Buscar

AMorteCantada-SimAúo-2017

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 57 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 57 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 57 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ – CERES 
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES – DHC 
HISTÓRIA BACHARELADO 
 
 
 
 
 
 
WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO 
 
 
 
 
 
 
A MORTE CANTADA: INCELÊNCIAS PARA ANJOS NO MUNICÍPIO DE 
JUCURUTU (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX) 
 
 
 
 
 
 
CAICÓ, RN 
2017 
WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A MORTE CANTADA: INCELÊNCIAS PARA ANJOS NO MUNICÍPIO DE 
JUCURUTU (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX) 
 
Trabalho de conclusão de curso apresentado à 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte como 
requisito para obtenção do grau de bacharel em História. 
 
Orientador: Prof. Dr. Lourival Andrade Junior. 
 
 
 
 
 
 
 
 
CAICÓ, RN 
2017 
 
 
 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 
Sistema de Bibliotecas - SISBI 
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Profª. Maria Lúcia da Costa Bezerra - - CERES--Caicó 
 
 Simao, Wesley Henrique de Moura. 
 A morte cantada: incelências para anjos no município de 
Jucurutu (segunda metade do século XX) / Wesley Henrique de 
Moura Simao. - Caicó, RN: UFRN, 2017. 
 55f.: il. 
 
 Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Universidade 
Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ensino Superior do 
Seridó - Campus Caicó, RN. Departamento de História. Curso de 
História (Bacharelado). 
 Orientador: Dr. Lourival Andrade Junior. 
 
 
 1. Morte. 2. Anjinhos. 3. Incelências. I. Andrade Junior, 
Lourival. II. Título. 
 
RN/UF/BS-CAICÓ CDU 94:2-557(813.2) 
 
 
 
 
 
Elaborado por Fernando Cardoso da Silva - CRB-15/759 
 
 
WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO 
 
 
 
A MORTE CANTADA: INCELÊNCIAS PARA ANJOS NO MUNICÍPIO DE 
JUCURUTU (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX) 
 
Trabalho de conclusão de curso apresentado à 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte como 
requisito para obtenção do grau de bacharel em História. 
 
 
 
 
Prof. Dr. Lourival Andrade Júnior – Orientador 
UFRN – Caicó/RN 
 
 
Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo 
UFRN-Caicó/RN 
 
 
Prof. Dr. Evandro dos Santos 
UFRN- Caicó/RN 
 
 
CAICÓ,RN 
2017 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico este trabalho às fortes mulheres que aplacavam 
a dor da morte infantil cantando incelências. 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Ao Deus autor e consumador da minha fé; 
A minha mãe, por toda nossa história e todo amor, carinho e exemplo de dedicação aos estudos; 
Ao meu irmão Lindemberg, por aturar os meus estresses ao longo deste trabalho; 
Aos meus amados irmãos em Cristo, pelo zelo e orações; 
A Richiele, pela companhia e palavras de ânimo; 
A Tamisiane, pelo carinho, hospedagem e companheirismo; 
A Adriano, companheiro nas lutas acadêmicas; 
A Liudmila, pela descontração nas aulas e companhia durante a monografia; 
A Rafaela, Maciel e Poliana Valle, pela amizade; 
A Gabi, dona Dilma e Hudson, pela hospedagem e carinho; 
Ao professor Helder Macedo; 
Ao professor Joel Andrade; 
Ao professor Lourival Andrade Junior, que aceitou ser meu orientador, apesar das minhas 
dificuldades, esse trabalho não se tornaria possível sem seu apoio e puxões de orelha; 
Ao Departamento de História do CERES; 
Ao CERES, UFRN; 
A PROPESQ, FAEX; 
Às narradoras, por manterem na memória as incelências que motivam este trabalho. 
 
RESUMO 
 
O presente trabalho busca perceber as práticas ritualísticas em torno da 
morte a partir das incelências cantadas para “anjos” na zona rural de Jucurutu/RN na 
segunda metade do século XX. As incelências são cantos entoados em torno do 
morto a fim de conduzir a alma do defunto no caminho para o céu e consolar os que 
ficaram. No recorte espacial escolhido, encontra-se a variante dos cânticos de matriz 
popular que, nesse caso, especificamente, são entoados apenas em velórios de 
“anjos” (crianças), diferenciando-se da ocorrência desse mesmo fenômeno em 
outras partes do Brasil. Utiliza-se a fonte oral, coletada por meio de entrevistas com 
as senhoras que participavam diretamente dos velórios, além da recorrência à 
historiografia acadêmica ligada ao tema. Faz-se uma explanação sobre as ações 
humanas diante da morte, delimitam-se as idades da infância a serem trabalhadas e 
analisam-se as letras e sentidos por trás delas para que, assim, seja possível 
entender as representações em torno da morte infantil. 
 
Palavras chave: Morte. Anjinhos. Incelências. 
 
 
 
ABSTRACT 
 
The present work seeks to understand the ritualistic practices around death from the 
“incelências” sung to “angels” in the rural area of Jucurutu/RN in the second half of 
the twentieth century. “Incelências” are songs chanted around the dead in order to 
lead the soul of the deceased on the way to heaven and to console those who 
remained. In the chosen spatial cut is possible to see a variant of these chants of the 
popular matrix which, in this case specifically, are chanted only in funerals of “angels” 
(children), differing from the occurrence of this same phenomenon in other parts of 
Brazil. Is use the oral source, collected through interviews with the ladies who 
participated directly in the funerals, besides resorting to academic historiography 
related to the theme. Making an explanation about human actions before death, 
delimiting the ages of childhood to be work and analyzing the letters and senses 
behind them is possible to understand the representations about child‟s death. 
 
Key words: Death. Little angels. Incelências. 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 8 
CAPÍTULO 1 MORTE, MORRER E ENTERRAR. ........................................................................................ 10 
CAPÍTULO 2 OS ANJINHOS E A PERCEPÇÃO DA MORTE INFANTIL ........................................................ 24 
CAPÍTULO 3 A morte cantada ............................................................................................................... 36 
3.1 As narradoras .............................................................................................................................. 36 
3.2 O cenário ..................................................................................................................................... 38 
3.3 Mortalhas .................................................................................................................................... 40 
3.4 As incelências .............................................................................................................................. 44 
5 CONCLUSÃO ....................................................................................................................................... 52 
FONTES .............................................................................................................................................. 54 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................................... 55 
8 
 
 INTRODUÇÃO 
 
Esta pesquisa é fruto da inquietação diante dos rituais e cerimônias em torno 
da morte, de modo que tal interesse foi aflorado à medida que se ouvia falar de 
como as crianças mortas eram tratadas antigamente e sobre a possibilidade de 
existir um rito específico distinguindo a morte infantil da morte de adultos. Somando-
se a isso, a curiosidade no que diz respeito aos ritos de passagem, entre eles, os 
rituais fúnebres, fez parte do estímulo envolvido. 
A peculiaridade dessas cerimônias se explica pelas incelências, músicas 
cantadas em torno da criança morta, a qual era chamada de anjinho. Esses cânticos 
compunham parte do arcabouço das cerimônias fúnebres para anjos na zona rural 
do municípiode Jucurutu, Rio Grande do Norte, na segunda metade do século XX. 
Associado a elas estava um conjunto de práticas que expressavam o imaginário 
desse grupo social, tendo nos adornos confeccionados para o velório dos anjinhos a 
materialização de como a morte era entendida e representada. 
Desse modo, surgiu a preocupação de salvaguardar esse fragmento da 
cultura popular que aos poucos se perdia pelo fato de não haver mais sua prática. E 
bem mais do que realizar uma reprodução sonora destes cânticos, busca-se 
problematizar as letras e os significados que elas carregam. Entender a relação 
destas pessoas com a morte, a importância deste rito, dado o contexto no qual 
estava envolvido, e como se moldavam as relações de sociabilidade nos velórios 
destes anjinhos foram questionamentos elencados no início da pesquisa. 
Para propor repostas a essas interrogações foi utilizada a metodologia da 
História Oral aplicando-se o método de coleta de dados da seguinte forma: foi 
selecionada uma colônia de narradoras, elaborou-se um roteiro para as entrevistas, 
coletaram-se as fontes orais e realizou-se a transcrição. Com isso, é possível afirmar 
que o material obtido é riquíssimo no que se trata de cultura e sensibilidade de um 
povo, de modo que essas entrevistas têm muito a contribuir para os estudos sobre a 
morte. Além disso, pensou-se que seria prudente pesquisar nos registros de óbitos 
da cidade e, por isso, visitou-se o Segundo Cartório de Notas de Jucurutu e foram 
encontrados dados que acrescentariam na pesquisa, como as quantidades de 
óbitos, o que forneceu detalhes quanto às causas da morte, bem como as 
9 
 
nomenclaturas dadas a essas crianças. Assim, partiu-se para uma análise horizontal 
das fontes. 
No capítulo 1, faz-se um apanhado geral da História da morte no Ocidente 
partindo da fala de autores que estudam a morte em diferentes contextos, como na 
Pré-História, na Antiguidade e no Medievo. Com isso, percebe-se como se 
estabeleceram práticas que ainda são possíveis de notar presentes até os dias de 
hoje. Depois que se entende como as ações do homem articulam-se diante da morte 
pelos mais variados períodos históricos, observa-se o lugar das orações e da 
interseção pelos mortos e entende-se como o papel dessas orações é fundamental 
para a compreensão deste trabalho, uma vez que as incelências que permaneceram 
até o século XX no município de Jucurutu são preces em forma de canto. 
No segundo capítulo, discute-se acerca do que era ser criança e quais as 
características da infância no contexto explorado e, para isso, o acesso aos 
documentos que ditavam as idades das crianças e o conhecimento sobre em que 
esses últimos estavam embasados eram necessários. Assim, restringiu-se a 
entender qual o papel da criança morta no recorte espaço/temporal delimitado e 
como se fundamentou o discurso sobre a utilização do termo anjinho para, assim, 
fazer uma delimitação do que era entendido como morte infantil, dado o contexto 
estudado. Dado isso, o leitor está situado em quando começar a leitura do terceiro 
capítulo. 
No terceiro capítulo, aborda-se o rito em si, desde o quarto dedicado para o 
anjo, onde as pessoas se reuniam para esperar a criança morrer, passando pela 
preparação do ambiente e confecção dos adereços que recobririam o anjo, até 
chegar diretamente às incelências. Analisam-se as letras e os sentidos embutidos 
nelas e entende-se o lugar desses cânticos no momento da morte e na vida das 
pessoas. 
Este trabalho é inovador do ponto de vista acadêmico a partir do momento em 
que lança olhares para as incelências da zona rural de Jucurutu. Já se tem outros 
estudos sobre a História da morte no Seridó e pertencentes ao Departamento de 
História do CERES, mas nenhum voltado para as percepções de morte de crianças 
no município de Jucurutu. Dessa forma, esta particular contribuição é oferecida para 
os estudos sobre a morte, ampliando, assim, as ramificações da História. 
10 
 
CAPÍTULO 1 MORTE, MORRER E ENTERRAR. 
 
Neste primeiro capítulo fala-se das percepções sobre a morte a partir da 
fala de autores que a analisam, por exemplo, desde a Pré-História, a Antiguidade e a 
Idade Média até chegarem às noções que hoje permanecem, de certa forma, nas 
estruturas sociais conhecidas, mesmo que de forma discreta. Salienta-se que esta 
abordagem é referente à História das práticas em torno da morte no Ocidente 
Católico. Para tanto, a análise bibliográfica está mais presente neste capítulo do que 
nos demais. Sejam nos primitivos enterramentos Pré-Históricos ou nas pompas do 
morrer Medieval, foram encontrados pontos em comum e, diante disso, confluem a 
História e a Antropologia. Busca-se, aqui, entender como a morte é vista e sentida, 
como se desenvolve a noção de morrer ou bem morrer e as práticas de 
enterramento, voltando um olhar mais atento para as orações e preces em torno do 
morto, uma vez que este trabalho destina-se a estudar as incelências, orações 
cantadas em volta do morto. 
Para o antropólogo Edgar Morin, a preocupação com a morte é inerente 
aos seres humanos, e essa inquietação seria uma das características mais 
humanas, distinguindo, assim, o homem. 
 
É a característica mais humana, mais cultural, do anthropos. Mas se, 
nas suas atitudes e crenças perante a morte, o homem se distingue 
ainda mais nitidamente dos outros seres vivos, é aí mesmo que ele 
exprime o que a vida tem de mais fundamental (MORIN, 1970, p. 16). 
 
Morin busca estudar a morte ao enaltecer a preocupação que o homem 
destina ao seu fim e como isso o torna diferente dos outros seres vivos por atribuir 
um sentido à morte e, principalmente, ao que pode acontecer após isso. Para o 
antropólogo, os homens creem em certa continuidade, que é expressa nas 
cerimônias que se estabelecem diante da morte. 
Analisando o texto de Edgar Morin, vê-se o homem enquanto sujeito que 
se preocupa com a morte e com os seus mortos. O autor provoca uma regressão à 
Pré-História, onde já é possível identificar o cuidado com a morte nos mais 
longínquos antepassados. Os Neanderthais “não eram os brutos que se dizia. 
Deram sepultura aos seus mortos” (MORIN, 1970, p. 23). 
11 
 
Durante vários anos houve uma extrema valorização da sociedade pela 
técnica de fabricação de utensílios, de modo que o Homo Faber ganha maior 
visibilidade, fazendo com que a maior parte dos estudos fossem voltados para a 
produção de utensílios. Para o francês Morin, essa supervalorização da técnica 
causou um déficit na compreensão de outras áreas que são mais sensíveis, mas 
que, de igual modo, são fundamentais para a compreensão das relações sociais 
desses sujeitos. 
 
As primeiras indicações sobre a nova orientação do homem foram 
dadas pelos utensílios de sílex em bruto e por vestígios de lares. 
Contudo, em breve surgiram outras provas de humanização, em 
minha opinião muito mais impressionante: as sepulturas. Não só o 
Neanderthal enterra seus mortos, como também os reúne por vezes 
(MORIN, 1970, p. 23). 
 
Partindo de uma análise da relação do homem com a morte, Edgar Morin 
compara a valorização dada aos utensílios com a valorização que, segundo ele, 
deveria ser dada também aos ritos da morte. “Os mortos são a imagem dos vivos; 
tem armas, caçadas, desejos, cóleras” (MORIN, 1970, p. 24). Assim, a sepultura 
seria uma espécie de utensílio, mas com uma diferente aplicação: enquanto o 
utensílio, em forma de ferramentas ou de armas, seria uma extensão do corpo, a 
sepultura seria uma extensão da vida, tendo em vista a noção de continuidade que, 
segundo o autor, está condicionada a todos os homens. 
Nesse sentido, as sepulturas podem ser provas de humanização. Só é 
possível compreender a humanidade da morte ao compreender a especificidade do 
humano. Segundo o que atesta Morin ao classificar a sepultura como dado principal, 
fundamental e universal da morte humana, 
 
Os mortos musterianos são enterrados;amontoam-se pedras sobre 
seus despojos, cobrindo particularmente o rosto e a cabeça. Mais 
tarde, parece que o morto é acompanhado pelas suas armas, 
ossadas, alimentos. O esqueleto é besuntado com uma substância 
cor de sangue. As pedras funerárias estão lá para proteger o morto 
dos animais ou para impedir de reaparecer entre os vivos? O 
cadáver humano já suscita emoções que se socializam em práticas 
fúnebres e a conservação do cadáver implica um prolongamento da 
vida. O não abandono dos mortos implica na sua sobrevivência 
(MORIN, 1970, p. 24). 
 
12 
 
Pode-se, assim, tentar entender as relações com os mortos na Pré-
História ao observar certa familiaridade com estas atitudes que, hoje, são chamadas 
de fúnebres, quando se compreende o que diz Morin sobre esses rituais. Ele afirma 
que nenhum grupo humano, por mais primitivo que seja, abandona seus mortos e, 
se o faz, isso se dá através de rituais, como o exemplo utilizado pelo autor dos 
Koriaks do leste siberiano, que depositam seus mortos no mar, os quais, nesse caso 
específico, são confiados ao oceano, e não desprezados (MORIN, 1970, p. 25). 
Nessas temporalidades passadas, a morte é a primeira impressão, uma 
espécie de alongamento da vida, algo que se prolonga, seria uma imagem e não 
uma ideia; não existia um conceito consolidado, mas se falava sobre um sono ou 
uma viagem, por exemplo. “Até a era do progresso científico os homens admitiam 
uma continuação depois da morte” (ARIÈS, 2014, p. 125). 
Como já foi mencionado, Morin entende que os seres humanos têm um 
anseio pela continuidade da vida e, sendo assim, o funeral seria esse momento de 
aquisição da imortalidade unido a um conjunto de práticas mortuárias. Nesse 
contexto, a sepultura seria uma espécie de marco dessa tão almejada imortalidade, 
uma vez que, ali, o morto poderia ser visto e rememorado (MORIN, 1970, p. 26). 
Partindo de uma abordagem antropológica e entendendo um pouco como 
o homem pré-histórico se relacionava com a morte, nesse momento será observado 
como se dava essa relação, ora de amor e proximidade, ora de terror e 
distanciamento, em outros momentos da história. 
 Na Antiguidade, segundo Philippe Ariès, os mortos eram temidos e, por 
isso, deveriam ficar distantes das cidades, de forma que os cemitérios eram sempre 
construídos fora dos muros das cidades e/ou ao longo das estradas (ARIÈS, 2014, 
p. 32). Porém, a historiadora carioca Claudia Rodrigues contrapõe-se ao historiador 
francês quando afirma que, no mesmo período, o culto aos mortos era um costume 
familiar e doméstico, tornando, assim, a sepultura em um local de encontro para a 
realização do que a autora descreve como banquete funerário. Nesse contexto, as 
famílias reuniam-se em torno do túmulo para ofertar toda piedade ao morto que 
integrava o contexto da época, “oferecendo assim esses banquetes sobre as tumbas 
– cada família possuía seu túmulo – ocasiões nas quais a „parentela‟ se reunia para 
uma refeição funerária” (RODRIGUES, 2005, p. 41). 
13 
 
Aprofundando e estreitando os laços com a morte, chega-se à Idade 
Média, e é interessante retomar alguns pontos relativos à Antiguidade, quando 
necessário, para a explicação de determinados contextos. Nesse momento, 
constata-se o homem que, diante da morte, encontra maneiras de preparar sua 
passagem para o outro mundo. O que, segundo o historiador francês Philippe Ariès, 
seria uma relação muito íntima com a morte, a ponto de senti-la, orquestrá-la e 
domá-la. 
São encontrados variados exemplos medievais de como se devia esperar 
a morte, quais medidas tomar e quais posições adotar. Além disso, a aparelhagem 
em torno das cerimônias fúnebres ia especializando-se ao longo dos primeiros anos 
do período Medieval com a ampliação dos ritos e pompas fúnebres, fomentados pelo 
cristianismo principalmente no Ocidente. 
 
Eles não morriam de qualquer maneira: a morte era regulamentada 
por um ritual costumeiro descrito com benevolência. A morte comum, 
normal, não se apoderava traiçoeiramente da pessoa, mesmo 
quando era acidental em consequência de um ferimento, mesmo 
quando era causada por uma emoção demasiada, como muitas 
vezes acontecia. 
Sua característica essencial é que ela dava tempo para ser 
percebida (ARIÈS, 2014, p. 6). 
 
Os vínculos entre o morrente e sua companheira, a Morte, eram estreitos 
ao ponto de que “só o moribundo avaliava o tempo que lhe restava” (ARIÈS, 2014, 
p. 6). Logo, é por perceber essa relação íntima do homem diante da morte que o 
autor faz uso do termo „domada‟. Essa proximidade desencadeou um processo de 
romantização da morte, fortemente ligada à emotividade, fato que em períodos 
anteriores não era perceptível e que perdurou até o período do barroco (ARIÈS, 
2014, p. 6). 
A morte era sentida e anunciada por meio de presságios muitas vezes 
visíveis, como no exemplo citado por Ariès, em que “tristão sente que sua vida se 
perdia, compreendeu que ia morrer” (ARIÈS, 2014, p. 7). A cena utilizada aqui 
remete à forte emotividade viril que foi mencionada anteriormente, pois perceber que 
a morte que se aproximava era, acima de tudo, um sinal de nobreza, mesmo que no 
decorrer dos anos esse pensamento tenha se invertido (ARIÈS, 2014, p. 7). 
14 
 
Segundo a mentalidade medieval, os mortos sempre rodeavam os vivos, 
entretanto, essa presença mística só era perceptível ao que estava prestes a morrer, 
como afirma Ariès: “Alguns pressentimentos tinham caráter prodigioso: um deles, 
especialmente, não enganava: aparição de uma alma do outro mundo, mesmo que 
apenas em sonho” (ARIÈS, 2014, p. 7). Ademais, esse acontecimento poderia se 
dar com bastante antecedência. Associado a isso, estavam o surgimento e o 
fortalecimento dos tabus em torno da morte e do além e a idealização de presságios 
horripilantes que compunham o ritual de morte, como, por exemplo, o aparecimento 
das aves que dão azar, os móveis que estalam, os números maléficos, entre outros. 
E é interessante notar que esse costume perdurou e é comum até hoje, ainda que 
acontecendo ou sendo comentado de maneira muito discreta (MORIN, 1970, p. 30). 
Sendo a morte sentida, essa era vivenciada veementemente pelo 
morrente, além de acompanhada de sinais e longos preparos. Entre esses métodos, 
o moribundo organizava o calendário para sua morte, desde ordenar 
antecipadamente as missas a planejar todo o serviço fúnebre, como afirma Ariès, ao 
falar da morte da Madame Rhert, que “mandou preparar as pompas fúnebres, 
revestir o lar de negro e antecipadamente dizem-se missas pelo repouso da sua 
alma (...) tudo isso antes de sentir qualquer mal” (ARIÈS, 2014, p. 10). 
Em contrapartida a esse pensamento, no século XVIII, a Mors repentina 
não era vista com bons olhos, era considerada “feia e desagradável” (ARIÈS, 2014, 
p. 12). A morte nobre, ao contrário, deveria ser anunciada, e essa declaração 
compunha os padrões classificadores da nobreza, uma vez que “a mors repentina 
era considerada infame e vergonhosa” (ARIÈS, 2014, p. 12). 
 
Quando não podia ser prevenida, deixava de aparecer como 
necessidade temível, mas era esperada e aceita de boa vontade ou 
má vontade. Ela rompia então a ordem do mundo, na qual todos 
acreditavam, como um instrumento absurdo do acaso, por vezes 
disfarçado da cólera de Deus (ARIÈS, 2014, p. 12). 
 
Por haver, na época, certa familiaridade com a morte, como explica 
Philipe Ariès, essa seria a razão pela qual a morte súbita era entendida como uma 
morte “desonrosa, que aterrorizava, parecia estranha e monstruosa, e dela não se 
ousava falar” (ARIÈS, 2014, p. 13). Se fosse assim, não dava tempo de o indivíduo 
presidir as cerimônias que encerrariam sua vida terrena. Cerimônias essas que, 
além de status e prestígio social, davam ao morto fácil acesso ao divino. 
15 
 
Com essa familiaridade com a morte, os ritos fúnebres tornavam-se 
intrínsecos à realidade medieval. Para o moribundo desse período, ao pressentir amorte era necessária a realização de certo protocolo: entender e aceitar a 
proximidade da morte eram essenciais para que esse momento fluísse bem e sem 
maiores complicações post mortem. Após assimilar que o seu fim terreno estava 
próximo, o moribundo tomava certas atitudes que compunham o ritual, e essas 
ações detinham um caráter cerimonial (ARIÈS, 2014, p. 23). 
Existia, diga-se, certo domínio sobre a morte, e, por isso, a ideia de domar 
sugerida por Phillipe Ariés. Ao perceber seu fim o moribundo, 
 
deitou-se com o rosto para o céu, voltado para o oriente, as mãos 
cruzadas sobre o peito, que tinham caráter cerimonial, ritual. Era 
preciso ainda uma profissão de fé, a confissão dos pecados, o 
perdão dos sobreviventes, as disposições piedosas que lhe diziam 
respeito, a recomendação da sua alma a Deus, a escolha da 
sepultura (ARIÈS, 2014, p. 23). 
 
 Após esse momento, restava ao agonizante esperar a morte e, durante 
essa espera, não deveria dizer coisa alguma, esperaria o grande momento em 
silêncio e jamais pronunciaria outra palavra. Sobre esse silêncio pela espera do 
último suspiro acreditava-se que poderia ser controlado pela vontade humana, 
prolongando um pouco mais o tempo de vida ou partindo de vez para o além 
(ARIÈS, 2014, p. 23). Enquanto agoniza em silêncio, os familiares que assistiam à 
morte deveriam interceder pela alma do que estava prestes a partir, e a invocação 
de todos os santos e anjos católicos era fundamental. Afinal, era necessário que a 
alma fosse conduzida ao céu, e nada melhor que a boa companhia dos santos. 
Ainda no século XVIII, entre as características da morte estavam a 
simplicidade familiar e o morto acompanhado de seus familiares, dos quais se 
despedia. Outro fator era a publicidade (no sentido de tornar pública a morte), em 
que o moribundo deveria atrair todas as atenções. Segundo Philippe Ariès, essa 
última característica permanece até os fins do século XIX, uma vez que morrer 
sozinho era uma das piores coisas que se poderia acontecer. Nesse contexto, o 
moribundo deveria ser o centro das atenções. As preparações começavam cedo, e 
quando o indivíduo sentia que ia morrer tratava de pedir perdão aos que estavam a 
sua volta, como no caso da Madame de Montesan descrito por Ariès, que pediu 
16 
 
perdão até ao mais simples dos empregados que lhe fazia quarto durante toda a 
noite, pois cabia ao moribundo presidir a cerimônia de morte (ARIÈS, 2014, p. 23). 
Entretanto, com o advento dos médicos higienistas no fim do século XVIII, 
começam a surgir os alertas contra as grandes multidões que assistiam aos últimos 
momentos dos moribundos, mas esse discurso demora a tomar forma, pois, ainda 
no início do XX, qualquer pessoa poderia acompanhar o viatico até o quarto do 
agonizante. Morrer era algo público e admirável. Além da ideia de interseção, a fé 
católica orienta os fiéis a prestarem assistência uns aos outros e, nesse sentido, 
estar presente na morte do outro também era encarado como sinal de unidade. 
Assim, os que acompanhavam os últimos momentos do moribundo, além de estarem 
unidos fisicamente, também estariam unidos espiritualmente em orações. 
Mas como era vista a morte? No início da Idade Média, a morte era 
entendida como repouso ou descanso: “o repouso é ao mesmo tempo a imagem 
mais antiga, mais popular e mais constante do além” (ARIÈS, 2014, p. 23). E esse 
repouso aconteceria em um jardim florido como uma réplica do paraíso, ao contrário 
do tormento que acontecia, simultaneamente, no inferno, e a Idade Média trata disso 
com maestria por intermédio da arte e ensina ao povo o destino da alma após a 
morte. O céu seria o lugar para onde iriam os justos e era descrito como um “lugar 
de refrigério, satisfação e alegria” (ARIÈS, 2014, p. 32). 
 
A atitude antiga que vê a morte ao mesmo tempo próxima, familiar e 
diminuída, insensibilizada, opõe-se demais à nossa, onde nos causa 
tanto medo que ousamos dizer-lhe o nome. 
E por essa razão que, ao chamarmos essa morte familiar e morte 
domada, não queremos dizer com isso que antes ela tenha sido 
selvagem e, em seguida domesticada. Queremos dizer, pelo 
contrário, que ela se tornou hoje selvagem, enquanto anteriormente 
não era. A morte mais antiga era domada (ARIÈS, 2014. p.32). 
 
Essa atitude de familiarização com a morte e o morto não nasceu de uma 
hora para outra e, portanto, como todo processo histórico, leva tempo para se 
concretizar. Tem início com a penetração dos cemitérios nas cidades ou vilas, 
momento de transição do pensamento ligado à Antiguidade, que afastava os mortos 
das cidades, para Medievo, período em que os mortos eram muito estimados e a 
morte, muito planejada. 
Para a historiadora Claudia Rodrigues, o combate da Igreja às práticas 
antigas greco-romanas colocou os mortos sob seu domínio “direto e simbólico” 
17 
 
(RODRIGUES, 2005, p. 43), conseguindo, gradativamente, o monopólio das 
sepulturas e sepultamentos, introduzindo-os nas cidades, depois nas basílicas e, 
posteriormente, nas igrejas. Tal instituição ainda introduzia de forma progressiva a 
prática dos sepultamentos ad sanctos, apud eclesiam como expressão da nova e 
crescente fé na ressurreição (RODRIGUES, 2005, p. 43). 
O cristianismo é, segundo Edgar Morin, “o ódio da morte” (MORIN, 1970, 
p. 194), e tem nessa última um ponto fixo de onde emergem variadas doutrinas, 
girando em torno da morte do “Cristo, [aquele que] só existe para e pela morte, trás 
consigo a morte e vive da morte” (MORIN, 1970, p. 194). Nesse sentido, Jesus 
aparece como a “salvação do homem à encarnação e a redenção do Cristo” 
(MORIN, 1970, p. 194) e a Igreja propaga esse ensinamento autodenominando-se 
caminho para essa salvação. A partir disso, então, existe a necessidade de 
privatização de tudo que fosse relacionado às formas de tratamento nos momentos 
antes, durante e depois da morte (MORIN, 1970, p. 194). 
Além do medo do momento da morte, o que mais aterrorizava os fiéis dos 
séculos XVII e XVIII era o que poderia acontecer-lhes depois desse momento, e 
para onde iam suas almas era um questionamento pertinente, haja vista que a Igreja 
católica era, obviamente, a grande propagadora dos discursos post mortem. É 
possível notar, por exemplo, nos testamentos, que, para a época, ela era 
fundamental como meio facilitador da salvação: “Temendo-me da morte e não 
sabendo o que Deus será servido dar-me faço esse testamento” (RODRIGUES, 
2005, p. 40). 
A Igreja passa a exercer controle sobre as atitudes dos fiéis diante da 
morte e um dos fatores relevantes para isso foi a elaboração da liturgia dos mortos 
durante a Idade Média, a partir do qual o clero se torna o principal interlocutor entre 
os vivos e os mortos (RODRIGUES, 2005, p. 40). 
A Igreja católica começa a intervir nessa relação apetitosa entre os vivos 
e os mortos a partir do século IV, condenando eclesiasticamente os banquetes 
fúnebres, alegando constituírem práticas pagãs. Isso acontece a partir do Edito de 
Milão, quando o imperador Constantino começa a promover a oficialização do 
cristianismo (RODRIGUES, 2005, p. 42). 
 
18 
 
A partir do final do século IV, surgiram as primeiras condenações de 
eclesiásticos ao banquete como forma de culto aos mortos e aos 
santos, por serem vistos como expressão de „mentalidade pagã‟, 
devido ao ato de se comer e beber e de se cantar e dançar junto as 
sepulturas dos santos mártires, encaradas como local sagrado. 
Apesar destas proibições, os banquetes funerários permaneciam 
como elemento essencial do culto aos mortos entre os leigos. 
(RODRIGUES, 2005. P. 42). 
 
Nesse processo, “a sepultura eclesiástica seria considerada como uma 
das condições básicas para a obtenção da salvação da alma, como um pilar do 
dogma da ressurreição” (RODRIGUES, 2005, p. 43). Existia, porém, o medo de 
morrer sem ser sepultado e não ser salvo, uma vez que, pela crença em vigor, a 
sepultura era fator condicionante para a ressurreiçãodo corpo. Para que o corpo 
ressuscitasse glorioso na volta de Cristo, seria necessário que ele estivesse inteiro, 
sendo esse o principal motivo do surgimento dos enterramentos ad sanctos, pois 
asseguravam, além de proteção espiritual, a integridade física do corpo 
(RODRIGUES, 2005, p. 43). 
Mas, para combater as práticas pagãs nos banquetes funerários, a Igreja 
providenciou uma estrutura de trocas, recebendo os banquetes como forma de 
doações em troca de preces pela alma dos mortos. Numa espécie de intercâmbio, 
os vivos realizavam boas ações, e alimentar os pobres era equivalente a sanar a 
necessidade de preces aos mortos (RODRIGUES, 2005, p. 44). 
 
Paralelamente ao incentivo da prática de dar esmolas aos pobres no 
dia do sepultamento, a igreja substituiu a refeição funerária pela 
refeição eucarística, o que cada vez mais implicaria a presença do 
clero como realizador das cerimônias, no sentido de normatizar a 
liturgia fúnebre (RODRIGUES, 2005, p. 44). 
 
Nos séculos XI e XII, segundo Claudia Rodrigues, ocorreu uma 
acentuação da clericalização do culto aos mortos, e o clero assegurou a 
exclusividade na celebração dos ritos fúnebres, de modo que essa “se tornaria uma 
das tarefas principais de todo o clero” (RODRIGUES, 2005, p. 44). Aconteceu, 
assim, no século XII, a institucionalização do culto aos mortos no dia 2 de novembro. 
Isso se deu, em grande parte, nas comunidades monásticas, que, durante esse 
período, especializaram-se e monopolizaram o culto e a comemoração dos mortos. 
Nessa perspectiva, a missa passa a ser entendida como o principal sufrágio, o que 
19 
 
expressa de forma clara o posicionamento da Igreja sobre a mediação entre vivos e 
mortos promovida pelo clero, pois o intuito, nesse momento, era o de impedir a 
realização de ritos ou cerimônias domésticas tidas como supersticiosas. 
No século XIII, o cuidado dos mortos seria estendido a todos os padres, e 
não apenas as comunidades monacais. A partir desse momento, os leigos começam 
a orar pelos mortos. Se nos séculos anteriores estava bem delimitada a função dos 
leigos de doar alimentos e dos monges, de orar pelos seus mortos, nesse momento 
esse pensamento começa a ser diluído e os leigos começam a orar pelos defuntos, 
respaldados nas confrarias que surgiam com o intuito de ofertar uma boa morte aos 
seus confrades. A boa morte era entendida, nesse contexto, como todo o conjunto 
de práticas voltadas para o bem estar espiritual do morto (RODRIGUES, 2005, p. 
44). 
Nessa perspectiva, surge o terceiro lugar: a partir da elaboração da 
doutrina do purgatório e da liturgia dos mortos, as orações pelas almas tendem a 
ampliar-se. O purgatório, nesse sentido, seria compreendido como um além 
intermediário, no qual os mortos passariam por uma provação temporária que 
poderia ser abreviada pelos sufrágios dos vivos, aumentando, assim, as chances de 
salvação da alma e intensificando fortemente as relações de trocas entre vivos e 
mortos, uma vez que, a partir de agora, os vivos poderiam amenizar os castigos 
temporários do purgatório, expurgando com preces os pecados veniais, ou seja, 
aqueles que, segundo a Igreja, são perdoáveis. O morto passaria, então, por uma 
espécie de purificação passiva (RODRIGUES, 2005, p. 48). 
 
Este além intermediário estaria estreitamente ligado à concepção de 
um tipo de pecado intermediário, ligeiro, quotidiano, que passou a ser 
identificado como „pecado venial‟, ou seja, perdoável. Assim, o 
Purgatório surgiria essencialmente como lugar de purgação dos 
pecados veniais. 
Esta concepção de purificação depois da morte far-se-ia acompanhar 
do investimento que a Igreja fez, a partir das séculos XII e XIII, em 
torno da confissão auricular como elemento primordial do processo 
penitencial (RODRIGUES, 2005, p. 46). 
 
O purgatório aparece como acentuador dos medos referentes aos últimos 
instantes, e entra em cena o que ficou conhecido como pedagogia do medo. Os 
padres intensificaram, nesse momento, os sermões que falavam sobre a morte e, 
principalmente, sobre o purgatório, servindo, assim, como meio de a Igreja controlar 
as atitudes dos fiéis diante da morte, o que levava os vivos a refletirem sobre a sua 
20 
 
própria morte. Essa pedagogia do medo foi impulsionada pela chamada escatologia 
individual, que instruía que, após a morte, haveria um julgamento individual, 
indicando imediatamente o destino da alma para o céu, para o purgatório ou, na pior 
das hipóteses, para o inferno. 
Para Jacques Le Goff, o sistema do purgatório teve duas consequências: 
a primeira foi dar uma renovada importância ao período que compreendia a morte; a 
segunda implicou numa definição e estreitamento dos laços entre vivos e mortos, no 
caso, os sufrágios (LE GOFF, 1993, p. 346-347). 
 
A quem aparecem as almas do Purgatório? Para pedir socorro? 
Primeiro, a família carnal, ascendentes ou descendentes. Depois ao 
cônjuge – e especialmente nos séculos XIII é importante o papel das 
viúvas dos mortos do Purgatório (LE GOFF, 1993, p. 347). 
 
Sendo o período entre os séculos XII e XIII fundamentais para o 
fortalecimento da doutrina do purgatório, essa ideia ganha raízes mais profundas a 
partir dos séculos XV e XVIII, aprofundando-se nas crenças da sociedade cristã 
católica e assinalando um reforço à doutrina, posteriormente, no Concílio de Trento 
e com as ações contra a reforma protestante (RODRIGUES, 2005, p. 50). 
No empreendimento da pedagogia do medo, o direcionamento para as 
penas do purgatório e o fogo feroz do inferno tinham lugares especiais e foram 
pontos fortes que, séculos depois, ainda ocupariam lugar fundamental no imaginário 
do homem sobre a morte. 
 
Não foi por acaso que nos séculos XIV e XV surgiram, segundo 
Michel Volvelle, como o período de ouro das representações em 
torno da imagem do inferno, justamente no momento em que os 
temas medievais, dominados pela imagem da punição coletiva – em 
torno do juízo final –, cederam lugar ao julgamento particular, que se 
fez acompanhar, com força, do medo da punição e do castigo. Nesta 
pedagogia do medo, os pregadores mendicantes tiveram lugar 
essencial e cada vez mais importante nos séculos seguintes 
(RODRIGUES, 2005, p. 50). 
 
Os mendicantes seriam aqueles que zelavam pelo moribundo, redigindo o 
testamento, bem como registrando suas últimas vontades. Seriam eles os principais 
propagadores da crença no purgatório. Associados à pedagogia do medo, 
multiplicavam-se tratados de pregação, que eram escritos e divulgados pelos 
mendicantes e que incentivavam os fiéis a não se surpreenderem pela morte, mas, 
21 
 
sim, prepararem-se para esse momento. Utilizavam estratégias para essa 
preparação para a morte e recomendavam a administração dos sacramentos a fim 
de livrar o moribundo das chamas infernais (RODRIGUES, 2005, p. 51). 
No processo de clericalização da morte, foram estabelecidos pela Igreja 
recursos para garantir a salvação da alma no momento do juízo, ou seja, a “boa 
morte” (RODRIGUES, 2005, p. 51). Essa se dava por intermédio de ritos 
tranquilizadores que apelavam para a proteção dos santos, diminuindo, assim, os 
impactos causados pela pastoral do medo. 
Nesse processo de tranquilizar os fieis, exercia importante função, 
dentre outros fatores o culto dos santos, que eram vistos como 
intercessores especiais diante da morte. Com efeito, um dos traços 
mais fortes da religião nessa época foi a proliferação das formas de 
devoção à Virgem Maria e a toda uma rede de santos funcionando 
como intermediários diante de Deus, por ocasião do julgamento da 
alma imediatamente após a morte (RODRIGUES, 2005, p. 52). 
 
Mesmo a Igreja fazendo uso do medo, ela oferecia a esperança e a 
segurança por intermédio do culto aos santos, principalmente aqueles que tinham 
especial importância na hora da morte, a exemplo de São José, que era considerado 
patrono da boa morte, aquela acontecida na velhice e em tranquilidade. 
 
Entre as práticasde ensinar a bem morrer surge uma espécie de 
leitura devocional o Breve aparelho e modo fácil de ensinar a bem 
morrer o cristão, do Jesuíta Estevam de Castro, a Igreja assim 
incentivava ao fiel a se preparar para a morte. Para o pensamento da 
época a preocupação se voltava para o que poderia acontecer com a 
alma naquele momento de fragilidade. 
Apesar de ter sido produzido no contexto das artes moriendi do 
periodo pós tridentino, que valorizavam a preparação longínqua e 
cotidiana para a morte, o breve aparelho apresentou maiores 
semelhanças com os últimos momentos. Esta preocupação pode ter 
influído na organização do texto em torno da doença. Afinal, em se 
tratando de coisa repentina e certa, como afirmou Estevam de 
Castro, a hora da agonia ou a iminência da morte seriam ocasiões 
em que a alma do fiel, por passar por uma grande tribulação, deveria 
ser ajudada no seu combate contra as forças demoníacas 
(RODRIGUES, 2005, p. 63). 
 
Contudo, havia uma preocupação dos sacerdotes para que os fiéis não 
deixassem para a última hora essa preparação, mas que fosse programada durante 
toda a vida. Antes de tudo, o manual do bem morrer orientava o sacerdote ou quem 
estivesse acompanhando o moribundo a induzi-lo a fazer o testamento, além de 
22 
 
ensinar como elaborá-lo, buscando os sacramentos, em contrição, orações, preces e 
atitudes convenientes. 
No Seridó, dispõe-se de alguns trabalhos que exploram a História da 
morte, como a monografia de Cristina Galvão Ribas e Maria das Neves Santos 
Medeiros, intitulada “Os mortos vistos pelos vivos: fragmentos do imaginário sobre a 
morte na Comarca do Príncipe (Século XIX)”, na qual as autoras versam sobre as 
narrativas presentes nos testamentos da antiga Comarca do Príncipe como sendo 
representações do imaginário, tendo as ações descritas nesses documentos o 
almejo de uma boa morte. 
Esse apanhado geral feito sobre a História da morte foi necessário para 
se entender o lugar que o objeto do trabalho ocupa. Se entre as ações do homem 
diante da morte as orações e súplicas ocupam um lugar de destaque, como foi visto 
acima, é importante compreender os percursos históricos que essas preces 
percorreram até chegarem ao município de Jucurutu em forma de incelências, uma 
vez que essas são orações cantadas em torno do morto a fim de conduzi-lo ao céu e 
consolar os que ficam. 
Como se percebe ao longo desse capítulo, as ações do homem em torno 
da morte dão-se pela ideia de continuidade e é o motivo pelo qual o homem se 
preocupa com a mesma; surgem os rituais fúnebres, que, como foi visto, mesmo 
sendo estruturalmente simples são carregados de significados, e esses são 
materializados nos enterramentos, nos adornos confeccionados para vestir o morto, 
na sepultura, além de serem demonstrados no momento do morrer, quando o morto 
é cercado de súplicas em favor da alma, nos ritos e nas preces dos momentos 
antes, durante e depois da morte. 
No capítulo seguinte, busca-se entender quais documentos regiam as 
idades das infâncias e quais discursos davam fomento a essas regras. Dessa forma, 
propõe-se uma discussão sobre a morte infantil, tentando entender qual papel que a 
criança morta ocupa na sociedade, delimitando, assim, as idades da infância e 
problematizando os ritos que se realizavam em volta da criança morta, que era 
chamada de anjinho. 
 
 
 
23 
 
 
 
24 
 
CAPÍTULO 2 OS ANJINHOS E A PERCEPÇÃO DA MORTE INFANTIL 
 
No capítulo anterior, observou-se o desenrolar dos comportamentos humanos 
perante a morte no Ocidente. Desde os desdobramentos físicos, como os 
enterramentos, aos sensíveis, como as orações, as quais, no presente trabalho, 
ganham maior visibilidade, percebe-se como as preces em torno do morto 
desenvolveram-se e como se estabeleceram no conjunto ocidental de práticas 
ritualísticas em torno da morte. Viu-se como se deu o processo de apropriação por 
parte da Igreja católica dos ritos fúnebres e quais as implicações desse processo 
nas atitudes do homem diante da morte, até chegar ao resquício dessas orações, as 
incelências, que perduraram até meados do século XX no município de Jucurutu. 
Neste segundo capítulo, é feita uma análise do que se denomina “anjinhos”. 
Busca-se compreender como se delimitou, ao longo dos anos, a ideia da infância e 
da morte infantil e quais são os documentos que estipulam e ditam as regras para a 
percepção por parte da sociedade do que é e não é criança – e neste caso, 
especificamente, do que pode ser considerado como morte infantil. É feita também 
uma análise dos aspectos que caracterizam a criança morta e que lhe conferem o 
título de anjo. Em seguida, examina-se uma amostra documental referente ao 
obituário do Segundo Cartório de Notas de Jucurutu, além das falas das narradoras 
envolvidas nesta pesquisa sobre os anjos para que se tenha real noção da 
quantidade de mortes infantis no recorte espacial aqui delimitado. 
Já foi visto como se estabeleceram as orações e preces em torno do morto, 
de modo que, agora, propõe-se entender como a criança morta foi entendida ao 
longo da História. Luiz Lima Vailati, no livro “A morte menina: infância e morte infantil 
no Brasil dos oitocentos (Rio de Janeiro e São Paulo)”, fala de como os viajantes da 
Europa Central e dos Estados Unidos reagiam ao se depararem com as ações 
fúnebres em torno do morto em terras brasileiras, o que classificavam como sendo 
algo de cunho espiritual primitivo, atribuindo, de modo geral, a culpa desses atos à 
Igreja católica. Segundo Vailati, quando esses viajantes comparavam os rituais 
fúnebres de adultos e crianças, eles ficavam ainda mais surpresos devido ao 
contraste entre as duas práticas: para os mortos adultos, “Cerimonial 
circunspecto/tristeza x morte de criança/cerimonial/festivo/júbilo” (VAILATI, 2010, p. 
25 
 
18). Essa conotação festiva em torno da morte infantil e os motivos desse 
rejubilamento são comentados mais adiante. 
Vailati constatou uma característica entre os ritos infantis e adultos nos anos 
mil e oitocentos que os distinguia. Com o objetivo de identificar onde se localizava 
essa diferença, “viu-se que eram dedicadas à criança morta práticas diferenciadas, 
discriminando-a de forma privilegiada, dos outros mortos” (VAILATI, 2010, p. 75). 
Primeiramente, é importante atentar-se para o fato de que a ideia que se tem 
de criança nos dias atuais é bem distinta do que se entendia por criança alguns anos 
atrás. Segundo Ariès, parecia não haver lugar para a infância no mundo medieval, 
por exemplo. Dessa forma, fazendo uma análise das obras de arte desse período, 
Ariès constata que: “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a 
infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à 
incompetência ou falta de habilidade” (ARIÈS, 1978, p. 52). 
A criança não estava excluída da Idade Média, pelo menos não a partir do 
século XIII, como afirma Ariès. Isso pode ser explicado pelo fato de que as figuras 
do anjo infantilizado e das infâncias santas remontam a esse século e, mesmo 
assim, a infância aparecia como uma “fase sem importância” (ARIÈS, 1978, p. 56). 
As crianças morriam em grande número e as práticas observadas em torno dessas 
mortes (enterramentos em casa ou no jardim, por exemplo) fizeram com que 
Phillippe Ariès levantasse o seguinte questionamento: “Ou será simplesmente as 
crianças mortas muito cedo eram enterradas em qualquer lugar, como hoje se 
enterra um animal doméstico, um gato ou um cachorro?” (ARIÈS, 1978, p. 57). Essa 
questão alimenta o pensamento sobre qual o lugar que a criança ocupou na 
sociedade e, principalmente, onde se localiza, socialmente, a criança morta, 
atentando-se para as classificações em torno desses sujeitos sociais. 
Para tanto, faz-se necessário entender quais eram os limites que definiam o 
que era ser criança no Brasil dos anos mil e oitocentos, pensamento que, de certa 
forma, peloque foi possível perceber por meio de relatos orais coletados para esta 
pesquisa, permaneceu até a temporalidade delimitada para a execução deste 
trabalho. As Ordenações Filipinas, o corpo de leis que regia o comportamento tanto 
jurídico quanto religioso em torno da morte, davam indicações quanto aos 
testamentos e impunham que o menino menor de quatorze anos e a menina menor 
de doze não poderiam testar. Seria esse já um marco na demarcação do que seria o 
fim da infância. 
26 
 
Ainda nos documentos de cunho regulador, vê-se que as Constituições 
Primeiras do Arcebispado da Bahia fizeram poucas referências à existência de um 
limite etário para a aplicação dos ritos, com exceção da extrema unção, que é 
negada aos meninos que não fazem uso da razão. Entretanto, tais Constituições 
ainda fixam o limite de sete anos para o toque diferenciado dos sinos pelos defuntos. 
A idade de sete anos parece ser a mais aceita pelos códigos reguladores, como é 
possível observar no Ritual do Arcebispado da Bahia, do padre Lemos (1863), 
determinando a aplicação da extrema unção a todo aquele maior de sete anos de 
idade. Essa demarcação etária também definiu os procedimentos referentes ao uso 
de mortalhas, adereços para o corpo, preces e uma série de cuidados que foram 
fundamentais para a percepção da infância (VAILATI, 2010, p. 77). 
 
Esse corpus documental dá condições para verificar como as 
práticas efetivas dessa sociedade se comportam frente às normas 
expostas nos manuais eclesiásticos relacionados aos limites de 
idade que devem ser observados nos comportamentos em torno da 
morte (VAILATI, 2010, p. 78). 
 
Sendo assim, fica claro que a idade do defunto é fundamental na definição de 
quais práticas fariam parte do rito fúnebre. Além disso, como é possível observar 
nesse corpus documental, além de estipular o limite etário definindo um conjunto de 
práticas fúnebres voltadas para os menores de sete anos, dá as diretrizes para os 
registros dos mesmos, fixando, dessa maneira, “o limite de idade em que nas 
práticas fúnebres se exerce tal distinção entre adultos e crianças, está localizado ora 
por volta dos sete anos, ora entre os doze e quatorze anos” (VAILATI, 2010, p. 81). 
O limite etário usado nesta pesquisa para definir a criança morta é a idade de sete 
anos. Os motivos dessa escolha deram-se a partir da discussão sobre os registros 
civis que foram utilizados como fonte e atrelados à narrativa das pessoas 
entrevistadas. 
Essas fronteiras entre a infância e a vida adulta marcam um momento de 
transição em que o sujeito é conclamado a assumir seu lugar social, tomando 
consciência dele. Nessa transição, o indivíduo passa a ocupar espaço no mundo dos 
adultos e a ser percebido como um deles. 
 
27 
 
O que significa a idade de sete anos? O que ela traz de novo, para 
que seja possível condiciona-la, por esse viés, ás peculiaridades da 
infância? No Brasil, durante o período abordado [oitocentos], a idade 
de sete anos figura como marco importante no processo de inserção 
da criança no mundo dos adultos (VAILATI, 2010, p. 86). 
 
O conjunto de características que definiam a infância podia ser caracterizado, 
por exemplo, pela competência para trabalhar. Entretanto, a inserção da criança no 
mundo do trabalho não era o principal motivo dessa demarcação. Esse conjunto de 
características era regido, sobretudo, pelo elemento fundamental na concepção de 
criança: o uso da razão. 
 
A malícia, no seu traço mais visível, isto é, a capacidade de discernir 
entre o bem e o mal, aparece, com efeito, como aquilo que configura 
o fim da infância e cuja ausência diz respeito ao seu principal 
predicado a inocência (VAILATI, 2010, p. 90). 
 
A compreensão entre o bem e o mal seria o demarcador desse limite entre 
infância e vida adulta, sendo a primeira caracterizada pela inocência dos atos ou a 
incapacidade de fazer o mal ou pecar premeditadamente. Ainda nos anos mil e 
oitocentos, este era o ponto de vista adotado nos âmbitos religioso e jurídico: a partir 
dos sete anos de idade já seria possível que o indivíduo pecasse sem a inocência 
dos anos anteriores. 
Quanto às idades dos doze e quatorze anos, elas são consideradas o fim 
efetivo da infância, marcando um momento de socialização entre a vida infantil e 
adulta em que o sujeito aparece preparado para o trabalho, atendendo, assim, às 
expectativas da sociedade. Seria um encerramento do processo de transição entre a 
infância e a vida adulta, sendo esse período a “plenitude da malícia”, segundo a 
qual, além da capacidade de pensamento próprio e de distinguir entre o bem o mal, 
esse indivíduo já tem a capacidade de realizar relações sexuais. Para a Igreja, a 
possibilidade de discernimento, e, para o Estado, o início da vida sexual atuava 
como condicionante do limite entre infância e vida adulta. 
 
Estritamente falando tudo isso denotava, em definitivo, a perda da 
inocência ou em outros termos, daquilo mesmo que resultava de uma 
28 
 
natureza ainda imaculada que se atribui á criança e que em última 
instância a definia (VAILATI, 2010, p. 93). 
 
Portanto, o que realmente definia o limite entre ser adulto e ser criança era a 
competência para pecar. Na presente pesquisa, isso ficou bem claro, mesmo sendo 
o recorte temporal pertencente aos meados do século XX. Percebe-se, por meio das 
falas das pessoas entrevistadas, o quanto tem peso esse discurso do anjo que não 
tem pecado. Tal pensamento pode até ser percebido na rigidez da escrita do registro 
civil, que exprime a ideia de anjo, anjinho e corpinho ao classificar essas 
nomenclaturas no registro de óbito. 
E é por esse motivo que se delimita a idade de sete anos como marco 
classificatório da infância. Essa demarcação é imposta pela documentação a que foi 
possível o acesso, os registros de óbito do Segundo Cartório de Notas de Jucurutu. 
Eles mostram que a maioria dos óbitos infantis acontecia antes de um ano de vida 
(essa informação também é confirmada pelas narradoras), e o que era definido 
como criança nesses registros estende-se até os sete anos. É interessante observar 
a perpetuação desse discurso através dos anos, uma vez que o que se propunha 
nos anos mil e oitocentos sobre a morte da criança acaba chegando até o século 
XX. Mesmo que com algumas mudanças, a ideia principal, de cunho religioso, 
permanece adotando o título de anjo, considerada a inocência do infante. 
No Seridó, as idades da infância já foram discutidas por Cintia Medeiros de 
Araújo no seu trabalho monográfico, no qual ela fez um acurado trabalho 
relacionando as práticas em torno da morte infantil em Acari/RN entre 1835 e 1907. 
A autora problematizou o fato de crianças serem enterradas com hábito preto, 
fazendo, assim, uma análise do imaginário da morte, bem como de seus rituais. 
 
Em Acari, por exemplo em 1836 e 1852 foi encontrada exatamente 
essa distinção(etária), que aos olhos dos contemporâneos parece 
estranho, mas é um fato real em que duas „crianças‟, uma de oito e 
outa de nove são descritas como adultas” (ARAÚJO, 2012, p. 57). 
 
Agora que já é sabido como se define a criança no contexto colocado, é 
importante entender as diferenças entre os rituais fúnebres de adultos e de crianças. 
Percebe-se o caráter distintivo entre as duas práticas e os motivos pelos quais 
promovem essa dissimilitude: “a morte da criança, na quase totalidade das atitudes 
29 
 
situadas em torno dela, deslocada de um outro conjunto a que poderíamos chamar 
de morte adulta” (VAILATI, 2010, p. 101). Entretanto, a criança estaria, segundo 
Vailati, ausente das prescrições fúnebres. 
 
Nas questões relativas aos procedimentos funerários, em especial 
aqueles que implicam uma participação mais direta dos padres e que 
são sistematicamente regulamentados, a criança se vê notavelmente 
excluída. A morte infantil aparece aqui como a situação na qual se 
deve dispensar a quase totalidade dos cuidados prescritosao morto 
adulto” (VAILATI, 2010, p. 102). 
 
Vê-se, assim, uma lacuna quanto ao que se podia/devia fazer a criança 
morta. Se, por um lado, estaria bem claro o que não era permitido, por outro, nada 
informava o que deveria ser feito. E isso abre uma imensidão de possibilidades, 
fazendo com que os ritos em torno da criança morta ganhem traços bem peculiares. 
 
O mais significativo de tudo, no entanto, é que, nas constituições, a 
decisão de proscrever para uma determinada faixa etária uma série 
de procedimentos rituais, vistos como inapropriados para esse grupo, 
não significou, como se poderia esperar, que as autoridades 
eclesiásticas esclarecessem o que havia de ser feito para o pequeno 
defunto (VAILATI, 2010, p. 102). 
 
Essa exclusão da criança nos ritos referentes à morte por parte da Igreja 
católica justifica-se, entre outros motivos, pela falta de mão de obra humana, visto 
que os ritos que são dispensados para a criança morta são aqueles que têm ação 
direta de um sacerdote, como administração dos sacramentos e missas. Para isso, a 
saída da Igreja era afirmar que apenas o batismo era necessário para salvar a 
criança e esse poderia ser feito por qualquer leigo. 
 
O Concílio estava de acordo com a crença de que bastava apenas o 
batismo para a criança ser salva... nesse sentido, não é absurdo 
atribuir essa exclusão feita a morte infantil à situação da Igreja nos 
primeiros tempos de sua atuação no Brasil, entre outros motivos. 
Visto que a maior parte dos procedimentos rituais que são proibidos 
à criança diz respeito àqueles que pedem participação direta dos 
representantes da Igreja (VAILATI, 2010, p. 103). 
30 
 
 
Portanto, sem a presença de um padre a morte infantil torna-se um “lugar em 
que se pode quase tudo” (VAILATI, 2010, p. 104). As pessoas aproveitam-se dessa 
não oficialização e criam ritos próprios e formas distintas de cuidar espiritualmente 
de seus pequenos mortos. 
Entretanto, é possível perceber que, mesmo não havendo uma oficialização 
do que se podia fazer no momento da morte infantil, essa última não era 
negligenciada. Talvez essa falta de oficialização gerasse nas pessoas um 
sentimento que projetasse na morte infantil esmero, ocasionando a grande 
festividade em torno da criança morta, além do cuidado no preparo dos adornos e 
mortalhas. Se o cerimonial era deixado de lado pelas autoridades religiosas, as 
pessoas apropriavam-se desse momento e faziam a manutenção das suas 
representações coletivas. 
 
A morte infantil é permeada por uma terceira característica: um 
investimento exagerado. O que aí se observa é um zelo significativo 
em proporcionar à criança morta uma série de procedimentos que 
essa sociedade julgar indispensáveis (VAILATI, 2010, p. 106). 
 
A morte infantil revestiu-se de informalidade, o que lhe atribuiu um formato 
festivo. Isso não quer dizer, entretanto, que o velório dos anjinhos fosse uma 
festividade como outra qualquer, pois existiam formas específicas para esse tipo de 
evento que se diferenciavam dos ritos para adultos. O evento voltado para a criança 
era mais estético, enquanto que o rito do adulto era mais voltado para o espiritual 
dogmático, que, por sua vez, era controlado pela Igreja. 
 
Falou-se que uma das principais características dos funerais de 
crianças era o caráter festivo com o qual eles se apresentavam, 
destoando significativamente do clima lúgubre dos rituais de morte 
dos adultos. Também nesse aspecto, é notável uma nova 
configuração geral das práticas fúnebres pueris (VAILATI, 2010, p. 
111). 
 
 É nesse sentido que Vailati comenta como era entendida de forma 
comemorativa a morte infantil, uma vez que, sem pecado, o infante morto estaria, 
31 
 
imediatamente, compondo a milícia de anjos celestes. Para o historiador João José 
Reis, a criança não era considerada parte da sociedade civil e, pelo motivo de não 
ter capacidade de discernimento, tornar-se-ia um anjo ao morrer desde que fosse 
batizada. E talvez esse sentido festivo significasse, entre outras coisas, que a morte 
infantil não era considerada tão grave quanto a morte adulta (REIS, 1991, p. 123). 
É no batismo que a criança estaria segura, podendo desfrutar, após a morte, 
dos privilégios angelicais que teria no céu. Como os códigos reguladores dos rituais 
fúnebres deixavam, de certo modo, ladeados os cuidados com a morte infantil, o 
batismo torna-se quase que o único rito que seria seguido à risca, acompanhado da 
confecção e vestimenta da mortalha e de outros adornos que recobririam o corpo do 
infante morto. “A exceção do batismo, os rituais da morte infantil se concentravam 
no momento imediato após a consumação da morte” (VAILATI, 2010, p. 127). 
Havia uma maior preocupação com a vestimenta do defunto tanto na época à 
qual o estudo de Vailati se restringe quanto no recorte temporal selecionado para 
esta pesquisa. No caso da criança morta, essa indumentária ganharia formas e 
cores diferentes, fato que estaria ligado diretamente às superstições que se tinham e 
também à representação que se fazia do outro mundo. Existia a crença de que o 
corpo deveria estar paramentado conforme os padrões do reino celeste, e as 
vestimentas ajudariam aquele que passava para o outro mundo a se localizar na 
geografia celeste. Ou seja, a roupa mortuária tinha grande importância, pois ditava a 
direção que a alma seguiria após chegar ao outro mundo. 
 
Tendo origem em tempos nos quais a crença na separação entre 
corpo e alma após a morte não era algo bem definido, a ideia de que 
a forma como se era enterrado era também como se estaria no além 
chegou ao século XIX no Brasil (VAILATI, 2010, p. 127). 
 
Como já mencionado, a morte infantil, ao mesmo tempo em que, de certa 
forma, era negligenciada, conquistava certa liberdade perceptível nas roupas e 
adereços fúnebres que enfeitavam o corpo. Era comum nos anos mil e oitocentos 
um cuidado excessivo com o enxoval do morto, e nas crianças essa característica 
ganhou ainda mais força, prova é o fato de 
 
[...] que a mortalha da criança em nada devia a dos adultos mortos. 
Já nesse aspecto, os visitantes estrangeiros se mostraram 
32 
 
favoravelmente surpresos pelo esmero que esses pequenos defuntos 
eram arrumados e expostos” (VAILATI, 2010, p. 128). 
 
O caráter festivo em torno da morte infantil se dava, entre outros fatores, pela 
inexistência do pecado, e o pouco interesse da legislação sobre esse tipo de morte 
leva a certa liberalidade, como já apontado anteriormente, de forma que as pessoas, 
então, viam na morte da criança certo consolo. Isso porque, no lugar do choro em 
grande quantidade visto na morte dos adultos, na morte infantil esse sentimento dá 
lugar ao júbilo e à certeza de mais um integrante na corte celestial. “Devido ao 
estado de inocência com que se morria, não tinha necessidade de qualquer causa 
expiatória, e só deveria haver, pois lugar para o rejubilamento” (VAILATI, 2010, p. 
138). Essa afirmação também pode ser vista na fala das pessoas entrevistadas, 
para as quais o momento era festivo pelo motivo de mais um anjinho estar ao lado 
de Jesus. 
“Nessa ocasião, torna a ficar evidente a associação feita entre a criança e a 
figura do anjo, paralelo já constatável no uso do termo anjinho para designar a 
criança morta” (VAILATI, 2010, p. 141). A roupa de anjo, além de reafirmar os 
valores que eram projetados na criança morta – como a pureza, que ganha forma, 
especificamente, nas vestes angelicais –, associa-se ao conjunto de rituais fúnebres, 
materializando-se na mortalha de anjo, expressando, assim, entre outras coisas, a 
representação do imaginário desta sociedade. “A ideia desse ingresso na Corte 
Celeste está bastante de acordo com uma conduta ritual que, como vemos 
mostrando, associa a morte infantil à boa morte” (VAILATI, 2010, p. 144). 
 A criança morta, ou melhor, o anjinho teria vantagens no além que 
precisariam ser conquistadas aqui na Terra. Portanto,é interessante observar a 
ligação da morte infantil com a “boa morte”, a necessidade de preparar o caminho 
para o morto, mesmo que esse indivíduo, no caso, o anjinho já tivesse passe livre, 
dada ausência de malícia. Dentro desse contexto, torna-se possível entender os 
discursos em torno da morte infantil, como o da exigência do batismo e das 
facilidades que a criança tem de, após a morte, estar no céu: “a exigência do 
batismo para a salvação espiritual da criança que morre e o entendimento de que 
ela é incapaz de pecar e, por conseguinte, está em melhores condições de ingresso 
entre os eleitos” (VAILATI, 2010, p. 213). 
33 
 
A mortalidade infantil passa ser vista com mais importância em meados do 
século XX (RAGO, 1997, p. 126). Contudo, deve-se lembrar de que a cólera matou 
inúmeras pessoas nos anos mil e oitocentos, como se pode notar na monografia de 
Rosinéia Ribeiro de Almeida Silva, de 2003, “O Seridó em tempos de cólera: 
doenças e epidemias na segunda metade do século XIX”. Além disso, observa-se 
que essas mortes, inclusive de centenas de crianças, não foram efetivamente 
registradas como foram no século XX. Um dos motivos para isso foi a quantidade 
excessiva de mortes ocasionadas pela cólera. Apesar disso, a partir do XX os 
registros civis tornar-se-iam mais comuns e com uma facilidade maior de acesso, 
sendo também nesse século em que a sociedade começa, de certa forma, a 
preocupar-se mais com a memória dos mortos. Portanto, ainda que o século XX 
tenha um ápice de registros fúnebres, o auge da mortalidade infantil foi no período 
devastador da cólera. 
Ademais, ainda é possível localizar como causa dos elevados números de 
mortalidade infantil os transtornos digestivos, distúrbios respiratórios, causas natais 
e pré-natais (RAGO, 1997, p. 126). Dentro das documentações utilizadas nesta 
pesquisa, os registros de óbito do Cartório de Jucurutu, encontram-se como as 
causas mortis que mais aparecem nos registros a colerina, o crup, a congestão e a 
dentição. 
O que chama atenção é a grande quantidade de registros de crianças mortas, 
tendo em vista todos esses fatores já elencados, apesar da circunstância de as 
crianças estarem à margem da sociedade civil e das dificuldades de acesso a esses 
registros. Foram analisados quinhentos e três registros de óbito pertencentes ao 
Segundo Cartório de Notas de Jucurutu referentes aos anos de 1931 a 1935, dos 
quais trezentos e vinte e três registros foram de mortes infantis e apenas cento e 
oitenta foram de adultos mortos, como se pode constatar no gráfico abaixo. 
Tem-se a certeza do número elevado de óbitos infantis tanto por causa da 
documentação escrita analisada quanto pela fala das mulheres entrevistadas. Um 
exemplo desse último meio de informação é parte da entrevista concedida por Maria 
José Feliciano, conhecida por dona Zezinha, quando diz: “Tinha dias que sabe 
quantos anjos se enterravam aqui? Seis! Por dia, morria menino demais...” 
(FELICIANO, 2017). Segundo os relatos, era possível ouvir o sino da Igreja tocando 
o dia todo por causa da quantidade de mortes infantis, e era-se sabido que mais um 
anjinho tinha morrido pelo toque diferenciado dos sinos, como informado por 
34 
 
Petronila Luca de Araújo, dona Nila, de 104 anos: “O sino de anjo é chamado de 
repique” (ARAÚJO, 2017). Os números de mortes são alarmantes, como observado 
no quadro a seguir. 
Figura 1 Resultado da análise de 503 registros de óbitos do Segundo Cartório de notas de 
Jucurutu referentes aos anos de 1931 a 1935. 
 Foi encontrada, nos registros de óbitos, a utilização de termos como anjo, 
anjinhos e corpinho. Sendo esse último o mais comum nos registros, é interessante 
notar que, mesmo o registro civil sendo, notoriamente, mais rígido quanto à escrita 
formal, esses termos tornam possível entender que havia certa sensibilidade no trato 
da criança morta. 
A seguir, têm-se os registros fotográficos de três casos diferentes em que 
essas nomenclaturas aparecem, sendo eles os casos de Anastácio Candido da Silva 
(foto 01), tendo como causa da morte espasmos e falecendo aos 25 dias do mês de 
maio de 1931, com dezenove dias de idade, classificado como anjo; Leonel 
Fernandes de Freitas (foto 02), tendo como causa da morte colerina, falecendo aos 
18 dias de fevereiro de 1931, com quatro meses de idade, classificado como 
anjinho; Manoel Marciano Ferreira (foto 03), de cor preta, causa da morte colerina, 
morto aos 9 dias do mês de novembro de 1931, com três dias de vida, classificado 
como corpinho. 
Adultas 
36% 
Infantis 
64% 
Registros de óbitos de 1931 a 1935 
35 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Logo, com esses registros é possível observar quais elementos 
caracterizavam a infância desde os anos mil e oitocentos até o recorte temporal 
delimitado, além de entender quais documentos regulamentavam o limite etário dos 
anjos, atentando para os discursos que davam subsídios para esse corpus 
documental. Junto à análise dos registros de óbito e à narrativa das entrevistadas, 
pode-se perceber o elevado número de mortes infantis. Dessa forma, é possível 
compreender a noção de infância e morte infantil e delimitar quais são as idades 
usadas aqui quando se trata de anjos. 
No terceiro capítulo, vê-se a morte infantil inserida no contexto rural do 
município de Jucurutu no século XX e, nessa linha de raciocínio, busca-se entender 
quais representações formulam-se em torno dessa criança morta, como aconteciam 
as cerimônias que rompiam a noite, os atores, os adornos produzidos ali mesmo 
para enfeitar o anjinho, os ritos fúnebres, as vozes que cantavam e as letras 
pesarosas que faziam a mãe da criança morta prantear por toda noite. Além disso, 
faz-se uma análise dessas músicas fúnebres, buscando ir além das letras para 
perceber as sensibilidades que elas carregam. 
 
 
Foto 01: Trecho da transcrição do registro de óbito de Anastácio Cândico da Silva; “...Que o anjo 
será hoje sepultado no cemitério desta Vila...” Acervo do autor. 
Foto 02: Trecho da transcrição do registro de óbito de Leonel Fernandes de Freitas; “...Que o 
anjinho será hoje sepultado no cemitério desta Vila...” Acervo do autor.. 
Foto 03: Trecho da transcrição do registro de óbito de Manoel Marciano Ferreira; “...Que o 
corpinho será hoje sepultado no cemitério desta Vila...” Acervo do autor. 
36 
 
CAPITULO 3 A MORTE CANTADA 
 
No capítulo anterior, foram entendidas as características que qualificavam 
a criança morta para se tornar anjinho e quais documentos subsidiavam a discussão 
em torno dos limites etários. Percebeu-se como a morte infantil era tratada pelo 
Estado e pela Igreja, acessou-se a documentação oficial em busca das causas do 
elevado índice da mortalidade infantil no século XX e constatou-se a existência de 
registros para crianças mortas, mesmo havendo toda a discussão em torno do lugar 
da criança na sociedade. E, por fim, delimitou-se a faixa etária utilizada nesta 
pesquisa. 
Neste terceiro capítulo, observa-se o conjunto ritualístico em torno da 
morte no município de Jucurutu em meados do século XX, o cenário simples onde 
ocorriam as cerimônias, as características das comemorações em torno da morte 
infantil e a indumentária confeccionada pelas mulheres que cantavam, além de uma 
análise das letras das incelências entoadas por toda a noite em torno da criança 
morta. 
As incelências podem ser entendidas como remanescentes das orações 
para os mortos, aquelas acompanhadas no primeiro capítulo. A Igreja católica 
abarcava os rituais fúnebres dentro da liturgia oficial, e, o interior do Seridó, lugar 
onde se apoia esta pesquisa, tinha, culturalmente, a maioria da população 
pertencente à fé católica. Entretanto, havia um fator condicionante que implicava nas 
pessoas a necessidade de elas próprias tratarem do culto divino, que era a falta de 
sacerdotes. Esse fato, como já foi visto, deu espaço para a informalidade e 
rusticidadedos ritos em torno da morte de anjinhos. As incelências eram, portanto, 
cânticos ministrados pelos que ali estavam e isso permitia certa comodidade na 
realização do rito. 
 
3.1 AS NARRADORAS 
 
 Recorre-se à história oral para ter acesso às memórias sobre as incelências e 
os velórios dos anjinhos. Foi selecionada uma colônia de narradoras, as quais 
obedeciam a alguns critérios antes estipulados, como ter participado dos velórios 
cantando ou ouvindo as incelências. As entrevistas foram pautadas em um roteiro 
37 
 
elaborado com esse intuito. De início, a rigidez das perguntas atrapalhou um pouco 
o andamento das pesquisas e, por isso, decidiu-se, então, deixar as entrevistadas 
mais à vontade, permitindo que as participantes conduzissem a conversa, de modo 
que só havia a intervenção quando surgia alguma dúvida sobre o que estava sendo 
falado. 
 Foram entrevistadas nove mulheres que participavam dos velórios de 
anjinhos, seja cantando ou apenas ouvindo. Essas senhoras, como já dito, atendiam 
aos critérios já mencionados, entre eles, ter um bom repertório de incelências. A 
seguir, portanto, é feita uma descrição de quem são essas mulheres e em quais 
sítios moravam ou moram. 
 Maria das Neves Valentim da Silva, 54 anos, foi a única entrevistada que não 
cantou as incelências, mas que, apesar disso, também participou dos velórios. Ela 
teve oito filhos, mas conseguiu criar apenas três. Maria Francisca da Silva, dona 
Neguinha, 62 anos, hoje reside na cidade, mas acompanhou as incelências até os 
12 anos. Dona Maria Socorro, conhecida como Socorro Rabicó, cantou as 
incelências e amortalhou os anjinhos. 
 No sítio Cacimbas: Teresinha Maria de Jesus, 71 anos, acompanhou as 
incelências até os 12 anos, quando saiu do Sítio Cacimbas e veio morar na cidade. 
Maria Francisca da Silva, dona Nêna, solteira de 57 anos, ainda reside no mesmo 
sítio. 
 No distrito de Boi Selado: Petronila Luca de Araújo, dona Nila, 104 anos, teve 
11 filhos e apenas quatro sobreviveram. Ela se tornou viúva muito nova e sustentou 
os filhos e a casa vendendo bolachas e bolos. Apesar da idade avançada, dona Nila 
tem uma memória e lucidez impressionante. Francinete Cardoso Batalha de Souza, 
costureira e filha de dona Nila, tem 68 anos e teve oito filhos, dos quais dois 
tornaram-se anjinhos. Segundo ela, acompanhou as incelências até os quinze anos. 
 Ainda em Boi Selado, tem-se Maria José Feliciano, conhecida como dona 
Zezinha, 68 anos, a qual disse que acompanhou as incelências até os 25 anos e que 
teve 3 anjinhos, mas só permitiu que cantassem incelência para dois deles. Dona 
Zezinha tem a voz rouca, provocada pelo uso excessivo de cigarro, já que ela 
começou a fumar com nove anos de idade. Francisca Francina da Silva, com 59 
anos de idade, teve sete filhos e apenas um anjinho. Porém, por considerar as 
incelências muito penosas, não deixou que cantassem para aqueles os seus que 
partiram. 
38 
 
É interessante notar que algumas das mulheres que cantavam incelências 
nos velórios de anjos não permitiam que cantassem para os seus anjos por 
considerar as incelências “muito penosas”. Entretanto, faziam de tudo para cantar 
quando se tratava de outras crianças que não as suas. 
 
3.2 O CENÁRIO 
 
As casas simples de taipa no meio da caatinga, fronteadas apenas por 
uma porta e uma janela, ambas rústicas, na penumbra das primeiras horas da noite, 
certa movimentação de pessoas começa a mudar os arredores da casa, a noite traz 
consigo o lamento da morte de mais um anjinho, as vizinhas começam a chegar, 
esse acontecimento já era corriqueiro. Roupas modestas vestiam quem se 
aproximava da casa, tantas muitas mulheres que já passaram por momentos 
semelhantes. 
Dentro da casa, pouca iluminação, apenas uma lamparina abastecida 
com óleo de mamona e um pavio de algodão. No meio da sala, sobre uma esteira de 
palha, estava o centro de todas as atenções: um caixão simples, enfeitado com 
flores de papel colorido. O cheiro do café, o aroma dos chás e o barulho da borbulha 
do caldeirão de batatas compõem a cena. Mulheres cantam e enfeitam o féretro, o 
pranto da mãe, que pode ser ouvido ao longe. Do lado de fora, no terreiro, os 
homens conversam, as crianças brincam de anel, moças e rapazes namoram à luz 
da lua e de uma coivara que ofusca luz singela da lamparina no interior da casa. 
É necessário realizar esse exercício de visualização da cena, como o que 
foi feita acima, para se ter noção de como aconteciam essas cerimônias fúnebres. 
As entrevistadas deste trabalho relatam de forma muito detalhada como se 
estruturavam essas ações em torno da criança morta. Segundo dona Francisca 
Maria da Silva, conhecida como dona Neguinha, de 61 anos de idade, “quando 
morria o anjinho, juntava aquelas vizinhas, moças e crianças (...) mais ou menos 
umas 15 mulheres, dependia da vizinhança” (SILVA, 2017). Dona Neguinha, hoje, 
mora na cidade, mas ainda lembra-se de forma muito saudosa dos tempos em que 
morava no sítio Cacimbas, um dos lugares onde foi detectada a prática das 
incelências no século passado. 
39 
 
Dona Neguinha ainda afirma que as mulheres estavam alegres quando se 
reuniam para cantar as incelências, e a ideia da criança inocente, como já detalhada 
anteriormente, é percebida. Por isso, segundo a mesma entrevistada, os anjinhos 
não precisavam de orações em sufrágio da alma que tornassem a morte infantil um 
motivo de júbilo, pois mais um anjo estaria compondo as milícias celestes. 
“Cantavam como se fosse um momento de alegria, era aquela coisa alegre porque 
aquela criança era mais um anjinho para Jesus” (SILVA, 2017). 
Como já foi visto, as incelências estavam ligadas à noção de “boa morte” 
e, sendo assim, diz respeito aos cuidados antes do momento final, durante o velório 
e após o enterramento. Desse modo, a fala das entrevistadas vai de encontro a essa 
ideia já debatida anteriormente por autores como Philippe Ariès. Dona Terezinha de 
Jesus afirma: 
 
A gente ficava fazendo quarto. Quarto era quando o menino ainda 
estava vivo até a hora de expirar e a velinha acesa para colocar na 
mão (...). Ficava o povo tudo olhando, aí quando dizia “Está 
morrendo! Está com a ânsia!”, “né”, aí trazia uma vela e colocava na 
mão do menino. (...) Era a ladainha que cantava, as pessoas mais 
velhas que sabiam cantar (JESUS, 2017). 
 
 Além de prática espiritual, as incelências serviam como modo de 
interação social, uma vez que o ritual movimentava a comunidade durante toda a 
noite, como confirma mais uma das participantes, dona Francinete, e conta um 
pouco da relação social nesses velórios: “A gente ficava no terreiro no claro da lua, 
conversando, contando história de „trancoso‟, brincando de anel, quem estava 
disposto ficava lá dentro cantando, nos terreiros costumava fazer uma coivara, um 
foguinho para clarear” (SOUZA, 2017). 
Esse lado festivo das incelências é confirmado por Dona Teresinha de 
Jesus, e ela reconhece: “Era muita gente, e quem achava bom eram os namorados 
que ficavam lá fora, e tome café a noite todinha, porque não era para ficar ninguém 
dormindo, todo mundo acordado” (JESUS, 2017). Esse momento podia ser 
entendido como uma comemoração por dois motivos: o primeiro, por ter mais um 
anjo compondo a corte celeste, e o segundo, que, apesar de parecer estranho, é 
confirmado, em meio a gargalhadas, por dona Zezinha: “Gostava, adorava, achava 
bom quando morria um menino” (SILVA, 2017). Era um momento em que as 
40 
 
pessoas podiam divertir-se, seja cantando, jogando conversa fora ou namorando em 
um lugar com pouca ou quase nenhuma opção de lazer. 
O evento estendia-se durante toda a noite, e as participantes pontuam 
que o café era em grandes quantidades, pois ajudava a manter os convidados deste 
rito acordados. Mas não era somente isso: batatas cozidas e chás também 
integravam o cardápio modesto dessas reuniões, e em alguns velórios ainda eram 
servidas

Continue navegando