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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS EM LINGUÍSTICA APLICADA LINHA DE PESQUISA: ESTUDOS DE PRÁTICAS DISCURSIVAS ABORDAGEM DA PONTUAÇÃO NO ENSINO MÉDIO: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS E PROPOSIÇÃO DE PROTÓTIPO DIDÁTICO EM PERSPECTIVA DIALÓGICA DANIELLE BEZERRA DE PAULA NATAL – RN 2018 DANIELLE BEZERRA DE PAULA ABORDAGEM DA PONTUAÇÃO NO ENSINO MÉDIO: ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS E PROPOSIÇÃO DE PROTÓTIPO DIDÁTICO EM PERSPECTIVA DIALÓGICA Tese apresentada, como parte dos requisitos para a obtenção do título de doutora, ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem, na área de concentração Estudos da Linguística Aplicada, na linha de pesquisa Estudos de Práticas Discursivas, sob a orientação da Professora Doutora Maria da Penha Casado Alves. NATAL – RN 2018 Paula, Danielle Bezerra de. Abordagem da pontuação no ensino médio: análise de livros didáticos e proposição de protótipo didático em perspectiva dialógica / Danielle Bezerra de Paula. - Natal, 2018. 187f.: il. color. Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2018. Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves. 1. Pontuação - Tese. 2. Livro didático de Língua Portuguesa - Tese. 3. Protótipo didático - Tese. I. Alves, Maria da Penha Casado. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 81'33 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 PAULA, Danielle Bezerra de. Abordagem da pontuação no ensino médio: análise de livros didáticos e proposição de protótipo didático em perspectiva dialógica. Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na área de concentração Linguística Aplicada, para a obtenção do título de Doutora em Estudos da Linguagem. Aprovada em: 02 de agosto de 2018. BANCA EXAMINADORA _______________________________________________ Dra. Maria da Penha Casado Alves – UFRN PRESIDENTE _______________________________________________ Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira – UFRN EXAMINADORA INTERNA AO PROGRAMA _______________________________________________ Dr. João Maria Paiva Palhano – UFRN EXAMINADOR EXTERNO AO PROGRAMA _______________________________________________ Dra. Maria do Socorro Maia Fernandes Barbosa – UERN EXAMINADORA EXTERNA À INSTITUIÇÃO _______________________________________________ Dra. Miriam Buab Puzzo – UNITAU EXAMINADORA EXTERNA À INSTITUIÇÃO Aos que partiram durante a realização deste trabalho e que, apesar da dor e da saudade, me fizeram lembrar que eu precisava continuar firme na caminhada, dedico: meu irmão José Daniel Bezerra de Paula (in memoriam), pessoa de bom coração, que sempre se orgulhou de minhas conquistas e que confiou a mim seu filho, meu amado sobrinho Vitor Daniel. minha avó-mãe Rita Maria das Mercês de Paula (in memoriam), exemplo de ser humano e inspiração da vida inteira, que me ensinou a enfrentar desafios e a vencê- los. AGRADECIMENTOS Várias pessoas contribuíram para que eu conseguisse concluir mais esta etapa acadêmica. Portanto, pela rede de apoio que tive/tenho, agradeço, em especial a: Maria da Penha Casado Alves – orientadora que me acompanha desde a graduação –, por ter me iniciado nos estudos bakhtinianos, pela leveza com que conduziu o percurso, por ampliar meus horizontes e por me fazer acreditar em minha capacidade. João Maria Paiva Palhano – inspiração para muitos –, por ser imensamente generoso e por ser amoroso mesmo ao tecer críticas, pela presença em fases importantes para a minha trajetória acadêmico-profissional, pelas contribuições na qualificação e pelo aceite, outra vez, em colaborar com sua exotopia na defesa. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira – por quem tenho muito respeito –, por todas as indicações de leituras, pelas críticas construtivas no momento de qualificação, dando segurança para continuar a pesquisa e, agora, pelo novo aceite em compor a banca de defesa. Miriam Bauab Puzzo e Maria do Socorro Maia Fernandes Barbosa, por terem aceitado avaliar a pesquisa no momento de defesa e pelas pertinentes sugestões, colaborando para o aprimoramento da versão final desta tese. Marcos Antônio Costa, por ser responsável pelo meu encantamento – no início do curso de Letras – pelos estudos linguísticos e por ser incrível todas as vezes, dentro e fora de sala de aula. Minha família, pelo incentivo constante aos estudos e por confiar em minhas vitórias. Em especial, à minha mãe Valderice Bezerra, por apoiar todas as minhas decisões e por celebrar cada conquista, mesmo pequena, como se fosse a maior de todas; às minhas tias, com destaque para Maria Marluce de Paula e Maria José de Paula, por terem sido, desde a infância, suporte e exemplo; e às minhas “prirmãs” Juliana Paula e Juliette de Paula, por estarem comigo em todas as fases da vida e terem me ajudado ainda mais nesse período final do doutorado. Manu(elle) de Oliveira Inácio, pelo companheirismo em todo o percurso não apenas acadêmico, por me fortalecer em diversas situações e pela presença singular em minha vida. Priscilla Rosa, por ser amiga de todas as horas, estando perto ou longe, com quem sempre compartilhei/compartilho angústias não apenas deste processo. Rhena Raíze Peixoto de Lima – amiga de graduação e de profissão –, por ser interlocutora sincera com quem dividi/divido muitas dúvidas, por sempre me impulsionar a fazer cada vez melhor e tentar desfazer minhas inseguranças. Jana(ína) Matias, pela amizade e pelos muitos auxílios, sendo um deles fundamental para a composição do corpus da pesquisa. William Brenno, pelo carinho que ampara e pelos encontros de apoio mútuo. Gabriela Ribeiro e Deyvson Freitas, por serem bastante solidários comigo quando pensei que não conseguiria encerrar este ciclo. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), por ter me permitido o afastamento necessário à conclusão das disciplinas e à boa parte do processo de escrita desta tese. https://www.facebook.com/deyvson.freitas.3?hc_ref=ARTKAtDGmQJ5p-5W3H8nXB1ycIUtV61E8-mSc3g-5zv8kqQjqywE6XWb07KnCyjMYyo LISTA DE SIGLAS BNCC – Base Nacional Comum Curricular CD – Coleção Didática EF – Ensino Fundamental EM – Ensino Médio ES – Ensino Superior FAE – Fundação de Assistência ao Estudante FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação LA – Linguística Aplicada LD – Livro Didático LDP – Livro Didático de Português LP – Língua Portuguesa MEC – Ministério da Educação OCEM – Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Linguagens e suas Tecnologias PCNEM – Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa para o Ensino Médio PNLD – Programa Nacional do Livro Didático SD – Sequências Didáticas UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO Esta tese, situada na área de produção de conhecimento da Linguística Aplicada, toma como objeto de estudo a problematização do ensino da pontuação a partir de dois eixos: da abordagem nos livros didáticos de Língua Portuguesa indicados pelo Guia PNLD 2015; e da proposição de atividades que articulem a pontuação como um dos recursos expressivosutilizados para a construção estilística do enunciado. São objetivos centrais: 1) avaliar, em uma perspectiva dialógica, a abordagem da pontuação nos livros didáticos de Língua Portuguesa aprovados no PNLD (2015-2017), voltados para o ensino médio; e 2) propor, com base nas críticas apontadas, protótipo didático (ROJO, 2012, 2013, 2017) que permita explorar os sinais de pontuação como recursos expressivos dos enunciados. Ancorada no paradigma interpretativista com enfoque qualitativo (CHIZZOTTI, 1998; FREITAS, 2002, 2007, 2010), a pesquisa se respalda teoricamente nas contribuições do Círculo de Bakhtin sobre linguagem, enunciado e estilo (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006; BAKHTIN, 2003, 2010a, 2010b, 2013). Os resultados revelam que, embora já sejam identificadas algumas mudanças no trabalho com a pontuação, a maior parte dos LDP sugeridos pelo PNLD 2015 ainda conserva uma visão normativa e dissociada de outros conhecimentos para o tratamento do referido conteúdo. Elaborado a partir das reflexões críticas, o protótipo didático evidencia a pontuação integrada às práticas de leitura e de produção textual, contribuindo com uma abordagem bakhtiniana do tópico sob análise. PALAVRAS-CHAVE: Pontuação. Livro Didático de Língua Portuguesa. Recurso Expressivo. Protótipo didático. ABSTRACT This thesis, placed is in the Applied Linguistics area, takes as the object of study the questioning of the teaching of the punctuation from two axes: the approach in the Portuguese textbooks indicated by the guide PNLD 2015; and the proposition of activities that articulate the punctuation as one of the expressive resources used for the stylistic construction of the enunciation. Central objectives: 1) evaluate, in a dialogic perspective, the approach of the punctuation in Portuguese Language textbooks approved in PNLD (2015-2017), focused on the high school; and 2) propose, on the basis of the criticisms pointed out, prototype to teach (ROJO, 2012, 2013, 2017) that allows to explore the punctuation marks as expressive resources of the enunciations. Anchored in the Interpretative Paradigm with qualitative focus (CHIZZOTTI, 1998; FREITAS, 2002, 2007, 2010), the research is supported theoretically in the contributions of the Circle of Bakhtin about language, enunciation and style (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006; BAKHTIN, 2003, 2010a, 2010b, 2013). The results prove that although some changes have already been identified in the work with the punctuation, most of the LDP suggested by PNLD 2015 still retains a normative and dissociated view of other knowledge for the treatment of the said content. Prototype to teach, drawn up from the critical reflections, highlight the punctuation integrated with the practices of reading and textual production, contributing to a bakhtinian approach to the topic under review. KEY WORDS: Punctuation. Portuguese Language textbook. Expressive Resources. Prototype to teach. RÉSUMÉ Cette thèse, située dans le champ de la linguistique appliquée, prend comme objet d'étude la problematisation de l’enseignement de la ponctuation a partir de deux axes: l'approche dans les manuels scolaires de Langue Portugaise indiqués par le Guide PNLD 2015; et la proposition d'activités qui articulent la ponctuation comme l'un des ressources expressives utilisés pour la construction stylistique de l'énoncé. Les objectifs principaux sont: 1) d'évaluer, dans une perspective dialogique, l'approche de la ponctuation dans les manuels scolaires de Langue Portugaise approuvés par le PNLD (2015-2017), destinés à l'enseignement secondaire; et 2) proposer, sur la base des critiques formulées, un prototype d’enseignement (ROJO, 2012, 2013, 2017) qui permet d’exploiter les signes de ponctuation comme ressources expressives de l’énoncé. Ancré dans le paradigme interprétativiste avec l'approche qualitative (CHIZZOTTI, 1998; FREITAS, 2002, 2007, 2010), la recherche s’appuie théoriquement sur les contributions du Cercle de Bakhtine à propos de la langue, de l’énoncé et du style (BAKHTINE/VOLOCHINOV, 2006, BAKHTINE, 2003, 2010a, 2010b, 2013). Les résultats attestent que, bien que certains changements dans le travail avec la ponctuation soient déjà identifiés, la plupart des LDP suggérés par le PNLD 2015 conserve encore une vision normative et dissociée d'autres connaissances pour le traitement de ce type de contenu. Le prototype d’enseignement, élaboré à partir des réflexions critiques, a mis en évidence la ponctuation intégrée aux pratiques de lecture et de production textuelle, en contribuant à une approche bakhtinienne du sujet en cours d’analyse. MOTS-CLÉS: Ponctuation. Manuel Scolaire de Langue Portugaise. Ressource Expressive. Prototype d’enseignement. SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS....................................................................... 10 1.1 DELIMITAÇÃO DA PESQUISA ................................................................. 15 1.1.1 Questões e Objetivos de Pesquisa ..................................................... 15 2 LÍNGUA PORTUGUESA NO NÍVEL MÉDIO: DOCUMENTOS OFICIAIS ... 18 2.1 DOCUMENTOS OFICIAIS NA CONSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA LÍNGUA PORTUGUESA ............................................................................................... 18 2.2 PNLD: PRESENÇA E IMPACTOS DO LD NA ESCOLA ........................... 21 3 HORIZONTE TEÓRICO-METODOLÓGICO ................................................ 26 3.1 PERCURSO METODOLÓGICO ............................................................... 26 3.1.1 Procedimentos metodológicos ........................................................... 29 3.1.2 Protótipos didáticos: definição e justificativa .................................... 32 3.2 PERSPECTIVA DIALÓGICA DA LINGUAGEM ......................................... 35 3.2.1 Enunciado: unidade de análise ........................................................... 39 3.2.2 Estilo: material, forma e conteúdo ...................................................... 45 4 PONTUAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS ..................................... 52 4.1 ANÁLISE LINGUÍSTICA: COMPREENSÃO DO FUNCIONAMENTO DIALÓGICO DA LEITURA E DA PRODUÇÃO DE TEXTOS ........................... 52 4.2 PONTUAÇÃO: DE SINAL A RECURSO EXPRESSIVO DO ENUNCIADO 56 5 ABORDAGEM DA PONTUAÇÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS DO PNLD (2015-2017): ANÁLISE DIALÓGICA .............................................................. 66 5.1 ABORDAGEM DA PONTUAÇÃO ............................................................. 66 5.1.1 Como instrumento gramatical ............................................................. 69 5.1.2 Como estratégia de leitura .................................................................. 96 5.1.3 Como organizador paragráfico ..........................................................115 5.1.4 Como recurso expressivo do enunciado ..........................................123 5.2 APONTAMENTOS CRÍTICOS .................................................................142 6 PROTÓTIPO DIDÁTICO: PONTUAÇÃO COMO RECURSO EXPRESSIVO DO ENUNCIADO ...........................................................................................147 6.1 PROTÓTIPO DIDÁTICO: PONTUAÇÃO NA ESFERA ARTÍSTICO- LITERÁRIA ....................................................................................................147 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................170 REFERÊNCIAS .............................................................................................176 10 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Diversas são as inquietações que nos interpelam cotidianamente no processo de ensino-aprendizagem de língua materna. Aos poucos, algumas delas vão tomando mais importância a ponto de se tornarem objetos de pesquisa. Nesse sentido, a investigaçãoque aqui apresentamos emana desse processo do sujeito em permanente constituição: na relação com outros sujeitos, sejam alunos na rotina escolar, sejam pesquisadores nos encontros acadêmicos. Esta tese surgiu, pois, tanto em decorrência do nosso fazer diário na condição de professora de Língua Portuguesa em turmas do Ensino Médio (EM) e Ensino Superior (ES) quanto dos estudos realizados no interior do grupo de pesquisa “Práticas discursivas na contemporaneidade”1, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Apontamentos feitos pelos alunos nos levaram a problematizar o modo como são encaminhados, atualmente, conteúdos gramaticais em Livros Didáticos (LD). Para isso, levamos em consideração as discussões em torno do ensino de Língua Portuguesa (LP). Por um lado, parece-nos consensual entre professores de língua materna e estudiosos da linguagem – em especial aqueles que situam suas investigações no campo da Linguística Aplicada (LA), que toma como foco práticas de linguagem nos mais variados contextos (SIGNORINI, 1998) – o entendimento de que o estudo da língua em si mesma dissociada das situações específicas de uso não propicia a formação de sujeitos proficientes em leitura e escrita. Por outro, em uma visão fragmentada e distorcida da complexidade da disciplina LP, identificamos que se instaurou um discurso segundo o qual “não precisa mais ensinar gramática na escola”2, 1 Sob a coordenação da professora Maria da Penha Casado Alves, o Grupo de Pesquisa “Práticas discursivas na contemporaneidade” investiga práticas de linguagem em diferentes esferas discursivas. Nesse grupo, concentram-se vários projetos de pesquisa, dentre os quais o projeto em que nos incluímos: “As concepções de leitura e de escrita em livros didáticos da educação básica”. 2 A esse respeito, Khun e Flores (2008) lembram que o deslocamento das análises feitas no nível da fonema/palavra/frase para o texto proposto por pesquisadores acadêmicos e, depois, incorporado aos documentos parametrizadores de ensino desencadeou uma série de incertezas, o que levou, de um lado, “à confusão decorrente de críticas feitas à gramática tradicional pelo discurso da mudança, provocando a dúvida sobre qual prática linguística 11 revelando equívocos políticos e pedagógicos que envolvem o(s) conceito(s) de gramática e seu(s) desdobramento(s) no cenário escolar (POSSENTI, 1996). Diante desse quadro mais amplo, restringimo-nos a um conhecimento gramatical. A partir de nossa experiência docente, observamos que, ao fim da educação básica, muitos alunos ainda sentem considerável dificuldade em mobilizar, de maneira relativamente satisfatória, determinados conhecimentos ditos gramaticais para a efetiva compreensão leitora e produtora de textos. Dentre as dificuldades observadas, encontra-se a pontuação, seja na dimensão da leitura e da análise linguística, quando não percebem os efeitos de sentido produzidos conforme as escolhas utilizadas por um outro sujeito autor, seja na dimensão da escrita, quando não conseguem manter o equilíbrio entre pontuar em conformidade com suas intencionalidades e com o gênero discursivo eleito para a situação de interação. Objeto de análise entre pesquisadores nacionais e estrangeiros (CATACH, 1991; ROCHA, 1997; DAHLET, 1999, 2006; LEAL, GUIMARÃES, 2002), a pontuação consistiu e ainda consiste – em menor incidência atualmente – interesse de estudos em diferentes perspectivas. Em vistas da necessidade de delimitação desta tese, tomamos como referência pesquisas que já tematizaram a pontuação para/no ensino1. Com isso, poderemos notar as possíveis lacunas e, ao mesmo tempo, dar continuidade aos trabalhos seminais nessa vertente, ampliando a discussão e contribuindo para o fortalecimento desses estudos, uma vez que a produção de conhecimento resulta de uma construção coletiva, ou seja, de “um processo continuado de busca, no qual cada nova investigação se insere, complementando ou contestando contribuições anteriormente dadas ao estudo do tema” (ALVES- MAZZOTI, 2012, p. 43). Ademais, perscrutar esse caminho nos permite definir melhor o recorte imprescindível para a pesquisa. desenvolver na sala de aula; de outro lado, devido à não compreensão, por parte dos professores, do que significa ensinar a língua a partir do texto e/ou uso da língua” (BEZERRA; REINALDO, 2013, p 16). 1 Em maior volume, concentram-se pesquisas de levantamento histórico da pontuação. Esse tipo de estudo é fundamental para compreender o fenômeno em si. Também tem expressiva presença trabalhos que se dedicam às análises de corpus literário. Contudo, em face da necessidade de delimitação, orientamo-nos pelas pesquisas que já mapearam relações com abordagem/ensino da pontuação. 12 Nas plataformas digitais de teses e dissertações da CAPES1 bem como em revistas especializadas, verificamos pouco investimento teórico- reflexivo em relação à abordagem da pontuação para/no ensino. Seguindo a categorização da CAPES, circunscrevemos a busca à área de linguística, letras e artes e constatamos pouca produção acadêmica, com diversos enfoques teórico-metodológicos, voltada para esse aspecto da língua (SMITH, 1991; PASQUETTI, 1992; ROCHA, 1994; JUNKES, 1995; CHACON, 1996; ASSUMPÇÃO, 2001; GRANTHAM, 2002; MACEDO, 2004; CAMPANI, 2005; ESVAEL, 2005; BARBOSA, 2006; CÂMARA, 2006; SANTOS, 2008; FARIAS, 2009; CHIUCHI, 2012; PEREIRA, 2006; SILVA, 2015). Esse levantamento corrobora a evidente necessidade de se lançar novos olhares para a questão que, inevitavelmente, integra a disciplina Língua Portuguesa. Não obstante essa verificação, notamos que apenas uma pesquisa de doutorado realizou a análise com base na materialidade do Livro Didático de Português (LDP). Merece destaque, nesse contexto, a tese de Silva (2015), que se voltou para a pontuação com uma análise dedicada às atividades didáticas do LDP do Ensino Fundamental (EF). O pesquisador selecionou duas Coleções Didáticas2 (CD) e, ao examiná-las de um ponto de vista dialógico, concluiu que, embora tenham diferenças que as particularizam, apresentam semelhanças concernentes à distribuição heterogênea entre os volumes das coleções e ao desequilíbrio na articulação da pontuação com os eixos leitura e escrita. Os resultados referentes ao ensino fundamental nos deram ainda mais motivação para buscar compreender como essas questões seriam enquadradas em materiais produzidos e distribuídos para alunos do EM, etapa final da educação básica, em que, supostamente, pode se elevar o nível de complexidade dos conteúdos previstos. 1 Silva (2015), ao realizar buscas sobre teses e dissertações que tematizassem o conteúdo sinais de pontuação, sem correlacioná-lo a ensino, encontrou 37 produções acadêmicas. Seu recorte temporal refere-se ao período de 1996 a 2012. Como a ferramenta de busca disponibiliza os trabalhos defendidos desde 1987, constata-se, de imediato, um espaço de tempo considerável – quase 10 anos – sem investigações que focalizassem a pontuação. 2 Nos termos definidos pelo Edital de Convocação para o PNLD 2015, em seu item 4.1.2.1, “Entende-se por coleção o conjunto organizado em volumes, inscrita sob um único e mesmo título, ordenado em torno de uma proposta pedagógica única e de uma progressão didática articulada com o componente curricular do ensino médio” (p.1). 13 Precisamos ressaltar também que as reflexões de Mendonça (2005), ainda que sem o adensamento de uma dissertação ou tese, certamente, possibilitaram outros questionamentos acerca da pontuação no LDP. No artigo, a estudiosa estabelece a discussão centrada no referido tópico nas atividades de leitura. Ela observa que, embora a tendência ainda seja de uma abordagem formal dos sinais, alguns LDP (no caso analisado, destinados ao EF) se abrem para uma abordagem pragmática. Ao finalizar, destaca que os tópicos gramaticais continuam sendo trabalhadosseparadamente, o que, sob a ótica dos documentos oficiais, consiste em um desafio ainda a ser ultrapassado. Analogamente, no compilado de artigos em livro organizado por Puzzo (2014), são oferecidas ponderações acerca dos sinais de pontuação. Dentre os quais, destacamos o de Casado Alves (2014) no qual são problematizadas as orientações para a produção escrita. A pesquisadora analisa duas atividades de dois materiais didáticos destinados exclusivamente para a produção escrita e levanta questionamentos acerca da abordagem assumida pelos autores ao avaliar a sistematização das propostas. Delineia-se, neste caso, um caminho produtivo e possível para repensar a importância desses sinais na construção de sentidos. Tais constatações justificam nossa proposta investigativa, principalmente por dois motivos. Em primeiro lugar, porque esse conteúdo gramatical, muitas vezes ocupando espaço apenas no apêndice, ainda tem sido pouco explorado em estudos na área em uma perspectiva bakhtiniana. Em segundo, porque esse tipo de material didático, por ser um dos recursos mais utilizados nas escolas, desenvolve um importante papel no quadro mais amplo da cultura brasileira, das práticas de letramento e do campo de produção editorial e compreende, consequentemente, diferentes dimensões de nossa cultura de suas relações com a escrita e com o letramento (BATISTA, 2000, p. 543). O LD, esse objeto multifacetado e complexo, de acordo com Rojo e Batista (2003), ainda representa grande poder decisivo nas ações do professor em sala de aula e no suporte do aluno em sua rotina de estudo. Pela 14 importância que ocupa, sobre o LD precisam ser lançadas novas questões, precisam ser lançados diferentes olhares ainda que, na medida em que tecemos a crítica, também relativizemos alguns aspectos que são próprios de seu processo constitutivo: o peso do mercado editorial, a formação dos seus autores, a força da tradição, os dizeres da inovação, os critérios do edital público do governo federal, entre outros aspectos que, sem dúvidas, estão intricados. Sobre isso, Bunzen (2008, p. 4) assim avalia: Acreditamos não ser mais possível desconsiderar: (i) o processo de autoria e de (re)profissionalização e formação acadêmica e pedagógica dos agentes envolvidos na produção e distribuição (autores, editores, divulgadores, etc.); (ii) a relação dos conhecimentos escolares legitimados com as mudanças curriculares e programáticas provenientes dos diversos órgãos que legislam sobre a educação formal; (iii) os critérios estabelecidos através dos Programas Nacionais de Avaliação do Livro Didático para os diversos níveis de ensino; (iv) a construção discursiva de um projeto didático autoral que se revela pela construção cheia de intercalações e intertextual do texto didático, entre outros aspectos. Neste sentido, torna- se evidente a necessidade de traçarmos outros desenhos metodológicos para compreensão do LDP e da grande rede de disputas econômicas, sociais, políticas e epistemológicas que envolvem os processos de produção, circulação e consumo. Em face das múltiplas dimensões, insistimos na pertinência de analisar o enquadramento dado nas CD, uma vez que os sujeitos implicados – professores e alunos – são impactados pelo modo como os conteúdos são tratados, abordados, didatizados. Ou seja, “se o LD está na sala de aula e, nela, ocupa um lugar significativo, é fundamental que continue a ser descrito, debatido, avaliado, no esforço coletivo de ampliar sua qualidade” (MARCUSCHI, CAVALCANTE, 2008, p. 238). Nessa relação triádica professor – LD – aluno, faz-se importante sopesar a coerência da proposição do material que serve como mediação. Além disso, o LD constitui fonte de informação relevante, uma vez que, por meio dele, também se revela a história da educação (DELGADO, 2017). A evidente lacuna de estudos que contemplem o objeto em foco em com uma orientação dialógica nos levou a problematizá-lo. Para isso, 15 apresentamos, a seguir, as questões orientadoras, bem como os objetivos a elas relacionados, dando os devidos contornos à presente pesquisa. 1.1 DELIMITAÇÃO DA PESQUISA 1.1.1 Questões e Objetivos de Pesquisa Dentro de uma perspectiva crítica da Linguística Aplicada, campo de saber que se quer responsiva à vida social (MOITA LOPES, 2006; SIGNORINI, 1998), consideramos que, ao apontar problemas e/ou limitações com ensino/abordagem de determinados conteúdos em língua portuguesa como língua materna, podemos também, como interface de nossas reflexões, sugerir alternativas de abordagem para encaminhamentos em sala de aula. Destarte, a partir dos estudos bakhtinianos, tecemos críticas aos materiais aqui analisados e, com base nelas, propomos algumas ações didáticas que, embora não tenham a pretensão de ser a resposta única e válida para os diferentes contextos, possam servir como uma postura responsiva diante de um certo discurso circulante entre professores sobre (não) ensinar gramática. A fim de evitarmos o teoreticismo1 (BAKHTIN, 2010a), cujo conhecimento se fecha em si mesmo, sugerimos rotas alternativas ou, no dizer de Rojo (2006), praticamos a leveza de pensamento ou o pensamento não- indiferente ressalvando, no entanto, que são olhares, também passíveis de questionamentos e de críticas. Somamos vozes, portanto, ao que alguns pesquisadores têm defendido: é imprescindível investir na produção de material didático que, em geral, tem estado sob a tutela do mercado editorial pouco 1 Por teoreticismo entendemos, a partir de Para uma filosofia do ato (BAKHTIN, 2010a), a reflexão teórica que não responde ao mundo social e que se torna abstração na busca por uma objetivação dos processos vividos. Não afirmamos com isso que todo trabalho acadêmico deva resultar, necessariamente, em uma proposição didática. 16 afeito à experimentação. Criar linhas de pesquisa para possibilitar a elaboração de materiais mais compatíveis com o que se sabe hoje sobre a linguagem e seu funcionamento parece-me uma tarefa que a universidade não pode mais negligenciar, principalmente, se considerarmos a enorme carência que marca a educação básica no Brasil (NÓBREGA, 2008, p. 84). Dentro, pois, desses contornos da Linguística Aplicada em uma perspectiva crítica do fazer científico e da tomada de consciência ética do pesquisador, de acordo com o que adverte Rajagopalan (2003), esta pesquisa elege como seu objeto a problematização do ensino da pontuação a partir da: 1) abordagem desse conteúdo nos Livros Didáticos de Língua Portuguesa destinados à última etapa da Educação Básica, especificamente dos materiais aprovados no Programa Nacional para o Livro Didático (PNLD) 2015-2017; e 2) proposição de protótipo didático1 (ROJO, 2012) sugerido para o trabalho com a pontuação como recurso expressivo. Dessa problematização, decorrem as seguintes questões de pesquisa: ➢ como a pontuação tem sido abordada nos livros didáticos de Língua Portuguesa para o ensino médio aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (2015-2017)? ➢ que proposições didáticas podem ser realizadas a fim de propiciar o uso da pontuação como um dos recursos expressivos em enunciados? Tais questões se desdobram, por sua vez, em objetivos a serem atingidos com esta pesquisa, os quais estão arrolados a seguir: ➢ avaliar, em uma perspectiva dialógica, a abordagem da pontuação nos livros didáticos de Língua Portuguesa aprovados no PNLD (2015-2017), voltados para o ensino médio; 1 Na seção teórico-metodológica, desenvolveremos a definição da expressão e justificaremos o porquê dessa escolha. 17 ➢ propor, com base nas críticas realizadas, um protótipo didático que permita explorar os sinais de pontuação como recursos expressivos em enunciados. Este estudo defende, portanto, que a pontuação pode serconsiderada em sua expressividade constitutiva dos enunciados, ressignificando o trabalho com a gramática, nos/dos materiais didáticos, quando opera com a construção de sentidos nas práticas de leitura e de (re)escrita. Para responder a esses questionamentos e atingir esses objetivos, organizamos a tese em sete seções, sendo esta a primeira na qual expomos a problemática central do estudo, a delimitação da pesquisa, as perguntas e os objetivos que conduzem a investigação. Na segunda, trazemos os documentos oficiais para o ensino da Língua Portuguesa para contextualizar a discussão, situando o PNLD como um dos mais antigos programas para o livro na escola que, aos poucos, foi tomando outros formatos até atingir a configuração atual. Na terceira, tratamos do aporte teórico-metodológico utilizado para a construção desta pesquisa, indicando a abordagem metodológica adotada e o suporte teórico com base nas reflexões bakhtinianas sobre dialogismo, enunciado e estilo. Na quarta seção, posicionamos a análise linguística dentro de uma compreensão dialógica das atividades de leitura e de escrita, bem como abordamos a pontuação em uma perspectiva discursiva da linguagem, associando-a ao quadro teórico-metodológico anteriormente delineado. Na quinta, com base em uma perspectiva dialógica, apontamos as críticas feitas aos materiais didáticos aprovados pelo PNLD 2015 no que se refere ao modo como se entende a pontuação. Na sexta, apresentamos um protótipo didático (ROJO, 2012, 2013, 2017) elaborado a partir de uma orientação dialógica da linguagem, conforme detalhamento na seção mencionada. Na última, encerramos o trabalho com ponderações finais e possíveis encaminhamentos para a área. 18 2 LÍNGUA PORTUGUESA NO NÍVEL MÉDIO: DOCUMENTOS OFICIAIS Descreveremos, nesta seção, o contexto mais amplo que envolve a Língua Portuguesa1 como disciplina do ensino médio, recorrendo, dentro das limitações deste estudo, aos documentos oficiais em seu processo constitutivo. Primeiro, discorreremos sobre documentos basilares para o ensino no EM destacando aspectos relevantes para a nossa empreitada e, depois, trataremos do PNLD como uma das políticas para assegurar a presença do livro didático na escola. 2.1 DOCUMENTOS OFICIAIS NA CONSTITUIÇÃO DA DISCIPLINA LÍNGUA PORTUGUESA Diversas reformas curriculares, propostas e diretrizes, especialmente a partir da década de 70, têm colocado em (re)definição a Língua Portuguesa, dinâmica própria da constituição de uma disciplina (BRITTO, 2007; BUNZEN, 2006; SUASSUNA, 2004). As mudanças vão de ordem terminológica, revelando concepções de linguagem, à metodológica, indicando objeto de ensino e sua abordagem. Como decorrência, surgiram e surgem problematizações acadêmicas em torno dessas reformulações, pois sabemos que – em maior ou menor grau – são implicações diretas: a formação docente e discente, a transposição didática, a elaboração e a abordagem dos materiais didáticos. Quando se retoma o debate sobre o ensino de língua materna, entram em cena várias posições, enfatizando-se: ensino centrado tão somente 1 Rajagopalan (2013) critica a falta de uma política linguística bem articulada de língua materna no Brasil, visto que existem conflitos de interesses envolvidos e, em graus vários, esses interesses ressoam no ensino. 19 na gramática; ensino de redação1 sem qualquer parâmetro discursivo/social; e ensino que privilegia a historicização da literatura em detrimento do estudo do texto literário (BRITTO, 2007). Esses contrapontos decorrem de resquícios ainda da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 5.692/71, na qual havia uma orientação bipartida para o ensino de língua: “como instrumento de comunicação” e “como expressão da cultura brasileira”. Como sabemos, essa concepção conduziu a organização curricular fazendo com que os livros didáticos seguissem a mesma lógica, cristalizada nas três subdivisões redação, gramática e literatura2. Tal estruturação dificulta a interligação dessas partes complementares. Inclusive, durante muito tempo houve – e ainda há em algumas escolas – professor especialista para cada uma dessas “frentes”, tradição que reverbera, até hoje, em muitos LDP. Com a LDB 9.394/96, instaurou-se uma mudança de compreensão de Língua Portuguesa ao destacar a propriedade da linguagem tanto como meio de interação quanto como forma de acesso ao conhecimento e ao exercício da cidadania. Consubstanciada também pelo Parecer do Conselho Nacional da Educação/Câmara de Educação Básica nº 15/98 e pela Resolução CEB/CNE nº 03/98, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi organizada em torno de áreas de conhecimento. Situando-se em Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, a disciplina LP precisa se estruturar a partir das habilidades e competências previstas para essa área. Sem necessariamente determinar um programa conteudista, foram produzidos e distribuídos documentos de referência para o ensino, dentre os quais citamos: Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio e Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Apesar do hiato temporal entre esses documentos, encontramos em ambos orientações para o trabalho na sala de aula, ressaltando a importância do gênero como instrumento/meio para as atividades de leitura, escrita, reflexão linguística. Em comum, portanto, tem-se a funcionalidade dos gêneros e de seus usos na vida social. Por isso, quanto maior for o domínio que se 1 Tanto Geraldi (2004) quanto Bunzen (2006) discutem as concepções teóricas subjacentes aos termos composição, redação e produção de textos. 2 Rojo (2008) discorre sobre o retorno do trivium, mostrando que tal concepção toma como referência uma antiga divisão: Gramática, Retórica e Dialética ou Lógica. 20 tenha sobre eles, maior a facilidade em interagir sabendo utilizar-se, apropriadamente, dos recursos linguísticos, textuais e discursivos. Segundo os PCNEM (2000, p. 16), O processo de ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa deve basear-se em propostas interativas língua/linguagem, consideradas em um processo discursivo de construção do pensamento simbólico, constitutivo de cada aluno em particular e da sociedade em geral. Ou seja, o professor deve investir no trabalho com a língua(gem) que conduza à reflexão sobre normas instituídas, sejam de ordem gramatical, sejam de ordem sociopragmática, uma vez que, nas diversas práticas sociais, fazemos uso delas (OCEM, 2006). Por essa razão, nos comandos das atividades, especialmente para a produção escrita, as informações relativas à situação de comunicação são essenciais. A falta de explicitude sobre o gênero e sobre o leitor, por exemplo, interfere decisivamente no estilo (se predomina o funcional, se predomina o individual, por exemplo). Deixar de lado essas balizas afeta a expressividade do enunciado: Toda e qualquer análise gramatical, estilística, textual deve considerar a dimensão dialógica como ponto de partida. O contexto, os interlocutores, gêneros discursivos, recursos utilizados pelos interlocutores para o dito/escrito, os significados sociais, a função social, os valores e o ponto de vista determinam formas de dizer/escrever. As paixões escondidas nas palavras, as relações de autoridade, o dialogismo entre textos e o diálogo fazem o cenário no qual a língua assume papel principal (PCNEM LINGUAGENS, 2000, p. 21). Essas políticas educacionais nos permitem compreender a complexidade da disciplina e as tensões constitutivas. Nessa direção, Rojo e Moita Lopes (s/d), em publicação disponível no portal virtual do MEC, apontam algumas inconsistências teóricas, questionam a operacionalização das 21 sugestões dadas nos documentos e propõem reformulações dos referenciais para o EM. Avaliando as leis, os decretose demais documentos legais para o ensino, percebemos as relações dialógicas construídas: desde a LDB à proposição de uma BNCC1, o que gera, por seu turno, orientações curriculares em estreita relação com programas nacionais. Não por acaso, o livro didático traduz esse dialogismo, pois procura trazer para dentro da obra outras vozes, dialogando, num movimento crescente, com os documentos oficiais (PCN) e as próprias orientações das sucessivas avaliações (PNLD), deixando de ser somente o discurso monológico do autor (BARROS- MENDES; PADILHA, 2008, p. 122). Barros-Mendes e Padilha (2008), portanto, sobrelevam a teia na qual esse objeto se enreda. Nessa cadeia discursiva, o PNLD indica, em certa medida, balizas para a construção e/ou reformulação de livros didáticos. 2.2 PNLD: PRESENÇA E IMPACTOS DO LD NA ESCOLA O livro didático cumpre significativa função no cenário educacional pois, a depender das ações governamentais, pode servir tanto aos interesses de uma formação para a autonomia quanto para a submissão, consoante examinado em importante levantamento bibliográfico de Freitag, Rodrigues, Ferreira (1987). Afinal, dos livros didáticos emanam valores, que podem estar menos ou mais explícitos. Mesmo passando por diversas configurações2, a seleção do material – até 1985, realizada por uma comissão responsável que não era constituída necessariamente por especialistas em educação – assumiu 1 É importante frisar que sobre a nova BNCC pairam opiniões dissonantes. Por todo o país, pesquisadores estão promovendo discussões sobre as proposições e o modo de implantação. 2 Sob outras denominações e com outros formatos, é o mais antigo programa brasileiro voltado para a política do livro, datado de 1929. 22 um caráter claramente controlador de ideologias, desconsiderando, consequentemente, a liberdade de escolha do professor. Sabendo disso, urge atentarmos para a necessidade de termos uma maior preocupação com a memória1 do LD. Desconhecermos a historicidade2 dessas produções que adentram o cenário escolar pode nos levar a repetir equívocos teóricos e a reforçar fragilidades e imprecisões. Muitas vezes, alguns dizeres são levemente modificados, mas as mesmas lógicas estruturantes são mantidas. É fundamental, por conseguinte, compreender o LD em sua historicidade, fazendo as devidas críticas a fim de buscar modos de aperfeiçoar um instrumento que integra o contexto educacional brasileiro. Portanto, mapeamentos feitos na área de História e de História da Educação não devem ser concebidos apenas como um dado para ser registrado. Esses mapeamentos precisam servir, principalmente, para provocar transformações. Em 1985, com a edição do Decreto nº 91.542/85, foi instituído o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), trazendo diversas mudanças, a principal delas: a indicação dos LD a serem adotados realizada, a partir de então, pelos professores. Devido à extinção, em 1997, da Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), a responsabilidade da execução do programa foi transferida para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) – autarquia federal ligada ao MEC –, que ampliou as ações ligadas às políticas do livro na escola. Com os objetivos principais de adquirir e distribuir, gratuitamente, livros didáticos para alunos de escolas públicas brasileiras, o programa universalizou, gradativamente, o acesso aos LD para o ensino 1 Recentemente, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, um grupo de professores de diferentes departamentos iniciou a construção de um acervo dedicado a um memorial do livro didático. Com o objetivo de preservar a memória desse projeto nacional – PNLD –, o acervo se compõe de materiais físicos e digitalizados para que possam, posteriormente, também servir para pesquisas e ações extensionistas, conforme exposto por Soares e Souza (2011). O site, ainda em construção, disponibiliza algumas informações: <http://memorialpnld.esy.es/>. 2 Ao recuperar essa historicidade, conscientizamo-nos de determinadas ações políticas. A título de ilustração, no período do regime militar, as decisões de seleção e distribuição dos livros se pautavam em orientações políticas e econômicas que tomavam como ponto de partida linhas de interesse norte-americano, justificando-se em uma lógica de mercado/trabalho, em detrimento de uma formação mais humanista e politizada alinhada às diretrizes curriculares francesas da época (FREITAG, RODRIGUES, FERREIRA, 1987). Sendo a história realmente cíclica, podemos vislumbrar algumas aproximações, por exemplo, com a “nova” base curricular aprovada no governo Temer. https://www.fnde.gov.br/fndelegis/action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublico&sgl_tipo=DEC&num_ato=00091542&seq_ato=000&vlr_ano=1985&sgl_orgao=NI 23 fundamental, atingindo a abrangência integral para todos os anos escolares do EF em 2002. Somente com a Resolução CD FNDE nº. 38/2003, que instituiu o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM), foi iniciada, em 2005, a distribuição parcial dos livros de português e matemática para alunos da 1ª série do ensino médio das regiões Norte e Nordeste. Progressivamente, foram feitas as complementações necessárias e reposições dos LD além de expandir a cobertura para demais disciplinas, séries e regiões brasileiras. O PNLD, como uma das políticas oficiais, vem se aperfeiçoando e reexaminando os critérios de seleção para editoras. Tal avaliação, cada vez mais rigorosa, tem implicações diretas para a produção de material, o que gera uma maior competitividade editorial. Essa competitividade pode suscitar, por um lado, uma maior diversidade de propostas e uma reelaboração interna a fim de elevar a qualidade da Coleção Didática. Mas, por outro, também pode levar à criação de embustes discursivos para atender às solicitações impostas pelo MEC, cujas exigências, expressas nos editais, já podem ser reflexo do aprofundamento de pesquisas acadêmicas. Ainda que sejam perceptíveis essas implicações, avaliações periódicas dos LD e do próprio sistema de avaliação dos LD são essenciais, porque “as modificações no PNLD evidenciam um esforço de autoavaliação e uma busca permanente para responder, de modo mais adequado, à complexa realidade do livro didático nos contextos editorial e educacional brasileiros” (BATISTA, 2003, p. 37). Preliminarmente, todos devem atender, de maneira geral, sendo condição basilar, às seguintes exigências comuns a todas as áreas: 1. respeito à legislação, às diretrizes e às normas oficiais relativas ao ensino médio; 2. observância de princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano; 3. coerência e adequação da abordagem teórico-metodológica assumida pela obra no que diz respeito à proposta didático- pedagógica explicitada e aos objetivos visados; 4. respeito à perspectiva interdisciplinar na apresentação e abordagem dos conteúdos; https://www.fnde.gov.br/fndelegis/action/UrlPublicasAction.php?acao=abrirAtoPublico&sgl_tipo=RES&num_ato=00000038&seq_ato=000&vlr_ano=2003&sgl_orgao=FNDE/MED 24 5. correção e atualização de conceitos, informações e procedimentos; 6. observância das características e finalidades específicas do manual do professor e adequação da obra à linha pedagógica nela apresentada; 7. adequação da estrutura editorial e do projeto gráfico aos objetivos didático-pedagógicos da obra; 8. pertinência e adequação do conteúdo multimídia ao projeto pedagógico e ao texto impresso. (GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS: PNLD 2015, 2014, p. 82). Para cada critério, estão desdobradas as explicações que servem como guia para a comissão responsável. Na sequência, também estão os critérios relativos aos objetivos e ao programa curricular de Língua Portuguesa previstos, de acordo com as diretrizes nacionais, para a última etapa da Educação Básica. Em relaçãoàs orientações para os LDP, no Edital de Convocação 2013, são listados critérios específicos a serem atendidos. No conjunto de critérios referentes à reflexão sobre língua(gem), ressaltamos um que entra em sintonia com o que temos defendido: os LD precisam “tomar a enunciação e o discurso como objetos de reflexão sistemática, não restringindo o estudo da língua, portanto, à perspectiva gramatical” (p. 45). Se assim for, os fatores próprios da interação verbal – situada espacial e temporalmente – levam à escolha e combinação dos elementos gramaticais que materializam as diversas práticas de linguagem e suas necessidades comunicativas. No PNLD, um dos eixos que devem ser considerados se aproxima da noção de enunciado real, concreto, autoral, já que se recomenda que, no trabalho de análise linguística, o LD possa “privilegiar, em função de tomar o uso como objeto de reflexão, abordagens discursivo-enunciativas da língua, não se atendo, portanto, ao nível da frase” (p. 13). É imperativo salientar que, mesmo que o LD já não ocupe, com exclusividade, as ações na sala de aula, este instrumento ainda assume, para muitos professores, um caráter estruturador de suas aulas por proporcionar uma certa organização do tempo escolar e do conteúdo curricular. Reiteramos, diante disso, a imprescindibilidade da problematização acerca dos encaminhamentos didáticos das proposições, especialmente quando a própria 25 comissão responsável1 pela avaliação admite limitações nos livros em razão de embates de valores no interior da disciplina Língua Portuguesa. Ou seja, atuam dinamicamente forças centrípetas e centrífugas2, conforme descrito a seguir: Em muitos casos, parte das concepções e, principalmente, das práticas didáticas “tradicionais”, se manifesta nas exposições e/ou nas atividades propostas, num diálogo às vezes difícil com as inovações pretendidas. Nesse sentido, podemos dizer que a discussão e a assimilação, assim como o grau e a forma de adesão, a esses princípios, têm marcado, no âmbito do LDP do EM, a oposição entre o ensino que podemos chamar de “tradicional” e o “inovador”. O que nos permite entender melhor o que pode estar em jogo nas principais tensões que se observam nesse campo (GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS: PNLD 2015, 2014, p. 14). Todas as coleções didáticas são analisadas, avaliadas e catalogadas para conhecimento da comunidade escolar por meio do PNLD. A partir das resenhas elaboradas pela comissão, conforme os critérios previamente definidos, os professores devem realizar suas leituras críticas e ponderar sobre as escolhas tendo em vista uma série de outros fatores, como, por exemplo, a filosofia defendida pela escola, o projeto político pedagógico adotado, além de questões de ordem metodológica e afinidades teóricas. Com essa incursão, identificamos tensões dialógicas entre vários documentos abalizadores do ensino de Língua Portuguesa que perpassam os LDP. Ao analisarmos os LDP, precisamos, em determinados momentos, cotejar esses aspectos constitutivos. 1 A comissão que analisa os livros didáticos a serem adotados pelas escolas públicas brasileiras é composta por professores pesquisadores das universidades brasileiras. São especialistas na área e seguem como parâmetro os itens a serem avaliados de acordo com o que dispõe o edital do PNLD. 2 O que chamamos forças centrípetas diz respeito ao que uniformiza, padroniza, estabiliza e forças centrífugas diz respeito ao que desestabiliza, dinamiza, modifica. Retomaremos essas noções na seção 3.2 PERSPECTIVA DIALÓGICA DA LINGUAGEM. 26 3 HORIZONTE TEÓRICO-METODOLÓGICO Nesta seção, apresentaremos o percurso teórico-metodológico realizado para a construção desta tese. Para efeitos de organização do trabalho, na primeira subseção, descreveremos a pesquisa do ponto de vista metodológico, ponderando sobre implicações decorrentes da abordagem adotada e dos procedimentos seguidos. Na segunda subseção, delinearemos a pesquisa do ponto de vista teórico, discorrendo sobre a perspectiva dialógica da linguagem e demais conceitos centrais a ela vinculados. 3.1 PERCURSO METODOLÓGICO Ao situarmos metodologicamente esta pesquisa, levamos em consideração a ressalva de Veiga-Neto (2007) em relação aos desdobramentos da escolha por um paradigma: palavra polissêmica que tem servido, nos últimos anos, como um “escudo” com o qual muitos pesquisadores se protegem contra questionamentos e pedidos de esclarecimentos. Ele recomenda que, ao inscrevermos a investigação em um paradigma, devemos descrevê-lo para que seja evidente o modo de construção dos objetos de pesquisa, de estabelecimento da interação verbal entre os parceiros da investigação, de afetamento do pesquisador por meio da escrita. Essa circunscrição propicia, ainda, notar como os resultados são enquadrados e a que interesses o estudo serve dentro de um campo de conhecimento. Diante disso, registramos o lugar de onde enunciamos, uma vez que essa atitude metodológica já representa em si uma maneira de fazer pesquisa. Para o objeto em foco nesta tese, aportamos a investigação no paradigma interpretativista, que prioriza a descrição, a análise e a interpretação do corpus em detrimento da quantificação e da mensuração dos fenômenos (CHIZZOTTI, 1998; FREITAS, 2002, 2007). 27 Essa demarcação de posicionamento nos conduz a uma implicação fundamental: a singularidade do pesquisador em sua relação com os dados. Sendo um ser de linguagem que reflete sobre o que analisa, também refrata o que diz, uma vez que usa “palavras como lentes”1: na e pela linguagem lidamos com o outro, o objeto de pesquisa (ainda que este outro esteja materializado em documentos/materiais que servirão de análise). Como o trabalho de descoberta é também uma questão de enunciação, de mediação e de “assinatura”, o dizer toma importância por ser um instrumento de acesso para o saber científico, visto que as ações humanas são valoradas (OLIVEIRA, 2016). Dessa forma, os objetos são, de fato, construídos – e não totalmente dados –, possibilitando novas chaves de leitura ao problematizá-los, desfigurá- los, (re)lê-los e (re)escrevê-los (AMORIM, 2016; CORAZZA, 2012). Afastando-nos, portanto, do paradigma positivista, cuja busca por uma verdade objetiva se pretende neutra e livre de interferências do pesquisador, admitimos que a pesquisa ora apresentada se constrói, inevitavelmente, a partir de um lugar único e insubstituível e, por isso, já nos encontramos implicados no processo investigativo. Parafraseando Moita Lopes (2004), o que produzimos (des)vela o lado da fronteira em que nos situamos. Isso significa dizer que as verdades são múltiplas2, pois a produção de conhecimento, ainda mais assumidamente nessa vertente da Linguística Aplicada, faz-se de modo interessado, ou seja, atravessado por valores (RAJAGOPALAN, 2003; JOBIM E SOUZA, ALBUQUERQUE, 2012). Signorini (1998, p. 101), ao explanar implicações da área, assim nos lembra: A LA tem buscado cada vez mais a referência de uma língua real, ou seja, uma língua falada por falantes reais em suas práticas reais e específicas, numa tentativa justamente de seguir essas redes, de não arrancar o objeto da tessitura de suas raízes. Daí a especificidade do objeto de pesquisa em LA 1 Referência ao título do seguinte artigo: SOMMER, Luís Henrique. Tomando palavras como lentes. In: COSTA, Marisa Vorraber; BUJES, Maria Isabel Edelweiss (Orgs.). Caminhos investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. 2 Essa multiplicidade não ignora o rigor metodológico. Pelo contrário, revela as especificidades desse tipo de pesquisa: “A ilusão de transparência a que se renuncia não deve porém ser confundida com uma renúncia à teoria e a todo trabalho de objetivação e conceitualização” (AMORIM, 2007, p. 12). 28– o estudo de práticas específicas de uso da linguagem em contextos específicos –, objeto esse que a constitui como campo de estudo outro, distinto, não transparente e muito menos neutro. Em sintonia com a perspectiva teórica desta tese – a dialógica, de acordo com o que explanaremos a seguir – e com essa visão de LA, “Em uma concepção dialógica do discurso, não existe sentido original uma vez que tudo que é dito é dito a alguém e este, quando escuta e transmite, intervém na construção do sentido” (AMORIM, 2016, p. 36). Dentro desse paradigma interpretativista, optamos por uma abordagem qualitativa em perspectiva sócio-histórica ou histórico-cultural (FREITAS, 2010), pois, por ser o texto o dado primário na pesquisa em Ciências Humanas, temos acesso a esse objeto via enunciados, que são únicos e elaborados por sujeitos falantes e expressivos (BAKHTIN, 2003; FOUCAULT, 1999), marcados pelo tempo e espaço. Reconhecer essa particularidade nos leva a reforçar que, sendo “discurso sobre discurso, o trabalho do pensamento em Ciências Humanas é sempre convocado por uma dimensão interpretativa” (AMORIM, 2016, p. 21). Portanto, na contramão de uma investida classificatória e hierarquizante, temos interesse pelo acontecimento, pela singularidade, tal qual nos adverte Freitas (2010, p. 8): “Em uma perspectiva histórico-cultural, o intuito da pesquisa qualitativa é a compreensão dos sentidos que são construídos e compartilhados por indivíduos socialmente relacionados”. Trata- se de uma atividade situada que localiza o pesquisador no mundo, pressupondo a descrição detalhada para permitir a compreensão do fenômeno sob análise. Esse ponto de vista metodológico para o objeto das Ciências Humanas se coaduna com uma concepção de linguagem que leva em conta o sujeito e as implicações de considerá-lo em sua inteireza, em sua (in)completude, em sua relação com o outro, em sua responsividade. Com base nessas elocubrações, podemos dizer que o paradigma em que nos ancoramos converge com uma abordagem teórica que se orienta pela produção de sentidos, que entende linguagem como prática social, que lida, 29 como sua interface inescapável, com cultura, constituinte e constitutiva da sociedade (FABRÍCIO, 2006). 3.1.1 Procedimentos metodológicos Com a finalidade de problematizarmos a abordagem da pontuação, conforme exposto anteriormente, a primeira pergunta de pesquisa nos permite construir, com base em uma análise documental, um caminho crítico-reflexivo por meio do qual possamos alcançar algumas orientações teórico- metodológicas para sustentar a segunda pergunta de pesquisa, que assume um caráter propositivo (ROJO, 2012; FREITAS, 2010). Esta, por sua vez, pode nos encaminhar a alternativas metodológicas direcionadas ao trabalho da pontuação para a produção e compreensão de enunciados, uma vez que, não raras vezes, alunos concluintes do ensino médio ainda pontuam de forma inconsciente e/ou aleatória, o que, em muitos casos, compromete a organização sintático-semântica, a construção de sentidos, a entoação valorativa do seu dizer. Assim, tendo em vista os objetivos delimitados, buscamos, em um primeiro momento, discutir e avaliar a inserção da pontuação e das atividades sobre esse conteúdo nos livros didáticos para o ensino médio. Como fonte de empiria, esses livros didáticos foram selecionados a partir de dois critérios: 1) os que tivessem sido indicados pelo Programa Nacional do Livro Didático (doravante, PNLD) por serem os materiais didáticos aos quais alunos e professores mais têm acesso na rede pública do país; e 2) os que integrassem o Guia do PNLD mais recente (2015-2017), uma vez que, ao menos hipoteticamente, estes estariam mais sintonizados com os últimos dizeres acadêmicos/científicos/políticos sobre o ensino de língua materna. Em um segundo momento, com base nas críticas tecidas em relação à abordagem, sugerir alternativas didáticas, almejando nos aproximarmos mais adequadamente aos que os documentos oficiais recomendam para o ensino de LP. Elencamos o que, sob nossa ótica, ainda precisaria ser contemplado em uma abordagem discursiva desse conteúdo e elaboramos um protótipo didático 30 que pudesse dar abertura à expressividade do/no enunciado em conformidade com esses documentos oficiais parametrizadores: o desenvolvimento de atividades em que a pontuação fosse privilegiada no encaminhamento da leitura, da análise linguística e da produção de textos. Na perspectiva teórico-metodológica aqui explicitada, interessam- nos mais os sentidos construídos e a compreensão ativamente responsiva desvelada na relação com o objeto do que resultados que possam ser somente mensuráveis, quantificados. Nas palavras de Freitas (2010, p. 17), “O pesquisador tem possibilidades de aprender, se transformar e se ressignificar durante o processo de pesquisa”. Em virtude dessa postura teórico-metodológica, optamos por analisar os LDP destinados ao professor1 (também referenciado como Manual do Professor), pois nele constam as orientações, que tanto podem aparecer em cada unidade/atividade quanto ao final de cada volume, onde, em geral, são apresentados os fundamentos que embasam a construção da coleção. Para o processo analítico, procedemos à leitura das 10 coleções indicadas, perfazendo um total de 30 livros didáticos. Com vistas a uma melhor organização, ao citar cada livro, utilizamos uma referência alfanumérica2, cuja ordem tomou por base sequência já dada no Guia do PNLD. Em seguida, verificamos a presença do referido conteúdo em cada volume (se em todos os volumes ou não, se como parte de exposição, se apenas como parte de atividade). Assim, nem todos os livros foram analisados, uma vez que nem todos os volumes apresentavam o tópico em questão. Em função dessa particularidade, na análise, indicamos o volume da coleção didática que esteja em foco. Por fim, observamos aspectos convergentes entre as coleções. Com base nisso, organizamos as propostas das CD nos LDP a partir de 4 modos de abordagem identificadas, segundo nossa apreciação 1 De acordo com o expresso no Edital de Convocação 01/2013, que rege o PNLD 2015, o LDP destinado ao professor assim se caracteriza: “4.1.8. O manual do professor não poderá ser apenas cópia do livro do aluno com os exercícios resolvidos. É necessário que ofereça orientação teórico-metodológica e de articulação dos conteúdos do livro entre si e com outras áreas do conhecimento; ofereça, também, discussão sobre a proposta de avaliação da aprendizagem, leituras e informações adicionais ao livro do aluno, bibliografia, bem como sugestões de leituras que contribuam para a formação e atualização do professor.” (p. 2). 2 A referência alfanumérica de cada LDP consta na seção 5.1 ABORDAGEM DA PONTUAÇÃO. 31 crítica, a saber: I – pontuação como instrumento gramatical; II – pontuação como estratégia de leitura; III – pontuação como organizador paragráfico; e IV – pontuação como recurso expressivo do enunciado. Categorizamos1 a pontuação como instrumento gramatical quando os LDP a centraram em uma visão prescritiva e com o objetivo de estudar unicamente a gramática sem articular às dimensões de leitura e de escrita. Nesse sentido, foi recorrente a abordagem da pontuação como uma forma de classificar orações, por exemplo. A denominação de pontuação como estratégia de leitura refere-se à abordagem dos LDP que centralizaram a explicação do conteúdo exclusivamente aos aspectos de ativação de leitura, sem correlacioná-la à escrita, e/ou, ainda que propondo atividades de escrita, sem situar fatores que são constitutivos da interação verbal. Categorizamos a pontuação como organizador paragráfico quando, nos LDP, embora a dimensão discursiva não fosse efetivamente alcançada no tratamento do recurso gráfico, a abordagem apresentou um deslocamento do nível estritamentefrasal para o nível textual. Alguns materiais, opondo-se à lógica normalmente seguida no tratamento da pontuação, deram abertura para uma abordagem da pontuação como recurso expressivo do enunciado. Significa dizer que, sob nosso prisma, houve um melhor direcionamento em relação à pontuação na interface da constituição do gênero e, consequentemente, do objetivo comunicativo, além do interlocutor, do autor, do aspecto expressivo do enunciado. É fato que o LDP, a depender da mediação do professor, pode ser bem ou mal aproveitado. Contudo, devido ao recorte desta tese, não podemos tecer avaliações quanto à condução concreta do trabalho em sala de aula, uma vez que nos voltamos para os materiais2. Com base nas constatações evidenciadas analiticamente, arrolamos aspectos que, em nosso entendimento, devem ser levados em conta para a 1 Vale dizer que essas categorias não são estanques, uma vez que, em relação a outros aspectos tratados nos livros didáticos analisados, os autores/editores podem ter apresentado certa hibridização em seus modos de abordar diferentes dimensões da língua(gem). 2 Conforme já explanamos na introdução, com esse recorte, não ignoramos todas as dimensões que envolvem o livro didático: injunções do mercado editorial, políticas educacionais, processos de negociação de autoria entre autores e editores, apenas para citar algumas (BUNZEN, 2008). 32 elaboração do protótipo didático. Ou seja, são possibilidades de exercício reflexivo sobre um conteúdo considerado, para muitos pesquisadores, “menor”, “sem importância”, “dispensável” ou “sem relevância suficiente” para ser ensinado/investigado. Certamente, muitos desses posicionamentos derivam de uma visão que entende a pontuação desvinculada das práticas de leitura e de escrita. Para o exercício analítico, concebemos, a partir do quadro téorico- metodológico adotado, cada livro didático como enunciado1, categoria central nos escritos bakhtinianos, que materializa intenções de um sujeito autor, respondendo a já ditos, ou se antecipando a outros, ainda não proferidos, na cadeia discursiva. Nesse sentido, salientamos a correlação existente entre o contexto educacional/editorial contemporâneo em que está inserido, o conhecimento partilhado entre os autores dos LDs e o público-alvo previsto, a avaliação social. 3.1.2 Protótipos didáticos: definição e justificativa Conforme Rojo (2012), protótipos didáticos são propostas de ensino que, a partir de uma reflexão teórico-metodológica, podem ser sugeridas com mais flexibilidade que as Sequências Didáticas2 – SD – (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004), permitindo “modificações por parte daqueles que queiram utiliz[ar] em outros contextos que não o das propostas iniciais” (ROJO, 2012, p. 8). 1 A respeito do conceito de enunciado, serão arroladas suas peculiaridades constitutivas e implicações metodológicas na seção 3.2.1 Enunciado: unidade de análise. 2 Esse posicionamento não desconsidera a importância que as SD ocupam nos estudos da linguagem. Sabemos que as reflexões do Grupo de Genebra – cujos nomes mais difundidos são Dolz, Noverraz e Schneuwly – também serviram (e ainda servem) como referenciais na produção de documentos oficiais para educação brasileira no que concerne à didatização da língua materna e de determinadas práticas escolares (os PCN comprovam essa afirmação). Trata-se, pois, de uma distinção apenas de ordem metodológica para o ensino, já que, em definição, “uma ‘sequência didática’ é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 82 [grifo nosso]). 33 Compreendemos, assim, que a opção por protótipos permite mais dinamicidade, dando maior liberdade para o professor ao selecionar os gêneros discursivos para trabalhar em sala de aula. Isso significa admitir contingências próprias das interações, sobretudo numa situação de ensino-aprendizagem. Essa série de propostas corresponde a uma espécie de horizonte de expectativas, já que, concordando com Geraldi (2010), concebemos a aula como acontecimento: “lugar donde vertem as perguntas” (p. 97), o que significa “eleger o fluxo do movimento como inspiração, rejeitando a permanência do mesmo e a fixidez mórbida” (p. 100). Sem uma predeterminação fixa das ações, como nas conhecidas Sequências Didáticas, essa organização “vazada” seria, em nosso entendimento, mais permissiva à uma coautoria. Rojo (2013) discorre sobre diversos tipos de materiais didáticos: traça um panorama em que são apresentados desde as Sequências Didáticas aos objetos didáticos de aprendizagem. Aborda, então, os materiais interativos, chegando aos protótipos. Ela defende essa ideia porque, por meio de pdf navegável ou por meio de acervos de textos, as propostas indicadas poderiam ser ampliadas. Nessa empreitada, pondera também sobre a necessidade de um webcurrículo1. Levanta questões referentes a plataformas digitais, fóruns e demais tecnologias da informação. Destaca, ainda, a necessidade de um redirecionamento por parte das instituições de formação de professores em virtude de demandas próprias da contemporaneidade, em especial quando nos voltamos para os perfis dos alunos desse nosso tempo. É nesse contexto que Rojo (2017) – para evidenciar a hibridização e a pluralidade das práticas de linguagem – convoca conceitos como multiculturalidade, noção de local e universal, (des)colecionamento (GARCÍA- CANCLINI apud ROJO, 2017). Nesse sentido, os modos de leitura são ampliados devido aos múltiplos recursos que a web nos oferece, exigindo também de professores e alunos novos modos de lidar com diferentes plataformas e suportes. Apesar de fazer uma defesa pelos recursos on line, ela não descarta a possibilidade da construção de protótipos impressos que possam ser divulgados, depois, virtualmente com a finalidade de oferecer horizontes para professores. Tais protótipos podem servir como banco de 1 A esse respeito, Rojo (2017) tece mais considerações ao aprofundar a discussão sobre paradigmas de aprendizagem. 34 textos e indicar caminhos de organização em torno de um gênero ou de vários gêneros de uma mesma esfera, articulando, dentro dos limites, a questões culturais locais. As ações delineadas se organizaram a partir das críticas feitas aos materiais analisados. Com base nos apontamentos feitos na seção analítica, propusemos algumas oficinas1 que pudessem fugir de um ensino fossilizado de linguagem. Procuramos sair da zona de conforto que a gramática normativa, ao ser abordada em si mesma, oferece para abordar a pontuação e propusemos algumas alternativas que possam ampliar tal compreensão. Antunes (2014) destaca algumas possibilidades de ensino da gramática que esteja assentado na discursividade. Provoca, pois, que se deve: estimular, na exploração dos usos da língua (em textos orais e escritos, é claro!), o questionamento, a dúvida, a observação, a análise, a construção de hipóteses, a procura da constatação, a reflexão, enfim; podíamos ainda nos dispor a explorar uma ou outra afirmação conflitante sobre uma mesma questão de gramática. Nós, professores, em geral, não temos sido formados para essas possibilidades; também pouco dispomos a “desaprender” esses jeitos tortos de encarar os usos linguísticos, e a “aprender” outros mais abertos e críticos (p. 35). Para tanto, apoiamo-nos em Antunes (2005) a partir de suas considerações sobre o objeto de ensino em língua materna e, consequentemente, sobre o objeto de avaliação. Ela discorre sobre aspectos relativos à leitura e, mais especificamente, à escrita sugerindo um trabalho que transcenda os limites apenas linguísticos, visto que a escrita é também uma atividade2 de interação, uma atividade cooperativa, contextualizada, 1 Para o desenvolvimento dos protótipos didáticos,indicamos, como maneira de organização, a realização de oficinas, que, obviamente, devem ser flexíveis porque dependentes das especificidades de cada turma, professor, ritmo de aprendizagem, nível de dificuldade, etc. Nessas oficinas, consideramos importante momentos de trabalho coletivo com espaço para reflexão sobre as experiências. 2 Quando recorremos à ideia de escrita como “atividade” ou “trabalho”, reafirmamos o que disse Garcez (2004) acerca dos mitos que cercam o ato de escrever (capítulo 1), em que a autora discute verdades e mentiras, reconsidera crenças e propõe novas atitudes em relação à escrita. 35 necessariamente textual, tematicamente orientada, intencionalmente definida, atividade que envolve especificidades pragmáticas, que se manifesta por meio dos gêneros discursivos e retoma outros textos, além de manter relação de interdependência com a leitura. As etapas constitutivas da escrita – planejamento, escrita e reescrita(s) – colocam em evidência a necessidade do deslocamento de uma reflexão puramente gramatical para uma análise linguístico-discursiva que permita entender que o texto tem natureza dialógica e, por isso mesmo, pode ser submetido a inúmeras refacções com vistas a atender exigências do gênero, do próprio sujeito autor, do seu interlocutor, do tempo e espaço em que eventualmente poderá circular. Essa prática ainda tem sido realizada timidamente no contexto da sala de aula – muitos LDP utilizados não estabelecem uma relação mais explícita e sistematizada com a produção textual escrita –, mas precisa ser reforçada tanto no trabalho docente quanto nas pesquisas acadêmicas. A condução desse trabalho implica um modo de avaliar também abalizado na concepção bakhtiniana de linguagem, de leitura, de escrita. Reiteramos o pensamento de linguagem como atividade dialógica, como trabalho intersubjetivo e como acontecimento inacabado, em permanente devir. Tal concepção oferece subsídios para que o professor possa, talvez, evitar uma postura de caçador de erros e permitir abertura para a compreensão da palavra alheia. Com isso, defendemos o caminho de uma Linguística Aplicada que se quer crítica, responsável, responsiva às demandas sociais (MOITA LOPES, 2009; ROJO, 2006). Parafraseando Fabrício (2006), os caminhos das desaprendizagens podem se tornar também novos caminhos de aprendizagens. Trata-se, portanto, de uma resposta às críticas feitas aos materiais, assumindo que esta tese se coloca como propositiva (ROJO, 2012; FREITAS, 2010) em seu fazer investigativo. 3.2 PERSPECTIVA DIALÓGICA DA LINGUAGEM 36 Divergindo do que chamou objetivismo abstrato – estruturalismo que tem Saussure seu principal representante – e subjetivismo individualista – estilística fortemente marcada pelos ideais de Vossler –, correntes de pensamento dominantes no final do século XIX e início do século XX, o Círculo de Bakhtin1 fazia críticas ao monologismo que sustentava essas duas concepções vigentes à época. De um lado, o sistema era observado em sua estrutura como imutável, invariável apesar de sua natureza social. De outro, o ato de enunciar era visto apenas como expressão da consciência sem qualquer interferência externa, resultado do psiquismo individual. Sem o objetivo de “demolir a perspectiva dos estudos linguísticos e estilísticos longa e criteriosamente desenvolvidos por essas duas grandes tendências” (BRAIT, 2005, p. 95-96), o Círculo, como uma terceira via de entendimento, tomou o dialogismo como base para sustentar as reflexões sobre a língua(gem): nem a reduz a um sistema abstrato de formas linguísticas nem, por outro lado, à uma exclusiva expressão subjetiva e individual. Ou seja, para o Círculo bakhtiniano, a interação verbal constitui a sua realidade fundamental, encarando a linguagem em sua duplicidade constitutiva, sua característica social que se (des)estabiliza conforme as ações dos sujeitos. Sob essa perspectiva, a linguagem configura um sistema semiótico – forças centrípetas e centrífugas atuando simultaneamente – carregado de valores que serve como ponte entre sujeitos ativos, que estão posicionados temporal e espacialmente. Isto é, enquanto as forças centrípetas unificam e estabilizam o sistema da língua, colaborando para a sua manutenção aparentemente homogênea, principalmente em uma visão sincrônica, as forças centrífugas desestabilizam e descentralizam a língua, permitindo identificar o plurilinguismo existente na sociedade, especialmente em uma visão diacrônica. Tal dinâmica evidencia a atividade entre sujeitos, materializada por meio de enunciados, que são projetos de dizer únicos, concretos, irrepetíveis. Esses enunciados respondem a outros, já ditos, e se antecipam a outros, ainda não ditos, na cadeia discursiva da comunicação humana. De acordo com esse prisma, portanto, faz-se necessário recuperar o contexto social imediato e mais 1 Grupo composto por intelectuais russos que discutiam questões relativas à literatura, linguística e filosofia. Destacam-se, dentro dos estudos da linguagem, os nomes de Mikhail Bakhtin, Valentim Voloshinov e Pavel Medviédev, aos quais faremos referência sempre de acordo com a edição utilizada sem entrar na discussão da autoria dos textos disputados. 37 amplo em que são gestados os enunciados, visto que a avaliação social acaba por interferir nas escolhas do sujeito. Considerar esses fatores essencialmente marcadores da interação verbal corrobora a ideia de que a consciência do sujeito já decorre de um processo dialógico, de uma percepção já valorada, refratada socialmente. Afinal, o sujeito se constitui de/por palavras trocadas com o(s) outro(s) nas diversas práticas sociais nas quais se engaja: Ser significa ser para o outro e, através dele, para si. O homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2003, p. 341 [grifo do autor]). Ao aceitar tal prerrogativa, concordamos com a noção bakhtiniana segundo a qual a linguagem não deve ser, para o campo de estudos em que nos inserimos, concebida em suas formas abstratas desbastadas de vida. Compreendemos, pois, a linguagem como prática social situada, como ato vivo que materializa intenções, negociações, acordos e desacordos. O diálogo como metáfora, nessa visão da linguagem, deixa em evidência justamente que, para viver, lançamos palavras ao(s) outro(s) e, ao nos posicionarmos, passamos também a integrar o fluxo discursivo da comunicação humana. Tomando essa concepção dialógica como referência, significa compreender a linguagem como “uma realidade que congrega múltiplas e heterogêneas línguas sociais, entendidas como compósitos verbo- axiológicos, como interpretação de uma determinada interpretação do mundo” (FARACO, 2010, p. 49). A essa concepção de linguagem estão, portanto, intrinsecamente associados: o inacabamento do ser, a alteridade constitutiva e o eixo valorativo das relações. Sem polarizações, o sujeito é social de ponta a ponta (a origem do alimento e da lógica da consciência é externa à consciência) e singular de 38 ponta a ponta (os modos como cada consciência responde às suas condições objetivas são sempre singulares, porque cada um é um evento único no Ser) (FARACO, 2009, p. 86). Ao integrar essa complexa teia discursiva, o sujeito que se expressa via enunciado confirma essa natureza dialógica constitutiva da linguagem e revela a importância de compreender o enunciado e suas peculiaridades para os estudos de uma vertente da LA que considera sujeito, tempo, lugar e posicionamentos. No panorama traçado por Rojo (2006), o fazer investigativo de muitos linguistas aplicados passou por fundamentais deslocamentos quando percebeu a emergência de conceber o sujeito em sua complexidade, levando em
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