverso. Vincent de Gaulejac A distribuição das horas de trabalho ao longo do dia, da semana, do mês e do ano pode ser feita de forma homogênea ou não. Porém, no capitalismo contemporâneo, é possível perceber uma tendência de flexibilização, a qual atinge fortemente o Brasil, fragilizando os limites diário e semanal no país e promovendo uma despadronização do curso da jornada,126 com uma propensão a sua anualização,127 consoante será analisado na presente seção. 2.3.1 Trabalho flexível, trabalhadores moldáveis Atualmente a gestão padronizada do tempo de trabalho, típica do sistema fabril fordista, não tem se mostrado eficaz para elevar a produtividade. Alegando fazer uso de seu poder diretivo, o que os empregadores têm feito é distribuir a jornada em módulos temporais, levando a variações tanto na distribuição dos horários de trabalho (entrada, saída e intervalos) quanto das quantidades de carga laboral. Previamente à análise das formas de se promover a flexibilidade do tempo de trabalho no contexto capitalista contemporâneo, é preciso entender o significado e a real finalidade da flexibilização, para então se concentrar no tratamento jurídico-normativo que a questão tem recebido no Brasil. 126 GIBB, Lygia Sabbag Fares. A tendência de despadronização da jornada de trabalho: configuração no Brasil e impacto nas mulheres. 295 f. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de Economia, Universidade de Campinas, Campinas, 2017, p. 265-266. 127 Com a criação do sistema do banco de horas. Cf. CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 99. 103 Assim, embora apenas as questões relacionadas à extensão e à intensidade das horas de trabalho – dimensões já vistas nos capítulos anteriores – sejam as mais destacadas na clássica teoria do valor,128 a distribuição do tempo dedicado ao trabalho também foi objeto de estudo por Karl Marx, por exemplo, quando este se debruçou sobre o tema dos sistemas de revezamento a que recorriam, em 1848, os fabricantes ingleses para extrair o máximo de mais-valor de seus empregados, sob a vigência da Lei das 10 Horas: Durante o período de 15 horas da jornada fabril, o capital ocupava o trabalhador ora por 30 minutos, ora por 1 hora, e voltava a dispensá-lo, a fim de empregá-lo na fábrica e depois dispensá-lo novamente, empurrando-o de lá para cá em porções fragmentadas de tempo, sem jamais deixar de tê-lo sob seu domínio até que estivessem completas as 10 horas de trabalho. […] assim como um ator pertence ao palco durante toda a duração do drama, também os trabalhadores pertenciam à fábrica durante as 15 horas da jornada de trabalho, sem incluir o tempo de ida e volta. As horas de descanso se transformaram, assim, em horas de ócio forçado […] A cada novo plano tramado diariamente pelo capitalista para manter sua maquinaria funcionando por 12 ou 15 horas sem aumento de pessoal, o trabalhador se via forçado a engolir sua refeição ora nesse pedaço de tempo não utilizado, ora noutro […] Agora eles [os fabricantes] haviam invertido a medalha e pagavam um salário de 10 horas por 12 a 15 horas de disposição sobre as forças de trabalho!129 Nos dias atuais, Pietro Basso relata uma máxima flexibilidade, uma “completa disponibilidade do tempo de vida dos assalariados para as empresas, tornando mais incertas as fronteiras entre tempo de trabalho e tempo global de vida”.130 A questão principal da flexibilidade consiste, portanto, em elucidar quem decide quando ela irá ocorrer, uma vez que, a pretexto de atender à demanda dos trabalhadores, o que se tem visto é a flexibilização no interesse da produção capitalista.131 Assim, a empresa promove uma distribuição não homogênea das horas de trabalho, mas nem o trabalho a mais, nem o a menos dizem respeito a contemplar situações de vida do trabalhador: (…) o tempo da experiência é substituído pelo tempo estandardizado no qual uma hora representa uma duração do tempo mensurável pelo relógio, qualquer que seja a situação da vida humana. Por exemplo, aqueles que trabalham mais tempo do que o horário de trabalho convencionado recebem “horas de liberdade” e dias de férias a mais, como se esses tempos fossem equivalentes, isto é, como se o trabalho a mais num domingo tivesse o mesmo valor, do ponto de vista do tempo vivido, que a mesma 128 DAL ROSSO, Sadi. O ardil da flexibilidade: Os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 76. 129 MARX, Karl.Op. cit., p. 362-363. 130 BASSO, Pietro. Op. cit., p. 17. 131 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 40. 104 quantidade de horas trabalhadas a menos num dia da semana, quando a família está ausente.132 Também sobre a situação atual da gestão do tempo de trabalho, a mexicana Olaya Rodríguez acredita que o foco tem se deslocado da duração (aspecto quantitativo) para a distribuição (aspecto qualitativo), como instrumento mais eficiente em conferir a adaptabilidade desejada pela parte empresarial, a qual fica desonerada dos riscos da atividade econômica, não tendo que remunerar os períodos de espera e os momentos de inatividade, em contradição ao princípio da alteridade.133 Por seu turno, relata a pesquisadora, em épocas de crise econômica, os trabalhadores abdicam com facilidade do controle do seu tempo pessoal, e ainda ficam agradecidos pela manutenção do seu posto de trabalho.134 Outra questão relevante é a da apropriação, pelo sistema capitalista, de pautas legítimas dos trabalhadores. Assim, a pretexto de se conferir uma certa autonomia reivindicada no desempenho das tarefas, o que se exige é uma disponibilidade absoluta dos “colaboradores” – revelando que até mesmo a linguagem sofre adaptações para conferir ao discurso uma conotação de voluntariedade quanto ao engajamento na missão da empresa.135 Seguindo esta mesma tendência de “autonomia”, o trabalho contemporâneo, para disfarçar seu caráter precarizado, alega uma valorização do empreendedorismo e da empregabilidade, alardeando a ideia de que cada pessoa deve tornar-se um gestor de si 132 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 27. 133 RODRÍGUEZ, Olaya Martín. Flexibilidad y distribución del tiempo de trabajo: especial referencia al caso español. Revista Latinoamericana de Derecho Social, Ciudad de México, n. 25, p. 3-35, jul./dic. 2017, p. 10-11. Contrapondo as dimensões da jornada, a autora entende que a duração é o aspecto quantitativo – diz respeito ao número de horas que o trabalhador deve exercer efetivamente suas atividades (ou estar à disposição do empregador) –, enquanto a distribuição é o qualitativo – refere-se ao modo como essas horas são repartidas ao longo dos dias da semana ou dos meses do ano, o que pode se dar de forma regular ou irregular: “La dimensión cualitativa de la jornada de trabajo adquiere mayor importancia como herramienta que permite al empresario satisfacer las demandas del proceso productivo; es decir, ante necesidades constantes y homogéneas del proceso productivo, el tiempo de trabajo se distribuye en modo igualmente homogéneo (regular), y ante necesidades cambiantes del proceso productivo, el empresario podrá concentrar mayor cantidad de trabajo en un lapso de tiempo concreto, con la condición de que posteriormente se vea compensado dicho exceso con jornadas inferiores (irregular)”. 134 Idem. Essa também a opinião de Christian Mañas: “(…) eis que a crise econômica, juntamente com os desequilíbrios sociais e políticos, favorecem o alastramento da problemática que se instaura nas relações sociais, sobretudo na questão do tempo de trabalho e tempo livre do trabalhador, pois atualmente se vive um momento singular em que todo tempo é tempo de trabalho e de exploração à lógica capitalista”. MAÑAS, Christian Marcello. Op. cit., p. 22. 135 DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho! A intensificação do trabalho na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 153. 105 mesmo, sobretudo de sua força de trabalho, o que leva o trabalhador a se esforçar mais (dimensão da intensidade) e por mais tempo (dimensão da extensão), além de se sujeitar a tempos mais flexíveis (dimensão da distribuição). Por fim, ainda dentro dessa apropriação retórica, a própria desnaturalização etimológica que a expressão “jornada” vem sofrendo coaduna-se com a sua flexibilização, com vistas a permitir uma maior acomodação dos tempos de trabalho.136 De modo que a jornada deixa de ser calculada como o montante de horas trabalhadas em um dia (tal como ocorre com as palavras journée, em francês, e giornata, em italiano), ou seja, despe-se da sua vinculação com o parâmetro diário para – por meio de subterfúgios como o banco de horas – abarcar módulos semanal, mensal ou anual.137 Especificamente quanto à flexibilização do tempo de trabalho, é preciso se ter em conta que a prestação de serviços, seja por causas naturais ou jurídicas, sofre interrupções e suspensões, combinando períodos de atividade e inatividade, ao longo do contrato de trabalho, o qual também tem uma duração finita, ainda que, em regra, não seja determinada previamente. Porém, por ser necessário um mínimo de previsibilidade para o planejamento das partes, via de regra, logo no momento da contratação, são definidos os períodos de prestação do serviço, bem como as pausas: no contrato padrão, a duração e os horários costumam ser fixos, mas nos atípicos, ambos podem ser flexíveis, a exemplo do contrato de trabalho intermitente, como será analisado. Mas o que significa ser flexível? O termo flexibilidade possui múltiplas acepções, podendo significar elasticidade e maleabilidade, mas também em sentido figurado brandura e docilidade, contrapondo-se à rigidez. Na esfera da sociologia do trabalho, tem sido estudado o fenômeno da flexibilização, pelo qual as condições de trabalho (e os trabalhadores?) tornam-se mais flexíveis, isto é, moldáveis e adaptáveis. Neste sentido, o sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett: A palavra “flexibilidade” entrou na língua inglesa no século quinze. Seu 136 ALONSO OLEA, Manuel. El trabajo como bien escaso. Revista del Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales, n. 33, 2001, p. 17-31. 137 A distribuição flexível dos tempos de trabalho dentro de determinados períodos temporais foi denominada pelo professor Irving Valentino como “multiperiodalidad de la jornada de trabajo”, que se pode traduzir como “multiperiodicidade da jornada de trabalho”. VALENTINO, Irving Aldo Rojas. La multiperiodalidad de la jornada de trabajo: un enfoque italiano y su aplicabilidad a la problemática del trabajo en horas extras en el Perú. Revista Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, Centro Universitário do Distrito Federal. Brasília, DF, v. IV, n. 3, p. 36-49, set./dez. 2018, p. 36. 106 sentido derivou originalmente da simples observação de que, embora a árvore se dobrasse ao vento, seus galhos sempre voltavam à posição normal. “Flexibilidade” designa essa capacidade de ceder e recuperar-se da árvore, o teste e restauração de sua forma. Em termos ideais, o comportamento humano flexível deve ter a mesma força tênsil: ser adaptável a circunstâncias variáveis, mas não quebrado por elas. A sociedade hoje busca meios de destruir os males da rotina com a criação de instituições mais flexíveis. As práticas de flexibilidade, porém, concentram-se mais nas forças que dobram as pessoas.138 No campo laboral, há vários modos de se promover a flexibilização, de forma que Sadi Dal Rosso propõe uma classificação139 interessante acerca do processo de flexibilização no local de trabalho: em regra, inicia-se pela flexibilidade numérica (flexibilidade quantitativa externa), geralmente por meio da redução de pessoal padrão (downsizing), recorrendo a trabalhadores contingenciais (com contratos de menor duração e menos direitos trabalhistas), ou mesmo a trabalhadores terceirizados (flexibilidade qualitativa externa). Em seguida, as empresas pretendem a flexibilidade funcional ou atitudinal (flexibilidade qualitativa interna), isto é, “que o trabalhador que sobreviveu aos cortes se torne continuamente flexível e adaptável, um trabalhador flexível, que toma conta de sua carreira, obtém qualificações, mostra-se polivalente e acumula mais tarefas a desempenhar”.140 Por fim, vem a flexibilidadede tempo (flexibilidade quantitativa interna), a qual pode se dar das seguintes formas: com a organização diversificada da duração da jornada (tempo parcial, horas extras) e/ou com a distribuição em horários diversificados (horários atípicos, trabalho em horas não sociais).141 138 SENNETT, Richard. Op. cit., p. 53. Para o autor, “o sistema de poder que se esconde nas modernas formas de flexibilidade consiste em três elementos: reinvenção descontínua de instituições; especialização flexível de produção; e concentração de poder sem centralização”. Esses três elementos do regime flexível estão presentes na organização do tempo de trabalho. Ibid., p. 54 e 65-66. 139 Já Boltanski e Chiapello classificam a flexibilidade em: flexibilidade interna, baseada na transformação profunda da organização do trabalho e das técnicas utilizadas (polivalência, autocontrole, desenvolvimento de autonomia, etc.), e flexibilidade externa, que supõe uma chamada organização do trabalho em rede, na qual empresas “enxutas” encontram os recursos de que carecem por meio de abundante subcontratação e de uma mão-de-obra maleável em termos de emprego (empregos precários, temporários, trabalho autônomo), de horários ou de jornada de trabalho (tempo parcial, horários variáveis). BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 240. 140 DAL ROSSO, Sadi. O ardil da flexibilidade: Os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 41. 141 Ibid., p. 61.-63 O autor relata ainda casos de flexibilização de remuneração e de lugar, sendo esta flexibilização espacial uma estratégia de dumping social. Ibid., p. 64. 107 Ocorre que, em se tratando de relações também econômicas, o que se questiona é se esse processo flexibilizatório interessa aos trabalhadores. Afinal, a quem serve a flexibilização? Primeiramente, é preciso dizer que, compreendida “como a adaptação das regras trabalhistas às diferentes realidades que envolvem as relações de trabalho”142, a flexibilização, em princípio, seria neutra, aderindo a ela uma conotação positiva ou negativa, conforme houvesse ampliação ou diminuição de direitos trabalhistas.143 Neste sentido, Jean Claude Javillier distingue três tipos de flexibilização, segundo sua finalidade, de modo que ela será: (a) de proteção, se visar uma combinação de normas em sentido favorável à parte mais frágil da relação laboral, o trabalhador; (b) de adaptação, se pretender um mero ajuste a novas circunstâncias fáticas, por meio da negociação coletiva; ou (c) de desregulamentação, se promover o desregramento, eliminando direitos trabalhistas ou mesmo os substituindo por outro menos benéficos aos trabalhadores.144 Considerando a flexibilização de proteção ou positiva como possível “forma de promoção da dignidade do trabalhador, na condição de pessoa”,145 essa modificação de normas de modo a reforçar as garantias do trabalhador não só é aceita pelo Direito do Trabalho,146 mas também atende a preceito constitucional. Todavia, sabidamente o mais comum é a ocorrência da flexibilização de desregulamentação ou negativa, ou seja, uma atenuação do rigor normativo para atender aos interesses do empregador, em detrimento de direitos dos trabalhadores, sob a justificativa de preservação ou mesmo aumento dos postos de trabalho, como apontou o 142 TEODORO, Maria Cecília Máximo; VALADÃO, Carla Cirino. A flexibilização positiva: uma forma de tutelar e promover a dignidade humana do trabalhador. In: SILVA, Luciana Aboim Machado Gonçalves da; MISAILIDIS, Mirta Gladys Lerena Manzo de; CECATO, Maria Aurea Baroni (org.). Direito do trabalho e seguridade social. Florianópolis: Conpedi, 2015, p. 90. 143 Em sentido semelhante, José Krein fala em flexibilidade ofensiva – benéfica ao trabalhador, para que este consiga ajustar a jornada de modo a organizar sua vida – e flexibilidade defensiva – voltada para a empresa, para que ela alcance maior produtividade e competitividade, sem contrapartida social. Cf. KREIN, José Dari. Op. cit., p. 211. 144 JAVILLIER, Jean Claude apud URIARTE, Oscar Ermida. A flexibilidade. Trad. Edilson Alkmim Cunha. São Paulo: LTr, 2002, p. 5. 145 TEODORO, Maria Cecília Máximo; VALADÃO, Carla Cirino. A flexibilização positiva: uma forma de tutelar e promover a dignidade humana do trabalhador. In: SILVA, Luciana Aboim Machado Gonçalves da; MISAILIDIS, Mirta Gladys Lerena Manzo de; CECATO, Maria Aurea Baroni (org.). Op. cit. p. 95. 146 JAVILLIER, Jean Claude apud URIARTE, Oscar Ermida. Op. cit., p. 4. Outra distinção possível consiste na flexibilização “para cima”, quando a modificação for mais favorável ao trabalhador, e na flexibilização “para baixo” ou “in pejus”, quando houver um “desmelhoramento”. Idem. 108 uruguaio Oscar Ermida Uriarte.147 Comunga dessa opinião a jurista espanhola Maria Emília Casas Baamonde, afirmando que “as medidas de flexibilização do tempo de trabalho para atender às necessidades empresariais são amplas, efetivas e eficazes”, porém não respondem ao desejo de conciliação com o tempo de vida dos trabalhadores.148 Ela aponta os aspectos quantitativos e qualitativos do tempo de trabalho como um dos grandes eixos das formas de organização flexível do trabalho. Embora possam satisfazer necessidades dos trabalhadores, o mais comum é que as medidas de flexibilização do tempo de trabalho sejam tomadas em prol dos interesses organizativos e produtivos dos empregadores, acarretando efeitos perversos aos trabalhadores, individual e coletivamente.149 No mesmo sentido, Boltanski e Chiapello asseveram que a flexibilidade foi a estratégia adotada pelas empresas visando “transferir para os assalariados e também para subcontratados e outros prestadores de serviços o peso das incertezas do mercado”.150 Trata-se, pois, em regra, de uma forma de precarização de direitos trabalhistas, ainda que flexibilidade e modernização sejam palavras que podem, num primeiro momento, soar “atraentes e progressistas”.151 Um neologismo adotado para fazer aderir à flexibilização da legislação trabalhista a agradável ideia de segurança é “flexicurity”.152 Sobre o termo “flexisegurança”, o que se pode dizer é que se caracteriza pela flexibilidade no emprego, de entrada na e saída da relação laboral, ao mesmo tempo que segurança no desemprego, com proteção social, de modo que João Leal Amado resume da seguinte forma: “em lugar de tutelar o emprego, 147 URIARTE, Oscar Ermida. Op. cit., p. 9. 148 BAAMONDE, María Emilia Casas. Op. cit., p. 21. Entre os efeitos das medidas de flexibilização, a autora explica que mesmo quando a intenção é satisfazer interesses dos empregados no que concerne ao direito de conciliação, pode haver um desvirtuamento, gerando uma segregação de gênero, fenômeno que ela denomina “feminización causante de nuevas discriminaciones en el trabajo de las mujeres”. 149 Ibid., p. 5. Ciente dessas consequências, a autora relata que o Parlamento europeu entende que a ordenação do tempo de trabalho é uma norma de saúde e segurança laboral e propõe que ela seja utilizada como “instrumento de rearme laboral”, isto é, deve ser aplicada como forma de “contener la atipicidad y la precariedad” e “combater a las bajas condiciones de seguridad y salud”. Ibid., p. 6. 150 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 240. 151 MÉSZÁROS, István. Op. cit., p. 148. 152 Mais especificamente sobre a flexibilização do tempo de trabalho, são comuns termos como “working-time arrangements” e “flexitime”. Cf. DAL ROSSO, Sadi. Op. cit., p. 67-68; SENNETT, Richard. Op. cit., p. 66-69. 109 promove-se a empregabilidade do trabalhador”.153 Ocorre que “a flexibilidade tende a aumentar a precarização do emprego”.154 Ou, na visão de Pierre Bourdieu, a flexploração é um fenômeno global precarizante que atuadiretamente sobre alguns e “indiretamente sobre todos os outros, pelo temor que ela suscita”.155 Sendo a flexibilidade inspirada tanto por razões econômicas quanto políticas, começa-se a suspeitar que a precariedade seja ela mesma “o produto de uma vontade política, e não de uma fatalidade econômica”.156 Não se trata, como se pode perceber, de uma particularidade do direito juslaboral de um e outro país; existe uma ampla tendência entre os países capitalistas contemporâneos de que a distribuição horária do trabalho atenda ao empregador, ou seja, que os tempos atípicos sejam na verdade escolhidos por decisão unilateral da empresa.157 Ocorre que, enquanto nos grandes centros capitalistas esse processo ocorreu notadamente a partir dos anos 1970, no Brasil, a onda flexibilizatória foi mais sentida a partir dos anos 1990.158 No que diz respeito aos tempos de trabalho, a flexibilização corresponde, pois, a uma estratégia empresarial para escapar da rigidez das jornadas padrão do sistema taylorista- fordista, passando para o regime toyotista de acumulação flexível, apoiada na “flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo”.159 Diante deste contexto, a produção é organizada com o objetivo de aumentar os lucros por meio do aumento da produtividade, recorrendo tanto à intensificação do trabalho quanto à sua flexibilização, ambos precarizantes das condições de trabalho. No 153 AMADO, João Leal. Perspectivas do direito do trabalho: um ramo em crise identitária? Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, SP, n. 47, p. 181-202, jul./dez. 2015. 154 AREOSA, João. A desumanização do trabalho na era da flexploração. In: PREVITALI, Fabiane Santana et al. Trabalho, educação e conflitos sociais: diálogos Brasil e Portugal. São Paulo: Verona, 2015, p. 249. 155 BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: Táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 123. 156 Idem. 157 SUE, Roger apud CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 40. 158 Registre-se que instrumentos como a possibilidade de acréscimo de duas horas extraordinárias por dia, a serem compensados ao longo da semana, já estivessem previstos na CLT desde 1943. Cf. DAL ROSSO, Sadi. Op. cit., p. 48. 159 HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 17. ed. São Paulo: Loyola, 2008, p. 140. 110 toyotismo, por exemplo, “a adaptação no dia a dia, ou hora a hora, da mão de obra às vicissitudes da produção desempenha o papel de tampão”160 que no taylorismo-fordismo era desempenhado pelos estoques. De forma que, valendo-se da classificação de Dal Rosso, pode-se afirmar que o toyotismo não se caracteriza apenas pela “flexibilidade qualitativa interna”, isto é, pela exigência de multivalência do trabalhador, mas também pela “flexibilidade quantitativa interna”, ou seja, pela diversidade na ordenação do tempo, em termos de duração ou horários. Um exemplo dessa flexibilidade do tempo de trabalho consiste no cálculo anual das horas trabalhadas, utilizado pelos defensores da lógica capitalista, e que chega a um resultado diverso daquele proporcionado pela perspectiva da contagem diária. De modo que, do ponto de vista anual, pode-se dizer que houve uma diminuição de horas trabalhadas, em decorrência da concessão de férias e sábados livres. Porém, não se considera o tempo de convívio social do indivíduo, isto é, a necessidade de vida social, que não deveria se restringir apenas aos finais de semana.161 Trata-se, como visto, de uma distorção da própria etimologia da palavra jornada, entendimento corroborado pelo sociólogo italiano Pietro Basso, para quem é preciso considerar o tempo de trabalho diário, já que “não se pode ter um papel ativo na vida social e política apenas […] nos resíduos de tempo do trabalho alienado”.162 Assim, da mesma forma que a vida biológica deve ter em consideração o ritmo circadiano, a vida social exige respeito ao tempo cotidiano. Ora, como visto, em conformidade com o padrão constitucional brasileiro, o desrespeito ao limite diário máximo de horas trabalhadas, ainda que observado o parâmetro semanal, consiste em violação do direito à saúde, ao lazer e ao convívio familiar e social do trabalhador. No ordenamento pátrio, seria, pois, inconstitucional uma permissão ampla à realização de horas extras, com limitação de jornada apenas anual, porém isso tem ocorrido de forma indireta por meio da compensação em banco de horas. Além da contagem anual de horas, outra forma de flexibilizar o tempo de trabalho, apontada por Boltanski e Chiapello, é o estabelecimento do trabalho em regime de tempo parcial, o qual de maneira distorcida “visa à obtenção de um ajuste quase em tempo real 160 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 274. 161 BASSO, Pietro. Op. cit., p. 111. 162 Idem. 111 entre número de empregados e demanda, com um custo da hora extra não superior ao da hora normal”.163 Ou, consoante desvela Sônia Mascaro Nascimento: A flexibilização visa atender às necessidades variáveis de mão-de-obra que a jornada a tempo pleno não é capaz de suprir. Desse modo, as empresas passam a buscar uma “distribuição ótima do tempo de trabalho” através de contratos que contemplem a anualização da jornada de trabalho. Também aumentam os sistemas de horários de trabalho a tempo parcial. Visam, com os primeiros, à redução do “tempo morto” de trabalho e, com os segundos, a utilização plena do potencial produtivo, de acordo com as necessidades. Essas ideias fazem nascer, no Direito brasileiro, a noção de jornada de trabalho como tempo efetivamente trabalhado.164 Tudo isso sob o pretexto de flexibilidade para o trabalhador, com vistas à conciliação entre vida profissional e pessoal-familiar. O regime de trabalho a tempo parcial, por exemplo, é preconizado como forma de organização dos horários de trabalho visando alcançar jovens estudantes, mulheres com filhos pequenos e trabalhadores mais velhos, categorias que teriam dificuldade de se inserir e se manter ativos no mercado de trabalho formal. Entretanto, como se percebe, trata-se de mais um artifício para se obter força de trabalho com remuneração mais barata. Assim, os contratos em regime de tempo parcial preveem um mínimo de horas, mas, ao se exigir a prestação de horas extras, o empregador modula o tempo, sem ter que pagar esse serviço extraordinário com o adicional respectivo, já que basta compensar as horas em outros dias, de menor demanda, com respaldo legal. Revela-se, pois, uma opção mais econômica que contratar em jornada padrão e ter que remunerar por todo o período.165 No Brasil, essa possibilidade foi reforçada após a reforma trabalhista instituída pela Lei n. 13.467, de 2017, ao revogar o §4º do art. 59 da CLT, o qual vedava a prestação de horas extras pelos empregados sob o regime de tempo parcial. Na verdade, a nova lei – ao alterar a redação do caput do art. 58-A da CLT e acrescentar-lhe parágrafos – criou duas modalidades de regime de tempo parcial: uma “cuja duração não exceda a 30 horas semanais, sem a possibilidade de horas suplementares” e outra “cuja duração não exceda a 26 horas semanais, com a possibilidade de acréscimo de até seis horas suplementares semanais”. Eventuais horas extras prestadas poderão ser pagas, com adicional de 50% na 163 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 272. 164 NASCIMENTO, Sônia Aparecida Costa Mascaro. Flexibilização do horário de trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 93. 165 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op,. cit.., p. 272. 112 folha de pagamento do mês subsequente ou “compensadas diretamenteaté a semana imediatamente posterior à da sua execução” (CLT, art. 58-A, §5º). Esse estratagema apoia-se em outra prática reiterada no país consistente na prestação de hora extraordinária de forma ordinária, o que – além de impedir que o trabalhador usufrua de tempo livre – traz consequências de ordem pública, pois lesiona a saúde do trabalhador, reduz o acesso de outras pessoas ao mercado de trabalho e, quando sistematicamente não pagas as horas extras prestadas, ainda fere a justa concorrência.166 Ademais, no contexto de crise, as horas extras não chegam a ser uma opção para o trabalhador, sobretudo para aquele que trabalha em atividades e setores econômicos caracterizados pela baixa remuneração, pois a ameaça do desemprego e a queda do poder de compra dos salários retiram do trabalhador a possibilidade de manifestar livremente sua vontade.167 Ele se encontra já no reino da necessidade.168 Ainda sobre a flexibilização por meio da racionalização do uso do tempo, a reforma trabalhista confere ao capital mecanismos jurídicos para “dispor da força de trabalho em tempo integral ajustando jornada, férias, de acordo com as suas necessidades e com isso eliminado os tempos mortos”,169 sendo que o mais grave destes instrumentos consiste na possiblidade de contrato de trabalho intermitente, cujas características serão examinadas a seguir. 2.3.2 O contrato de trabalho intermitente: flexibilização máxima do tempo O contrato de trabalho intermitente, instituído no Brasil também pela reforma trabalhista de 2017 (CLT, artigos 443 e 452-A), aproxima-se das chamadas cláusulas de disponibilidade horária, em que o empregador só se obriga a pagar o tempo efetivamente trabalhado. Para o trabalhador, esse tipo contratual reúne “as desvantagens do trabalho autônomo (imprevisibilidade dos rendimentos) e as da subordinação (submissão ao 166 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Mecanismos jurídicos para preservar o direito ao descanso. In: ALVES, Giovanni; AMARAL, André Luís Vizzaccaro; MOTA, Daniel Pestana (org.). Trabalho e estranhamento: saúde e precarização do homem-que-trabalha. São Paulo: LTr, 2012, p. 262. 167 KREIN, José Dari. Op. cit., p. 246. 168 Sobre o trabalho como necessidade: VIANA, Márcio Túlio; TEODORO, Maria Cecília Máximo. Op. cit. 169 TEIXEIRA, Marilane Oliveira. Reforma trabalhista em tempos de golpe. In: RAMOS, Gustavo Teixeira et al. (coords.). O golpe de 2016 e a reforma trabalhista: narrativas de resistência. Bauru: Canal 6, 2017, p. 249. 113 contratante)”.170 Por outro lado, para o empresário, significa a possibilidade de usar da força de trabalho sempre que necessário, sem ter que remunerar os períodos de inatividade,171 desvinculando o tempo à disposição como critério para se calcular o tempo de trabalho. A inclusão dessa modalidade contratual vem coroar um amplo e contínuo movimento de flexibilização que se nota no tratamento jurídico da jornada de trabalho. Essa tendência revela-se em diversas frentes, consoante aponta a jurista Patrícia Maeda, ilustrativamente: a ampliação do rol de empregados cujos contratos de trabalho estão excluídos da aplicação das normas de proteção da jornada; a convalidação da irregular redução do intervalo intrajornada com a previsão de sua remuneração como hora extraordinária; a extensão do módulo para compensação semanal de jornada para até um ano, por meio do banco de horas; a permissão do trabalho dos empregados do comércio em geral aos domingos e feriados; a instituição do contrato de trabalho a tempo parcial e do contrato de trabalho intermitente.172 No que concerne ao contrato de trabalho intermitente, chega ao Brasil disfarçado de emprego flexível desejável, todavia corresponde verdadeiramente a uma eventualização laboral ou, numa linguagem mais direta, precarização.173 Essa inovação normativa apresenta tamanho grau de disrupção – isto é, de quebra em relação aos tipos contratuais, aos modos de controle de tempo do trabalhador e às formas de remuneração já existentes – que o tema será examinado com um pouco mais de cautela. Este tipo contratual foi incluído, nos países europeus de tradição civil law, em conjunto com mecanismos que visavam impedir que a modalidade levasse a uma precarização dos direitos trabalhistas, a exemplo do direito português (Código de trabalho de 2009, art. 157 e ss.), do italiano (“lavoro intermittente” ou “lavoro a chiamata”, no 170 SUPIOT, Alain apud BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 273. 171 OFFE, Claus. Trabalho e Sociedade: problemas estruturais e perspectives para o futuro da sociedade do trabalho. Vol. 1 – A crise. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1997. 172 MAEDA, Patrícia. A era dos zero direitos: trabalho decente, terceirização e contrato zero- hora. São Paulo, LTr, 2017, p. 129-130. 173 MÉSZÁROS, István. Desemprego e precarização: Um grande desafio para a esquerda. Revista Vinculando, Online. Disponível em: <http://vinculando.org/brasil/desemprego1.html>. Acesso em: 05 mar. 2019. O Parlamento Europeu chegou a assinalar o elevado risco de precariedade e insegurança do contrato de zero hora, pedindo sua supressão aos estados membros. Ver Resolución de 4 de julio de 2017 sobre las condiciones laborales y el empleo precario (2016/2221(INI)). Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal- content/ES/TXT/PDF/?uri=CELEX:52017IP0290&from=ES>. Acesso em: 15 dez. 2018. 114 Decreto Legislativo n. 81, de 2015), do alemão (“Kapazitatorentierte variable arbeitzeit” ou “Arbeit Auf Abruf”, no §12 do Gesetz über Teilzeitarbeit und befristete Arbeitsverträge (TzBfG42) e do espanhol (“trabajo descontinuo o contrato de fijos discontinuos”, art. 16 do Estatuto dos Trabalhadores). Nestes ordenamentos jurídicos, existem restrições sobre quais setores podem adotar, quais trabalhadores podem ser admitidos, durante quanto tempo e a legislação ainda estabelece um número mínimo de horas, uma previsão de compensação pelo período de inatividade e/ou a garantia de um valor salarial mínimo.174 No Brasil, aproximando-se de países de common law, o contrato de trabalho intermitente se assemelha mais ao “just in time contract” americano ou ao “zero-hour contract” do direito britânico, ou seja, a uma contratação em condições de subemprego, subtraindo a inserção na jornada clássica e o direito ao padrão remuneratório mensal mínimo. Particularmente no Reino Unido, pesquisas divulgadas em 2016 apontaram que o número de pessoas em trabalhos precários cresceu vertiginosamente nos anos recentes, entre trabalhadores temporários e em contratos de zero hora. A precariedade do zero-hour contract consiste na possibilidade de perder ou não ter trabalho de forma repentina, sem nenhuma garantia, além do fato de, em média, receberem menos de 2/3 em relação aos ganhos médios dos empregados de jornada de tempo integral.175 As consequências se dão tanto no plano coletivo, com potencial risco à coesão e à mobilidade social, quanto no individual, com elevação do risco de adoecimentos dos trabalhadores causados pela ansiedade e pela insegurança em relação à remuneração e à perda do trabalho.176 Na mesma 174 COMMITEE of Experts on the Application of Conventions and Recomendations. Ensuring decent working-time for the future - International Labour Conference, 107th Session, 2018. Geneva: International Labour Office, 2018, p. 289. Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/--- relconf/documents/meetingdocument/wcms_618485.pdf>. Acesso em 28 fev. 2019. 175 MARSH, Sarah. Zero-hours contracts affect young people's health, study finds. The Guardian. London, 05 jul. 2017. Disponível em: <https://www.theguardian.com/uk- news/2017/jul/05/zero-hours-contracts-affect-young-peoples-health-study-finds>.Acesso em: 28 maio 2019. 176 No plano econômico, o contrato de trabalho intermitente leva ainda à perda de rendimentos fiscais, já que os trabalhadores nesta modalidade contratual ganham menos do que os regulares e, portanto, recolhem menos contribuições previdenciárias e pagam menos impostos. Ademais, pelo mesmo motivo de baixos salários, a capacidade de consumo dos trabalhadores é reduzida o que, consequentemente, leva ao desaquecimento da economia. GONZALEZ, Amelia. No Reino Unido, ‘contrato zero’ entre patrões e funcionários expõe a fragilidade dessa relação. G1. Rio de Janeiro, 29 mar. 2017. Disponível em: <http://g1.globo.com/natureza/blog/nova-etica- social/post/no-reino-unido-contrato-zero-entre-patroes-e-funcionarios-expoe-fragilidade-dessa- relacao.html>. Acesso em: 28 maio 2019. 115 época, outro estudo na Inglaterra concluiu que jovens trabalhadores em contratos de zero hora apresentam condições de saúde física e mental piores quando comparados àqueles que laboram em posições de emprego estável.177 Ou seja, antes mesmo da aprovação da reforma da trabalhista no Brasil, já havia comprovações científicas de que essa forma de contratação de trabalho sem garantia alguma de horas a serem trabalhadas e valores a serem recebidos prejudica não apenas o orçamento familiar, mas também a saúde do trabalhador e, numa perspectiva mais ampla, agrava a desigualdade social. Assim, quando a solução proposta já era de se banir a prática,178 os legisladores brasileiros decidiram por aprová-la, desprezando o fato de a modalidade contratual tratar o trabalho como mercadoria, dispensando aos trabalhadores tratamento degradante da sua saúde globalmente considerada. Assim, às modalidades clássicas de contratação da força de trabalho – em regra, por tempo indeterminado e, excepcionalmente, por tempo determinado – a reforma trabalhista brasileira acresceu uma nova forma de contratação: a figura do contrato para prestação de trabalho intermitente. Ocorre que, enquanto a contratação por prazo determinado só é permitida nas hipóteses legalmente especificadas, a contratação para o trabalho intermitente, consoante redação do art. 443 da CLT, é permitida de forma vasta, “independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador”, excetuando-se apenas os aeronautas. Ademais, se o contrato por prazo determinado traz em seu bojo a sua duração temporal e desonera o empregador mormente no momento do término da relação empregatícia (no que tange às verbas rescisórias), o contrato de trabalho intermitente desonera o empregador durante todo o vínculo laboral, desobrigando-o de pagar salários mensais ao empregado, salvo se houver efetiva prestação de serviço. 177 BOOTH, Robert. More than 7m Britons now in precarious employment. The Guardian. London, 05 jul. 2017. Disponível em: <https://www.theguardian.com/uk- news/2016/nov/15/more-than-7m-britons-in-precarious-employment>. Acesso em: 28 maio 2019. 178 Na Nova Zelândia, o mecanismo foi banido em 2016, com a aprovação unânime pelo parlamento do Employment Relations Amendment Act 2016, o qual determinou que os contratos de trabalho devem especificar um mínimo de horas semanais, podendo os trabalhadores recusar eventuais horas extras. ROY, Eleanor Ainge. Zero-hour contracts banned in New Zealand. The Guardian. London, 11 mar. 2016. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2016/mar/11/zero-hour-contracts-banned-in-new- zealand>. Acesso em: 28 maio 2019. 116 Claro que, o empregado que tiver trabalhado, ainda que por um breve período, terá direito ao pagamento, mediante recibo discriminado, de remuneração, férias proporcionais com acréscimo de um terço, 13º salário proporcional, repouso semanal remunerado e adicionais legais; além de recolhimento pelo empregador da contribuição previdenciária e do FGTS, na forma da lei (CLT, art. 452-A, §6º a §8º). A particularidade do empregado intermitente é que só receberá essas parcelas ao final de cada período de prestação de serviço, se houver. Ou seja, é possível afirmar que, do ponto de vista qualitativo, havendo execução de labor, os direitos se assemelham aos dos demais empregados; todavia, quantitativamente, o empregado não sabe se e por que período de tempo efetivamente prestará serviços e, por conseguinte, quanto receberá.179 Quanto às verbas rescisórias, pretendeu-se que elas também seriam reduzidas, consoante redação do art. 452-E da CLT, incluído pela Medida Provisória n. 808 de 2017, a qual, contudo, teve seu prazo de vigência encerrado. Ocorre que o empregador sequer precisa recorrer à rescisão contratual, pois pode manter vigente por tempo indeterminado um contrato de trabalho sem ter que arcar com ônus algum. Isso porque, com o fim da vigência da referida MP 808/17, deixou de valer também o disposto no art. 452-D da CLT, segundo o qual “decorrido o prazo de um ano sem qualquer convocação do empregado pelo empregador, contado a partir da data da celebração do contrato, da última convocação ou do último dia de prestação de serviços, o que for mais recente, será considerado rescindido de pleno direito o contrato de trabalho intermitente”. Ora, se os contratos por prazo determinado constituem uma exceção ao princípio da continuidade da relação de emprego, os contratos de trabalho intermitente são uma verdadeira afronta a esse princípio, ao promover de forma sistemática a quebra da continuidade da prestação laboral por mero interesse patronal. Lembrando-se dos cinco elementos fático-jurídicos que caracterizam a relação de emprego – prestação de serviço por pessoa física, mediante pessoalidade, subordinação, onerosidade e não-eventualidade – flexibilizou-se este último requisito, ao admitir que a prestação seja descontínua, “com alternância de períodos de prestação de serviços e de 179 No entendimento de parte da doutrina, existe uma obrigação de pagamento do salário mínimo mensal, inclusive para os meses contratuais sem convocação para o trabalho. DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: LTr, 2018, p. 165. 117 inatividade, que pode ser de horas, dias ou meses” (CLT, art. 443, §3º). Dessa forma, cabe ao empregador convocar o empregado conforme a necessidade do serviço; ou seja, o trabalhador é contratado para não trabalhar, até que seja convocado para tal. Ademais, a própria subordinação, apesar de reafirmada no novel texto celetista para a modalidade, tem seus contornos mais flexíveis, pois uma vez convocado, o empregado pode aceitar ou não o chamado para o serviço, sem que a recusa descaracterize a subordinação, consoante expresso em lei (CLT, art. 452-A, §3º). Essa descontinuidade que permite ao empregador convocar o trabalhador, de acordo com a demanda do serviço, fere, ao mesmo tempo, o princípio da proteção e o da alteridade, já que, desconsiderando a hipossuficiência do empregado, os riscos da atividade econômica lhe são transferidos. Se houver demanda, será convocado ao trabalho e receberá uma remuneração correspondente; caso contrário, o trabalhador não recebe nada pela sua disponibilidade e arca com o prejuízo. Não havendo nenhuma garantia de contratação mínima para prestação de serviços e, consequentemente, para o recebimento de salário, o governo pretendeu, portanto, uma redução meramente estatística nos índices de desemprego, com aumento de postos de trabalho precários, porém sem crescimento econômico e sem desenvolvimento social, gerando formalmente empregos sem o correspondente compromisso material de prover renda e subsistência pelo trabalho. Acerca desse sistema de subempregos flexíveis, Ulrich Beck conclui que “o desemprego foi por assim dizer ‘integrado’ ao sistema empregatíciosob a forma de modelos de subemprego e também, consequentemente, substituído por uma generalização de incertezas ocupacionais”.180 Outro princípio justrabalhista violado pela reforma é, pois, o da intangibilidade salarial, que confere proteção especial ao salário, verba de caráter alimentar, destinada a prover bens essenciais ao trabalhador e sua família. Como não há uma prévia definição, em sede legal ou contratual, de quando e nem mesmo se o trabalho será prestado, a situação econômica do trabalhador intermitente em muito se assemelha à do “desempregado permanente”,181 nas palavras de Jorge Luiz Souto Maior, dele se afastando apenas quanto 180 Cf. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2011, p. 209. 181 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Trabalhador intermitente, desempregado permanente. Blog. Disponível em: <https://www.jorgesoutomaior.com/blog/trabalhador-intermitente- desempregado-permanente#_edn1>. Acesso em: 03 mar. 2019. 118 ao status jurídico, por ter um ou mais vínculos trabalhistas. Ainda, a ausência de pactuação prévia da jornada também fere o princípio da comutatividade do contrato, já que impossibilita o conhecimento prévio pelo trabalhador da extensão de suas prestações, ficando o controle a cargo do empregador, em momento posterior.182 O legislador determina que a convocação seja feita, por qualquer meio de comunicação, com no mínimo três dias corridos de antecedência, especificada a jornada (CLT, art. 452-A, §1º). Ou seja, só alguns dias antes da prestação de trabalho, o empregado conhecerá a extensão, o horário e por vezes até o local de trabalho, tornando impossível uma organização mínima de sua vida pessoal e familiar, o que pode gerar situações de estresse emocional e prejuízos a sua sociabilidade. Apesar de, por expressa disposição legal (CLT, art. 452-A, §3º), a recusa não configurar insubordinação e justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador, ela não será verdadeiramente uma opção para o empregado, o qual provavelmente aceitará o chamado, diante da dependência econômica e da insegurança salarial e por medo de que a recusa leve a uma penalização por parte do empregador, que pode, por exemplo, vir a deixar de convocá-lo em uma futura oportunidade. Reduz-se, portanto, a capacidade de resistência do empregado, o qual acaba por se sujeitar às alterações e flexibilizações a bel-prazer do empregador.183 Há ainda a previsão de que, a cada doze meses de contrato, o empregado faça jus a um mês de férias, a ser gozado nos doze meses subsequentes (CLT, art. 452-A, §9º). Entretanto, da forma como funciona a sistemática do contrato de trabalho intermitente – isto é, só recebe quando trabalha –, o empregado não receberá nenhuma remuneração no seu período de descanso, pois as férias com acréscimo de um terço já deverão ter sido pagas, de maneira proporcional, “ao final de cada período de prestação de serviço”, de forma diluída e não necessariamente correspondente a um mês por ano.184 Ademais, durante o período de férias, o trabalhador não poderá ser convocado para prestar serviços pelo mesmo empregador que a conceder (CLT, art. 452-A, §9º). Porém, para tentar assegurar sua renda, é bem possível que o trabalhador tenha se comprometido 182 MAEDA, Patrícia. Op. cit., p. 127. 183 Ibid., p. 117. 184 Atualmente, mesmo os empregados em regime de tempo parcial possuem direito a férias anuais remuneradas de 12 a 30 dias, a depender de sua assiduidade (CLT, art. 58-A, §7º c/c art. 130). 119 com outro empregador ou mesmo venha a se comprometer justamente durante as férias, sob pena de passar trinta dias sem auferir nenhuma remuneração. Ou seja, tal dispositivo viola duplamente o direito ao descanso do trabalhador, pois o legislador infraconstitucional não se preocupou em garantir que o gozo das férias seja imediatamente remunerado nem efetivamente descansado. Aliás, a possibilidade de prestar serviços simultaneamente a vários empregadores, sem previsão de limites legais (CLT, art. 452-A, §5º), só torna manifesta a mercantilização do trabalho humano, a ser explorado por quantos forem os interessados em extrair dele a mais-valia. A imprevisibilidade de quanto e quando vai receber alguma remuneração pode levar o trabalhador a estabelecer contratos de trabalho intermitente com o máximo possível de empregadores. Ou seja, o fato de o trabalhador poder prestar serviços a vários contratantes deve ser interpretado em sua ambivalência: por um lado, permite que ele não fique preso a um empregador que, efetivamente, não o convoque para prestação de serviços; por outro, essa ausência de exclusividade deixa-o ainda mais sujeito a contratar com vários tomadores de serviço, levando-o à exaustão física e mental. Por fim, embora tenha perdido a vigência o dispositivo que excluía o trabalhador intermitente do programa de seguro-desemprego (CLT, art. 452-E, §2º), dificilmente ele preencherá os requisitos legais para o recebimento do benefício (Lei n. 7.998/90, art. 3º), bem como para a percepção de outras proteções sociais.185 Assim, os trabalhadores ficam, como visto, mais suscetíveis a enfermidades físicas e psíquicas e, ao mesmo tempo, mais desprotegidos, já que paradoxalmente a insegurança atinge inclusive a situação de adoecimento do trabalhador, pois também deixou de valer a regra de pagamento de auxílio- doença a partir da data do início da incapacidade (CLT, art. 452-A, §13), restando sem proteção o empregado que perca sua capacidade para o trabalho por até quinze dias.186 Não só nas proteções sociais de médio e longo prazo, mas também na organização 185 MAEDA, Patrícia. Op. cit., p. 113. 186 Isso porque o benefício previdenciário do auxílio-doença só é conferido ao trabalhador que – tendo cumprido o prazo legal de carência, isto é, doze contribuições mensais (Lei n. 8.213, de 1991, art. 25, I) – fique incapacitado para seu trabalho ou atividade habitual por mais de quinze dias consecutivos (Lei n. 8.213, de 1991, art. 59). Ou seja, os adoecimentos que o incapacitem por até quinze dias devem ser remunerados pelo empregador. E como fica a situação do empregado de contrato intermitente? A proteção depende de estar efetivamente trabalhando? Ou fica à mercê de eventual convocação ao trabalho? Estando doente, o empregado poderia aceitar o chamado ou deveria recusá-lo e ficar sem receber nada? 120 do tempo a curto e médio prazo, as consequências da flexibilidade extrema, marcada pela fragmentação e pela descontinuidade, são a incerteza e a imprevisibilidade,187 gerando nos trabalhadores, por conseguinte: ansiedade, estresse e problemas no equilíbrio entre os tempos de trabalho e os tempos de não trabalho. 187 MAEDA, Patrícia. Op. cit., p. 117. 121 Capítulo 3 - Tempos de não trabalho: entre liberdades, promessas e sujeições Políticas de tempo definem o conteúdo das vidas das pessoas. Até hoje ninguém pode viver sem trabalhar, exceto os ricos. Mas a vida é bem mais do que trabalhar. Trabalha-se para viver. Não se vive para trabalhar. A vida tem potencialidades de realização que ultrapassam o horizonte do trabalho. Sadi Dal Rosso Ultrapassadas as dimensões do tempo de trabalho, é chegado o momento de refletir sobre os tempos de não trabalho. Primeiramente, para se compreender um e outro é preciso entender que juntos constituem o tempo de vida do sujeito e, portanto, estão em constante interrelação,1 sobretudo na forma de organização flexível da contemporaneidade, “pela qual o tempo fora do local de trabalho, isto é, aquele liberado da jornada de trabalho, já não pode mais ser tomado comosinônimo de tempo de não-trabalho”.2 O tempo de não trabalho é definido por exclusão, é o tempo que não seja empregado para se “ganhar o pão quotidiano”,3 é o que sobra após a jornada de trabalho.4 Esta definição, ao abarcar todo o restante para além do trabalho, acaba abrigando diversas maneiras de ocupar o tempo e vários comportamentos humanos; enfim, muitas “formas de manifestação do não trabalho”.5 3.1 Tempos de trabalho não remunerado e direito à desconexão A indiscernibilidade ou mesmo indistinção entre tempo de trabalho e tempo de não- trabalho (…) pode significar que todo tempo se torna potencial tempo de trabalho. Ludmila Costhek Abilio Existem tempos cotidianos – supostamente de não trabalho – cuja natureza é verdadeiramente de trabalho, ainda que não remunerados, como os dedicados à reprodução 1 Alice Braga entende que na sociedade atual há uma relação de hegemonia do tempo de trabalho sobre os demais tempos. Cf. BRAGA, Alice Morais. Op. cit., p. 31-32. 2 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 325. 3 DAL ROSSO, Sadi. A jornada de trabalho na sociedade: O castigo de Prometeu. São Paulo: LTr, 1996, p. 27. 4 O tempo de não trabalho também recebe a denominação de “el tiempo otro”. Cf. BAAMONDE, María Emilia Casas. Op. cit., p. 4. 5 DAL ROSSO, Sadi. Op. cit., p. 28. 122 social. Ademais, há outros tempos sociais que, mesmo considerados como fora do tempo de trabalho – por não serem considerados como tempo de efetivo trabalho nem de tempo à disposição –, são indiretamente voltados à atividade laboral produtiva, como os despendidos, por exemplo, com a qualificação para as tarefas exigidas pelo trabalho e com o deslocamento até o local de trabalho. Uns e outros – tempos não reconhecidos de trabalho e tempos conexos ao trabalho –, ambos caracterizados pela invisibilidade e desconsiderados para fins de remuneração,6 serão objeto de estudo na presente seção. 3.1.1 O trabalho reprodutivo: natureza de trabalho, ausência de remuneração Uma tendência característica da classe trabalhadora, em sua conformação atual, é o aumento significativo do trabalho feminino no mercado produtivo,7 porém com patamares salariais inferiores, ocupando postos de trabalho com jornada parcial e em que são exigidos menores níveis de qualificação.8 Essa desigualdade de tratamento decorre da divisão sexual do trabalho, sistema que sobrecarrega as mulheres incentivando-as a aceitar modos flexíveis de prestação e remuneração do labor,9 seja no mercado formal ou informal de trabalho. A 6 Sobre os custos da formação e manutenção da mão de obra que são pagos pelos próprios trabalhadores ou pelo Estado, não sendo remunerados pelos empregadores, afirmam Boltanski e Chiapello: “O trabalho, como se sabe, é uma ficção jurídica quando considerado como mercadoria destacável daquele que o produz (Polanyi, 1983; Supiot,1997). O ‘recurso humano’ não pode ser consumido como os outros, pois supõe um custo de manutenção e reprodução que deveria ser indissociável de seu custo de utilização. (…) [no que se refere ao trabalho,] estão sendo cada vez mais separados dos salários pagos os custos incorridos antes do emprego (escola, formação, sustento durante períodos de inatividade e folgas), ou depois dele (reconstituição das forças, desgaste e envelhecimento), sem contar que o efeito da intensificação do trabalho sobre a saúde física e mental não é positivo. Essa situação é mais problemática porque a ‘produção’ do ‘recurso humano’ é demorada. […] Os custos de manutenção e reprodução do trabalho foram assim em grande parte transferidos para os indivíduos e para os dispositivos públicos reforçando nos primeiros as desigualdades associadas aos rendimentos – visto que os mais pobres não podem se manter nem se reproduzir sem ajuda – e acentuando no segundo a crise do Estado-providência, obrigado a impor novas contribuições, o que possibilita às empresas eximir-se cada vez mais de suas responsabilidades, num círculo vicioso de que os fenômenos socioeconômicos oferecem numerosos exemplos”. Cf. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 279-280. 7 Segundo Claudia Nogueira, “mesmo ampliando a participação feminina no mundo produtivo as tarefas domésticas continuam reservadas exclusivamente à mulher, ou seja, a organização da família patriarcal pouco é alterada, o marido se mantém provedor e a esposa a provedora complementar e dona de casa, confirmando a divisão sexual desigual do trabalho”. NOGUEIRA, Claudia Mazzei. As relações sociais de gênero no trabalho e na reprodução. Aurora: Revista dos Discentes da Pós- Graduação em Ciências Sociais da Unesp, Marília-SP, v. 3, n. 2, p. 59-62, ago. 2010, p. 59. 8 ALVES, Giovanni; ANTUNES, Ricardo. Op. cit., p. 337-338. 9 Para Nathalie Cattanéo e Helena Hirata, “a flexibilidade é sexuada”. Isso porque, “a flexibilidade 123 estrutura ocupacional é, pois, marcada por dois tipos de segregação por gênero: a horizontal (setores da economia em que há mais mulheres em atividade) e vertical (menos mulheres em cargos de chefia).10 Segundo a socióloga francesa Danièle Kergoat, a divisão sexual do trabalho organiza-se com base em dois princípios: o da separação (existe trabalho de homem e trabalho de mulher) e o da hierarquização (o trabalho de homem é superior ao trabalho de mulher).11 Pelo primeiro, os homens ocupam posições no mercado de trabalho remunerado (trabalho industrial masculino); enquanto as mulheres são as que majoritariamente se ocupam das tarefas domésticas, do cuidado com as crianças e da atenção com idosos e doentes da família (trabalho doméstico feminino).12 Pelo segundo, ao trabalho reprodutivo realizado é atribuído baixo valor social – as atividades de cuidado apenas são pagas quando realizadas para terceiros13 –, corroborando o entendimento de que “produção vale mais que reprodução, produção masculina vale mais que produção feminina (mesmo quando uma e outra são idênticas)”.14 dita interna (polivalência, rotação, integração de tarefas, trabalho em equipe) está mais relacionada à mão de obra masculina, enquanto a flexibilidade dita externa é obtida, sobretudo, pelo recurso à mão de obra feminina (empregos precários, trabalho de tempo parcial, horários flexíveis). […] A implantação dessa divisão sexual é possível na medida em que há uma legitimação social: é em nome da conciliação da vida familiar com a vida profissional que tais empregos são propostos às mulheres. A diferença salarial também é socialmente legitimada pela representação usual do salário feminino como renda complementar”. Cf. CATTANÉO, Nathalie; HIRATA, Helena. Flexibilidade. In: HIRATA, Helena et al. (org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 109-110. 10 A segregação vertical ou hierárquica é também denominada “teto de vidro”, o qual consiste na interposição de uma barreira sutil, mas rígida o bastante para impedir a ascensão profissional e salarial das mulheres. Cf. TEODORO, Maria Cecília Máximo. O direito do trabalho da mulher enquanto “teto de vidro” no mercado de trabalho brasileiro. In: TEODORO, Maria Cecília Máximo et al. (org.). V Congresso Latino-Americano de Direito Material e Processual do Trabalho. V. 1. São Paulo: LTr, 2017, p. 65-72. 11 KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et al. (org.). Op. cit., p. 67. 12 Às mulheres resta a conciliação entre o trabalho produtivo e as tarefas domésticas e familiares (acumulando duplas jornadas) ou a sua delegação (o que significa que a gestão do trabalho delegado continua na sua competência). A delegação ocorre, em geral, a outras mulheres. Cf. HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Trad. Fátima Murad. Cadernos de Pesquisa,Online, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007. 13 Sobre o processo de desvalorização do trabalho feminino, cf. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Editora Elefante, 2017, p. 181 e ss. 14 Cf. HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A divisão sexual do trabalho revisitada. In: MARUANI, Margaret; HIRATA, Helena (org.). As novas fronteiras da desigualdade: homens e mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: SENAC, 2003. p. 111-123. 124 Conquanto contribua “extensa e intensivamente para a organização social e econômica do capitalismo”,15 o trabalho reprodutivo é invisibilizado, tido como tempo de não trabalho, e, portanto, não reconhecido pelo critério estritamente econômico.16 Intencionalmente, desconsidera-se que o papel do trabalho reprodutivo no contexto capitalista dá-se tanto pelo valor que ele próprio gera como pela redução da taxa média de salário.17 Assim, consoante já denunciava Karl Marx, a utilização da mão-de-obra feminina (e, à época, também da infantil) acarreta a redução do tempo de trabalho necessário, operando da seguinte forma: O valor da força de trabalho estava determinado pelo tempo de trabalho necessário à manutenção não só do trabalhador adulto individual, mas do núcleo familiar. Ao lançar no mercado de trabalho todos os membros da família do trabalhador, a maquinaria reparte o valor da força de trabalho do homem entre sua família inteira. Ela desvaloriza, assim, sua força de trabalho. É possível, por exemplo, que a compra de uma família parcelada em quatro forças de trabalho custe mais do que anteriormente a compra da força de trabalho de seu chefe, mas, em compensação, temos agora quatro jornadas de trabalho no lugar de uma, e o preço delas cai na proporção do excedente de mais-trabalho dos quatro trabalhadores em relação ao mais-trabalho de um.18 Embora haja dificuldades de mensuração dos tempos de cuidado, o trabalho reprodutivo é significativamente produtivo, o que pode ser estimado por meio da precificação do valor da hora de trabalho, revelando a produção de riquezas mesmo na esfera mercadológica e, consequentemente, corrigindo uma distorção em relação à participação das mulheres e à contribuição feminina para a economia.19 Ocorre que parte 15 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice et al. (org.). Op. cit., p. 33. 16 Ibid., p. 39. 17 Sobre esse efeito na economia: GIBB, Lygia Sabbag Fares. Op. cit., p. 266; FEDERICI, Silvia. Op. cit., p. 146. 18 MARX, Karl. Op. cit., p. 468. 19 Segundo a demógrafa e pesquisadora Jordana de Jesus, “a produção doméstica acumulada, precificada pelo rendimento-hora de substitutos para as atividades de cuidados e demais afazeres domésticos, representou, em 2013, 10,44% do PIB brasileiro, sendo que, o trabalho não remunerado das mulheres equivaleria a 8,42% do PIB. Quando o trabalho doméstico é incorporado à produção econômica, ou seja, quando se considera tanto o mercado de trabalho quanto o âmbito doméstico, os níveis de produção de homens e mulheres são praticamente os mesmos. Essas análises dão a devida visibilidade ao trabalho doméstico, bem como à contribuição feminina para a economia”. Cf. JESUS, Jordana Cristina de. Trabalho doméstico não remunerado no Brasil: uma análise de produção, consumo e transferência. Tese (Doutorado em Demografia) – Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG, 2018, p. 106-107. 125 da complexidade provavelmente advém do fato de o cuidado incluir tanto tarefas de planejamento (carga mental) e execução de cunho estritamente material – mais fáceis de serem contabilizadas – quanto tarefas que implicam compromisso relacional, de natureza afetiva – de aferição mais difícil.20 Assim, seja o cuidado realizado no seio familiar ou mesmo seja ele prestado de forma remunerada a pessoa externa à família, o seu não reconhecimento no âmbito econômico pode estar relacionado com a falta de compatibilidade entre o tempo de cuidado e o tempo cronológico que rege as relações produtivas em geral.21 Isso porque o tempo do cuidado é regido pela subjetividade, organizado de acordo com os ritmos biológicos, os quais podem ter uma sequência rotineira, mas não seguem horários marcados. O trabalho do cuidado, em vez de seguir o tempo do relógio, é orientado pelas tarefas a serem realizadas, as quais podem demandar simultaneidade ou pausas imprevistas.22 Ou seja, no plano da temporalidade, os efeitos da divisão sexual do trabalho são sentidos tanto na dimensão da extensão quanto na da intensidade da jornada, como sintetiza o professor Cláudio Dedecca: No caso dos homens, encontra-se um tempo econômico pago mais elevado e tempos não pagos e para organização familiar menos intensos. Situação inversa é encontrada para as mulheres. Essas possuem um tempo econômico pago menor, mas realizam jornadas mais extensas de trabalho não pago e na organização familiar.23 Esse sistema evidencia a presença de mais um tempo que, embora seja essencialmente de trabalho,24 não é contabilizado ou remunerado, nem reconhecido na noção de trabalho adotada na normatividade trabalhista. No plano jurídico, portanto, tanto a definição de trabalho quanto o estabelecimento da jornada padrão são ambos baseados 20 Sobre os componentes das atividades de cuidado: VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Op. cit., p. 45. 21 CONAGHAN, Joanne. Time to Dream? Flexibility, Families, and the Regulation of Working Time. In: FUDGE, Judy; OWENS, Rosemary. Op. cit., p. 108. 22 Sobre a transição para o capitalismo industrial e seus efeitos na apreensão do tempo e do ritmo de trabalho, de uma orientação por tarefas para um trabalho de horário marcado: THOMPSON, Edward Palmer. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: THOMPSON, Edward Palmer. Op. cit., p. 267-304. 23 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice et al. (org.) Op. cit., p. 30. 24 Sobre as atividades de cuidado no âmbito doméstico como propriamente forma de trabalho, trata-se de debate antigo nas teorias da economia feminista, estabelecido pelo menos desde os anos 1970, gozando atualmente de reconhecimento pleno e disseminado quanto a sua natureza de efetivo trabalho, cf. VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Op. cit., p. 49 e ss. 126 num modelo de emprego masculino e excludente,25 pois, diante do trabalho reprodutivo realizado pelas mulheres, o Direito do Trabalho nem o considera como parte integrante do conceito, nem reserva o que seria o tempo disponível necessário para suprir esse trabalho inerente à condição humana.26 Some-se a isso que além das horas que compõem ordinariamente a jornada, é comum a exigência de horas extras habituais, prática que também corrobora o referencial masculino e o desprezo às atividades de cuidado, característicos do regime dos tempos de trabalho no sistema capitalista: Exigir horas extras habituais; não conceder descansos; exigir horas extras e não remunerá-las; exigir horas extras e compensá-las com folgas concedidas meses depois: não são hipóteses de descumprimento de direitos patrimoniais. O valor correspondente às horas de trabalho é talvez o bem menor retirado do trabalhador. Tais condutas implicam suprimir o direito à convivência familiar, à diversão, ao estudo, à leitura, à organização em grupo, à discussão, à intervenção nas questões que afetam a comunidade em que está inserido. São inúmeros os casos de pessoas que, submetidas a jornadas extensas, perderam sua família, não acompanharam o velório de um ente querido, tiveram de interromper seus estudos.27 Assim, pela divisão sexual do trabalho, o tempo dedicado ao trabalho reprodutivo vem sendo atribuído àsmulheres, pesando sobretudo em desfavor das casadas e daquelas que têm filhos menores.28 Neste sentido, interessante notar que é o tempo feminino de trabalho reprodutivo que permite o tempo masculino de trabalho, tanto produtivo quanto conexo, já que as atividades voluntárias dos trabalhadores após as horas de trabalho e nos fins de semana, os deslocamentos frequentes e prolongados, as horas extras regulares, as diversões organizadas pela empresa apenas para seus assalariados, com exclusão da família, somente são suscetíveis de se produzir e de se reproduzir à medida que as mulheres no lar se encarregam da totalidade das tarefas domésticas e da educação das crianças e que o casal sacrifica suas horas de lazer em benefício da empresa.29 25 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice et al. (org.) Op. cit., p. 25 e 103. 26 Todas as pessoas demandam cuidados, os quais serão maiores ou menores, de acordo com a fase da vida. VIEIRA, Regina Stela Corrêa. Op. cit., p. 22-23. 27 ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Op. cit., p. 95. 28 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice et al. (org.) Op. cit., p. 39. 29 HIRATA, Helena. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. Tradução de Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 138-139. 127 O trabalho reprodutivo possibilita também – e aliás é imprescindível no capitalismo – a continuidade do próprio sistema produtivo, pois mesmo que a apropriação de grande parte do tempo do indivíduo seja para fins de tempo de trabalho remunerado, será preciso que reste ao trabalhador tempo para que ele possa contribuir com a reprodução da força de trabalho. Neste sentido, mais uma vez Cláudio Dedecca: Apesar da grande capacidade do capitalismo em revolucionar as condições de trabalho, ele não foi, e continua não sendo, capaz de eliminar a necessidade de um tempo necessário para a reprodução social, física e mental dos homens e mulheres. O aumento da intensidade e da extensão da jornada de trabalho esbarra na exigência de um período de descanso, a ser realizado dentro das 24 horas de duração do dia. Aqui também aparece uma outra limitação da capacidade de transformação do capitalismo. Apesar dele ter desvinculado a duração da jornada de trabalho das condições naturais que caracterizam o período diurno, ele não foi capaz de modificar a extensão do dia, continuando esse a durar 24 horas. Justamente por esse motivo, o avanço da máquina capitalista criou, e continua criando, uma recorrente tensão na distribuição do tempo diário entre seu uso para a produção econômica e sua utilização para reprodução social, física e mental.30 Assim, segundo o economista brasileiro Paul Singer, o tempo dedicado a essa reprodução será destinado tanto ao processo de manutenção do trabalhador quanto ao de sua futura reposição. Ou seja, conforme explica, além de servir para a renovação diuturna de suas forças, por meio dos cuidados com a alimentação e do descanso do trabalhador – e do atendimento a outras necessidades materiais –, o tempo fora do trabalho remunerado deve comportar os meios para que os trabalhadores possam criar seus filhos. Num viés utilitarista, espera-se que as crianças e os adolescentes sejam sustentados e educados até que tenham idade e condições de se inserirem no mercado de trabalho, o que inclui, além da capacidade física, o desenvolvimento das “aptidões técnicas e culturais exigidas pelo capital”.31 Dedicando-se ao estudo do uso do tempo no capitalismo numa perspectiva de gênero, Cláudio Dedecca propõe a seguinte classificação: tempo para reprodução econômica (aquele destinado ao trabalho remunerado e o gasto com deslocamento para sua realização) e tempo para reprodução social-familiar (aquele destinado a atividades de 30 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice et al. (org.) Op. cit., p. 24-25. 31 SINGER, Paul Israel. Economia política do trabalho: elementos para uma análise histórico- estrutural do emprego e da força de trabalho no desenvolvimento capitalista. São Paulo: Hucitec, 1977, p. 118. 128 organização domiciliar, de lazer e de sono). Para ele, não há naturalidade na alocação desses tempos, seja na duração ou na articulação entre ambos, tratando-se de um processo que sofre bastante influência externa, levando a uma distribuição profundamente desigual no uso do tempo entre homens e mulheres.32 De forma que, revela a pesquisa do referido professor, em regra, as mulheres – apesar de apresentar menor jornada de trabalho reconhecido economicamente – possuem uma jornada total superior à dos homens, tendo em vista a jornada dedicada à reprodução social ser, em média, três vezes superior a realizada pelos homens. Essa desigualdade é persistente: para os homens, a quantidade de tempo dedicado aos afazeres domésticos não se amplia em caso de desemprego; para as mulheres, ela não diminui em caso de ingresso no mercado de trabalho.33 Conclui-se que o trabalho reprodutivo representa um trabalho não remunerado, que acaba servindo ao trabalho produtivo, seja porque mantém e renova a força de trabalho, seja porque, ao ser realizado por mulheres, permite que a força de trabalho masculina tenha maior disponibilidade de tempo para o trabalho produtivo. De forma que, nos primórdios do capitalismo, ao degradar o trabalho feminino (ocultando o trabalho não remunerado das mulheres) e ao rebaixar a posição social das mulheres, a divisão sexual do trabalho, além de uma relação de poder, promoveu uma divisão dentro da classe trabalhadora (gerando um antagonismo entre homens e mulheres), bem como alavancou a acumulação capitalista, por meio da ampliação da “parte não remunerada do dia de trabalho” e do uso do salário masculino “para acumular trabalho feminino”.34 Contemporaneamente, percebe-se uma tendência de se elevar o grau de despadronização da jornada de trabalho, o que só faz reforçar a divisão sexual do trabalho produtivo e reprodutivo.35 É preciso, portanto, considerar as disfunções que a plasticidade da jornada de trabalho pode criar nas várias dimensões da ordem econômica e social, a exemplo da redução e da desvalorização do tempo de reprodução social, sob pena de se “ratificar o caráter masculino do mercado de trabalho e o feminino da organização 32 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice et al. (org.). Op. cit., p. 21-22. 33 Ibid., p. 44. 34 FEDERICI, Silvia. Op. cit., p. 232. 35 GIBB, Lygia Sabbag Fares. Op. cit., p. 269. 129 familiar”.36 Ademais, como a narrativa feminista atrai mulheres de todo o espectro social, há que se ter bastante cuidado, pois o capitalismo tem se apropriado desse discurso, num contexto de degradação das condições de trabalho, inclusive no que concerte aos tempos de trabalho e não trabalho, com a justificativa de se promover a conciliação entre vida profissional e familiar, mas apenas para as mulheres, pressupondo-se que os homens prescindem dessa conciliação, pois não desempenhariam tarefas domésticas e de cuidado. De todo modo, o que se percebe, para trabalhadores e trabalhadoras é que a lógica do trabalho passou a dominar não só a esfera econômica, mas também os tempos e “toda a existência social até aos poros do dia-a-dia e da existência privada”.37 O que ocorre, muitas vezes, é que o tempo no trabalho acaba por determinar diretamente o tempo fora do trabalho e nem sempre o tempo supostamente de não trabalho corresponde a um tempo verdadeiramente livre, de descanso e desconexão. 3.1.2 Tempos conexos: qualificar-se e deslocar-se Afora os tempos totalmente dedicados ao trabalho e aquelesem que o indivíduo pode desfrutar de um lazer genuíno, existe um tempo que fica situado numa espécie de limbo, em que ainda que não se esteja diretamente cumprindo ou aguardando ordens do empregador, de forma oblíqua há uma contribuição para o processo produtivo nos moldes capitalistas.38 Trata-se de tempos sociais “indiretamente subordinados ao trabalho”.39 Assim, por um lado, de uma perspectiva qualitativa, o cansaço provocado pelo 36 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice et al. (org.) Op. cit., p. 49 e 51. 37 É o que afirma o grupo Krisis, fundado em 1986 por intelectuais e ativistas alemães, para quem a cultura do ócio foi destruída “para impor uma produção sem descanso e sem sentido”. GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. Trad. Heinz Dietermann. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003. p. 75. 38 Estes tempos conexos são relevantes a ponto de haver uma classificação que divide o estudo da jornada de trabalho em quatro dimensões: além de duração, distribuição e intensidade, a quarta dimensão seria composta justamente pelo tempo utilizado para o exercício do trabalho (deslocamento, estudo etc.). Cf. KREIN, José Dari; BIAVASCHI, Magda de Barros. Os movimentos contraditórios da regulação do trabalho no Brasil dos anos 2000. Cuadernos del Cendes, Online, v. 32, n. 89, p. 47-82, mayo-agosto 2015. Disponível em: <http://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2015/10/CLASCO-versão-enviada-de- maio.pdf>. Acesso em: 01 maio 2019. 39 BRAGA, Alice Morais. Op. cit., p. 29. 130 trabalho invade o tempo de não trabalho, comprometendo boa parte dele com o restabelecimento das energias físicas e mentais do trabalhador, além de provocar a “sensação de que o tempo de trabalho ocupa o dia todo e, consequentemente, de que o tempo de não-trabalho é curto e insuficiente, o que faz a vida tornar-se ‘corrida’ ”40 e – acrescenta-se – adoecedora, pois: um processo prolongado de fadiga induz à instalação da fadiga crônica, que não cede nem mesmo com o repouso diário. Esse quadro de fadiga patológica compromete o sistema imunológico, deixando o trabalhador muito mais vulnerável às doenças.41 Por outro, de uma perspectiva quantitativa, as pressões da contemporaneidade – entre elas o consumismo e o hedonismo, mas também a busca pelo sucesso profissional – levam as pessoas a preencher o seu tempo liberado do trabalho com um número cada vez maior de atividades.42 Dentre elas, encontram-se algumas relacionadas ao tempo de trabalho, em contradição à necessidade de um tempo maior de descanso reparador, tendo em vista o maior grau de intensidade do trabalho executado.43 Diante desse contexto, consideram-se dedicados ao trabalho todos os tempos em que o indivíduo desempenha atividades indiretamente relacionadas ao trabalho, mesmo que não contratadas ou não remuneradas. São tempos crescentes, tendo em vista as exigências de qualificação profissional, o trânsito intenso que aumenta o tempo gasto no trajeto para o trabalho e, mesmo em caso de teletrabalho, a execução de horas além do que seria a jornada padrão, devido às “facilitações” trazidas pelas inovações tecnológicas.44 Na forma contemporânea de produção e gestão, registra-se uma forte tendência de não se remunerar esses tempos conexos, tanto que, no Brasil, a reforma trabalhista de 2017 excluiu do tempo à disposição do empregador os momentos em que o empregado, por escolha própria, adentra ou permanece nas dependências da empresa (CLT, art. 4º, § 2º) e o tempo despendido no trajeto, as denominadas horas in itinere (CLT, art. 58, § 2º). Também deixou sem qualquer garantia os períodos de inatividade do trabalhador em contrato de 40 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 325. 41 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Op. cit., p. 156. 42 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 325. 43 CALVETE, Cássio da Silva. Redução da jornada de trabalho: uma análise econômica para o Brasil. 217 f. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de Economia, Universidade de Campinas, Campinas, 2006, p. 125. 44 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 39. 131 trabalho intermitente (CLT, art. 452-A, § 5º) e os períodos de atividade do trabalhador em teletrabalho quando ultrapassada a jornada padrão constitucional diária ou semanal (CLT, art. 62, III). Assim, essa mescla entre os tempos de trabalho e não trabalho acarreta “a necessidade de equações temporais cotidianas que buscam, sem sucesso, harmonizar a multiplicidade cada vez maior de tempos sociais”, levando os trabalhadores a “uma sensação de extremo mal-estar, num contexto temporal que tem como características principais a urgência, a intensidade, a flexibilidade e a aceleração”.45 Nas palavras de Almeida e Severo: A relação de trabalho reflete, como não poderia deixar de ser, a sociedade em que ela se estabelece. Essa urgência da vida contemporânea invade o ambiente de trabalho para determinar a necessidade de especialização contínua, de controle contínuo, de conexão contínua. Isso, porém, tem consequências graves, que afetam diretamente a vida privada e social do empregado.46 Ainda acerca da debilidade da linha que separa o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho, afirma o professor José Dari Krein: O fenômeno aqui abordado vai além da jornada formal, pois envolve o tempo para o desenvolvimento de atividades ligadas à ocupação que não são consideradas na composição das estatísticas sobre a jornada formal, tais como o estudo, a busca de informação, o trabalho em casa, o transporte etc. Apesar dos avanços tecnológicos, parte expressiva das pessoas está trabalhando mais para manter-se ocupada/empregada, ou para assegurar um determinado padrão de consumo.47 Enfim, consoante Robert Castel, o trabalho concreto é cada vez mais difícil de se quantificar, pois é composto de uma parte visível e outra invisível.48 Inclui, pois, atividades conexas, a exemplo dos deslocamentos, os quais já eram apontados como uma questão em 1880, no panfleto político de Paul Lafargue, segundo o qual: Assim, à fadiga de um dia de trabalho excessivamente longo, visto que tem pelo menos quinze horas, vem juntar-se para estes desgraçados a das idas e vindas tão frequentes, tão penosas. Daqui resulta que à noite chegam a suas casas oprimidos pela necessidade de dormir e que no dia seguinte saem antes de terem repousado completamente para se encontrarem na oficina à hora da abertura.49 45 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 325. 46 ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Op. cit., p. 40. 47 KREIN, José Dari. Op. cit., p. 248. 48 CASTEL, Robert. Op. cit., p. 380. 49 LAFARGUE, Paul. Op. cit., p. 17. 132 Apesar de passado mais de um século da publicação acima, ela não se afasta muito da realidade atual, nem nas longas jornadas, nem na questão do tempo gasto nos deslocamentos casa-trabalho e trabalho-casa. Isso porque a jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso, tão comum em determinadas atividades profissionais – e que, como visto, após a reforma trabalhista, passou a ser permitida indistintamente – acaba por tomar, na prática, três turnos do dia, sobretudo considerando que o trabalhador ainda tem que se locomover no trânsito para ir e voltar do trabalho.50 Ademais, como visto, o tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, ainda que fornecido pelo empregador, teve afastada, pela reforma trabalhista, sua natureza de tempo à disposição do empregador, não sendo computado na jornada de trabalho nem, portanto, remunerado (CLT, art. 58, § 2º). Registre-se que, se, por um lado, a redução ou a extinção do tempo de deslocamento é umadas vantagens da execução dos serviços em regime de teletrabalho; por outro, muito comum é a invasão do tempos privados pelo trabalho é a sua maior desvantagem, agravada pelo fato de não haver sequer proteção legal que garanta a remuneração ou a indenização do eventual dano existencial. Em se tratando de qualificação, muitas vezes a formação profissional serve previamente como critério no processo de seleção de pessoal, sendo elencada como requisito para a contratação, e o ônus de se requalificar tem sido exigido do trabalhador ao longo do contrato. Ou, seja, mesmo a formação necessária para o exercício da profissão é, em regra, exigida do empregado, numa forma de deixar a seu cargo este custo da produção, em mitigação ao princípio da alteridade.51 No ordenamento pátrio, por exemplo, como forma de se promover o direito à profissionalização dos adolescentes e jovens (CF, art. 227), registre-se a existência do contrato de aprendizagem, para pessoas a partir de 14 anos, obrigatório para empresas de médio e grande porte, destinado à formação e orientação técnico-profissional metódica. 50 Registre-se que, por meio da recente tecnologia, muitos trabalhadores relatam o uso do tempo de locomoção como tempo de trabalho remoto, pois fazem ligações e respondem e-mails durante o trajeto. Cf. GIBB, Lygia Sabbag Fares. Op. cit., p. 175. 51 RIBEIRO, Ailana Santos; SANTOS, Nara Abreu. A “(auto)destruição criativa” do trabalhador e o princípio da alteridade na pós-modernidade. In: COUTINHO, Aldacy Rachid; WANDELLI, Leonardo Vieira (org.). Op. cit., p. 41-50. 133 Trata-se, pois, de contrato de trabalho especial, com requisitos próprios, além de direitos e deveres específicos (CLT, art. 424 e ss.). Porém, com exceção dos aprendizes portadores de deficiência, o contrato será estabelecido por prazo determinado máximo de dois anos de duração e restrito aos menores de 24 anos de idade. Outra hipótese de qualificação profissional diz respeito à possibilidade de, por meio de negociação coletiva e aquiescência do empregado, suspender o contrato de trabalho padrão, por um período de dois a cinco meses, para participação em curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador (CLT, art. 476-A). Ambas são situações provisórias e excepcionais, revelando que, na maior parte da vida ativa do trabalhador, este estará por conta própria, no que concerne a sua formação e requalificação, devendo promover a sua “empregabilidade”, incutido da ideia de gestão do seu próprio capital humano, por meio de cursos utilitaristas de capacitação para aprimorar o perfil profissional, impulsionando a carreira. Para Giovanni Alves e Ricardo Antunes, trata-se de um fenômeno típico da esfera do trabalho no contexto da mundialização do capital, em que: com a aparência de um despotismo mais brando, a sociedade produtora de mercadorias torna, desde o seu nível microcósmico, dado pela fábrica toyotista, ainda mais profunda e interiorizada a condição do estranhamento presente na subjetividade operária e dissemina novas objetivações fetichizadas que se impõem à classe-que-vive-do-trabalho. Um exemplo forte é dado pela necessidade crescente de qualificar-se melhor e preparar- se mais para conseguir trabalho. Parte importante do “tempo livre” dos trabalhadores está crescentemente voltada para adquirir “empregabilidade”, palavra-fetiche que o capital usa para transferir aos trabalhadores as necessidades de sua qualificação, que anteriormente eram em grande parte realizadas pelo capital.52 Ou ainda, nas palavras do filósofo alemão Robert Kurz: “os pós-modernos, consumidores de seu próprio capital humano, trabalham incessantemente em sua biografia, abrangendo todas as facetas da vida”.53 Na contemporaneidade, portanto, embora proibido e combatido o trabalho infantil, o investimento em formação profissional começa na mais tenra idade,54 pois o próprio “sistema de educação transforma-se num dispositivo 52 ALVES, Giovanni; ANTUNES, Ricardo. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, v. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago. 2004, p. 347. 53 KURZ, Robert apud CHEMIN, Beatris Francisca. Constituição e lazer: uma perspectiva do tempo livre na vida do (trabalhador) brasileiro. Curitiba: Juruá, 2005, p. 165. 54 Interessante notar que a profissionalização consta no rol do artigo 227 da CF como direito não só dos adolescentes e jovens, mas também das crianças, correspondendo ao dever da família, da 134 encarregado de moldar as capacidades naturais dos indivíduos em função de uma qualificação”,55 com vistas a uma inserção profissional, ou seja, segundo um critério altamente utilitarista. Ademais, por ser o aprimoramento um processo contínuo, o trabalhador passará praticamente toda sua vida ativa no mercado de trabalho com esse dispêndio de recursos financeiros e de tempo de vida, investimento de retorno duvidoso,56 pois as qualificações desatualizam-se na velocidade característica da pós-modernidade, exigindo sempre novos cursos e estudos. De modo que, pondo-se a tônica na polivalência, na flexibilidade de emprego, na capacidade de adaptar-se a novas funções, em oposição ao domínio de uma habilidade, em qualificações adquiridas, na capacidade de assumir compromissos e comunicar-se, nas qualidades relacionais, a nova gestão empresarial volta-se para aquilo que se denomina, com frequência cada vez maior, “saber-ser”, em oposição ao “saber” e ao “saber-fazer”.57 Ainda sobre o tempo de educação formal conexa ao trabalho, interessante destacar um fenômeno recente conhecido como polarização da mão de obra, que consiste na oferta, em um polo, de empregos pouco qualificados, sem valorização social e, em outro polo, de empregos que exigem altos níveis de qualificação, fazendo com que os trabalhadores se esforcem e invistam muito em conhecimentos e competências, sob pena de, não o fazendo, terem que se submeter a funções aquém de sua capacidade e, consequentemente, com baixa remuneração.58 Para Richard Sennett, “o excesso de qualificação é um sinal da polarização que caracteriza o novo regime”, levando a uma crescente desigualdade em termos do valor da qualificação técnica: salários altos para pessoas qualificadas; salários baixos para pessoas não qualificadas.59 Ou seja, a despeito de se tratar de investimento de retorno incerto, o trabalhador não tem a opção de se esquivar: em ambiente de polarização e crise econômica, o anseio pela preservação do padrão de vida e a ameaça pela possibilidade iminente de desemprego sociedade e do Estado em assegurá-lo. 55 MÉDA, Dominique. Op. cit., p. 312. 56 Registre-se que, em razão da divisão sexual do trabalho, do ponto de vista das trabalhadoras, investir em sua própria qualificação, em muitos casos, se revela frustrante financeiramente e do ponto de vista da realização profissional, já que a elas, como visto, são destinados postos com menor jornada e menor exigência de qualificação. 57 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 131. 58 Sobre a “bi-polarização do trabalho assalariado feminino”, Cf. HIRATA, Helena. Op. cit., p. 147. 59 SENNETT, Richard. Op. cit., p. 105. 135 servem como “motivação” para o trabalhador. Aliás, a busca por uma educação meramente formal e funcionalista”60 visando manter-se ou tornar-se “empregável” consiste numa exigência do mercado que ocupa o tempo livre de empregados e desempregados.61 E com isso, uns e outros afastam-se por mais tempo do seu núcleo familiar e social.62 Por fim, é preciso registrar a existência de um tempo gasto com o trabalho fora do horário e do local de prestação dos serviços. Neste caso, em regra, não há contratação direta, pois os próprios sistemas de gestão porresultados fazem com que o trabalhador – ainda que este não leve efetivamente atividades para realizar em casa – fique permanentemente desafiado a se preparar e a encontrar soluções para as questões do trabalho;63 e tampouco há remuneração, a qual segue uma tendência de não se condicionar mais à disponibilidade do trabalhador, mas sim à efetiva realização do trabalho.64 3.1.3 Tempos desconexos: o direito à desconexão Do ponto de vista jurídico, embora não haja previsão expressa no ordenamento pátrio,65 o trabalhador tem direito à desconexão, isto é, “a se afastar totalmente do ambiente de trabalho, preservando seus momentos de relaxamento, de lazer, seu ambiente domiciliar, contra as novas técnicas invasivas que penetram na vida íntima do empregado”.66 Trata-se, na verdade, de um direito cuja titularidade pertence não apenas ao trabalhador, mas também 60 BRAGA, Alice Morais. Op. cit., p. 30. 61 KREIN, José Dari. Op. cit., p. 214. 62 CALVETE, Cássio da Silva. Op. cit., p. 91. 63 Neste sentido: “o aumento da autonomia e da iniciativa do trabalhador, com a redução de níveis hierárquicos, pode coexistir com a intensificação do trabalho, e pode mesmo contribuir para ela pelo processo de auto-intensificação”. Cf. HIRATA, Helena. Globalização e divisão sexual do trabalho. Cadernos Pagu. Campinas, SP, n. 17/18, p. 139-156, 2001/2002, p. 146. 64 KREIN, José Dari. Op. cit., p. 249. 65 Na França, desde 2017, o “Code du travail”, dentro do livro que trata da negociação coletiva, prevê o direito à desconexão no artigo 2242-17: “7° Les modalités du plein exercice par le salarié de son droit à la déconnexion et la mise en place par l'entreprise de dispositifs de régulation de l'utilisation des outils numériques, en vue d'assurer le respect des temps de repos et de congé ainsi que de la vie personnelle et familiale. A défaut d'accord, l'employeur élabore une charte, après avis du comité social et économique. Cette charte définit ces modalités de l'exercice du droit à la déconnexion et prévoit en outre la mise en œuvre, à destination des salariés et du personnel d'encadrement et de direction, d'actions de formation et de sensibilisation à un usage raisonnable des outils numériques”. Disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?idSectionTA=LEGISCTA000035611818&cidT exte=LEGITEXT000006072050&dateTexte=20180820>. Acesso em: 08 dez. 2018. 66 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 6. ed. Niterói: Impetus, 2012, p. 660. 136 à própria sociedade, e que deve ser tomado “numa perspectiva técnico-jurídica, para fins de identificar a existência de um bem da vida, o não-trabalho, cuja preservação possa se dar, em concreto, por uma pretensão que se deduza em juízo”.67 Isso porque o direito fundamental ao trabalho não exclui o direito fundamental à saúde e ao lazer,68 todos contidos no rol dos direitos sociais do art. 6º da Constituição. Neste sentido, o direito à desconexão do trabalho consubstancia-se no direito de trabalhar e de, também, desconectar-se do trabalho ao encerrar sua jornada, fruindo verdadeiramente suas horas de lazer. Abarca o direito à limitação da jornada e ao efetivo gozo dos períodos de descanso, que lhe permitem, justamente, a vida fora do ambiente laboral.69 Assim – apesar de serem direitos sociais de ampla titularidade –, o direito à saúde e o direito ao lazer, especificamente no que diz respeito aos trabalhadores, são tutelados por 67 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Do direito à desconexão do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, SP, n. 23, p. 296-313, jul./dez. 2003. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/do-direito-%C3%A0-desconex%C3%A3o-do- trabalho>. Acesso em 15 jul. 2018. 68 A respeito do direito à desconexão e sua relação com o direito ao lazer, aponta-se o seguinte julgado do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região: VIOLAÇÃO AO DIREITO À DESCONEXÃO, AO ESQUECIMENTO, AO LAZER E À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E SOCIAL. DANO EXISTENCIAL. ESPÉCIE DO GÊNERO DANO MORAL. Inegavelmente, a supressão de tempo para que o trabalhador se realize, como ser humano, pessoalmente, familiarmente e socialmente é causadora de danos morais. Viver não é apenas trabalhar; é conviver; é relacionar-se com seus semelhantes na busca do equilíbrio, da alegria, da felicidade e da harmonia, consigo própria, assim como em toda a gama das relações sociais materiais e espirituais. Quem somente trabalha, dificilmente é feliz; também não é feliz quem apenas se diverte; a vida é um ponto de equilíbrio entre o trabalho e o lazer, de modo que as férias, por exemplo, constituem importante instituto justrabalhista, que transcende o próprio Direito do Trabalho. Com efeito, configura-se o dano moral, quando o empregado tem ceifada a oportunidade de dedicar-se às atividades de sua vida privada, em face das tarefas laborais excessivas, deixando as relações familiares, o convívio social, a prática de esportes, o lazer, a cultura, vilipendiado ficando o princípio da dignidade da pessoa humana – art. 1º, III, CR. Nos casos de jornadas de trabalho extenuantes, o trabalhador é explorado exaustiva, contínua e ininterruptamente, retirando do prestador de serviços a possibilidade de se organizar interna e externamente como pessoa humana em permanente evolução, desprezado ficando, de conseguinte, o seu projeto de vida. A sociedade industrial pós-moderna tem se pautado pela produtividade, pela qualidade, pela multifuncionalidade, pelo just in time, pela competitividade, pela disponibilidade full time, e pelas metas, sob o comando, direto e indireto, cada vez mais intenso e profundo do tomador de serviços, por si ou por empresa interposta. Nessas circunstâncias, consoante moderna doutrina, desencadeia- se o dano existencial, de cunho extrapatrimonial, que não se confunde com o dano moral. BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (3ª Região). Processo RO 0011067-61-2014.5.03.0163. Relator: Luiz Otávio Linhares Renault. Belo Horizonte, 03 set. 2015. Disponível em: <https://pje- consulta.trt3.jus.br/consultaprocessual/pages/consultas/DetalhaProcesso.seam?p_num_pje=138 399&p_grau_pje=1&p_seq=11067&p_vara=163&cid=8314>. Acesso em: 23 jan. 2019. 69 ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Op. cit., p. 10. 137 meio de normas disciplinadoras da jornada de trabalho70 e de suas pausas, mas também devem ser incentivadas iniciativas que viabilizem o despertar da criatividade e o exercício do pensamento.71 Sobretudo na sociedade em rede atual, é preciso que os direitos fundamentais do trabalhador 72 sirvam como norte ao poder diretivo empregatício no estabelecimento dos horários de prestação dos serviços, limitado pelo tempo de não trabalho, de modo a se garantir o pleno usufruto da vida privada pelos trabalhadores. Caso contrário, da violação do direito à desconexão decorrem efeitos nocivos no ambiente familiar; ilustrativamente, transcreve-se o relato preocupado da personagem Rico, na obra Corrosão do caráter, de Richard Sennett: Chegamos em casa às sete, jantamos, tentamos encontrar uma hora para o dever de casa das crianças, e depois para tratar de nossa própria papelada. Quando as coisas ficam difíceis meses seguidos na empresa de consultoria, é como se eu não soubesse quem são meus filhos. 73 Isso porque, diante da existência de novas tecnologias, o direito do trabalhador de permanecer “desligado ou desconectado do polo patronal e da exigência de serviços em seus períodos de repouso”74 tem sido constantemente desrespeitado. Ou, como relata María Emilia Casas Baamonde: O tempo de trabalho na economia digitalizada é um tempo por vezes de difícil formalização ou delimitação, sem substrato físico, comparável a um tempo colocado à disposição ou de disponibilidade, que, indevidamente, não gera retribuição ou proteção. Qualquerconexão com o centro empresarial ou plataforma digital, por mais débil que seja, é tempo de trabalho.75 70 LUNARDI, Alexandre. Função social do direito ao lazer nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2010, p. 27. 71 CALVET, Otavio Amaral. Direito ao lazer nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2006, p. 106-109. 72 KLIPPEL, Bruno. Jornada de Trabalho e Direitos Fundamentais. São Paulo: LTr, 2016. 73 SENNETT, Richard. Op. cit., p. 20. 74 OLIVEIRA, Christina D’Arc Damasceno. Direito a desconexão do trabalhador: repercussões no atual contexto trabalhista. Revista LTr, São Paulo, v. 74, n. 10, p. 1180-1188, out. 2010, p. 1182. 75 BAAMONDE, María Emilia Casas. Op. cit., p. 6, em tradução livre. No original: “El tiempo de trabajo en la economía digitalizada es un tiempo en ocasiones de difícil formalización o delimitación, sin substrato físico, comparable a un tiempo de puesta a disposición o de disponibilidad, que, indebidamente, no lleva aparejada la retribución, ni protección. Cualquier conexión con el centro empresarial o plataforma digital, por débil que sea, es tiempo de trabajo”. 138 Vistas algumas modalidades de tempos de não trabalho, mas a ele conexos, pode-se concluir que existe uma recorrente apropriação capitalista do tempo social dos trabalhadores, na maioria das vezes sem a correspondente remuneração ou indenização, o que aprofunda o questionamento presente nesta dissertação acerca da real possibilidade de, no contexto do sistema capitalista, haver tempos verdadeiramente livres do trabalho. Aproximando-se de uma resposta, na próxima seção serão analisados os tempos involuntários de não trabalho, suas nuances e seus efeitos sobre os trabalhadores. 139 3.2 Tempos involuntários de não trabalho A Fome é em tudo a companheira do homem ocioso; deuses e homens se indignam com quem ocioso vive, semelhante em caráter aos zangões sem ferrão, que consomem o esforço das abelhas, ociosos a comer; para ti seja caro organizar os trabalhos regrados, de modo que os teus celeiros se encham de alimento no tempo certo. Com trabalho os homens tornam-se ricos em rebanhos e opulentos, e trabalhando serás muito mais querido dos imortais e dos mortais: muito eles odeiam os ociosos. O trabalho não é nenhuma desonra; desonra é não trabalhar. Hesíodo Embora a dimensão e a própria compreensão do tempo livre decorram da noção de tempo de trabalho,76 nem por isso todo o tempo liberado da jornada de trabalho pode ser considerado um tempo efetivamente livre77 e voluntário. Existem, pois, tempos involuntários de não trabalho, em que o indivíduo encontra-se em situação de subocupação ou até de desocupação, isto é, com jornadas extremamente reduzidas ou mesmo desempregado. Em ambos os casos, boa parte do tempo acaba sendo dedicada à busca pelo emprego ou complementação de renda, seja de forma ativa ou passiva (ocupando-se o tempo em pensar e planejar sobre o assunto), deixando nos trabalhadores desempregados e subocupados uma contraditória sensação de falta de tempo, temas a serem a abordados nesta seção. 3.2.1 Capitalismo 24/7 e a colonização da noite: sempre é tempo de trabalho (ou de busca pelo trabalho) Se houve um tempo em que era considerado imoral trabalhar antes do nascer ou após o por do sol e até mesmo pecado não guardar um dia para o louvor religioso e o descanso, hoje o mercado estabelece metas e demanda que o sujeito esteja à disposição “24/7”.78 Esse alongamento do tempo de trabalho para horas que antes eram consideradas 76 BRAGA, Alice Morais. Op. cit., p. 26. 77 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 38. 78 “24/7 é uma redundância estática que contradiz sua própria relação com as tessituras rítmicas e periódicas da vida humana”. CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Trad. Joaquim Toledo Jr. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 18. 140 como antissociais foi possível em grande parte pelo advento da luz elétrica79 e pelo movimento de ruptura com a visão teocêntrica de mundo ou, nas palavras de Olgária Matos, “com a substituição dos lampiões a gás pela iluminação elétrica em fins do século XIX, ‘a Via-Láctea foi secularizada’ ”.80 A luz artificial, portanto, permitiu “uma expansão da vida para além da luz natural, uma emancipação dos ritmos naturais, baseada na artificialização da vida e colonização da noite”.81 Sobre os efeitos dessa revolução nos tempos de trabalho, sintetizou Claudio Dedecca: A capacidade do capitalismo em organizar o tempo de trabalho foi, também naquela época, potencializada pela difusão da energia elétrica como força motriz do processo produtivo. A energia elétrica permitiu estender a jornada de trabalho além da duração do período diurno regulado pelo sol e pelas estações do ano e, também, reduzir ainda mais a dependência do processo produtivo da capacidade física da força de trabalho. O trabalho noturno passou a ser uma recorrência no capitalismo. Sob as ordens capitalistas passou a se estabelecer o ritmo e a extensão do tempo de trabalho.82 Mais recentemente, a revolução informacional do fim do século XX – de forma análoga à revolução da luz elétrica no fim do século XIX – ampliou significativamente a capacidade produtiva, alterando a forma das relações humanas,83 inclusive na seara laboral. Neste sentido, Guy Standing lembra como a percepção do tempo vem sendo alterada na sociedade de mercado global, com “crescente desrespeito pelo relógio biológico de 24 horas”, ilustrado pela padronização de fusos horários “em nome da eficiência nos negócios” para que o mercado global funcione no esquema 24/7, isto é, “nunca dorme ou relaxa; não 79 O ensaísta norte-americano Jonathan Crary remonta ao estudioso alemão Wolfgang Schivelbusch para recordar que “o amplo desenvolvimento da iluminação pública por volta da década de 1880 (…) expandiu a duração e, portanto, a lucratividade de muitas atividades econômicas”. CRARY, Jonathan. Op. cit., p. 25-26. 80 MATOS, Olgária. O mal-estar na contemporaneidade: performance e tempo. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 59, n. 4, p. 455-468, out./dez. 2008. 81 GWIAZDZINSKI, Luc apud SANTOS, Norberto Pinto; MOREIRA, Claudete Oliveira. O lazer e a noite. Imagens de uma cidade universitária: Coimbra. In: SANTOS, Norberto Pinto. Lazer: Da libertação do tempo à conquista das práticas. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, p. 257. 82 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. In: COSTA, Ana Alice et al. (org.). Op. cit., p. 24. 83 “Toda aparente novidade tecnológica é também uma dilatação qualitativa de acomodação e dependência a rotinas 24/7; também é parte de um aumento na quantidade de aspectos sob os quais um indivíduo é transformado em uma aplicação de novos sistemas e esquemas de controle”. CRARY, Jonathan. Op. cit., p. 52. 141 tem nenhum respeito pela noite ou pelo dia”.84 Pelo que se depreende, o sistema de produção capitalista contemporâneo exige uma dedicação 24 horas por dia, sete dias por semana, ultrapassando os limites físicos e biológicos do indivíduo, sem deixar margem para o tempo noturno, nem para o repouso e a contemplação. Esse modo de vida estressante atinge os trabalhadores, mas também os desempregados, os quais estão sempre em busca de se qualificar e se candidatar às vagas, durante o dia e mesmo à noite, em sítios eletrônicos especializados. Isso porque atualmente se vive numa cultura de valorização do trabalho ininterrupto,85 enquanto o não trabalho é, por seu turno, visto com maus olhos e, por conseguinte, aquele que não trabalha é considerado um inútil para o mundo, que vive como um parasita do próximo86 – e sua conduta, inclusive passível de consequências jurídicas. Assim, no passado, muitosforam os que sugeriram casas públicas de trabalho forçado, com longas jornadas, para combater a preguiça e extirpar a licenciosidade dos que, não tendo propriedades nem meios honestos e suficientes de subsistência, não trabalhassem.87 Além da proposição dessas casas ideais de trabalho – verdadeiras “casas do terror” –, em alguns ordenamentos jurídicos, a mendicância e a vagabundagem eram passíveis de serem punidas penalmente. No Brasil, por exemplo – embora proibido o trabalho forçado,88 e revogado o artigo que considerava ilícita a mendicância89 – ainda resta um caráter militarizado na organização 84 STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Trad. Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 177-178. 85 Consoante relata Michel Miaille, já na transição do feudalismo ao capitalismo, “as mais duras sanções atingem aqueles que não aceitam entrar neste exército do proletariado. Assim, o desemprego é considerado como um crime e severamente reprimido.” Cf. MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. Trad. Ana Prata. 3. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 2005, p. 119. Já a ideia de valorização do trabalho como elemento da dignidade humana vem se estabelecendo ao longo dos anos, desde o Renascimento. Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro; NASCIMENTO, Sônia Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, §17. 86 CASTEL, Robert. Op. cit., p. 76. 87 MARX, Karl. Op. cit., p. 348; CASTEL, Robert. Op. cit., p. 114 e 131. 88 A pena de trabalhos forçados é vedada pela Constituição Federal (art. 5º, XLVII, c). O que se permite é o trabalho dos presos com finalidade educativa e produtiva, caso em que a regulação não se dá pela CLT, mas sim como requisito para remição de pena pela Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210, de 1984), com limitação de jornada, mas – registre-se – remuneração aquém do salário mínimo. 89 Revogado o art. 60 do Decreto-Lei n. 3.688, de 1941 (Lei das Contravenções Penais), pela Lei n. 11.983, de 2009. 142 do trabalho, fruto da ideologia de que o não trabalho e o trabalho propriamente livre seriam valores negativos, a serem combatidos90. De forma que a ociosidade de quem é “válido para o trabalho” é tratada como sinônimo de “vadiagem”, tipo penal previsto em lei desde 1941 e ainda vigor, mas apenas se o infrator não tiver “renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência” (Lei das Contravenções Penais, artigo 59).91 Ou seja, a penalização, além de ter dado margem a repressão e abusos policiais, significa uma espécie de controle estatal, uma imposição de ser um cidadão produtivo, a qual acaba por incidir apenas sobre quem já se encontra socialmente marginalizado.92 A vigência de dispositivos legais como o mencionado, associada a uma política higienista em relação aos espaços públicos urbanos, revela pautas do século XX ainda presentes atualmente no país. Ou seja, o ofício ainda traça “a linha divisória entre os incluídos e os excluídos de tal sistema social”.93 Porém, não se pode deixar de mencionar que, no contexto atual de precarização das relações de trabalho, ocorre uma “relativização do desemprego”, por meio da constituição e expansão de uma produtividade sem formas bem definidas. Neste sentido, levando em consideração as pessoas que realizam trabalho produtivo, sem ter celebrado um contrato de trabalho típico, “estar desempregado pode estar longe de significar não estar trabalhando”.94 A ponto de o economista francês Jean Boissonnat, asseverar que “não é o trabalho que falta”, porém que ele está tão radicalmente diferente que não se consegue reconhecê-lo, nem se sabe como organizá-lo de uma nova forma, que não a habitual.95 90 Sobre a referida ideologia, merece menção um curioso texto publicado em 18 de janeiro de 1890, no jornal “O Estado de São Paulo”, intitulado “Carta de um malandro”, que pode ser lido no Anexo desta dissertação. 91 BRASIL. Decreto-Lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3688.htm>. Acesso em: 30 set. 2018. 92 Como lembra Márcio Tulio Viana, "enquanto o trabalhador entrava na CLT, o vadio era capturado pela Lei de Contravenções Penais". VIANA, Márcio Túlio. 70 anos de CLT: uma história de trabalhadores. Brasília: Tribunal Superior do Trabalho, 2013, p. 55. 93 CASTEL, Robert. Op. cit., p. 110. 94 A esse entendimento, chegou a pesquisadora Ludmila Abilio sobre o trabalho das revendedoras que atuam em sistema de vendas diretas. Cf. ABILIO, Ludmila Costhek. Op. cit., p. 224-226. 95 BOISSONNAT, Jean. Outra maneira de trabalhar. Revista LTr, São Paulo, v. 62, n. 3, mar./1998, p. 315-322. Não se trataria, pois, de um capitalismo sem trabalho, mas um capitalismo sem emprego. Diferente do que previa a filósofa alemã Hannah Arendt, para quem os avanços tecnológicos acabariam gerando uma "sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta”. Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 13. 143 Mas o desemprego também pode significar mesmo a existência de sujeitos completamente sem trabalho, embora em busca dele – ou ainda pior – pessoas sem perspectivas de o conseguir e que desistiram de procurar: registre-se que tem crescido o número de desalentados, isto é, pessoas sem trabalho e que gostariam de estar inseridas formal e produtivamente no mercado, mas que perderam a esperança de o conseguir.96 Para a ensaísta francesa Viviane Forrester, não seria justo impor a cada um dos milhões de desempregados – e isso a cada dia útil de cada semana, de cada mês, de cada ano – a procura “efetiva e permanente” desse trabalho que não existe. Obrigá-lo a passar horas, durante dias, semanas, meses e, às vezes, anos se oferecendo todo dia, toda semana, todo mês, todo ano, em vão, barrado previamente pelas estatísticas.97 3.2.2 O desemprego e os tempos de trabalho No que concerne ao problema do desemprego e sua particular relação com os tempos de trabalho, muitos defendem a redução da duração da jornada como forma de redistribuir a quantidade total de tempo de trabalho entre mais pessoas, de modo a promover o aumento do número de postos de trabalho, cada um deles com uma carga horária menor.98 Porém, o que nesta dissertação se sustenta é que, somadas às questões econômicas, mais do que a redução na dimensão da extensão, são as recentes alterações ocorridas nas dimensões da intensidade e da flexibilidade do tempo de trabalho que agravam significativamente o desemprego. 96 GONÇALVES, Adriana; PERET, Luiz Eduardo. Desemprego sobe para 12,7% com 13,4 milhões de pessoas em busca de trabalho. Agência de notícias IBGE. Rio de Janeiro, 30 abr. 2019. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de- noticias/noticias/24283-desemprego-sobe-para-12-7-com-13-4-milhoes-de-pessoas-em-busca-de- trabalho>. Acesso em: 08 maio 2019. 97 FORRESTER, Viviane. O horror econômico. Trad. Álvaro Lorencini. 7. ed. São Paulo: Unesp, 1997, p. 14. Para ela, “uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno número que molda a economia e detém o poder. Segundo a lógica reinante, uma multidão de seres humanos encontra-se assim sem razão razoável para viver neste mundo, onde, entretanto, eles encontraram a vida”. Ibid, p. 27. 98 Por todos, Manuel Alonso Olea, para quem o trabalho é um “bem escasso”. O jurista espanhol propõe, então, a redução da jornada individual para que o tempo de trabalho total, coletivamente considerado, seja repartido, numa espécie de rateio, para que mais pessoas tenham trabalho, de forma que “não se trata de que cada umdeva ter menos trabalho e de que, portanto, todos trabalhem menos, mas de que alguns trabalhem menos, para que o trabalho que dessa forma liberam possa ser apropriado por outros; dito de outra forma, do que se trata não é tanto de operar sobre o tempo total de trabalho, diminuindo-o, mas de manter, e até mesmo aumentar, o tempo total, distribuindo-o”. Cf. ALONSO OLEA, Manuel. Op. cit., p. 19. 144 Assim, num contexto de baixo crescimento econômico, as mudanças no grau de intensidade e na forma de distribuição da jornada pioram não só as condições de trabalho daqueles inseridos no mercado, mas também a situação da oferta de empregos para aqueles que dele estão excluídos. Isso porque os ajustes são feitos de forma a acomodar o uso do tempo às necessidades do capital (e não dos trabalhadores e desempregados), visando ao maior lucro, por meio da redução dos custos produtivos, ou seja – como costuma ocorrer no sistema capitalista –, mediante a exploração máxima de cada trabalhador, ainda que isso acarrete o “comprometimento da oportunidade do trabalho de outrem”.99 Para o sociólogo alemão Ulrich Beck, o capitalismo global é, na verdade, um capitalismo de proprietários, que objetiva atender tão-somente os interesses destes, excluindo os trabalhadores e levando ao desemprego. Seguindo a perversa lógica de que “quando os custos do trabalho diminuem, aumenta o lucro”, o capitalismo – ao mesmo tempo que desemprega trabalhadores – torna-se “cada vez mais desempregado”, isto é, esvaziado de legitimidade. Assim, o desemprego contemporâneo “já não é mais nenhum destino marginal, ele afeta potencialmente a todos e à democracia como forma de vida”.100 Com vistas a promover a acumulação de capital, muito se tem investido em inovações tecnológicas de automação e em aperfeiçoamento dos métodos de organização do trabalho, o que leva, frequentemente, à intensificação e à flexibilização dos tempos de trabalho. Note-se que o progresso técnico e o tecnológico não são, em si e a priori, prejudiciais aos trabalhadores, porém a forma como são implementados, nos moldes capitalistas de produção, acaba acarretando precarização das condições de trabalho e desemprego. Entretanto, haveria outras possibilidades para sua aplicação como, por exemplo, usá-los para promover a liberação do trabalho, resultando na criação de uma sociedade do tempo livre.101 A questão da emancipação dos indivíduos, com substituição do trabalho humano por aparatos técnicos remonta à imagem aristotélica dos escravos como instrumentos animados, isto é, que se movem por si próprios, liberando os cidadãos gregos para a ação 99 DEDECCA, Cláudio Salvadori. Op. cit., p. 49. 100 BECK, Ulrich. Capitalismo sem trabalho. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 41-55, 1997, p. 42. 101 TEIXEIRA, Kleber Garcia. A máquina e o tempo: dialética das forças produtivas e do tempo de trabalho em Marx. 245p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010, p. 12. 145 política;102 e lembra, ainda na Antiguidade, a expectativa dos gregos em torno da invenção da azenha – espécie de moinho hidráulico que liberaria as mulheres do penoso trabalho de moagem de cereais – cantada em versos, consoante lembrou o filósofo alemão Walter Benjamin: Tirai vossas mãos da mó, mulheres da moenda; dormi muito mais tempo, mesmo que o canto do galo anuncie o dia, porque Deméter encarregou as Ninfas do trabalho que ocupava as vossas mãos: elas se precipitam do alto de uma roda e fazem girar o eixo que, com os pinos da engrenagem, move o peso côncavo das mós de Nisyra. Nós gozaremos a vida da Idade de Ouro se conseguirmos aprender a saborear sem pesares as obras de Deméter.103 Na contemporaneidade, permanece a ideia que a redução do tempo de trabalho por meio de inovações técnicas serviria para libertar as pessoas para atuação no espaço público, porém ainda hoje “o trabalho e os aspectos seus adjacentes ou ocupam a maior parte da vida desperta (pelo menos para a população que dispõe de um emprego) ou impedem os que não dispõem de emprego de um possível investimento noutra esfera, devido à falta de rendimentos ou de estatuto”104. Neste sentido, Vincent de Gaulejac afirma que “as evoluções tecnológicas poderiam libertar o homem do trabalho. Elas parecem, ao contrário, colocá-lo sob pressão. Aliviam a fadiga física, mas aumentam a pressão psíquica”.105 Ou ainda, nas palavras de Sadi Dal Rosso, mesmo o tempo de não trabalho “passa a ser engolido pelo trabalho. A tecnologia que poupa trabalho está falhando em liberar aqueles que trabalham”106 e causando uma polarização: ou se trabalha muito (sujeitando-se a condições intensas e flexíveis), ou não se trabalha nada (sujeitando-se a trabalhos marginais e a pobreza). Para István Mészáros, no contexto atual, a “novidade histórica do tipo de desemprego” que acomete o sistema globalmente realizado é “que as contradições de 102 LORENZETTO, Bruno Meneses. O(s) tempo(s) do trabalho e a perda da experiência na modernidade. I Seminário Nacional Sociologia & Política UFPR, 2009. Disponível em: <http://www.humanas.ufpr.br/site/evento/SociologiaPolitica/GTs- ONLINE/GT5%20online/EixoIII/tempo-trabalho-BrunoLorenzetto.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2019, p. 14. 103 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007, p. 737. Sobre essa mesma passagem, ver também: LAFARGUE, Paul. Op. cit., p. 27. 104 MÉDA, Dominique. Op. cit., p. 317 105 GAULEJAC, Vincent de. Op. cit., p. 213. 106 DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho! A intensificação do trabalho na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 71. 146 qualquer parte específica complicam e agravam o problema em outras partes e, consequentemente, no todo”.107 Diante do problema na era da globalização avançada, as soluções propostas pelos defensores do capital são difíceis de acreditar: que o governo corte benefícios do tipo seguro-desemprego, de forma que os desempregados passariam a ter um forte incentivo para procurar emprego, reduzindo o desemprego. E ainda: que, seguindo a lei da oferta e da procura, mais pessoas procurando emprego permitiria a redução dos salários oferecidos, o que poderia levar os empregadores a promover mais vagas de emprego com o mesmo custo salarial. Em suma, trata-se de buscar reduzir índices de desemprego aumentando a precariedade.108 Sobre a desregulamentação dos direitos trabalhistas, inclusive com despadronização da jornada, sob a justificativa de criação de postos de trabalho, Oscar Uriarte é incisivo: O fato é que o verdadeiro problema do emprego não é o Direito do Trabalho nem o sistema de relações de trabalho, cuja incidência no emprego é muito relativa. O verdadeiro problema é um sistema econômico que destrói mais do que gera postos de trabalho. A substituição da mão- de-obra por tecnologia, a possibilidade técnica de produzir com menos mão-de-obra, mais a conveniência economicista de manter um desemprego funcional são os reais problemas. E a solução não está no Direito do Trabalho, mas fora, porque o problema em si está fora. A solução não pode ser uma progressiva degradação das condições de trabalho, porque seria suicida e porque, além disso, nenhum empregador contrata trabalhador que não precisa, só porque é mais “barato”, e nenhum empregador deixa de contratar trabalhador de que precisa, porque é um pouco mais “caro”.109 Assim, no âmbito das políticas de emprego, ainda que se consiga reduzir o número de desempregados, aumentam as formas de subemprego precário, com baixa remuneração e jornadas flexibilizadas. Consoante Boltanski e Chiapello, desde o fim da década de 1970, “os poderes públicos, mesmo descartando as formas mais radicais de desregulamentaçãopreconizadas por alguns, enveredaram pelo caminho da flexibilização do trabalho”.110 Segundo Ulrich Beck, a sociedade de risco caracteriza-se por esse sistema ambíguo e contraditório de subemprego, em razão do qual “vantagens e desvantagens se associam indissoluvelmente, mas cujas consequências e riscos consideráveis continuam a ser 107 MÉSZÁROS, István. Op. cit., p. 159. 108 Idem. 109 URIARTE, Oscar Ermida. Op. cit., p. 26. 110 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. Op. cit., p. 252. 147 imprevisíveis, justamente para a consciência e atuação políticas”.111 Pierre Bourdieu trata da precariedade e da insegurança generalizada, tanto no plano objetivo como no subjetivo, causando a “obsessão do desemprego”,112 que se revela por meio da concorrência pelo trabalho e no trabalho, retirando dos trabalhadores a capacidade de mobilização e organização política, e destruindo até mesmo valores como a solidariedade.113 Já para Ana Claudia Cardoso, nos últimos anos, o desemprego tem desempenhado um papel ambíguo nos processos de negociação coletiva: “ao mesmo tempo em que aparece como um fator de maior mobilização para a ação sindical” –constando na pauta de reivindicações a redução da jornada como meio de criação de novos postos de trabalho –, “ele se coloca como um elemento limitador desse processo” – prejudicando as tratativas, já que a ameaça de demissões por parte das empresas costuma ser aceita pelos trabalhadores como “moeda de troca” pela manutenção do emprego).114 No que concerne aos tempos sociais dos desempregados, os modos individuais de lidar com a situação são singulares e revelam facetas e compreensões diversas da experiência da desocupação. Assim, a ausência de um horário de trabalho formal que regule e norteie o cotidiano pode a princípio parecer libertador, permitindo a organização do tempo no dia- a-dia, com flexibilidade para se amoldar às circunstâncias na medida em que elas se 111 Cf. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2011, p. 209. 112 BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: Táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 121. 113 Interessante notar que, se a precarização e a ameaça do desemprego contribuem para o enfraquecimento do movimento sindical dos trabalhadores empregados, surgem, por outro lado, movimentos organizados justamente por aqueles que estão excluídos do mercado de trabalho e, consequentemente, privados do acesso a bens e serviços, como por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), o qual foi criado em maio de 2000, no Rio Grande do Sul, organizando-se estruturalmente de forma muito semelhante ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mas com objetivos distintos. Cf. GOULART, Patrícia Martins. Sem medo do desemprego: o caso do movimento dos trabalhadores desempregados. Psicologia & Sociedade, Online, v. 15, n. 1, p. 137-160, jan./jun. 2003. Ler também: MACHADO, Rita de Cássia Fraga. Demitidos da vida: quem são os sujeitos da base do Movimento dos Trabalhadores Desempregados? Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Porto Alegre, 2009. Ademais, mesmo em movimentos sociais já estabelecidos, como o MST, os tempos dos seus membros são divididos em: tempos de trabalho em prol da organização e tempos de não trabalho, dedicados ao lazer e à convivência comunitária e familiar – ambos importantes na organização dos tempos e dos espaços sociais dos assentamentos. CHARÃO, Carine Marques; LEÃES FILHO, Wenceslau Virgílio. In: TREVISAN, Amarildo Luiz; ROSSATTO, Noeli Dutra Rossatto (Orgs.). Anais do I Seminário Nacional de Filosofia e Educação - Confluências. Santa Maria/RS: FACOS/UFSM, 2004. 114 CARDOSO, Ana Claudia Moreira. Op. cit., p. 95. 148 apresentem.115 Porém, como não se está empregado e não se obtém renda, o tempo do cotidiano vai sendo “reduzido da divisão mensal de planejamento orçamentário e empregatício para uma divisão diária de sobrevivência”, 116 ou seja, a um tempo ditado pelas necessidades do aqui e agora. Ademais, como não é socialmente aceito que o trabalhador desempregado desfrute do descanso e do lazer, muitas vezes o que ocorre é uma “repetição do ritmo e do cotidiano do trabalho: sair pela manhã, quedar-se na rua o dia todo e retornar à noite”;117 o que diferencia é que o tempo fora do lar é gasto com horas à procura de trabalho, ou simplesmente perambulando nas ruas para passar o tempo, ou se ocupando de trabalhos eventuais e não-registrados (os “bicos”). Não muito diferente dos ambientes laborais, as salas de espera dos sindicatos, agências de recolocação de mão-de-obra e órgãos públicos de encaminhamento de trabalhadores a vagas de emprego, em geral, ficam abarrotadas de pessoas tensas e ansiosas. Nestes locais, contudo, o tempo é marcado pela organização por senhas e pela espera – por vezes demorada – pelo atendimento, somadas a uma sensação de pressa, apesar de teoricamente haver tempo livre.118 Como se percebe, o tempo dos trabalhadores desempregados é paradoxalmente estruturado pelo trabalho e a ele direcionado, dividindo-se entre a procura, a espera de possíveis retornos e a execução de trabalhos ocasionais para suprir necessidades prementes.119 O tempo da busca pelo emprego é, portanto, intercalado por alguma prestação de serviços e seguido por um angustiante tempo de expectativa, num movimento contínuo e repetitivo, que gera tamanho sofrimento psíquico – frustração, desânimo e pessimismo para dizer o mínimo – que alguns desistem de procurar.120 Estes saem das estatísticas oficiais de desemprego: são os desalentados. Se para alguns, o desemprego é entediante, pois percebido como “falta de 115 Há quem fale até em “férias entre empregos”. ACKERMANN, Katia et al. O desemprego do tempo: narrativas de trabalhadores desempregados em diferentes ambientes sociais. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, Online, v. 8, n. 1. p. 1-27, 2005, p. 23. 116 Ibid., p. 7-8. 117 Ibid., p. 8. 118 Ibid., p. 17. 119 Ibid., p. 19. 120 O desemprego estrutural transforma o tempo livre em horas angustiantes, seguindo o trabalho como se fosse sua sombra, pois “para um indivíduo sem função, não há lugar, não há mais acesso evidente à vida, pelo menos ao seu alcance” FORRESTER, Viviane. Op. cit., p. 31. 149 ocupação”;121 para outros é sentido como “um penoso trabalho de procurar emprego” 122, ou seja, uma ocupação não-remunerada, que leva à escassez de tempo. Se alguns entendem que ele decorre da crise e das exigências do mercado (causa externa); outros acreditam que é sua própria culpa, diante de uma incapacidade pessoal de se tornar empregável (causa interna). Se, para quem tem outras fontes de renda e sustento, pode significar uma oportunidade de descanso e reavaliação de sua colocação no mercado,123 para outros significa apenas que o acaso e a imprevisibilidade dão os contornos das horas do dia, arremessando os sujeitos “ao léu de não saber e não poder nunca planejar o dia de amanhã”.124 3.2.3 Efeitos dos contratos de trabalho com jornada extremamente reduzida sobre a saúde e a vida do trabalhador Como visto, muitas são as nuances e os desencadeamentos causados pelo desemprego,125 entretanto, em geral, pode-se perceber que a insegurança e a impossibilidade de planejamento de recursos de tempo e de dinheiro acabam gerando infelicidade e adoecimentos. Assim, muito se estuda sobre o grau de nocividade das sobrejornadas e das mortes por excesso de trabalho,126 mas quais são os efeitos da desorganização e desestruturação causadas pela ausência da jornada ou por sua duração aquém do esperado pelo