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Prévia do material em texto

Coleção Pensamento Criminológico 
Dario Melossi e 
Massimo Pavarini 
Cárcere e fábrica 
As origens do sistema penitenciário 
(séculos XVI - XIX) 
Tradução 
Sérgio Lamarão 
~ Instituto Carioca de Criminologia 
Editora Revan 
:Il!!!IiiSPensarnento 
Criminológico 
Direção 
Prof. Dr. Nilo Batista 
© 2006 Instituto Carioca de Criminologia 
Rua Senador Dantas, 75 - Cob. 02 - Centro 
Rio de Janeiro - RJ - Brasil 
CEP 20031-204 
Tel.: (5521) 2221-1663 
Fax.: (5521) 2224-3265 
Email:criminologia@icc-rio.org.br 
Edição e distribuição 
Editora Revan S.A. 
Rua Paulo de Frontin, 163 
Rio de Janeiro - RJ 20260-01 O 
tel. (21) 2502-7495 
fax (21) 2273-6873 
editora@revan.com.br 
www.revan.com.br 
Projeto gráfico 
Luiz Fernando Gerhardt 
Revisão 
Sylvia Moretzsohn 
Diagramação 
lida Nascimento Melossi, Dario e Pavarini, Massimo. 
Cárcere e fábrica-As origens do sistema penitenci-
ário (séculos XVI-XIX)-Dario Melossi e Massimo 
Pavarini. - Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. 
(Pensamento criminológico; v. 11). 2-ª-edição, agosto 
de 2010, !'reimpressão, setembro de 2014. 
272p. 
Inclui bibliografia 
ISBN85-7106-335-4 
1. Direito penal 
Sumário 
Prefácio à edição brasileira ............ , ............................................. 5 
Apresentação .. . ... . ... . ... . . . ... . ...... ...... ........ .. . . ... . . ... ... . ... . . .. . ... . . ........ 11 
Introdução . . .. . .. . .. . .. . .. . . . .. ... . .. . ... . . ... ... . ..... ... ... . .. ... . .. . .. . .. . .. . .. . . ... .... 19 
Primeira parte - Dario Melossi 
A gênese da instituição carcerária moderna na Europa .................... 29 
I. A criação da instituição carcerária moderna na Inglaterra 
e na Europa continental entre a segunda metade do século XVI 
e a primeira metade do século XIX ................................................. 31 
1. "Bridewells" e "workhouses" na Inglaterra elisabetana ...... 33 , 
2. A Rasp-huis de Amsterdã e a manufatura ..... , ................... 39 
3. Gênese e desenvolvimento da instituição carcerária 
nos outros países da Europa ................................................. 48 
4. Acontecimentos posteriores da instituição 
na experiência inglesa .......................................................... 60 
5. A construção da moderna práxis carcerária 
na Europa continental entre o Iluminismo 
e a primeira metade do século XIX ....................................... 79 
II.A gênese da instituição carcerária na Itália ................................ 101 
1. Os séculos XVI e XVII . ..................................... ...... ...... 103 
2. O Século XVIII . . . . . . . .. . ............ ... ................... .. . . .......... ... 109 
3. Do período napoleônico à situação pré-Unificação ........... 127 
Segunda parte - Massimo Pavarini 
A invenção penitenciária: 
A experiência dos Estados Unidos 
na primeira metade do século XIX . ............. ... ............................... 149 
I. A era jacksoniana: desenvolvimento econômico, marginalidade 
e política do controle social ........................................................... 151 
1. Propriedade imobiliária e instituição familiar na origem 
do controle social no período colonial ................................... 153 
2. O quadro estrutural: de uma sociedade agrícola 
a uma economia industrial .... ... ....... ........... ......... ..... ..... ....... 166 
a. O período pós revolucionário: processos de acumulação 
e economia mercantil . . . . . . ............... ........................ .. ..... 166 
b. A decolagem industrial (1820-1860) ............................... 172 
3. Processos desagregadores e a nova política do controle social: 
a hipótese institucional ........................................................ 177 
4. O nascimento da penitenciária: 
de Walnut Street Jail à Auburn Prison .................................. 184 
5. As formas da exploração 
e a política do trabalho carcerário ........................................... 192 
II. A penitenciária como modelo da sociedade ideal ........................ 209 
1. O cárcere como "fábrica de homens" ............................... 211 
2. A dupla identidade: "criminoso-internado" 
e "não proprietário-internado" ............................................. 212 
3. "The Penitentiary System": 
o novo modelo de poder disciplinar ......................................... 217 
4. O produto da máquina penitenciária: o proletário ............... 231 
Apêndice 1 
A subordinação do ser institucionalizado 
(pesquisa na penitenciária de Filadélfia, outubro de 1831) ................. 237 
Apêndice2 
A soberania administrativa em regime de "silent system" 
(conversas com G. Barrett, B. C. Smith e E. Lynds) ....................... 249 
III. Conclusões 
Razão contratual e necessidade disciplinar 
nas origens da pena privativa da liberdade ....................................... 259 
Prefácio à edição brasileira 
O livro Cárcere e fábrica - as origens do sistema penitenciário (séculos 
XVI - XIX), de Dario Mel os si e Massimo Pavarini - composto de dois ensaios 
individuais independentes, mas com pressupostos metodológicos e objetivos 
científicos comuns, apresentados ao público brasileiro na excelente tradução 
de Sérgio Lamarão, historiador do Centro de Pesquisa e Documentação de 
História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getúlio Vargas, Rio 
de Janeiro -, retoma uma linha de pesquisa aberta por Rusche e Kirchheimer 
em Punishment and Social Structure (1939), que demonstrou a relação mercado 
de trabalho/prisão e propôs a tese de que cada sistema de produção descobre 
o sistema de punição que corresponde às suas relações produtivas. Em 
Criminologia, essa linha de pesquisa é critica porque insere as questões do 
crime e do controle social na estrntura econômica e no sistema de poder político 
e jmidico das sociedades contemporâneas, pensadas com as categorias teóricas 
desenvolvidas pela tradição marxista, fundadas no conceito de modo de produção 
da vida social, que exprime a integração das forças produtivas materiais em 
detenninadas relações de produção históricas, nas quais se manifesta a luta de 
classes da formação social capitalista. 
Nessa perspectiva, o ensaio de Dario Melossi (Cárcere e trabalho na 
· Europa e na Itália, no período de formação do modo de prod11ção capitalista) 
define a relação capital/trabalho assalariado como a clave para compreender 
a instituição carcerária, elegendo a formação do proletariado - o aspecto 
sübordinado das relações de produção capitalistas - como objeto do interesse 
científico da pesquisa: expropriados dos meios de produção e expulsos do 
campo - o violento processo de acumulação primitiva do capital nos séculos 
XV e XVI-, os camponeses se concentram nas cidades, onde a insuficiente 
absorção de mão-de-obra pela manufatura e a inadaptação à disciplina do 
trabalho assalariado originam a formação de massas de desocupados urbanos. 
O estudo mostra a população de mendigos, vagabundos, ladrões e outros 
delinqüentes dos centros urbanos - então conhecidos como as classes 
perigosas -, produtos necessários de determinações estruturais, 1nas 
interpretados como expressão individual de atitudes defeituosas, tangidos 
para as workhouses - uma invenção do século XVI para resolver problemas 
5 
de exclusão social da gênese do capitalismo. A transformação do castelo de 
Bridewell (Londres) em casa de trabalho forçado de camponeses 
expropriados, com a finalidade de disciplina para o trabalho assalariado na 
manufatura, é emblemática da política de controle das massas marginalizadas 
do mercado de trabalho, sem função na reprodução do capital - mas obrigadas 
a aceit~r empregos por salários miseráveis para evitar a internação nas 
workhouses. No início do século XVII, a estrutura celular do aparelho 
carcerário de Rasp-huis (Amsterdã) seria o modelo de disciplina da força 
de trabalho ociosa formada por camponeses expropriados dos meios de 
subsistência material, em toda Europa continental:raspar troncos de pau-
brasil para produzir tintura com o pó da serradura - nossa involuntária 
contribuição para o sistema penal moderno -, além de disciplina para o 
trabalho assalariado, cumpriria funções de prevenção especial e geral, segundo 
o princípio de menor elegibilidade, pelo qual a eficácia da prisão pressupõe 
condições carcerárias piores do que as condições do trabalho livre - outra 
descoberta de Rusche e Kirchheimer. 
Definir a disciplina da força de trabalho pela instituição carcerária, primeiro 
para a manufatura, depois para a fábrica, reforçando o trabalho da fann1ia, 
da escola e de outras instituições sociais, é um dos grandes méritos do texto 
de Melossi. Na sociedade de produção de mercadorias, a reprodução ampliada 
do capital pela expropriação de mais-valia da força· de trabalho - a energia 
produtiva capaz de produzir valor superior ao seu valor de troca (salário), 
como ensina Marx-, pressupõe o controle da classe trabalhadora: na fábrica, 
instituição fundamental da estrutura social, a coação das necessidades 
econômicas submete a força de trabalho à autoridade do capitalista; fora da 
fábrica, os trabalhadores marginalizados do mercado de trabalho e do processo 
de consumo - a chamada superpopulação relativa, sell\ utilidade direta na 
reprodução do capital, mas necessária para manter os salários em níveis 
adequados para valorização do capital -, são controlados pelo cárcere, que 
realiza o papel de instituição auxiliar da fábrica. Assim, a disciplina como 
política de coerção para produzir sujeitos dóceis e úteis, na formulação de 
Foucault, descobre suas determinações materiais na relação capital/trabalho 
assalariado, porque existe como adestramento da força de trabalho para 
reproduzir o capital, processo definido por Dario Melossi como fenômeno 
de economia política - e não simples investimento do corpo por relações de 
poder, na linguagem de Foucault. 
A segunda parte do livro é o ensaio de Massimo Pavaríni ("A invenção 
penitenciária: a experiência dos EUA na primeira metade do século XIX"), 
6 
que situa o nascimento da moderna penitenciária na transição da prisão de 
Walnut Street, em Filadélfia (1790) para a prisão de Auburn, em Nova York 
(1819), origem dos modelos de penitenciária de Filadélfia e de Auburn, 
éoncebidos corno instituições de controle social da sociedade capitalista 
mais desenvolvida da era moderna. 
O texto situa a gênese do modelo de Filadélfia na decadência das work-
houses americanas, igualmente dedicadas à reclusão de pequenos delin-
qüentes, vagabundos, devedores e pobres em geral - afinal, também nos 
United States of America ser pobre é crime, como disse Disraeli sobre a 
Inglaterra: a crise das workhouses americanas seria desencadeada pela 
produção manufatureira, que reduziu as casas de trabalho a instituições de 
terror, com trabalho manual repetitivo e sem função de adestramento da 
força de trabalho encarcerada. 
A pesquisa de Pavarini demonstra que o modelo de Filadélfia, criado 
pela inspiração religiosa Quaker, com celas de isolamento em forma panótica 
para oração, arrependimento e trabalho individual em manufaturas, é a solução 
para a crise da política de controle: os reduzidos custos administrativos da 
vigilância carcerária explicam sua rápida difusão nos EUA. Mas novas 
transformações estruturais da sociedade americana produzem nova crise: a 
natureza antieconômica do trabalho individual isolado e a impossibilidade do 
trabalho coletivo em condições de isolamento celular colocam o modelo de 
Filadélfia na contramão das mudanças do mercado de trabalho - e a solução 
da crise aparece no modelo de Auburn, mais tarde conhecido como o sistema 
penal americano, caracterizado pelo trabalho comum durante o dia, sob a 
lei do silêncio. 
A tese da dependência do sistema punitivo em face dos processos eco-
nômicos do mercado de trabalho reaparece nos parâmetros de execução 
penal do modelo de Auburn, orientados menos para a correção pessoal e 
mais para o trabalho produtivo; assim corno a manufatura produz o 
confinamento solitário do modelo de Filadélfia, a indústria engendra o 
trabalho coletivo do modelo de Auburn, com o silent system para isolar e 
controlar- abrindo novas possibilidades de exploração do trabalho carcerário 
por empresários privados. Mas o conluio do capital com a prisão para explorar 
o trabalho do preso também entra em crise, como mostra Pavarini: por um 
lado, a exploração destruidora da força de trabalho, o emprego do preso 
como força de trabalho escravo na agricultura sulista, a brutalidade dos 
castigos corporais por razões de ritmo de trabalho e o compromisso entre 
empresários e juízes de transformar penas curtas em penas longas de prisão 
7 
para maior extração de mais-valia; por outro lado, a luta de sindicatos e 
organizações operárias contra os custos inferiores e maior competitividade 
do trabalho carcerário (salários menores, ausência de tributos etc.) e as 
dificuldades de industrialização do aparelho carcerário em época de renovação 
tecnológica acelerada - tudo isso contribui para decretar o fim da prisão 
como empresa produtiva nos Estados Unidos da América, já no começo do 
século XX. Afinal, na definição de Pavarini, a penitenciária não é uma célula 
produtiva, mas uma fábrica de homens para transformar criminosos em 
proletários, ou uma máquina de niutação antropológica de sujeitos reais, 
agressivos e violentos, em sujeitos ideais, disciplinados e mecânicos, segundo 
Foucault. A tese do crinzinoso encarcerado como não-propn.etário encarcerado 
ilumina a tarefa do cárcere na sociedade burguesa, instituição coercitiva para 
transformar o criminoso não-proprietário no proletário não-perigoso, um 
sujeito de necessidades reais adaptado à disciplina do trabalho assalariado. 
Entre os aspectos comuns dos ensaios de Melossi e de Pavarini aparece 
a valorização do conceito de Pasukanis (A teoria geral do direito e o marxismo, 
1929) da pena como retribuição equivalente da sociedade capitalista, no 
sentido de troca jurídica que realiza o princípio da igualdade do Direito, 
correspondente à troca de força de trabalho por salário no mercado de trabalho, 
que exprime a redução de toda riqueza social ao trabalho abstrato medido 
pelo tempo, o critério geral do valor na economia e no Direito. Assim, a pena 
como retribuição equivalente representaria o momento jurídico da igualdade 
formal, que oculta a submissão total da instituição carcerária, como aparelho 
disciplinar exaustivo para produzir sujeitos dóceis e úteis, que configura o 
cárcere como fábrica de proletários; por outro lado, o salário como retribuição 
equivalente do trabalho, na relação jurídica entre sujeitos "livres" e "iguais" 
no mercado, oculta a dependência substancial e a desigualdade real do processo 
de produção, em que a expropriação de mais-valia significa retribuição 
desigual e a subordinação do trabalhador ao capitalista significa dependência 
real, determinada pela coação das necessidades econômicas, que configuram 
a fábrica como cárcere do operário. 
Todavia, o último capítulo da história da relação cárcere/fábrica ainda 
está Pílra ser escrito. A política americana de criminalização da pobreza, 
promovida pelo desmonte do Estado social e sua substituição pelo Estado 
penal - iniciada por Reagan e continuada por Bush (agora com apoio do 
exterminador.do futuro Schwarzenegger, governador da Califórnia) -, 
quintuplicou a população carcerária daquele país em vinte anos: de 500 mil 
presos em 1980 para 2,5 milhões em 2000. Governo e eleitorado americanos 
8 
esqueceram o fracasso histórico da exploração lucrativa do trabalho carcerário 
e iniciaram novo programa de prisões/empresas: a indústria do encarceran1ento 
privado cresceu de 3.100 presos em 1987 para 276.000 presos em 2001, 
sob o sistema de fitll-scale management, de gestão total do estabelecimento 
penitenciário pela empresa privada, segundo Loic Wacquant, em A ascensão 
do Estado penal nos EUA. 
Em poucas palavras, a relação cárcere/fábricaevoluiu para a sin1biose 
fábrica/cárcere, que fundiu essas instituições em uma unidade arquitetônica 
punitiva/produtiva, com a fábrica construída como cárcere, ou o cárcere 
erigido em forma de fábrica, a realização definitiva do ideal de exploração do 
trabalho pelo capital, na perspectiva da intuição de Pavarini: os detidos devem 
ser trabalhadores; os trabalhadores devem ser detidos. 
Curitiba, dezembro de 2004. 
Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos 
Professor de D.ireito Penal da Universidade Federal do Paraná 
Presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal (Curitiba, PR) 
9 
Apresentação 
Para o estudioso italiano que quer se aprofundar na pesquisa histórica sobre 
as origens das instituições penitenciárias, este é um momento certamente muito 
interessante. Em novembro de 1976, foi finalmente publicado na Itália o texto 
de Foucault Vigiar e punir. E hoje aparecem reunidos organicamente num volume 
dois ensaios importantes de Dario Melossi e Massimo Pavarini, um dedicado às 
relações entre cárcere e trabalho na Europa e na Itália, entre o século XVI e a 
primeira metade do século XIX, e o outro às experiências penitenciárias dos 
Estados Unidos da América, na primeira metade do século XIX. 
O interesse, evidentemente, não é apenas histórico. Revisitar as origens do 
sistema penitenciário na Europa e nos Estados Unidos significa, na realidade, 
buscar as razões de fundo que explicam a crise do sistema carcerário nos dias 
de hoje e colocar-se o problema da homogeneidade entre as instituições 
carcerárias e os modelos econômicos e políticos da nossa sociedade. Não se 
pretende dizer com isso que a pesquisa histórica deva ter ou tenha sempre 
como fmalidade uma melhor compreensão do presente. Porém, tantos os ensaios 
de Melossi e de Pavarini quanto, embora de uma maneira diversa, a obra de 
Foucault, servem a essa finalidade, pois o método que utilizam fornece modelos 
de investigação suscetíveis de serem aplicados, em seus pressupostos de ordem 
geral, também a sociedades e períodos históricos diversos daqueles examinados. 
A reflexão sobre o presente é, pois, uma conseqüência obrigatória, o que atribui 
a essas pesquisas uma indiscutível atualidade. 
O dado comum - que se faz presente tanto na obra de Foucault quanto na 
extensa e em muitos aspectos original sistematização que Melossi e Pavarini 
fizeram de um material bibliográfico pouco conhecido ou até mesmo 
desconhecido na Itália - é a inversão de um certo modo de considerar o cárcere 
como uma instituição isolada e separada do contexto social. É bem verdade que 
o cárcere e as demais instituições de confmamento são locais fechados e por 
isso mesmo fisicamente isolados e separados da sociedade livre, porém essa 
separação é mais aparente que real, uma vez que o cárcere não faz mais do que 
propor ou levar ao paroxismo modelos de organização social ou econômicos 
que se deseja impor ou que já existem na sociedade. 
li 
Foucault, de um lado, e Melossi e Pavarini, do outro, seguem posturas e 
métodos ideológicos muito diferentes para chegar a uma mesma conclusão, 
que pode ser considerada, desde já, como o ponto de partida da atual pesquisa 
histórica sobre as instituições penitenciárias. Para Foucault, o cárcere é o 
emblema do modelo de organização do poder disciplinar exercitado no 
contexto social de quem detém o próprio poder, um modelo que assume 
aspectos quase metafísicos e que perde, exatame~te devido à sua generalização 
e abstração, uma dimensão histórica precisa. E bem verdade que Foucault 
examina o nascimento da instituição carcerária e de outras instituições de 
confinamento a ela afins na França, no período compreendido entre o final 
do século XVIII e os primeiros anos do século XIX. Porém, o alcance que 
ele atribui à descoberta do modelo de organização penitenciária é tamanho 
que faz dele um esquema universal, que parece destinado a reproduzir-se 
sem modificações, malgrado as mudanças ocorridas na sociedade francesa 
dos primeiros anos dos Oitocentos até os dias de hoje. 
Em outras palavras, parece que a Foucault interessa mais a descoberta deste 
modelo de controle disciplinar e dos seus mecanismos abstratos de 
funcionamento do que as modalidades concretas de gestão do sistema penitenciário 
e dos outros instrumentos análogos de controle social (escola, hospital, hospício, 
quartel, fábrica etc.) no período histórico considerado. Por conta disso, não é 
de todo injustificado perguntar se os organogramas de controle disciplinar 
colocados em prática pela sociedade burguesa funcionaram efetivamente e que 
exigências concretas de poder, e não apenas de uma organização social abstrata, 
corresponderam a eles. Cabe perguntar, enfim, se foram alcançados os resultados 
que se propunha obter. 
Bem diferente é o método seguido por Melossi e Pavarini na individualização 
das conexões entre cárcere e organização econômica e política da sociedade. 
Aqui, a preocupação de situar o cárcere num contexto histórico preciso constitui 
0 fio condutor da pesquisa; ao mesmo tempo, os autores procuram 
constantemente comparar os esquemas teórico-interpretativos que propõem 
para explicar primeiro a gênese e depois o desenvolvimento dos distintos sistemas 
penitenciários e a incidência concreta que as instituições penitenciárias têm na 
organização econômica e social que estão analisando. 
Veremos como tampouco este método está isento de um certo 
mecanicismo, especialmente em relação àqueles períodos históricos e àquelas 
realidades nacionais, entre as quais a Itália, em que as hipóteses de trabalho 
e as tentativas de explicação propostas para outras situações encontram menor 
correspondência na realidade concreta. De todo modo, trata-se de uma 
12 
tribuição de grande valia, que estimula a análise das relações entre o cárcere 
diferentes situações socioeconômicas, bem como do papel que a instituição 
,~1utemciária desempenha atualmente. 
Esse método de trabalho emerge com clareza desde as primeiras páginas 
texto de Melossi, "Cárcere e trabalho na Europa e na Itália no período da 
.fõ'tmação do modo de produção capitalista". Os bridewells e workhouses na 
·fílglaterra elisabetana, da mesma forma que os rasp-huis de Amsterdam, são 
. enfocados e examinados à luz de precisas exigências econômicas e de 
:!liercado, numa visão que, ao menos no que concerne à bibliografia carcerária 
füiliana, é completamente nova. 
As origens do internamento compulsório na Inglaterra na segunda metade 
•do século XVI, para recolher ociosos, vagabundos, ladrões e autores de delitos 
i!e: menor importância, e submetê-los ao trabalho obrigatório e a uma rígida 
·11isciplina, e a difusão, tendo como referência o primeiro experimento feito no 
· ·•castelo de Bridewell, de casas de correção em diversas partes da Inglaterra, são 
i"êlacionadas às hipóteses avançadas por Marx sobre a necessidade de enfrentar, 
cõm instrumentos repressivos, as grandes massas de ex-trabalhadores agrícolas 
. ede desenraizados que, em conseqüência da crise irreversível do sistema feudal, 
ãfluem para a cidade e não podem ser absorvidas pela nascente manufatura 
. d()m a mesma rapidez com que abandonam os campos. Mas na realidade, nesta 
:fíümeira fase a segregação não se deve tanto a exigências de destrnição ou de 
êliminação física, mas sim à utilização de força de trabalho e, mais ainda, à 
· "nê~essidade de se adestrar para o trabalho manufatureiro os ex-camponeses 
.Yque se recusam a se submeter aos novos mecanismos de produção. 
Este processo é seguido, de maneira mais analítica, nas casas de trabalho 
.. holandesas da primeira metade dos Seiscentos. Da organização dessas casas de 
·'trabalho emerge, de forma particularmente evidente, que o seu propósito era o 
· "áprendizado forçado da disciplina da fábrica. Demonstra-se, com toda a 
'objetividade, que esta finalidade prevaleceu sobre o controle do mercado de 
ttabálho, não fosse por outro motivo senão pela importância relativamente limitada 
que essas instituições tiveram naquele períodohistórico. 
A precisão é importante porque, quando se cede a uma excessiva 
Supervalorização e generalização do fenômeno, corre-se o risco, uma vez 
encontrada uma fórmula interpretativa, de se estender o seu alcance até aplicá-
la mecanicamente a situações em que o cárcere, ou casa de trabalho ou o que 
quer que seja, tenha urna dimensão tão reduzida a ponto de não ser possível 
átribuir-lhe nenhuma função real de controle social ou alguma incidência sobre 
o mercado de oferta e demanda de trabalho. 
13 
Devemos ser ainda mais cautelosos quando nos deparamos com 
afirmações do tipo "o segredo das workhouses ou das rasp-huis ( ... ).consiste 
em representar, em termos ideais, a concepção burguesa da vida e da 
sociedade, em preparar os homens, em particular os pobres, os proletários, 
a aceitar uma ordem e uma disciplina que os tomem dóceis instrumentos da 
exploração", ou quando se afirma tout court - é esta a con.c~usão a que 
chegam Rusche e Kirchheimer - que "a primeira forma de pnsao moderna 
está( ... ) estreitamente ligada às casas de correção-manufaturas". Proceder 
desse modo significa atribuir à nascente burguesia manufatureira e à sua 
organização social uma importância e uma capacidade que, na realidade, 
permanecem confinadas a experiências certamente emblemáticas, mas de 
circunscrito alcance quantitativo e territorial. 
A relação entre o cárcere e o mercado de trabalho, entre confinamento e 
adestramento à disciplina da fábrica não pode, após os resultados da pesquisa 
de Melossi e Pavarini, ser colocada em questão, mas ao lado desta lógica 
economieista existem provavelmente outras, que não constituem simplesmente 
coberturas ideológicas ou justificativas moralistas. A chave para uma reconstrução 
da função global desenvolvida pelas instituições segregacionistas no longo período 
da sua gestação, que se estende do século XVI ao século XVIII, deve ser 
buscada numa abordagem que também leve em conta outros componentes, 
certamente contraditórios e menos racionais, que encontramos nas atuais 
instituições penitenciárias e que abarcam uma vasta esfera de motivações, às 
vezes abertamente mistificadoras, mas às vezes reais, que vão desde as exigências 
de defesa social até o mito da recuperação e da reeducação do desviante, desde 
o castigo punitivo como um fim em si mesmo até os modelos utópicos de 
perfeitos microcosmos disciplinares. 
É certo, porém, que a análise interpretativa que des(<lca as relações .entre o 
nascimento das instituições segregacionistas, a difusão da pena detentiva e o 
modo de produção capitalista contribui de maneira determinante para a 
compreensão do fenômeno e para o desmantelamento de mitos e lugares comuns 
sobre a imutabilidade do cárcere ao longo dos séculos. Nesse sentido, é 
particularmente convincente a relação de interdependência entre as condições 
do mercado de trabalho, sempre em mutação, a brusca queda da curva de 
incremento demográfico, a introdução das máquinas e a passagem do sistema 
manufatureiro para o sistema fabril propriamente dito, de um lado, e a súbita e 
sensível deterioração das condições de vida no interior do cárcere, do outro, a 
partir da segunda metade dos Setecentos na Inglaterra e nos outros países 
europeus de industrialização mais rápida. 
14 
.De fato, é nesse período que deixam de ser praticadas no cárcere formas de 
:; it@balho produtivo e competitivo, passando a prevalecer um sistemaintimidatório 
'":~.ierrorista de gestão, destinado a perpetuar-se no decorrer do século XIX e 
\.iiesmo posteriormente. Aqui.' a correlação entre os sistemas de organização 
Óarcerária e as exigências do avanço industrial e do controle terrorista sobre o 
pi;qletariado tem um fundamento indiscutível e se baseia em situações de fato, 
])IÍS como o notável desenvolvimento quantitativo da instituição carcerária e as 
terríveis condições de vida das prisões, descritas por reformadores do século 
XVUI. em primeiro lugar por Howard. 
A tentação de resolver, de acordo com estes esquemas interpretativos, também 
ás situações en'l que estão ausentes os pressupostos econômicos e produtivos 
para ligar o cárcere às linhas de desenvolvimento da economia capitalista toma 
menos convincente a investigação da realidade italiana. E isso ocorre não tanto 
porque na segunda parte do ensaio Melossi se proponha a aplicar estas concepções 
às primeiras experiências italianas dos séculos XVI e XVII, mas sim porque, na 
·ausência dos pressupostos econômicos e sociais que tornam plausível a 
éxplicação do cárcere em função das exigências do mercado de trabalho e do 
modo de produção capitalista, não são buscadas outras tentativas de explicação. 
Tem-se, assim, a necessidade de se fazer referências genéricas a exigências de 
ordem e controle social, as quais por isso mesmo são reavaliadas, posto que, 
ainda que seja de forma extremamente reduzida e com uma incidência quantitativa 
íníI1irna, as experiências de confinamento também existem na Itália. 
Essas limitações estão em parte presentes também nas investigações sobre 
os períodos posteriores, do Setecentos até as experiências dos estados que 
.precederam à unificação italiana. É necessário, porém, ter-se consciência da 
enorme dificuldade de padronizar um material tão fragmentado, por causa das 
.diversas experiências políticas e dos diferentes níveis de desenvolvimento 
econômico dos vários estados e regiões italianas e da carência de qualquer 
.tentativa de sistematização e de avaliação crítica. Diante desse quadro, deve-se, 
em primeiro lugar, recorrendo às poucas fontes existentes, completar as 
informações necessárias para fazer a descrição da situação das instituições 
penitenciárias e de confinamento existentes. 
Malgrado estas dificuldades, na parte final do ensaio emergem algumas linhas 
seguras de interpretação, com base nas quais pode-se chegar à conclusão de 
que na Itália nunca existiu a fase histórica em que a instituição penitenciária 
funcionou como adestramento para a fábrica ou como controle do mercado da 
força de trabalho. Na Itália, o cárcere, nascido mais tarde do que em outros 
países devido ao atraso com que se iniciou o desenvolvimento das manufaturas 
15 
e por conseguinte das fábricas, imediatamente adequou-se à função repressiva 
e terrorista que foi atribuída, no início do século XIX, ao internamento nas 
nações européias mais avançàdas. Saltou-se assim a passagem, ou a ilusão, 
se se preferir, de utilizar a instituição no quadro das exigências produtivas da 
nascente economia capitalista. , 
Esta hipótese, que poderia ser uma convincente explicação do crônico atraso 
do cárcere na Itália, desde as suas origens até os nossos dias, apóia-se sobre 
algumas considerações sem dúvida importantes, tais como a permanência de 
relações pré-capitalistas no Mezzogiorno, e a função assunúda pelo proletariadà 
meridional de exército industrial de reserva da econonúa do norte do país e dos 
países estrangeiros mais avançados mediante o recurso maciço ao fenômeno 
migratório. As funções de regulador do mercado e de adestramento para o 
trabalho produtivo que, pelo menos em certos períodos históricos e ern nível 
mais emblemático que real, o cárcere desempenhou em países que possuíam 
uma estrutura econôrrúca mais homogênea, teriam sido assumidas na Itália por 
outros instrumentos de controle, entre os quais, em primeiro lugar, a núgração 
interna e a enúgração. Quando, na segunda metade do século XIX, algumas 
regiões italianas alcançaram os níveis de produção de outros países europeus, o 
cárcere se adequará, em toda a nação, ao modelo de instrumento terrorista de 
controle social, sem que seja possível destacar nenhuma diferença de gestão 
entre as zonas industrializadas do norte e as mais atrasadas do sul, já unificadas 
pela mesma administração centralizada das instituições penitenciárias. 
Conviria antes perguntar se esta tentativa de sistematização da origem e 
do constante atraso do sistema carcerário italiano teve também lugar em 
outros países da bacia do Mediterrâneo,nos quais registrou-se um atraso no 
desenvolvimento econômico sinúlar ao da Itália, como Espanha, Grécia ou 
Turquia. Se essas analogias ocorreram, elas poderiam teforçar a hipótese de 
uma linha de desenvolvimento do cárcere característica de países econômica 
e politicamente subdesenvolvidos (o discurso vale, obviamente, para as 
primeiras décadas do século XIX) e induzir a um aprofundamento, em 
perspectiva comparada, da investigação sobre a situação italiana, até agora 
muito incipiente se confrontada com o nível sensivelmente mais avançado 
das pesquisas conduzidas em países em que o cárcere desenvolveu funções 
econômicas e sociais que não têm correspondência ou comparação (ou se 
tiver é muito tênue), com a realidade italiana. 
Essas conclusões problemáticas referidas aos acontecimentos históricos 
das instituições carcerárias italianas encontram uma confirmação indireta 
nos resultados a que Massimo Pavarini chega no seu ensaio "A invenção 
16 
nciária: a experiência dos Estados Unidos da América na primeira metade 
culo XIX". Esses resultados são mais seguros porque a história 
rária dos Estados Unidos pode contar não apenas com uma vasta 
';aboração crítica, totalmente inexistente para a situação italiana, mas também 
.. }~q'J'Il um desenvolvimento lógico e com uma articulação dos sistemas 
•' • :t:·~~nitenciários que permitem colocar em evidência indiscutíveis conexões 
'.:~111re 0 cárcere e o desenvolvimento econômico da América do século XIX. 
As conexões entre as formas de controle social e o tipo de econonúa agrário-
. 'fàmiliar do período colonial, entre as primeiras experiências de internamento do 
;período pós-revolucionário e o seu progressivo aperfeiçoamento em função das 
·exigências produtivas do avanço industrial, estão amplamente documentadas e 
'ê()nstituem um esquema exemplar de subordinação da ideologia punitiva e 
· J~enítenciária às leis do mercado de trabalho. 
Assim, não é por acaso que foi nos Estados Unidos, em fins do século 
· ..• '.'){VIII e no começo do século seguinte, que se inventaram e experimentaram, 
,.numa rápida sucessão histórica, os dois sistemas penitenciários clássicos de 
: .. ,fiJadélfia e de Auburn, nos quais o trabalho se reveste, respectivamente, de 
'Uma mera função punitiva ou é organizado segundo padrões produtivos e 
'competitivos. Tampouco é por acaso que, enquanto nos Estados Unidos os 
·'dois sistemas entram efetivamente em funcionamento e são aplicados até as 
.suas últimas conseqüências (basta pensar na intervenção direta da indústria 
privada na organização e na gestão do trabalho carcerário no esquema do 
çontract system), na Europa, como bem destaca Melossi, o debate sobre os 
méritos e os defeitos dos dois sistemas tem lugar num terreno predonúnan-
temente ideológico e moralista. Na verdade, na Europa da primeira metade 
do século XIX, não estavam presentes os pressupostos econômicos e de 
mercado para qualquer utilização ou instrumentalização produtiva do trabalho 
carcerário. 
Todavia, também nos Estados Unidos, como documenta o próprio Pavarini, 
a relação direta entre cárcere e trabalho produtivo teve uma incidência quantitativa 
e temporal muito linútada, pelo que, mais do que falar do cárcere como fábrica 
de mercadorias, dever-se-ia falar do cárcere como produtor de homens, no 
sentido da transformação do crinúnoso rebelde em sujeito disciplinado e adestrado 
·ao trabalho fabril. 
Esta conclusão leva Pavarini a traçar, na segunda parte do seu trabalho, 
dedicada à penitenciária como modelo de sociedade ideal, uma comparação 
articulada entre cárcere e fábrica, entre detento e trabalhador, entre contrato 
de trabalho e pena retributiva, entre subordinação no trabalho e subordinação 
17 
do preso, entre organização coativa carcerária e organização coativa eco-
nômica do trabalho. 
A tese é indubitavelmente sugestiva, mas nos parece pecar por um certo 
dogmatismo e por uma tendência à generalização abstratizante que constitui o 
limite da obra de Foucault. Se este tipo de comparação entre cárcere e fábrica 
pode ter fundamento para o período histórico examinado, isto é, para os anos 
de formação do modo de produção capitalista, que conclusôes poderemos tirar 
dela para fundamentar a tese no momento histórico atual, e em especial na 
realidadeitaliana?. 
Assistimos há mais de meio século - e sobretudo naqueles países em que o 
modelo cárcere/fábrica alcançou aplicações mais amplas e mais concretas - a 
um constante processo de transformação da sanção detentiva em outros 
instrumentos de controle em liberdade do transgressor e do delinqüente. E 
certamente não se pode afirmar, como faz Foucault, que se trata simplesmente 
de um estreitamento e de uma atomização dos conteúdos da pena carcerária, 
que continuaria assim a manter intacto o seu papel e a sua função de instrumento 
totalizante de poder disciplinar. Em outros países, como a Itália, o cárcere, 
devido às suas conhecidas deficiências organizativas, nunca foi um modelo de 
controle disciplinar e muito menos de adestramento ao trabalho produtivo, mas 
sim constituiu um modelo de mau governo e de anarquia, entendido aqui em 
termos de gestão e administração. 
A estrutura do trabalho fabril certamente sofreu algumas modificações no 
curso dos últimos 150 anos e, embora o princípio da exploração da força de 
trabalho ainda continue de pé, a condição do trabalhador subordinado não pode 
ser comparado àquele existente no período do avanço industrial. Enfim, nos 
países socialistas, o problema da repressão penal e da organização penitenciária 
seguiu e segue esquemas que em parte são calcados nos 1do mundo ocidental. 
Estes dados, sumária e desordenadamente oferecidos aqui à atenção do leitor, 
exigem uma sistematização teórica e uma tentativa de conciliação com a hipótese 
totalizante do modelo carcerário do século XIX. 
Trata-se de uma verificação que se toma urgente, se é certo que, como 
dizíamos no início, a reflexão teórica sobre uma matéria como a das instituições 
penitenciárias deve ter como objeto urna maior compreensão dos processos em 
curso no momento histórico atual. Trata-se de uma verificação que, esperamos, 
os autores deste livro possam, em breve, cumprir. 
Guida Neppi Madona 
18 
·~~~··1··· trodução ...• n 
i,;·~~.1. O início do interesse pela história da instituição carcerária coincide, 
. ·Ji!lfa nós, com a explosão, no final dos anos 1960, da gravíssima crise na 
/•~!la! a instituição se ~ncontrava (e se encontra até hoje).Como sempre acontece 
, ;~qs momentos de cnse, fomos levados a nos colocar algumas perguntas que 
. Jliziam respeito à natureza mais profunda, à essência mesma do fenômeno 
, .~arcerário. Surpreendeu-nos então constatar, e essa constatação incluía 
• '.iambém o modo de pensar que até então nos movia, que, para além das 
:.;a\ferentes posturas de cunho reformista ou mesmo subversivo do fenômeno 
:>.lf!rrcerário1, ninguém colocara com bastante clareza um problema que nos 
· ''.i•·,'~~ecia cada vez mais crucial: por que o cárcere? Por que motivo, em todas 
·.0~~sociedades industrialmente desenvolvidas, essa instituição cumpre, de modo 
· ... ~t~dominante, a função punitiva, a ponto de cárcere e pena serem considerados 
<':-_':j~bmumente quase sinônimos?Pareceu-nos que a crítica prática da instituição, 
, '::,:);;,,-~tte nesses anos se manifestava radicalmente com motins, fazendo emergir 
_;
3
-__ ;f~~da vez mais seu caráter irracional, sugeria a necessidade de inventar os 
::'//:Jllstrumentos da crítica teórica. Esses instrumentos deveriam ser capazes de 
.,'.'J'êsponder à pergunta, simples e ingênua, que a crise profunda de um 
'<,: fehômeno social sempre coloca com relação ao dito fenômeno: a quem serve 
;·:e para que serve? Diante desse fenômeno, qual deve ser a postura de quem, 
..... · ",~m seu trabalho intelectual, se interessa pela classe operária e utiliza a análise 
· · ,,Jmtrxista?Também nos parecia que o projeto de reforma penitenciária - que 
•C•fdepois de ter sido proposto há décadas, era retomadonaquelas dias agitados 
"•>·no Parlamento, sob o peso dos motins e do temor que estes provocavam na 
· \'lpinião pública - estava muito longe, se não nas fórmulas legislativas, pelo 
ínenos na colocação teórica do debate, de responder de modo minimamente 
'• ,ádequado à radicalidade com que o problema era colocado. Essa radicalidade, 
. ·.vale dizer, era mais estrutural do que política, e estava intimamente conectada 
com a própria razão de ser da instituição.Em resumo, era justo perguntar por 
que e de acordo com que critérios políticos, racionais, econômicos (aqueles 
1
-- Sobre a recente produção italiana sobre o cárcere, ver G. Mosconi, "II carcere 
nella recente pubblicistica italiana'', in La questione criminale, 1976, pp. 2-3. 
19 
que são usados - ou que se espera sejam usados -para qualquer outro problema 
social}, o indivíduo que comete um crime deve cumprir a pena no cárcere (ainda 
que esta pergunta, formulada várias vezes, faça surgir muitas interrogações 
sobre os conceitos de "delito" e "pena"; mais adiante, veremos por que é mais 
produtiva uma análise da ''pena concreta'', do cárcere).Assim, tomava-se essencial 
colocar como objeto precípuo da própria pesquisa a origem da instituição (afinal 
de contas, ela devia ter uma origem! Fazer por si só a pergunta já destruía a 
concepção sagrada de que o cárcere sempre existiu, objeto dado in rerum natura). 
E isso não acontecia por um amor visceral ao historicismo (do qual, na nossa 
cultura, é difícil nos livrar), mas porque, na medida em que colocávamos o 
problema histórico da gênese, aparecia cada vez mais em primeiro plano o aspe'.:to 
estrutural: a investigação histórica, retirando, camada por camada, as mcrustaçoes 
que as diversas ideologias jurídica, penalística e filo~ófica haviam deposit.ado 
sobre a estrutura da instituição, revelava seu reticulado mtemo, sua Bau marxista. 
Demo-nos conta, então, que nem de longe éramos os primeiros a trilhar 
este caminho. Estávamos seguindo, sobretudo, as pegadas de dois autores 
da Escola de Frankfurt dos anos 1930: George Rusche e Otto Kirchheimer2• 
No interior do nosso texto esclarecemos nossa posição com relação ao trabalho 
de Rusche e Kirchheimer e de Michel Foucault3, na. nossa opinião os pontos 
mais altos da investigação teórica sobre a instituição carcerária. 
A perspectiva desta maiêutica inicial foi, por conseguinte, colocar o 
problema da construção de uma teoria materialista (no sentido m.a~x1sta) do 
fenômeno social chamado cárcere, ou melhor, de estender os crlter1os e as 
suposições de base da teoria marxista da sociedade à compreensão deste 
fenômeno4 . 
Chegamos assim a estabelecer uma conexão entre o surgimento do modo 
de produção capitalista e a origem da instituição carcerária moderna. Este é o 
objeto dos dois ensaios que se seguem. Essa conexão definia temporal e 
2 G. Rusche & O. Kirchheimer, Punishment and social structure (1939), Nova 
Iorque, 1968. (N. do T.: edição brasileira Punição e estrutura social, ~ia de 
Janeiro, Freitas Bastos/ICC, 2004, 2ª ed., tradução e apresentação de Gtslene 
Neder). 
J Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris, 1975 (N. do 
T.: edição brasileira Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 
2002, 26' ed., tradução de Raquel Ramalhete). . 
4 Sobre a metodologia de aproximação ao problema, ver D. Melossi, "Crimonologia 
e marxismo: alle origini della questione penale nella società de 'II capitale'", in La 
questione criminale, 1976, 2, p. 319. 
20 
ialmente o nosso objeto de maneira bastante precisa: a sua área temporal 
acial coiucidia com a da formação de uma determinada estrutura social 
ídia nela). Tratava-se de um aspecto particular da estrutura global. Este 
~zjjjpecto particular, expresso em. term?s defin'.dores, é o obj~to que vem 
;~ltl\strado neste texto. Mas para isso e necessano fazer previamente uma 
.•;:~itpla advertência: sobre o que precedeu e o que sucedeu tal objeto. 
·.· 2. Num sistema de produção pré-capitalista, o cárcere como pena não 
.. :i::xiste. Essa afirmação é historicamente verificável, advertindo-se que a 
. ,,~dade feudal não ignora propriamente o cárcere como instituição, mas 
. . . . sjm a pena do internamento como privação da liberdade. 
Pode-se dizer que a sociedade feudal conhecia o cárcere preventivo e o 
•;•~:;:iíárcere por dívidas, mas não se pode afirmar que a simples privação da 
·. iillberdade, prolongada por um determinado período de tempo e não 
.',;acompanhada por nenhum outro sofrimento, fosse conhecida e portanto 
~·:prevista como pena autônoma e ordinária. 
:';·;••.: ;. Esta tese, que tende a sublinhar a natureza essencialmente processual do 
..';s;;;~ãrcere medieval, é acolhida quase unanimemente pela ciência histórico-penal. 
'.ci\o~esmo aqueles que não aceitam esta interpretação, como Pugh5, são obrigados 
.,;'.:yiueconhecer que as primeiras hipóteses historicamente aceitáveis de pena 
:: z;~íl'cerária devem ser localizadas no final do século XIV, na Inglaterra, num 
(i.;iF.~·[npmento em que o sistema socioeconômico feudal já dava mostras de 
1,:,:·~~tofunda desagregação. 
~!··::,•:·;;: Sem querer enfrentar - dada a natureza introdutória destas páginas - o 
;';••~:.q~bate historiográfico em torno da natureza de algumas penas atípicas (cárcere 
"!{\zgro-correctione, cárcere para prostitutas e sodomitas etc.), pode-se propor 
. '',J~!llª hipótese teórica capaz de justificar, ainda que apenas em termos gerais, 
· •a'ausência da pena carcerária na sociedade feudal. 
":':.:~:·:2, Uma abordagem correta do tema aponta como momento nodal a definição 
.:tjj~º papel da categoria ético-jurídica do talião na concepção punitiva feudal. 
';•'.pis;~ode ser que, na origem, a natureza de equivalência, própria deste conceito, 
,,·,,~~o tenha sido mais do que a sublimação da vingança, e que tenha se baseado 
\iOJlicima de tudo num desejo de equilíbrio em favor de quem tivesse sido vítima 
'. <.'CÍô delito cometido. 
O delito, para citar a conhecida tese de Pasukanis, pode ser 
considerado como uma variação particular da troca, no qual a relação 
de troca, como a relação por contrato, se instUüra post factum, isto 
>s R. B.Pugh, Imprisonment in Medioeval England, Cambridge, 1970. 
21 
é, em seguimento a uma ação arbitrária de uma das partes ( ... ) a · 
pena, portarto, atua como equivalente que equilibra o dano sofrido 
pela vítima . 
A passagem da vingança privada à pena como retribuição, isto é, a 
passagem de um fenômeno quase "biológico" a categoria jurídica impõe, 
como pressuposto necessário, o domínio cultural do conceito de equivalente, 
medido como troca de valores. 
A pena medieval certamente conserva esta natureza de equivalente, mesmo 
quando o conceito de retribuição não é mais diretamente conectado ao dano 
sofrido pela vítima do delito, mas sim com a ofensa a Deus. Por isso, a pena 
adquire cada vez mais o sentido de expiatio, de castigo divino. 
Essa natureza um tanto híbrida - retributio e expiatio - da sanção penal 
na época feudal não pode, por definição, encontrar no cárcere, ou seja, na 
privação de um quantum de liberdade, sua própria execução. 
Com efeito, no que concerne à natureza de equivalente, 
Para que pudesse aflorar a idéia da possibilidade de expiar o delito 
com um quantum de liberdade abstratamente predeterminado, era 
necessário q· ue todas as formas da riqueza fossem reduzidas à forma 
• 7 
mais simples e abstrata do trabalho humano medido no tempo . 
Por conseguinte, na presença de um sistema socioeconômico como o 
feudal, no qual ainda não se historicizara completamente a idéia do "trabalho 
humano medido no tempo" (leia-se, trabalho assalariado), a pena-retribuição, 
como troca medida pelo valor, não estava em condições de encontrar na 
privação do tempo o equivalente do delito. O equivalente do dano produzido 
pelo delito se realizava, ao contrário, na privação daqueles bens socialmente 
considerados como valores: a vida, a integridade física1 o dinheiro, a perda 
de status. 
Pelolado da natureza da expiatio (vingança, castigo divino), a pena só 
podia esgotar-se numa finalidade meramente satisfatória. 
Através da pena se operava, assim, a perda do medo coletivo do contágio, 
provocado originariamente pela violação do preceito. Nesse sentido, o juízo 
sobre o crime e o criminoso não se fazia tanto para defender os interesses 
6 E. B.Pasukanis, La teoria generale del diritto e il marxismo, Bari, 1975, pp. 177-
178 (N. do T.: edição brasileira A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de 
Janeiro, Renovar, 1989). 
7 Ibidem, p. 189. 
22 
eretamente ameaçados pelo ato ilícito cometido, mas sim para evitar 
(veis - porém não previsíveis e por isso socialmente fora de controle -
é.itos negativos que pudessem ter estimulado o crime cometido. Daí derivava 
\i·~J/~necessidade de reprimir o transgressor, porque só deste modo se poderia 
<<. ;;·x,:;:~yitaruma calamidade futura capaz de colocar em perigo a organização social. 
·· ·· ·. •·•$;.por causa desse temor de uma ameaça futura que o castigo deveria ser 
'2\i:'.,êl!Petacular, cruel, capaz de provocar nos espectadores uma inibição total de 
: \jmitá-lo. 
:·%,> .• i.c;E:" Se ajustiça divina deveria ser o modelo com o qual se mediam as sanções, 
,:~:·--:--·:f-:~~:{'.$_e--o sofrimento era socialmente considerado como um meio eficaz de expiação 
;,>:::~--:_:;-:;-;''.'.:~_<--_~I"de catarse espiritual como ensinava a religião, não havia mais nenhum 
;,:; ·'s;Jimíte à execução da pena. De fato, esta se expressava na imposição de 
<':,'g;.sofrimentos tais que pudessem de algum modo antecipar e igualar os horrores 
"'.+;<Jfa pena eterna. Nessa perspectiva, o cárcere como pena não se mostrava 
· :t itomo um meio idôneo para tal objetivo. 
:~;:;~_:::-;;;><:::_- Há, ademais, uma hipótese - em certos aspectos, alternativa ao sistema 
:s•s'\punitivo feudal - na qual está claramente presente uma experiência 
§'{o penitenciária. Referimo-nos ao direito penal canônico. 
s A afirmação não é contraditória com o caráter teocrático do estado feuclal. 
gJom efeito, é certo que, embora não completamente, em certos setores 
{'.'<;:'. .~articulares e em alguns períodos determinados, o sistema penal canônico 
_;:~'.~c:::i',::'~:onheceu formas originais e autônomas, que não eram encontradas em ne-
';;.';*•;nhuma experiência de tipo laico. Estes momentos e estes setores específicos 
;ç,y.são de difícil individualização por causa do estado de profunda compene-
<.,•s:c:;tração do poder eclesiástico na organização política medieval. A importância 
:'.:e,;'ªº pensamento jurídico canônico no sistema punitivo medieval variou de 
· ·· · ;·,i.intensidade em função do grau de concorrência exercitado pelo poder 
· 'êélesiástico em relação ao poder laico. 
''Si',:''· A Igreja implementou as primeiras e embrionárias formas de sanção em 
:,·.relação aos clérigos que, desta ou daquela maneira, haviam cometido alguma 
,,falta. Na verdade, é muito problemático chamar-se essas faltas de delitos. 
,,,Tratava-se, provavelmente, de infrações religiosas que, porém, provocavam 
, ,,, um reflexo mais ou menos direto sobre as autoridades eclesiásticas, ou que 
· despertavam um certo alarme social na comunidade religiosa. Essa natureza 
__ ,:-,-necessariamente hfbrida, ao menos num primeiro momento, explica satis-
·'fatoriamente porque essas ações desviantes condicionaram o poder eclesiás-
tico a ter uma reação de natureza ainda religiosa-sacramental. Compreende-
se também por que esta reação se inspirava no rito da confissão e da penitência, 
23 
acompanhado, porém - o que é próprio da índole particular destes 
comportamentos desviantes - de um elemento posterior, ou seja, a forma 
pública. Nascia assim a sanção de cumprir a penitência numa cela, até o 
momento em que o culpado se arrependesse (usque ad correctionem). 
Essa natureza terapêutica da pena eclesiástica foi depois englobada e mesmo 
desnaturalizada pelo caráter vingativo da pena, já sentida socialmente como 
satisfactio; esta nova finalidade, este tempo forçado usque ad correctionem, 
acentuou necessariamente a natureza pública da pena. Esta sai então do foro 
interno para assumir as roupagens de instituição social e, por conseguinte, a 
sua execução será tornada pública, se tomará algo exemplar, com o intuito 
de intimidar e prevenir. Todavia, alguma coisa da finalidade original, seja 
mesmo em termos de valor, sobreviveu. A penitência, quando se transformou 
em sanção penal propriamente dita, manteve em parte sua finalidade 
correcional; esta se transformou, de fato, em reclusão nun1 mosteiro por um 
tempo determinado. A separação absoluta do mundo externo, o contato mais 
estreito com o culto e a vida religiosa dava ao condenado a oportunidade, 
através da meditação, de expiar a própria culpa. 
O regime penitenciário canônico conheceu formas diversas. Além de 
diferenciar-se pelo fato de que a pena podia ser cumprida mediante a simples 
reclusão no mosteiro, mas também pela reclusão na cela ou mesmo na prisão 
episcopal, ele se caracterizou pela diversidade de modalidades de execução: à 
privação da liberdade se acrescentaram sofrimentos de ordem física, outras 
vezes o isolamento celular (celta, carcer, ergastulum) e sobretudo a obrigação 
do silêncio. Os atributos aqui sublinhados, próprios da execução penitenciária 
canônica, têm origem no modo de organização da práxis conventual, 
especialmente em suas formas de misticismo mais acentuado. O influxo que 
a organização religiosa de tipo conventual exerceu sobre a,realidade carcerária 
foi de um tipo particular; a projeção no terreno público institucional do rito 
sacramental original da penitência encontrou sua real inspiração na alternativa 
religioso-monacal de tipo oriental, de natureza contemplativa e ascética. O 
que deve ser sublinhado, o elemento fundamental para avaliação, é que o 
regime penitenciário canônico ignorou completamente o trabalho carcerário 
como forma possível de execução da pena. 
A circunstância da ausência da experiência do trabalho carcerário na 
execução penal canônica pode esclarecer o significado que a organização 
eclesiástica veio a atribuir à privação da liberdade por um período determinado 
de tempo. Parece-nos, de fato, que a pena do cárcere - da forma como teve 
lugar na experiência canônica- atribuiu ao tempo de internamento o significado 
24 
um quantum de tempo necessário à purificação segundo os critérios 
>próprios do sacramento da penitência; portanto, não era tanto a privação da 
""'1iberdade em si que constituía a pena, mas sim a ocasião, a oportunidade 
·:pára que, no isolamento da vida social, pudesse ser alcançado aquilo que era 
o objetivo ideal da pena: o arrependimento. Essa finalidade devia ser entendida 
como correção, ou possibilidade de correção, diante de Deus, e não como 
regeneração ética e social do condenado-pecador. Nesse sentido, a pena não 
.. podia ser mais do que retributiva, fundada por isso na gravidade do delito e 
.não na periculosidade do réu. 
A natureza essencialmente penitencial do cárcere canônico refletia-se 
e' clirrmne1nte na possibilidade de ser utilizado diretamente com fins políticos. A 
'Osua existência, ao contrário, teve sempre um sentido religioso, compreensível 
.únicamente no interior de um rígido sistema de valores, teleologicamente 
orientado para a afirmação absoluta e intransigente da presença de Deus na 
vida social, portanto, uma finalidade essencialmente ideológica. 
3. A segunda advertência a ser feita é, ao contrário, para depois do texto. 
·· · Não é uma conclusão, mas antes a premissa para uma outra pesquisa, que 
. diz respeito à crise da instituição e não à sua origem. Ela tem a ver mais com 
a desagregação da estrutura carcerária do que com a construção dessa 
estrutura, que é o objeto do trabalho que se segue. 
Este trabalho se desenvolve a partir do ponto de vista do capitalismo 
competitivo do final do século XIX e do início do século XX (e se detém 
· éxatamente aí). No período que se estende das últimas décadas dos Oitocentos, até a primeira metade dos Novecentos, assistimos progressivamente, em 
toda a área capitalista, a profundas mudanças do quadro econômico-social 
de fundo'. Essas mudanças dizem respeito a elementos fundamentais da nossa 
situação atual: a composição do capital, a organização do trabalho, o 
surgimento de um movimento operário organizado, a composição das classes, 
o papel do Estado, a relação global Estado-sociedade civil. 
A circulação e o consumo caem sob o domínio direto do capital: as decisões 
sobre os preços, a organização do mercado, mediante um consenso, tomam-
se uma coisa única. Não apenas se potencializam os instrumentos tradicionais 
de controle social, aquelas "áreas da esfera de produção" fora da fábrica, 
que existem desde os primórdios do capitalismo, como também criam-se 
8 As observações que se seguem são mais amplamente desenvolvidas em D. 
Melossi, "Istituzioni di controllo sociale e organizzazione capitalistica del lavoro: 
alcune ipotesi di ricerca", in La, questione criminale, 1976, 2-3. 
25 
novos instrumentos. O novo critério que rege é o da capilaridade, da extensão 
e da invasão do controle. Os indivíduos não são mais encarcerados, eles 
continuam lá onde normalmente estão reclusos: fora da fábrica, no território. 
A estrutura da propaganda e dos mass media, uma nova e mais eficiente rede 
policial e de assistência social são os portadores do controle social 
neocapitalista. Deve-se controlar a cidade, a área urbana, este é o motivo de 
fundo que faz nascer, nos anos 1920, a moderna sociologia dos "desvios" no 
melting pot americano. 
Se o modo de produção capitalista e a instituição carcerária (assim como 
outras instituições subalternas) surgiram ao mesmo tempo numa relação 
determinada que é objeto do presente trabalho, as modificações tão profundas 
que ocorreram ao nível estrutural não podem, por outro lado, deixar de ter 
provocado alterações igualmente radicais naquelas instituições e no conjunto 
dos processos de controle social e de reprodução da força de trabalho. As 
relações entre controle social primário e controle social secundário, assim 
como a própria gestão das diversas formas de controle, foram também 
abaladas. 
Rusche e Kirchheimer nos mostram como desde o final do século XIX 
até por volta dos anos 1940 a população carcerária diminui sensivelmente na 
Grã-Bretanha, na França, na Alemanha. Na Itália acontece basicamente o 
mesmo desde 1880 até a década de 1970, com uma (ligeira) exceção no 
período fascista. A diminuição da população nas prisões é acompanhada pela 
adoção cada vez mais ampla (fora da Itália) de medidas penais de controle 
em liberdade, como a probation, extensamente praticada nos Estados Unidos. 
É o surgimento de um profundo mal-estar, cujos sintomas já se percebiam 
no final do período da nossa pesquisa'. O sistema carcerário oscila cada vez 
mais entre a perspectiva da transformação em organismo efetivamente 
produtivo, com base no modelo da fábrica externa - o que significa, porém, 
no regime moderno de produção, mover-se rumo a uma abolição do cárcere 
enquanto tal - e a de caracterizar-se como mero instrumento de terror, inútil 
para qualquer finalidade ressocializante. 
Assim, durante todo o século XX, variando de acordo com as situações 
político-econômicas particulares, as perspectivas de reforma assumem um 
andamento tipicamente "a fórceps", no sentido da progressiva diminuição 
(para cada réu e no conjunto da população) das penas carcerárias, por um 
lado, e, por outro, do aumento da repressão para certas categorias de delitos 
9 Ver, mais adiante, p. 71. 
26 
réus (sobretudo nos momentos de crise política). Os períodos em que 
, tende a esvaziar os cárceres e a introduzir regimes mais benignos e de 
daptação social sobrepõem-se, de forma cada vez mais compulsiva, aos 
ríodos em que o puxar das rédeas e o regime duro tornam-se novamente 
:~fuecessários" (típico, deste ponto de vista, é a história da reforma carcerária 
·:·,jfa Inglaterra, desde o final da Segunda Guerra Mundial até a década de 
197010). 
;.•··,J.~ii'· . Tudo isso se torna particularmente evidente, porém, com a crise dos 
(•z;;ílllºs 1960, com a crise atual. Desta vez, o problema carcerário explode não 
{c?for si só, mas sobretudo na Itália, concomitantemente com um nível altíssimo 
•"\~;<'.·. ~e lutas operárias e, contemporaneamente, com uma crise social profunda, 
··;'.·•~.·g~e i~,v~ste contr~. uma s~rie de outras instituições (escola, hospitais 
· ~; ~··Fps1qmatncos, quarteis e a propna estrutura familiar burguesa). Não podemos 
:>;.z;c.J1ºs deter neste ponto, o que exigiria uma discussão geral que vai muito além 
°5:'4,lc·.tl.º objeto específico que abordamos. Basta observar que - dado que todo 0 
«:';;Si;s1stema de controle se fundamenta sobre relações de produção (historicamente 
·,.,,1;;.:determinadas~, e.dado que é neste nível, nos anos 1960, que 0 equilíbrio se S'if);.í'ºmpeu ~as fabncas - ~erá só a partir da tentativa de restabelecer 0 poder 
.
·.·.!·'.;f;j\:Jias relaçoes. de produçao que o capital jogará as cartas de um novo tipo de 
;•'i•;,,<~ontrole social e se colocará em condições de enfrentar radicalmente do seu 
"'i';l;,j1ponto .de vi~ta, a ~uestão carcerária. Assim, um elemento fundament;l para a 
:;;.;;f;pesqmsa hoje- e e a respeito deste ponto que importa concluir- é exatamente 
'. 
3
• tentar individuali~ar, com base na nova composição da relação capital-trabalho 
.~i;'.;c<,CJ~e emerge ~a cnse (~ naturalmente a primeira tarefa é justamente mostrar a 
•'•:.:>çnse), qual e o movimento· do controle social. Será que nos encontramos 
··;;.diante da ten:ati~a d~ reconstruir uma nova correspondência entre produção 
''.';e controle, tao hmp1damente representada, no capitalismo clássico, pelo 
modelo do Panopticum de Bentham? 
É somente a partir de uma efetiva clareza de análise que se tomará possível 
o movimento operário, p~ojetar uma linha própria de intervenção n~ 
• Cárce:rn- mas, sobretudo, e mais em geral, no problema do controle social_ 
que. não sej.a cegamente subalterna, mas que se enquadre no interior de um 
projeto social abrangente. 
ro:'e~ R. Kinsey, "Risocializzazione e controllo nelle carceri inglesi", in La questione 
crimmale, 1976, 2-3. 
27 
Primeira parte 
Dario Melossi 
A gênese da instituição carcerária 
moderna na Europa 
1 
A criação da instituição carcerária moderna 
na Inglaterra e na Europa continental 
entre a segunda metade do século XVI 
e a primeira metade do século XIX 
1. ''Bridewells" e "workhouses" na Inglaterra elisabetana 
O processo que cria a relação capitalista não pode( ... ) ser outro senão 
o pmcesso de separação do trabalhador da propriedade das próprias 
condições de trabalho, processo que, por um lado, transfonna em capital 
os meios sociais de subsistência e de produção, e que, por outro, 
transforma os produtores diretos em operários assalariados. Por 
conseguinte, a chamada acunzulação primitiva outra coisa não é senão 
o processo histórico de separação do produtor dos nzeios de produção. 
Ela aparece como "primitiva" porque constitui a pré-história do capital 
e do modo de produção que lhe é correspondente. A estrutura econômica 
da sociedade capitalista é derivada da estrutura econômica da sociedade 
1 
feudal. A dissolução desta libertou os elementos daquela . 
Esta famosa passagem marxista, na qual se descreve o significado essencial 
"chamada acumulação primitiva", r_epresenta a chave para ler os aconte-
entos históricos que constituem o objeto desta investigação. O próprio 
cesso de separação do produtor dos meios de produção encontra-se na 
e do duplo fenômeno da transformação dos meios de produção em capital, 
'rum lado, e da transformação do produtor direto, ligado à terra, em operário 
'vre, do outro. O processo se manifesta fenomenologicamente na dissolução 
econômica, política, social, ideológica e dos costumes - do mundo feudal. 
Não interessa aqui o primeiro aspecto da questão: a criação do capital. Na 
!idade, o horizonte mais amploda pesquisa é constituído pelo segundo: a 
hnação do proletariado'. "O licenciamento das manumissões feudais, a 
ssolução dos mosteiros, os cercamentos das terras para a criação de ovelhas 
:as mudanças nos métodos de cultivo ( ... ) cada um desses fatores 
arl Marx, II Capita/e, Roma, 1970, !, 3, pp. 172-173 [ N. do T.: edição brasileira 
capital: critica da economia politica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 
'<!':3;!:970-71, 74. 6v.]. Vale a pena, porém, examinar todo o capítulo XXIV do Livro!. 
er Maurice Dobb, Proble1ni di storia dei capitalismo, Roma, 1972 [N. do T.: 
ção brasileira A evolução do capitalis1no. Rio de Janeiro, LTC Editora, 1987, 9ª 
-, tradução de Manuel do Rego Braga], em particular os capítulos centrais "O 
cimento do capital industrial'', "A acumulação capitalista e o mercantilismo" e, 
"A formação do proletariado". 
33 
desempenhou o seu papel"' na grande expulsão das terras que se verificou na 
Inglaterra nos séculos XV e XVI. Porém, a ineficiência própria ao modo de 
produção feudal era, acima de tudo, a base, segundo a tese clássica de Dobb4, 
da carga cada vez mais pesada de trabalho que incidia sobre as massas 
camponesas, as quais só podiam livrar-se dela através da vagabundagem 
pelos campos ou da fuga para as cidades. É a mesma rudeza que as relações 
sociais assumem no modo de produção feudal - com o aprofundamento da · 
luta de classe nos campos, que 'encontra sua expressão primeira na fuga de 
uma situação doravante insustentável - que detennina o seu fim
5
• 
Os campos, mas sobretudo as cidades, que já representavam, com o 
desenvolvimento da atividade econômica e, em particular, do comércio, um · 
pólo de atração notável, começaram a povoar-se com milhares de 
trabalhadores expropriados, convertidos em mendigos, vagabundos, às vezes 
bandidos, porém, em geral, numa multidão de desempregados. 
Mais do que qualquer outro fenômeno, a impiedosa ferocidade de classe 
com a qual o capital, com a rapina, incrementa a si mesmo, penetfando nos 
campos, expulsando de lá as primeiras levas do futuro proletariado industrial 
das cidades, faz-se presente nas enclosures of commons (cercamentos das 
terras comunais), cuja sanção legislativa ocorrida no século XVIII Marx 
definirá como "decretos de expropriação do povo"6• Já em 1516, Thomas 
Morus, em Utopia, descrevia lucidamente o fenômeno: 
As ovelhas ( ... ) costumavam ser mansas e comiam pouco, mas 
agora, segundo comentam, tomaram-se tão vorazes e indomáveis a 
ponto de comer até os homens ( ... ) Com efeito, nos locais onde 
nasce uma lã mais fina e, por isso, mais apreciada, os nobres e os 
senhores ( ... ) rodearam toda a terra com cercas para usá-la como 
pastagens, e não deixaram nada para o cultivo 1( ... ) E assim, de um 
modo ou de outro, têm que abandonar a terra aqueles pobres 
desgraçados, homens, mulheres, maridos, esposas, órfãos, viúvas, 
pais de família ricos em filhos, mas não em bens, porque a agricultura. 
3 Maurice Dobb, op. cit., p. 263 (cf. Karl Marx, li Capita/e, cit., !, 3, pp. 174 ss.). 
4 A propósito dos termos do d~bate sobre a crise do modo de produção feudal, cf. 
· a introdução de R. Zanghieri ao trabalho de Maurice Dobb, na tradução italiana, e 
a bibliografia aí citada. 
5 Ver Maurice Dobb, op. cit., pp. 
6 Karl Marx, II Capita/e, cit., !, 3, p. 183. Sobre os enclosures, ver G. E. Mingay, 
· Enclosure and the Sn1all Farmer in the Age of the Industrial Revolution, Londres, 
1968, e.a ampla bibliografia aí citada. 
34 
requer muit~s braços ( ... ) E quando, andand~ de lá pra cá, eles 
gastaram _rapidamente tudo o que tinham, que outra coisa lhes resta 
fazer senao roubar, e ser en~orcados, entende-se, ou ir mendigando 
por esses mundos de Deus? 
Marx descreve com clareza a maneira pela qual num p · · . • r1me1ro momento 
o poder estatal reagm a este fenômeno social de proporções inéditas: ' 
Não era possí~el que os homens expulsos da terra pela dissolução 
dos laços feudms e pela expropriação violenta e intennitente se tornas-
sem fora da lei, fossem absorvidos pela manufatura no seu nascedouro 
com a mesma rapidez com a qual aquele proletariado era posto no 
mundo. Por outro lado, tão pouco aqueles homens, lançados subita-
mente p~ra f~ra da órbita habitual de suas vidas, podiam adaptar-se 
de maneira tao repentina, à disciplina da nova situação. ' 
Eles se transformaram, por isso, em massa, em mendigos, barididos 
vagabundos, em parte por inclinação, mas na maior parte dos caso~ 
premidos pelas Clfcunstâncias. Foi por isso que, no final do século 
XV e durante todo ~ século XVI, proliferou por toda a Europa Oci-
dental uma legtslaça~ ~anguinária contra a vagabundagenz. Os pais 
da atual classe operana foram punidos, num primeiro tempo 1 
transformação forçada em vagabundos e miseráveis. A legisla~ã~eo: 
tratou como delmqüentes voluntários e partiu do pressuposto que 
dependia da boa vontade deles continuar a trabalhar sob as velha 
condições não 111ais existentes 
8 
s 
Na seqüência, as ~áginas de Marx oferecem vários exemplos da legislação 
• ?nsta que, nos seculos XIV, XV e XVI, vai-se desenvolvendo contra os 
·• •• eno~~nos da v~gabu~dagem, da mendicância e - ainda que de forma se-
•~l;.,Eundan~ - da cnmmahdade, em relação aos quais as estruturas tradicionais 
"••·>Ined1evms, ba~eadas na candade privada e religiosa, são impotentes. Ademais 
seculanzaçao dos bens eclesiásticos que se seguiu à Reforma, quer n~ 
uropa C_?ntmental quer na Inglaterra, teve o duplo efeito de contribuir para 
~xpulsao dos camponeses dos te1Tenos de propriedade da Igreja e para 
e1xar sem su~tento algum aqueles que viviam da caridade dos mosteiros e 
ordens ~ehg10sas. Por ~sse motiv.o, à medida que o processo de prole-. 
;,y~arhrnção avançava, as medidas terronstas tinham cada vez menos eficácia'; 
~Th~mas Mo.rus, Utopia o la miglioreforma di Repubblica, Bari 1971 [ N do T. 
'Ti 1çao bras1le1ra A utopia. São Paulo, Abril Cultural, 1972], pp. 42-43. · .. 
•. ;Karl Marx, li Capita/e, cit., I, 3, pp.192-193. 
,, __ Ver Thomas Morus, op. cit.' p. 52. 
35 
por outro lado, o desenvolvimento econômico e em particular o da manufatura 
requeria cada vez mais força de trabalho dos campos. 
No início do século XVI, Thomas Morus indicava a única solução lógica, 
• " b d d d HIQ defendendo a necessidade de ocupar ulllmente esta tur a ~ esocupa os . 
Um estatuto de 1530 obriga o registro dos vagabundos, mtroduzmdo uma 
rimeira distinção entre aqueles que estavam incapacitados para o trabalho 
p . - d 
(impotent), a quem era autorizado mendigar, e os demais, que n~o po rn:;i 
receber nenhum tipo de caridade, sob pena de serem açmtados ate sangrar . 
o açoite, 
0 
desterro e a execução capital foram os principais instrumentos da 
política social inglesa até a metade do século, quando os tempos s~ mostraram 
maduros, evidentemente, para uma experiência que sé revelana exemplar. 
Por solicitação de alguns expoentes do clero inglês, al~rmados com as 
proporções alcançadas pela mendicância em Londres, o rei. autonzo.u o ~so 
do castelo de Bridewell para acolher os vagabundos, os oc1~sos'. os 1'.'droes 
os autores de delitos de menor importância12 • O objetivo da mslltmçao, que 
~ra dirigida com mão de ferro, era reformar os. internos atr.avés do trabalho 
obrigatório e da disciplina. Além disso, ela devena ,desencorajar outras pe~so~s 
a seguirem 0 caminho da vagabundagem e do oc10, e assegmar o propn~ 
auto-sustento através do trabalho13 , a sua principal meta. O trabalho que ah 
se fazia era, em grande parte, no ramo têxtil, como o exigia a época. A 
experiência deve ter sido coroada de sucesso, pois, em pou~o tempo, houses 
of correction, chamadas indistintamente de bridewells, surgiram em diversas 
partes da Inglaterra. 
Todavia, foi apenas com as diversas disposições da Poor Law da '.ainha 
Elisabeth, em vigor de forma praticamente inalterada até 1834, que fm ~ada 
uma primeira orientação, unívoca e geral, ao proble,"".ª· Com ~ma lei de 
1572, organizou-se um sistema geral dereliej (subs1d10), que tmha como 
base a paróquia, pelo qual os habitantes desta, mediante o pagamento de um, 
imposto para os pobres, deviam manter "the inipotent Poor" que vivam na-, 
w Ibideni, pp. 45 ss. 
11 Ver F. Piven e R. A. Cloward, Regulating the Poor, Londres, 1972, P· 15. 
12 Ver A.Van der Slice, "Elisabethan Houses of Correction", in Journal of American 
/nstitute of Criminal Law and Criminology, XXVll (1936-1937), p. 44; .. A. J. 
Copeland, "Bridwell Royal Hospital", in Past &Present, 1888: Max Grunhut, 
Penal Reform, Oxford, 1948, p. 15; S & B. Webb, English Prisons under Local; 
Governnient, Londres, 1963, p. 12. 
"Ver Max Grünhut, op. cit., pp. 15-16, e A. Van der Slice, op. cit., p. 51. 
36 
alidade, ao passo que aos "rogues and vagabonds" seria oferecido 
balho 14. Todavia, visto que a esse último objetivo era destinado apenas 0 
eira que sobrava do reliefpara os incapazes1', a segunda finalidade acabou 
,,,;não sendo alcançada e os desempregados continuaram sendo objeto de 
- 16 ;fepressao . 
Quatro anos depois, no entanto, o problema foi enfrentado através da 
·.,,extensão a todo o país das casas de correção que deviam fornecer trabalho 
;~os desempregados, ou obrigar a trabalhar quem se recusasse a fazê-lo 17 • 
.'J'ratava-se de instituições que, calcadas no modelo da primitiva Bridewell, 
;.,!atendiam a uma população bastante heterogênea: filhos de pobres "com a 
+·.:·;intenção de que a juventude se acostume a ser educada para o trabalho", 
;'.·&·:·;·desempregados em b.usca de trabalho e aquelas categorias que, como já foi 
·".'visto, povoaram as pnmeiras bridewells, ou seja, petty offenders, vagabundos, 
rõezinhos, prostitutas e pobres rebeldes que não queriam trabalhar". A 
renciação de t~atamento, se havia alguma, era interna à instituição, através 
diversas gradações da rudeza do trabalho. A recusa ao trabalho parece 
sido o único ato ao qual se atribuía uma verdadeira intenção criminosa, 
vez que na lei de 1601- considerada equivocadamente como o estatuto 
incipal da Old Poor Law, quando de fato ela não fez mais do que completar 
egislação anterior - era facultado ao juiz enviar para a prisão comum 
pmmon gaol) os ociosos capazes de trabalhar19 • 
Convém, porém, esclarecer o real significado da "recusa ao trabalho" no 
culo XVI. Uma série de estatutos promulgados entre os séculos XIV e 
VI estabelecia uma taxa máxima de salário acima da qual não era lícito ir (o 
e implicava sanção penal); não era possível nenhuma contratação de trabalho, 
uito menos coletiva; e até se chegou a detenninar que o trabalhador aceitasse 
Ver F. M. Eden, The State of the Poor, Londres, 1928, p. 16; G. Rusche e O. 
'rchheirner, Punishment and Social Structure, Nova Iorque, 1968, p. 41 {N. do T.: 
ção brasileira: Punição e estrutura social, Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2004, 2ª 
., tradução e apresentação de Gislene Neder]; F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., 
. 15-16; Max Grünhut, op. cit., p. 16; A.Van der Slice, op. cit., p. 55. 
Ver F. M. Eden, op. cit., p. 16. 
Ver A. Van der Slide, op. cit., p.54. 
Ve: F. M. Eden, op. cit., p. 17; Se B. Webb, op. cit., p. 13: G. Rusche e O. Kirchheimer, 
. c1t., p. 51; A. Van der Slice, op. cit., p. 55; Max Grünhut, op. cit., p. 16. 
Ver F. M. Eden, op. cit., p. 17. 
Ibidem, p. 19. 
37 
a primeira oferta de trabalho que lhe fizessem'°. Ou seja, o trabalhador era 
obrigado a aceitar qualquer trabalho, nas condições estabelecidas por quem 
lhe fazia a oferta. O trabalho forçado nas houses of correction ou workhouses . 
era direcionado, portanto, para dobrar a resistência da força de trabalho e 
fazê-la aceitar as condições que pernútissem o máximo grau de extração de 
mais-valia. 
É interessante considerar, a esse respeito, a hipótese avançada por G. Rusche 
e O. Kirchheimer, segundo a qual a introdução do trabalho forçado na segunda 
metade do século XVI e sobretudo, como se verá, na primeira metade do século 
XVII, na Europa continental, corresponde ao declínio demográfico que caracteriza 
a população européia após o século XVII, e que deve ter contribuído em muito 
para aumentar a "rigidez" da força de trabalho21 . Se, como sustenta esta hipótese, 
no período entre o século XV e a primeira metade do XVI a repressão sanguinária 
e sem escrúpulos do desemprego em massa corresponde a uma situação de 
grande oferta de trabalho no mercado, à medida em que nos aproximamos do 
século XVII a oferta dinúnui e o capital nascente vai necessitar da intervenção 
do Estado para continuar a lhe garantir os lucros altíssimos que a chamada 
"revolução dos preços" do século XVI lhe proporcionou''. Se isso for verdade, 
é necessário considerar também que, como observava Marx no trecho citado, 
a oferta e a demanda de trabalho não canúnham no mesmo ritmo, sobretudo 
neste período "prinútivo" do capitalismo, e é só mais lentamente que se 
consegue prover uma massa de capitais suficiente para valorizar toda a força 
de trabalho que havia sido liberada. 
Por conseguinte, na segunda metade do século XVI, não obstante a oferta 
de trabalho continue a crescer, esse crescimento é insuficiente para atender, 
na medida das necessidades, a demanda que o rico e. borrascoso período 
elisabetano produz. Para que este novo proletariado nãb se aproveite da si-
tuação, recorre-se, pois, ao trabalho forçado, que assume, desde o início, a 
função de regulação frente ao preço do trabalho no mercado livre. Não se 
deve esquecer igualmente, como lembra Marx, que este proletariado, de cons-
tituição extremamente recente, reluta bastante a entrar num mundo do trabalho 
20 Ver F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., p. 37. Sobre o mesmo tema, cf. também Karl 
Marx, li Capita/e, cit., 1, 3, pp. 197-201, e Maurice Dobb, op. cit. 
21 Sobre o problema demográfico, ver o ensaio de A. A. Bellettini, "La popolazione 
italiana dall'inizio della era volgare ai giorni nostri. Valutazioni e tendenze", in 
Storia d'ltalia, vol. V, 1, Turim, 1973, p. 489. O ensaio relaciona o comportamento 
demográfico italiano ao da Europa em geral. 
22 Cf. Maurice Dobb, op. cit., pp. 274 ss. 
38 
o o da manufatura, que lhe é absolutamente estranho. Como observam 
'~;F. Piven e R. A. Cloward: 
Acostumados a trabalhar no ritmo solar e das estações, por mais que 
esta disc1plma possa ser severa, eles resistem à disciplina da fábrica 
e da máquina, que, se não é mais dura, aparece como tal porque é 
estra~ha. O processo de adaptação humana a estas transformações 
econom1cas compreendeu, em geral, longos períodos de desemprego 
de massa, mal estar e desorganização 
23
• 
Voltarei mais adiante a esta problemática, que é fundamental para a 
. . . . . . _da função que, hist~ricamente, o trabalho forçado desempenhou 
:~~s mst1tmçoes segregadoras, tais como as houses of correction do período 
•• êlisabetano. B~sta por o~a observar como este tipo de instituição foi 0 primeiro 
,;: •. ~x:emplo, e mmto s1grnf1cativo, de detenção laica sem a finalidade de custódia 
•que se pode observar na história do cárcere e que os traços que a caracterizam 
?º qu~ di~ respeito à~ c~asses a quem foi destinada, sua função social e ~ 
rgamzaçao mterna ia sao, grosso modo, aquelas do clássico modelo car-
cerário do século XIX. 
2. A Rasp-huis de Amsterdã e a manufatura 
É na Holanda da primeira metade do século XVII24 que a nova instituição 
casa d~ trabalho atmge, no período das origens do capitalismo, a sua 
ma mais desenvolvida. A criação desta nova e original modalidade de 
regação punitiva responde mais a uma exigência conexa ao desenvol-
••hV})llento geral da sociedade capitalista do que à genialidade individual de algum 
fi(;!~~formador - como freqüentemente uma história jurídica entendida com 
•.2;J\istória das idéias ou "história do espírito" tenta convencer-nos. Isso fie~ 
~/;•;,;~vidente~? fato de que, ao que parece, nenhuma influência direta foi passada 
~,•'"•das expenencrn~ mglesas anteriores (bridewells) para as holandesas do século 
•;.','<'VII". A cnaçao holandesa do Tuchthuis corresponde ao mais alto

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