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-DIC ONARIO DA --ESCRAVIDAO E LIBERDADE 50 textos críticos Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes ORGANIZADORES ,\ . ... C OMPAN~llA DAS'IiiRAS Stuart B. Schwartz ESCRAVIDÃO INDÍGENA E O INÍCIO DA ESCRAVIDÃO AFRICANA TODAS AS ÁREAS DO BRASIL COLONIAL FIZERAM UMA TRANSIÇÃO da escravidão indígena para a africana, mas a cronologia variou muito entre as regiões, dependendo do potencial econômico de cada uma delas e de uma série de circunstâncias locais, como a natureza do trabalho exigido, condições epidemiológicas, o poder das instituições do Estado e da Igreja, o grau de envolvimento de cada região no sistema mercantil atlântico. Deve-se ainda levar em conta que, visto que todos os sistemas escravistas nas Américas também fizeram tal transição, a mudança para a escravidão africana no Brasil não pode ser explicada apenas por forças ou restrições locais e deve ser vista como parte de um processo mais geral de africanização da mão de obra nas Américas. Embora a expenencia portuguesa com a escravidão no Mediterrâneo, na Guiné e na ilha da Madeira tenha sido anterior a seu primeiro contato com o Brasil, as relações iniciais com os povos indígenas agrícolas semissedentários de língua tupi, situados na costa brasileira, não se baseavam na escravidão, e sim num sistema de troca, o escambo, em que os nativos trabalhavam para os portugueses, encontrando e carregando troncos de pau-brasil até a costa, em troca de produtos comerciais, instrumentos de metal ou armas. A derrubada de árvores era uma atividade masculina corrente no ciclo agrícola das sociedades tupis, e os termos de troca propostos pelos portugueses satisfaziam as necessidades indígenas. Além disso, a coerção ou a escravização não fazia muito sentido como modo de controlar uma força de trabalho que, para encontrar árvores, tinha de se embrenhar na selva, onde seria relativamente fácil fugir. Mas, com a implantação do sistema de capitanias a partir de 1534, o assentamento português e, em algumas capitanias, a introdução da cana-de-açúcar e dos engenhos mudaram as relações com as populações indígenas. Os índios se mostravam relutantes em trabalhar continuamente na roça, pois consideravam este um trabalho de mulher, e, em alguns casos, a demanda indígena de bens como machados de ferro e armas de fogo encarecia cada vez mais sua mão de obra para os portugueses. Ademais, a relutância dos índios em fazer esse tipo de trabalho e a resistência armada contra a apropriação portuguesa de suas terras levaram a campanhas militares entre as décadas de 1540 e 1560, nas capitanias nordestinas da Bahia e de Pernambuco, que resultaram na escravização de índios capturados numa "guerra justa". Os cativos eram utilizados para trabalhar nos engenhos cada vez mais numerosos no litoral brasileiro. Esse processo, porém, encontrou algumas dificuldades com a chegada, em 1549, de missionários jesuítas, que então tentaram pôr freio à escravização. Os jesuítas procuraram reunir os povos nativos em aldeias onde, sob sua tutela, podiam produzir um excedente agrícola útil para a colônia, e com as quais também podiam fornecer mão de obra remunerada para as fazendas de cana e para outros proprietários coloniais, ou ainda, como fizeram em 1567 em reação a uma revolta de escravos índios nos engenhos baianos, utilizar os índios da aldeia em defesa da colônia. Os colonizadores, contudo, opunham-se a qualquer interferência no mercado de trabalho. Os jesuítas tiveram menos êxito em seu programa em Pernambuco, cujo donatário era mais poderoso do que na Bahia, onde, com a cooperação do governador, o número de indígenas pode ter chegado a 60 mil em doze aldeias, em seu auge nos anos 1550. Mas houve uma calamidade entre 1559 e 1563, quando uma série de epidemias dizimou as populações indígenas, tanto nas aldeias quanto entre as que já estavam escravizadas pelos colonizadores. Os números das populações indígenas na costa despencaram, e a obtenção de substitutos ficou mais difícil e, portanto, mais cara. Ademais, por pressão dos jesuítas, a Coroa promulgou em 1570 a primeira lei proibindo a escravização dos povos nativos brasileiros. Seguiram-se outras em 1587, 1595 e 1609, mas essas leis de pouco serviram, devido à resistência dos colonizadores e porque os governadores tinham poder discricionário para autorizar mais operações de "guerra justa", que resultavam em mais prisioneiros, como expedições em que se obtinham trabalhadores índios com o resgate de cativos, impedindo que fossem executados por seus inimigos indígenas e levando aos engenhos milhares deles, trazidos de longas distâncias; lá, embora designados como "administrados", isto é, guarda temporária, na prática eram escravos em tudo, exceto no nome. Apesar de todos esses problemas em conseguir trabalhadores nativos e das constantes reclamações sobre a "barbárie" e a baixa produtividade dos índios, bem como sua propensão a fugir, pelo meio século seguinte a economia açucareira em expansão no Nordeste brasileiro se fundou basicamente em trabalhadores indígenas como escravos, "administrados" e assalariados, com o uso simultâneo das três modalidades de trabalho. Facilitado em certa medida pela mão de obra barata, o setor açucareiro passou de sessenta engenhos em 1570 para 350 em 1630. Nessa data, a média de escravos por engenho era de cem, aproximadamente, de forma que agora havia cerca de 35 mil escravos trabalhando na economia açucareira, e um número talvez equivalente ocupado em serviços domésticos e em outras atividades agrícolas. Embora já em 1539 o donatário de Pernambuco, Duarte Coelho Pereira, tivesse procurado autorização para importar escravos africanos, de fato a transição da escravidão indígena para a africana se deu lentamente. Os africanos eram considerados trabalhadores melhores, menos propensos a fugir e menos suscetíveis a doenças, mas, ao mesmo tempo, era mais caro obtê-los. Até os anos 1590, os índios ainda respondiam por cerca de dois terços da força de trabalho na economia açucareira, ainda que agora já houvesse um tráfico escravo transatlântico regular, apesar de limitado, que trazia anualmente cerca de 4 mil africanos de São Tomé e postos avançados na costa da Guiné, e nos anos 1620 também de Angola. Com seu enriquecimento, o Nordeste brasileiro atraiu a atenção de mercadores portugueses que podiam fornecer escravos africanos. A transição para uma maioria africana no Nordeste ocorreu nas três décadas iniciais do século xvn, tendo sido em certa medida facilitada pelo aumento dos preços e expansão do mercado de açúcar naquele período, e pela relativa paz no Atlântico durante a Trégua dos Doze Anos (1609-21) entre a Espanha e as Províncias Unidas, que dava alguma segurança aos traficantes portugueses de escravos. Embora em meados dos anos 1580 cerca de dois terços da força escrava de Pernambuco em seus 66 engenhos ainda fosse composta por indígenas, em 1650 era raro encontrar índios cativos lá ou nos engenhos da Bahia. A escravidão indígena pode ter durado mais na economia açucareira do Rio de Janeiro, em desenvolvimento, porque podia ser abastecida com grande quantidade de escravos carijós (guaranis) pelos paulistas, que continuaram a fazer incursões em aldeias jesuítas no interior de São Paulo e no Paraguai até a década de 1630. Nos anos 1650, quando havia 106 engenhos no Rio, os engenhos beneditinos de lá ainda contavam com número significativo de escravos índios, o que provavelmente também ocorria nos engenhos laicos. Vários aspectos dessa transição merecem ser tratados em mais detalhes. Os portugueses, que já tinham longa experiência com os africanos e suas habilidades em Portugal e na ilha da Madeira, tenderam a empregá-los no Brasil, de início, principalmente como mão de obra qualificada. Muitos dos primeiros africanos, provenientes de sociedades habituadas à pecuária, a sistemas agrícolas complexos, à metalurgia e outras atividades qualificadas, eramtreinados como oficiais no processo de fabricação do açúcar, e em 1548, no Engenho São Jorge dos Erasmos, em São Paulo, até mesmo como mestres de açúcar. Os indígenas raramente ocupavam tais posições. A explicação dessa diferença talvez se encontre nos pressupostos e preconceitos europeus sobre as capacidades relativas de índios e africanos, na relutância dos senhores de escravos em usar africanos mais caros para tarefas arriscadas ou em investir no treinamento de trabalhadores indígenas, que eram mais propensos à fuga ou mais suscetíveis às doenças, mas é de notar que, nos anos 1570, o preço de um escravo africano não qualificado era de cerca de 20 mil-réis, o triplo do de um índio, 7 mil- réis. Cabe também notar que, embora como assalariados, os índios recebiam menos do que os demais para executar as mesmas atividades; o pagamento era feito em roupas, bebidas alcoólicas ou outros artigos, e eram pagos por dia ou por tarefa, e não em bases mais estáveis. Existem muitas indicações de que, no período em que os indígenas predominavam nos engenhos, o nível de produtividade era relativamente baixo, em parte por causa da grande proporção de mulheres e crianças na força de trabalho escrava. Em décadas mais adiantadas do século xvn, a força escrava africana nos engenhos apresentava, em geral, uma proporção muito maior de homens e, enquanto o tráfico escravo naquele período dava preferência a uma proporção entre homens e mulheres de 3:2, os engenhos muitas vezes apresentavam uma proporção de 3:1. Esse predomínio de homens elevava o nível de produtividade dos engenhos operados basicamente por escravos africanos. Os senhores de engenho tinham de equilibrar o preço relativamente baixo dos "negros da terra" (os índios) com a mortalidade mais alta, a produtividade mais baixa, a tendência a fugir e a possibilidade de problemas jurídicos com a sua escravização. Quando aumentou a disponibilidade de africanos e diminuíram os "custos" relativos de sua aquisição, houve a transição. O historiador Sebastião da Rocha Pita escreveu em 1720 "que na perda dela [sua liberdade] e na repugnância e pensão do cativeiro morrendo infinitos, vinham a sair mais caros pelo mais limitado preço". Em toda a América portuguesa, a mesma legislação real contra a escravidão indígena e os esforços continuados das ordens missionárias que tinham tornado menos atraente a escravização dos índios na costa brasileira, no século xv1, também acabaram contribuindo para a demanda por africanos. Os moradores de São Paulo e do Sul do Brasil utilizavam largamente os índios como auxiliares militares e como trabalhadores em suas lavouras de trigo, e se opunham vivamente a qualquer tentativa do governo ou dos missionários em lhes restringir o acesso a trabalhadores indígenas. Dos anos 1590 a 1640, as incursões paulistas em missões jesuíticas espanholas indígenas no sertão trouxeram milhares de trabalhadores indígenas para a região e, ainda que alguns de fato chegassem aos engenhos do Nordeste e do Rio de Janeiro, a maioria permaneceu em São Paulo, onde, apesar de classificados como "administrados", eram considerados escravos por "uso e costume". Provas documentais do Paraná (comarca sulina de São Paulo) sugerem que a transição para escravos afro-brasileiros teve início nos anos 1680, mas apenas superou o uso de índios após 1740, quando a região de Curitiba enriqueceu como importante ponto de passagem de gado subindo do Rio Grande do Sul para o norte. Em Minas Gerais também se encontravam escravos índios, usualmente chamados de carijós ou cabras da terra, porém na década de 1720 foram superados em número pelos milhares de africanos que chegavam à capitania, embora seu preço fosse duas ou três vezes maior que o de um escravo indígena. A relação entre a riqueza ou potencial econômico regional e o predomínio da escravidão africana fica evidente na transição que se deu no Estado do Maranhão. A ocupação portuguesa daquele imenso território ocorreu muito lentamente e, mesmo nos meados do século xvm, o número de residentes portugueses não totalizava 2 mil. Embora a legislação real contra a escravidão criada para o Estado brasileiro também se aplicasse ao Maranhão, e as ordens missionárias, primeiro as franciscanas e depois as jesuíticas, tentassem deter ou refrear a escravização indígena, os moradores dependiam maciçamente de trabalhadores indígenas. Os colonizadores, protestando contra a interferência missionária e procurando desenvolver a produção de fumo e açúcar, atacavam continuamente o interior em tropas de resgate, para capturar mais trabalhadores; e, depois de uma revolta local em 1661, os jesuítas por fim chegaram a um acordo com os moradores, fornecendo trabalhadores pagos das aldeias e regulamentando as expedições de resgate no interior em busca de novos trabalhadores. A população de trabalhadores forçados nativos foi atingida entre os anos 1660 e 1720 por surtos de varíola e outras epidemias, que levaram ao aumento do número de tropas, tanto legais quanto ilegítimas, em busca de mais escravos indígenas. Já nos anos 1650, registravam-se solicitações de colonizadores para obter escravos africanos, e jesuítas como o padre Antônio Vieira propunham que se usassem africanos em vez de povos nativos, mas essa era uma possibilidade improvável. Os colonizadores continuavam tão pobres, a região tão subpovoada e seus produtos com valor de exportação tão baixo, que poucos navios se sentiam atraídos e pequeno era o interesse comercial, mesmo após a criação das companhias monopolistas aprovadas pela Coroa, entre 1670 e 1690, que supostamente iriam dinamizar a economia e regularizar a importação de africanos. Os cem ou cento e poucos africanos importados a cada ano ficavam muito abaixo da demanda de mão de obra, e assim, apesar de se quererem escravos africanos, a captura e a escravização ilegal dos indígenas persistiu pelo século xvm adentro, quando as regiões do Maranhão e do Pará fizeram experiências com anil, algodão, arroz, café e cacau, buscando itens de exportação lucrativos. Nessas capitanias do Norte, a grande transição para a escravidão africana se deu como parte do projeto do marquês de Pombal para o desenvolvimento agrícola e comercial. A criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-78) promoveu a importação de escravos africanos, em especial da Guiné de Cima e das ilhas de Cabo Verde, e forneceu condições favoráveis para a exportação de arroz e algodão do Maranhão e de cacau do Pará, e, embora a companhia não tenha sobrevivido por muito tempo após a queda de Pombal, ela de fato promoveu bastante a transição para a escravidão africana. Entre 1751 e 1787, cerca de 45 mil africanos foram importados nas duas capitanias, em número relativamente igual em cada uma. Depois de 1787, tais importações prosseguiram, sobretudo para o Maranhão, quando essa capitania se tornou grande produtora e exportadora de arroz e algodão. Como se dizia no século xrx, "o algodão branco tornou o Maranhão preto". O Pará, que dependia mais da extração do cacau e de outras "drogas do sertão" que de produtos agrícolas de exportação, recebeu menos africanos do que o Maranhão, e continuou a depender maciçamente de trabalhadores indígenas e caboclos. Todas as áreas do Brasil colonial por fim fizeram a transição para a escravidão africana, como todos os outros regimes escravistas das Américas. As explicações dessas transições costumam se basear em muitos fatores isolados, como racismo, exigências do trabalho, epidemiologia, abundância de terras disponíveis ou o esforço do capital mercantil em extrair lucro do fornecimento de mão de obra. Tais explicações tendem a passar por cima das condições locais e das circunstâncias históricas específicas, mas, se se entende a economia atlântica como um conjunto de sistemas comerciais nacionais visando à autarquia, cada regime teve opções para recrutar sua força de trabalho em diferentes fontes: populaçõesindígenas, servos por contrato de tempo determinado, degredados ou colonos. Esses potenciais trabalhadores, porém, moviam-se em mercados locais restritos, sujeitos a mudanças imprevisíveis na oferta e na procura, no volume e no preço. Só o tráfico de escravos africanos fornecia um abastecimento internacional de mão de obra em grande escala e relativamente estável, que acabou por fazer dos africanos escravizados as vítimas preferenciais, desde que sua produtividade compensasse o custo original de aquisição e transporte, e desde que o tráfico continuasse aberto o suficiente para compensar os altos índices de mortalidade de uma população predominantemente africana.