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Governo de si e dos outros

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AULA DE 2 DE MARÇO DE 1983 
Primeira hora 
Série de recapitulações sobre a parresía política. - Pontos de evolução da par-
resía política. - As grandes questões da filosofia antiga. - Estudo de um texto 
de Luciano. - A ontologia dos discursos de veridicção. - A palavra socrática na 
Apologia. - O paradoxo do não engajamento político de Sócrates. 
Para começar hoje, eu gostaria de marcar algumas etapas do per-
curso [ ...• ]. O fio condutor que eu havia escolhido para o curso deste 
ano era essa noção de parresía, noção complexa que, se a tomamos em 
seus valores etimológicos ou, em todo caso, em seus valores correntes, 
parece remeter a dois princípios: o princípio do livre acesso de todos à 
palavra, por um lado; e, por outro lado, o princípio, um pouco diferente 
claro, da franqueza com que se diz tudo. Em suma, a parresía não seria 
porventura que todos possam dizer tudo? É o que sugere, num sentido, 
a palavra. Na verdade, vocês se lembram, vimos que as coisas eram um 
pouco mais complicadas que isso. Primeiro porque a parresía não é a li-
berdade de palavra, a liberdade de falar facultada a qualquer um. De 
fato, a parresía aparece como ligada a uma organização, se não exata-
mente legislativa, pelo menos instituída, consuetudinária, do direito de 
palavra e dos privilégios do direito de palavra. Segundo, ficou manifes-
to que a parresía não era tampouco simplesmente a licença de dizer tudo, 
mas, por um lado, uma obrigação de dizer a verdade e, por outro lado, 
uma obrigação acompanhada do perigo que comporta dizer a verdade. 
Foi para a análise dessas diferentes dimensões da parresía que eu me re-
feri a dois textos. [O primeiro], que eu havia estudado mais longamente, 
era a peça de Eurípides, Íon; e [o segundo], o texto em que Tucídides 
mostra como Péricles usa da sua parresía ante o povo ateniense, quando 
* M.F.: vocês se lembram de que havíamos escolhido ... Tenho a impressão de que o 
som está mais horrivelmente ruim do que de costume ... Vamos tentar fazer alguma coisa ... 
Assim está melhor? Está? Continua vibrando? Esperem ... E assim? Perfeito? La Callas! 
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tem de intervir a propósito da guerra e da paz com Esparta. Evidencia-
va-se então, através desses dois textos, que a parresía, primeiramente, es-
tava ligada ao funcionamento da democracia. Vocês se lembram que Íon 
necessitava da parresía para poder entrar em Atenas e aí fundar o direi-
to político ateniense fundamental. Por outro lado, Péric1es usava da sua 
parresía - Tucídides mostrava isso com insistência - nas regras do fun-
cionamento geral da democracia. É a parresía que funda a democracia e 
é a democracia que é o lugar da parresía. Primeiro, portanto, esse vín-
culo de pertencimento circular parresía/democracia. 
Segundo, eu tentei mostrar a vocês como essa parresía supunba en-
tão uma estrutura institucional precisa, a da isegoria, isto é, o direito 
efetivamente dado pela lei, pela constituição, pela própria forma da po-
liteía, a todos os cidadãos, de tomar a palavra. Íon, como vocês se lem-
bram, não queria voltar a Atenas como bastardo, pois não teria todos os 
seus direitos, os direitos iguais - reconbecidos unicamente aos cidadãos, 
e a todos os cidadãos - de poder tomar a palavra. E Péric1es só tomava a 
palavra depois que todos os outros cidadãos, em todo caso todos os que 
gostariam de tomar a palavra, haviam efetivamente exercido seus direi-
tos. O direito de Péric1es se inscreve portanto nesse jogo da isegoria. 
Era o segundo ponto. 
O terceiro ponto é que, ainda que a parresía se inscreva nesse cam-
po igualitário da isegoria, ela supõe, implica o exercício de certa ascen-
dência, uma ascendência política exercida por uns sobre os outros. Se Íon 
queria ter a parresía não era simplesmente para ser um cidadão como os 
outros, era para poder figurar na próton zugàn (na primeira fileira) dos 
cidadãos. E, se Péric1es tomava a palavra, e se essa palavra aliás tinba os 
efeitos que tinba, é porque - Tucídides lembra - Péric1es era o primeiro 
cidadão de Atenas. Era a terceira característica da parresía. 
Enfim, vocês se lembram, a parresía ocupava um espaço no interior 
de um campo agonístico, campo agonístico em que se experimentava sem 
cessar o perigo que há em exercer a palavra verdadeira no campo políti-
co. Íon evocava a inveja do povo, a inveja da maioria, a inveja dos mais 
numerosos ante os que exercem sua ascendência. Evocava também a in-
veja dos rivais que não suportam que um deles se adiante e tome a ascen-
dência sobre os outros. E Péric1es evocava, no início do seu grande dis-
curso aos atenienses, o que podia ser o fracasso de Atenas. E pedia que 
fossem tão solidários com ele no insucesso quanto seriam na vitória. 
Eis os quatro pontos, as quatro características, a meu ver, dessa par-
resía tal como aparecia nesses dois textos, o texto do trágico e o texto 
do historiador. Então, a partir dessa análise, me parece que pudemos ver 
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um certo número de deslocamentos, de transformações se realizarem 
em torno dessa noção de parresía, e isso em textos que datam da primei-
ra metade do século IV; isto é, mais tardios que os de Eurípides, ou que 
se relacionam, em todo caso, a uma situação posterior àquela a que Tu-
cídides se referia. Tucídides se refería a uma situação que era a de Ate-
nas do fim do século V. Eurípides escrevia nessa época também. Com 
Platão, com Xenofonte, com Isócrates, temos gente que escreve na pri-
meira metade do século IV e que se refere à situação de então. E o que 
vemos? Vimos que, sobre esses quatro pontos, havia modificações notá-
veis dessa noção de parresía. 
Primeiro essa generalização da noção, no sentido de que a parresía, 
essa obrigação e esse rísco de dizer a verdade no campo político, já não 
aparece simplesmente ligada ao funcionamento, e ao funcionamento ex-
clusivo, da democracia. A parresía encontra seu lugar, ou antes, ela tem 
de abrir lugar em diferentes regimes, sejam regimes democráticos, se-
jam regimes autocráticos, oligárquicos, monárquicos. Tanto os sobera-
nos como o povo necessitam da parresía. E os bons soberanos (exemplo 
de Ciro em Xenofonte, em Platão, exemplo de Nicocles em Isócrates) 
devem ceder lugar a esse dizer-a-verdade de seus conselheiros, assim 
como os povos sábios escutam com atenção os que, perante eles, usam 
da parresía. Logo, generalização do campo político da parresía ou di-
gamos, mais esquematicamente ainda, que a parresía, o dizer-a-verdade 
aparece como uma função necessária e universal, necessariamente uni-
versal no campo da política, qualquer que seja a politeía com que se te-
nha a ver. Como quer que se exerça - pelo povo, por alguns ou por um 
só -, a política necessita dessa parresía. É o primeiro deslocamento. 
Segundo deslocamento: é, podemos dizer, a passagem da noção a 
uma certa ambivalência, uma certa ambiguidade de valor, como se o va-
lor imediatamente, uniformemente positivo da parresía, tal como apare-
cia em Eurípides ou através do personagem de Péric1es em Tucídides, 
começasse a se turvar. O funcionamento da parresía aparece, efetivamen-
te, como se trouxesse consigo certo número de dificuldades, e isso aliás 
seja num governo democrático, seja num governo autocrático. Com efei-
to, antes de tudo, o fato de que a parresía dá a todos os que quiserem a 
possibilidade de falar abre a possibilidade de tomar a palavra tanto ao 
pior quanto ao melhor. Depois, se na parresía dizer a verdade constituir 
um risco, se houver efetivamente perigo em falar, em falar a verdade, 
seja perante o povo, seja perante o soberano, se o povo e o soberano não 
souberem se medir suficientemente para não assustar os que querem di-
zer a verdade, se ameaçarem demasiadamente os que pretendem dizer a 
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verdade, se se irritarem além de qualquer limite" e de qualquer medida 
com os que dizem a verdade, se não forem capazes dessa medida em re-
lação aos parresiastas que se apresentaremperante eles, pois bem, todo 
o mundo se calará, porque todo o mundo terá medo. Será a lei do silên-
cio, silêncio diante do povo ou silêncio diante do soberano. Ou antes, 
esse silêncio será povoado, povoado de um discurso, mas de um discur-
so que será um discurso falseado, que será como a mímesis (a imita-
ção), a má mímesis da parresía. Ou seja, vai se simular dizer ao sobera-
no ou ao povo o que se vai apresentar como sendo verdadeiro, mas quem 
fala sabe muito bem que o que diz não é verdade. Ele sabe simplesmen-
te que o que ele diz é exatamente conforme ao que pensa o povo ou o 
soberano, ou ao que o povo ou o soberano queriam ouvir. 
Repetir o que é a opinião já constituída do povo ou do soberano e 
apresentar como sendo verdade: trata-se de uma prática que é de certo 
modo a própria sombra da parresía, sua imitação turbada e ruim. É isso 
que se chama de lisonja. Essa oposição da lisonja e da parresía (lisonja 
em relação ao soberano) pode se revelar, podemos dizer, como uma 
oposição finalmente bastante moralizadora e sem grande valor. De fato, 
me parece que a categoria da parresía e a categoria da lisonja são certa-
mente duas grandes categorias do pensamento político ao longo de toda 
a Antiguidade. Quer seja a teoria, tão importante, da lisonja em Sócra-
tes e Platão l , quer vocês peguem em Plutarco os textos técnicos consa-
grados a esse problema importantíssimo que é o de saber como distin-
guir um lisonjeador de um parresiasta2, quer vocês peguem enfim as 
descrições dos historiadores sobre os imperadores, seus conselheiros, 
sua corte, etc., vocês vão ver que, praticamente durante oito séculos, o 
problema da lisonja oposta à parresía foi um problema político, um pro-
blema teórico e um problema prático, algo enfim que foi sem dúvida tão 
importante nesses oito séculos quanto o problema ao mesmo tempo teó-
rico e técnico da liberdade de imprensa ou da liberdade de opinião em 
sociedades como a nossa. Seria preciso fazer toda uma história política 
da noção de lisonja e de todos os problemas técnicos que giraram em 
torno dela na Antiguidade. Eis a segunda transformação: passagem da 
noção de parresía a um registro de ambivalência, com o problema de 
seu duplo ruim na lisonja. 
Terceira transformação que vimos se esboçar nesses textos do iní-
cio do século IV: é, grosso modo, o desdobramento da parresía, seu des-
nivelamento, na medida em que a parresía - a que Íon queria exercer de 
* M.F. diz: se não ameaçam muito os que pretendem dizer a verdade, se não se irritam 
além de qualquer limite. 
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volta a Atenas, a que Péric1es exercia perante o povo ateniense - era 
uma maneira de dar livremente sua opinião sobre questões relativas à 
organização da cidade, ao governo da cidade, à opção entre guerra e 
paz, etc. A parresía se exercia portanto em relação à cidade inteira e num 
campo que era diretamente um campo político. Ora, através dos textos 
de Xenofonte, de Isócrates e sobretudo de Platão, vemos que a parresía 
se atribui uma dupla tarefa na medida em que ela deve se dirigir pelo 
menos tanto aos indivíduos quanto à coletividade, à pólis, etc. Trata-se 
para a parresía de empreender uma tarefa que consiste em mostrar aos 
indivíduos como, para governar convenientemente a cidade, [quer se 
trate 1 de cidadãos que querem dar sua opinião ou [de 1 um soberano que 
quer impor suas decisões, de qualquer modo uns e outros, uns e o outro 
[precisam 1 se governar. E a parresía, em vez de ser simplesmente um 
conselho dado à cidade para que ela se governe convenientemente, apa-
rece agora como uma atividade que consiste em se dirigir à alma dos que 
devem governar, de maneira que se governem convenientemente e que, 
assim, a cidade também seja governada convenientemente. Esse desdo-
bramento ou, se vocês preferirem, esse deslocamento do alvo, do objeti-
vo da parresía - do governo a que ela se dirigiria diretamente a esse go-
verno de si para governar os outros -, é isso, a meu ver, que constitui um 
deslocamento importante na própria história dessa noção de parresía. E, 
a partir daí, a parresía vai ser ao mesmo tempo uma noção política -
que coloca o problema de saber como se pode abrir, no interior de um 
governo qualquer, democrático ou monárquico, um espaço para esse di-
zer-a-verdade - e um problema filosófico-moral. O primeiro é filosófi-
co-político. O segundo é filosófico-moral, isto é: que meios e que técni-
cas empregar para que os que devem governar possam, pela parresía dos 
que os aconselham, se governar a si mesmos convenientemente? É a ter-
ceira transformação dessa noção de parresía, seu desdobramento ou, se 
vocês preferirem, o deslocamento do seu alvo. 
Enfim, a quarta modificação importante na própria problematiza-
ção da parresía é a seguinte: quando Íon ou Péric1es se apresentavam 
como parresiastas em relação à cidade, o que eram eles? Eram cidadãos 
e eram os primeiros dos cidadãos. Agora que a parresía deve ser exerci-
da em qualquer regime, qualquer que seja, na medida em que, por outro 
lado, ela deve se exercer numa relação perigosa, difícil de desemara-
nhar, com seu duplo (a lisonja) e em que, por conseguinte, se coloca o 
problema de distinguir o que é verdadeiro do que é ilusório, a partir en-
fim do momento em que a parresía não tem simplesmente de dar conse-
lhos ao povo sobre esta ou aquela decisão a tomar, mas em que tem de 
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guiar as almas dos que governam, então quem vai ser capaz da parresía? 
Quem terá a capacidade da parresía, quem eventualmente terá o mono-
pólio da parresía? É aí que começa a se marcar, precisamente nessa vi-
rada dos séculos V e IV; na cultura grega, ou em todo caso na cultura ate-
niense, essa grande clivagem, cujos efeitos se verão continuamente du-
rante oito séculos, entre a retórica e a filosofia. 
A retórica como arte da palavra - arte da palavra que é capaz de ser 
ensinada, capaz de ser utilizada para persuadir os outros e arte da pala-
vra que somente será plenamente efetivada, realizada, acabada, se o ora-
dor for ao mesmo tempo vir bonus (homem de bem) -, pois bem, a retó-
rica pode se apresentar como sendo a própria arte do dizer-a-verdade, 
do dizer convenientemente e do dizer em condições técnicas tais que 
esse dizer-a-verdade seja persuasivo. Nessa medida, como arte domina-
da por um homem de bem que, sabendo da verdade, é capaz de persua-
dir outros por meio [dessa 1 arte específica, a retórica pode aparecer como 
sendo efetivamente a técnica própria dessa parresía, desse dizer-a-ver-
dade. Mas diante disso, claro, a filosofia vai se apresentar como sendo a 
única prática de linguagem capaz de responder a essas exigências novas 
daparresía. Porque, ao contrário da retórica, que por definição se dirige 
a muitos, se dirige ao grande número, se dirige às assembleias, joga no 
interior de um campo institucional, a parresía filosófica poderá se diri-
gir também aos indivíduos. Ela poderá dar conselhos, conselhos parti-
culares ao Principe, conselhos individuais aos cidadãos. 
Segundo, a filosofia vai se apresentar, por oposição à retórica, como 
a única capaz de distinguir entre o verdadeiro e o falso. Porque se é ne-
cessário, de fato, distinguir na parresía o que é dizer-a-verdade do que 
é lisonja, se a parresía deve escorraçar sem cessar seu próprio duplo de 
sombra que se apresenta como lisonja, quem pode fazer essa separa-
ção, quem pode operar essa distinção, a não ser, precisamente, a filoso-
fia? Porque a retórica tem por objetivo persuadir o auditório tanto do 
verdadeiro como do falso, tanto do justo como do injusto, tanto do mal 
como do bem, ao passo que a filosofia tem por função precisamente 
dizer o que é verdadeiro e rechaçar o falso. Enfim, a filosofia vai se 
apresentar como detentora do monopólio da parresía, na medida em 
que vai se apresentar como operação sobre as almas, como psicagogia. 
E, em vez de ser uma força de persuasão que convencerá as almas de 
tudo e de qualquer coisa, ela se apresenta como umaoperação que per-
mitirá que as almas distingam convenientemente o verdadeiro do falso 
e deem, pela paideia filosófica, instrumentos necessários para operar 
essa distinção. 
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