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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO PRIVADO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO ISABELLA FREIRE CABRAL ASPECTOS JURÍDICOS, SOCIAIS E LEGAIS DO SAVIOR SIBLING À LUZ DA OBRA CINEMATOGRÁFICA “MY SISTER'S KEEPER” NATAL/ RN 2021 https://pt.wikipedia.org/wiki/My_Sister%27s_Keeper ISABELLA FREIRE CABRAL ASPECTOS JURÍDICOS, SOCIAIS E LEGAIS DO SAVIOR SIBLING À LUZ DA OBRA CINEMATOGRÁFICA “MY SISTER'S KEEPER” Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de Graduação em Direito. Orientadora: Prof.ª. Ms. Fabiana Dantas Soares Alves da Mota NATAL/ RN 2021 https://pt.wikipedia.org/wiki/My_Sister%27s_Keeper Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas – CCSA Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355 ISABELLA FREIRE CABRAL ASPECTOS JURÍDICOS, SOCIAIS E LEGAIS DO SAVIOR SIBLING À LUZ DA OBRA CINEMATOGRÁFICA “MY SISTER'S KEEPER” Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de Graduação em Direito. Aprovada em: ______/______/______ BANCA EXAMINADORA __________________________________________________ Prof.ª. Ms. Fabiana Dantas Soares Alves da Mota Orientador(a) Universidade Federal do Rio Grande do Norte __________________________________________________ Prof.ª. Lidianne Araújo Aleixo de Carvalho Membro interno Universidade Federal do Rio Grande do Norte ___________________________________________________ Ana Carolina Guilherme Coelho Membro interno Universidade Federal do Rio Grande do Norte https://pt.wikipedia.org/wiki/My_Sister%27s_Keeper AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus por ter sido meu guia em toda caminhada acadêmica, conforto nas horas difíceis e força motriz nos momentos necessários. À minha família, alvo de toda minha admiração. À minha orientadora Fabiana Dantas Soares Alves da Mota pelos ensinamentos que levarei por toda a vida. RESUMO A humanidade tem, cada vez mais, promovido, por meio da ciência e novas tecnologias, várias mudanças que em muito têm afetado a existência humana. No contexto da ciência, algumas delas têm promovido benefícios, inclusive no referente a saúde dos indivíduos, quando se busca, das mais infindáveis formas, preservar a vida e tudo o que cerca sua perpetuação. Por outro lado, com esse mesmo fim se têm criado circunstâncias que geram estranheza por extrapolarem a lógica comum, provocando questionamentos que perpassam todas as esferas de ordem social, científica, ética, legal, moral, religiosa e outros. Um exemplo bem peculiar, fonte para esse trabalho, é a fertilização in vitro de um ser que tem, como primeiro motivo para sua existência, a função de salvar ou auxiliar no tratamento de um irmão enfermo. Com base nos ramos do Direito Civil e Constitucional busca-se entender sua razão de ser. Sob um enfoque da hermenêutica, utiliza-se da ponderação dos valores, perscrutando se diante das inovações, sobretudo, no campo da bioética, a fertilização in vitro de um bebê doador compatível com o irmão portador de doença grave fere a dignidade da pessoa humana, do direito ao próprio corpo e da liberdade enquanto autonomia. A incerteza objetiva inerente a discussão dos direitos fundamentais e, por óbvio, a figura do bebê medicamento desperta urgência por uma regulação própria sobre o tema. Enquanto não suprida a lacuna legal, não se deve abrir margem para o relativismo exacerbado, por isso a importância de buscar parâmetros corretos de cientificidade, estabelecendo a dialética. Palavras-chave: bebê medicamento; dignidade da pessoa humana; autonomia privada; direito ao próprio corpo. ABSTRACT Humanity has increasingly promoted, through science and new technologies, several changes that have greatly affected human existence. In the context of science, some of them have promoted benefits, including regarding the health of individuals, when one seeks, in the most endless ways, to preserve life and everything that surrounds its perpetuation. On the other hand, for the same purpose, circumstances have been created that generate strangeness because they extrapolate the common logic, provoking questions that permeate all spheres of social, scientific, ethical, legal, moral, religious and others. A very peculiar example, source for this work, is the in vitro fertilization of a being that has, as the first reason for its existence, the function of saving or assisting in the treatment of a sick brother. Based on the branches of Civil and Constitutional Law, we seek to understand its reason for being. From a hermeneutic approach, it uses the weighting of values, scrutinizing itself in the face of innovations, especially in the field of bioethics, the in vitro fertilization of a donor baby compatible with the sibling with a serious illness hurts the dignity of the human person, of the right to one's own body and freedom as autonomy. The objective uncertainty inherent in the discussion of fundamental rights and, of course, the figure of the baby medicine awakens urgency for its own regulation on the subject. As long as the legal gap is not filled, there should be no room for relativism, exacerbated by the importance of seeking correct parameters of scientificity, establishing dialectics. Keywords: baby medicine; dignity of human person; private autonomy; right to your own body. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8 2 DIREITOS DA PERSONALIDADE NO CONTEXTO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL E SEUS REFLEXOS NA ORDEM JURÍDICA ............................................................................................................................... 10 2.1 DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL ............................................................................. 10 2.2 CASO SAVIOR SIBLING E OS PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR, DA AFETIVIDADE E DA DIGNIDADE HUMANA ................................................................... 19 3 DIREITO CIVIL: CAPACIDADE E PERSONALIDADE ............................................. 31 3.1 PERSONALIDADE JURÍDICA X CAPACIDADE CIVIL ............................................. 31 3.1.1 Personalidade Jurídica .................................................................................................. 31 3.1.2 Capacidade Civil ............................................................................................................ 36 3.1.3 Direito ao próprio corpo como um Direito da Personalidade ................................... 39 3.1.3.1 Direito de dispor do próprio corpo como desdobramento do direito de personalidade ...................................................................................................... 40 3.2 De quem é a responsabilidade pelo desenvolvimento da criança? Quais os limites disso? ........................................................................................................................................ 42 4 DESDOBRAMENTOS JURÍDICOS, SOCIAIS E LEGAIS ATINENTES AO CASO SAVIORSIBLING ................................................................................................................. 44 4.1 O BEBÊ MEDICAMENTO E A BIOÉTICA: NO QUE CONSISTE A TÉCNICA DE FERTILIZAÇÃO IN VITRO? ................................................................................................. 44 4.2 DIREITO E SOCIEDADE (RELAÇÃO DIALÓGICA) ................................................... 46 4.3 DA LEGISLAÇÃO INFRALEGAL QUE REGE O TEMA ............................................. 50 4.3.1 Ativismo Judicial ........................................................................................................... 50 4.3.2 Caso Maria x Anna ........................................................................................................ 52 4.3.3 Ativismo Judicial: a busca de uma constituição efetiva ............................................. 54 5 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA CRIANÇA E DAS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS NA VIDA DO IRMÃO MEDICAMENTO ......................................................... 57 5.1 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - ECA .......................................... 57 5.2 IGUALDADE ENTRE FILHOS ........................................................................................ 59 5.3 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA ..................................................... 60 5.4 A INTERNAÇÃO DA CRIANÇA E A FAMÍLIA ADOECIDA X MAIOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.................................................................................. 64 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 70 8 1 INTRODUÇÃO Desde os primórdios que as civilizações têm buscado se adaptar as inovações surgidas ao longo dos tempos, cada uma a seu modo, sempre na ânsia por descobrirem as “fórmulas” adequadas para cuidarem de si e dos outros como forma de se manterem íntegros e saudáveis durante a sua existência terrena, garantindo, assim, a perpetuação da espécie. É fato que entre as muitas formas de vida e de viver, essas oriundas da busca desenfreada pela sobrevivência, algumas ultrapassaram a lógica comum provocando questionamentos vários que perpassavam por todas as esferas de ordem social, científica, ética, legal, moral, filosófica, religiosa, entre outros. Algumas das questões, que em muito impactaram a humanidade, resultantes, essas, do grande avanço das ciências e da medicina, dizem respeito a mutação da vida e reprodução humana, a promoção do alívio humano, além da criação de cobaias vivas - humanas e não humanas. Tais questões contribuíram para gerar uma nova ciência, o que se deu a partir da uma relação direta entre fatores biológicos e valores éticos - a saber: a Bioética - um ramo inovador e surpreendente que percorre os caminhos das Ciências e das Humanidades. Em se tratando das inovações geradas no campo da reprodução, um dos importantes desafios enfrentado diz respeito a possibilidade de se projetar um filho com características biológicas pré-selecionadas, o qual ‘servirá’ como doador de tecidos para um irmão doente. A esse novo ser, que já nasce carregado de uma de responsabilidade, denomina-se ‘Saviour Sibling’, ou “bebê medicamento”. Frente ao exposto, essa pesquisa que trará como problemática central a temática do “Savior Sibling”, em português “bebê medicamento”, buscará entender se a técnica utilizada e os parâmetros adotados se coadunam a uma série de princípios constitucionais, sobretudo, o da Dignidade da Pessoa Humana. Conhecer o enredo do filme “My sister’s keeper”, intitulado no Brasil como “Uma prova de amor”, fez despertar o interesse em um aprofundamento da citada temática, e serviu como fonte de inspiração para a construção dessa pesquisa. A trama, muito bem desenvolvida, trouxe inquietações, sobretudo, por saber que as problemáticas envolvidas perpassam o campo da ficção. Ao longo da narrativa foram surgindo muitos questionamentos, isso porque, sob a ótica de qualquer dos personagens, a situação vivenciada é desconfortável e dolorosa, o que requer 9 uma análise muito apurada e sensível na ponderação de interesses, abarcando, entre outros campos, o do Direito e da Hermenêutica. Seguindo para consolidação dessa análise, essa pesquisa será assim elaborada. Como primeiro capítulo, trará essa introdução. Dada a riqueza conteudística que envolve o assunto, o segundo capítulo traçará um panorama geral sobre a evolução histórica do Direito Civil, até se chegar ao momento de sua constitucionalização, onde explanará, a partir desse ponto, alguns dos princípios que se incorporaram à sua regulamentação como forma de garantir uma compreensão mais ampla da matéria. Na sequência, dessa feita, o terceiro capítulo, estabelecerá a diferenciação de Direitos da Personalidade e Capacidade Civil, e se aprofundará na temática do Direito ao próprio corpo e de quem é o responsável por exercê-lo, no caso dos menores incapazes. No quarto capítulo o trabalho seguirá com o enfoque nos Desdobramentos Jurídicos, Sociais e Legais atinentes ao bebê medicamento, momento em que traçará uma relação íntima com a Bioética, a partir da Técnica de Fertilização in Vitro. Seguirá, desta feita, na direção da relação dialógica entre Direito e Sociedade, enquanto destacará a legislação infralegal que rege o tema e os efeitos diretos da falta de regulamentação incidentes no “ativismo judicial”, ocasião em que defenderá o papel fundamental da hermenêutica para solução de conflitos. O capítulo cinco focará os Direitos Fundamentais da Criança e as consequências sociais na vida daquele que desempenha o papel de irmão medicamento, e exporá os pontos fundamentais que precisam ser analisados e pesados na decisão por utilizar a técnica. Destarte, no que concerne ao método científico empregado, se construíra a partir de uma pesquisa descritiva, no modelo exploratória, o que se fará por meio de uma revisão bibliográfica e documental, vez que sua construção decorrerá de consultas a materiais online, publicações e artigos voltados a área em epígrafe. Acercar-se-á, para sua elaboração, de uma abordagem qualitativa, cujo propósito é retratar alguns dos aspectos jurídicos, sociais e legais do Savior Sibling, com base na história contada no filme My Sister's Keeper. Além do que apresentará os resultados das consultas aos institutos legais, o que conferirá o caráter documental da pesquisa. https://pt.wikipedia.org/wiki/My_Sister%27s_Keeper 10 2 DIREITOS DA PERSONALIDADE NO CONTEXTO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL E SEUS REFLEXOS NA ORDEM JURÍDICA Assim como outros ramos e institutos a serem abordados no contexto desse trabalho, o Direito Civil é figura imprescindível de abordagem. Partindo dessa premissa, faz-se necessário prosseguir com a sua conceituação para uma adequada análise do tema. De início, é válido frisar que o próprio roteiro histórico influenciou diretamente nas múltiplas faces e nuances que surgiram e se incorporaram a este ramo do direito ao longo do tempo, sendo certo que, em uma visão tradicional, a ótica que se vislumbrava estava puramente pautada no liberalismo, racionalismo, voluntarismo, individualismo e patrimonialismo. 2.1 DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL Como se constata, já nos tempos remotos o contrato e a propriedade eram os sustentáculos do Direito Civil, e nessa seara, a autonomia da vontade deveria ser exercida em sua plenitude. Frente a isso, era dominante a crença de que uma vez asseguradas a propriedade, a liberdade de contratar, a força dos contratos e a efetividade dos diversos negócios jurídicos, protegido, em sua plenitude, estaria o homem (TEIXEIRA, 2014, p. 20). Diante de tais situações, o indivíduo, então, tinha como centro de suas preocupações o “poder de contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como expansãoda própria inteligência e personalidade, sem restrições ou entraves legais” (TEPEDINO, 2008, p. 02). Em outra perspectiva, o Direito civil constitucional veio romper com esses parâmetros, podendo ser definido em uma visão simplista como um movimento de constitucionalização, sendo certo que o constitucionalismo, na sua visão moderna, carrega duas ideias básicas: os direitos fundamentais e a estruturação do Estado. Seguindo essa linha de entendimento, Carvalho (2010) enfatiza que “o Constitucionalismo se materializa na divisão do poder, com vistas a se evitar “o arbítrio e a prepotência, além do que, representa o governo das leis e não dos homens, da racionalidade do Direito e não do mero poder”. Mas, longe de se esgotar a definição do que é a constitucionalização do Direito Civil, tão somente com os elementos focais do constitucionalismo do trecho citado, admite-se, desde já, que esta nova era do Direito Civil, na verdade, é reflexo de inquietações e questionamentos que surgiram à época de suas primeiras manifestações no tocante à forma de disciplina do direito. 11 Pois bem, no processo de constitucionalização, as relações privadas, até então marcadas exclusivamente pela autonomia da vontade, passam a retirar fundamento de validade nos preceitos constitucionais, afastando assim a ideia de que o direito civil se limita ao estudo dos eventos de caráter patrimonial. Isso porque essa patrimonialização das relações civis, pautada na perspectiva liberal, era incompatível, sobretudo, com os valores fundados na dignidade da pessoa humana, adotado pelas Constituições modernas, assevera Lôbo (2004). Frente a essa constatação, surge, então, a necessidade latente de aprimoramento da função do direito como agente normatizador das atividades humanas, tendo de assumir uma nova roupagem a partir do momento em que as relações privadas passam por um processo de socialização, período em que torna reconhecida a superioridade de valores coletivos sobre os valores individuais. Mas, antes de tudo, para entender como o constitucionalismo se deslocou para os parâmetros tidos hodiernamente, e acabou por influenciar o Direito Civil, vale trazer uma breve análise histórica, sintetizando que, de início, o período antigo e medieval não foram marcados por constituições, conforme se observa na modernidade, mas sim por alguns movimentos que podem ser considerados como um modelo de constitucionalismo que vigorava à época. Passada a era medieval, alguns pactos foram instituídos com estrutura mais próxima do que se entende por constitucionalismo nos dias atuais. Esses documentos, não obstante sua relevância histórica e política, careciam de alguns requisitos para serem considerados constituições na visão moderna, a exemplo da universalidade. Surge, por fim, o constitucionalismo moderno, que passou a vigorar aproximadamente no século XVIII. Silva (2016, p. 270) esclarece que em um primeiro momento, dentro desse constitucionalismo moderno, se observa o surgimento de uma constituição caracterizada como liberal, a qual se sustentava em uma base de direitos negativos e limitação de interferência estatal nos direitos dos indivíduos. A constituição liberal, no entanto, proporcionou severa crise social de desigualdade. Essa crise, somada à ameaça de uma revolução proletária que poderia romper com o estado liberal e a influência de um capitalismo sem controle, causou, também, prejuízo à livre concorrência no mercado, arregimenta Silva (2016, p. 275). Nesse contexto, na busca de acabar com os problemas postos, pode-se dizer que o Estado Social dá os seus primeiros sinais. Em um segundo momento desse constitucionalismo moderno, logo após a segunda guerra mundial, vem à tona o que é conceituado para parte da doutrina como neoconstitucionalismo, um modelo marcado fortemente pela concretização das prestações materiais para com a sociedade, servindo como ferramenta para a implantação de um Estado 12 Democrático Social de Direito. As profundas mudanças globais associadas ao movimento do Estado Social, contribuíram para dar mais efetividade a este modelo. Conforme explicita Silva, (2016, p. 278) passados vários anos, dessa feita, já se adentrando ao período pós 2ª Guerra Mundial, com a derrocada do modelo autocrático, refletido pela vitória dos aliados, o mundo se deparou com um panorama de instabilidade política mundial que repercutiu no Direito constitucional, atingindo, de forma negativa, “a efetividade das constituições, que tinham papel quase que figurativo e pouco articulado, impondo uma distância significativa entre o texto da lei e sua aplicabilidade” Ainda conforme entendimento de Silva (2016, p. 271) o “liberalismo fracassou, mesmo sendo um modelo no qual as constituições eram facilmente aplicáveis, e o autoritarismo também tinha fracassado com a 2º Guerra Mundial, deixando um cenário de pouca definição política e constitucional [...]”. O sentimento que se instaurou foi o de que a ideologia surgida com o Estado Liberal não havia sido capaz de proteger os cidadãos de regimes totalitários que se legitimaram em suas cartas constitucionais para cometer o que posteriormente foram considerados crimes contra a humanidade. Como expressam Souza Neto e Sarmento (2012, p. 59), no modelo liberal “os direitos fundamentais eram concebidos como direitos negativos, que impunham apenas abstenções aos poderes políticos”. Dessa forma, não constava expressado na constituição liberal direitos que o Estado deveria efetivar para o cidadão. Bastava que ele deixasse de interferir e impedir que os indivíduos agissem livremente, essa era a proposta fundamental do constitucionalismo liberal. As constituições liberais que “ocupavam-se apenas da forma político-estatal e da proteção ao indivíduo, por meio dos direitos negativos” (SILVA, 2016, p. 276), passaram por uma revisitação ideológica, consolidando a figura do Estado como atuante para a garantia de direitos aos cidadãos, atribuindo-lhe papel mais significativo do que a abstenção de uma intervenção. Como resultante, o mundo passou a reconhecer que não se podia mais admitir violações de direito legalizadas, o que levou a uma gradativa inter-relação entre o direito e a moral, na sua forma de interpretação e aplicação. Nesse ínterim, o constitucionalismo passou, portanto, por uma transição que o levou de um modelo estritamente liberal, garantidor de direitos fundamentais concernentes aos cidadãos, porém sem interferência estatal ou garantia de universalidade desses direitos, para o modelo social que demandava a intervenção do poder público para a efetivação dos direitos positivados, e que esses direitos fossem genéricos, garantidos a todos, sem quaisquer discriminações. Nesse novo cenário, Souza Neto e Sarmento (2012, p. 61) esclarecem que o Estado começa a incorporar funções ligadas à prestação de serviços públicos, passando a atuar, no 13 plano teórico, na direção voltada à promoção da igualdade material, a partir da implementação de políticas redistributivas, e do atendimento às camadas mais pobres da sociedade, naquilo que se refere aos ramos da saúde, educação e previdência social. Tal fenômeno foi imprescindível para uma mudança de paradigma. Ora, não mais bastaria ao Estado abster-se de interferir nos direitos e liberdades do cidadão – ele teria que fazer mais – teria que assegurar, positivamente, que os cidadãos gozassem de determinados direitos e prerrogativas. Nas palavras de Moretti e Costa (2016, p. 115), o ponto central das constituições modernas está focado, de forma resumida, na promoção do bem-estar ao cidadão, tendo como ponto de partida a garantia das “condições de exercício de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção aos direitos individuais, sua efetivação”. Thó (2016, [1]) observa que nessa vertente Foi necessário um redesenho dos ordenamentos jurídicos vigentes à época,objetivando alocar a Constituição no ponto central e mais importante do ordenamento, estabelecendo como essência e fim deste sistema político- jurídico o homem, por meio do resguardo jurídico de sua dignidade e de seus direitos fundamentais, o que demonstra, de cara, a vertente axiológica dessa nova era. Dito isso, uma onda de liberalismo e democracia influenciou para que diversos países modificassem suas constituições em razão do pós-guerra. Esse segundo momento da constituição moderna possibilitou ganho na força normativa das Constituições Federais de todo o mundo, haja vista o processo de constitucionalização de direitos fundamentais e internacionalização de direitos humanos. Souza Neto e Sarmento (2012) lembram que, acompanhando essa mudança global, quando não mais se tolerava o desrespeito ao modelo ético pretendido no contexto mundial, que impunha que particularidades culturais e individuais subjugassem os valores humanos universais, as constituições que se seguiram passaram a ser estruturadas com conteúdo mais substancial. Paulatinamente, as constituições liberais foram sendo substituídas, portanto, por cartas mais robustas e que previam não apenas direitos negativos, mas a atuação concreta do Estado para a efetivação de direitos fundamentais e sua intervenção na vida social. Já não era mais possível tomar a constituição como mera carta política a nortear o parlamento e garantir um estado de direito. As constituições tinham que ser efetivas, de materialização possível, invocáveis de tal maneira que sempre que necessário protegesse os indivíduos do próprio Estado e garantisse a eles os seus princípios norteadores. Uma mudança deveras importante registrada no século XX foi a alteração promovida 14 no status da norma constitucional, que passou, dessa feita a figurar como norma jurídica. Tal mudança superou o padrão europeu em vigor até meados do século XIX, quando o modelo constitucional funcionava como um documento político, favorecendo, assim, a interferência dos Poderes Políticos em sua funcionalidade. Conforme esclarecimento de Barroso (2005, p. 5), “a concretização de suas propostas ficava invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao Judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição”. Com esse novo prestígio concedido às Constituições, vislumbra-se o abandono do modelo de carta política, passando, a Constituição, a figurar agora como verdadeiro instrumento normativo que irradia seus preceitos em todos os ramos de direitos. Uma vez bem mais esquematizado, é esse cenário de transformação o ponto chave para inaugurar uma nova concepção também no Direito Civil, pois em que pese tenha em seu âmago a regulamentação do direito privado, passa a ter, agora, como elemento norteador, o direito público, regulamentando além das relações entre particulares as relações entre estes e o Estado. Dito de outra forma, dessa feita, sob o prisma de Monteiro Júnior (2020) “não que institutos do Direito Civil tenham passado a constituir matéria de direito público, mas, sim, porque ganharam, em sua essência, uma regulamentação fundamental em sede constitucional”. Nesse processo, o indivíduo sofre uma repersonalização, sendo colocado como centro do direito civil, ocupando o patrimônio um lugar coadjuvante. Nessa seara vale destacar a excelente lição da professora Barboza (1999, p. 27), segundo a qual se faz necessário, antes de tudo, destacar o foco desse novo modelo jurídico, principalmente no referente às relações privadas, posto que, nesse cenário, modifica-se o modelo liberal – voltado ao individual, ao patrimônio – vivenciado no passado, por uma visão voltada ao humanismo. E nesse novo cenário O homem continua como centro de estruturação do sistema jurídico, porém, não mais como produtor e motor da circulação de riquezas, e sim como ser humano, que deve ser respeitado e assegurado em todas as suas potencialidades como tal. O patrimônio deixa de ser o eixo da estrutura social, para se tornar instrumento da realização das pessoas humanas. Em outras palavras, o homem não mais deve ser ator no cenário econômico, mas regente das atividades econômicas. Insista-se: o homem deve se servir do patrimônio e não ao patrimônio (BARBOZA, 1999, p. 27). As profundas transformações ocorridas na constitucionalização dos direitos civis em face da pessoa humana impuseram, como se vê, a releitura da sua própria função primordial. 15 Nesse prisma de abordagem, fica cristalina a efervescência maior da valorização do ser humano como sujeito de direitos. Em nível de Brasil, Oliveira (2017, p. 173) explica que foi a partir da segunda metade do Século XX, e no Brasil particularmente com o advento da Constituição de 1988, se desencadeou o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, passando, as suas normas e institutos a depender dos princípios e regras constitucionais. Seguramente princípios constitucionais como dignidade, solidariedade e igualdade, marcam categoricamente a modificação do Direito Civil contemporâneo De Pietro ([2009], p. 15) indica que a funcionalização do Direito Civil na perspectiva instituída pela Constituição Federal de 1988, se encarrega de implementar as bases fundamentais do Direito com fatores extrínsecos à sua própria ciência, “revelando-se instrumentos de análise do Direito - no tocante a sua função - com vistas a atender aos anseios da sociedade, naquilo que se relaciona a uma ordem jurídica e social mais justa”. Para uma abordagem mais rica do assunto, após se descrever o fenômeno da força normativa da Constituição, e a incidência desse fenômeno na constitucionalização do Direito Civil, justo que se faça menção a conceituação dos Direitos Fundamentais, os diferenciando dos direitos humanos, pois, como já citado, enquanto os primeiros sofreram um processo de constitucionalização, os segundos passaram pelo processo de internacionalização. Os direitos humanos são aqueles inerentes ao homem, à condição humana, ou seja, são aqueles direitos reconhecidos no direito natural, são tidos como universais porque presentes em todos os seres humanos sejam eles de qualquer cor, nacionalidade, credo, independente da orientação sexual ou poder aquisitivo; sejam de qualquer faixa etária; ainda que não reconhecidos pela ordem jurídica. O reconhecimento dos direitos humanos é resultado de um longo processo de lutas de revoluções mesmo e que a partir de sua positivação e inserção no plano constitucional passaram à denominação de direitos humanos fundamentais. Siqueira Júnior (2010, p. 32) leciona que a denominação ‘direitos humanos’ está elencada entre uma lista básica de direitos decorrentes do direito natural e do desenvolvimento histórico, formando-se conforme consenso social como o mais básico a ser observado em qualquer contexto social. Nessa perspectiva se pode encarar toda a projeção jurídica, seja qual for a sua denominação - De direitos absolutos a direitos naturais, e mais especificamente, direitos da personalidade. Se abrangendo um sentido mais amplo, diz-se direitos humanos. Se 16 reconhecidos pelo Estado, direitos fundamentais.1 Por fim, classificam-se como direitos humanos aqueles inerentes e válidos a todos os seres humanos, a todos os povos, a qualquer tempo, se configurando a partir das cláusulas mínimas que o homem deve possuir em face da sociedade em que está inserido. Como se vê, para além da previsão dessas garantias, havia de se ter um instrumento apto para efetivá-las, haja vista que se assim não fosse, todo esse aparato burocrático perderia o significado. Dito isso, foi a partir dessa constatação que os direitos humanos passaram a ser positivados, tendo sua inserção no plano constitucional, ganhando a denominação de direitos humanos fundamentais. Oprofessor Dimoulis (2007) ensina que se trata de fundamentos da organização política e social de um Estado, incutidos no texto constitucional - imprescindíveis e inatingíveis. Segundo o autor “direitos subjetivos garantidos na própria Constituição e, portanto, dotados de supremacia jurídica. Os direitos fundamentais vinculam o exercício do poder do Estado, limitando-o no intuito de garantir a liberdade individual”. Farias (2014, p. 45) traça como liame diferenciador entre direitos humanos e direitos fundamentais, sem olvidar que não se trata de aferir que são realidades estanques, a sua constitucionalização. Assim, a locução direitos fundamentais, está intimamente relacionada a aqueles direitos relacionados as posições básicas das pessoas, registrados em diplomas normativos de cada Estado. “São direitos que vigoram numa ordem jurídica concreta, sendo, dessa feita, garantidos e limitados no espaço e no tempo, pois são assegurados na medida em que cada Estado os consagra”. Olsen (2006) observa que enquanto a expressão “direitos humanos costuma ser empregada em referência aos direitos reconhecidos pela ordem jurídica supranacional, a expressão “direitos fundamentais” passou a se relacionar aos direitos expressamente positivados nas Constituições de cada país” Feita a conceituação e diferenciação posta, deve-se destacar que a dificuldade grave da atualidade, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-lo, e sim o de protegê-los. Não se trata mais de saber quantos e quais são estes direitos, mas sim qual é o modo mais seguro de garanti-los. Nessa perspectiva torna-se imperioso analisar a eficácia dos direitos fundamentais em seu aspecto vertical e horizontal. 1 Os direitos fundamentais são aqueles reconhecidos pelo Estado, na norma fundamental, e vigentes num sistema jurídico concreto sendo limitados no tempo e no espaço. Num conceito pleno, os direitos fundamentais são aqueles consagrados na norma fundamental e que dizem respeito a preceitos fundamentais, basilares para que o homem viva em sociedade (SIQUEIRA JÚNIOR, 2010, p. 33). 17 Ora, a visão clássica da eficácia vertical dos direitos fundamentais se posiciona no sentido de que ao Estado incumbe a não violação direitos fundamentais, mas, além disso, é seu papel resguardar que tais direitos sejam respeitados em sua íntegra pelos particulares, de modo impositivo. Ensina Marinoni (2004, p. 233) que, “as normas que estabelecem direitos fundamentais, se podem ser subjetivadas, não pertinentes somente ao sujeito, mas sim a todos aqueles que fazem parte da sociedade“. Já a visão pautada na eficácia horizontal ou privada (erga omnes) ordena a observância dos direitos fundamentais igualmente entre particulares nas relações jurídico-privadas, reconhecendo o valor da constituição e sua dimensão objetiva como um conjunto de normas substanciais de proteção da divisão dos poderes e dos direitos fundamentais cerceados. Ou seja, ante um conflito de interesses entre dois particulares, torna-se imprescindível a aplicação dos direitos fundamentais a fim de se restabelecer o equilíbrio, fazendo prevalecer a dignidade e o Estado Democrático de Direito. A isso convencionou-se chamar de teoria da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. Tartuce (2021, p. 114) arregimenta, acerca do tema, que a conjunção dos direitos fundamentais às relações privadas é imprescindível em meio a uma sociedade formada por situações de desigualdade, onde vigora a opressão, não somente por parte do Estado. Ao que Sarmento (2004, p. 223) acrescenta que referida opressão parte de uma “multiplicidade de atores privados, presentes em esferas como o mercado, a família, a sociedade civil e a empresa” Na mesma perspectiva Sarmento (2004, p. 189) preceitua ainda que [...] autonomia privada não é absoluta, pois tem de ser conciliada, em primeiro lugar, com o direito de outras pessoas a uma idêntica quota de liberdade, e, além disso, com outros valores igualmente caros ao Estado Democrático de Direito, como a autonomia pública (democracia), a igualdade, a solidariedade e a segurança. Se a autonomia privada fosse absoluta, toda lei que determinasse ou proibisse qualquer ação humana seria inconstitucional No ordenamento jurídico alemão, onde foi desenvolvida, a teoria da eficácia horizontal encontrou sua maior maturidade, sendo empregada a expressão de Drittwirkung como indicativo da irradiação dos direitos fundamentais aos demais ramos do ordenamento jurídico, destacando-se a possibilidade de reclamação desses direitos diretamente pelos particulares no âmbito de suas relações privadas, sendo nítida a reflexão direta dessa teoria na hermenêutica e ponderação de interesses. Nesta direção, segundo Guerra (2007, [1]), a hermenêutica se identifica com a Teoria 18 dos fundamentos de interpretar, ou seja, “consiste na busca prática e investigativa da verdadeira essência de cada texto que lhe é apresentado, de modo que seja possível retirar o correto entendimento, conteúdo e significado da norma analisada”. A conclusão em cadeia dos métodos do processo hermenêutico, via interpretação técnica, permite a boa aplicação do resultado final ao fato pertinente, confirmando-o, moldando-o ou negando-lhe validade [...] cada agente interpretador, conforme a sua competência, atribuição ou condição, irá adequar e moldar, aos verdadeiros ditames das respectivas normas jurídicas interpretadas, os fatos concretos a ele subjugados (GUERRA, 2007, [1]). Nesse cenário, cada dia mais se fortalece a tendência de não mais se permitir a utilização das normas constitucionais apenas em sentido negativo, isto é, como limites dirigidos somente ao legislador ordinário, sustentando-se seu caráter transformador. Nesse sentido, as normas constitucionais devem ser enquadradas como fundamento conjunto de toda a disciplina normativa infraconstitucional, sendo verdadeiro princípio geral de todas as normas do sistema. A rigor, portanto, o esforço hermenêutico do jurista moderno volta- se para a aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não apenas na relação Estado–indivíduo, mas também na relação interindividual, situada no âmbito dos modelos próprios do direito privado. A inclusão, nos documentos normativos, de princípios e conceitos jurídicos indeterminados, portanto, possibilita um “espaço” maior de interpretação e raciocínio jurídico do intérprete e aplicador do Direito, criando-se uma nova dogmática de hermenêutica constitucional. Isso foi fundamental para aprimorar a visão clássica da hermenêutica, que não supriu totalmente a denominada antinomia ou conflito de normas - duas ou mais normas que regularizam um mesmo assunto, porém, apresentam consequências opostas ou mesmo incompatíveis - pois em que pese haver vasta pluralidade de métodos utilizados, a exemplo dos critérios hierárquico, cronológico e da especialidade, não existiam indicações de qual meio seria o mais favorável. Sendo assim, abria-se margem de possibilidades para subjetivismos e imprevisibilidades. Nada obstante, os pilares da hermenêutica clássica sofreram profundo abalo por meio do pós-positivismo, assim como a teoria dos direitos fundamentais, advindo uma outra perspectiva, qual seja, que a aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais, automaticamente, vincula ao jurista, o que norteia que suas decisões sejam sempre argumentadas com base na Constituição, fundamento legítimo. 19 Feitas as devidas ponderações, o estudo da hermenêutica constitucional, apresenta-se como necessário justamente por proporcionar a prerrogativa de compreensão e interpretação dos direitos fundamentais na casuística em concreto. A hermenêutica não pode ser entendida como a ciência, técnica, ou método de interpretação jurídica, visto que a mesma deverá ser analisada sob o enfoque constitucional visando garantirconcretude, efetividade e o exercício dos direitos fundamentais, assimiladas a partir da principiologia e a sistematicidade jurídico-constitucionais, isto é, a linguagem e a interpretação passam a ser a forma de produção das normas, aclaram Ribeiro e Braga ([200-?]). Puxando a problemática para o direito civil, no que tange a hermenêutica, pode- se dizer, que antes havia a disjunção; hoje a unidade. Ou seja, a Constituição como ápice conformador da elaboração e aplicação da legislação civil. A mudança de atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição, e não a Constituição segundo o código. Por meio do princípio da supremacia da Constituição, verifica-se que as normas constitucionais possuem supremacia formal e material; possuindo hierarquia jurídica igualitária e, por intermédio do princípio da presunção de constitucionalidade das leis, denota-se que estas presumem-se constitucionais. Então, mediante o princípio da interpretação conforme a constituição, tem-se que as leis devem ser interpretadas de acordo com os valores constitucionais; recorrendo ao princípio da máxima efetividade. Nessa seara, resta claro que nos casos de colisões de valores constitucionais, deve-se procurar harmonizá-los, sacrificando-os o mínimo possível. Desta maneira, em concordância com o princípio da proporcionalidade, percebe-se que as restrições aos direitos fundamentais devem ser adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito; não devendo afetar o núcleo essencial da norma. Nesse prisma de abordagem, frisa-se que os direitos fundamentais não podem servir para justificar a violação de outros direitos igualmente importantes. 2.2 CASO SAVIOR SIBLING E OS PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR, DA AFETIVIDADE E DA DIGNIDADE HUMANA Após apresentação do ponto antecedente, em que foi possível delinear um arcabouço teórico voltado ao entendimento acerca do que aqui será problematizado, a presente pesquisa irá se debruçar sobre os ensinamentos acerca do Savior Sibling, ou “Bebê Medicamento”. Os bebês medicamentos são embriões selecionados para possuírem características genéticas que os transformem em doadores de órgãos ou tecidos para seus irmãos doentes 20 (GIMENEZ, 2016). Tais procedimentos são possíveis antes mesmo de seu nascimento, e ainda que pareça estranho, um dos principais motivos por que são gerados é a tentativa de salvar ou contribuir para o tratamento de um irmão enfermo. Antes de adentrar em uma abordagem técnica propriamente dita de como esses bebês são desenvolvidos, o que será feito em capítulo próprio, opta-se por detalhar, neste momento, o conceito desse instituto, a luz do filme “Uma Prova de Amor”. De toda sorte, se explica, desde já, que longe de ser uma narrativa ficcional, a história do filme se repete com extrema semelhança na vida real, não fugindo de qualquer conotação lógica os temas que serão a posteriori expostos. O filme em questão foi dirigido por Nick Cassarotes e lançado em 11 de setembro de 2011, sendo um drama marcante e divisor de opiniões. O enredo conta a história de uma família, cuja filha recebe o diagnóstico de leucemia. A menina chamada Kate pertence a um núcleo familiar formado por seus pais Sara e Brian, e um irmão. Ao se depararem com a doença de Kate, e sendo feita a descoberta de que não atendiam aos pré-requisitos para doação de medula, os pais decidem por ter mais um filho. Sara está vivenciando o auge do desespero quando convence seu marido a engravidá- la, afinal, parecia ser, essa, uma solução segura e eficaz para, possivelmente, resolver os problemas de saúde vivenciados pela primogênita, haja vista a possibilidade de um novo filho ser potencial doador de medula. Nasce o bebê que recebe o nome de Anna. Desde os cinco anos Anna é submetida a procedimentos para a doação da medula, sem sucesso. O ápice da obra se dá quando Anna, aos 11 anos, procura um advogado, com o intuito de requerer sua emancipação médica, visto não querer mais ser submetida aos procedimentos invasivos em seu corpo. A família chega ao Tribunal para resolver a questão. Posteriormente, verifica-se que tal atitude, na verdade, partiu para atender a vontade de Kate, a irmã doente, que tinha o desejo de morrer em paz. A história narrada leva a diversas reflexões, que vão além do campo de incidência do direito. São diversos os questionamentos que incidem também na vertente social, ética, psicológica, científica e religiosa: Será que a filha Anna está feliz em passar por tantos procedimentos dolorosos? Anna tem direito de ser dona de seu próprio corpo? Qual o papel dos pais nisso? É justo ter um filho com a responsabilidade de salvar outro? Por outro lado, é correto deixar uma criança morrer se é possível que ela sobreviva? É possível fazer qualquer coisa por filho? São alguns dos muitos questionamentos que surgem no enredo. Dirigindo essa abordagem ao campo do Direito, mais especificamente em nível de 21 Brasil, é necessário revisitar, de plano, alguns institutos principiológicos, que prima facie norteiam, sobretudo, a visão constitucional entrelaçada ao Direito de Família, sendo fundamentais na elucidação das questões postas. Nessa direção, Reale (2003, p. 37) aduz que “princípios são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, a aplicação e integração, ou mesmo a elaboração de novas normas”. São admitidas como verdades fundamentais de um sistema de informação, e como tais aceitadas por sua transparência ou por serem evidenciadas, como também, pelos pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis. Os princípios não apregoam verdades definitivas, mas tão somente determinam que se faço algo, dentro de parâmetros exigidos, considerando, no entanto, certas condições. Segundo esclarece Alexy (2002, p. 99) “o fato de um princípio ser aplicado em um caso concreto não significa que o que ele determina seja um resultado definitivo para o caso”. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas (ALEXY, 2008, p. 90-91). O autor acrescenta ainda que De acordo com a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy, se dois princípios colidem um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições, isso significa de acordo com o autor em estudo, que os princípios têm pesos diferentes e que os que possuem maior peso têm precedência (ALEXY, 2008, p. 93-94). Mello e Silva (2021, p. 450-451) por sua vez arregimenta que princípio se configura como o mandamento essencial de um sistema - o seu alicerce - posição fundamental que se expande para as diferentes normas representando a sua essência e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. O primeiro dos princípios a ser revisitado, não podendo ser de forma diferente, é o da Dignidade da Pessoa Humana, consagrado como um dos fundamentos da Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 1º, inciso III. 22 Como já bem explicitado, o princípio da dignidade da pessoa humana ganha contornos relevantes no contexto de pós-guerra, mais precisamente, após a 2° Guerra Mundial. Isso ocorreu à medida que o Direito se preocupou em fornecer instrumentos aptos a assegurarem garantias fundamentais à sociedade como um todo.A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi o primeiro passo dado para a obtenção dessas garantias. Em seguida, países do mundo todo positivaram em suas constituições um amplo rol de direitos e garantias, à luz da dignificação do homem. O princípio da dignidade da pessoa humana, nesse sentido, justamente por ser considerado básico para todos os demais direitos fundamentais, foi devidamente consagrado na Declaração Universal de Direitos Humanos, estando inclusive, expresso em seu preâmbulo, conforme recorte abaixo [...] Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, [...] (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, [1]). No entanto, sabe-se não ser fácil elaborar uma conceituação precisa do que vem a ser a dignidade da pessoa humana em um plano teórico e prático. Essa dificuldade reside justamente em decorrência de sua natureza axiologicamente aberta, bem como da variabilidade histórico- cultural que acompanha esse princípio. Contudo, vale discorrer acerca de algumas posições de profissionais com notória autoridade no mundo científico, começando por Moraes (2006, p. 10) o qual assevera que a dignidade da pessoa humana está intrinsecamente relacionada ao ser, compreendendo os seus valores espiritual e moral, e se faz latente a partir da força motriz do indivíduo, quando conscientemente esse se torna independente, responsável por si mesmo e por suas ações, pleiteando, como base para uma perfeita convivência social, a busca pelo respeito por parte das demais pessoas, ao mesmo tempo, acercando-se de um “mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais”, preservando-se, em todo o tempo, o respeito ao próximo, e a necessária estima de que são merecedores os indivíduos, enquanto seres humanos. Maluf e Maluf (2016, p. 23) explicam que O princípio da dignidade da pessoa humana vem colocado no ápice do ordenamento jurídico “[...] e permeia intrinsecamente o direito de família, visando à realização de seus membros”, ao que Tartuce (2019, p. 7) complementa https://www.unicef.org/brazil/carta-das-nacoes-unidas 23 aludindo tratar-se, tal princípio, do “princípio máximo, ou superprincípio, ou macroprincípio, ou princípios dos princípios”. Seguindo a linha de conceitos, Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 55) deliberam que o princípio da dignidade da pessoa humana trata-se do Princípio solar [do] ordenamento, a sua definição é missão das mais árduas, muito embora [se arrisque] dizer que a noção jurídica de dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade. Mais do que garantir a simples sobrevivência, esse princípio assegura o direito de se viver plenamente, sem quaisquer intervenções espúrias — estatais ou particulares — na realização dessa finalidade. Quando ordem constitucional erigiu a dignidade da pessoa humana a um baldrame da ordem jurídica, privilegiou-se, nesse momento, a figura da pessoa, unindo todos os institutos à efetuação de sua personalidade. Referido fenômeno alicerçou a “despatrimonialização e a personalização dos institutos jurídicos”, colocando, dessa feita, a pessoa humana como ponto central da proteção jurídica (DIAS, 2009, p. 61). No referente ao ordenamento interno, vale destacar também as posições de autores como Farias e Rosenvald, para quem a dignidade humana é o que há de mais precioso no ordenamento jurídico brasileiro, uma garantia da autonomia do indivíduo no tocante a liberdade de criação de sua personalidade. Uma vez assimilada a sua importância, ao cidadão vai permitir a afirmação de sua integridade física, psíquica e intelectual. Dessa forma, deve-se reconhecer o ser humano como o centro do sistema jurídico, vez que, as regras criadas são determinantes à pessoa, comprometidas essas, com a sua realização existencial, e por assim ser, deve-se-lhe assegurar desde o mais ínfimo dos direitos fundamentais, com vistas a lhe garantir uma vida digna (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 169). Já Medeiros Neto e Toledo (2017) aduzem que a dignidade da pessoa humana é elevada à categoria de meta-princípio, posto que, esparge valores e vetores de interpretação para os demais direitos fundamentais, estabelecendo que a figura humana seja tratada de forma diferenciada – de forma que essa venha a gozar do tratamento moral do qual é merecedor, em igualdade de direitos, e ainda cuidando para que cada indivíduo seja tratado como fim em si mesmo, e não como “coisas”, em detrimento de outros interesses ou de interesses de terceiros. Nesta senda, sobre a dignidade, Chemin (2009, p. 1) arregimenta ser, tal característica, inerente e natural aos seres humanos. Além do que, é um direito constitucional, cuja aplicabilidade e eficácia decorrem de forma contígua, e por assim ser, não pode ser transferida 24 e nem tampouco sofrer prescrição. É inegociável, posto que se constitui como cláusula Pétrea, conforme determina a Constituição Federal de 1988. Vale acrescer, portanto, que a dignidade, “é irrenunciável, inalienável, e deve ser reconhecida, promovida e protegida, não podendo, contudo, ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente”, esclarece Chemin (2009, p. 1) Dias (2009, p. 62), fazendo a conexão entre o princípio da dignidade humana e o direito das famílias, ensina que é a família a base onde se firma, e forma, a dignidade da pessoa humana, e que, a partir de então essa passa a “florescer”, no entanto, independentemente de onde essa se origina, a ordem constitucional a resguardará, em todas as suas condições. A diversidade das estruturas familiares preserva e ao mesmo tempo, expande os sentimentos mais puros existentes nesse emaranhado familiar, a saber: “o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum”, e assim sendo, concebe o desenvolvimento pessoal e social, em sua totalidade, de cada um dos membros dessa “sociedade”, que se constitui baseada em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas”, assevera Dias (2009. p. 62). Note-se que, devido à posição que ocupa, como epicentro axiológico da ordem constitucional, em ocorrendo colisão de princípios, o princípio da dignidade da pessoa humana não estará sujeito a ceder em face de outros princípios constitucionais, ou seja, “mesmo admitindo-se que não há hierarquia entre princípios constitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana não cederá em face de qualquer outro” (BERNARDO, 2006, p. 244). Logo, em que pese não mereça restrições a um ou a ambos em virtude do comando de compatibilizá-los em cada situação concreta, pode-se dizer que a dignidade humana funciona como critério de solução do conflito entre princípios, e a solução se dará em favor daquele princípio que melhor com ela se compatibilizar. Conclui-se que em todos os setores da vida humana, independente de tipificação expressa, quando há agressão à dignidade da pessoa humana, deve tal fato ser objeto de reparação (direta, com a cessação do comportamento, ou indireta, com a aplicação de sanção, no mais das vezes, pecuniária) . Por fim, há de se entender que, em que pese exista um conceito aberto do princípio da Dignidade Humana, e em que pese o caráter controvertido que isso acarreta, tais questões não invalidam, de forma alguma, a força normativa do princípio, ao contrário, só sustentam a necessidade de uma postura dialógica do operadordo direito, como será desenvolvido a partir da análise aprofundada do caso concreto posto ao debate na presente pesquisa. Nesse passeio pelo campo dos princípios, destacam-se agora alguns pontos acerca do princípio da afetividade, o qual é considerado um ponto crucial para a construção desse trabalho. 25 Antes, porém, de entrar na seara do referido princípio se faz questão de lógica conceituar o “afeto”, enquanto sentimento inerente a alguns seres. Em que pese a relevância, não há definição clara para um termo tão complexo. Por muito tempo a filosofia, e posteriormente a psicologia buscaram uma conceituação precisa para tal sentimento, mas até então não se alcançou essa definição, nem tampouco se chegou a um consenso. A tarefa é árdua e exige uma introspecção interdisciplinar. Somente para fins práticos, mas longe de uma definição solidificada e definitiva, haja vista espaço para muitos apontamentos e considerações, estampa-se aqui que, “o afeto é um sentimento de afeição ou inclinação para alguém; amizade, paixão ou simpatia” (MICHAELIS..., [2020, p. 1]). O afeto é um sentimento que ajuda a construir o comportamento humano. É uma característica que o ser humano traz e dela necessita desde o nascimento, sem o qual o indivíduo não consegue viver. É imprescindível para a vida humana e insubstituível por qualquer outro elemento presente na natureza. O que determina a essencialidade do afeto para a vida humana é, sem dúvida, o fato de o homem ser uma espécie social. Há uma necessidade de reciprocidade em suas relações e a criação de laços é fundamental no processo de socialização do indivíduo, sendo impossível viver em completo isolamento e solidão por toda uma vida. São os laços de solidariedade, fraternidade e afetividade que acabam justificando a construção de um ramo do direito voltado aos vínculos com a natureza parental, assistencial e matrimonial, o chamado Direito de Família. O prestígio de que desfruta a família, no entanto, está muito mais ligado às enormes responsabilidades que são impostas a seus integrantes, em decorrência da sua origem: o afeto. Basta atentar que é da família o encargo de cuidar, formar, educar os futuros cidadãos. Igualmente, todos os que demandam algum tipo de cuidado, devem socorrer-se da entidade familiar a qual pertencem, que tem o dever de cuidar daqueles que não têm condições de prover a próprio sustento, como as pessoas especiais e os idosos (DIAS, 2011, p. 74) Ainda que não referido explicitamente no texto constitucional, o afeto é o amálgama essencial das relações intersubjetivas familiares, desde sempre, quaisquer que sejam as formações culturais humanas, servindo como elemento primordial do princípio da dignidade da pessoa humana. No ordenamento pátrio, o afeto passa a ser o embrião da estrutura familiar, juntamente com a mútua assistência e forma familiar pública, contínua e duradoura A família é a célula-máter, é a grande entidade criadora e formadora de indivíduos e é de lá que o afeto deve irradiar para toda a sociedade. Por isso mesmo, “a família deve ser um 26 instrumento para a felicidade de seus integrantes” (ROSA, 2018, p. 64). Nessa mesma linha, Lôbo (2004) leciona que projetou-se, no campo jurídico constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade. Nesse ínterim, percebe-se que a relação existente entre o princípio da afetividade e o superprincípio da dignidade da pessoa humana é bastante íntima. O princípio da afetividade consagra o valor jurídico do afeto na vida do ser humano, alçando-o ao patamar de direito fundamental, enquanto o princípio da dignidade da pessoa humana unifica em torno de si os direitos fundamentais Sendo assim, em que pese o ordenamento jurídico brasileiro não discipline em sua Carta Magna de forma expressa o direito ao afeto, não deixa de garantir esse direito implicitamente, o colocando no plano dos direitos fundamentais. Nessa seara, dispõe o art. 5º, §2º da Constituição Federal, que “os direitos e garantias expressos [...] não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Logo, a interpretação do princípio implícito da afetividade que, como se viu, tem fundamento na exegese do ordenamento jurídico como um todo, influencia diretamente na categorização do direito fundamental ao afeto, já que constitui claro reflexo da elevação da pessoa ao centro do sistema, através da busca de sua dignificação. Frente a isso, vale ressaltar que a necessidade afetiva é bem mais latente em crianças e daí advém a importância da família como entidade capaz de suprir essa natural carência e proporcionar um desenvolvimento não somente saudável do ponto de vista fisiológico, mas, sobretudo, do ponto de vista da saúde mental. Nesse ponto, cita-se um trecho da obra de Bowlby (1981, p. 23) Um grande número de pesquisadores estudou detalhadamente os efeitos da privação de cuidados maternos em bebês de instituições. Os resultados de suas pesquisas são complicados demais para serem detalhados aqui, mas todos mostraram que os efeitos perniciosos da separação da mãe podem ser observados desde as primeiras semanas de vida de muitos bebês. Essa conclusão a que chegaram vários pesquisadores renomados, não deixa dúvida quanto ao fato de ser, o desenvolvimento da criança criada em instituições, muito aquém do esperado, quando em comparação com a criança que vive em um lar, cercada de sua parentela. Tal desenvolvimento foi registrado como abaixo da média, avaliando-se, as crianças, desde a mais tenra idade. Como resultante das observações, percebeu-se que o bebê que sofre privação de tal sentimento pode não sorrir quando frente a um rosto humano, não reagir quando alguém brinca com ele, pode ficar sem apetite ou ainda, mesmo que bem nutrido, não aumentar o seu 27 peso, pode dormir mal, e não demonstrar qualquer iniciativa para as atividades mais comuns. Böing; Crepaldi (2004, p. 212-213) por sua vez afirmam que referidas experiências são primordiais na infância, posto que, é nessa etapa que os afetos são relevantes, bem mais intensos que em quaisquer outras fases da vida. No tange ao fazer psicológico, “grande parte dos aparelhos sensório, perceptivo e de discriminação sensorial, ainda não amadureceu”, e por assim ser é que a postura materna, no sentido do emocional, será o liame a construir os afetos do bebê, proporcionando a ele, qualidade de vida à sua experiência”. Os autores acrescentam, ainda, que é a partir dessa ligação com a figura materna vivenciada nos primeiros anos de sua existência, aliada essa a relação estabelecida com a figura paterna e demais parentela, que a comunidade científica determina o ponto de partida para o desenvolvimento da personalidade e saúde mental (BÖING; CREPALDI, 2004, p. 212-213). Contudo, o princípio em tela, assim como o já citado princípio da Dignidade Humana, é dotado de suporte fático hipotético necessariamente indeterminado e aberto, dependendo a incidência da mediação concretizadora do intérprete, que com uma postura ativa deve utilizar a equidade para valorar e ponderar o modo e amplitude no caso concreto. Por fim, adentra-se no campo do princípio da Solidariedade. A palavra solidariedade, segundo verbete do Dicionário Aurélio ([2009]), é caracterizada como “estado de uma ou mais pessoas que compartilham de modo igual, e entre si, as obrigações de um ato, empresa ou negócio e, por sua vez, arcam com as responsabilidades que lhes são particulares; interdependência”. O princípio da solidariedade tem como origem histórica a época dos grandes filósofos da antiguidade da Grécia e consiste em uma forma de unir não só as pessoas entre si, mas também a sociedade, em um sentimento de fazer o bem ao próximo. Pode-sedizer que, hodiernamente tal princípio resulta da superação do individualismo jurídico, ou seja, do modo de pensar e viver em sociedade a partir do predomínio dos interesses individuais. Sendo assim, na evolução dos direitos fundamentais, aos direitos individuais vieram concorrer os direitos sociais, como já bem explicitado na primeira parte deste trabalho. Além desse caminhar de ordem global de evolução dos direitos fundamentais, após a Segunda Guerra Mundial, em direção ao princípio da dignidade humana, no plano pátrio, essa perseguição na melhora da condição de vida das pessoas vem associada ao intenso período ditatorial em que vários dos direitos básicos dos indivíduos foram suprimidos. Com o advento da Constituição Federal de 1988, veio à tona a necessidade de proporcionar um rol mais extenso de direitos, destinados, esses, ao bem-estar social. Com essa transformação, o meio social passou a exigir a construção de uma sociedade solidária, que é 28 exercida tanto pelo Estado como pelas pessoas. Tal princípio foi consagrado no inciso I do art. 3º da Constituição Federal de 1988. A solidariedade, para o constituinte, é, a um só tempo, valor e princípio tacitamente presentes em toda a Constituição, servindo não apenas como mecanismo de interpretação ou reafirmação de outros princípios, mas também como fundamento da própria ordem constitucional. Porém, ao ingressar na esfera jurídica, esse valor sofre, obviamente, algumas adequações: não é mais um mero sentimento. Por isso, neste estágio, torna-se irrelevante se o indivíduo, a quem é também destinada a norma constitucional, está de acordo ou não com ela: É óbvio que o Direito não tem como penetrar no psíquico das pessoas para impor-lhes as virtudes da generosidade e do altruísmo. Seria terrível, aliás, se o Direito pudesse ditar sentimentos. Entretanto, se ele não pode obrigar ninguém a pensar ou a sentir de determinada forma, ele pode, sim, condicionar o comportamento externo dos agentes, vinculando-os a obrigações jurídicas. Assim, em que pese a solidariedade englobar uma postura ativa de afeto, cooperação, respeito, assistência, amparo, ajuda e cuidado, a função do direito deve ser a de converter esses elementos psicológicos ou anímicos em categorias jurídicas, para iluminar a regulação das condutas, condutas essas verificáveis, que ele seleciona para normatizar. Fica subtendido, portanto, que a solidariedade tem a ver com o ‘auxiliar ao próximo como se gostaria de ser auxiliado’, e sobre tal Moraes (2008, p. 4) arregimenta que [...] a solidariedade como valor deriva da consciência racional dos interesses em comum, interesses esses que implicam, para cada membro, a obrigação moral de não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito. Esta regra, ressalte, não possui qualquer conteúdo material, enunciando apenas uma forma, a forma da reciprocidade, indicativa de que a cada um que, seja o que for que possa querer, deve fazê-lo pondo-se de algum modo no lugar de qualquer outro. Trazendo dita abordagem para o âmbito do Código Civil, diz-se que o princípio da solidariedade é instrumento basilar para o Direito de Família brasileiro. Tal preceito recebeu a denominação de solidariedade familiar. Assim, a solidariedade não se afigura só no âmbito patrimonial, mas também sob um prisma afetivo e psicológico. Oportuno trazer à baila as lições do sapiente doutrinador Tartuce (2021, p. 162) para quem os ramos do Direito Constitucional e Civil se fazem explicados na sua totalidade e não de forma isolada. De acordo com o autor é possível se registrar que existe, “não uma invasão do 29 Direito Constitucional sobre o Civil, mas uma interação simbiótica entre eles, funcionando ambos para melhor servir ao todo - Estado e sociedade”. Na visão de Madaleno (2018, p. 140), a solidariedade - princípio e oxigênio de todas as relações familiares e afetivas – mantém unidos esses vínculos que só conseguem se solidificar e expandir em um ambiente onde haja reciprocidade - compreensão e cooperação entre as partes que vão seguir ajudando-se mutuamente sempre que necessário. Tratar da questão da solidariedade Constitucional voltada ao direito de família é matéria de grande valia para a sociedade moderna. Isso porque o desenvolvimento das ciências, a globalização e o acesso desenfreado de informações, entre outros fatores, contribuiu para diversas transformações sociais; que acabaram por influenciar na figura do núcleo familiar, sendo necessário que o tema seja abordado sob a visão jurídico-sociológica, compreendendo, ainda, os aspectos psicológicos que advém dessa solidariedade, ou da falta dela na postura familiar. O lar é, por excelência, um lugar de colaboração, de cooperação, de assistência, de cuidado - uma solidariedade civil. Nessa busca da proteção à família, o art. 226, § 8º da Constituição Federal de 1988 garante que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Dessa forma, o grupo familiar se faz concebido como titular de direitos, mas essa titularidade tem que ser compartilhada por cada indivíduo que o integra. É justamente isso que garante a solidariedade na prática. No que tange a solidariedade em relação aos filhos, diz-se que essa corresponde à exigência de cuidado em uma visão ampla da criança, isto é, de ser mantida, instruída e educada para sua plena formação social. Essa solidariedade tem papel especial, vez que encontra respaldo não somente na Carta Magna, como também na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, que por sua vez, reproduz seus comandos no art. 4° do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990, p. [1]). De outra maneira não poderia ser, pois quando o direito se depara com uma figura que se presume vulnerável, confere-lhe proteção ímpar. Não só o catálogo de direitos são ampliados, 30 denominados preferenciais, como a própria interpretação se faz mais favorável quando em colisão com o direito de outrem. Feitos os devidos comentários, o princípio da solidariedade incorpora, portanto, uma gama de valores e os transforma em direitos e deveres exigíveis nas relações familiares. Logo, qualquer norma infraconstitucional que verse sobre o tema deve ser interpretada no sentido que melhor realize o princípio da solidariedade familiar, além do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e dos princípios gerais aplicáveis às relações familiares. 31 3 DIREITO CIVIL: CAPACIDADE E PERSONALIDADE Após debruçar-se no Direito Constitucional, abordando os momentos chaves da história que levaram ao constitucionalismo moderno e a sua influência na nova visão que se tem do Direito Civil, apresentando, ainda, princípios intrinsecamente ligados ao caso em estudo, o objetivo deste capítulo é alinhar os conceitos de personalidade jurídica e capacidade civil, para então, entrar especificamente na análise do direito de dispor do próprio corpo, como decorrência deste último, analisando, por fim, a quem pertence a titularidade desse direito, ainda, no caso das crianças, a quem cabe a responsabilidade e quais são suas eventuais limitações. 3.1 PERSONALIDADE JURÍDICA X CAPACIDADE CIVIL A priori, elenca-se que em um Estado Constitucional e democrático de direito, alicerçado na busca incessante da tutela dos direitos fundamentais, a proteção aos chamados “direitos de personalidade''mostra-se indispensável. E nesse cenário infere-se que os direitos da personalidade são aqueles direitos inerentes à pessoa e à sua dignidade” (BRASIL, 1988, p. p. [1]). Farias e Rosenvald (2021, p. 183-184), em sua linha de raciocínio definem os direitos da personalidade como sendo questões jurídicas inerentes à pessoa, as quais se voltam ao seu próprio ‘eu’ e as suas pretensões sociais. Segundo ainda preceituam, os direitos da personalidade “são os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, em que se convertem as projeções físicas, psíquicas e intelectuais do seu titular, individualizando-o de modo a lhe emprestar segura e avançada tutela jurídica”. A personalidade jurídica seria, nesse sentido, para doutrina tradicional, um atributo humano. Assim, o homem, como sujeito de direitos, teria a aptidão genérica de desenvolver relações jurídicas, contraindo direitos e obrigações na ordem civil, sendo a personalidade o instrumento garantidor para tal. 3.1.1 Personalidade Jurídica Segundo explicitam Farias e Rosenvald (2021, p. 179) em um contexto histórico, a personalidade jurídica se fez entendida, unicamente, como uma capacidade genérica cabível a qualquer cidadão para que possa titularizar relações jurídicas, ou seja, a personalidade jurídica sempre foi vista apenas como um atributo genérico reconhecido a uma pessoa para que viesse 32 a ser admitida como um sujeito de direitos Sob uma perspectiva diametralmente oposta, já existe entendimento doutrinário defendendo que mais do que a qualidade que possibilita ao indivíduo ser sujeito de direitos, a personalidade jurídica recai no próprio gozar da tutela jurídica. Dessa feita, a personalidade jurídica, então, não deve ser sinônimo de aptidão para se titularizar relações jurídicas, tendo em vista que é possível ser sujeito de direitos independentemente dela. Não por outro motivo, entes despersonalizados conseguem ser legítimos titulares apesar de não possuírem personalidade. Em uma perspectiva civil-constitucional, a personalidade é mais bem conceituada como consequência do princípio da dignidade da pessoa humana. Consiste a personalidade na reclamação de direitos fundamentais, imprescindíveis à uma vida digna. É a essa posição que se filia o presente trabalho. Consoante os autores Farias e Rosenvald (2021, p. 179) De maneira mais realista e próxima da influência dos direitos fundamentais constitucionais, é possível (aliás, é necessário) perceber uma nova ideia de personalidade jurídica. Com esteio em avançada visão civil-constitucional, a personalidade jurídica é o atributo reconhecido a uma pessoa (natural ou jurídica) para que possa atuar no plano jurídico (titularizando as mais diversas relações) e reclamar uma proteção jurídica mínima, básica, reconhecida pelos direitos da personalidade. A personalidade jurídica, acrescentem Farias e Rosenvald (2021, p. 179) “é, assim, muito mais do que simplesmente poder ser sujeito de direitos. Titularizar a personalidade jurídica significa, em concreto, ter uma tutela jurídica especial, consistente em reclamar direitos fundamentais, imprescindíveis ao exercício de uma vida digna”. Vê-se, portanto, que a personalidade é juridicamente acoplada ao ser humano, que o permite adquirir, exercitar, modificar, substituir, extinguir ou defender interesses. É valor ético, oriundo do princípio da dignidade da pessoa humana. E mais do que atributo necessário à caracterização do homem como sujeito de direitos, é ela, a personalidade, inerente à existência de todo e qualquer indivíduo, que o sustenta no âmbito jurídico, garantindo-lhe um mínimo de proteção. Existem três teorias que discutem o marco inicial da personalidade. A primeira teoria, denominada concepcionista, entende que o marco inicial é a concepção. Nessa teoria o nascituro possui personalidade. Segundo Pamplona Filho e Araújo (2007, p. 37) A doutrina concepcionista tem como base o fato de que, ao se proteger 33 legalmente os direitos do nascituro, o ordenamento já o considera pessoa, na medida em que, segundo a sistematização do direito privado, somente pessoas são consideradas sujeitos de direito, e, consequentemente, possuem personalidade jurídica. Dessa forma, não há que se falar em expectativa de direitos para o nascituro, pois estes não estão condicionados ao nascimento com vida, existem independentemente dele. Seguindo o mesmo raciocínio, Diniz (2010, p. 36-37) afirma que Tendo o Código Civil atribuído direitos aos nascituros, estes são, inegavelmente, considerados seres humanos, e possuem personalidade civil. Ademais, entende que seus direitos à vida, à dignidade, à integridade física, à saúde, ao nascimento, entre outros, são muito mais decorrência dos direitos humanos guarnecidos pela Constituição Federal do que da determinação do Código Civil. A segunda teoria, denominada natalista, entende que o marco inicial da personificação é o nascimento com vida. Dessa forma, o nascituro não possui personalidade, que será adquirida apenas no momento do nascimento com vida. Conforme entende Pereira (2007, p.153) O nascituro não é ainda pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e adquire personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto e relação jurídica; mas, se se frustra, o direito não chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em reconhecimento de personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento já ele é sujeito de direito Por fim, a terceira teoria, denominada teoria da personalidade condicional, entende que a personalidade é adquirida a partir do nascimento com vida, mas os direitos do nascituro sujeitam-se a uma condição suspensiva. Como se sabe, a condição suspensiva é o elemento acidental do negócio ou ato jurídico que subordina a sua eficácia a evento futuro e incerto. No caso, a condição é justamente o nascimento com vida. Pussi (2008, p. 87) relata que A teoria da personalidade condicional é a que mais se aproxima da verdade, mas traz o inconveniente de levar a crer que a personalidade só existirá depois de cumprida a condição do nascimento, o que não representaria a verdade visto que a personalidade já existiria no momento da concepção. E o que seria propriamente a figura do nascituro? Ribeiro (2016) ensina que a expressão nascituro é originário do termo em latim nasciturus, [...] que designa o ser ainda em geração, que tem existência no ventre materno – ou vida intrauterina. Fazendo uma ponte a ‘desaguar’ no ordenamento jurídico brasileiro sobre o 34 marco inicial da personalidade jurídica, o Código Civil em seu artigo 2º preconiza que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Assim sendo, a interpretação literal do código demonstra que suas ideias se coadunam com a teoria natalista na primeira parte do dispositivo, enquanto a segunda tem um viés concepcionista. Conforme entende Lopomo (2018) o nascituro é “aquele que há de nascer, cujos direitos a lei põe a salvo”. Tal afirmação levanta uma questão acerca do texto do art. 2º do atual Código Civil, quando se questiona se tal instituto, no artigo em epígrafe, acata ou não o embrião, em especial aquele utilizado na técnica de fertilização in vitro (extrauterina), técnica, essa, utilizada com o “bebê medicamento”. O questionamento advém de uma visão tradicional que admite a ocorrência da fecundação tão somente no ventre materno. O tema divide opiniões e o posicionamento mais acertado parece ser o da admissibilidade, ao qual se filia este trabalho. Silva (2015, p. 132) sustenta que O conceito tradicional de nascituro – ser concebido e ainda não nascido – ampliou-se para além dos limites da concepção