Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS WALLACE JOSÉ DE OLIVEIRA FREITAS DOSSIÊ JAN FABRE: DIÁLOGOS E GERMINAÇÕES NATAL/RN 2017 WALLACE JOSÉ DE OLIVEIRA FREITAS DOSSIÊ JAN FABRE: DIÁLOGOS E GERMINAÇÕES Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas. Orientadora: Profa. Dr.ª Naira Neide Ciotti NATAL – RN 2017 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes – DEART Freitas, Wallace José de Oliveira. Dossiê Jan Fabre: diálogos e germinações / Wallace José de Oliveira Freitas. - Natal, 2017. 151f.: il. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Artes, Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. Orientador: Prof.ª Dr.ª Naira Neide Ciotti. 1. Teatro - estudo e ensino - Dissertação. 2. Performance - teatro - Dissertação. 3. Fabre, Jan - Dissertação. I. Ciotti, Naira Neide. II. Título. RN/UF/BS-DEART CDU 792.02 AGRADECIMENTOS Esta pesquisa criou uma imensa rede de colaboradores na qual fui agraciado e que contribuíram para todo o andamento de seu processo. Além disso, demarca a possibilidade de dar mais um passo adiante em minha carreira acadêmica e com isso, festejo por estar finalizando esse desafiante ciclo que é o mestrado. Impossível não agradecer a meus pais, Wilma e José, que nas brincadeiras sempre falam que eu deveria já ter passado em um concurso público e não ficar lendo e escrevendo tanto. Agradeço pela paciência, pelo luxo que é, em um país em tanta crise, ser estudante de artes e viver embaixo de vossas asas. Agradeço por no final do túnel eles sempre estarem lá, confiando em mim. E ainda, minha irmã Vanessa, por ser minha eterna confidente. Sou grato a minha orientadora de mestrado, Naira Ciotti, por tanto cuidado com minha pesquisa. Sempre sábia, me fazendo conectar algumas coisas que sempre estiveram ali na minha frente. Agradeço não só pela orientação de mestrado, mas também a de vida. Muito grato a todas as companheiras de jornada do mestrado: Rachel Cavalcante, Camila Duarte, Camila Tiago, Nyka, Celly, Tatiane e todas as outras deusas que habitam nosso programa. E os queridos da turma de 2015 do PPGARC da UFRN, que me ensinaram tanto sobre companheirismo acadêmico. Agradeço a Professora Mara Leal, que mesmo desconhecendo meu trabalho, se prontificou a contribuir e participar tanto das bancas de qualificação, quanto defesa desta dissertação. Além disso, sou grato pelas considerações e carinho com minha pesquisa, que muito ajudaram a fazê-la crescer. Agradeço a Professora Larissa Tibúrcio, tanto pelas disciplinas ministradas (que foram fundamentais para esta pesquisa), quanto à participação na qualificação e defesa deste trabalho. Sempre terna e sensível, sempre me trazendo algo novo e refrescante. Agradeço ao Programa de Mestrado desta instituição, e que com a colaboração da CAPES, viabilizaram a construção das várias experiências explanadas aqui e da oportunidade de fazer uma pós-graduação gratuita. Aos amigos Caio Lima e Erickaline Lima que me ajudaram nas partes mais técnicas deste trabalho, possibilitando um segundo olhar sobre meu trabalho, me deixando sem palavras suficientes para agradecer. Agradeço também a presença constante de pessoas como Giovana Tionácio, Priscilla Jesus, Brenda Rabelo que estão sempre me dando suporte e me estimulando a melhorar a cada dia. Agradeço ao meu companheiro de jornada da vida, Hareton Vechi, que sempre segurou minha mão quando pensei que fosse cair e que me acompanhou em toda a viagem ao exterior, quase como um assistente. Agradeço ao Jan Fabre, ao Troubleyn, sobretudo, a Miet Martes e Katrjin Leemans, que foram minhas guias na viagem até Antuérpia. Muitíssimo grato ao Professor Luk Van Den Dries que se tornou um amigo nessa jornada, me confiando seu livro e me guiando em muitos passos sobre o desconhecido, deixando viva essa possibilidade de trocas pós-dissertação. Agradeço a você, que parou sua vida para ler este trabalho, mesmo que só uma parte. Agradeço a todos os professores do Programa de Pós-Graduação da UFRN em Artes cênicas que fortaleceram cada pisada à frente neste trabalho. Cada passo que tomei em minha vida, Trouxe-me aqui, Agora. Troubleyn RESUMO O presente trabalho procura desenvolver reflexões no campo das artes sobre as possibilidades de teatro para além do texto clássico (aristotélico) e das separações homogêneas das linguagens artísticas levando em consideração duas produções do artista belga Jan Fabre. Entendendo que teatro performativo seria esse lugar entre o teatro e a performance, onde um percebe no outro a capacidade de germinação, objetiva-se apresentar esse artista e utilizar como base as obras The Power of Theatrical Madness (o reenactment de 2012) e Mount Olympus (uma performance de 24 horas de duração – 2015), e, ainda, a sede do diretor – o Troubleyn / Laboratorium. A partir do título do trabalho, sugestiono para a pesquisa a ideia de dossiê enquanto espécie de coleção de documentos ou “pequeno arquivo” que contém algum assunto para análise. Nessa ideia, procuro desmembrar características do trabalho artístico de Fabre. Trata-se de obras específicas, mas cuja análise crítica acaba por denunciar o modus operandi de Fabre como um todo. Reside aqui, uma tentativa de traduzir Fabre e seu trabalho, não somente no que tange à linguagem, mas no que se refere às imagens, vídeos e buscas. É uma tradução das várias informações e entrevistas realizadas ao longo dessa jornada. É a tradução também do que eu sinto, percebo e assimilo nesses diálogos constantes com o Troubleyn. PALAVRAS-CHAVE: Teatro Performativo; Jan Fabre; Performance; The Power of Theatrical Madness; Mount Olympus. ABSTRACT The present study aims to develop reflections in the arts field about the theater possibilities beyond the classic text (Aristotle) and homogeneous separation of the artistic languages taking into consideration two productions of the Belgian artist Jan Fabre. Understanding that Performative Theater would be this place between the theater and the performance, where one realizes on the other the germination ability. It’s the intention to introduce this artist and use as a basis of study his works The Power of Theatrical Madness (1984 – 2012), and Mount Olympus (a twenty four- hours performance – 2015) and also his head office, the Troubleyn / Laboratorium. From the title of this work, I walk into the dossier idea as a kind of documents collection or a short file, that carries some subject for analysis. This way, I intend to dismember the features of Jan Fabre’s artwork. However these are specifics works, its critical analysis turns out to reveal Fabre’s modus operandi as a whole. Here is an attempt to translate Fabre and his works, not only with regard to the language, but to translate what comes from pictures, videos and searches. It´s a translation of information I receive and interviews I´ve done throughout my journey. It´s also a translation of what I feel, I realize and assimilate through these constant dialogues with Troubleyn.Key-words: Performative Theater; Jan Fabre; Performance; The Power of Theatrical Madness; Mount Olympus. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: Desenho de cena, 2015...................................................................................13 Figura 2: Castle Tivoli, Jan Fabre 1991..........................................................................18 Figura 3: “Dança dos Imperadores”...............................................................................35 Figura 4: O texto em The Power of Theatrical Madness..............................................39 Figura 5: Parrots and Guinea Pigs, de 2002..................................................................42 Figura 6: Espaço de experimentação e pesquisa teatral.............................................45 Figura 7: The Power of Theatrical Madness, 1984........................................................54 Figura 8: Captura da cena descrita no texto, no vídeo................................................60 Figura 9: “Cena da tapa”.................................................................................................62 Figura 10: O Imperador....................................................................................................65 Figura 11: A cena da faca em The Power of Theatrical Madness................................67 Figura 12: O figurino........................................................................................................69 Figura 13: Cena final da obra “The power of Theatrical Madness..............................72 Figura 14 : O Troubleyn visto de cima...........................................................................77 Figura 15: Visita ao interior do Troubleyn.....................................................................79 Figura 16: Fachada atual do Troubleyn.........................................................................80 Figura 17: Interior do Troubleyn.....................................................................................81 Figura 18: “Mesa da Resistência”..................................................................................81 Figura 19: “Spirit Cooking”.............................................................................................84 Figura 20: Eu e Katrijn Leemans....................................................................................85 Figura 21: “Tellure” de Romeo Castellucci...................................................................86 Figura 22: “Sweat” de Peter De Cupere.........................................................................88 Figura 23: “Sweat”...........................................................................................................89 Figura 24: There – There are – There is – There – Th – I – Robert Wilson...............................................................................................................................91 Figura 25: Mount Olympus, 2016....................................................................................96 Figura 26: Agamenon....................................................................................................100 Figura 27: Programa do Espetáculo.............................................................................106 Figura 28: Jocasta..........................................................................................................108 Figura 29:Twerk, 2016....................................................................................................115 Figura 30: Cancan Francês...........................................................................................116 Figura 31: Cena das correntes de ferro.......................................................................120 Figura 32: Eu e Jan Fabre.............................................................................................128 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................... 12 METODOLOGIAS .................................................................................... 22 Tradução .................................................................................................. 27 CAPÍTULO I: ESTE É O TEATRO COMO ERA ESPERADO ..... ............ 31 1.1 A gênese do trajeto ............................................................................. 32 1.2 JAN FABRE ........................................................................................ 36 1.3 Troubleyn – grupo de pesquisa, estudo e treinamento........................ 44 CAPITULO II: O PODER DA LOUCURA TEATRAL ................................ 52 2. THE POWER OF THEATRICAL MADNESS ......................................... 53 2.1 Reenactment / Reperformance ........................................................... 54 3. Repetição ............................................................................................ 60 3.1 Duração .............................................................................................. 63 3.2 Referências à história do teatro .......................................................... 64 4. Riscos? Ou Ética? ................................................................................ 66 5. Disciplina e Poder ................................................................................. 69 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO .............................................. 73 CAPÍTULO III: TROUBLEYN / LABORATORIUM ................................... 75 3.1 Troubleyn: a história de uma sede/museu .......................................... 76 3.2 Entre várias, algumas peças do acervo .............................................. 83 3.3 Troubleyn simbiose ............................................................................. 92 CAPÍTULO IV: MOUNT OLYMPUS ........................................................ 94 4. MOUNT OLYMPUS .............................................................................. 96 4.1 A TRAGÉDIA ...................................................................................... 99 4.2 O TEXTO .......................................................................................... 104 4.3 O TEMPO ......................................................................................... 109 4.4 GERMINAÇÕES DO CORPO ........................................................... 117 CONCLUSÃO ........................................................................................ 125 REFERÊNCIAS ..................................................................................... .129 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ............................................................ 132 APÊNDICE A – FICHA TÉCNICA MOUNT OLYMPUS ........................... 133 APÊNDICE B – ENTREVISTA COM JAN FABRE .................................. 135 APÊNDICE C – ENTREVISTA COM MARINA KAPTIJN ........................ 141 APÊNDICE D – ENTREVISTA COM MORENO PERNA ........................ 143 APÊNDICE E – ENTREVISTA COM TONY RIZZI .................................. 145 APÊNDICE F- ENTREVISTA COM GILLES POLET ............................... 147 APÊNDICE G –DRAMATURGO JEROEN OLYSLAEGERS ................... 149 ANEXO: .................................................................................................. 151 FICHA TÉCNICA DA OBRA THE POWER OF THEATRICAL.................151 12 INTRODUÇÃO As mudanças sobrevieram, pois, frente à teoria, ao seu papel, ao que dele se esperava. Não se exigia mais dela, doravante, tudo englobar, tudo explicar. Ela pode ser fragmentária, parcial. Não se espera que responda a todas as questões, mas, de modo mais simples, que ajude a colocá-las. Ela tornou-se o instrumento que permite interrogara obra, explorá-la para fazer emergir não mais o sentido, porém os sentidos que nela residem (FÉRAL, 2015, p. 20). Provavelmente o nome “ensaio” seja o mais apropriado para o texto que se inscreve nas linhas abaixo, sobretudo, por acreditar que o sentido das coisas é de mais fácil apreensão a partir do seu work in progress1 do que de seu resultado final. Dessa forma, trago vestígios de um corpo que tem realizado – o que poderíamos chamar de “ações de pesquisa” – para tentar clarificar um caminho que vem sendo traçado há um tempo, em termos de investigação sobre um artista e suas obras. Mostro uma tentativa de exercitar uma escrita mais pessoal, mais real e contígua do que eu sou (se é que é possível ao escrever não nos denunciarmos), chegando muito próximo as aberturas que têm sido discutidas no meio acadêmico em relação à metodologia e a aplicação dela nas artes, inclusive, no que se refere as do corpo. Esta parece ser a mais elementar das questões de método na pesquisa em artes: como lidar com o logos acadêmico científico (comunicante), quando se trabalha com uma forma de produção simbólica ambivalente, como a linguagem do corpo (que, por natureza, “corrompe” o próprio discurso). Tal questão nos leva a uma aporia, uma dificuldade em parte insolúvel, que a fenomenologia procura amenizar, ao vincular sujeito psicológico, lógica da linguagem e ontologia (aquilo que dá os atributos essenciais ao “ser” [...]) (ANDRADE, 2012, p.114). Minha intenção, no entanto, não é começar uma discussão sobre a formatação dos trabalhos acadêmicos, ou se, enquanto artistas/pesquisadores, elas vêm de encontro aos nossos anseios produtivos. Dessa discussão eu me isento um 1 Literalmente poderíamos traduzir por “trabalho em processo”, procedimento este que tem por matriz a noção de processo, feitura, iteratividade, retroalimentação, distinguindo-se de outros procedimentos que partem de apreensões apriorísticas, de variáveis fechadas ou de sistemas não-iterativos (COHEN, 2006, p.17, nota de rodapé). 13 pouco neste momento, ou talvez ela venha transparente na minha forma de escrever este trabalho, revelando assim uma contaminação que se instaura em minha escrita. Mas, o que se pretende aqui é falar sobre um teatro ensandecido2, produzido por um artista chamado Jan Fabre. A partir do título do trabalho, iniciado com a palavra Dossiê, sou encaminhado para duas inclinações. A primeira, dossiê3 enquanto espécie de coleção de documentos ou pequeno arquivo que contém papéis relativos a determinado assunto, processo, empresa ou pessoa (palavra mais explorada na área jurídica). Nessa acepção, um dossiê geralmente contém uma biografia ou informações detalhadas para análise sobre um interesse em especial. E, inevitavelmente, o dossiê genético4, estudado por Cecília Salles sobre estudos da crítica genética, que lida justamente com a ideia de colher os vestígios de um determinado processo criativo, para assim poder tornar palpável sua feitura e a sinuosidade, se pautando em “melhor compreender o processo de criação artística, a partir dos registros desse seu percurso deixados pelo artista” (SALLES, 2008, p. 20-21). Figura 1 – Desenho de cena e foto da execução da cena, 2015 5 2 Alusão à palavra inglesa “madness” contida no título de seu trabalho “The Power of Theatrical Madness”, que em tradução significa loucura; ensandecido. 3 Dossier, palavra de origem francesa, é a variante mais utilizada em Portugal, mas que gradualmente foi sendo substituída por dossiê, a única versão atestada no Prontuário da Academia Brasileira de Letras (ABL). 4 Para a construção do dossiê genético, o pesquisador inicia uma série de etapas que têm o objetivo de tornar os documentos que ele tem em mãos legíveis. Estou me referindo à elaboração do dossiê dos documentos do processo (SALLES, 2008, p. 62). 5 O desenho feito à mão por Jan Fabre e a foto da performer executando a imagem estão contidos no livro da dramaturgia do espetáculo Mount Olympus e servem como aporte para justificar por que expando à noção de dossiê. 14 A noção mais geral de dossiê talvez acolha melhor esta pesquisa em cruzamento com as ideias de Cecília Salles sobre arquivos – dossiê genético – pois, foi da tentativa da construção dessa espécie de “pasta com vestígios do artista” que esse trabalho conseguiu ser desenvolvido. No entanto, não posso afirmar que esse trabalho inteiro é um dossiê genético, e sim, o resultado de diálogos que foram germinando e me encaminhando para outros lugares. Esclareço imediatamente que expando a noção de dossiê como uma tentativa de deslocar não somente informações do processo criativo das obras, mas do todo que me inquieta no artista/obras. Imaginemos uma caixa com análises, fotos, vídeos, pensamentos, informações, ou qualquer coisa que tenha sido entregue a mim no processo de pesquisa. A presente pesquisa é essa caixa aberta. Procura-se aqui, além de tudo, desenvolver considerações no campo das artes sobre as possibilidades do teatro para além do texto clássico (aristotélico) e das separações homogêneas das linguagens artísticas. Discussão essa que nunca se esgota enquanto reflexão sobre o momento desabrochado no qual estamos vivendo atualmente. Seguindo para caminhos mais específicos enquanto objetivos, a intenção é entender o trabalho artístico de Fabre, levando em consideração seu teatro e as metamorfoses impingidas em suas obras, resguardo-me ao desejo de desvelar as características do universo Fabriano enquanto linguagem híbrida, tendo como referência central, as obras: The Power of Theatrical Madness (1984 e 2012)6; seu último trabalho, Mount Olympus (2015), uma performance com duração de 24 horas; e ainda, sua sede de experimentação artística – o Troubleyn. Obras como The Power of Theatrical Madness (2012), Parrots and Guinea Pigs (2002) e Mount Olympus (2015), são alguns dos trabalhos que ganharam muita visibilidade em festivais de arte e permeiam, de certa maneira, a forma como conheço o trabalho do diretor. A partir do que surge dessas obras, procuro brechas 6 A obra foi criada e estreada em 1984. No ano de 2012, Jan Fabre decide fazer uma reperformance de sua produção, ou seja, ele convida outros artistas, mantém algumas partes conforme a primeira obra, muda algumas outras estruturas e estreia a “nova” versão. Minha pesquisa se pauta no trabalho de 2012. 15 para entender o modus operandi7 de Jan Fabre e sua companhia – o Troubleyn, e ainda, o corpo que nesses trabalhos – e em tantos outros – cruza uma linha fronteiriça entre o belo e o estranho, entre a disciplina e a violência, entre o visual e o teatral. Pensando nesses objetivos e em diálogo recorrente com minha orientadora, a Profa. Dr.ª Naira Ciotti, resolvemos estabelecer o que gostamos de chamar de “ações de pesquisa”. A partir do momento que se tornou dificultoso obter materiais sobre Fabre aqui no Brasil, e ainda a internet se mostrando limitada nas minhas buscas, tivemos que pensar em ações (etapas) facilitadoras do processo de pesquisa: a análise da obra de Fabre a partir de vídeo; visita à sede do Troubleyn- Jan Fabre em Antuérpia-Bélgica; entrevista com Jan Fabre e artistas; apreciação presencial da performance de 24 horas – Mount Olympus. É válido salientar que essas “ações de pesquisa” foram acontecendo em concomitância com o desenvolver dessa investigação e, muitas delas, nem estavam na “agenda” da pesquisa, mas foram surgindo enquanto oportunidades para nossa exploração. Fomos nos apropriando, de modo a não deixar as ações escaparem da construção deste trabalho. Nesse sentido, busca-se a compreensão sobre quem é esse diretor,de onde ele vem, quais suas influências estéticas e o que demarca suas obras teatrais. Fazendo uma espécie de levantamento sobre Jan Fabre a partir de fontes colhidas antes mesmo de idealizar esse percurso/trabalho. O diretor Fabre nasceu em 1958, na cidade de Antuérpia, na Bélgica, cidade em que ele vive até o momento, e ainda, onde mantém a sede do seu grupo de experimentação teatral, o Troubleyn. Foi aluno do Municipal Institute of Decorative Arts e ainda da Royal Academy of Fine Arts8, ambas situadas também em Antuérpia. 7 Modus Operandi enquanto ideia de: entender a maneira de agir, de produzir, de criar, realizar. Ou como Boato (2013) vai utilizar o termo para: entender a variação dos detalhes das ações conservadas nas estruturas dos espetáculos de Fabre. BOATO, Giulio et al. Genética de um Reenactment em Jan Fabre. Revista Brasileira de Estudos da Presença, v. 3, n. 2, p. 425-446, 2013. 8 Currículo completo disponível em: < http://janfabre.be/angelos/over-jan-fabre/ >. Acesso em maio de 2015. http://janfabre.be/angelos/over-jan-fabre/ 16 Como informa seu site9, no final dos anos 70, Jan Fabre ainda jovem causou furor ao apresentar um trabalho envolvendo pacotes de dinheiros pagos, como entradas do público, a fim de fazer desenhos com as cinzas das cédulas queimadas, ocasionando certa raiva na época para aqueles que pagaram pela performance. Jan Fabre cresceu e se tornou um artista bastante versátil da cena internacional. Ele faz uma ruptura com as convenções do teatro tradicional, introduzindo o conceito de “real-time performance”- às vezes chamadas de "instalações vivas" - e explora desde a possibilidade de coreografias enérgicas e rígidas10 à improvisação, colocando algumas vezes os artistas em contato com o risco (por exemplo: uma bailarina dançando e correndo em um chão todo banhado de azeite). Como praticamente não existem livros traduzidos em português (exceção de Lehmann) que discutem a produção desse multiartista, senti-me estimulado a entender seu trabalho e poder disseminar, no meio acadêmico brasileiro, uma pesquisa sobre o mesmo. Percebe-se que o trabalho de Jan Fabre cria um campo fecundo de discussões sobre as artes cênicas, e contribui para olharmos o teatro através de outros prismas: a discussão sobre o tempo na obra teatral; a transdisciplinaridade das linguagens artísticas; as novas funções que o texto pode assumir em cena; o corpo, primado em sua complexidade e beleza; a duração e repetição enquanto elementos cênicos; assim como outras questões que sugestionam pesquisar sobre o trabalho de Fabre com o Troubleyn, enquanto um território profícuo para se pensar o teatro contemporâneo. Além de utilizar o nome “teatro” ao me referir muitas vezes ao artista (o trabalho dele reside nesse território também), entendo que o primal lugar para a observação do trabalho híbrido de Jan Fabre são as relações mantidas entre seus experimentos cênicos e os da arte da performance. É nesta linguagem heterogênea que o diretor se inicia artisticamente e, provavelmente, a partir dessa experiência que chega à arte teatral. “Quando destrói os códigos do teatro que Lehmann define 9 Conteúdo retirado do site do diretor. Disponível em: < http://janfabre.be/troubleyn/en/about-jan-fabre/ >. Acesso em maio de 2015. 10 Idem. http://janfabre.be/troubleyn/en/about-jan-fabre/ 17 como dramático, o faz principalmente a partir de recursos emprestados da performance” (DE ALMEIDA, 2007, p. 168). Ressaltando a desconstrução de textos clássicos, ou o deslocamento do texto para um lugar não mais de centralidade na obra, e sim, de possibilidades diferentes, como uma palavra que se repete incessantemente em composição a movimentos bruscos do corpo – como a dança contemporânea. Jan Fabre não poupa uma linguagem artística de outra nos processos de criação com seus performers. Marvin Carlson vai escrever sobre isso, ao pensar sobre o teatro pós-dramático: Fundamental para esse conceito é a união do pós-dramático ao conceito de desconstrução teatral de textos clássicos, mas tal união desconsidera grande parte do pós-dramático, que, seguindo o conselho de Craig, se distancia do texto dramático tradicional por completo. Isso não significa que não exista um texto, mas que pode muito bem ser o que os semioticistas geralmente chamavam de texto performativo, um texto que se cria na performance (CARLSON, 2015, p. 581). Apesar de haver um número considerável de pesquisas falando sobre teatro pós-dramático (ou teatro performativo situado por Josette Féral11), creio que ainda existe uma certa dificuldade ou, até mesmo, pouco entendimento sobre as contaminações sofridas no teatro a respeito da utilização de outras linguagens para constituir algo mais heterogêneo. Nessa acepção, a partir da ótica da hibridização, percebemos que no processo final do espetáculo de Fabre, não interessa se o uso da repetição, por exemplo, surgiu em um ensaio de dança ou foi utilizado em uma performance. O “ajuntamento” entre as diferentes formas artísticas parece constituir outra linguagem cênica, alcançando aquele já conhecido “tom” característico dos espetáculos contemporâneos. O trabalho artístico de Fabre, segundo o próprio em entrevista concedida a mim, defende que o teatro não precisa se colocar enquanto forma única e específica, e sim, ser expandido pelo profundo contato com outras linguagens, poderia ser mais bem considerado como um híbrido de teatro, dança, performance e plasticidade, que enfatiza tudo o que possa desenvolver a potencialidade do corpo como expressão. 11 Josette Féral é crítica, teórica e professora na École Supérieure de Théâtre de l’UQAM, em Montréal, no Canadá, desde 1981. Ficou conhecida por suas ideias sobre teatro performativo e crítica genética. 18 Como expõe Luk Van Den Dries12, em seu livro “Corpus Jan Fabre”, aproprio- me desse trecho para subsidiar as aspirações de Fabre a respeito do corpo em suas obras: […] tentativa de capturar um corpo. De que forma ele se movimenta. O que se movimenta em seu interior. De que forma ele muda. Não apenas um corpo, mas muitos corpos. Porque, no trabalho de Jan Fabre, o corpo se transforma constantemente. Não é possível prendê-lo. Ele desliza, ele serpenteia, ele treme por completo. O corpo assume variadas formas. Em cada produção, de novo e mais uma vez. Um maremoto de corpos. Existe também uma tentativa de observar o interior desse corpo. O que acontece com ele. Como ele se prepara para o universo Fabriano. De que forma ele reage inserido no espaço (VAN DEN DRIES, 2006, p.7,) 13 . Por muitos anos, o artista plástico e diretor Fabre, trata de seus trabalhos visuais de forma quase obsessiva. Por exemplo, alguns de seus feitos se baseiam em uma técnica de pintura com caneta esferográfica de cor azul (importante técnica de sua carreira). Ele já pintou a mão um castelo, uma mesa, paredes – somente com caneta azul – além de várias outras obras que seria necessário muito tempo para dissertar. Meu ponto aqui é mostrar que ele está sempre testando os limites, dele e dos que com ele trabalham. Figura 2: Castle Tivoli, Jan Fabre 1991 14 12 Professor de Estudos Teatrais na Universidade de Antuérpia (Bélgica). Ele foi editor da revista de teatro Etcetera, organizador do Festival Flamengo-Holandês de Teatro e presidente do conselho de artes flamengas. Acompanha o trabalho de Fabre desde 2002 e tem sido uma referência na construção dessa pesquisa. 13 Versão original: Primarily, this book tries to capture a body. How it moves. What moves within it. How it changes. Not one body, but many bodies. Because in Jan Fabre’s work, thebody constantly transforms. It cannot be pinned down. It glides, it meanders, it’s all quivers. The body takes many shapes. In every production over again. A tidal wave of bodies. This book also attempts to look inside that body. What happens in it. How it prepares for the Fabrian universe. How it reacts in space. Contido no livro: VAN DEN DRIES, Luk. Corpus Jan Fabre. Gand: L’Arche, 2006. 14 A imagem e outras obras visuais do artista se encontram no domínio do site: < http://angelos.be/eng/selection-of-works/public-space >. Acesso em 28 de julho de 2015. http://angelos.be/eng/selection-of-works/public-space 19 A partir do Castle Tivoli, a palavra limite me vem instantaneamente ao pensamento, tanto nas exibições de Fabre, quanto ao observar os corpos dos artistas que trabalham com ele. São corpos que estão sempre nesse limite, nas fronteiras da dor e do prazer, na minuciosidade entre o impossível e o fictício do teatro. Os corpos são testados constantemente, na balança entre um trabalho de precisão, ao mesmo tempo de descontrole, os limites são sempre rasgados frente ao nosso cotidiano. Seja em seu teatro, seja enquanto artista plástico. O diretor tem avolumado a cena contemporânea com seus trabalhos, os quais parecem misturar as linguagens artísticas, numa espécie de hibridização. Quando assistimos ou vemos fotos de seus trabalhos, percebemos muito mais uma espécie de aglutinação15 do que complementação de uma estrutura artística com outra. O trabalho de Fabre é fortemente contaminado pelas artes visuais e isso é evidenciado no trabalho teatral dele. Féral (2015, p. 135), assim como Roselee Goldberg e alguns autores afirmam que “tudo coloca a performance do lado das artes plásticas: sua origem, sua história, suas manifestações, seus lugares, seus artistas, seus objetivos, sua concepção de arte, sua relação com o público”. Exercendo múltiplas funções em suas encenações, como coreógrafo, dramaturgo, diretor e artista plástico, Fabre já foi radicalmente desaprovado por alguns, ao mesmo tempo em que é admirado por outros. O motivo de controvérsias em relação ao seu trabalho, provavelmente, deve- se às suas escolhas estéticas, amparada na utilização outrora de animais em cena, ou na violência meticulosa, em que os atuantes se colocam no palco. Pôr à prova a sensibilidade e a ética do espectador parece ser um procedimento que Fabre recorre com insistência em seus trabalhos. Um exemplo vemos nos primeiros quinze minutos de sua obra History of Tears (2005), durante os quais os performers gritam, de maneira contínua, como recém-nascidos ou, ainda, as rãs esmagadas em cena, cuja veracidade custa a ser posta em dúvida, em The Power of Theatrical Madness (LARMET, 2014). 15 Segundo o dicionário Michaelis de língua portuguesa: a.glu.ti.nar (lat agglutinare). Unir com cola ou grude. Causar aderência; tornar(-se) coesivo; unir(-se). Juntar (os lábios das feridas) por meio de uma substância aglutinante. Fazer passar por aglutinação (corpúsculos sanguíneos, por exemplo). Juntar por aglutinação. 20 Acompanhando os ensaios do grupo para a produção do reenactment da obra This is Theatre Like it Was to Be Expected and Foreseen (2012), o pesquisador Giulio Boato, em relação aos animais em cena, assinala que: O efeito perturbador sobre o espectador é causado pela simples presença das aves. A copresença do homem e do animal estabelece de imediato uma relação de força: nesse caso, o animal é visto como estando à mercê do homem, aí podendo estar incluídos todos os eventuais sentimentos de culpa, aversão, cólera, tristeza. Mesmo se em cena não aconteça quase nada, o efeito sobre o espectador está garantido (BOATO, 2013, p.450). Quando se analisa suas obras, percebe-se uma tentativa de juntar as possibilidades artísticas de cada linguagem gerando um processo de transformação dos códigos de cada área para que o resultado seja revelador, no sentido de comprovar que na contemporaneidade, o caos, a descontinuidade, a “desfronteirização”, a heterogeneidade e a subjetividade, contaminam violentamente as artes cênicas e se convergem. Este trabalho é fruto da tentativa em descrever e analisar esse híbrido, versão contaminada do teatro Fabriano. Não se trata de uma pesquisa daquilo que ele produziu até então, nem existe intenção de abarcar um tipo de história genealógica, de suas performances iniciais dos últimos anos da década de 1970 até chegar aos seus trabalhos mais recentes, algo que demandaria um tempo maior de pesquisa. O que acredito ser interessante é a problematização, neste momento, da metamorfose teatral transposta por Fabre em suas obras, a partir dos trabalhos citados. A estratificação como uma condição absoluta do seu trabalho, sempre conectando extremos, sem ansiar por uma síntese sequer. Entendendo que para ele, o confronto se constitui numa arma muito poderosa. Poderia utilizar vários nomes para os artistas que trabalham nas obras de Fabre (bailarinos, intérpretes, ator, etc.), mas, analisando suas obras e diante das discussões expostas sobre esse teatro híbrido, ou performativo, como nos acusa Féral, achei mais concludente me referir ao leque de artistas que trabalham com Fabre como performers, nomenclatura esta que abrange melhor o trabalho artístico desenvolvido pelos artistas do Troubleyn (companhia de artistas que trabalham com Fabre). 21 O performer não apresenta a si mesmo, assim como não se representa. Ele é antes fonte de produção, de deslocamento. Convertido no lugar de passagem de fluxos energéticos (gestuais, vocais, libidinais etc.) que o atravessam sem jamais se imobilizar em um sentido ou em uma representação dada, seu jogo de atuação é o de fazer os fluxos operarem, captar as redes (FÉRAL, 2015, p. 155). Percebo que a definição ou resgate (outros autores já falaram sobre isso)16 de Josette Féral sobre performer se encaixa melhor nas definições que tenho lido sobre o trabalho artístico daqueles que compõe o grupo teatral de Jan Fabre. Sendo assim, ao longo desta pesquisa irei me direcionar aos artistas atuantes como performers, por entender que esse conceito é bem mais abrangente para um trabalho que se coloca tão heterogêneo. Entendendo que teatro performativo17 seria esse lugar entre o teatro e a performance, onde um percebe no outro a capacidade de germinação, começo a enxergar que o teatro Fabriano – se fosse possível de ser encaixado em alguma explicação sobre o teatro contemporâneo – poderia ser incluído no que Féral diz: Se seguirmos nosso primeiro impulso, duas fortes ideias estão no centro da obra performativa: De um lado, seu caráter de descrição dos fatos. Por outro, as ações que o performer ali realiza. A performance toma lugar no real e enfoca essa mesma realidade na qual se inscreve desconstruindo-a, jogando com os códigos e as capacidades do espectador [...]. Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma referência à outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer instala a ambiguidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem (FÉRAL, 2008, p.203-204). Fabre não se relaciona tão diretamente com o teatro tradicional, no qual atores buscam dotar de forma um personagem. Ele dispensa qualquer tipo de retrato psicológico de arte (VAN DEN DRIES, 2006). Por isso, termos como teatro performativo podem ser incluídos nos estudos sobre Jan Fabre e seu trabalho cênico. 16 Renato Cohen, Hans-Thies Lehmann, dentro outros.17 Esse teatro, que chamarei de teatro performativo, existe em todos os palcos, mas foi definido como teatro pós-dramático a partir do livro de Hans-Thies Lehmann, publicado em 2005, ou como teatro pós-moderno. Gostaria de lembrar aqui que seria mais justo chamar este teatro de ‘performativo’, pois a noção de performatividade está no centro de seu funcionamento (FÉRAL, 2008, p.197). 22 METODOLOGIAS Conforme venho sinalizando, vislumbra-se em primeira instância, apresentar de forma concisa o diretor e seu trabalho, e, da impregnação de informações colhidas entender a sua obra, procurando um diálogo verticalizado com autores que discutem esse teatro híbrido, como Lehmann e a Josette Féral, que, em alguns textos, erigem apontamentos sobre o próprio Fabre. Se fizéssemos um panorama superficial sobre o pós-dramático e o performativo (sem necessariamente termos que tomar um lado entre os dois conceitos) adentraríamos em um amplo espaço de discussão que nos distanciaria dos reais objetivos desta pesquisa. Algumas vezes sinto que os dois autores mais citados neste trabalho (Lehmann e Féral) estão falando da mesma coisa, outras vezes, que eles estão divergindo em algumas ideias. Mas o que posso afirmar é que ambos sinalizam questões referentes a esse teatro que estou pesquisando. E é isso que nos interessa: as contribuições de pensadores sobre o teatro contemporâneo, e não um estudo comparativo entre os conceitos cunhados por cada um. Em um primeiro momento entro numa busca aprofundada sobre materiais escritos, fotografados, filmados e qualquer outra fonte que me aproximasse do trabalho do encenador, pois a sede do grupo fica em Antuérpia na Bélgica e a maioria das apresentações ocorrem no perímetro europeu. Em confrontação com as necessidades, procuro pelos mais diversos canais na intenção de me apropriar de materiais sobre o artista-obras, no entanto me deparo com alguns problemas: ausência de vídeos na íntegra das obras (e geralmente seus trabalhos possuem muitas horas de duração); inexistência de livros em português, e ainda, escassez18 de artigos de produção nacional sobre o assunto; e a impossibilidade do envio/frete para o Brasil de livros que tratam diretamente dos trabalhos de Jan Fabre. Partindo da ideia de reunir materiais que auxiliem no entendimento dos mecanismos de criação de um trabalho artístico (dossiê) e, diante das problemáticas 18 Encontrei apenas quatro: dois foram traduções de pesquisadores de outros países; uma dissertação que tratava do aspecto visual e plástico e um artigo sobre o teatro de Fabre, nas produções nacionais. 23 já mencionadas, resolvo entrar em contato com o grupo/artistas das obras. Através de um e-mail enviado e com o pressentimento de não obter retorno satisfatório, sinalizo meu interesse em efetuar algum tipo de relação ou troca que torne tanto minha pesquisa, quanto a disseminação de informações sobre o trabalho artístico do grupo mais respaldada. Em minha ansiedade, já havia, desde o envio da mensagem, intuído que o Troubleyn não iria me responder, mas, após uns dois meses, o grupo entrou em contato. Após a comunicação inicial, informo todas as limitações que havia encontrado até o momento para poder consolidar uma pesquisa mais aprofundada sobre o Jan Fabre/Troubleyn (ausência de vídeos na íntegra, textos e livros que fossem enviados para o Brasil, fotos, entre outros), e que para dar continuidade as minhas pretensões investigativas eu necessitaria de um acervo maior de informações, se assim fosse possível. Houve a troca de e-mails com Miet Martens (Coordenadora Artística e “braço direito” de Jan Fabre), que foi bastante prestativa e de uma generosidade imensa, informando-me as limitações do grupo para uma partilha maior de informações19, mas que iria me enviar um material que ela possuía e que posteriormente entraria em contato. Como resultado dos e-mails trocados nessa primeira comunicação, o grupo me enviou vídeos completos, das obras: The Power of Theatrical Madness (4 horas e 30 minutos); This is Theatre Like it Was to Be Expected and Foreseen; Je suis sang; e ainda, um arquivo no formato de word do livro “Corpus Jan Fabre” escrito pelo crítico teatral Luk Van Den Dries, que sempre acompanha os trabalhos do grupo Troubleyn. Além de estar com o material solicitado em mãos, a experiência comprovou que a utilização dos meios de comunicação digital podem ser ferramentas poderosíssimas para diálogos com pesquisadores/artistas – especialmente, para os que se encontram do outro lado do hemisfério – pois, estreita laços e gera trocas frutíferas para uma pesquisa. Com essa constatação em mente e extremamente feliz pelo material enviado, resolvo entrar em contato com o pesquisador que mais acompanha os trabalhos de 19 O grupo encontrava-se na criação da Performance de 24 horas intitulada Mount Olympus, que teve estreia em 30 à 31 de Julho de 2015 em Berlim- Alemanha. 24 Fabre, o Professor de Teatro da Universidade da Antuérpia, Van Den Dries, na qual a versão reduzida de seu livro havia sido enviada pela Miet Martens por e-mail, como citei anteriormente. O motivo do contato foi para tentar conseguir uma cópia de seu livro com as entrevistas, fotos e um acervo de informações que a versão que eu tinha não possuía. O autor me respondeu prontamente, não só foi extremamente cordial, como enviou pelos correios a cópia do livro “Corpus Jan Fabre” – uma pesquisa que discorre sobre o teatro e o corpo nas obras de Jan Fabre, que, de certo modo, respalda esta pesquisa. Esse autor tem acompanhado o trabalho de Fabre há muitos anos, considero seu livro como um guia para entender o modus operandi do encenador. A partir da observação da construção da obra Parrots and Guinea Pigs de 2002, participando dos ensaios por dois meses (tempo de construção do espetáculo), e até contribuindo junto à Fabre. Dries tem reservado sua vida enquanto crítico e professor teatral para estudar o que acontece no Troubleyn e nas obras do diretor. O professor tem sido uma inestimável referência na construção desta pesquisa. Uma espécie de rede foi construída com os materiais do Troubleyn e do Professor Dries, era necessário agora pensar em métodos para conseguir dar conta dessa apreensão de informações e poder organizar o material de modo a torná-lo acessível ao meu próprio ato investigativo. Nessa conjuntura, utilizei como base inicial a ideia da crítica genética, proposta por Cecília Salles, levando em consideração o que ela sugere enquanto “dossiê genético”: A preparação do dossiê para uma futura análise do processo exige uma metodologia de trabalho inicial comum a outras pesquisas que lidam com esse tipo de documentação. Estamos nos referindo a uma série de operações necessárias para estabelecer o dossiê a ser estudado. Essas etapas são indispensáveis para dar aos documentos da obra o estatuto de objeto científico, pronto para ser descrito e analisado (SALLES, 2008, p. 32) 20 . A construção do dossiê se tornou essencial para conseguir tratar melhor o material que eu possuía, sem perder partes importantes e conseguir filtrar aquilo que, de fato, importa para minha investigação. O dossiê possibilita um encontro do 20 Seja como for, o objetivo da elaboração do dossiê dos documentos de processo não é, necessariamente, a publicação (embora possa vir a ser publicado) e sim o preparo dos documentos para a futura análise genética (SALLES, 2008, p. 66). 25 pesquisador com seu objeto a partir do material colhido e a organização dele, se torna, por isso, método primordial para não ficar preso a informações randômicas ou, ainda, perder dados que se dissolvem no processo de obtençãodo material-fonte para a pesquisa. Como anuncia Salles (2006, p. 27) “o crítico, ao estabelecer nexos a partir do material estudado, procura refazer e compreender a rede do pensamento do artista”. Sendo assim, em termos metodológicos (plural), vou construindo uma espécie de sistema capaz de conduzir minha pesquisa. Entendendo que observar a cozinha do artista ajuda a afiar a nossa atenção acerca do material com que ele ou ela trabalha (VAN DEN DRIES, 2006). O manusear de seus utensílios, o modo com o qual estes utensílios são transformados numa forma poética, ou, ainda, a transformação de um material cru numa expressão artística. Percebo que não existe fórmula para um processo investigativo, e nessa acepção, à medida que minha pesquisa foi ganhando forma, quase que com vida própria, foram construindo-se os caminhos norteadores. Eu não escolhi as metodologias (pelo o menos, não conscientemente), a pesquisa com seus meandros – quem escolheu. Sobre todo o escrito, existe uma pluralidade de ações de pesquisa que surgiram para prover o andamento da investigação aqui pretendida, que eu poderia nomear de métodos também. O processo se deu a partir do contato com o sujeito (objeto) de pesquisa21, método que possibilitou poder conhecer melhor o grupo, culminando em convite para visitar a cidade sede do grupo (Antuérpia), e consequentemente, apreciar o espetáculo do qual discorrerei detalhadamente no último capítulo. O contato ocorreu primariamente pela internet, porém, foi necessário (mediante convite do grupo), enquanto ações de pesquisa, ir até o Troubleyn para poder entender melhor o trabalho, a organização do grupo e da sede. Sendo assim, incluo como método, tanto os contatos virtuais quanto os encontros em razão da 21 A troca de e-mails tem sido recorrente nesta pesquisa, e a partir desses diálogos cibernéticos, vem sido construída uma espécie de vínculo com meu objeto de pesquisa, sobretudo, com a coordenadora do grupo, a Miet Martens e Katrijn Leemans e com o Professor de Teatro Luk Van Den Dries. 26 viagem de campo, os quais possibilitaram a viabilidade de outro momento da metodologia. A segunda parte faz menção à obtenção e seleção de materiais (materiais genéticos enviados pelo sujeito/objeto de pesquisa) encontrados, comprados, fotografados/filmados no momento do estudo de campo. Foi um momento substancial para construção do dossiê, tornando-se a base viva para consultas referentes ao que foi problematizado em meios mais formais, como esta dissertação. Além da obtenção de materiais (tanto os enviados quanto os entregues em mãos pela equipe do Troubleyn), a viagem possibilitou conversar com vários membros do grupo e realizar algumas entrevistas que foram essenciais para discutir o que vem sendo exposto até aqui sobre Fabre. Convém explicitar que houveram conversas informais durante as visitas à sede e ao ensaio que antecedia o espetáculo, mas a oportunidade de conversar formalmente com o próprio Jan Fabre e alguns de seus performers, se deu através de e-mail, devido ao curto espaço de tempo. Quem intermediou toda essa entrevista foi a responsável pela comunicação do grupo e de Fabre, Katrijn Leemans, que encaminhou meus e-mails para os performers e Jan Fabre com as perguntas. Devido à resposta dos e-mails terem datas diferentes, ao mencionar as entrevistas nesta dissertação, utilizo a data que Katrijn retornou, já que não tem como precisar a data que ela recebeu cada e-mail. Desse modo, o método de entrevista foi realizado através de cartas. Após assistir ao espetáculo Mount Olympus, escrevi uma carta agradecendo Jan Fabre pela oportunidade e estruturei algumas perguntas que sobrevieram após o espetáculo, e realizei o mesmo método de carta com os performers do espetáculo. Entretanto, como eram vários artistas, fiz as mesmas perguntas estruturadas para todos os integrantes. Diante da jornada metodológica explicada até aqui, existe a confluência de outro método bastante predominante nesta pesquisa, a tradução. Nas entrevistas, a maioria dos artistas só falavam inglês, além disso, a maioria das fontes que tive acesso também estavam em inglês ou espanhol, sendo preciso utilizar como proposta a tradução para o português. Processo pertinente nesta pesquisa, visto que os textos e entrevistas me dão respaldo para falar sobre Fabre, e traduzi-los, 27 aproxima minha pesquisa do meu cotidiano e cultura, contribuindo, inclusive, para sua disseminação e ampliação do acesso ao artista-obras. Tradução É, no ato que faz passar de uma língua à outra, manter uma afirmação ambígua e contraditória. Traduzir é necessário – traduzir é impossível. Em outros termos, se traduzir é uma tarefa interminável, porque sempre há o intraduzível (o essencial talvez), não podemos nos dispensar disso. Há um dever de tradução, que se confunde com a própria atividade do espírito. Traduzir é um humanismo. Se por vezes as línguas, os textos, os corpos resistem, não podemos renunciar a ela. Nós lhe devemos sempre (VITEZ apud FÉRAL, 2015, p. 30). 22 Foi necessário dar ênfase nesta parte da pesquisa e abrir este espaço, pois a tradução, de modo geral, persegue esse trabalho como um todo. Ela se situa enquanto ponto essencial para o estabelecimento dessa escrita e seus sentidos. Iria mais além, e poderia dizer que esse trabalho, antes de tudo, é uma tentativa de traduzir Fabre e seu trabalho, não somente no que tange à língua, mas do que surge das imagens, vídeos, buscas, entrevistas. É uma tradução das várias informações que recebi ao longo dessa jornada. É a tradução também do que eu sinto, percebo, assimilo ou despercebo. Essa tradução é também um processo de empatia. A tradução implica, é claro, quanto ao seu ponto de partida, penetrar no universo do outro, impregnar-se, proceder por empatia em relação ao objeto de origem (objeto-fonte, texto-fonte), por simpatia. Ela implica um trabalho de análise, de escuta, de observação e, no final do percurso, de interpretação, transmutação, transfiguração. Para assim fazê-la, necessariamente, ela apela a todos os saberes (FÉRAL, 2015, p. 31). Informo ainda que a partir do momento que me coloco na condição de tradutor, ou ainda, que mudo ou faço transferências de uma língua para outra, o teor do texto acaba tomando um novo formato – não que exista uma distância colossal entre o original e a tradução (e pode existir) – mas é previsto que uma tradução venha perder algum mínimo valor semântico da língua em que foi falada. 22 A. Vitez, op. Cit., p. 293. O autor vai até mais longe, pois afirma que o trabalho do tradutor é “pôr em cena”, assim ele afirma que a tradução de Hamlet por Pasternak é “uma obra poética russa e uma encenação, em um momento da história”, acrescentando que há também “na própria tradução, um efeito de encenação”, p.292 (FÉRAL, 2015, p. 30). 28 De imediato, prós e contras são colocados em termos idênticos para o tradutor e o encenador. Traduzir é uma necessidade absoluta e criadora de todo ato de comunicação e de todo pensamento. Ela implica: 1. uma passagem (de uma língua a outra língua, de uma forma em outra forma); 2. uma perda, pois todo ato de tradução se baseia em uma impotência e algo sempre escapa ao processo (FÉRAL, 2015, p. 31). O ato de traduzir se tornou cabal neste trabalho, desde os vários textos traduzidos para tentar defender alguns pensamentos enquanto espectador, até chegar à cidade de Fabre. Ficando tão impregnado em minha escrita a ponto de, ao escrever, me confundir e não saber se sou eu falando ou se é alguma informação traduzida que foi resgatada nesse interim. Algumas vezes utilizo o termo “tradução indireta” justamente para não cometer o erro de transpor algo misturado a mim. E me perguntose no fundo, toda tradução não é indireta. Oras, quando eu traduzo, eu falo o algo do outro, mas eu falo do meu jeito, com minha subjetividade, gerando uma nova organização de ideias. Escrever, traduzir, atuar, encenar dependem de um pensamento único, fundamentado na própria atividade de traduzir, isto é, sobre a capacidade, a necessidade e a alegria de inventar sem trégua equivalências possíveis: na língua e entre as línguas, nos corpos e entre os corpos, entre as gerações, entre um sexo e outro ( VITEZ apud FÉRAL, 2015, p. 30). Esse deslocamento (de uma língua para outra, de um país para outro), foi o responsável pela troca, desde os e-mails até a produção das perguntas da entrevista feita a Fabre e alguns performers no momento da atividade de campo na Bélgica. Sem essas “multi” traduções não seria possível sondar os perímetros das obras, me deixando afundar em impressões talvez rasas ou imprecisas. Realizada a tradução, o caminho segue no desejo da parte mais ensejada na pesquisa, a escrita reflexiva crítica, que deriva das oportunidades investigativas advindas dos caminhos seguidos na construção da pesquisa, e que se configura como uma espécie de resultado das metodologias utilizadas. Esse é o momento de 29 concretizar a escritura do trabalho, através do “dossiê traduzido”23 e da consulta bibliográfica realizada perpendicularmente ao todo. A ideia de metodologias, no plural, perpassa a feitura deste trabalho por entender que, apesar de ter colocado uma espécie de ordem nas partes (caso contrário ficariam caóticas), elas possuem vida própria, podendo interagir entre si ou não, nascendo de lugares diferentes e podendo, como qualquer outro sistema suscetível às contaminações, interferências, transformações e mutações (CIOTTI, 2009), sofrer metamorfoses. Imaginemos que existe uma espécie de rotação para essas metodologias, do contato com o objeto de pesquisa até a busca de referências bibliográficas, tendo como núcleo a dissertação em si. A possibilidade de atravessamento se torna susceptível a partir dessa rotação, mas não é obrigatória, pois não estou tratando de sistemas fechados, mas compreendo que esses atravessamentos possibilitam uma facilitação no meu processo de apreensão investigativa. Todas as partes (ou metodologias) possuem o mesmo grau de importância e hierarquia, além disso, essas etapas não se constituem enquanto processos finalizados, por exemplo, o contato com o objeto não existiu apenas para uma primeira necessidade, ele continua existindo e irá perdurar por todo o decorrer da dissertação (e quem sabe, em minhas futuras pesquisas). Enquanto houver pesquisa, essas ações estarão se imbricando umas nas outras para que o trajeto possa conseguir respirar. Sendo assim, o primeiro capítulo deste trabalho se detém a apresentar meu primeiro contato com o artista (que foi totalmente virtual), investigar quem é Jan Fabre, e o seu grupo de experimentação teatral, o Troubleyn, que atua ainda como “Laboratorium” para artistas. Enquanto tento apresentar o artista, objetivo ir explicando um pouco como funciona o trabalho artístico de Fabre, finalizando numa exposição sobre como funciona os treinamentos físicos e pesquisas para os processos criativos do grupo. No segundo capítulo me inclino a discutir a obra The Power of Theatrical Madness a partir de análise realizada através do vídeo na íntegra da obra e material 23 Esse dossiê citado não diz respeito somente ao dossiê genético de Cecília Salles, mas a ideia de reunião de materiais, sejam eles referentes ao processo de criação (dossiê genético), sejam eles referentes a trabalhos já finalizados, em formato de fotos, vídeos e artigos (noção de dossiê mais geral), que foram obtidos e traduzidos. 30 bibliográfico, desmembrando características do trabalho teatral de Fabre. Trata-se de uma obra especifica, mas que a análise crítica da mesma, acaba por denunciar o modus operandi de Fabre como um todo. O terceiro capítulo demarca, enquanto bolsista de mestrado CAPES, minha saída do país e chegada à cidade sede de Jan Fabre para realização do estudo de campo. Nesse capítulo eu convido você, leitor, a adentrar o espaço de trabalho do Troubleyn, para melhor entender o funcionamento desta sede/museu. O quarto e último capítulo trata da apreciação crítica da obra Mount Olympus, uma performance de 24 horas, a qual tive a oportunidade de assistir no momento da minha passagem à cidade de Antuérpia. Nesse sentido, trata-se também de um relato de experiência, incorporando os fragmentos das entrevistas pós-espetáculo realizadas com Jan Fabre e alguns performers de sua companhia - eclodindo nas consideraçoes finais desse trabalho. 31 CAPÍTULO I: ESTE É O TEATRO COMO ERA ESPERADO E PREVISTO 32 O nome do capítulo faz referência a um dos primeiros trabalhos performáticos de Jan Fabre, que, em original, seria “This is Theatre Like it Was to Be Expected and Foreseen” de 1982. A escolha deste nome, como condição para nomear este capítulo, decorre do fato da obra marcar o início de sua carreira, e representar o teatro que por ele desejava ser conduzido. No entanto, esclareço que não é intenção discutir tal obra (de forma aprofundada), apenas “brincar” com a nomenclatura de seus trabalhos e minha escrita. O que proponho neste primeiro capítulo é apresentar o trajeto que desencadeou a pesquisa, iniciando pelo meu primeiro contato e depois fazendo um breve histórico sobre o Jan Fabre. Em seguida, exponho alguns procedimentos do seu grupo de experimentação artística, o Troubleyn, que age também como laboratório de pesquisa teatral (Laboratorium). 1.1 A gênese do trajeto Acredito ser importante entender a gênese de algumas relações, pois certamente conhecer o percurso inicial clarifica não só o leitor, mas o próprio pesquisador a entender seu lugar de partida e, nesse trajeto, entender melhor o solo em que pisa. Incluo então, a necessidade de falar sobre o início de minha relação com Jan Fabre e suas obras. Ainda na graduação, no ano de 2014, na disciplina de Encenação IV24 ministrada pelo Professor Rodrigo Nascimento, houve a divisão dos alunos em grupos, sendo solicitado para cada grupo a abordagem em forma de seminário de alguma linguagem artística contemporânea e, posteriormente, a produção de uma encenação que dialogasse com tal estética. Na época, meu grupo tratou de falar sobre Dança-Teatro, levando em consideração obras e textos que se relacionavam com o trabalho de Pina Bausch, especificamente. Ainda dentro desse grupo, que era chamado de “dança-teatro”, dividimos entre nós, os tópicos relevantes sobre o tema sugerido. 24 O curso de Licenciatura em Teatro da UFRN é dividido em quatro disciplinas de encenações (I à IV), cada qual tentando abordar uma estética diferente (teatro naturalista, épico, pós-dramático, etc.), para assim o aluno vivenciar na prática um pouco desses tipos de fazeres artísticos. A disciplina citada acima foi pautada nos estudos sobre o teatro pós-dramático que Lehmann cunhou e a turma trabalhou com a ideia de performance e dança-teatro no semestre citado. 33 O grupo mostrou fome em pesquisar sobre Pina, mas eu me desgarrei deles com o propósito de encontrar outras fontes que trouxessem a ideia de miscigenação das linguagens artísticas como a Dança-Teatro sugere, mas que fosse novo para mim. Nessa intenção entro nos endereços de repositórios de artigos científicos e digito: “trabalhos híbridos; teatro híbrido”, e colido com um artigo intitulado “Jan Fabre e a construção de um teatro híbrido”25, escrito por Joana Dória, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP),do ano de 2007. No mesmo instante abro o artigo e o leio na esperança de, naquele escrito, não só encontrar algo “novo” (referência que nunca tenha entrado em contato), mas que o próprio texto já servisse de auxílio teórico para o seminário da disciplina da graduação. Tratava-se de um artigo publicado na revista Sala Preta da USP, onde a autora comenta sobre a contaminação que as linguagens artísticas vêm sofrendo quando analisamos os trabalhos de vários artistas contemporâneos, como: Bob Wilson, Pina Bausch e o Jan Fabre. Nesse texto, ela discute a transdisciplinaridade recorrente nas obras de Fabre, informando um pouco sobre quem é esse artista e como seu trabalho se configura. A partir de nomes como Hans-Thies Lehmann e Renato Cohen, no escopo de seu escrito, o texto faz um panorama das artes contemporâneas levando em consideração a contaminação das linguagens artísticas, e carregando, como pano de fundo o nome de Jan Fabre, comprometido em mostrar que existe uma tendência a haver menos fronteiras entre as artes. É importante interpor, ainda, que para a produção da dissertação de mestrado e idealização da pesquisa que se insere aqui, fez-se necessário procurar no Banco de Teses e Dissertações da CAPES26 e na plataforma LATTES (CNPQ), a partir de alguns termos (Jan Fabre; Troubleyn), trabalhos que se assemelhassem ao que se pretende ser investigado, no intuito de não correr o risco de reproduzir trabalhos que já discutam o que tenho interesse, e sim, acrescentar novas reflexões. 25 DE ALMEIDA, Joana Doria. Jan Fabre e a construção de um teatro híbrido. Sala Preta, v. 7, p. 167-170, 2007. 26 Colocando o nome “Jan Fabre”, apenas uma dissertação apareceu, e após leitura, percebi que se distanciava bastante do que venho escrevendo e pesquisando. Site: < http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#/ >. Acesso em 20 de julho de 2016. 34 Após busca nos repositórios citados e em revistas acadêmicas, e outras fontes, percebi que a nível nacional, existe apenas uma dissertação que trata de Jan Fabre, produzida por Daniele Àvila, sob o título de “Jan Fabre no Louvre - Um percurso intempestivo pela história da arte”27, da PUC-RIO. O trabalho discorre sobre uma exposição realizada por Fabre como artista plástico no Museu do Louvre, em Paris na França, se verticalizando em pensar na relação da arte com o museu e do atravessamento que o artista propôs ao criar instalações em um espaço de acervo permanente como o Louvre, pensando em questões voltadas para a história das artes, sobretudo, as visuais. Após esse pequeno trajeto no “mundo dos bancos de dados acadêmicos”, percebi que praticamente ninguém pesquisava sobre esse artista aqui no Brasil, aparecendo os textos citados e outros predominantes em língua inglesa e/ou outras línguas (espanhol, francês, alemão), ou ainda, livros que não eram enviados para o Brasil, circunstância esta que me inquietou profundamente, e, talvez por isso, esteja eu aqui, preenchendo uma lacuna, escrevendo acerca da ausência de produções acadêmicas nacionais sobre o trabalho de Jan Fabre, enquanto disparador para discutir um teatro contaminado pelas várias linguagens artísticas. Nasce então um desejo, talvez brotado pela dificuldade ou porque o que havia lido sobre Jan Fabre foi suficiente para despertar meu interesse em entender melhor o seu trabalho. Procuro por formas alternativas que me façam conseguir ver além do evidente, pois até então só havia lido, e se tratando de um trabalho no/para o teatro, o contato visual se fazia extremamente pertinente para conhecer melhor as suas obras. Mais uma vez a dificuldade se fez presente, e não consegui encontrar vídeos na íntegra de nenhum de seus trabalhos, no entanto, havia disponível no site Youtube, um vídeo de sete minutos, de um trabalho chamado The Power of Theatrical Madness,28 de 1984, apresentado na Bienal de Veneza. O contato com esse vídeo, bastante curto (o espetáculo tem em média 4 horas e meia de duração) reforçou o desejo em pesquisar sobre Fabre, por se 27 Texto completo: < http://www.dbd.pucrio.br/pergamum/tesesabertas/1011800_2012_completo.pdf >. Acesso em 20 de julho de 2016. 28 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=wqV5nrVtEwM >. Acesso em 25 de junho de 2014. http://www.dbd.pucrio.br/pergamum/tesesabertas/1011800_2012_completo.pdf https://www.youtube.com/watch?v=wqV5nrVtEwM 35 mostrar à primeira vista, complexo, bonito e estranho. O vídeo se apresentou como algo que eu não conseguia definir, se era dança, performance, teatro ou instalação (e mesmo entendendo que Fabre é completamente defensor do teatro, percebo que o trabalho dele extrapola tal linguagem). Isso me estimulou a travar uma relação de busca sobre o que era aquilo, e por que um vídeo de 7 minutos havia despertado em mim um encantamento misturado com agonia. Figura 3: “Dança dos Imperadores” em The Power of Theatrical Madness, 1986 29 A foto que já é uma peça de arte da coleção do fotógrafo americano Robert Mapplethorpe, famoso por uma vasta produção de fotos eróticas em preto e branco, registrou o trabalho de Fabre em 1986. Além de gostar muito desse fotógrafo, o registro foi uma das primeiras imagens que fizeram meu interesse aumentar sobre a obra. Não somente pela exposição de dois homens nus dançando, mas por ambos usarem coroas. Seria realmente possível dois imperadores coabitarem o mesmo lugar sem nenhum conflito? Pois acredito que é exatamente nessa ideia de conflito que Fabre gosta de trabalhar. Além disso, a simetria, sempre dois: um imperador em cada extremidade do palco, geograficamente equilibrando o cenário. Ou ainda, os corpos quase padronizados, com seus músculos, cores, alturas e texturas: sempre belos. 29 Disponível em: < https://paddle8.com/work/robert-mapplethorpe/71678-the-power-of-theatrical- madness >. Acesso em 13 de agosto de 2015. 36 Com alguns poucos textos e esse vídeo em especial, começo lentamente a me relacionar com as obras de Jan Fabre, na tentativa de me aproximar de seu trabalho e poder discutir esse teatro, o qual se projeta para além das formas clássicas e ganha novas amplitudes. Desfronteiriza-se da homogeneidade das linguagens artísticas ou da ideia de texto enquanto ponto inicial para construção cênica. 1.2 JAN FABRE Fabre vem escrevendo suas ideias desde 1975, embora elas só tenham sido performadas, de fato, em meados de 80. Seus textos formam uma excepcional coleção de miniaturas, ou blocos, que podem sofrer mudanças durante o processo de criação a partir dos próprios performers ou servir apenas como dispositivos para a criação e nem serem utilizados em cena ao final do processo. Uma boa parte do teatro experimental dos anos 1960 e 1970 já era pós- dramática trinta anos antes mesmo de o termo ser cunhado, partidária de uma rejeição generalizada de textos dramáticos tradicionais e de estruturas narrativas e literárias convencionais em prol do visual e do performativo (CARLSON, 2015, p. 581). Às vezes, o diretor vem com fragmentos de textos para que os artistas possam criar ações (seja texto, imagens, ideia de movimentos), ou ainda, alguns temas (sexualidade, filosofia, moralidade, corpo, etc.), discussões, ou desenhos. Os textos vão sendo criados nesse fluxo, com um estilo de escrita aberto e refletindo o conceito do trabalho de Fabre como uma forma abrangente de arte, em que as funções de diálogo/texto colidem com outros elementos, tais como o visual, a dança, música, ópera, performance e improvisação. Em 1982, o trabalho This is Theatre Like it Was to Be Expected and Foreseen e, dois anos depois, The Power of Theatrical Madness, desafiaram os fundamentos do estabelecido teatroeuropeu. A mistura de caos e disciplina, repetição e loucura, metamorfoses e animais em cena foram alguns dos ingredientes que Fabre utilizou e se fizeram presentes nas obras citadas. 37 Essas obras marcam a entrada do artista no mundo do teatro europeu, como um gladiador armado, para mostrar formas de pensar/fazer teatro, o que o levou nos últimos trinta anos, a produzir um conjunto de trabalhos como artista plástico, diretor de teatro e autor. Produções como: Je suis sang (2001); Tannhäuser (2004); Angel of Death (2003); Quando L’uomo Principale è Una Donna (2004); Orgy of Tolerance (2009); Preparatio Mortis (2007-2010); e Prometheus-Landscape II (2011)30, fizeram Fabre se tornar conhecido internacionalmente. Em 2005, Jan Fabre foi um dos artistas associados ao Festival d’Avignon (França), lá criou “Historie des Larmes”, festival onde ele já havia performado Je suis sang, em 2001 e em 2005. Muitos dos “blocos textuais” de Fabre são escritos na intenção de serem produzidos em palco. No início dos anos 70, Fabre já escrevia para dar forma/vida ao seu intenso mundo imaginativo. Mas, como informei nas datas, esses trabalhos somente se tornaram acessíveis ao público muitos anos depois, quando foram encenadas pelo próprio autor. Muitas obras foram criadas no âmbito dos ensaios e a partir de jogos de improvisação junto aos performers. Em alguns casos, eles são uma combinação dos escritos do autor e scripts improvisados. Vários desses escritos são monólogos, muitas vezes escritos para a performer mais próxima a Fabre, Els Deceukelier, artista aliada ao diretor que assume suas produções como performer, desde 1982. [...] Els Deceukelier apresenta possuir uma fonte de imaginação bastante bizarra e incansável. “Sua imaginação está brincando contigo”, Fabre diz a ela, “mas isso é bom: imaginação, selvagem e irreconhecível”. Mas ele provoca-a quando ela sobe ao palco enquanto uma galinha, portando uma quantidade de plumas indígenas (indian feather): “É por isso que minhas produções sempre falham, é você, com a sua imaginação estranha. [...] Além da imaginação selvagem, capacidade de se readaptar também é um aspecto importante” (VAN DEN DRIES, 2006, p. 106) 31 . Por mais de vinte anos ele tem se envolvido com um núcleo de pessoas relativamente fixo. Elas se tornaram parte do trabalho e estão intrinsecamente ligadas, feito raízes, à sua obra. Por exemplo, Miet Martens, que trabalha com o 30 Disponível em: < http://janfabre.be/troubleyn/en/archive/ >. Acesso em junho de 2015. 31 Versão original: Especially his fetish actress Els Deceukelier turns out to possess a very bizarre and inexhaustible source of imagination. “Your imagination is playing tricks on you,” Fabre tells her, “but that is good: imagination, wild and irreconcilable. But he teases her when she enters the stage as a chick, sporting a pack of Indian feathers: “That is why my productions always fail, it’s you, with your weird imagination.[…] Besides the wild imagination, readability is an important aspect as well. http://janfabre.be/troubleyn/en/archive/ 38 diretor há mais de três décadas e é o braço direito de Fabre nas salas de ensaio: ela auxilia Fabre durante todas as etapas de seu processo de trabalho e contribui com a dramaturgia de algumas obras. E ainda, Renée Copraij, que dançou pela primeira vez em Das Glas Im Kopf Wird Vom Glas (The Danced Sections) (1987) e esteve no palco por onze anos. Começando com Swan Lake (2002), ela se entregou completamente à assistência, dramatizações e coreografia. Heike Langsdorfis, que é um dos vários jovens performers que auxiliaram no processo de trazer o trabalho de Fabre à vida, teve sua primeira dança em Je Suis Sang (2001), bem como Els Deceukelier, que trabalha com Fabre há um longo tempo. Curiosamente, alguns textos foram escritos por Fabre tendo como inspiração a própria Els Deceukelier – integrante do grupo. Suas peças detinham textos que eram produzidos, em treinamento, por cada integrante (e pelo diretor) compondo uma espécie de monólogo pessoal. Dificilmente se encontram diálogos realistas (comunicação, no sentido, pergunta-resposta) ou anedotas tiradas da vida nas obras teatrais de Fabre. As peças escritas são de natureza conceitual e poética e procuram materializar rituais antigos, temas que fascinam o encenador; bem como questões filosóficas que o obcecam. Já no que diz respeito à esmagadora maioria do público, o que ela espera do teatro, grosso modo, é a ilustração de textos clássicos, talvez aceitando ainda uma encenação “moderna”, desde que dotada de fábula compreensível, de um contexto que faça sentido, de uma autenticidade cultural, de sentimentos teatrais tocantes. [...] nas formas de teatro pós- dramáticas de Robert Wilson, Jan Fabre, [...] normalmente encontram pouca compreensão (LEHMANN, 2007, p.22). O trabalho literário de Jan Fabre, ao mesmo tempo, ilustra o que ele pensa sobre o teatro: um trabalho completo de arte, onde é dada a palavra um lugar ponderado, assumindo os mesmos parâmetros funcionais que a dança, a música (a ópera), elementos da performance e a improvisação. A severidade com a qual Fabre se utiliza das palavras como um meio de expressão, o força a colocar seu teatro em um lugar diferente, onde não existem hierarquias entre as formas artísticas. A palavra entra nesse jogo, enquanto 39 experimentação potente para compor suas obras. Como pode ser observado no texto falado pelos artistas na obra The Power of Theatrical Madness (a versão reperformada em 2012), escrito para ser enunciado enquanto os performers dançam ritmicamente à pulsão imagética e simultânea que ocorre no palco, em contraposição a frenética corrida do corpo dos atuantes. Figura 4: O texto em The Power of Theatrical Madness, foto de Wonge Bergmann, 2012 32 A imagem acima ilustra o momento em que o texto Fabriano entra em cena em contraposição às várias coisas que estão acontecendo no palco, assumindo a função quase rítmica ao processo desencadeado no palco, como pode ser lido a seguir: Actor 1: Eighteen hundred seventy-nine. A Doll’s House. Actor 2: Nora oder Ein Puppenheim! Hendrik Ibsen. Actor 5: Ibsen? Eighteen hundred seventy-six, The Pretenders, Saxe- Meiningen Compagnie, Berlin. Actor 4: Mille-huit-cent quatrevingt-treize (1893), Fröken Julie, August Strindberg. Actor 6: Mademoiselle Julie, André Antoine, Théâtre Libre, Paris Actor 3: Théâtre de l’Oeuvre, Paris. Mille-huit-cent quatrevingt-seize (1896)? Actor 8: Achttienhonderdzesennegentig (1896). Actor 6: Ubu. 32 Disponível em: < http://janfabre.be/troubleyn/en/performance/the-power-of-theatrical-madness/ >. Acesso em 13 de agosto de 2015. http://janfabre.be/troubleyn/en/performance/the-power-of-theatrical-madness/ 40 Actor 1: Ubu Roi! Alfred Jarry Actor 7: Eighteen hundred ninety-eight (1898), The Seagull, AntonTchekhov Actor 2: Constantin Stanislavski Actor 5: Stanislavski? Nineteen hundred eleven, Hamlet, Gordon Craig. Actor 3: Neunzehn hundert zwölf (1912)! Actor 4: Nineteen hundred eleven. Art theater, Moscow. Actor 1: Moscow? Maurice. Actor 5: Maeterlinck! Actor 7: Nineteen hundred six, Soeur Beatrice, St. Petersburg. Actor 6: Nineteen hundred nine. Actor 2: Neunzehn hundert neun. Oedipous Rex. Actor 3: Reinhardt, Max! Zircus Schumann, Berlin. Actor 8: Vsevolod Meyerhold, Nineteen hundred twenty-two, Actor’s Theater, Moscow. Actor 6: Le Cocu. Actor 7: Le Cocu? Actor 6: Le Cocu magnifique! Actor 5: La biomécanique! Actor 3: Arnold Schönberg, Erwartung, Prague, neunzehn hundert vierundzwanzig. Actor 8: Der Verfremdungseffekt! Neunzehn hundert achtundzwanzig (1928), Bertolt Brecht. Actor 5: The Beggar's Opera? Actor 1: Die Dreigroschenoper! Actor 6:
Compartilhar