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“É O SONHO DA GENTE INDO EMBORA!”: RELAÇÕES TERRITORIAIS E A REIVINDICAÇÃO EXISTENCIAL DA COMUNIDADE QUILOMBOLA LAGOAS-PI (2005-2014) EMANOEL JARDEL ALVES OLIVEIRA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA: LINGUAGUENS, IDENTIDADES E ESPACIALIDADES “É O SONHO DA GENTE INDO EMBORA!”: RELAÇÕES TERRITORIAIS E A REIVINDICAÇÃO EXISTENCIAL DA COMUNIDADE QUILOMBOLA LAGOAS- PI (2005-2014) EMANOEL JARDEL ALVES OLIVEIRA NATAL/RN 2020 EMANOEL JARDEL ALVES OLIVEIRA “É O SONHO DA GENTE INDO EMBORA!”: RELAÇÕES TERRITORIAIS E A REIVINDICAÇÃO EXISTENCIAL DA COMUNIDADE QUILOMBOLA LAGOAS- PI (2005-2014) Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História no Programa de Pós-Graduação em História; Área de Concentração em História e Espaços; Linha de Pesquisa: Linguagens, Identidades e Espacialidades; Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Magno Francisco de Jesus Santos. NATAL/RN 2020 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Oliveira, Emanoel Jardel Alves. "É o sonho da gente indo embora!": relações territoriais e a reivindicação existencial da comunidade quilombola Lagoas-PI (2005-2014) / Emanoel Jardel Alves Oliveira. - Natal, 2020. 128f.: il. Color. Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020. Orientador: Prof. Dr. Magno Francisco de Jesus Santos. 1. Quilombo Lagoas-PI - Dissertação. 2. Territorialização - Dissertação. 3. Reivindicação Existencial - Dissertação. I. Santos, Magno Francisco de Jesus. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(=414)(812.2) Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 EMANOEL JARDEL ALVES OLIVEIRA “É O SONHO DA GENTE INDO EMBORA!”: RELAÇÕES TERRITORIAIS E A REIVINDICAÇÃO EXISTENCIAL DA COMUNIDADE QUILOMBOLA LAGOAS- PI (2005-2014) Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós- Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores: _______________________________________________________ Prof. Dr. Magno Francisco de Jesus Santos – UFRN (Orientador) _______________________________________________________ Prof. Dr. Renato Amado Peixoto – UFRN (Avaliador Interno) _______________________________________________________ Profa. Dra. Martha Campos Abreu – UFF (Avaliadora Externa) NATAL, 03 DE SETEMBRO DE 2020 DEDICATÓRIA Aos quilombolas da comunidade Lagoas, que sonham, lutam e reivindicam o direito à vida. AGRADECIMENTOS Às pessoas comuns que sobrevivem ao agora Embora uma vida resumida em vinte e cinco anos não seja tão longa, muitas foram as pessoas que caminharam comigo até aqui. Primeiramente, agradeço a minha família – minha mãe (Eliete Alves Oliveira), minha avó (Heloísa Alves Oliveira), meu pai (José Antônio de Moura) e minhas tias (Hilia Maria Ferreira e Eleniza Alves Martins Costa) – que me criaram e se fizeram de ponte, entre mim e a educação, para que eu conseguisse alcançar alguns sonhos. Estendo também os meus agradecimentos a minha madrinha (Maria Alina dos Santos) e aos meus irmãos (Maria Ingrid de Oliveira Moura e José Antônio de Moura Jr.), que acompanham de perto as minhas lutas e são essenciais em minha vida. Saibam que todos os meus esforços são para além de uma realização pessoal. Apesar do mestrado ter um tempo curto de curso, algumas pessoas caminharam e marcaram a minha vida ao longo dos últimos três anos. Nesse sentido, agradeço ao meu antigo orientador e amigo, Mairton Celestino da Silva, por me estimular a fazer o mestrado e viabilizar alguns contatos e fontes. A minha trajetória acadêmica é marcada, em grande medida, pela sua generosidade e paixão pela história. Agradeço também ao meu cunhado, Douglas Rafael, que me recebeu em seu apartamento durante todo o período de seleção do mestrado. O seu apoio foi essencial durante esse período. Da mesma forma, sou grato a todos os meus amigos do mestrado, em especial a: Camila Rafaela, Danielle Neves, Eudymara Queiroz, Flademir Dantas, Hugo Barbalho, João Guilherme, Juscelino Barros, Kallyne Araújo, Mirthis Costa, Luana Azevedo, Luana Ramalho, Patrícia Azevedo, Pedro Dantas, Ristephany Kelly, Rodrigo Guerra, Tarcísio Bezerra e Victor Costa; pelos diversos momentos em que estivemos juntos. Grande sorte, a minha, em ter conhecido todos vocês! Além dos amigos potiguares, tive o privilégio em compartilhar momentos felizes com pessoas que já eram familiares. Agradeço aos amigos, George Costa e Tamires Duarte, com quem vivenciei dias incríveis. Da mesma forma, sou grato a Paulo Lúcio e Douglas Dantas, que trouxeram muitas alegrias durante algumas semanas em Natal-RN. Em especial, agradeço a Emanuel Batista, que compartilhou comigo, além das despesas de uma casa, todo um ano marcado pelo consumo de artes e culturas: textos, músicas, filmes e séries; regados pela leveza que um semblante conhecido poderia trazer. A presença de vocês foi revigorante durante o mestrado, obrigado! Além desses nomes, quero agradeço, de modo geral, a todos os profissionais da Pós- Graduação em História e Espaços da UFRN. Em especial, ao meu orientador, Magno Francisco de Jesus Santos, que sempre foi prestativo, atencioso e profissional. Caminhar com vocês durante esse percurso foi uma experiência gratificante, daquelas que são levadas para o resto da vida. Por fim, e não menos importante, minha gratidão se estende a CAPES pelo incentivo e investimento na pesquisa, sobretudo por viabilizar a minha permanência em Natal-RN e possibilitar a minha qualificação enquanto profissional da área de História. Fogo!... Queimaram Palmares, Nasceu Canudos. Fogo!...Queimaram Canudos, Nasceu Caldeirões. Fogo!...Queimaram Caldeirões, Nasceu Pau de Colher. Fogo!...Queimaram Pau de Colher... E nasceram, e nascerão tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando. Porque mesmo que queimem a escrita, Não queimarão a oralidade. Mesmo que queimem os símbolos, Não queimarão os significados. Mesmo queimando o nosso povo, Não queimarão a ancestralidade. Nêgo Bispo RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar a historicidade da organização e territorialização da comunidade quilombola Lagoas-PI, assim como evidenciar a reivindicação existencial dos lagoanos frente à luta pela titulação das suas terras, que ocorreram durante os anos de 2005 à 2014. Nesse sentido, partimos da ressemantização do conceito de quilombo, enquanto categoria analítica, para compreender como os lagoanos se apropriaram dos seus direitos constitucionais, se organizaram, realizaram a territorialização de suas terras e reivindicaram a sua existência. Dessa maneira, esta pesquisa tem como mote apresentar as mobilizações dos representantes das cento e dezenove (119) localidades, que são situadas em seis (06) municípios no sudeste do estado, para construirum território quilombola. Quer dizer, tenciona abordar, a partir da iniciativa organizacional desses sujeitos e dos convênios estabelecidos com algumas entidades, a respeito da territorialização e materialização da comunidade quilombola Lagoas, compreendendo as suas ações como contra colonizadoras e descoloniais. Além disso, pretende discutir acerca dos conflitos territoriais que ameaçaram a sua existência, destacando a luta por políticas públicas em razão do racismo ambiental sofrido pela comunidade. Palavras-chave: Quilombo Lagoas-PI; Territorialização; Reivindicação Existencial. ABSTRACT The present work aims to analyze the historicity of the organization and territorialization of the Lagoas-PI quilombola community, as well as to highlight the existential claim of the Lagoans regarding the struggle for the title of their lands, which occurred during the years 2005 to 2014. In this sense, we started from the re-semantics of the concept of quilombo, as an analytical category, to understand how the lagoons appropriated their constitutional rights, organized themselves, carried out the territorialization of their lands and claimed their existence. Thus, this research aims to present the mobilizations of representatives from one hundred and nineteen (119) locations, which are located in six (06) municipalities in the southeast of the state, to build quilombola territory. That is to say, it intends to approach, based on the organizational initiative of these subjects and the agreements established with some entities, regarding the territorialization and materialization of the Lagoas quilombola community, understanding their actions as against colonizers and decolonials. In addition, it intends to discuss the territorial conflicts that threatened its existence, highlighting the struggle for public policies due to the environmental racism suffered by the communit Keywords: Quilombo Lagoas-PI; Territorialization; Existential Claim. LISTA DE SIGLAS FCP – Fundação Cultural Palmares...........................................................................................18 INCRA – O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ..........................................18 CONAQ – Coordenação Nacional de Quilombos......................................................................24 SEPPIR – Promoção da Igualdade Racial.................................................................................24 ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.......................................................44 ABA – Associação Brasileira de Antropologia..........................................................................44 OIT – Organização Internacional do Trabalho...........................................................................45 CECOQ – Coordenação Estadual das Comunidades Negras Rurais Quilombolas ....................48 INTERPI – Instituto de Terras do Piauí.....................................................................................52 PDHC – Projeto Dom Helder Câmara.......................................................................................56 LISTA DE IMAGENS Imagem 1 – Audiência pública realizada no dia 27 de maio de 2007, na câmara municipal de São Raimundo Nonato-PI..........................................................................................................70 Imagem 2 – Reuniões de definição e aprovação dos limites do território pleiteado e identificado pelas famílias do quilombo Lagoas............................................................................................76 Imagem 3 – Levantamento dos marcos geodésicos limitantes da Datas de Sesmarias para reconstituição da malha fundiária do Território do quilombola de Lagoas.................................78 Imagem 4 – Cadastramento das famílias remanescentes do quilombo Lagoas, usando-se formulários específicos do INCRA............................................................................................80 MAPAS Mapa 1 – Localização do território Quilombola Lagoas no estado do Piauí. Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas....................................................................................................................... ................17 Mapa 2 – Mapa do Território pleiteado pelas famílias remanescentes quilombolas de Lagoas................................................................................................................................83 Mapa 3 – Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil................................................................................................................................101 Mapa 4 – Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Piauí..................................................................................................................................105 SUMÁRIO O DEVIR QUILOMBOLA, uma introdução......................................................................... 15 CAPÍTULO I – “NÓS SÓ O FIZEMOS PORQUE SOMOS CAPAZES”: A COMUNIDADE LAGOAS E A APROPRIAÇÃO DOS DIREITOS QUILOMBOLAS.........34 1.1 De organização criminosa à organização de direito: a historicidade do conceito de quilombo ...................................................................................................................................36 1.2 Fundamentação constitucional: direitos étnico-raciais e territoriais da comunidade quilombola Lagoas ...................................................................................................................48 1.3. Relações de convênio: Projeto Dom Helder Câmara e a Cáritas Brasileira .......................55 CAPÍTULO II – OS CONTRA COLONIZADORES E A TERRITORIALIZAÇÃO DO QUILOMBO LAGOAS..........................................................................................................58 2.1. A contra colonização sob uma perspectiva descolonial .................................................63 2.2 O conhecimento e produção: a territorialização do quilombo Lagoas.............................69 2.3 A materialização do quilombo Lagoas: mapas, gráfico e tabelas ...................................82 CAPÍTULO III – A REIVINDICAÇÃO EXISTENCIAL DA COMUNIDADE QUILOMBOLA LAGOAS ....................................................................................................91 3.1 Conflitos quilombolas: do racismo institucional ao ambiental...........................................92 3.2 O mapa dos conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil: um olhar voltado para as comunidades quilombolas ................................................................................99 3.3 “Um grito no semiárido”: a crise existencial da comunidade quilombola Lagoas...........105 O PERIGO DE UMA ÚNICA NARRATIVA, considerações finais ...................................113 REFERÊNCIAS....................................................................................................................118 15 O DEVIR QUILOMBOLA, uma introdução Somos reconhecidos como comunidade quilombola, mas título que é bom, não temos. De repente a gente vê essas terras sendo invadidas por grandes empresas, que a gente não sabe da onde vem… E olha só como essas terras estão! Isso é um pedaço da gente, um pedaço da comunidade. É o sonho da gente indo embora!1 Nailde Marques, Quilombo Lagoas 1 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde noBrasil. 22 de dezembro de 2009. Disponível em: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do- piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas- caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e. Acessado em: 22 de maio de 2020. http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e 16 Devir. Quilombo. Sonho. Se você fizer uma rápida pesquisa no Google sobre os conceitos destas palavras, irá encontrar alguns significados que nos permitem estabelecer relações entre estes termos. Por exemplo, ao buscarmos compressões significativas a respeito de “devir”, encontraremos nos primeiros resultados expressões voltadas para um “processo de mudanças efetivas pelas quais todo ser passa”, “movimento permanente que atua como regra, sendo capaz de criar, transformar e modificar tudo o que existe”, ou algo que “passa a ser, fazer e existir”; em relação ao termo “quilombo”, com dois cliques podemos ter acesso aos significados “lugar secreto em que ficavam ou para onde iam os escravos fugidos”, “comunidade de resistência negra na época escravista” e “comunidades negras contemporâneas”; já sobre a palavra “sonho”, a nossa navegação levará a definições como “ação de reunir pensamentos”, “anseio permanente” ou “ideia que uma pessoa ou grupo almeja com veemência”. Ao sintetizar os significados, podemos obter alguns resultados relativos às realidades das comunidades quilombolas contemporâneas no Brasil. Um destes, pelo menos o mais interessante para mim, é: “processo de mudanças efetivas que as comunidades negras contemporâneas idealizam com veemência”; pois consegue reunir elementos-chave que definem as situações dos quilombolas no país. Nesse sentido, o devir quilombola pode ser compreendido, como exemplo, a partir das mudanças constitucionais que foram realizadas, ao longo dos anos, através das reivindicações dos quilombolas, assim como também por meio dos sonhos existentes que são expressados nos anseios de diversas “Naildes”, em todo o território brasileiro. No entanto, embora a sintetize dos conceitos desses termos nos remeta à ideia de um “caminho quilombola promissor”, é importante pensarmos que, muitas vezes, o devir quilombola encontra-se rodeado pela não titulação e invasão das terras quilombolas, isto é, pela frustração dos sonhos de inúmeras comunidades frente aos seus direitos constitucionais. Na epígrafe introdutória, a quilombola Nailde Marques manifesta uma fala que representa o desconforto da comunidade Lagoas em relação aos descasos do Estado, pois são inseridos num campo de disputas territoriais que os lagoanos se encontram.2 Localizado no território da Serra da Capivara,3 o quilombo Lagoas faz parte de seis (06) municípios do sudeste 2 Ressalta-se que os termos utilizados: lagoanos, quilombo Lagoas; território lagoano e comunidade quilombola Lagoas são variáveis da noção de “comunidades remanescente quilombola Lagoas”. Além disso, a comunidade recebe esse nome por possuir muitas localidades, em seu território, com o nome “Lagoas”, a exemplo de “Lagoa das Emas e Lagoa das Pedras”. 3 Um do 11 territórios do Piauí: sendo estes: Carnaubais – PI, Chapada das Mangabeiras – PI, Cocais – PI; Entre Rios – PI, Planície Litorânea – PI, Serra Da Capivara – PI, Tabuleiros Do Alto Parnaíba – PI, Vale do Canindé – PI, Vale Do Guaribas – PI, Vale do Sambito – PI e Vale dos Rios Piauí e Itaueira – PI. 17 piauiense – São Raimundo Nonato, Fartura, Várzea Branca, Dirceu Arcoverde, São Lourenço e Bonfim –, no qual é constituído por cento e dezenove (119) localidades, possuindo aproximadamente mil e quinhentas (1.500) famílias,4 caracterizando-se assim como o maior território quilombola do país em núcleos familiares. Mapa 1: Localização do território Quilombola Lagoas no estado do Piauí. Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. A região localizada no mapa 1, corresponde ao atual território da comunidade quilombola Lagoas, cujo está inserido no semiárido e na caatinga do estado do Piauí, que por sua vez é marcado pela escassez de chuvas, assim como também por altas temperaturas. De acordo com a antropóloga Ana Tereza Faria, “[...] a distribuição espacial das várias comunidades do quilombo se deu preferencialmente em torno de pequenas aguadas, que são áreas baixas formadas naturalmente ou aprofundadas por escavação”,5 cujo costumam acumular água durante o período chuvoso. Nesse sentido, podemos compreender que as pequenas lagoas 4 É registrado no relatório técnico a existência de mais de 1.490 famílias nesse território. 5 FARIA, Ana Tereza Dutra Pena de. Comunidade quilombola Lagoas. - Belo Horizonte: FAFICH, 2016. p. 05. 18 foram fontes importantes para o estabelecimento e permanência das comunidades negras e dos seus animais na região. Inclusive, a “[...] rica nomeação local das comunidades enfatiza a centralidade dessas fontes de água, e também inclui nomes de animais e outras características da paisagem”,6 isto é, a partir da nomeação das localidades podemos perceber algumas particularidades do território lagoano. Lagoa Grande, Lagoa do Calango, Lagoa dos Bois, Lagoa de São Victor, Lagoa de Dentro, Lagoa dos Canudos, Lagoa da Gameleira, Lagoa do Angico, Lagoa do Serrote, Lagoa do Umbuzeiro, Lagoa dos Queixadas, Lagoa da Gameleira, Lagoa do Travessão, Lagoa dos Meninos, Lagoa do Mulungu, Lagoa do Cipó, Lagoa do Mocó, Lagoa da Pedra, Lagoa do Jacaré, Lagoa do Riacho, Lagoa dos Currais, Lagoa dos Prazeres, Lagoa Rasa, Lagoa das Caraíbas, Lagoa das Cascas, Lagoa da Vaca, Lagoa dos Tobões, Lagoa do Amaro, Lagoa do Capim, Lagoa dos Porcos, Lagoa do Pompilho, Lagoa da Gangorra, Lagoa da Taboa, Lagoa dos Torrões, Lagoa do Germano, Lagoa das Emas, Lagoa do Encanto, Lagoa do Mel, Lagoa dos Martins, Lagoa dos Moisés, Lagoa das Pombas, Lagoas, Lagoa dos Soares, Lagoa dos Raimundos, Lagoa do Peixe, Lagoa Ruim, Lagoa do Gato, Lagoa do Calixto, Lagoa do Gado Corredor, Lagoa das Caraíbas (Lindjonson), Lagoa Nova, Lagoa do Boi, Lagoa das Flores, Lagoa da Firmeza, Lagoa do Cansanção, Lagoa da Onça, Lagoa dos Torrões, Lagoa do Preá [...].7 As quase sessenta (60) localidades que possuem o nome “Lagoa”, além das demais existentes, situam-se na microrregião de São Raimundo Nonato, a 600 km de distância de Teresina-PI, capital do estado. A formação da comunidade Lagoas, ocorreu a partir da autodeclaração enquanto “comunidade remanescente de quilombo”, cujo a comunidade foi certificada, em 2008, pela Fundação Cultural Palmares (FCP), tornando-se registrada no Livro de Cadastro Geral. No entanto, ressalta-se que a comunidade ainda não recebeu a titulação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Desse modo, em consequência da não titulação, os lagoanos vem enfrentando,8 ao longo desses anos, injustiças ambientais e ameaças de invasão de algumas empresas mineradoras e carvoeiras na região de São Raimundo Nonato.9 Os impasses enfrentados pela comunidade Lagoas, estão relacionadosdiretamente com as discussões acerca da territorialização da comunidade.10 Sendo assim, três questões centrais nos chamam atenção: (1) Como ocorreu o processo de organização da comunidade 6 FARIA, Ana Tereza Dutra Pena de. Comunidade quilombola Lagoas. - Belo Horizonte: FAFICH, 2016. p. 06. 7 Idem, p. 07. 8 Os “lagoanos”, foi a expressão utilizada pela antropóloga Simone Matos, para se referias ao conjunto de moradores do quilombo Lagoas. Consultar: MATOS, Simone de Oliveira. Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia. (Dissertação em Antropologia). Teresina (PI), agosto de 2013. 9 MATOS, Simone de Oliveira. Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia, 2013. 10 MORAES, M. D. C. Espaço, territórios e redes: polissemia e variantes conceituais In: Memórias de um sertão desencantado (modernização agrícola, narrativas e atores sociais nos cerrados do sudoeste piauiense); Tese de Doutorado- UNICAMP; SP, 2000, pp. 134-151. 19 quilombola Lagoas? (2) De que modo a territorialização e a produção do relatório técnico representam uma forma de materialização da comunidade? (3) Quais são os problemas enfrentados pelos lagoanos e como podem comprometer a existência da comunidade? Para responder tais questões, analisaremos o respectivo conjunto de fontes: O “Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas”,11 as entrevistas realizadas na comunidade, pela antropóloga Simone Matos, e o Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no brasil,12 a fim de apresentar evidências relacionadas às estratégias utilizadas pelos lagoanos durante os processos de organização e territorialização da comunidade, assim como discutir a respeito da reinvindicação existencial dos lagoanos, que ocorreram entre os anos de 2005-2014. Portanto, o que me interessa aqui é entender como a comunidade quilombola Lagoas passou, primeiramente, a ser construída a partir de sua organização e, em seguida, através da sua territorialização. Além disso, procuro destacar as reinvindicações existenciais dos lagoanos, com a finalidade de discutir a respeito da relação entre o Estado e o neoliberalismo, sobretudo, pensar como essa ligação afetou a comunidade Lagoas durante o período pesquisado. Em outras palavras, este trabalho objetiva compreender como as ações dos lagoanos se configuraram enquanto atos contra colonizadores frente ao racismo ambiental sofrido pela comunidade. No entanto, considerando tudo o que foi dito, é importante confessar que até a minha chegada nesse objeto de estudo alguns caminhos foram percorridos. A minha inserção inicial, no complexo das discussões dessa área, se deu através do interesse particular em discutir a respeito de como as comunidades quilombolas contemporâneas construíam a sua identidade a partir das relações entre memória e território. No início da segunda metade de 2017, após a defesa do meu trabalho monográfico,13 surgiu a oportunidade de debater com a turma de Licenciatura em Educação do Campo, da Universidade Federal do Piauí (UFPI/CSHNB),14 a respeito do tema “Currículo como narrativa étnico-racial”, 11 Relatório Técnico resultante de atividades realizadas no exercício de junho 2009 a julho de 2010, na comunidade quilombola de Lagoas apresentado por equipe interinstitucional (INCRA, INTERPI), com vistas à instrução do Processo/SR (24) INCRA/PI/Nº 54380.002161/2008-03. 12 Disponível em: <http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-agricultores-familiares-e-comunidades- quilombolas-de-sao-raimundo-nonato-lutam-contra-instalacao-de-empresas-de-mineracao-e-carvoarias-em-seu- territorio>. 13 OLIVEIRA, Emanoel Jardel Alves. Quilombo Amarra Negro: história, aspectos culturais e a publicização de uma memória, 2006- 2015. 2017. 78 f. Monografia (Licenciatura em História) – Universidade Federal do Piauí, Picos, 2017. 14 Na ocasião, fui convidado por alguns discentes para debater sobre os termos “raça e etnia” na turma do curso de Licenciatura em Educação do Campo – Ciências da Natureza. http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-agricultores-familiares-e-comunidades-quilombolas-de-sao-raimundo-nonato-lutam-contra-instalacao-de-empresas-de-mineracao-e-carvoarias-em-seu-territorio http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-agricultores-familiares-e-comunidades-quilombolas-de-sao-raimundo-nonato-lutam-contra-instalacao-de-empresas-de-mineracao-e-carvoarias-em-seu-territorio http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-agricultores-familiares-e-comunidades-quilombolas-de-sao-raimundo-nonato-lutam-contra-instalacao-de-empresas-de-mineracao-e-carvoarias-em-seu-territorio 20 no qual, nesta feita, me detive a abordar sobre as noções conceituais de raça e etnia,15 focando o debate na dimensão histórica dos campos semânticos de ambas as noções. Foram os contatos acadêmicos que me proporcionaram outras oportunidades referentes a debater temas como: “Educação e Diversidade”16 e “Raça, Gênero e Etnia”.17 Discutir essas temáticas, no que tange os quilombolas, me possibilitou viajar para algumas cidades do sudeste e centro-norte do Piauí, através da rede solidária Cáritas Brasileira,18 no qual participei como palestrante de algumas oficinas e mesas redondas. Nessas ocasiões, a finalidade era dialogar, juntamente com educadores, lideranças de movimentos sociais e outros profissionais, de modo que pudéssemos refletir sobre esses temas, aplicando-os em questões contextuais das escolas municipais do semiárido piauiense.19 Em uma dessas circunstâncias, tive o privilégio de compor uma mesa redonda juntamente com Maria Rosalina dos Santos,20 na Secretaria Municipal de Educação de Paulistana-PI. Na ocasião, a representante do movimento quilombola do Piauí iniciou seu pronunciamento saudando as figuras históricas de Zumbi dos Palmares, Dandara dos Palmares e Esperança Garcia,21 ressaltando a força dos negros no Brasil e a importância do diálogo entre os diversos setores públicos com os movimentos sociais negros, pois, de acordo com a mesma, por muito tempo foram negados não somente os direitos constitucionais, mas também os de se pronunciarem em ambientes educacionais e acadêmicos. Na continuidade de sua expressão, a militante ressaltou que “iria falar tudo o que tinha a dizer, pois carregava consigo a voz de mais 15 MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação. 05, nov., 2003. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca racismo-dentidade-e-etnia.pdf> Acesso em: 10 jan. 2018. 16 Participei como palestrante no projeto “Educação e Diversidade”, promovido pela Escola Municipal Liberato Vieira, na cidade de Ipiranga-PI entre os dias 17 de outubro e 29 de novembro de 2017. Nesta feita, tratei sobre o racismo na escola e a importância do dia da Consciência Negra. 17 Integrei uma mesa redonda na “Ecoescola Thomas A. Kempis”, no dia 13 de Dezembro de 2017, na cidade de Pedro II-PI. Nessa abordagem, discuti sobre a raciologia no Brasil e a herança afro-brasileira. 18 Nacionalmente, a Cáritas é um organismo da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), atuando em mais de 400 municípios em toda a nação, no fomento às iniciativas de Economia Solidária, Segurança Alimentar e Nutricional, Fundos solidários envolvendo jovens, mulheres, catadores(as) de materiais recicláveis, pequenos(as) agricultores(as), acampados(as) e assentados(as) de reforma agrária, ribeirinhos, quilombolas e indígenas. 19 O semiárido brasileiro é uma região definida na lei federal nº 7.872 de 27de setembro de 1989, estando presente na região nordeste e sudeste, associado ao importante bioma da caatinga. No Piauí, fez-se em 2003 uma atualização dos dados relativos aos munícipios que compõe esse ambiente que atualmente, totalizando 148 municípios, abrangendo uma área de 156.241,25 Km², o que corresponde a cerca de 62,00% do estado do Piauí. LIMA, I. M. M.F.; ABREU, I. G.; LIMA, M. G. Semi-árido Piauiense: Delimitação e Regionalização. Carta CEPRO, Teresina (PI), v. 18, p.162-183, 2000. Disponível em: <http://files.iracildefelima.webnode.com/200000035- 72dff73d90/Defini%C3%A7%C3%A3o%20atual_%20Amb.%20Semi-%C3%A1rido_2004.pdf> Acessado em: 15 jan. 2019. 20 Coordenadora Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí – CECQPI –, líder sindical, trabalhadora rural e líder quilombola da comunidade Tapuio em Queimada Nova – PI. 21 Sujeitos considerados referências históricas para o movimento negro no Brasil e no Piauí. https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca%20racismo-dentidade-e-etnia.pdf https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca%20racismo-dentidade-e-etnia.pdf http://files.iracildefelima.webnode.com/200000035-72dff73d90/Defini%C3%A7%C3%A3o%20atual_%20Amb.%20Semi-%C3%A1rido_2004.pdf http://files.iracildefelima.webnode.com/200000035-72dff73d90/Defini%C3%A7%C3%A3o%20atual_%20Amb.%20Semi-%C3%A1rido_2004.pdf 21 de quinhentos anos de silêncio”.22 Além disso, fez críticas ao sistema educacional por não cumprir propriamente as prescrições da Lei 10.639/2003.23 O pronunciamento de Rosalina dos Santos, nesse contexto, soou semelhante a alguns discursos que eu já havia escutado, no qual me fez recordar a minha rápida passagem, enquanto representante cultural no Centro Acadêmico de História – CAHIS Ozildo Albano –, cujo participei da gestão “Ubuntu:24 entrar, permanecer e enegrecer”.25 O insight, naquele momento, se deu em decorrência da nossa gestão ser composta por vários(as) negros(as), que eram ligados(as) a entidades estudantis e colocavam a questão do racismo no Brasil como pauta importante, sobretudo para pensarmos esse problema dentro das Universidades Públicas. Em algumas reuniões do Centro Acadêmico, das assembleias grevistas e durante a ocupação estudantil no campus de Picos-PI em 2016,26 estivemos pautando a importância de se pronunciar em relação aos temas que estavam sendo discutidos, considerando os longos anos de opressão que os negros sofreram no Brasil, não somente pela falta de direitos constitucionais, mas também pelo silenciamento que pode ser compreendido como um desdobramento da falta de visibilidade desses sujeitos, seja na historiografia, política, universidades, entre outros espaços que refletem as consequências do colonialismo no Brasil.27 Nessas duas experiências, podemos observar que existe pelo menos um ponto em comum, entre os sujeitos mencionados, que foi o destaque dado a importância da inserção e participação dos negros(as) nos diversos espaços possíveis, que por diversas vezes podem ser legitimados através do direito de estarem inseridos e se pronunciarem diante qualquer situação adequada. Desse modo, entendemos que a visibilidade e a participação desses sujeitos na contemporaneidade, se apresenta, neste trabalho, como um ponto importante, principalmente nesse momento em que o devir-negro se estabelece no mundo.28 Nesse sentido, considerando 22 Expressão utilizada para significar todo o silenciamento dos negros e negras na História do Brasil. 23 Lei que implementa Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, sancionada no dia 09 de janeiro de 2003. 24 Ubuntu é uma antiga palavra africana e tem origem na língua Zulu (pertencente ao grupo linguístico bantu) e significa que “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas. 25 Gestão do Centro acadêmico de História UFPI – Picos, entre 2015 a 2016. 26 Momento em que no Brasil se discutia sobre a PEC 241, que previa o congelamento dos investimentos públicos durante 20 anos. 27 “O colonialismo, para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade.” – Nota de definição contida no prefácio do livro “Epistemologias do Sul”. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs,) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. 28 Considerado como um preciso momento em que a história e as coisas se voltam para a questões pertinentes aos negros e negras, e em que a Europa deixou de ser o centro de gravidade do mundo. Além disso, o devir negro representa a institucionalização do termo negro enquanto padrão de vida. Sobre a noção de devir-negro: MBEMBE, Achille. A crítica da razão negra, Lisboa: Editora Antígona, 2014. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011. 22 esse valioso período em que a história tem-se voltado para a subalternidade, no qual, consequentemente, inúmeros teóricos tem discutido sobre os perigos de uma história única aos moldes eurocêntricos,29 consideramos importante refletir a respeito das consequências do poder e do saber colonialista na contemporaneidade, assim como da necessidade dos negros produzirem, demarcarem e simbolizarem novos espaços. Diante desse precioso momento, algumas instituições, revistas eletrônicas, reportagens e entre outros meios de comunicação em todo o Brasil estiveram dispostos a discutir sobre os problemas que envolvem o racismo, a falta de políticas públicas para negros(as), a demarcação das terras quilombolas, entre outros temas que atravessam o cotidiano dos(as) negros(as) no nosso país.30 Todavia, cabe ressaltar que a visibilidade tida atualmente passou por um processo de conquista, principalmente quando tratamos das comunidades negras rurais, que por várias décadas no Brasil careceram de estudos em decorrência da supervalorização, nas ciências sociais, da realização de pesquisas sobre os povos negros no contexto urbano. Nessa perspectiva, Carlos Santos (2015) coloca que a superestimação dos pesquisadores ocorreu porque os “[...] grupos negros urbanos, destacaram traços culturais de origem africana, os quais seriam indicativos de uma etnicidade”,31 isto é, as marcas indentitárias,32 eram mais perceptíveis em grupos negros urbanos, estabelecendo assim um contraste com os povos negros do espaço rural, sendo este o principal aspecto que motivou os principais estudos acadêmicos sobre os negros nos centros urbanos. 29 QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas, Buenos Aires. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005. MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Colección Razón politica, Ediciones del Signo, 2010. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. TORRES, Maldonado Nelson. Pensamento crítico desde a subalternidade: os estudos étnicos como ciências descoloniais ou para a transformação das humanidades e das ciências sociais no século XXI. Afro- Ásia, v.34, pp.105-129, 2006. GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, Março 2008: pp.115-147.30 “O racismo e suas faces”, 2018 – UESB; “Discutindo o racismo no Brasil”, 2018 – Unimax Planck; e “Contra o racismo religioso”, 2017 – PUC-RJ. “Políticas públicas para negros”, 2016 – Artigo da Dra. Marcilene Garcia – UNESP – para a “Revista Raça”. “Povos quilombolas querem ocupar espaços na academia”, 2018 – UFMG – Reportagem. “Especial Quilombolas – Novas Lutas: os desafios de quilombolas no Ensino Superior”, 2018 – UFPA. “Quilombo: uma civilização contracolonialista, 2018 – UFPI. “UESPI negra – Quilombo, Território e Identidade”, 2018 – UESPI. 31 SANTOS, Carlos Alexandre B. As comunidades negras rurais nas ciências sociais no Brasil: de Nina Rodrigues à era dos programas de pós-graduação em antropologia. Anuário Antropológico/2014, Brasília, UnB, v. 40, n. 1: 2015, p. 75. Disponível em: < http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas%202014_I/Ascomunidadesnegrasruraisnasc ienciassociaisnoBrasil.pdf> Acessado em: 20 fev. 2018. 32 BARTH, Fredrik. Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference. London: George e Allen & Unwin, 1969. http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas%202014_I/AscomunidadesnegrasruraisnascienciassociaisnoBrasil.pdf http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas%202014_I/AscomunidadesnegrasruraisnascienciassociaisnoBrasil.pdf 23 Nesse mesmo seguimento, Lourdes Bandeira (1988) afirma que alguns estudiosos da temática, como Roger Bastide e Florestan Fernandes,33 corroboraram com essa perspectiva ao defenderem que “[...] as condições de vida do negro em situação rural eram culturalmente desagregadoras, pois dificultavam a persistência de cultos, ritos, tradições e deixavam-lhes poucas ocasiões e espaços de interação entre si”,34 ou seja, esses sociólogos fomentavam a ideia de que as vivências na zona urbana proporcionaram condições melhores para a persistência de traços culturais africanos, cujo, consequentemente, essas circunstâncias contribuíram para a focalização desses estudos nas camadas urbanas constituídas por negros, entre o final do século XIX até a segunda metade do século XX.35 Embora esse contexto não fosse tão receptivo para o desenvolvimento de pesquisas sobre as comunidades negras rurais, o historiador Adelmir Fiabani coloca que no início do século XX algumas considerações começaram a serem tecidas a respeito desses sujeitos.36 Inicialmente, em “A classe Operária” (1929),37 o quilombo era compreendido como fenômeno de resistência cultural africana, sendo relacionado, por Astrogildo Pereira, a um espaço ou movimento que representava a luta de classes. Ainda nessa perspectiva, Adelmir Fiabani (2008) afirma que entre as décadas de 1950 a 1980 “[...] acentuara-se as análises sobre o quilombo pelo viés marxista, que viam o quilombo, essencialmente, como forma de luta entre escravizadores e escravizados”.38 No entremeio desses anos, Décio Freitas, em 1971, publicou o livro intitulado de “Palmares: La guerrilha negra”,39 definindo o quilombo como uma expressão da luta de classes, sendo bem repercutida entre o movimento negro que naquele momento se reorganizava.40 Ainda na década de 1970, os militantes do movimento negro de Porto Alegre criaram o Movimento Negro Unificado em São Paulo, com a finalidade de combater a discriminação racial.41 O conjunto de grupos e movimentos sociais que começaram a se organizar a partir de 33 BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. 2. ed. São Paulo: Nacional. 1959. 34 BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território negro em espaço branco: estudos antropológicos de Vila Bela. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 21. 35 Ibid., p. 21. 36 FIABANI, Adelmir. Os novos quilombos: luta pela terra e afirmação étnica no Brasil (1988-2008), 2008. FIABANI, Adelmir. Comunidades Negras do Brasil: história, organização e luta pela titulação das terras. In: PINHEIRO, Áurea da Paz; FALCI, Miridan Britto; LIMA, Solimar Oliveira. (Org.) Patrimônio e Cultura Negra. Parnaíba, 2014. 37 Publicado no Jornal do Partido Comunista Brasileiro, que era órgão oficial de comunicação desse partido. 38 FIABANI, Adelmir. Os novos quilombos: luta pela terra e afirmação étnica no Brasil (1988-2008), 2008. p. 28. 39 Durante o exílio no Uruguai, Décio Freitas, em 1973, de retorno ao Brasil, lançou a primeira versão era língua portuguesa do livro pela editora Movimento. 40 FIABANI, Adelmir. Os novos quilombos: luta pela terra e afirmação étnica no Brasil (1988-2008), 2008. 41 Idem. 24 1970, em algumas regiões do país, eram de caráter político e possuíam reivindicações que conseguiram influenciar, sobretudo a partir da década de 1980, o governo brasileiro e seus principais órgãos, no que diz respeito ao reconhecimento de direitos. Nesse mesmo raciocínio, Solimar Lima e Daniely Santos (2013) colocam que “[...] esse reconhecimento tem possibilitado uma mudança dentro de vários setores do governo no processo de implementação de políticas públicas e práticas de ações afirmativas voltadas para a população negra”.42 Desse modo, entende-se que o movimento negro se inseriu num contexto importante no combate ao racismo, assim como na luta para reescrever a sua história, partindo então de uma perspectiva descolonial. Consequentemente, a partir do final da década de 1980, por ocasião do Centenário da Abolição e da promulgação da Constituição Brasileira de 1988, voltaram-se os olhares mais efetivamente para as comunidades negras rurais, que passaram a ser compreendidas como comunidades quilombolas. Diante dessa mudança, foram criados algumas organizações importantes, a exemplo da organização quilombola em âmbito nacional com o Movimento nacional das comunidades negras rurais quilombolas,43 a Coordenação Nacional de Quilombos - CONAQ, com sede em Bom Jesus da Lapa – BA,44 a FCP,45 e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que foi criada pelo Governo Federal no dia 21 de março de 2003.46 Com isso, destaca-se aqui que a organização quilombola se tornou um dos movimentos mais ativos, na luta pelo desenvolvimento sustentável das comunidades negras, na valorização da cultura, bem como propondo políticas públicas para estes povos.47 Assim como em outras regiões do Brasil, o Movimento quilombola no Piauí surgiu em meados de 1988. De acordo com Solimar Lima e Daniely Santos (2013), esse contexto foi 42 LIMA, Solimar Oliveira e SANTOS, Daniely Monteiro. Movimento Quilombola do Piauí: participação e organização para além da terra. Revista Espacialidades [online]. 2013, v. 6, n. 5. ISSN 1984-817x. Disponível em: https://cchla.ufrn.br/espacialidades/v6n5/Espacialidades_v6n5_10.pdf Acessado em: 20 de outubro de 2015. p. 207-208. 43 A partir da década de 1990, configura-se uma articulação própria quilombola com contornos nacionais. Em 1995, foi realizado em Brasília, de 17 a 20 de novembro, o 1º Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (TERRA DE DIREITOS, 2011, n.p.). 44 FIABANI, Adelmir. Os novos quilombos: luta pela terra e afirmação étnica no Brasil (1988-2008), 2008. 45 Uma instituição pública federal criada em 22 de agosto de 1988 (Lei nº 7.668). Sua principal função, portanto, é o reconhecimento das terras quilombolas, além de conduzir o processo de formulação de políticas públicas que atendam as demandas e especificidades dos povos remanescentes de quilombos (BRASIL, 2013). 46 Sua criação é mais um reconhecimento das lutas históricas do Movimento Negro Brasileiro. Sua missão é estabelecer iniciativas contra as desigualdades raciais no país. Dentre seus principais objetivos podemos destacar: a promoção da igualdade e a proteção dos direitosde indivíduos e grupos raciais e étnicos, com ênfase na população negra; acompanhar e coordenar políticas de diferentes ministérios, especialmente o Ministério de Desenvolvimento Agrário, e outros órgãos do governo brasileiro para a promoção da igualdade racial, articulando e promovendo a execução de programas de cooperação com organismos públicos e privados, nacionais e internacionais (BRASIL, 2005). 208 47 BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Agrário. Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural. Brasília: MDA/SAF/DATER, 2007, p. 54-55. https://cchla.ufrn.br/espacialidades/v6n5/Espacialidades_v6n5_10.pdf 25 marcado por uma “[...] época em que todos negavam a existência de quilombos no estado”.48 Essa prerrogativa foi defendida por se alegar a existência de comunidades quilombolas ancestrais no estado, pois não havia tido a formação de quilombos nos registros da historiografia piauiense, o que gerou impasses tendo em vista a necessidade de melhorias das condições de vida das comunidades negras que viviam na zona rural do estado49. Nesse cenário, o Movimento Negro de Teresina, tendo como representantes Ruimar Batista, Amparo Aguiar, Áureo João, entre outros militantes,50 iniciaram um processo de formação de uma coordenação de lideranças quilombolas, com a finalidade de constituir uma formação política para os moradores das comunidades quilombolas do estado,51 a fim de discutir sobre a territorialização das terras pertencentes aos grupos negros rurais. Ao longo dos anos, e como resultado do processo de organização das comunidades quilombolas, houve a criação de Sindicatos e Associações Comunitárias nas comunidades, no qual objetivaram o desenvolvimento político-social, bem como a implementação de políticas públicas que atendessem as necessidades das comunidades quilombolas, que estavam asseguradas com a constituição de 1988. Dessa maneira, os modos de persistência que mantinham a luta pela territorialização, por parte das comunidades, ganhou força ao se atrelar a promulgação da Constituição Federal de 1988, no qual trouxe consigo o ideal de cidadania, assim como os direitos de exercê-la plenamente. Nessa conjuntura, as reivindicações quilombolas no estado do Piauí passaram a ganhar contorno nacional. Aos passos que ocorriam as lutas pela legitimação das terras, essas comunidades foram-se tornando visíveis por meio da organização quilombola, onde conseguiram desencadear vários processos de luta pela recuperação desses territórios que, consequentemente, foram ganhando visibilidade no contorno estadual. Concomitantemente, por meio das Universidades Federais e Estaduais do Piauí, muitos trabalhos passaram a pautar a história dos negros no estado em suas pesquisas, no qual a temática quilombola despertou o interesse dos novos pesquisadores. 48 LIMA, Solimar Oliveira e SANTOS, Daniely Monteiro. Movimento Quilombola do Piauí: participação e organização para além da terra. Revista Espacialidades [online]. 2013, v. 6, n. 5. ISSN 1984-817x. Disponível em: https://cchla.ufrn.br/espacialidades/v6n5/Espacialidades_v6n5_10.pdf Acessado em: 20 de outubro de 2015. p. 209. 49 GOMES, Flávio S. (1996): “Ainda sobre os quilombos: repensando a construção de símbolos de identidade étnica no Brasil”. In: Almeida, M.H.T. Fry, P. e Reis, E. (orgs) Política e cultura: visões do passado e perspectivas contemporâneas. São Paulo, ANPOCS/HICITEC. 50 LIMA, Solimar Oliveira e SANTOS, Daniely Monteiro. Movimento Quilombola do Piauí: participação e organização para além da terra. Revista Espacialidades [online]. 2013, v. 6, n. 5. ISSN 1984-817x. Disponível em: https://cchla.ufrn.br/espacialidades/v6n5/Espacialidades_v6n5_10.pdf Acessado em: 20 de outubro de 2015. 51 Idem. https://cchla.ufrn.br/espacialidades/v6n5/Espacialidades_v6n5_10.pdf https://cchla.ufrn.br/espacialidades/v6n5/Espacialidades_v6n5_10.pdf 26 No entanto, embora as pesquisas sobre os remanescentes quilombolas tenham avançado, consideramos que as transformações ocorridas na sociedade piauiense, principalmente na área rural, exigem novas reflexões sobre formas organizativas dos povoados negros. A historiografia nacional,52 sobre a escravidão e a formação de quilombos, em diversos momentos, narra uma trajetória de construção desses grupos a partir de resistências, que se deram através de lutas, motins e, sobretudo, de fugas migratórias realizada pelos escravizados. Essa perspectiva, por vezes, tende a projetar uma ancestralidade ligada a formação dos quilombos contemporâneos, isto é, das comunidades constituídas pelos remanescentes de quilombos, no qual silencia outras possibilidades de organizações existenciais. Consta-se na historiografia piauiense bastantes relatos de casos de desobediência às ordens no contexto do Piauí escravista, cujo acarretaram constantes impasses nas relações entre senhores e escravos. Há um consenso nas produções historiográficas sobre a temática, firmadas por Solimar Lima (2005) e Luiz Mott (2010), no que diz respeito às violências das relações sociais escravistas no Piauí. Todavia, embora houvessem fugas como formas de resistências ao sistema escravista, nas pesquisas feitas por esses autores não se consta a formação de quilombos tradicionais, de modo que nos faz refletir sobre as formas de organização existencial das comunidades negras, após a abolição da escravidão. Nesse sentido, contribuindo para entender melhor as formas de organização desses grupos, os relatórios técnicos elaborados pelo INCRA nessas comunidades ao recorrerem à memória coletiva desses sujeitos, buscam reconstruir a história desses grupos, no qual evidencias que as maneiras de organização dessas comunidades aconteceram, em sua maioria, devido a concessões das terras, de compras e doações das mesmas.53 Nos apresentando uma análise de diversidade de relações, entre os escravos e a sociedade escravocrata, os historiadores Flávio dos Santos Gomes e João José Reis (1996), na coletânea “Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil”, colocam que vários processos e aspectos multifacetados envolveram alguns quilombos em determinadas regiões do Brasil, sobretudo a partir do século XIX. Nessa perspectiva, os autores realizam uma abordagem lidando com comunidades quilombolas que foram destruídas antes da abolição da escravatura, pelo qual evidenciam que as classes dominantes do Brasil tiveram bastante êxito na 52 Produzidas por autores, como Edson Carneiro, Arthur Ramos, Ernesto Ennes, Abdias do Nascimento e Décio Freitas. A exemplo de obra, podemos citar: A história do negro brasileiros, por Clóvis Barros. 53 LIMA, Solimar Oliveira. Braço Forte: trabalho escravo nas fazendas da Nação do Piauí-(1822-1871). Passo Fundo: UPF, 2005.MOTT, Luiz Roberto de Barros. Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: APL, 2010. 27 desterritorialização de centenas de quilombos históricos.54 Nesse seguimento, e por consequência da abolição, entende-se que a grande maioria dos quilombos que ainda existiam, se caracterizam por serem de novas formações, onde muitos deles estabeleceram relações com às populações de seu entorno. Desse modo, como assinalamos anteriormente, esses novos grupos que foram se estabelecendo, são o que atualmente reconhecemos como remanescentes de comunidades de quilombos, que se constituíram a partir de diferentes processos de organização existencial. Em um estudo mais amplo sobre essa abordagem, o antropólogo e historiador Richard Price (1999) afirma que a história dos quilombos nas Américas sempre esteve ligada à terra, desde o controle coletivo do território (no desenvolvimento da agricultura, caça, pesca e coleta), assim como no estabelecimento de outras formas organizativas, pelos quais esses grupos dinamizaram várias relaçõescom os proprietários das terras, no qual compreender que “O Brasil de hoje não abriga, em sua maioria, os tipos de sociedades quilombolas – com evidente continuidade histórica das comunidades rebeldes do tempo da escravidão”, de modo que não possuí “profunda consciência histórica e organização política semi-independente”, como ainda existem em outras partes das Américas, a exemplo da Jamaica, Suriname, Guiana Francesa e Colômbia.55 Nesse sentido, entendemos que assim como em grande parte do Brasil, no estado do Piauí essas comunidades possuíram origens variadas, a exemplo de formações após a falência de uma fazenda, concessões para a plantação, de doações de terras por senhores a ex-escravos, outras compradas por escravos libertos, ou ainda doações a escravos por ordens religiosas. Sendo assim, é válido salutar que esses grupos, com diversas origens formativas, possuem em comum, fora a “negritude”, as formas de permanências ao longo de décadas em territórios que exploraram, caracterizando-se assim enquanto comunidades remanescentes de quilombos, isto é, não obstante houvessem quilombolas ancestrais no Piauí, essas comunidades se enquadram nas novas concepções conceituais do quilombo, sendo então considerados sujeitos de direitos frente ao Estado. A variedade do conjunto de formações dessas comunidades são retratadas em algumas pesquisas que foram produzidas sobre as comunidades quilombolas no Piauí, no qual encontramos uma quantidade razoável de trabalhos na área de História sobre alguns desses 54 REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: cia. das Letras, 1996. 55 PRICE, Richard (1999): “Reinventando a História dos Quilombos: Rasuras e Confabulações”. In: Afro-Ásia, 23, 1999. p. 9. 28 grupos que estão distribuídos entres os territórios de Carnaubais, Chapada das Mangabeiras, Cocais; Entre Rios, Planície Litorânea, Serra Da Capivara, Tabuleiros Do Alto Parnaíba, Vale do Canindé, Vale Do Guaribas, Vale do Gambito, Vale dos Rios Piauí e Itaueira, onde estão localizadas cerca de 150 comunidades em todo o estado.56 A respeito das pesquisas produzidas, mesmo havendo um número considerável de comunidades remanescentes de quilombos, observa-se que a maioria desses trabalhos tratam sobre questões que envolvem a memória e a identidade desses sujeitos, sendo o território tratado como algo dado, naturalizado. Entre os poucos trabalhos que abordam a territorialidade das comunidades do Piauí, nas áreas de antropologia e sociologia,57 encontramos ainda um destaque sendo dado a memória e identidade desses povos, no qual a historicidade dos territórios quilombolas não recebem tanta evidencia, isto é, a territorialização ainda não é abordada como objeto de estudo central, a exemplo do trabalho “Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia”,58 escrito pela antropóloga Simone de Oliveira Matos (2013), que embora discuta o processo de territorialidade dessa comunidade, no decorrer do seu estudo elenca outros pontos, como a ideia de dissertar sobre a “etnografia de comunidades negras rurais localizadas no município de São Raimundo Nonato”, a fim de descrever “os processos socioculturais dos grupos que viviam na região focalizada, em condições sociais de escravidão”, como também trata esses sujeitos como possuintes de um “caráter múltiplo e fluido das identidades”.59 56 MELO, Cláudio Rodrigues de. Histórias e memórias de migrantes da comunidade negra rural de Tapuio Queimada Nova – PI. (Dissertação em História). Cláudio Rodrigues de Melo. – 2013. SOUSA, Maria Isabel Gomes dos Santos Batista de. Memória e trajetória da comunidade quilombola Custaneira. (Monografia em História). Maria Isabel Gomes dos Santos Batista de Sousa. – 2016. SOUSA, Áureo João de. Etnicidade e territorialidade na comunidade quilombola Custaneira/Tronco, município de Paquetá – PI, Brasil. (Dissertação em Sociologia). Áureo João de Sousa. - 2015. 454 f.: il. NUNES, Ranchimit Batista. Educação, gênero e afrodescendência: a educação escolar e a organização de mulheres quilombolas em Brejão dos Aipins, Piauí / Ranchimit Batista Nunes --2013. 166 f.: il. COELHO, Raimunda Ferreira Gomes. As educações escolar e social na formação da identidade racial de jovens nos quilombos de São João do Piauí / Raimunda Ferreira Gomes Coelho. – 2013. 229 f. SILVA, Raila Quelly Moura. História e memória da Comunidade Quilombola Saco da Várzea, São José do Piauí-PI. (Monografia em História), Raila Quelly Moura Silva. – 2013. CD-ROM: il.; 4 ¾ pol. (103 p.) TAVARES, Dailme Maria da Silva. A Capela e o Terreiro na Chapada Devoção Mariana e Encantaria de Barba Soeira no Quilombo Mimbó, Piauí. Dailme Maria da Silva Tavares (Dissertação em Ciências Sociais) Marília, São Paulo, dezembro de 2008. 57 SOUSA, Áureo João de. Etnicidade e territorialidade na comunidade quilombola Custaneira/Tronco, município de Paquetá – PI, Brasil. (Dissertação em Sociologia). Áureo João de Sousa. - 2015. 454 f.: il. MATOS, Simone de Oliveira. Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia. (Dissertação em Antropologia). Teresina (PI), agosto de 2013. 58 MATOS, Simone de Oliveira. Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia, 2013. 59 Como tratar os sujeitos da pesquisa: Campesinato? Quilombolas? Agricultura familiar? Povos tradicionais? Identidade étnico-racial elaborada no seio de lutas étnico-raciais?”, afirmando que todos esses caminhos eram possíveis devido esses sujeitos. MATOS, Simone de Oliveira. Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia, 2013. p. 19 29 Cabe ressaltar que tanto a memória como a identidade desses povos são dois elementos importantes para essas comunidades. Todavia, o que queremos denotar aqui é que no caso comunidade Lagoas o território se entende como o objeto central. Essa afirmativa pode ser entendia de forma clara a partir da própria Constituição de 1988, que prevê a necessidade da autodeclaração desses sujeitos. Nesse sentido, para que os remanescentes de quilombos possam obter a legalidade do território, é fundamental, primeiramente, que a memória da comunidade seja acionada, de modo que nela contenham lembranças acerca do passado escravista de seus ancestrais naquele território, sem que haja a necessidade de que história desses grupos esteja ligada a uma ancestralidade quilombola (no sentido de quilombo tradicional). Em segundo lugar, a auto-atribuição garante instantaneamente a constituição dessa identidade, possibilitando, a partir disso, a territorialização da comunidade. Desse modo, tanto a memória como a identidade são dispositivos acionados para a construção do território, sendo este último o único elemento que necessita ser, obrigatoriamente, construído. Nesse sentido, consideramos que importantes capítulos da história das comunidades quilombolas do Piauí foram escritas. No entanto, pretende-se aqui desnaturalizar a formação do território quilombola Lagoas, problematizando a sua produção com a finalidade de buscar a sua historicidade, no campo das práticas que foram estabelecidas. Diante de tais considerações, em termos gerais, esta pesquisa pretende analisar como o quilombo Lagoas se constituiu enquanto uma comunidade, a partir de sua organização e territorialização. Além do mais, discutiremos a respeito das reivindicações existenciais dos lagoanos, a fim de perceber como algumas ações do Estado contribuíram para o surgimento de alguns conflitos que comprometem a existência da comunidade. Em relação as escolhas teórico-metodológicas, e embora neste trabalho não exista a pretensão de realizar uma abordagem sobre como ocorreu a construção identitária dacomunidade Lagoas, pontuamos aqui que a noção de grupo étnico,60 utilizada nessa pesquisa, parte da compreensão de Fredrik Barth (2000) sobre os estudos de etnicidade, no qual considera os grupos étnicos como um tipo organizacional que passou por diferenciações ao longo dos processos de interação. Desse modo, entendemos que a comunidade Lagoas é um grupo resultante de diferenciações organizacionais sofridas ao longo do tempo, isto é, a identidade étnica da comunidade é o resultado de como o grupo se constitui. Observemos o relato de Maria Ferreira: 60 BARTH, F. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In LASK, T. (Org). O guru, o iniciador e outras variações antropológicas-Fredrik Barth. Rio de janeiro: Contra Capa Livraria, p. 25-67, 2000. [Tradução de John C. Comerford]. 30 Eu não alcancei o cativeiro, mas tinha gente que foi do cativeiro. Nós mesmos, minha família era de índio, minha avó foi pega a dente de cachorro. Minha vó era índia gente brabo do mato! Meu avô era índio, filho de índia. A avó dessa velha [esposa] aí, era do cativeiro. Minha família é uma mistura: tem índio, preto e branco. Meu pai era branco e minha mãe era preta. Minha mãe era da região de Lajes [região de Sítio da Aldeia] e meu pai também.61 Diante desse fragmento, entende-se que no território visado havia configurações de sujeitos étnicos diferentes, que por motivos próprios passaram a interagir e constituir famílias. Sendo assim, compreendemos que o quilombo Lagoas é um grupo étnico que possuí diversas formas de constituição e de organização existencial. Todavia, como apontamos anteriormente, não daremos foco a esse aspecto, mas sim a questão territorial. Nesse sentido, relativo aos teóricos que discutem a noção de territorialização,62 temos como referência as abordagens de Moraes (2000) e Raffestin (1993), no qual entendemos que o território da comunidade Lagoas passou por um processo de construção, isto é, todo o processo de produção territorial (simbólico e material) foi realizado por atores, no caso: alguns líderes quilombolas e a equipe técnica do INCRA; que conheceram e dominaram o espaço que se tornou território, por possuir um conjunto de representações que foram determinadas coletivamente. Para orientação dos trabalhos e apresentação dos resultados, considerou-se, ainda, elementos da Instrução Normativa/INCRA/No 57, de 20 de outubro de 2009 e, especialmente, a Lei Estadual do Piauí No 5.595, 01 de agosto de 2006, “que dispõe sobre a regularização fundiária de áreas ocupadas por remanescentes de Comunidades dos Quilombos, e dá outras providências”.63 Desse modo, o fato das ações desses sujeitos se apoiarem em uma fundamentação legal, inclusive com leis especificas do próprio estado, nos direciona a uma análise dos processos de organização da comunidade Lagoas, a fim de destacar quais foram as mobilizações realizadas pelos lagoanos. Além da territorialização, outro processo importante foi a construção do relatório técnico sobre a comunidade. Nesse sentido, a participação da comunidade foi extremamente importante, pois os limites pleiteados foram determinados pelo próprio grupo. No processo de produção desse território, alguns critérios tiveram que ser considerados, a exemplo das relações entre os grupos étnico-raciais incidentes dentro deste território, assim como as trajetórias históricas próprias, as relações territoriais específicas, a presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, além da 61 Maria Ferreira, 86 anos – Comunicação oral – Localidade Umburana, entrevista concedida a Simone Matos, p. 50. 62 MORAES, M. D. C. Espaço, territórios e redes: polissemia e variantes conceituais In: Memórias de um sertão desencantado (modernização agrícola, narrativas e atores sociais nos cerrados do sudoeste piauiense); Tese de Doutorado- UNICAMP; SP, 2000, pp. 134-151. RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. Tradução: María Cecilia França, 1993. 63 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010, p. 11. 31 identificação e validação sócio-histórica do território pleiteado, que foram efetivados no relatório técnico realizado pela representante (Simone Matos) da Cáritas Brasileira. O período em que se desenvolveu esse processo, foi realizado entre os dias 22 de junho e 09 de julho de 2009, no qual ocorreram reuniões em várias localidades, sendo as famílias do território quilombola que indicaram as lideranças que iriam acompanhar a equipe institucional do INCRA, na indicação dos pontos limites do território pleiteado de acordo com marcos históricos e geográfico, apresentados por estes representantes, e que posteriormente foram georreferenciados e materializados em formato de mapa pela equipe Institucional do INCRA. O desenvolvimento de critérios de entendimento dos termos e conceitos repassados pela comunidade à equipe técnica, visando promover a um correto entendimento da questão territorial transmitida, passou pela realização de várias reuniões onde pôde-se captar o sentimento do grupo, referente aos aspectos norteadores do que representava para eles “a definição de território”. A construção desse entendimento ocorreu concomitante aos apontamentos feitos pelo grupo para aquilo que eles entendiam por território. Definições como “limite de respeito”, dentre outros, promoveram o desafio de traduzir o saber local para os saberes necessários à produção do presente relatório.64 Todo o atento às questões que partiam desses povos, foi direcionado para construir um território em que fosse demarcado e definido de acordo com os conhecimentos, da própria comunidade, acerca do que eles compreendiam como território e os seus limites. Desse modo, todas essas informações passaram a compor o relatório técnico, com a finalidade de reunir um conjunto de informações sobre a comunidade Lagoas. Nesse sentido, entendemos que a produção do relatório técnico é uma forma de materialização do território da comunidade, pois nele estão inseridos um conjunto de gráficos, mapas e imagens que foram reunidas para a produção desse documento. Sedo assim, partiremos das orientações de Jeremy Black (2005),65 ao considerar os mapas como instrumentos utilizados para materializar espaços, como também para transmitir a ideia de veracidade sobre conhecimento do espaço. No caso da comunidade Lagoas, analisaremos os mapas, gráficos, tabelas e imagens, que estão no relatório técnico, compreendendo-os enquanto instrumentos de materialização e domínio sob o território requerido. Considerando a territorialização da comunidade Lagoas e o estabelecimento de seus limites, outro ponto importante são as reinvindicações existenciais dos lagoanos, que lutam pela titulação do seu território e, consequentemente, por políticas públicas para conseguirem desenvolver suas atividades diárias. Desse modo, partindo da compreensão de que muitos 64 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de lagoas. Teresina, 2010. 65 BLACK, Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Trad. Cleide Rapuci. Bauro, SP. Edusc, 2005. 32 conflitos territoriais estão relacionados com o exercício do racismo ambiental, utilizamos as considerações de Selene Herculano (2008) sobre o tema para discutir como a comunidade Lagoas é afetada pela exploração predatória neoliberal,66 quer dizer, o racismo ambiental é “[...] institucionalizado com o discurso assimilacionista, afetando o modo de vida tradicional indígena, quilombola e de outros povos tradicionais, com a finalidade explícita de esvaziamento de suas terras para transformá-las em mercadoria”.67Como podemos observar, somente o reconhecimento não contribui efetivamente para que a comunidade consiga assistências de melhoria habitacional. Desse modo, a não titulação abriu possibilidades para que o território fosse invadido, ocasionando ações de injustiça ambiental. É pensando a respeito das reinvindicações existenciais dos lagoanos, que discutimos como o racismo ambiental tem incidido na comunidade, isto é, partiremos do pressuposto de que a não titulação do quilombo Lagoas tem gerado conflitos, estes que, por sua vez são mediados pelo Estado, pois o mesmo não confere a titulação da comunidade e ao mesmo tempo cede parte do território para ser explorado por empresas. Nesse sentido, o conceito de racismo ambiental nos ajuda a pensar que as ações do Estado, em grande medida, podem contribuir para a evasão dos moradores da comunidade Lagoas e, na pior das hipóteses, com a inexistência deste quilombo. Diante disso, a dissertação foi pensada em estabelecer os lagoanos como protagonistas deste trabalho, embora não seja discutido outros aspectos que atravessam esses sujeitos. O intuito maior, foi aproveitar este precioso momento em que os historiadores tem voltado suas pesquisas para discutir temas pertinentes relacionados aos negros(as) da nossa sociedade. Neste caso, centramos aqui o nosso objeto com a finalidade de discutir como os(as) negros(as) brasileiros tem produzido, demarcado e simbolizado novos espaços. Nesse sentido, a partir do conjunto de fontes que reunimos, no qual já mencionamos aqui, detalhamos as estratégias utilizadas por esses sujeitos nas mobilizações realizadas para a organização e territorialização da comunidade Lagoas, assim como também discutimos acerca das reinvindicações existências da comunidade, frente ao Estado democrático de direito. Sendo assim, o primeiro capítulo “Nós só o fizemos porque somos capazes”: a comunidade lagoas e a apropriação dos direitos quilombolas”, tem como fio condutor a presença dos moradores das localidades rurais e os assistentes técnicos do INCRA atuando nos 66 HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. InterfacEHS, Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, 2008. 67 SILVA, Liana Amin Lima da; MORAES, Oriel Rodrigues de Moraes. Racismo ambiental, colonialismos e necropolítica: direitos territoriais quilombolas subjugados no Brasil. Ensaios sobre racismos: pensamento de fronteira. 2019, p. 37. 33 processos de organização e territorialização do quilombo Lagoas. A partir de uma discussão historiográfica, apresento uma breve abordagem a respeito da ressemantização do conceito de quilombo, cujo identifico a comunidade Lagoas enquanto um quilombo contemporâneo, isto é, que se enquadra na categoria de “comunidade remanescente quilombola”. Já por meio do relatório técnico sobre a comunidade e das entrevistas que foram concedidas a antropóloga Simone Matos, abordo sobre a fundamentação legal que embasam as ações dos quilombolas, bem como trato também das relações existentes entre os povos das comunidades negras, o projeto Dom Helder Câmara e a entidade Cáritas Brasileira, a fim de evidenciar as estratégias utilizadas por esses sujeitos durante o processo de organização e territorialização da comunidade quilombola Lagoas, que, por sua vez, se caracteriza enquanto uma comunidade imaginada. No segundo capítulo, intitulado “Os contra colonizadores e a territorialização do quilombo Lagoas” a partir do relatório técnico, destaco os esforços dos lagoanos, juntamente com a equipe técnica do INCRA e da antropóloga Simone Matos, para a materialização territorial do quilombo Lagoas. Desse modo, analiso de forma mais detalhada como ocorreu o processo de construção do relatório técnico da comunidade Lagoas, no qual destaco como as viagens pelo território, a elaboração dos mapas, gráficos, tabelas e estatísticas funcionam como uma forma de domínio sob o território. Sendo assim, a ênfase desse capitulo se estabelece através da descrição detalhada de todo os procedimentos utilizados na elaboração desse documento, destacando os resultados obtidos e a participação da comunidade na aprovação do mesmo. O terceiro e último capítulo, “A reivindicação existencial da comunidade quilombola Lagoas”, a partir do “Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e problemas de saúde no Brasil”, discuto como as ações do Estado, em relação a comunidade quilombola, são configuradas pelo racismo ambiental. Desse modo, pontuo que a não titulação do quilombo Lagoas abre margem para que o território da comunidade seja invadido, assim como também possibilitou a evasão de seus moradores, pondo em risco a extinção da comunidade Lagoas. Sendo assim, é dado ênfase as reinvindicações da comunidade na luta pela sua existência. 34 CAPÍTULO I “NÓS SÓ O FIZEMOS PORQUE SOMOS CAPAZES”: A COMUNIDADE LAGOAS E A APROPRIAÇÃO DOS DIREITOS QUILOMBOLAS O termo quilombo que antes era imposto como uma denominação de uma organização criminosa reaparece agora como uma organização de direito, reivindicada pelos próprios sujeitos quilombolas. Ao acatarmos essas denominações, por reivindicação nossa, mesmo sabendo que no passado elas nos foram impostas, nós só o fizemos porque somos capazes de ressignificá-las. Tanto é que elas se transformaram do crime para o direito, do pejorativo para o afirmativo. Isso demonstra um refluxo filosófico que é um resultado direto da nossa capacidade de pensar e de elaborar conceitos circularmente.68 Nêgo Bispo 68 SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significados. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa. Universidade de Brasília, 2015, p. 95. Disponível em: http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/07/BISPO-Antonio.-Colonizacao_Quilombos.pdf. Acessado em: 20 de novembro de 2018. http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/07/BISPO-Antonio.-Colonizacao_Quilombos.pdf 35 1.1 De organização criminosa à organização de direito: um breve resumo sobre a historicidade do conceito de quilombo A escrita de qualquer relator de saberes,69 como uma prática, estabelece relações com linhas de pensamentos, indivíduos e grupos sociais que geralmente estão conectados com projetos culturais e políticos. Isso ocorre, explicam as historiadoras Ângela de Castro Gomes e Patrícia Hansen (2016), porque “[...] os intelectuais têm um processo de formação e aprendizado que atuam em conexão com outros atores sociais e organizações, intelectuais ou não, que possuem intenções e projetos no entrelaçamento entre o cultural e o político”.70 Ou seja, as formações desses sujeitos são, consequentemente, influenciadas por contatos sociais, culturais e políticos, que, por sua vez, são perceptíveis em seus escritos e falas. Ao longo das últimas três décadas, por meio do exercício contínuo da escrita, algumas linhas de pensamentos e postulações teóricas foram revisadas a partir de novas compreensões, o que contribuiu para o estabelecimento de diferentes perspectivas em vários temas. Às vezes, os próprios intelectuais revisam seus trabalhos ao acrescentarem novas informações ou por mudarem de perspectiva teórica sobre determinado assunto. Noutras ocasiões, novos pensadores, como no caso de Nêgo Bispo,71 dão vozes a muitos grupos ao reivindicarem os direitos destes, demonstrando, assim, que a aprendizagem, as relações sociais e organizacionais são contínuas em suas produções textuais e ações políticas. Na historiografia de diversos temas que abordam sobre os aspectos sociopolíticos de alguns grupos, como no caso das comunidades quilombolas, podemos perceber a existência das relações sociais e organizacionais de diferentesformas. Uma dessas, pelo menos a mais importante neste tópico, é a polissemia lexical do conceito de quilombo, que nos ajuda a compreender importantes momentos históricos dos quilombolas brasileiros, tanto em relação aos anos que foram ligados à invisibilidade constitucional como aos que evidenciaram a luta e conquista de direitos legais. 69 A expressão “relator de saberes” é utilizada, preferencialmente, por Nêgo Bispo para se identificar como um mestre ao invés de ser reconhecido como “intelectual”. A respeito, conferir em: https://www.saberestradicionais.org/antonio-bispo-dos-santos/. Acessado em: 03 novembro de 2019. 70 GOMES, Ângela Maria de Castro; HANSEN, Patrícia Santos. Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 13. 71 Antônio Bispo dos Santos, conhecido popularmente como Nêgo Bispo, é um lavrador e quilombola piauiense formado por mestras e mestres de ofícios que atua como ativista político e militante de grande expressão no movimento social quilombola e nos movimentos de luta pela terra. Além disso, é poeta, escritor e intelectual, sendo autor de inúmeros artigos e poemas. Durante a sua trajetória, foi professor/mestre convidado do projeto “Encontro de Saberes na Universidade de Brasília”. Atualmente, Nêgo Bispo tem se dedicado à Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e atuado na linha de frente da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). https://www.saberestradicionais.org/antonio-bispo-dos-santos/ 36 No cenário piauiense, relativo ao contexto da invisibilidade negra, não muito diferente de outras províncias do Brasil, no que tange a experiência com o colonialismo e imperialismo, durante muito tempo a região do Piauí foi considerada pelos colonizadores como “terra de ninguém”.72 Mesmo sendo povoada por diversos grupos indígenas, o olhar colonialista entendia que esses povos não exerciam dominação sobre as suas terras, que, por sua vez, careciam de uma organização administrativa à moda portuguesa.73 Tendo em vista os plantios da cana-de-açúcar não terem rendido as vantagens pretendidas pela coroa portuguesa, o Piauí se desenvolveu a partir dos caminhos da pecuária. De acordo com a historiadora Miridan Falci (1995), a administração era feita por “[...] dois tipos de conquistadores: o sertanista de contrato, encarregado de dominar e prear os indígenas para vender; e os sesmeiros da poderosa Casa da Torre, que eram criadores de gado”.74 A criação de gado, principalmente a partir do século XVIII, contou com a utilização da mão-de- obra negra. A respeito, o historiador Solimar Lima (2005) aponta que “[...] durante séculos, a criação de animal nas fazendas do estado repousou nas costas dos afrodescendentes cativo, sendo mais pesadas do que as conhecidas no sul do Brasil, não deixando espaços para enlevos poéticos”.75 As práticas de castigo e violência simbólica, exercidas pelos colonizadores, repreendiam os negros e, concomitantemente, garantiam a manutenção e a estabilidade das relações escravistas. Sobre o tema, Daniely Santos e Solimar Lima (2013) publicaram um artigo na Revista Espacialidades,76 que aborda discussões relativas à sociedade escravocrata piauiense, tanto relacionadas aos longos anos de cativeiro como a respeito da resistência negra durante a colonização, destacando que “[...] durante os longos anos de cativeiro foram recorrentes os processos de resistências da população negra cativa [...],”77 no qual visavam superar a condição de escravizados. 72 Para mais informações sobre o tema, consultar: OLIVEIRA, Ana Stela de Negreiros. Povos indígenas do sudeste do Piauí: conflitos e resistência nos séculos XVIII e XIX. V Encontro nordestino de História. Recife, UFPE, 2004. Disponível em: <http://snh2013.anpuh.org/resources/pe/anais/encontro5/08-hist-mem- indigena/Artigo%20de%20Ana%20Stela%20de%20Negreiros%20Oliveira.pdf> Acessado em: 13 de janeiro de 2020. 73 BRANDÂO, Tanya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectivas do século XVIII. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 1999. 74 FALCI, Miridan Britto Knox. Escravos do sertão. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves. 1995, p. 52. 75 LIMA, Solimar Oliveira. Braço Forte: trabalho escravo nas fazendas da Nação do Piauí (1822- 1871). Passo Fundo: UPF, 2005, p. 11. 76 A Revista Espacialidades é uma publicação com periodicidade semestral dos discentes do Programa de Pós- Graduação em História – área de concentração em História e Espaços -, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, campus de Natal – RN. 77 SANTOS, D. M.; LIMA, S. O. Movimento Quilombola do Piauí. Revista Espacialidades, v. 6, n. 05, p. 197- 215, 23 dez. 2013. p. 197. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/espacialidades/article/view/17606. Acessado em: 22 de novembro de 2019. http://snh2013.anpuh.org/resources/pe/anais/encontro5/08-hist-mem-indigena/Artigo%20de%20Ana%20Stela%20de%20Negreiros%20Oliveira.pdf http://snh2013.anpuh.org/resources/pe/anais/encontro5/08-hist-mem-indigena/Artigo%20de%20Ana%20Stela%20de%20Negreiros%20Oliveira.pdf https://periodicos.ufrn.br/espacialidades/article/view/17606 37 Nesse sentido, a resistência negra, manifestou-se em diferentes formas. Uma delas, e provavelmente a mais comum, foi à fuga de escravizados para as florestas e sertão afora. São a partir dessas fugas que, em geral, surgiram os denominados quilombos, lugares onde os escravizados refugiavam-se, com o principal objetivo de assegurar sua liberdade.78 Apesar de não constarem trabalhos que evidenciam a formação de quilombos no Piauí, a partir de fugas, os historiadores ressaltam que, em diversos lugares do Brasil, os casos de desobediência dos escravizados acarretaram constantes impasses nas relações entre senhores e escravos, que, por sua vez, corroboraram para que houvessem fugas e, posteriormente, a constituição de quilombos. Nessa perspectiva, há um consenso nas produções historiográficas a respeito da temática, firmadas por Solimar Lima (2005), Luiz Mott (2012), Miridan Falci (1995) e Tânia Brandão (1999),79 sobre a existência de violências nas relações sociais escravistas e os recorrentes processos de resistências da população negra cativa no Piauí. Ainda na Revista Espacialidades, Daniely Santos e Solimar Lima (2013) pontuaram que a historiografia brasileira estabeleceu uma narrativa sobre a formação de quilombos no Brasil, através de fugas, que tinha como base o conceito de quilombo pautado na definição do Conselho Ultramarino de 1740, que considerava o quilombo como “[...]toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. De acordo com os historiadores, essa definição silenciou outras possibilidades de análises sobre a resistência dos quilombolas, pois não abarcava as suas diversas formas organizacionais. A historiografia tradicional sobre a escravidão e a formação dos quilombos no Brasil narra, na maioria das vezes, uma trajetória de construção dos quilombos a partir da resistência através de fugas migratórias realizadas pelos escravizados. Silenciam, assim, outras possibilidades analíticas de resistência dos mesmos. Quando analisamos a trajetória de formação das comunidades quilombolas piauienses, deparamo-nos com outros processos de resistências. Através da construção histórica da memória coletiva dos moradores aquilombados, nova ferramenta de análise da formação dos quilombos piauienses emerge, como a formação de comunidades remanescentes de quilombos através de concessões e doações de terras das fazendas públicas e particulares existentes no sertão nordestino.80 Assim como os historiadores,percebo que esse raciocínio cristalizou e simplificou as diversas formas de organização existencial quilombola, no qual resumiu a fuga como o maior símbolo de resistência que ocasionou a formação de quilombos. Além disso, essa análise se 78 SANTOS, D. M.; LIMA, S. O. Movimento Quilombola do Piauí. Revista Espacialidades, 2013. p. 198. 79 LIMA, Solimar Oliveria. Braço Forte: trabalho escravo nas fazendas da Nação do Piauí-(1822- 1871). Passo Fundo: UPF, 2005; MOTT, L. R. B. Piauí Colonial. Teresina: APL; Fundac; Detran, 2012; FALCI, Miridan Britto Knox. Escravos do sertão. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995; BRANDÂO, Tanya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectivas do século XVIII. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 1999. 80 SANTOS, D. M.; LIMA, S. O. Movimento Quilombola do Piauí. Revista Espacialidades, 2013. p. 199. 38 caracterizou por tratar de forma exclusiva as relações de senhores e escravos como expressões de rejeição ao sistema escravista, onde, consequentemente, pensou os espaços habitados por esses grupos enquanto lócus de isolamento da população negra. Mesmo reconhecendo as contribuições das pesquisas historiográficas brasileiras que foram pioneiras sobre a temática,81 destaco que elas não conseguiram evidenciar as diferentes experiências dos escravizados com a sociedade escravocrata, assim como também não abordaram a respeito dos processos de organização existencial desses grupos. A premissa que apontei anteriormente, fundamenta-se a partir da memória coletiva dos remanescentes quilombolas, que contribuem na construção da história de suas respectivas comunidades. Através dos relatos desses grupos, tem-se que os modos de organização existencial dos seus territórios aconteceram de variadas formas, como exemplo: concessões, compras e doações das terras. Foram nessas circunstâncias que muitas comunidades negras resistiram e se organizaram existencialmente ao longo dos anos. De organização criminosa à organização de direito, e da imposição à ressignificação do conceito de “quilombo”, as comunidades quilombolas brasileiras enfrentaram diversas dificuldades, nesse meio tempo, relativas ao racismo institucional.82 Mesmo após a abolição da escravidão, o dia-a-dia circunstancial dos negros no Brasil não havia mudado muito em relação aos últimos anos da escravidão no país. Sendo marcado por um contexto em que, a exemplo, as produções intelectuais do médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues,83 sobretudo as obras: “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”,84 e “As coletividades anormais”;85 ainda influenciavam perspectivas de análises articuladas aos discursos racialistas, como a “responsabilidade penal”, que inferiorizavam negros e mestiços. 81 Produzidas por autores, como Edson Carneiro, Arthur Ramos, Ernesto Ennes, Abdias do Nascimento e Décio Freitas. A exemplo de obra, podemos citar: A história do negro brasileiro, por Clóvis Barros. 82 SOUZA. Arivaldo S. de. Racismo Institucional: para compreender o conceito. Revista ABPN v. 1, n. 3 – jan. de 2011, p. 77-87. Disponível em: http://www.abpn.org.br/Revista/index.php/edicoes/article/viewArticle/39. Acesso em: 25 de junho de 2011. 83 Raimundo Nina Rodrigues foi um médico legista, psiquiatra, escritor, antropólogo e etnólogo brasileiro. Mais conhecido como Nina Rodrigues, foi considerado o fundador da antropologia criminal brasileira e pioneiro nos estudos sobre a cultura negra no país. Foi o primeiro estudioso brasileiro a abordar o problema do negro como questão social relevante para a compreensão da formação racial da população brasileira, que por sua vez, adotou uma perspectiva racista, nacionalista e cientificista em suas obras. 84 Ler: NINA RODRIGUES, Raimundo. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. 4 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. (Coleção Biblioteca Pedagógica dirigida por Fernando de Azevedo). 85 __________ Lucas da Feira _________. As coletividades anormais. Coletânea organizada e prefaciada por Arthur Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939. (Coleção Biblioteca de Divulgação Científica). https://pt.wikipedia.org/wiki/Medicina_legal https://pt.wikipedia.org/wiki/Psiquiatria https://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologia https://pt.wikipedia.org/wiki/Etn%C3%B3logo https://pt.wikipedia.org/wiki/Brasil https://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologia_criminal https://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura_negra https://pt.wikipedia.org/wiki/Quest%C3%A3o_social https://pt.wikipedia.org/wiki/Popula%C3%A7%C3%A3o_brasileira https://pt.wikipedia.org/wiki/Racista https://pt.wikipedia.org/wiki/Nacionalista https://pt.wikipedia.org/wiki/Cientificista 39 Foi justamente nesse “meio tempo” – de organização criminosa à organização de direito –, que a historiadora Beatriz Nascimento discutiu sobre o passado e presente das comunidades quilombolas brasileiras, se atentando principalmente em analisar a semântica do conceito de “quilombo” e as suas implicações na continuidade histórica dos negros no país. Preocupando- se com as interpretações conceituais dos quilombos do século XX, a historiadora compreendia que a definição de quilombo institucional era extremamente ideológica e subestimava a capacidade dos negros de se agruparem e serem atuantes, no que diz respeito as tentativas de afirmação cultural. Em contraposição a versão Ultramarina do conceito de quilombo, Beatriz Nascimento (1981) afirmava que a população negra, historicamente, se caracterizava pela luta em favor da liberdade dentro do Brasil, tanto que incomodou, por diversas vezes, a ordem e provocou impasses às autoridades brasileiras.86 Nesse mesmo sentido, ao pesquisar algumas comunidades quilombolas do Rio de Janeiro, o historiador Flávio Gomes (1997) analisou, a partir de uma analogia com a “Hidra de Lerna”, como os quilombos se organizavam existencialmente na região do Iguaçu, no século XIX. Em sua abordagem, o autor discutiu como o surgimento de inúmeros quilombos foram compreendidos como uma ameaça à sociedade escravocrata, o que provocou diversos entraves com as autoridades, que, por sua vez, planejaram a destruição das comunidades.87 De acordo com Beatriz Nascimento (2018), as fugas e formações dos quilombos não devem ser reduzidas apenas a uma ameaça ao sistema escravocrata, mas também devem ser representadas como um “[...] caráter libertário e considerado um impulsionador ideológico na tentativa de afirmação racial e cultural do grupo”,88 pois o quilombo “[...] se forma mais na necessidade humana de se organizar de uma forma específica que não aquela arbitrariamente estabelecida pelo colonizador”,89 isto é, as fugas representavam a necessidade de se organizar culturalmente na sociedade, sendo a aglutinação um aspecto essencial do quilombo. As produções historiografias acerca da temática ainda são insuficientes, no que se refere a compreender as diversas formas de organização social, pois “[...] a grande dificuldade mesmo 86 NASCIMENTO, Maria Beatriz. Sistemas sociais alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas. 1981. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018. 87 GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (séc. XVII-XIX). Tese de doutorado, Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 1997. 88 NASCIMENTO, Maria Beatriz. Sistemas sociais alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas. 1981. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria BeatrizNascimento. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018, p. 211. 89 NASCIMENTO, Maria Beatriz. Por uma História do Homem Negro. In: RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a Trajetória de Vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial/Kuanza, 1974a, p. 70. 40 é estabelecer, num período de longa duração, a história de várias comunidades em diversas regiões do Brasil, sendo que todos os quilombos existiram em várias épocas no Brasil”,90 o que gerou diversos “[...] lapsos em termos de análise deste fenômeno em toda a historiografia brasileira, provocando uma ruptura dos negros com o seu passado e agravou o desconhecimento de sua condição hodierna”.91 Uma das maneiras de compreender a ausência de estudos que abarcam a complexidade das organizações existenciais dos quilombolas no Brasil pós-abolição, é através das variações do seu conceito e as implicações efeituais para as comunidades negras que resistiram ao longo do século XX. Ao realizar uma consulta na definição de quilombo descrita pelo Conselho Ultramarino, identifico alguns problemas relativos às generalizações que definem as comunidades quilombolas apenas como “agrupamentos de negros”. Sobre a generalização dessa definição, Beatriz Nascimento (2018) coloca que muitos quilombos possuíam um número populacional com mais de vinte mil quilombolas, quantidade esta que não pode ser resumida a definição de “um pequeno grupo de negros que fugiam”. Palmares e muitos outros quilombos, entre Sergipe e Minas Gerais, possuíam cerca de vinte mil homens. Não se pode entender da mesma forma, enquanto grupo social, cinco fujões e vinte mil. Mas as dificuldades e passividades da literatura sobre quilombos permitem que este mal-entendido permaneça mergulhado no seu obscurantismo preconceituoso.92 A visão limitada a respeito da resistência quilombola, que ainda é atual, decorre justamente da documentação oficial que denominou o quilombo apenas como um qualquer agrupamento de negros. É preciso estar atento ao contexto histórico do documento oficial, a exemplo do Conselho Ultramarino de 1740, que proibia a formação de comunidades negras, pois, de acordo com a visão colonialista, ameaçavam a economia colonial. Quer dizer, o olhar oficial possuía apenas um único direcionamento, que, por sua vez, era voltado para o perigo que os quilombos representavam ao controle exercido pela colônia em relação aos interesses metropolitanos. É justamente em contraposição a essa perspectiva que as discussões propostas por Beatriz Nascimento são importantes. Enquanto o sistema colonial havia definido, no século 90 NASCIMENTO, Maria Beatriz. Historiografia do Quilombo. 1977. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018. 91 NASCIMENTO, Maria Beatriz. Sistemas sociais alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas. 1981. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018, p. 212. 92 NASCIMENTO, Maria Beatriz. Quilombos: mudança social ou conservantismo? 1976. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018, p. 63. 41 XVIII, que o quilombo seria um pequeno agrupamento de cinco negros fugidos, a autora problematizava, no século XX, a diferença e complexidade que exista entre cinco e vinte mil negros – como no quilombo Palmares – ,93 pois o quilombo não poderia somente ser compreendido como uma ação negativa à escravização, mas também “[...] como uma tentativa de homens manterem sua autonomia cultural e racial”,94 o que fugiria do estereótipo de quilombo apenas como um refúgio. Noutras palavras, em sintonia com as contribuições de Beatriz Nascimento, o que me interessa aqui é compreender as outras faces da resistência quilombola, é entendê-lo como um grupo organizado: um novo núcleo social. A depreciação das comunidades quilombolas, como uma espécie de refúgio de negros, sinalizava que a construção histórica dos quilombos brasileiros foi mistificada, pois “[...] o quilombo não é como a historiografia tem tentado traduzir, simplesmente um reduto de negros fugidos, simplesmente a fuga pelo fato dos castigos corporais”, pelo contrário, pontua Beatriz Nascimento, o estabelecimento de quilombos numa sociedade opressora era a “[...] tentativa de independência de homens que procuram por si só estabelecer uma vida para si, uma organização social para si”.95 Em alguns trabalhos, como exemplos: “Liberdade por um fio: história dos quilombolas no Brasil”,96 organizado pelos historiadores João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (1996), e Encruzilhadas pela Liberdade,97 de Walter Fraga Fialho (2006); são adentradas algumas discussões pertinentes ao debate de Beatriz Nascimento sobre as relações sociais entre os quilombolas e a sociedade escravocrata, e as formas diversas de organização existencial dos quilombos no Brasil. Ao estudar as relações entre os quilombos e a sociedade baiana, a exemplo, João José Reis (1996) demonstrou que algumas comunidades quilombolas haviam se organizado de formas diferentes da tradição palmarina, revelando-se em oposição a visão simplista do 93 CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. 1958. Disponível em: http://www.brasiliana.com.br/obras/o- quilombo-dos-palmares. Acessado em 17 de junho de 2020. 94 NASCIMENTO, Maria Beatriz. Quilombos: mudança social ou conservantismo? 1976. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018, p. 68. 95 NASCIMENTO, Maria Beatriz. Historiografia do Quilombo. 1977. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018, p. 130. 96 REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996, 509p. 97 FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade. História de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006. http://www.brasiliana.com.br/obras/o-quilombo-dos-palmares http://www.brasiliana.com.br/obras/o-quilombo-dos-palmares 42 quilombo enquanto um espaço isolado do contexto social.98 De acordo com o autor, o quilombo “Oitizeiro” foi uma comunidade dirigida por homens livres e escravizados fugidos, onde conseguiram estabelecer um índice de integração no mercado regional. Ainda nesse sentido, o historiador observou que nas relações entre os quilombolas e a sociedade baiana, a figura do coiteiro assumiu um papel de extrema importância, no qual caracterizou-se como elemento problemático entre a proteção e a repressão aos negros. Não distante dessa discussão, o quilombo de “Catucá-PE” foi estudado pelo historiador Marcus Joaquim M. de Carvalho (1996),99 que pesquisou as mudanças de localização dos quilombos rurais para as proximidades dos engenhos. Em sua pesquisa, o historiador trabalhou com o recorte temporal entre 1817 e 1825 – dentro do contexto de uma fase de rebelião –, no qual discutiu especificamente sobre um grupo de negros que buscavam construir uma sociedade alternativa, onde houvesse liberdade para os quilombolas. Durante esse período, o autor destaca que houveram estratégias de resistência às repressões, nos quais foram adotadas as práticas de quilombos móveis, que na sua estruturação interna poderiam estabelecer espécies de sucessões familiares e relações de integração com outros grupos. No estado do Maranhão, o historiadorMatthias Assunção (1996) também identificou algumas multiplicações de quilombos,100 no século XIX, apontando quatro tipologias de comunidades, apresentando assim formas diversificadas de como foram sendo constituídos esses grupos no estado. Neste contexto, o Maranhão, às vésperas da Independência, representava a mais alta concentração de escravos do Império, registrando cinquenta e cinco por cento. Nesse sentido, Matthias Assunção aborda que a multiplicação de quilombos proporcionaram alterações no perfil das lideranças, de modo que algumas comunidades haviam perdido alguns referenciais africanos, culminando na caracterização de tais quilombos como crioulos. Como pode ser observado nos exemplos anteriores, a diversidade organizacional e complexidade das relações, entre quilombolas e a sociedade escravocrata, aconteceram em alguns estados e não se deram de maneira uniforme. A busca pela autonomia, que nesse contexto era conquistada com o estabelecimento dos quilombos, não deixou de existir com a 98 REIS, João José. Escravos e coiteiros no quilombo do Oitizeiro – Bahia, 1806. REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996, 509p. 99 CARVALHO, Marcus Joaquim M. de. O quilombo de Malunguinho, o rei das matas de Pernambuco. REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996, 509p 100 ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig. Quilombos Maranhenses. REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996, 509p 43 abolição. Ao longo dos anos, as comunidades negras resistiram de diversas formas, permanecendo em terras doadas, concedidas ou compradas por seus membros, isto é, viviam estabelecidas como “[...] uma organização social empreendida pelos negros, que se projetou no século XX e perdura até hoje”.101 Nessa perspectiva, me alinho mais uma vez às contribuições de Beatriz Nascimento para situar o objeto de estudo desta pesquisa, a comunidade quilombola Lagoas-PI, nas discussões que envolvem as dificuldades enfrentadas pelos quilombolas na contemporaneidade, sobretudo no que diz respeito ao reconhecimento dos seus direitos constitucionais. Nessa discussão, duas questões se caracterizam como centrais: a primeira relacionada ao INCRA não ter certificado a comunidade, ocasionando o aumento de necessidades relativas a políticas públicas; e a segunda, consequentemente motivada pela primeira, que desencadeou disputas ambientais, pois no território requerido houve a instalação de empresas de mineração e carvoaria. Todavia, destaca- se que ambas dificuldades não se configuram, necessariamente, como problemas especiais do quilombo Lagoas, uma vez que estes atravessaram diversas comunidades que também passaram pelos mesmos processos.102 As relações burocráticas e as tensões que envolveram a comunidade Lagoas fazem parte de um rol de discussões sobre direitos democráticos que marcaram os anos antecessores à promulgação da Constituição Federal de 1988. As décadas de 1980 e 1990, foram palco de debates acerca do Estado brasileiro e a sua relação com instituições democráticas. Pautadas, principalmente, na concepção de democracia participativa, essas discussões priorizaram tanto temas sobre direitos coletivos como também relacionados à preservação e utilização do meio ambiente, patrimônio cultural, regras de consumo, grupos étnicos, entre outros. Nesse contexto, as demandas que partiram desses temas foram impulsionadas por lideranças quilombolas e movimentos sociais, de modo que resultaram no apoio jurídico-constitucional, considerando assim esses grupos enquanto unidades legítimas de direitos. Essa nova perspectiva de democracia proporcionou visibilidade e a participação de novos agentes sociais, isto é, os quilombos passaram a ser considerados como comunidades de direitos. Nesse momento, três agenciadores sociais encontraram a oportunidade de atuar em concordância fundamentada pelos direitos constituintes, sendo estes: as associações da 101 NASCIMENTO, Maria Beatriz. Historiografia do Quilombo. 1977. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018, p. 131. 102 No livro referenciado: CARNEIRO, Andréa Flávia Tenório e AYALA, Caroline. Incra e os desafios para regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências/Aniceto Cantanhede Filho. Brasília: MDA: Incra, 2006. 184p; encontra-se reunido algumas discussões acerca dos desafios enfrentados pelas comunidades quilombolas, durante o processo de regularização de seus territórios. 44 sociedade civil; o Ministério Público; e as comunidades quilombolas. Em relação ao último agente, o reconhecimento dado as comunidades quilombolas só se tornou possível graças à ampliação dos direitos coletivos, sobretudo, no tocante aos direitos relacionados a propriedade das terras ocupadas pelas comunidades negra rurais, que foram descritas no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – CF/1988, como “remanescentes das comunidades dos quilombos”.103 A inserção desses sujeitos, enquanto portadores de direitos legais, apresentou-se enquanto uma ideia substancial em relação à conclusão do processo da abolição, que, por sua vez, foi inacabado, como forma de reparação dos problemas sociais gerados pelo sistema escravista no Brasil. Além disso, a nova conotação semântica – do termo “quilombo” para “remanescentes das comunidades quilombolas” –, foi um desdobramento das articulações e disputas políticas de intelectuais, parlamentares, dos movimentos sociais e dos líderes quilombolas, justamente na data comemorativa do Centenário da Abolição da Escravidão (1988),104 que decidiram ressemantizar o conceito de quilombo, apresentando a sua reapropriação, esta que ampliou a noção do conceito e contemplou diversas comunidades negras que outrora não possuíam nenhuma espécie de reconhecimento. Apesar dessa conquista ter representado um grande avanço histórico, em relação aos direitos coletivos dos quilombolas, de acordo com Bianca Mazurec (2012) “[...] na literatura, os artigos contidos no ADCT são considerados o “depósito” de questões controversas para as quais os parlamentares não haviam chegado a um acordo, nem havia mais tempo para negociar”.105 Ou seja, a conquista coletiva dos quilombolas foi direcionada para esse depósito por ser considerada controversa, isto é, tema que necessitava de novas reflexões, pois ainda não possuía uma ideia maturada a respeito do tema, assim como dos seus desdobramentos e implicações constitucionais. Nessas circunstâncias, a ressemantização do conceito provocou inúmeras discussões sobre quem seriam esses novos sujeitos de direitos. De acordo com Arruti (2006) e Figueiredo (2008),106 a princípio, os debates entre o saberes jurídico e antropológico, promovidos pela 103 FIGUEIREDO, Leandro Mitidieri. Remanescentes de quilombos, índios, meio ambiente e segurança nacional: ponderação de interesses constitucionais. Incra e os desafios para regularização dos territórios quilombolas: algumas experiências/Aniceto Cantanhede Filho. Andréa Flávia Tenório Carneiro. Caroline Ayala. Brasília: MDA: Incra, 2006. 184 p. 104 CHAGAS, M. F. A política do reconhecimento dos "remanescentes das comunidades dos quilombos. In Horiz. antropol. vol.7 no.15 Porto Alegre, 2001. 105 MAZUREC, Reconhecimento Étnico Quilombola no Licenciamento Ambiental. 2012, p. 122. 106 ARRUTI, J. M. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru, SP: Edusc,2006. FIGUEIREDO, A. L. V. O “Caminho Quilombola”: interpretação constitucional e reconhecimento de direitos étnicos. Tese de Doutorado – Universidade Candido Mendes, Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: UCAM/ IUPERJ, 2008. 45 Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 2000, questionaram se os novos quilombolas seriam remanescentes de quilombos tradicionais, pois, embora a palavra quilombo fosse de origem africana, a definição utilizada na historiografia brasileira, até então, era fundamentada pelo Conselho Ultramarino de Portugal, desde 1740.107 A partir dessas discussões, a interpretação jurista – de que os remanescentes de comunidades quilombolas deveriam ser historicamente ligados a comunidades quilombolas tradicionais –, se sobressaiu em relação as compreensões antropológicas – acerca da defesa de uma nova interpretação semântica sobre o conceito de quilombo –, no qual resultou na aprovação do Decreto nº 3.912/2001,108 estabelecendo que a Fundação Cultural Palmares só poderia reconhecer a propriedade sobre as terras dos quilombos existentes desde 1888 e que ainda estavam sendo ocupados pelos seus remanescentes, até o dia 5 de outubro de 1988 Mesmo tendo havido essa determinação, a Fundação Cultural Palmares continuou promovendo o debate sobre a importância da ressemantização do conceito, no qual destacou, a partir dos estudos antropológicos que foram realizados sobre as comunidades negras rurais, que os quilombos eram também algo do presente, não sendo necessariamente ramificações de quilombos ancestrais, isto é, a nova compreensão ressignificou os quilombos, conforme afirmou Nêgo Bispo, os “[...] passando de uma organização criminosa para uma organização de direitos”. Somente dois meses após o Brasil ter assinado a convenção de nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),109 é que publicaram o Decreto nº 4.887/2003, no qual revogaram o decreto anterior, considerando assim os remanescentes de comunidades quilombolas como um grupo étnico-racial, “[...] tornando-se obrigatória a autoatribuição de qualquer comunidade enquanto grupo “quilombola” e empoderando tais grupos no processo de decisão política ou de intervenções sobre seus territórios ou modos de vida”.110 107 SCHMITT, Alessandra; TURATTI, Maria Cecília Manzoli; CARVALHO, Maria Celina Pereira de. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas. Ambiente & Sociedade - Ano V - No 10 - 1o Semestre de 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414- 753X2002000100008&script=sci_abstract&tlng=pt Acessado em: 17 de maio de 2015. MARQUES, Carlos Eduardo e GOMES, Lílian. A Constituição de 1988 e a ressignificação dos quilombos contemporâneos: limites e potencialidades. RBCS Vol. 28 n° 81 fevereiro/2013. Disponível em: Acessado em: 17 de maio de 2015. YABETA, Daniela e GOMES, Flávio. Memória, cidadania e direitos de comunidades remanescentes (Em torno de um documento da história dos quilombolas da Marambaia). Afro-Ásia, 47 (2013), p. 79-117. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0002-05912013000100003&script=sci_abstract&tlng=pt > Acessado em: 20 de maio de 2019. 108 Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3912.htm > Acessado em: 09/07/2019. 109 A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais em Estados Independentes, apresenta importantes avanços no reconhecimento dos direitos indígenas coletivos, com significativos aspectos de direitos econômicos, sociais e culturais. 110 MAZUREC, Reconhecimento Étnico Quilombola no Licenciamento Ambiental. 2012, p. 135. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0002-05912013000100003&script=sci_abstract&tlng=pt%20 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3912.htm 46 É a partir dessas disputas históricas sobre a interpretação conceitual da noção de quilombo, que consideramos a relação entre pesquisador e objeto inserida numa discussão sobre a oposição de perspectivas – que foram situadas no debate entre juristas e antropólogos –, e no cruzamento de pontos de vista,111 – tecidos entre os conhecimentos acadêmicos dos antropólogos e os saberes dos remanescentes das comunidades quilombolas. Nesse sentido, estamos aqui nos situando entre os cruzamentos desses conhecimentos e saberes, para que assim possamos nos distanciar da perspectiva jurista/ultramarina, que ainda reflete na atualidade. O cruzamento entre os pontos de vista – antropológico e dos quilombolas –, que formularam uma nova conotação semântica acerca do conceito de quilombo, precede as relações que são estabelecidas entre o pesquisador e o objeto, sem possuir a sua intervenção direta. Assim, por exemplo, um estudo da recepção das compreensões teóricas sobre etnicidade – que contribuiu para identificar os remanescentes quilombolas enquanto grupo étnico –, proposto por Fredrik Barth, entre as décadas finais do século XX e a primeira década do século XXI, nos revela cruzamentos históricos da circulação de argumentos e novas interpretações no Brasil, isto é, foram a partir dos esforços das comunidades quilombolas e dos antropólogos para ressemantizar o conceito de quilombo, que novos aportes teóricos começaram a circular, sobretudo em contraposição aos estudos anteriores que definiam os quilombos em perspectivas que não contemplavam a diversidade organizacional das comunidades negras brasileiras. Por esse ângulo, as relações entre o pesquisador e objeto se dão de forma incontornável, de modo que essa “[...] questão incide, antes de tudo, sobre a maneira como os passos preliminares da pesquisa conformam o objeto e, inversamente, sobre o modo como as características do objeto influem sobre os parâmetros da pesquisa”.112 Desse modo, compreendemos que toda relação cruzada – dos conhecimentos antropológicos e das comunidades quilombolas para a ressemantização do conceito de quilombo –, é propriamente importante, sobretudo, quando o pesquisador considera a relevância da historicidade semântica dos conceitos e como esta deve ser situada em sua pesquisa. Sendo assim, seria absurdamente problemático e anacrônico pesquisar a comunidade quilombola Lagoas, ainda levando em consideração o conceito tradicional/colonizador de quilombo. Ainda nesse seguimento, entendemos que “[...] a historicização, por sua vez, coloca em relação escalas espaço-temporais variadas com diferentes regimes de historicidade e com 111 WERNER, Michael e ZIMMERMANN, Bénédicte. Pensar a história cruzada: entre empiria e reflexividade. Textos de história, vol. 11, nº 1/2, 2003. 112 WERNER, Michael e ZIMMERMANN, Bénédicte. Pensar a história cruzada: entre empiria e reflexividade. Textos de história, vol. 11, nº 1/2, 2003, p.100. 47 posições de observação elas mesmas historicamente situadas”.113 Compreendendo dessa forma, nos aproximamos também de Reinhart Koselleck (2006), quando este escreve sobre as mudanças semânticas dos conceitos e as transformações que ocorrem na linguagem atualizada, ao considerar que os “[...] acontecimentos históricos não são possíveis sem atos de linguagem, e as experiências que adquirimos a partir deles não podem ser transmitidas sem uma linguagem”.114 Dessa maneira, observamos que os processos históricos que contribuíram para pensar uma nova semântica para o conceito de quilombo não teriam ocorrido se não houvessem a modificação da noção de “quilombo” para a de “remanescentes de comunidades quilombolas”, embora o termo “remanescente” “[...] tenha sido objeto de duras críticas pelo movimento nacional das comunidades quilombolas, por trazer uma conotação pejorativa dos que “restaram”, “sobraram”, remetendo a existência quilombola ao passado e não a coexistência do presente”.115Em outras palavras, o que estamos afirmando é que as ressignificações que as comunidades quilombolas passaram constitucionalmente, no sentido de construção de identidades étnicas, políticas, culturais e territoriais, só foram possíveis por haver uma ancestralidade negra que não está, necessariamente, relacionada a um quilombo tradicional, mas sim a uma ancestralidade étnica e territorial.116 Posto isso, de modo geral, todo o sistema burocrático, os conflitos territoriais e a reinvindicação existencial da comunidade, devem ser entendidos ainda enquanto um desdobramento das discussões que circundaram os anos que antecederam e sucederam a Constituição Federal de 1988. Dessa maneira, as compreensões que o Estado democrático de direito e determinados grupos da sociedade brasileira têm sobre as comunidades quilombolas, ainda são superficiais,117 que, por sua vez, promovem diversos questionamentos e, inclusive, 113 WERNER, Michael e ZIMMERMANN, Bénédicte. Pensar a história cruzada: entre empiria e reflexividade. Textos de história, vol. 11, nº 1/2, 2003, p.106. 114 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos; tradução do original alemão Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão da tradução César Benjamin. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 267. 115 SCHMITT, Alessandra; TURATTI, Maria Cecília Manzoli; CARVALHO, Maria Celina Pereira de. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas. Ambiente & Sociedade - Ano V - No 10 - 1o Semestre de 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414- 753X2002000100008&script=sci_abstract&tlng=pt Acessado em: 17 de maio de 2015, p. 33. 116 GONÇALVES, Cláudia Pereira. Política, cultura e etnicidade: indagações sobre encontros intersocietários in Antropologia em primeira mão / Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: UFSC, 1995. 117 A exemplo da Bancada Ruralista, que já pediu a suspensão dos territórios quilombolas e já propôs 25 projetos que ameaçam o processo de demarcação dos remanescentes quilombolas. Em relação ao assunto: Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/581965-ruralistas-pedem-suspensao-dos-processos-de-demarcacao-de- terras-indigenas-e-quilombolas>, acessado em: 10 de julho de 2019; e <https://deolhonosruralistas.com.br/2017/09/11/bancada-ruralista-ja-propos-25-projetos-de-lei-que-ameacam- demarcacao-de-terras-indigenas-e-quilombolas/ >, acessado em 10 de julho de 2019. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/581965-ruralistas-pedem-suspensao-dos-processos-de-demarcacao-de-terras-indigenas-e-quilombolas http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/581965-ruralistas-pedem-suspensao-dos-processos-de-demarcacao-de-terras-indigenas-e-quilombolas https://deolhonosruralistas.com.br/2017/09/11/bancada-ruralista-ja-propos-25-projetos-de-lei-que-ameacam-demarcacao-de-terras-indigenas-e-quilombolas/ https://deolhonosruralistas.com.br/2017/09/11/bancada-ruralista-ja-propos-25-projetos-de-lei-que-ameacam-demarcacao-de-terras-indigenas-e-quilombolas/ 48 alegações relacionadas a possíveis ilegitimidades das comunidades remanescentes quilombolas brasileiras. Todavia, o conjunto de normas constitucionais que fundamentam todas as mobilizações dos quilombolas ainda representam bases legais para a reinvindicação dos seus direitos, pois embasam os processos de organização e territorialização das comunidades, como no caso do quilombo Lagoas, a partir de mobilizações entre a comunidade e os agentes externos que estabeleceram convênios através desse conjunto de leis. 1.2 Fundamentação constitucional: direitos étnico-raciais e territoriais da comunidade quilombola Lagoas Atuante no estado, desde o final da década de 1990, o Movimento Quilombola do Piauí estabeleceu relações com à Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) – que é uma coordenação representativa de membros das comunidades quilombolas de todo o Brasil –, e promoveu assim uma maior relação entre o estado e as comunidades, como também uma melhor articulação com o movimento nacional.118 No entanto, embora existam essas coordenações, as comunidades quilombolas piauienses não conseguiram construir uma personalidade jurídica, possuindo, assim, apenas membros representativos, a exemplo dos atuantes Antônio Bispo dos Santos e Maria Rosalina dos Santos, que possuem um histórico de contribuição na reinvindicação dos direitos quilombolas.119 Mesmo não havendo um corpo jurídico que atuasse na causa quilombola no estado, as comunidades que receberam assistência do INCRA passaram a conhecer melhor a respeito dos direitos constitucionais, que são previstos em lei. No caso do quilombo Lagoas, para que os lagoanos pudessem estar cientes em relação aos seus direitos étnicos e territoriais, foi necessário recorrer a uma fundamentação legal para respaldar o início da organização e territorialização da comunidade, bem como para assegurar as ações que se constituiriam durante esse processo. Desse modo, consta-se no relatório técnico da comunidade um conjunto de leis, artigos, decretos e uma medida provisória, que passaram a nortear esses povos em suas atividades organizacionais e territoriais: As ações objeto do presente relatório têm como fundamento legal: (1) art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal; - (2) arts. 215 e 216 da Constituição Federal; (3) - Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962; (4) - Lei 118 O movimento quilombola do Piauí é representado pela Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas (CECOQ). 119 LIMA, Solimar Oliveira e SANTOS, Daniely Monteiro. Movimento Quilombola do Piauí: participação e organização para além da terra. Revista Espacialidades [online]. 2013, v. 6, n. 5. ISSN 1984-817x. Disponível em: https://cchla.ufrn.br/espacialidades/v6n5/Espacialidades_v6n5_10.pdf Acessado em: 20 de outubro de 2015. p. 207-208. https://cchla.ufrn.br/espacialidades/v6n5/Espacialidades_v6n5_10.pdf 49 nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999; (5) - Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964; (5) - Decreto nº 59.428, de 27 de outubro de 1966; (6) - Decreto nº 433, de 24 de janeiro de 1992; (7) - Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993; (8) - Medida Provisória nº 2.183-56, de 24 de agosto de 2001; (9) Lei nº 10.267, de 28 de agosto de 2001; (10) - Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003; (11) - Convenção Internacional nº 169, da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, promulgada pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004; (12) - Lei nº 10.678, de 23 de maio de 2003; (13) - Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007; (14) - Convenção sobre Biodiversidade Biológica, promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998.120 Esse composto de normas serviu para fundamentar as ações iniciais das cento e dezenove (119) localidades que reivindicavam a demarcação do território. Além das leis, artigos e decretos específicos para os remanescentes quilombolas, observa-se que existiam outras prescrições que foram inseridas na fundamentação legal, com a finalidade de respaldar as mobilizações durante os processos de organização e territorialização da comunidade. Nesse sentido, esse composto de normas nos chama atenção por possuir diretrizes que foram promulgadas anteriormente a Constituição Federal de 1988, a exemplo das Leis: nº 4.132, de 10 de setembro de 1962; nº 4.504, de 30 de novembro de 1964; e o Decreto nº 59.428, de 27 de outubro de 1966; que são referentes ao Estatuto da Terra e de outras providências. A partir desse conjunto de leis, a comunidade recebeu orientações para a regulamentação dos direitos e obrigações concernentes aosbens imóveis rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola. Além disso, essas determinações consideram a Reforma Agrária e idealizam um conjunto de medidas que visam promover melhor a distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade, bem como para assegurar e conservar os recursos naturais das propriedades. De modo geral, as prescrições que fundamentaram as ações das localidades estavam amplamente ligadas às discussões de Reforma Agrária e aos desenvolvimentos possíveis que poderiam ser executados a partir do conjunto legal, que referenciava as mobilizações desses grupos. Nessa perspectiva, como foi mencionado anteriormente, após uma série de discussões que procuraram localizar os quilombolas dentro de uma nova estrutura semântica, a publicação do Decreto nº 4.887/2003 considerou os “remanescentes de comunidades quilombolas” como um grupo étnico-racial. Sendo assim, quais seriam os “por quês” das ações mobilizadas pelas comunidades estarem pautadas em discussões sobre Reforma Agrária, tendo em vista a Constituição Federal de 1988 ter proporcionado bases sólidas em relação ao direito à terra? 120 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010, p. 11-12. 50 Embora a comunidade tenha sido reconhecida enquanto um quilombo contemporâneo, compreendo que a demarcação e posse das terras sempre foram importantes para os lagoanos. Desse modo, mesmo compreendendo que o processo de territorialização só acontece a partir da autodeclaração da comunidade, quero chamar a atenção aqui para as discussões territoriais e o quanto elas são essenciais para os quilombos, pois as relações com a terra antecederam o processo de construção da identidade quilombola do grupo, isto é, antes mesmo das cento e dezenove (119) localidades se tornarem apenas uma, todas elas possuíam relações com as terras em que habitavam, já o sentido de identidade quilombola foi construído ao longo dos anos. Dessa maneira, essa afirmativa talvez explique os “por quês” da fundamentação legal utilizada pela comunidade Lagoas para assegurar as suas ações nos processos de organização e territorialização. Ou seja, entendemos aqui que o conjunto de normas que tratam a respeito do estatuto da terra, pelo qual serviu de fundamentação para embasar esses processos, possui uma relação direta com a existência desses sujeitos e a utilização dessas terras, no qual encontraram respaldo constitucional para que o Estado efetivasse políticas públicas relacionadas a valorização e permanência desses grupos em suas localidades. A relação das comunidades quilombolas brasileiras com a terra, antes de se autodeclararem, era identificada e resumida apenas em “terras de preto”,121 que eram habitadas por algumas comunidades negras rurais. No contexto nacional, essa identificação nem sempre foi associada à uma tradição ou ancestralidade quilombola, que, por sua vez, só obteve esse tipo de reconhecimento com a redação do Artigo 68 na Constituição Federal, com a proposta de associar as suas vivencias à memória pública da escravidão e da abolição. De acordo com as historiadoras Hebe Mattos e Ana Rios (2005) e o historiador Robert Slenes (1996), as comunidades quilombolas contemporâneas passaram a referenciar a memória do cativeiro e a posse coletiva da terra a partir do “[...] seu mito de origem em doações senhoriais realizadas no contexto da abolição”.122 Nesse mesmo seguimento, a comunidade quilombola Lagoas também associou a posse da terra à sua história de vida, e aos conflitos fundiários enfrentados, como aspectos que os enquadravam como povos de direito no Artigo 68. Nos relatos de alguns moradores, constam- 121 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de Preto. Terras de Santo. Terra de Índio. Em: Habette, J. /Castro, E. M. (Orgs.): Cadernos NAEA, UFPA, 1989, p. 165-196. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de Preto no Maranhão: Quebrando o mito do isolamento. São Luís: Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN- MA) e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), 2001. 122 MATTOS, Hebe; RIOS, Ana Lugão. Memórias do Cativeiro, Família, Trabalho e Cidadania no Pós- Abolição. Rio de Janeiro: Record, 2005; SLENES, Robert W. (1996): “Histórias do Cafundó”. Em: Vogt, Carlos/Fry, Peter (Orgs.): Cafundó. A África no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras e Editora da UNICAMP, pp. 37-102 51 se memórias ligadas ao cativeiro e a ancestralidade negra nas terras, como relata a quilombola Maria Ferreira: Eu não alcancei o cativeiro, mas tinha gente que foi do cativeiro. Nós mesmos, minha família era de índio, minha avó foi pega a dente de cachorro. Minha vó era índia gente brabo do mato! Meu avô era índio, filho de índia. A avó dessa velha [esposa] aí, era do cativeiro. Minha família é uma mistura: tem índio, preto e branco. Meu pai era branco e minha mãe era preta. Minha mãe era da região de Lajes [região de Sítio da Aldeia] e meu pai também. (Maria Ferreira, 86 anos. Comunicação oral, Localidade, Umburana).123 Relatos como esse, ligados à memória, contribuíram para ampliação dos direitos quilombolas. Além do Artigo 68, em 2000 foi promulgado o Art. 216 que decretou que conferia às comunidades quilombolas o significado de patrimônio cultural em relação à sua própria memória, história e expressão cultural, pois os “[...] bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à nação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”,124 garantiram a proteção do patrimônio cultural brasileiro, compreendendo os termos culturais e sociais como de direitos, entre eles os afrodescendentes. Nesse caso, a compreensão das comunidades quilombolas como patrimônios culturais, passou a fortalecer as reivindicações frente à luta pela territorialização das suas terras, os compreendendo assim como remanescentes de um campesinato negro formado no contexto da desagregação do escravismo no país, ao longo da segunda metade do século XX. De acordo com Hebe Matos e Martha Abreu (2011), “[...] as novas formas de se conceber a condição de patrimônio cultural nacional tem permitido que diferentes grupos sociais, utilizando as novas leis e o apoio de especialistas, revejam as imagens e alegorias de seu passado”.125 Nesse sentido, essas novas formas passaram a fazer com que a comunidade Lagoas decidisse o que os definiam como povo identitário, seja através das festas, das tradições orais ou dos locais de memória. No caso da comunidade, os sentidos de religiosidade se expressam em festas de Reis e de São Gonçalo, assim como em novenas, nas celebrações dos terços, nos benzimentos e curandeirismo. Desse modo, foi a partir das relações com a terra e com os aspectos culturais que a comunidade se inseriu na luta para que as suas ligações com os territórios não fossem esquecidas. 123 MATOS, Simone de Oliveira. Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia. (Dissertação em Antropologia). Teresina (PI), agosto de 2013, p. 50. 124 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1998b. 125 MATTOS, Hebe. ABREU, Martha. “Remanescentes das Comunidades dos Quilombos”: memória do cativeiro, patrimônio cultural e direito à reparação. Iberoamericana, XI, 42, 2011, p. 148. Disponível em: <https://www.iai.spk-berlin.de/fileadmin/dokumentenbibliothek/Iberoamericana/42- 2011/42_Mattos_y_Abreu.pdf> Acessado em: 16 de junho de 2020. https://www.iai.spk-berlin.de/fileadmin/dokumentenbibliothek/Iberoamericana/42-2011/42_Mattos_y_Abreu.pdfhttps://www.iai.spk-berlin.de/fileadmin/dokumentenbibliothek/Iberoamericana/42-2011/42_Mattos_y_Abreu.pdf 52 De todo modo, não pretendemos aqui discutir a respeito de como se deu o processo de construção identitária dos lagoanos ou a partir de que momento eles começaram a se reconhecerem enquanto um grupo étnico. O que ressaltamos, é que a questão territorial é algo presente em todas as cento e dezenove (119) localidades (antes do processo de construção da comunidade Lagoas), sendo este um aspecto que antecede o processo de construção de uma identidade da comunidade Lagoas. Desse modo, embora a historicidade do território quilombola envolvam questões espaciais e étnicas, queremos destacar aqui a sua dimensão espacial e a sua relação com o social. Nesse sentindo, o nosso foco é tratar sobre a historicidade do território da comunidade e evidenciar as mobilizações que contribuíram para a organização e territorialização da comunidade Lagoas,126 isto é, compreende-se que “[...] evidentemente, o território se apoia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço”.127 Ainda na perspectiva anterior, outra norma que não aparece na fundamentação legal do relatório técnico, mas que é citada várias vezes no corpo do documento, foi a Lei estadual do Piauí nº 5.595, sancionada em 1º de agosto de 2006, que trata a respeito da regularização fundiária de áreas ocupadas por remanescentes de comunidades dos quilombos. Nesse sentido, Wellington Dias (governador do estado), por meio de suas atribuições, apresentou os incisos I, V e XIII, do art. 102, da Constituição Estadual, no qual decretou, a partir das ações do Instituto de Terras do Piauí – INTERPI, o Programa Estadual de Regularização das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Nesse contexto, esses incisos declararam competência ao INTERPI, no que diz respeito a adotar os procedimentos administrativos para a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas, de modo que assegurasse a participação de técnicos da secretaria nas mobilizações das comunidades remanescentes de quilombolas do Estado. Além de reforçar os direitos constitucionais federativos, a Lei nº 5.595, no art. 4º, decretou que o INTERPI poderia “[...] estabelecer convênios, contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, municipal, organizações não governamentais e entidades privadas observadas a legislação pertinente [...]”,128 garantido assim a participação dos quilombos em todas as fases do procedimento administrativo, 126 É essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Apoja-se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator~ "territorializa" o espaço. Consultar: RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. Tradução: María Cecilia França, 1993, p. 143. 127 RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. Tradução: María Cecilia França, 1993, p. 144. 128 Disponível em < https://www.normasbrasil.com.br/norma/lei-6383-1976_81079.html > Acessado em: 10 de junho de 2019. https://www.normasbrasil.com.br/norma/lei-6383-1976_81079.html 53 diretamente ou por meio de representantes por eles indicados, como aconteceu com a comunidade remanescente quilombola Lagoas. Nesse sentido, a possibilidade aberta nessa lei colaborou para mobilizar e organizar melhor as comunidades remanescentes quilombolas do estado, sobretudo aquelas que, no ano de aprovação da lei, ainda se encontravam no processo de reconhecimento e titulação dos seus territórios. Em relação ao INTERPI, este se portou como o principal órgão responsável pela administração e regularização das terras das estaduais. Criado através da Lei nº 3.783, de 16 de dezembro de 1980, o Instituto de Terras do Piauí passou a desempenhar a função de órgão executor da política fundiária do Estado, que, por sua vez, investiu na promoção de arrecadação de terras devolutas. Inserido na legislação federal e estadual, o instituto reconheceu algumas posses como legítimas, a exemplo de famílias que ocupavam as terras ou que já haviam as comprado. Ainda sobre a Lei, no seu art. 11º, declarou que o Poder Executivo, por meio do INTERPI, garantiria e legitimaria à sua autoria, no que diz respeito a regularização fundiária das ocupações incidentes sobre terras públicas estaduais. Ou seja, o Instituto de Terras do Piauí emergiu assumindo funções importantes desde a década de 1980. A história do INTERPI, por sua trajetória, foi amplamente ligada à regularização fundiária das terras do estado. O instituto se estabeleceu como autarquia estadual, exercendo uma personalidade jurídica no direito público. Em relação aos remanescentes quilombolas, de acordo com as pesquisas da Fundação Cultural Palmares em 2013,129 haviam cento e oito (108) certificações para cento e dezessete (117) comunidades identificadas no Piauí, no qual o INTERPI, juntamente com o INCRA, corroborou com a titulação de cinco territórios no mesmo período. A parceria existente entre esses dois órgãos, de acordo com Almendra Filho (2018), só foi possível em decorrência das objetivações de ambos, que estão relacionadas a regulamentação das propriedades rurais e que abarcam as comunidades negras. Os objetivos são: executar atividades visando apoiar a implementação do programa de regularização da posse de terras e o fortalecimento dos direitos às propriedades rurais através de, inter alia: (a) fortalecimento e modernização do INTERPI; (b) executar a identificação, a demarcação e o cadastro de terras estaduais; (c) executar o programa de regularização da posse de terra; e (d) apoiar a operacionalização dos Centro de Regularização da Posse de Terras.130 Quase todas essas atividades são objetivações desses dois órgãos, pois como aponta Almendra Filho (2018) “[...] o papel específico do INTERPI é voltado para a concessão de títulos de propriedade, para aquelas pessoas que ocupam áreas públicas, de forma irregular e 129 Disponível em: < www.palmares.gov.br. > Acesso em: 17/03/2019. 130 ALMENDRA FILHO, José Horácio Gayoso e. Estudo exploratório do INTERPI na implementação da política fundiária do Estado do Piauí / José Horácio Gayoso e Almendra Filho. - 2018. 106 f., p. 45. http://www.palmares.gov.br/ 54 produzem nelas e cumprem a sua função social”.131 Nesse sentido, a Lei estadual de nº 5.595 ao estabelecer vínculo com o INTERPI, passou, por meio deste, a promover e reforçar convênios com instituições competentes que contribuíram com projetos sociais e educacionais. Além disso, visavam também promover a subsistência econômica dos moradores da comunidade remanesce quilombola Lagoas. Sendo assim, todos os convênios estabelecidos e as fundamentações legais objetivaram quatro aspectos importantes: Apresentar o levantamento fundiário, contendo a seguinte descrição e informações: (1) apresentar planta e memorial descritivo do perímetro da área reivindicada pelas comunidades remanescentes de quilombo, bem como mapeamento e indicação dos imóveis e ocupações lindeiros de todo o seu entorno e, se possível, a indicação da área ser averbada como reserva legal, no momento da titulação; (2) Análise das informações retiradas do cadastramento das famílias remanescentes de comunidades de quilombos, utilizando-se formulários específicos do INCRA; (3) Levantamento e especificação detalhada de situações em que as áreas pleiteadas estejam sobrepostas a unidades de conservação constituídas, a áreas de segurança nacional, a áreas de faixa de fronteira, terras indígenas ou situadas em terrenos de marinha, emoutras terras públicas arrecadadas pelo INCRA ou Secretaria do Patrimônio da União e em terras dos estados e municípios; e (4) Apresentar os resultados do levantamento ocupacional e agroambiental de caracterização do território quilombola pleiteado pelos remanescentes do quilombo Lagoas, localizado nos municípios de São Raimundo Nonato, Fartura, Bonfim, Dirceu Arcoverde, Várzea Branca e São Lourenço.132 Nesse sentido, observamos que os objetivos circulavam em torno da construção do território quilombola, no qual visava materializar a área demarcada, reunir dados acerca do número de famílias e levantar informações pertinentes em relação às unidades de conservação. Relativo ao cadastramento das famílias no território que passaria a ser construído, havia também a preocupação em organizar informações a respeito de eventuais ocupantes não-quilombolas, com a descrição das áreas por eles ocupadas, com a respectiva extensão, as datas dessas ocupações e a descrição das benfeitorias existentes, assim também em relação a descrição das áreas pertencentes a quilombolas, que têm título de propriedade. Além disso, procuraram também informações sobre a natureza das ocupações dos não-quilombolas, como a identificação dos títulos de posse ou domínio eventualmente existentes e informações sobre a forma e fundamentos relativos à expedição do documento que deveria ser obtido junto ao órgão expedidor. Sendo assim, para que os objetivos pudessem ser alcançados, assim como para orientação dos trabalhos e apresentação dos resultados, considerou-se os elementos da Instrução a Lei Estadual do Piauí No 5.595, que previa o estabelecimentos dos convênios, a exemplo dos 131 ALMENDRA FILHO, José Horácio Gayoso e. Estudo exploratório do INTERPI na implementação da política fundiária do Estado do Piauí / José Horácio Gayoso e Almendra Filho. – 2018, p. 78. 132 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010, p. 10-11. 55 que foram estabelecidos com a Cáritas Brasileira (regional Piauí) e do Projeto Dom Helder Câmara, que, na verdade, foram mais reafirmadas, pois ambas instituições já estabeleciam contato com algumas localidades do território que visava ser construído. Desse modo, no próximo tópico abordaremos sobre as relações de convênios entre as localidades e as instituições citadas anteriormente, realizadas na comunidade e em escritório, como a finalidade de evidenciar a capacidade dos lagoanos de estabelecer contatos e de se organizar para iniciar o processo de territorialização da comunidade Lagoas. 1.3 Relações de convênio: Projeto Dom Helder Câmara e a Cáritas Brasileira Na década de 1980, momento em que as discussões sobre o movimento negro estavam em alta, a Igreja Católica no Piauí passou a estabelecer relações com as comunidades quilombolas piauienses, realizando trabalhos de identificação das comunidades. De acordo com os historiadores Solimar Lima e Daniely Santos (2013), as relações iniciais estabelecidas possuíam a intenção de organizar as várias comunidades com a finalidade de conhecer a realidade desses grupos e assim elaborar soluções no que diz respeito aos problemas sociais que afligiam as comunidades rurais. A Comunidade Eclesiástica de Base na Comunidade Quilombola Tapuio foi iniciada pela juventude que se reunia, mas não tinha nada de concreto concluído. Não tinha espaço físico, os mais velhos não participavam muito, achavam que não tinha sentido algum. A primeira ação concreta foi um mutirão para construirmos o salão comunitário. Tivemos o apoio de pedreiros da nossa comunidade. As telhas foi um apoio que conseguimos das Cáritas. O piso nós conseguimos com o dinheiro arrecadação de uma festa organizada por nós. Essa ação concreta conquistou a confiança da comunidade.133 Assim como na comunidade Tapuio, outras comunidades quilombolas piauienses também contaram com a solidariedade de agentes externos. Nesse sentido, os autores apontam que as comunidades eclesiásticas de base “[...] entraram nas comunidades negras rurais realizando um trabalho que consistia em, além de evangelizar, organizar vários grupos de trabalhadores rurais para discutir e achar respostas aos vários problemas que afligiam as comunidades rurais”.134 Não distante dessa experiência, a formação territorial da comunidade Lagoas foi estabelecida, inicialmente, a partir da mobilização de agentes externos (Cáritas Brasileira e Projeto Dom Helder Câmara), através de convênios, juntamente com as localidades que 133 SANTOS, C. A. B. P. Quilombo Tapuio (PI). 2006. 278 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília, 2006, p. 177. 134 SANTOS e LIMA. Movimento Quilombola do Piauí: participação e organização para além da terra. Revista Espacialidades [online]. v. 6, n. 5, 2013, p. 191. 56 começaram a se organizar para discutir sobre a unificação destas em um único território. Além disso, as primeiras relações que foram estabelecidas com esse intuito, serviram para ir sanando as dúvidas dos diversos sujeitos que estavam interessados em saber como ocorreria esse processo. Apoiados nessas discussões, esses povos começaram a desenvolver atividades organizacionais para, em seguida, realizarem a construção e domínio do território, pois entendemos que em um território tão extenso, no caso da comunidade Lagoas, nada é dado de partida, no qual deve-se considerar que havia um imbricado complexo de terras reunidas, que, por sua vez, estavam sob o domínio de povos que possuem direitos frente ao Estado, isto é, que necessitavam se reconhecer enquanto quilombolas e possuir um território unificado que estivesse sob o próprio controle da comunidade. Ainda no seguimento anterior, vale ressaltar que compreendemos, a princípio, que os diversos grupos das localidades começaram a se imaginar enquanto uma comunidade, sendo inicialmente num sentido étnico,135 isto é, que se autodeclarou quilombola, para que depois pudesse ocorrer todo o processo de territorialização – construção do quilombo em que habita esse grupo étnico –, que se configura como a materialização dessa comunidade. Desse modo, neste tópico, discutirei a importância dos convênios estabelecidos pela comunidade, com o Projeto Dom Helder Camara e a Cáritas, e de que forma essas relações contribuíram com a luta dos lagoanos. Iniciando com o Projeto Dom Helder Câmara (PDHC), e de acordo com Rosane Gurgel (2016),136 esse projeto tem contribuído massivamente no que diz respeito à agricultura familiar e à assessoria técnica no sertões do Nordeste, pois o mesmo parte de um acordo firmado entre o MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), através da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), e o FIDA (Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola), que são programas atuantes no fortalecimento de políticas de agricultura familiar e de Reforma Agrária no semiárido nordestino. Nesse sentido, o projeto foi criado como uma resposta governamental à demanda de movimentos sindicais e sociais: ONGs e Igrejas; com a finalidade de desenvolver à agricultura familiar na região semiárida nordestina. 135 Entendemos que a autodeclaração, enquanto quilombola, é só o início do reconhecimento enquanto grupo étnico, pois, assim como o território, uma identidade étnica também passará por um processo de construção. Todavia, não focaremos aqui como se deu a construção identitária da comunidade Lagoas, de modo que só focaremos, nesse primeiro capítulo, somente nesse princípio de imaginação enquanto comunidade étnica, que é o que nos dará base para discutir o processo de materialização (territorialização)dessa comunidade imaginada. 136 GURGEL, Rosane Fernandes de Sousa. Agricultura familiar e assessoria técnica: uma análise da experiência do Projeto Dom Helder Câmara no Território Sertão do Apodi/RN / Rosane Fernandes de Sousa Gurgel. - 2016. 105 f. : il. 57 Pensando em orientar sobre políticas públicas de combate à pobreza, assim como apoiar o desenvolvimento rural sustentável, o PDHC adotou o paradigma da agroecologia como norteador de suas ações, que nada mais é do que romper com a noção de transferência de tecnologias, adotando um enfoque de geração participativa de conhecimentos. Desse modo, a intenção é reunir famílias agricultoras e assessoria técnica como forma de potencializar as atividades nas comunidades. Sobre a influência da Igreja Católica na organização de movimentos sociais que passaram a integrar redes, a figura de Dom Hélder Câmara está como o maior proponente da América Latina de uma luta não violenta pela libertação das populações exploradas e pobres. Neste sentido, a luta do movimento da Igreja contra a pobreza e a exploração das classes trabalhadoras era construída sob uma interpretação bíblica feita sobre o Novo Testamento, que pode ser lido como guia para um movimento totalmente pacifista.137 Iniciado em 2002, o PDHC é um projeto que foi criado pelo Governo Federal e, logo em seguida, o inseriram no plano de desenvolvimento rural do país. De acordo com Josiani Morais e Angelo Callou (2017),138 o PDHC atende as famílias do campo, principalmente para promover o aumento da produção dos grupos que constituem as localidades rurais, como também para contribuir na diminuição da pobreza, se tornando, assim, um agente relevante para o fortalecimento da agricultura familiar, desenvolvendo metodologias participativas que possam contribuir para o aumento da capacidades e oportunidades dos sujeitos inseridos nas localidades que recebem o projeto.139 Desse modo, no que se refere a atuação do PDHC na comunidade remanescente quilombola Lagoas, considera-se que: A elaboração deste relatório de identificação foi patrocinada pelo Projeto Dom Helder Câmara. No dia 10 de setembro de 2010, tal documento foi transferido para o domínio das famílias remanescentes da comunidade quilombola de Lagoas. Portanto no dia 14 de setembro de 2010, resguardados pelo § 5º do VI do Art. 10, na qual faculta à comunidade interessada apresentar peças técnicas necessárias à instrução do RTID, encaminharam o relatório Técnico Antropológico para apreciação, e no dia 27 de setembro de 2010 foi recomendada por Antropólogo do INCRA sua incorporação como peça do RTID.140 Compreende-se então, que o PDHC atuou como patrocinador no desenvolvimento do relatório técnico da comunidade, tanto durante a elaboração do documento como também ao 137 ARAÚJO, E. R de; JALFIM, F. T.; SIDERSKY, P. R. A Estratégia de Assessoria Técnica do Projeto Dom Helder Câmara. 2. ed. p. 9-19, 2010. 138 MORAIS, Josiani Alves de e CALLOU, Angelo Brás Fernandes. Metodologias participativas e desenvolvimento local: a experiência do Projeto Dom Hélder Câmara no assentamento Moacir Lucena. NTERAÇÕES, Campo Grande, MS, v. 18, n. 1, p. 165-177, jan./mar. 2017. 139 ARAÚJO, E. R; JALFIM, F. T.; SIDERSKY, P. R. A estratégia de assessoria do projeto Dom Helder Câmara. 2. ed. Recife: Projeto Dom Helder Câmara, 2010, p. 166. 140 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010, p. 12. 58 transferi-lo, após finalizado para as lideranças da comunidade. Nesse sentido, entendemos que as relações de convênios que a comunidade Lagoas estabeleceu, a partir da Lei Estadual do Piauí No 5.595, foi fundamental para o relato e materialização do processo de territorialização, ao construir o relatório técnico com informações a respeito da comunidade quilombola Lagoas. Partindo desse raciocínio, entendemos que todo o conjunto de leis funcionaram como estratégias elaboradas pelo Estado para organizar o acesso das comunidades remanescentes quilombolas a políticas públicas. Em compreensões gerais, das relações estabelecidas entre a comunidade quilombola e o PDHC, no início das táticas organizacionais, objetivava-se colaborar com a permanência das famílias, no que diz respeito a participação em uma gestão mais sustentável em suas atividades produtivas, pois se essas atividades se tornassem mais produtivas, logo os quilombolas poderiam permanecer em suas terras, o que contribuiria para uma estabilidade dos núcleos familiares. Sendo uma meta bastante restrita, o projeto conseguiu ampliar os seus objetivos específicos, a exemplo de apresentar novas oportunidades para as mulheres que estão envolvidas nos projetos, isto é, a temática de gênero também foi agregada nos programas de formação. Essa questão só foi possível a partir de 2007, quando o PDHC lançou documentos novos que objetivaram o fortalecimento de questões especificas, como os processos (participativos e solidários) que eram desenvolvidos nas localidades, com a finalidade de construir socialmente o desenvolvimento sustentável dos agricultores familiares e assentados. Todas essas medidas, em algum ponto, necessitaram de parcerias que estevam ligadas ao desenvolvimento territorial, sobretudo no que diz respeito a perspectiva da convivência com o semiárido, que, consequentemente, garante a transversalidade de etnia e gênero para que os recursos sócio- políticos, culturais, ambientais, tecnológicos e econômicos possam ser desenvolvidos.141 Nesse processo, a metodologia participativa assumiu funções importantes, pois contribuiu para que os sujeitos que trabalhavam com agricultura familiar conseguissem desenvolver suas potencialidades, isto é, as metodologias favoreciam todo o processo de aprendizado, a fim de que fosse estabelecido uma construção participativa dos conhecimentos específicos de cada localidade, partindo da vivência prática das famílias. Desse modo, o PDHC se constituiu um projeto de “[...] ações referenciais voltadas para o desenvolvimento sustentável do semiárido do Nordeste do Brasil, que orienta a suas ações embasado no conceito de 141 GURGEL, Rosane Fernandes de Sousa. Agricultura familiar e assessoria técnica: uma análise da experiência do Projeto Dom Helder Câmara no Território Sertão do Apodi/RN / Rosane Fernandes de Sousa Gurgel. - 2016. 105 f. : il. p. 61-62. 59 convivência com o semiárido, articulando as dimensões sociopolíticas, ambientais, culturais, econômicas e tecnológicas”.142 Sendo assim, a metodologia participativa foi estabelecida visando apoiar a promoção de políticas públicas, que possibilitassem o fortalecimento das práticas organizacionais autônomas e solidárias da comunidade Lagoas, a fim de conseguir estimular e potencializar a participação direta de jovens, bem como promover, apoiar e fortalecer as ações de inclusão étnica. Ou seja, por estar vinculado a um modelo contemporâneo no âmbito da extensão rural, o PDHC consegue intervir “[...] nas dimensões sociopolíticas, ambientais, culturais, econômicas e tecnológicas”,143 em comunidades rurais, como no caso da comunidade Lagoas, respeitando os princípios e saberes específicos dos ambientes em que estão inseridos. Nesse mesmo seguimento, outra instituição estabeleceu convênio com a comunidade Lagoas: a Rede Cáritas. Criada em 12 de novembro de 1956, na terceira assembleia da Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), em Serra Negra – SP, a Cáritas Brasileira era presidida pelo clérigo Dom Hélder Câmara, que na época era bispo auxiliar no Rio de Janeiro. O objetivo inicial era articular nacionalmente todas as “obras sociais” católicas e “[...] coordenar o Programa de Alimentos doados pelo governo dos Estados Unidos da América – EUA, por meio daCNBB”.144 No que diz respeito ao ponto de vista jurídico, a Cáritas ficou reconhecida como uma entidade pública federal, demarcando assim uma conexão entre o Estado e a Igreja Católica, isto é, juridicamente a Cáritas não é a uma instituição da Igreja Católica, mas sim um dos seus organismos. O marco legal que reconhece a Cáritas como de utilidade pública federal junto ao Estado, possibilita a sua inserção no campo da economia, viabilizando, inclusive, a captação de recursos para o desenvolvimento da Economia Popular Solidária (EPS). Até a década de 1960, o referido Programa de Distribuição de Alimentos foi desenvolvido na perspectiva denominada de “Desenvolvimento da Comunidade”, tornando-se a marca característica da Organização no cuidado com os pobres.145 Ligada à Igreja Católica e influenciada pela teologia da libertação, inclusive tendo como uma de suas pautas “[...] realizar a assistência social gratuitamente, mediante convênios e 142 GURGEL, Rosane Fernandes de Sousa. Agricultura familiar e assessoria técnica: uma análise da experiência do Projeto Dom Helder Câmara no Território Sertão do Apodi/RN / Rosane Fernandes de Sousa Gurgel. - 2016. 105 f. : il. p. 62. 143 CALLOU, A. B. F; TAUK SANTOS, M. S. Desafios da comunicação rural em tempo de desenvolvimento local. In: CALLOU, A. B. F.; TAUK SANTOS, M. S. (Org.). Extensão rural – extensão pesqueira: estratégias de ensino e pesquisa. 1. ed. Recife: FASA, 2013. p. 477-482. CAPORAL, F. R. Extensão rural e agroecologia: temas sobre um novo desenvolvimento rural, necessário e possível. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2007. 144 FORTE, Joannes Paulus Silva; GONÇALVES, Alícia Ferreira. A Cáritas Brasileira e a Economia Popular Solidária: o Agente de Cáritas e a Caridade Libertadora. Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 32, p. 1506-1524, out./dez. 2013, p. 1507. 145 Idem, p. 1508. 60 campanhas junto às comunidades locais [...]”,146 a Cáritas – tendo como representante a antropóloga Simone Matos – foi convidada a compor a equipe multidisciplinar para a elaboração de um relatório antropológico, no qual objetivava identificar grupos que se autodeclaravam remanescentes de quilombolas, principalmente no município de São Raimundo Nonato.147 Nesse sentido, Karoline Rodrigues (2007) afirma que a “[...] Cáritas participou de grande parte desse processo, contribuindo de forma muito significativa para a internacionalização da Igreja Católica e expansão da sua tradicional prática na mediação da pobreza”.148 Sendo uma entidade sem fins lucrativos, a Cáritas em conformidade com a LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social, especialmente o Art. 3º, Lei 8.742, tem como princípio “[...] promover ações de assistência social voltadas aos mais diversos grupos sociais e participar das obras e movimentos direcionados à assistência e promoção humana e formar e capacitar agentes para a ação social”.149 No conjunto de suas funções, a Cáritas promoveu inciativas para a melhoria de questões relacionadas à segurança alimentar e nutricional, economia solidária e fundos solidários, que envolveram mulheres, jovens e pequenos(as) agricultores(as), como relata Raimundo Marques, da localidade Lagoa das Emas: “[...] aqui nós era esquecido, não andava pessoas, começamos a ser visto com a Cáritas, quando começou a construir cisterna”.150 Nesse sentido, a Cáritas contribuiu nas “lutas emancipatórias, a partir de processos coletivos, organizativos, promovendo o protagonismo de grupos e comunidades, bem como no fortalecimento de iniciativas em redes de articulação, fórum e ações de incidência política”,151 que visam a inclusão e transformação social. Na perspectiva de apoiar a luta emancipatória da comunidade quilombola Lagoas, sobretudo no início das táticas realizadas entre os moradores das comunidades e os agentes sociais, a Cáritas também contribuiu realizando um: [...] estudo das relações entre os grupos étnico-raciais incidentes dentro deste território pleiteado pelas famílias de Lagoas, bem como sua trajetória histórica própria, dotadas de relações territoriais específicas e de presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, além da identificação e validação sócio- 146 Cáritas brasileira, 2005. 147 No contexto das mobilizações iniciais, foi a entidade convidada pelos líderes quilombolas que articulavam a territorialização da comunidade Lagos, por considerarem o tempo de atuação na região. 148 RODRIGUES, Karoline Parrião. Cáritas e ação social católica: “caridade libertadora” como solidariedade. III Jornada Internacional de Políticas Públicas, São Luís – MA, 28 a 30 de agosto 2007, p. 04. 149 Cáritas brasileira, 2005. 150 Entrevista concedida a Simone Oliveira, em 2009. 151 RODRIGUES, Karoline Parrião. Cáritas e ação social católica: “caridade libertadora” como solidariedade. III Jornada Internacional de Políticas Públicas, São Luís – MA, 28 a 30 de agosto 2007, p. 05. 61 histórica do território pleiteado foram efetivadas pela cientista social da Cáritas Diocesana, Simone de Oliveira Matos.152 O desenvolvimento desse estudo de conhecimento sobre as histórias das comunidades e como elas se relacionavam, pode ser compreendido como um processo de conhecimento e domínio sobre o território que visava ser demarcado, isto é, a organização de líderes para a comunidade, como também as relações estabelecidas com os agentes da Cáritas Brasil e do Projeto Dom Helder Câmara. Desse modo, os vínculos que foram estabelecidos empunhavam, em troca, que os agentes sociais e as lideranças quilombolas conhecessem melhor o território que seria pleiteado, do mesmo modo que, as quase mil e quinhentas (1.500) famílias, passaram a reconhecer esses sujeitos, o que caracterizou essas ligações enquanto atitudes fundamentais para a realização de todo o processo de construção do território, isto é, de levantamento da malha fundiária, da construção da planta e do memorial descritivo, do cadastramento das famílias, da realização do laudo agroambiental, entre outros. Sendo assim, considerando a dimensão da comunidade e a quantidade de moradores estabelecidos nela, essas agenciações, em grande medida, corroboraram para uma melhor dinâmica entre a comunidade, os seus líderes e os agentes externos que foram estabelecidos através dos convênios, que só puderam avançar positivamente por estarem respaldados no conjunto de normas constitucionais e, de forma especial, por meio da Lei Estadual de nº 5.595. Nesse sentido, compreendendo a importância da fundamentação legal ao qual a comunidade se embasou e como ela foi útil para a demarcação do território, no próximo capítulo discutiremos acerca da territorialização da comunidade e como as suas ações podem ser compreendidas enquanto um ato contra colonizador. 152 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010, p. 12. 62 CAPÍTULO II OS CONTRA COLONIZADORES E A TERRITORIALIZAÇÃO DO QUILOMBO LAGOAS E vamos compreender por contra colonização todos os processos de resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contra colonizadores, os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nesses territórios. A guerra da colonização nada mais é que uma guerra territorial, de disputa de territorialidades. Nesse contexto, nós, povos contra colonizadores, temos demonstrado em muitos momentos da história a nossa capacidade de compreender e até de conviver com a complexidade das questões que esses processos tem nos apresentado.153 Nêgo Bispo 153 SANTOS, AntônioBispo dos. Colonização, quilombos: modos e significados. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa. Universidade de Brasília, 2015, p. 48. Disponível em: http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/07/BISPO-Antonio.-Colonizacao_Quilombos.pdf. Acessado em: 20 de novembro de 2018. http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/07/BISPO-Antonio.-Colonizacao_Quilombos.pdf 63 2.1 A contra colonização sob uma perspectiva descolonial Na conferência realizada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 2007, a antropóloga Manuela da Cunha apresentou considerações importantes sobre as relações e dissensões entre saberes tradicionais e o saber científico, que merecem atenção, sobretudo no Brasil, por tratar da diversidade de saberes, de como eles são constituídos e se diferenciam em um mesmo espaço. A respeito, a autora pontuou que “[...] poderíamos começar notando que, de certa maneira, os conhecimentos tradicionais estão para o conhecimento científico como as religiões locais para as universais”,154 ou seja, os saberes tradicionais são diversos e estão inseridos em infindas comunidades locais, diferentemente do conhecimento científico que busca pela universalidade. Da mesma forma que a ciência moderna se expressa, a cultura dominante também teve a pretensão de ser universal, cujo se apresentou a partir da força de intervenção política, econômica e militar do colonialismo e do capitalismo moderno. Nesse sentido, Manuela da Cunha destacou que a epistemologia dominante suprimiu diversas práticas socioculturais que contrariavam os seus interesses, provocando assim a redução da diversidade epistemológica do mundo. Em contraposição às práticas estendidas pela colonialidade, a antropóloga observou que o único caminho aceitável, entre os saberes tradicionais e o saber científico, seria o de discutir e valorizar a diversidade epistêmica que (re)existe na contemporaneidade, isto é, somente a partir de um “giro decolonial”, conceito cunhado por Ramón Grosfoguel e Walter Mignolo (2008),155 é que outras expressões epistêmicas poderão coexistir no mundo. Inserido nessa perspectiva, ao discutir sobre territorialidade e as relações étnico-raciais a partir dos quilombos, Nêgo Bispo iniciou um debate importante acerca dos modos e significados quilombolas e a força contra colonizadora que esses povos possuem. Essa visão, mesmo que indiretamente, estabelece relação com dois grupos de estudos: os Estudos Subalternos descoloniais e os Estudos Étnicos; que são direcionados a novas produções historiográficas nas Américas, no qual discutem, por exemplo, a respeito dos mecanismos de produção da vida politeísta, da biointeração e dos saberes orgânicos criados pelos povos contra colonizadores em contraposição ao monoteísmo, a monocultora e a perspectiva de mundo capitalista. 154 CUNHA, Manuela Carneiro Da. Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico. Revista USP, São Paulo, n.75, 2007, p. 293. 155 GROSFOGUEL, Ramón; MIGNOLO, Walter. Intervenciones decoloniales: una breve introducción. Tabula Rasa. Revista de Humanidades. Bogotá, n. 9, p. 29-37, 2008. 64 Em relação aos Estudos Subalternos descoloniais, o sociólogo Ramón Grosfoguel (2008) coloca que uma perspectiva epistêmica proveniente do lado subalterno da diferença colonial visa, em tese, contribuir para a criação de uma perspectiva crítica que seja capaz de transcender algumas compreensões epistêmicas colonialistas. De acordo com o sociólogo, embora alguns membros do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos terem conseguido produzir trabalhos alternativos e radicais, tais estudos não alcançaram a libertação do sistema epistêmico dos Estudos Regionais dos Estados Unidos. Além disso, o autor aponta que raras exceções optaram por fazer pesquisas sobre a perspectiva subalterna, pois o interesse maior estava voltado para a corrente pós-estruturalista. Os latino-americanistas deram preferência epistemológica ao que chamaram “os quatro cavaleiros do Apocalipse”, ou seja, a Foucault, Derrida, Gramscie e Guha. Entre estes quatro, contam-se três pensadores eurocêntricos, fazendo dois deles (Derrida e Foucault) parte do cânone pós-estruturalista/pós-moderno ocidental. Apenas um, Guha, é um pensador que pensa a partir do Sul.156 Entre muitas razões que conduziram o grupo Latino-americano de Estudos Subalternos à desagregação, Ramón Grosfoguel coloca que o principal motivo foram as críticas, de outros grupos de Estudos Subalternos, que afirmavam que os Estudos Latino-americano consideravam a subalternidade uma crítica pós-moderna, fugindo, assim, dos propósitos dos estudos subalternos que visavam produções críticas à colonialidade. Em contraste ao Grupo Latino- americano, o autor pontua que o Grupo Sul-asiático de Estudos Subalternos apresentou importantes contribuições críticas ao eurocentrismo, pois se inseriam num movimento intelectual de crítica pós-colonial que se opunha à crítica pós-moderna. No entanto, embora estes grupos tenham realizado pesquisas importantes, o sociólogo ressalta que as críticas da perspectiva descolonial estão para além dos aspectos que diferenciam esses grupos. Há três aspectos importantes que têm de ser aqui referidos: 1) uma perspectiva epistémica descolonial exige um cânone de pensamento mais amplo do que o cânone ocidental (incluindo o cânone ocidental de esquerda); 2) uma perspectiva descolonial verdadeiramente universal não pode basear-se num universal abstrato (um particular que ascende a desenho – ou desígnio –universal global), antes teria de ser o resultado de um diálogo crítico entre diversos projetos críticos políticos/éticos/epistémicos, apontados a um mundo pluriversal e não a um mundo universal; 3) a descolonização do conhecimento exigiria levar a sério a perspectiva/cosmologias/visões de pensadores críticos do Sul Global, que pensam com e a partir de corpos e lugares étnico-raciais/sexuais subalternizados.157 156 GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais. Tradução de Inês Martins Ferreira, 2008, p. 42. 157 Idem, p. 44. 65 Nesse sentido, percebemos que, enquanto projetos epistemológicos, o pós-modernismo e o pós-estruturalismo e os estudos pós-coloniais encontram-se aprisionados no interior do cânone ocidental. Mesmo que não seja intencional, essas perspectivas tendem a reproduzir, dentro dos seus domínios de pensamento e prática, uma determinada forma de colonialidade do conhecimento que parte da Europa. Com isso, notamos também que tanto as primeiras produções coloniais como também os estudos pós-coloniais e pós-modernos possuem uma base fundamentalista, tendo algo em comum, como exemplo, a perspectiva de mundo eurocêntrica que sustenta toda uma tradição epistêmica acerca dos grupos subalternos. Os paradigmas eurocêntricos hegemônicos que, ao longo dos últimos 500 anos, inspiraram a filosofia e as ciências ocidentais do nosso sistema-mundo estão enraizadas nas lógicas: patriarcal, capitalista, colonial e moderna; que assumem um ponto de vista universalista e objetivo. De acordo com Ramón Grosfoguel, ninguém escapa das irredutíveis hierarquias de classe, sexuais, de gênero, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais desse sistema mundial, sendo assim, é importante definir bem o lócus da enunciação de quem fala, isto é, o lugar geopolítico e corpo-político do sujeito que fala. O que defendo é o seguinte: todo o conhecimento se situa, epistemicamente, ou no lado dominante, ou no lado subalterno das relações de poder, e isto tem a ver com a geopolítica e a corpo-política do conhecimento.A neutralidade e a objetividade desinserida e não-situada da geopolítica do conhecimento é um mito ocidental.158 Partindo dessa perspectiva, podemos compreender que a filosofia ocidental sempre privilegiou a “egopolítica do conhecimento” e desfavoreceu à “geopolítica do conhecimento”, fazendo com que o homem ocidental representasse o seu conhecimento como o único capaz de alcançar uma consciência universal e dispensasse o conhecimento não-ocidental, pois seria incapaz de alcançar a universalidade. Em contrapartida as essas imposições, compreendemos que os Estudos Subalternos direcionados às Américas são, indubitavelmente, importantes para romper com a racionalidade eurocêntrica. No mesmo sentido dos Estudos Subalternos, o sociólogo Maldonado Torres (2006) coloca que os Estudos Étnicos partiram da necessidade de conhecer o mundo não-europeu. Para que esses desejos fossem concretizados e viabilizados, tais estudos passaram a direcionar as suas próprias pesquisas das ciências sociais para o estudo das sociedades não-europeias e não- estadunidenses. Percebemos que, a partir dessa necessidade, os Estudos Étnicos deram um passo importante. Certamente, os objetivos se encontravam para além de “apenas 158 GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais. Tradução de Inês Martins Ferreira, 2008, p. 46. 66 conhecimento” sobre outros continentes, mas vieram muito com propósito de iniciar estudos descolonizadores. Ao buscar estabelecer estudos interdisciplinares, os Estudos Étnicos se apropriaram de diversas disciplinas, a exemplo de sociologia e geografia. Tais contatos entre as disciplinas contribuíram para lançar luz sobre a complexidade do mundo com o qual os Estados Unidos agora se defrontava. Com isso, os Estudos Étnicos passaram a representar uma nova percepção sobre a história, buscando se distanciar da historiografia europeia, que outrora era pensada como o ápice da civilização humana. Desse modo, os Estudos Étnicos visavam como objeto de estudo os distintos grupos minoritários dentro de um estado-nação, a exemplo dos grupos de afro-americanos, asiático-americanos, povos indígenas e latinos, sendo orientados por uma agenda de descolonização interna. Partindo desses debates, podemos compreender que a noção de “povos contra colonizadores”, do mestre Nêgo Bispo, se relaciona com a proposta descolonial dos Estudos Subalternos e do Estudos Étnicos, no que refere pensar a territorialização quilombola como uma ação contra colonizadora, considerando que a territorialização é “[...] um processo que envolve o exercício de relações de poder e a projeção dessas relações no espaço”.159 Desse modo, compreendo que discutir a territorialização do quilombo Lagoas-PI, a partir da perspectiva de Nêgo Bispo, faz com que as estruturas institucionais e epistemológicas que estão relacionadas à colonialidade sejam descolonizadas, pois as ações da comunidade partem da capacidade de pensar, agir e se relacionar com outros grupos não-quilombolas, isto com a finalidade de territorializar e ocupar legalmente os seus espaços. No caso da comunidade quilombola Lagoas, destaco que a sua ação contra colonizadora ocorreu desde início com a articulação das leis que fundamentam os seus direitos, com os convênios estabelecidos e com a sua capacidade de mobilização organizacional. Em relação ao último aspecto citado, ressalta-se que entre os anos de 2005 e 2007 as informações sobre a mobilização organizacional da comunidade são bastantes específicas de algumas localidades, a exemplo do que consta sobre os “[...] debates iniciais ocorridos a partir de 2005, com presença de lideranças (nacionais, estaduais e locais) do Movimento Quilombola, que giravam em torno da organização e mobilização política do grupo, inicialmente, nas localidades Lagoa das Emas e Lagoa do Moisés”.160 159 SOUZA, Marcelo Lopes de. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013, p. 89. 160 MATOS, Simone de Oliveira. Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia. (Dissertação em Antropologia). Teresina (PI), agosto de 2013. p. 122. 67 Foi a partir dessas localidades que houve o interesse inicial de organização da comunidade, que passaram a se compreender, assim como visualizaram outras localidades próximas, como povos que possuíam ou estabeleciam relações de sociabilidade entre si.161 No entanto, antes de iniciar o processo de conhecimento e produção do território, foi necessário que essas localidades se organizassem e construíssem uma noção de unidade a partir das relações comunitárias que existiam entre elas. Nessa perspectiva, a antropóloga Simone Matos (2013), em sua pesquisa sobre a comunidade quilombola Lagoas, reforça a existência do sentimento de unidade e das relações de parentesco entre moradores de algumas localidades, enfatizando a ideia mútua de identificação entre os moradores. Nos percursos etnográficos, nas narrativas dos agentes sociais percebem-se, inicialmente, certas descontinuidades ou interrupções. No esforço para entender como se foi dando a organização do grupo pelas relações de parentesco, ficam evidentes, nas narrativas locais, as estreitas relações de sociabilidade e de solidariedade entre aqueles que viviam em condições sociais semelhantes. Disso resulta que ex- escravizados/as ou escravizados/as constituíram alianças, no sentido de uma grande família, “uma irmandade”. São situações que remontam ao tempo de bisavós e bisavôs, na Fazenda São Victor e a outras com as quais proprietários desta tinham relações, como Lagoa do Quari (QuariVelho), as Lagoas e Cansanção.162 Os lapsos de memória dos moradores entrevistados, bem como a falta de documentação acerca da história dessas localidades, resultaram em “certas descontinuidades ou interrupções”. Ainda assim, partindo dos relatos dos moradores, a pesquisadora afirma que as relações de parentescos e de sociabilidade entre esses sujeitos contribuíram para a construção de “uma grande família” ou “uma irmandade”, pois houveram dinâmicas de mudanças entre os moradores de uma localidade para a outra, o que nos leva a compreender uma das formas de relações que as localidades possuíam. Ainda nesse sentido, a quilombola Maria Bonsolhos relatou que “[...] são tudo da mesma gente, tudo parente [...]”,163 ao se referir aos moradores das localidades de São Victor, Moisés, Retiro, Baixão do Boi, entre outras; e o quilombola Raimundo Bonsolhos, conhecido popularmente como “véi Derré”, contou também que os povos de algumas localidades próximas eram parentes e, além disso, mantiveram algumas relações ao longo dos anos, a exemplo da participação nos festejos que aconteciam na localidade Lagoa das Pedras. Lagoa Pedra, Lagoa do Calango, Lagoa dos Martins – somos parentes bem pertinho, fomos criados tudo junto, eles moravam no Boi Morto e nós, nas Lagoinhas, depois quando nós viemos para cá [Lagoa das Emas] pouco tempo depois eles vieram pra cá [Lagoa dos Martins]. Da Lagoa da Pedra, muita gente daquele povo lá era filho de um 161 MATOS, Simone de Oliveira. Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia. (Dissertação em Antropologia). Teresina (PI), agosto de 2013. p. 126. 162 Idem, p. 51. 163 Idem, p. 81. 68 primo de meu pai, nós íamos para as festas por lá, que nós éramos festeiros, Lagoa dos Prazeres, o velho José Aragão era primo do meu pai.164 A partir desses relatos, Simone Matos reforçou em sua pesquisa a ideia de que essas relações de parentesco “[...] foram constituindoum território da mesma gente [...]”,165 justificando que a afinidade existente entre os moradores, que é apresentada através do parentesco e das relações sociais estabelecidas, contribuiu para construir um sentido de unidade entre as localidades, facilitando assim a organização desses povos em um único território.166 No entanto, chamo atenção para a afirmativa da pesquisadora, em relação à tentativa de legitimar que os moradores das localidades distintas – por possuírem relações de parentesco e de sociabilidade – se organizaram em um território, apresentando assim um sentido de espaço dado, isto é, que não possui historicidade. Em contraponto à perspectiva da autora, entendo que o território do quilombo Lagoas foi construído a partir de ações contra colonizadoras, isto é, dos limites que foram estabelecidos e da demarcação posta pela comunidade. Desse modo, compreendo que historicizar o processo de territorialização da comunidade é apresentar evidências de como ocorreu a construção do território lagoano, de como se deram as ações contra colonizadoras, e também de produzir o que Michel Foucault colocou como uma “história dos espaços”,167 considerando o território lagoano enquanto um espaço que possui historicidade. Nesse sentido, o quilombola Lagoas identifica-se, na minha perspectiva, como um território que passou pelos processos de conhecimento e produção a partir da organização de seus membros, dos mapas que foram elaborados, da constituição e levantamento da malha fundiária em campo e em cartório, da planta e memorial descritivo e dos cadastramentos das famílias remanescentes quilombolas – que tratam sobre o tamanho dos núcleos familiares e da faixa etária da população, das prática de associativismo no território, dos aspectos socioeconômicos e educativos desses povos. Desse modo, compreendo, e detalho de forma mais específica no próximo tópico, como todos estes aspectos foram ações contra colonizadoras, que, por sua vez, evidenciam a importância e o significado existencial da comunidade quilombola Lagoas. 164 MATOS, Simone de Oliveira. Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia. 2013, p. 51 165 Idem, p. 81. 166 Idem, p. 56. 167 FOUCAULT, Michel. Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p. 212. 69 2.2 Conhecimento e Produção: a territorialização do quilombo Lagoas O território da comunidade Lagoas possui a sua dimensão histórica, assim como qualquer o de outro quilombo, mas nem sempre foi assim. Antes do estabelecimento dos seus limites, assim como antes de todo o processo de conhecimento e produção do território, sabemos que existia um conjunto de localidades – mais especificamente cento e dezenove (119) – que em parte eram dispersas, mas também se correlacionavam a partir de proximidades geográficas e parentais. Nesse sentido, em 2007, iniciaram as primeiras mobilizações entre lideranças quilombolas do Piauí e alguns moradores das localidades, objetivando o empoderamento e autoconhecimento da comunidade enquanto quilombola. Foram através das mobilizações, que esses sujeitos participaram de eventos associativos, assim como de debates sobre o quilombo enquanto um grupo identitário e político, isto é, nesses encontros era reforçada a necessidade de se construir uma identidade quilombola, de se compreenderem enquanto quilombolas, pois não podiam estar somente ligados a “[...] representações herméticas de um passado, mas sim de uma organização social inserida em um contexto político e econômico atual”,168 que, inclusive, possuíam respaldo constitucional para reivindicar a demarcação e titulação do seu território. No caso das comunidades quilombolas brasileiras, a construção identitária é um processo extremante essencial que ocorre de variadas formas, a exemplo de algumas comunidades quilombolas no Sul do Brasil – quilombos “Teixeiras” e “Beco dos Colodianos” – cuja a sua “[...] construção identitária se deu no âmbito do processo de identificação e reconhecimento para fins de inserção em um programa governamental”,169 assim como “[...] entre algumas comunidades remanescentes de quilombo do estado do Rio de Janeiro, cujo o processo de construção e reafirmação identitária ocorreu por meio do jongo”.170 A partir desses aspectos culturais, podemos compreender que a construção identitária dos quilombolas representa um passo importante para a comunidade. No entanto, o fortalecimento do sentido de unidade não é reforçado somente através da cultura, mas também a partir da capacidade organizacional desses grupos, como podemos observar na imagem a seguir. 168 BARTH, F. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. 169 BENEDETTI, Adriane Cristina. Luta por Reconhecimento e Construção de Identidade em Comunidades Quilombolas no Sul do Brasil. Agroecologia e Desenv. Rural Sustentável, Porto Alegre, v. 7, n. 2, 2014, p. 33. 170 MAROUN, Kalyla. A construção de uma identidade quilombola a partir da prática corporal/cultural do jongo. Porto Alegre, v. 20, n. 01, 2014, p. 13. 70 Imagem 1: Audiência pública realizada, no dia 27 de maio de 2007, na câmara municipal de São Raimundo Nonato-PI. Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. Realizada no dia 27 de maio de 2007, esta audiência pública reuniu, na câmara municipal de São Raimundo Nonato-PI, homens e mulheres do quilombo Lagoas com a finalidade de discutir sobre os aspectos políticos, administrativos e técnicos das ações que seriam desenvolvidas na comunidade. Desse modo, foram apresentaram alguns procedimentos administrativos de regularização do território e realizaram uma exposição técnica abrindo espaço para dúvidas da comunidade. Além disso, estabeleceram uma rotina de reuniões, sendo realizadas com o objetivo de definir responsabilidades coletivas e individuais, para que então pudessem iniciar o processo de conhecimento e produção territorial. Nesse contexto, ressalta- se que as discussões conceituais, em relação à compreensão contemporânea dos quilombos, objetivavam a qualificação e orientação dos procedimentos que seriam estabelecidos durante as atividades de produção do território. As reuniões associativas continuaram sendo estabelecidas em 2008, promovendo avanços relacionados à elaboração de uma ata de apresentação das localidades que se autoconheciam como quilombolas, tendo como resultado a visita da Fundação Palmares. Desse modo, a partir desses progressos, alguns esforços se concentram para organizar e uniformizar as lideranças nas localidades, com a finalidade de conhecer, por naturezas diferentes – a exemplo das viagens entre os municípios e cadastramento das famílias –, o espaço que seria 71 territorializado. Nesse sentido, compreendemos que cada uma das formas de conhecimento forneceu típicos específicos de informações – sobre o território pleiteado; reconstituição e levantamento da malha fundiária; planta e memorial descritivo; cadastramentos das famílias; laudo agroambiental do território –, que, simultaneamente, corroboravam com a construção do território. As interações entre os quilombolas nas assembleias representam, para mim, ações estáveis de interação, que a partir dos contatos com os agentes externos (movimento quilombola do estado, Cáritas Brasileira e Projeto Dom Helder Câmara), conseguiram assegurar procedimentos legais de acordo com as suas ações contra colonizadoras. Num espaço circunscrito e visível, as agenciações passaram a construir a territorialização da comunidade Lagoas, isto é, o conhecimento do espaço passou a gerar autonomia sobre o mesmo com a finalidade de que essas formas de conhecimentopudessem facilitar políticas públicas relacionadas à agricultura familiar, ao aumento do número de casas e de escolas, entre outras ações que partiam da demanda da própria comunidade. Após a comunidade ser apresentada à Fundação Palmares, por meio da equipe técnica do INCRA, houve a atribuição do título de “comunidade quilombola” concedida e, consequentemente, iniciaram-se as primeiras visitas dos agentes do INCRA nas localidades. Nesse sentido, um dos primeiros passos organizacionais foi a constituição de uma equipe técnica, de acordo com cada especialidade – nas áreas de administração, engenharia, assistência de serviços, entre outras –, que ficaram responsáveis para realizarem atividades específicas, de acordo com seus conhecimentos profissionais, nas cento e dezenove (119) localidades. Nessas circunstâncias, cada membro da equipe técnica possuía elementos importantes de conhecimento específico, entre eles: a competência técnica desses indivíduos, disponibilidade de tempo para se dedicarem aos trabalhos necessários e, sobretudo, o compromisso com os direitos constitucionais relacionados ao direito.171 A partir dessa formação, a equipe técnica iniciou as mobilizações do processo de conhecimento da comunidade. Para tanto, foi necessário definir quais seriam os pontos a serem traçados, os seus objetivos e, por seguinte, iniciar o processo de conhecimento e produção do território lagoano. A compreensão no período, era de que esses sujeitos deveriam realizar um 171 A equipe técnica se configurou da seguinte forma: Alan Feitosa Pinho (Técnico administrativo do INCRA), Deodato do Nascimento Aquino (Perito federal agrário do INCRA), Edvaldo Henrique Ferreira Soares (Engenheiro agrimensor do INTERPI), Francisca Maria Noleto Batista Ramos (Téc. nível médio do INTERPI), Lacy Lourdes de Assunção Sobrinha (Assistente de administração do INCRA), Maria Marlene de Melo Furtado (Técnica em cadastro rural do INCRA), Raimundo Nonato da Silva Amorim (Assistente de administração do INCRA) e Valdeci de Moraes Uchôa (Assistente de serviço do INTERPI). 72 levantamento de materiais bibliográficos, isso para fundamentar as suas ações, bem como diversos dados secundários que permitiriam uma melhor compreensão do contexto ao qual as comunidades estavam inseridas. Nesse sentido, havia a preocupação em reunir a maior parte de informações possíveis, pois era necessário que o relatório técnico fosse um acervo de dados e conhecimentos gerais sobre o território a ser pleiteado. Em consideração a grande dimensão do território visado, foi necessário, além de uma equipe técnica, que se formassem outros grupos. Neste caso, os novos grupos foram constituídos pelos próprios povos das localidades, no qual “[...] se organizaram em 12 (doze) núcleos populacionais, sendo priorizada a proximidade geográfica, as relações de parentescos, compadrio, organização social, política, cultural já pré-existente,172 com o objetivo de facilitar o desenvolvimento das atividades subsequente de regularização fundiária, tais como: “[...] cadastramento, levantamento agroambiental, fundiário, etc., procedimentos administrativos à posteriori ao território pleiteado/identificado”.173 Como podemos observar, antes das mobilizações iniciarem, foi necessário que as cento e dezenove (119) localidades se organizassem em doze (12) núcleos, levando em consideração os critérios, em sequência: proximidade geográfica, relações de parentesco, compadrio, organização social, política e cultural que preexistiam à territorialização da comunidade Lagoas. Desse modo, percebo que é a partir dessa divisão e desses critérios que a comunidade iniciou o seu processo de conhecimento territorial, sendo a memória um aspecto importante em toda essa trajetória. De acordo com Alex Ratts (1996),174 durante o processo organizacional e de territorialização das comunidades quilombolas brasileiras, a memória coletiva de cada grupo é acionada de modo que a territorialidade “[...] se estende por todos os lugares onde passa a memória do grupo, onde estes fizeram sua trajetória ou seus antepassados cruzaram”.175 No entanto, é importante salientar que algumas informações, que possibilitaram um conhecimento prévio sobre algumas localidades, foram subsidiadas por estudos preliminares antropológicos executados em três (03) viagens às localidades: (18/04 à 02/05/2006; 18/07 à 31/07/2006 e 26/01 à 29/01/2007); realizadas pelo analista e antropólogo do INCRA, Eduardo 172 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010, p. 15. 173 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010, p. 15. 174 RATTS, Alecsandro. Conceição dos Caetanos: memória coletiva e território negro. Palmares em Revista. Brasília. No. 1, 1996, p. 97-115. _____. A geografia entre as aldeias e os quilombos: territórios etnicamente diferenciados. In: ALMEIDA, Maria Geralda de & RATTS, Alecsandro JP. (Orgs.). Geografia: Leituras Culturais. Goiânia: 2003, v. 1, p. 29-48. 175 RATTS, Alecsandro. Conceição dos Caetanos: memória coletiva e território negro. Palmares em Revista. Brasília. No. 1, 1996, p. 99. 73 Campos Rocha. Nessas viagens, a territorialidade da comunidade foi explorada durante os caminhos percorridos e guardados pela memória dos grupos. Nesse processo, Alex Ratts (1996) coloca que “[...] além dos laços de parentesco, as relações sociais consistentes desenvolvidas pelo grupo com outros atores sociais, lhes permitem uma espacialidade segura para além dos limites de seu território e o avanço da efetivação de sua cidadania”.176 Nessas circunstâncias, as mobilidades feitas no território e as assembleias que foram realizadas nos ajudam a compreender melhor sobre as implicações políticas e simbólicas de dominação do território do quilombo Lagoas. Por exemplo, as mobilidades realizadas na comunidade, os contatos que foram estabelecidos entre as lideranças quilombolas e os agentes da comunidade, se configuram aqui como uma montagem elaborada que constituem e legitimam as lideranças ao envolverem esses sujeitos no processo de contra colonização. Além disso, os convênios que foram assentados colaboravam para enfrentar algumas ameaças ao território, a exemplo das empresas carvoeiras, no que diz respeito a denunciarem as empresas, na luta por políticas públicas e ao reforçarem o discurso sobre a necessidade da colaboração participativa dos povos nesse processo. Sendo assim, os procedimentos para o trabalho que foram desenvolvidos durante o processo de conhecimento do território consideraram os instrumentos: entrevistas estruturadas, oficinas, utilização de formulários e caminhadas. Desse modo, estes instrumentos foram contemplados com pesquisas bibliográficas que permitiram uma melhor compreensão a respeito dos seguintes pontos: memória histórica e organização existencial na ocupação do território; delimitação e mapeamento do território; identificação e caracterização; identificação dos conflitos; caracterização dos sistemas produtivos e construção do calendário de atividades da comunidade. Além desses pontos, todos os residentes do território foram cadastrados, tanto os quilombolas quantos os não quilombolas. Nesse sentido, o trabalho coletivo era de extrema importância tendo em vista o tamanho do território, o difícil acesso as localidades, os deslocamentos, alimentação e hospedagens, que foram importantes durante esse processo. Ressalta-se que, de acordo com a equipe técnica, a comunidade os receberam de forma participativa e quando tiveram algumas dúvidas sobre as informações que estavam sendo coletadas, elas foram respondidas. Além disso, a equipe técnica conversava com os moradores das localidadespara que eles contassem a respeito de suas histórias, sendo um aspecto importante para que a equipe técnica conduzisse as atividades 176 RATTS, Alecsandro. A geografia entre as aldeias e os quilombos: territórios etnicamente diferenciados. In: ALMEIDA, Maria Geralda de & RATTS, Alecsandro JP. (Orgs.). Geografia: Leituras Culturais. Goiânia: 2003, v. 1, p. 32. 74 propostas, pois essas informações serviam para que os agentes socais pudessem conhecer mais sobre as vivências e as lutas enfrentadas por esses sujeitos. Desse modo, consta-se no relatório técnico que “[...] havia grande disposição e expectativa em relação à contribuírem para a construção do relatório que territorializaria a própria comunidade”.177 A respeito da territorialização da comunidade, Simone da Silva (2011) coloca que o processo da territorialização das comunidades quilombolas no Brasil deve ser compreendido a partir do “[...] percurso acerca da trajetória do negro em nosso país que busca evidenciar a importância da terra/território e da memória, pois estes são estruturantes na luta política destas populações que historicamente foram marginalizadas”.178 Isto é, compreende-se que a história de vida desses grupos, assim como a sua identidade, estão relacionadas com a territorialização da comunidade, tendo em vista a importância material e simbólica do território, pois “[...] para o negro, o simples ato de apropriação do espaço para viver, apropriação da terra, passou a significar um ato de luta contra aqueles que não queriam essa territorialização negra”.179 Nessa perspectiva, além das atividades em campo, as assembleias continuaram sendo realizadas em São Raimundo Nonato-PI, onde, geralmente, acontecia a apresentação da equipe de trabalho, que tiravam as dúvidas dos lagoanos em relação ao relatório técnico e atualizavam a respeito dos avanços da comunidade, bem como discutiam o que deveria ser estabelecido no cronograma das atividades. Nessas reuniões, foram ressaltadas também o quão eram importantes o cadastramento das famílias quilombolas, assim como das que também não se enquadravam no perfil. Nas assembleias, após todos as pautas e dúvidas serem sanadas, as atas das reuniões eram lidas e assinadas por todos os presentes. A partir das oficinas e de um melhor conhecimento a respeito das especificidades de cada localidade, foram construídos: linhas do tempo, mapas que tratavam sobre os limites do território, dos pontos específicos da comunidade, dos conflitos, dos modos de uso em relação a moraria, plantação, dentre outros. Nesse sentido, foram produzidas imagens, tabelas, gráficos, assim como também foram armazenadas fotos e documentos que revelavam a historicidade da comunidade e a sua relação com as terras. Sendo assim, as oficinas tiveram um papel importante para a nova organização da comunidade, pois as entrevistas, a marcação dos pontos notáveis, a exemplo dos limites, as caminhadas transversais e o cadastramento das famílias, só foram possíveis porque a comunidade trabalhou em conjunto à equipe técnica. 177 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. 178 SILVA, Simone Rezende da. A trajetória do negro no Brasil e a territorialização quilombola. Revista Nera – ano 14, Nº. 19, 2011, p. 76. 179 Idem, p. 77. 75 Após o colhimento de boa parte dessas informações, a retomada dos trabalhos pelo INCRA ocorreu no dia 27 de maio de 2009, sendo dada a devida publicidade ao reinício das atividades através da Audiência Pública realizada na Câmara Municipal, na sede do município de São Raimundo Nonato-PI, que contou com a presença de inúmeras lideranças, tais como: Coordenadora Nacional do Serviço de Regularização de Território Quilombola, Superintendente Regional SR do INCRA, Delegado do MDA, Coordenadores da Cáritas, Projeto Dom Helder, Lideranças da CECOQ, proprietários interessados, representantes da comunidade Lagoas, Presidente da Câmara dos Vereadores de São Raimundo Nonato, além de parte da equipe técnica. Como os procedimentos administrativos tiveram início sob a luz da Instrução Normativa no. 49, de 29 de setembro de 2008, o início dos trabalhos em campo foram precedidos por algumas reuniões entre os povos das localidades e o Grupo Técnico interdisciplinar, estas ocorreram nos dias 25/06/2009 (em São Victor e Angical) e 29/06/2009 (em Lagoa das Emas e Lagoa da Pedra), visando apresentar os procedimentos a serem adotados na territorialização da comunidade. Entre os dias 22 de junho e 09 de julho de 2009, ocorreram reuniões em várias localidades, no qual as famílias do território quilombola indicaram as lideranças que iriam acompanhar a equipe Institucional do INCRA, na indicação dos pontos limites do território, de acordo com marcos históricos e geográficos apresentados por estes representantes, que posteriormente seriam georreferenciados e materializados em formato de mapas e tabelas, pela equipe Institucional do INCRA. O desenvolvimento de critérios de entendimento dos termos e conceitos repassados pela comunidade à equipe técnica, visando promover a um correto entendimento da questão territorial transmitida, passou pela realização de várias reuniões onde pôde-se captar o sentimento do grupo, referente aos aspectos norteadores do que representava para eles “a definição de território”. A construção desse entendimento ocorreu concomitante aos apontamentos feitos pelo grupo para aquilo que eles entendiam por território. Definições como “limite de respeito”, dentre outros, promoveram o desafio de traduzir o saber local para os saberes necessários à produção do presente relatório.180 Os representantes da comunidade que acompanharam os trabalhos de indicação e levantamento dos pontos limites em campo foram: Belmiro Ferreira dos Santos, Sirgisnando dos Santos, Raimundo Pereira Marques, Raimunda Pereira Marques, Nailde Marques dos Santos, Andrelino Alves de Miranda, Cláudio Teófilo Marques, Martins Magalhães de Araújo, João Batista Ferreira de Aragão, Jovita Teófilo Marques, Júlio Paes Landim, Raimundo Ferreira dos Santos e Manoel Sindaux. Em virtude das grandes dimensões espaciais, foram realizados 180 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. p. 14. 76 momentos juntos com as lideranças representantes do quilombo para materialização dos pontos pleiteados, objetivando a confecção da planta do território, para posterior delimitação, como podemos visualizar na Imagem 2. Imagem 2: Reuniões de definição e aprovação dos limites do território pleiteado e identificado pelas famílias do quilombo Lagoas. Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. Na reunião ilustrada, temos o momento em que alguns representantes quilombolas, juntamente com alguns técnicos do INCRA, estiveram aprovando os limites do território que foram identificados pela comunidade Lagoas-PI. Nesse sentido, a organização da comunidade em doze (12) núcleos populacionais, motivada pelo tamanho da comunidade, foi essencial no que diz respeito as relações com os convênios estabelecidos. O contato que a equipe técnica estabelecia com a comunidade possuía um aspecto importante a considerar, que são as incursões acontecidas dentro do território, no qual existia uma eficácia nas visitas às localidades, realizadas pela equipe técnica e as lideranças quilombolas, que eram expressadas nas relações simbólicas, políticas e sociais. No levantamento fundiário do território, houve a descrição que identificou alguns ocupantes que não são quilombolas, no qual é apresentado a descriçãodas áreas por eles 77 ocupadas, com a respectiva extensão, as datas dessas ocupações e as benfeitorias existentes. Além disso, conta também a descrição das áreas pertencentes a quilombolas, que têm título de propriedade. Fazendo parte da construção do território, foi produzido a planta e o memorial que descrevem o perímetro da área reivindicada pela comunidade. A reconstituição e o levantamento da malha fundiária em campo e cartório, de certo modo, concretizou o levantamento dos pontos limites pleiteado pelas famílias do território quilombola Lagoas, bem como identificou o reconhecimento do seu perímetro e de estudos técnicos sócio-histórico- antropológicos, no qual procedeu-se o levantamento da malha fundiária de todas as áreas inseridas internamente no território quilombola. A metodologia empregada no levantamento fundiário, foi de caráter investigativo executada pelo Engenheiro Agrimensor do INTERPI (Instituto de Terras do Piauí), Edvaldo Henrique Ferreira Soares, através de 3 (três) incursões no campo, na qual totalizou 67 dias (11/11 a 06/12/2009; 07/04 a 04/05/2010 e 11/05 a 22/05/2010). Os trabalhos de levantamento se iniciaram com a realização de pesquisas junto ao cartório de 1o Ofício da Comarca de São Raimundo Nonato-PI. Durante o período de 11/11 a 06/12 de 2009 foram empreendidas várias buscas nos Processos de Autos de Demarcação das Datas: São Victor, Serra Velha, Dois irmãos, Conceição, Barrinha, porções de terra que estão inseridas totalmente e/ou parcialmente no quilombo pleiteado de Lagoas. Buscou-se também os processos das Datas de Sítio da Aldeia e Fazenda Nova, porém tanto no Cartório quanto no Fórum da comarca de São Raimundo não foi encontrado em seus arquivos os referidos processos.181 Nesse sentido, foi necessário que se efetivasse a reconstituição de todos os imóveis originais da época da demarcação utilizando o software MicroStation Manager, inseridos integralmente na Data São Victor e parcialmente nas Datas: Serra Velha, Dois irmãos, Conceição, Barrinha. Tal reconstituição teve como base o levantamento de informações de documentos da época da demarcação das referidas Datas, principalmente extraídas das folhas de pagamentos, do memorial descritivo dos imóveis pertencentes aos primeiros condôminos, bem como do levantamento de informações junto aos remanescentes quilombolas, amarração e georreferenciamento de marcos geodésicos em campo, com o uso de GPS geodésico. Em relação a utilização do georreferenciamento na comunidade quilombola Lagoas, o aparelho contribuiu para estabelecer com mais precisão as coordenadas dos limites da comunidade, isto é, o GPS georreferenciou a comunidade ao definir melhor a sua forma, dimensão e localização, que se deram a partir de métodos de levantamento topográfico. Da 181 Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010, p. 15. 78 mesma forma que aconteceu na comunidade Lagoas, a utilização do georreferenciamento acontece em outras comunidades, como no caso da Comunidade Quilombola do Abacatal, no Município de Marituba – PA, no qual as “[...] atividades de georreferenciamento se deram através do levantamento Relativo Estático com GPS Geodésico realizado pelos alunos do Curso de Tecnologia em Geoprocessamento da UFPA em parceria com o ITERPA”.182 Para a realização desse levantamento foram utilizados receptores de medição extra com a finalidade de ter mais precisão no estabelecimento dos limites. Nesse sentido, consta-se que os receptores do GPS de navegação possuem avançadas tecnologias proporcionando um erro médio em torno de 3 metros.183 Desse modo, conhecido todos os proprietários iniciais, que estavam inseridos no território pleiteado, bem como a extensão de seus respectivos imóveis, procederam-se buscas e levantamento da cadeia dominial destes em cartório, partindo-se da origem, ou seja, do desmembramento do público para o privado até os dias atuais, chegando-se assim a identificar todos os legítimos proprietários que atualmente estão inseridos dentro de tais imóveis, como podemos observar na imagem 3. Imagem 3: Levantamento dos marcos geodésicos limitantes da Datas de Sesmarias para reconstituição da malha fundiária do Território do quilombola de Lagoas. Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. 182 E. Leal, C. Costa, H. Siqueira. O georreferenciamento como ferramenta de acesso, garantia e regularização de territórios historicamente reconhecidos. Comissão V - Gestão Territorial e Cadastro Técnico Multifinalitário, 2018, p. 02. 183 FILHO, Luiz Otávio Morais [et al.], 2014. Curso de capacitação para o Cadastro Ambiental Rural (CapCAR): noções de geotecnologias – Lavras: UFLA. 36 p.; il. 79 Além do conhecimento de todos os possíveis proprietários, os técnicos do INCRA realizaram também o levantamento de toda a malha fundiária do território pleiteado e, consequentemente, identificaram os proprietários ou posseiros, sejam eles quilombolas ou não quilombolas que seriam notificados para eventuais trabalhos em seus imóveis, bem como a viabilização da publicidade das ações a todos os interessados, possibilitando futuramente a ampla defesa de seus interesses e possíveis contestações, caso julguem necessário. Nesse sentido, o levantamento e buscas dos registros de matrículas dos proprietários, inseridos dentro do perímetro do território quilombola, foram realizados no cartório de 1o Ofício da comarca de São Raimundo Nonato-PI.184 Tais informações passaram a orientar a emissão de certidões que qualificaram a situação da malha fundiária das propriedades inseridas integralmente e/ou parcialmente no território quilombola de Lagoas. Nesse contexto, foi importante o conhecimento de todos os proprietários e posseiros inseridos no perímetro do território quilombola, visto que o início dos trabalhos de campo, principalmente a vistoria prévia para levantamento de benfeitorias, era orientado que houvesse uma comunicação prévia a eventuais proprietários ou ocupantes de terras localizadas na área pleiteada, com antecedência mínima de 3 (três) dias úteis. Nesse sentido, para a confecção da planta e do memorial descritivo da área reivindicada, bem como o mapeamento e indicação dos imóveis e ocupações lindeiras de todo o seu entorno, foram implementadas atividades de campo durante os períodos de 07/06 a 18/06/2010 e 07/07 a 21/07/2010 pelos profissionais: Deodato do Nascimento Aquino (Engenheiro Agrônomo) e Edvaldo Henrique Ferreira Soares (Engenheiro Agrimensor do INTERPI) objetivando a identificação in loco dos eventuais posseiros/proprietários localizados no entorno do território pleiteado/identificado. Desse modo, foram realizadas visitas em todas as residências pertencentes aos 119 aglomerados populacionais inseridos dentro do perímetro do território quilombola Lagoas. Na ocasião, foi efetivado o cadastramento das famílias remanescentes quilombolas utilizando formulários específicos do INCRA. Ademais, a fim de garantir a localização exata de todas as residências das famílias dos remanescentes quilombolas cadastrados, georreferencioram todas as casas com a finalidade de assegurar o registro do posicionamento geográfico e da distribuição espacial dos domicílios cadastrados. Salienta-se ainda, que tais cadastros contemplaram informações acerca da situação populacional, organizacional, econômica, social da população 184 Pela servidora Maria Marlene de Melo Furtado (Técnica em Cadastro Rural INCRA) nos períodos de: (09 de novembro a 06 de dezembro de 2009; 07 de abril a 26 de maio de 2010 e 07 a 18 de junhode 2010, totalizando-se 88,5 dias). Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. 80 residente nas localidades pertencentes ao território de Lagoas, sempre levando em consideração a noção de territorialidade da própria comunidade. Considerando as relações de parcerias já estabelecidas no âmbito de Acordo de Cooperação Técnica INCRA/INTERPI, os trabalhos de preenchimento dos cadastros foram operacionalizados por equipe técnica multidisciplinar.185 Imagem 4: Cadastramento das famílias remanescentes do quilombo Lagoas, usando-se formulários específicos do INCRA. Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. Na imagem 4, podemos ver a atuação destes profissionais no acompanhamento dos preenchimentos dos formulários, juntos das lideranças quilombolas locais e representantes da CECOQ (Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí). Sendo assim, foi garantida a participação dos representantes das comunidades em todas as fases administrativas do processo, em consonância com Art. 6º do Decreto Presidencial nº 4887, de 20 de novembro de 2003. Além disso, pensou-se também a respeito do laudo agroambiental do território. Nesse 185 Composta pelos seguintes servidores: Alan Feitosa Pinho (Técnico Administrativo INCRA), Francisca Maria Noleto Batista Ramos (Téc. Nível médio – INTERPI), Lacy Lourdes de Assunção Sobrinha (Assistente de Administração INCRA), Maria Marlene de Melo Furtado (Técnica em Cadastro Rural INCRA), Raimundo Nonato da Silva Amorim (Assistente de Administração INCRA) e Valdeci de Moraes Uchôa (Assistente de Serviço – INTERPI). Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. 81 sentido, os trabalhos de campo objetivando o levantamento das informações agronômicas, ambientais, ecológicas, e geográficas, obtidas em campo e junto a instituições públicas, foram executados pelo Perito Federal Agrário, Deodato do Nascimento Aquino, tendo início no dia 22 de junho de 2009, se estendendo em vários períodos intermitentes até meados do mês de junho de 2010. Tais informações subsidiaram a elaboração do RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação) do Território pleiteado pelas famílias de Lagoas, identificado e referendado pelo laudo técnico-científico antropológico. Os estudos efetuados dentro do perímetro do território pleiteado/identificado foram sempre acompanhados por representantes indicados pelas famílias de remanescentes quilombolas. Portanto, tiveram efetiva participação junto ao técnico do INCRA os senhores: Belmiro Ferreira dos Santos, Raimundo Pereira Marques, Andrelino Alves de Miranda, Cláudio Teófilo Marques, Martins Magalhães de Araújo, João Batista Ferreira. É importante ressaltarmos o que é o SIG, no qual se caracteriza por ser uma ferramenta computacional que se encontra extensamente difundida nas diversas áreas. O SIG é um aplicativo capaz de relacionar dados tabulares a entidades geométricas vetoriais (pontos, linhas e superfície) ou imagens (raster). Esses dados são trabalhados a partir de camadas de informações e disponibilizados sob forma de mapas georreferenciados.186 Segundo Ferreira (1997), o Sistema de Informações Geográficas vêm sendo considerado uma ferramenta essencial no processo de mapear e descrever os mecanismos de mudanças que operam no meio ambiente, além de indicar respostas às várias questões sobre planejamentos urbanos, meio rural, regional e levantamento dos recursos renováveis.187 Todavia, essa não foi a única maneira de se conhecer o território. Sabendo que existia uma complexa rede de terras e de grupos de famílias para que se fosse possível identificar a área da comunidade como território claramente delimitado e conhecido. Com a elaboração de tabelas, gráficos e mapas, a comunidade passou a ter uma percepção jurídica a respeito do que está envolto ao território (número de pessoas, animais, plantas e etc.). Sendo assim, diante do conjunto de informações que os líderes quilombolas levantaram, juntamente com a equipe técnica, entendo que todas essas informações constituíram o processo inicial de domínio e construção do território Lagoas. É partindo desses conhecimentos que foram armazenados, que 186 ALMEIDA, C. N. Modelagem integrada de recursos hídricos com apoio de um Sistema de Informações Geográficas. 2006. 125p. Tese (Doutorado em Hidráulica e Saneamento), Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos. São Carlos, 2006. 187 FERREIRA, C. C. M. Zoneamento agroclimático para implantação de sistemas agroflorestais com eucaliptos, em Minas Gerais. Viçosa, MG: Universidade Federal de Viçosa, 1997. 158p. 82 trataremos no tópico seguinte a respeito das especificidades dos resultados obtidos, de modo que discutiremos como a reunião de dados, informações e a materialização, através de mapas, gráficos e tabelas, legitimou a construção do território Lagoas. 2.3 A materialização do quilombo Lagoas: mapas, gráfico e tabelas Durante muitos anos, a historiografia brasileira sobre “quilombo” conseguiu narrar diversas experiências em que destacavam a memória, a identidade, os conflitos e a importância da terra para esses povos. Em contrapartida, ignoravam a historicidade dos territórios quilombolas, quer dizer, postergavam os processos históricos relacionados a territorialização das comunidades, que, por sua vez, não parecia ter importância enquanto objeto de estudo. No entanto, de acordo com Simone da Silva (2011), em todo o “[...] processo atual de territorialização das populações rurais negras é necessário empreender o percurso acerca da trajetória do negro em nosso país, evidenciando a importância da história do território e da sua memória[...]”,188 pois estas são categorias essenciais na luta política dos quilombolas. No tópico anterior, no caso do quilombo Lagoas, considerei a preposição de que o conhecimento e a produção do território aconteceram simultaneamente ao construírem a noção de comunidade e ao estabelecerem os limites do território. Todavia, todo o processo de territorialização seria incompleto senão houvesse a reunião de todas as informações que passaram a compor o relatório técnico. Nesse sentido, entendemos que a produção do relatório técnico é uma forma de materialização do território da comunidade, pois nele estão inseridos um conjunto de gráficos, mapas e imagens que são testemunhas concretas “[...] de mentalidades, enfeixando elementos referentes ao imaginário e a cultura em seu caráter administrativo, político e estratégico”.189 Nessa perspectiva, parto da compreensão de que os mapas são instrumentos utilizados para materializar espacialidades, assim como também para transmitir a ideia de veracidade sobre conhecimento e territorialização da comunidade Lagoas, isto é, os mapas funcionam como “[...] uma construção social, um documento elaborado com determinado objetivo, os mapas históricos estão permeados por interesses políticos”.190 Além disso, compreendo também que nas tabelas constam importantes elementos significativos para a compreensão do número de famílias e como estas se organizam, sendo os mapas e as tabelas instrumentos de 188 SILVA, Simone Rezende da. A trajetória do negro no Brasil e a territorialização quilombola. Revista Nera – ano 14, Nº. 19, 2011, p. 76. 189 VILLA, Carlos Eduardo Valencia. Georreferência de mapas históricos: os casos de Cartagena de Índias Colonial e do Rio de Janeiro Imperial. Revista de história, Juiz de Fora, v. 21, n. 2, p. 2015, p. 518. 190 Idem, p. 519. 83materialização e dominação do território quilombola Lagoas. Nesse sentido, o perímetro do território pleiteado pelas famílias quilombolas, construído a partir de indicações de marcas indentitárias, pelas lideranças das comunidades, referendados posteriormente em assembleia geral por grande parte das famílias quilombolas, foram materializados. Mapa 2: Mapa do Território pleiteado pelas famílias remanescentes quilombolas de Lagoas. Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. No mapa 2, podemos observar que o território Lagoas está inserido em jurisprudência de seis municípios do Estado do Piauí, sendo eles: São Raimundo Nonato, Fartura, Várzea Branca, São Lourenço, Bonfim e Dirceu Arcoverde; cujo apresenta uma área aproximadamente de sessenta mil e novecentos e dezessete hectares (60.917), que foram identificados a partir de pontos referenciais apontados pelos quilombolas, distanciando em média a cada três a cinco quilômetros um do outro, o que não representou fidedignamente os limites variantes do território demarcado, pois a delimitação abarcou variações das propriedades lindeiras e de registros de imóveis inseridos no território. Ainda sobre as identificações, uma pequena quantidade dos agricultores da comunidade Lagoas não possuem terras próprias para moradia e trabalho, onde muitos utilizam as áreas pertencentes a familiares ou oriundas de herança (sem ser inventariada), o que as vezes dificulta às atividades agrícolas destinadas a subsistência. Apesar de alguns moradores descreverem 84 como adquiriram as terras – a exemplo do quilombola Raimundo Marques que relatou: “[...] em mil novecentos e cinquenta e três (1953), meu pai falou com o demarcador que queria uma terra e ele passou essa pra ele, foi pagando de pouquinho” –,191 a antropóloga Simone Matos (2013), em uma conversa com alguns moradores da localidade “Baixão do Boi”, afirmou que alguns conflitos foram gerados a partir da não regularização do território. [...] tomei conhecimento de que o pai de D. Cida, irmão do esposo de D. Juliêta da localidade Retiro, adquiriu por compra 20 ha de terra, onde fixou residência. O diálogo entre D. Cida e um agregado de uma fazenda próxima a essa localidade, relata conflitos vivenciados, atualmente, entre ele e o dono da fazenda: após vinte anos vivendo na localidade Barreiro dos Porcos, este agregado (Sr. Gildo) está sendo forçado a sair, sem definição de acordos trabalhistas pelo tempo de trabalho. Segundo ele: “nem uma madeira ele deixa eu tirar; quando quero fazer uma roça, venho pegar aqui no Baixão do Boi ou comprar”. Ele diz que o dito fazendeiro tenciona cercar terras próximas à localidade Baixão do Boi.192 Nesse caso, podemos compreender que a comunidade Lagoas, por ser um quilombo contemporâneo, está envolta a conflitos que ainda são reflexos “[...] da dissolução das formas de organização do sistema escravista pós abolição”,193 se configurando como a continuidade das disputas de territorialidades que “[...] nascem da sobreposição, no mesmo recorte espacial, de reivindicações de diversos grupos, portadores de distintas identidades, lógicas culturais, modos de produção e de relacionamentos com o meio-ambiente”.194 Nesse sentido, considero que o levantamento de toda a malha fundiária do território e, consequentemente, dos proprietários ou posseiros, sejam eles quilombolas ou não quilombolas, possibilitou a comunidade a agir em ampla defesa dos seus interesses e contestações. No caso da comunidade Lagoas, podemos compreender que o mapa, enquanto uma ferramenta, possibilitou condições concretas para os lagoanos visualizarem de forma representativa o que estava acontecendo no território, no que diz respeito a delimitação ter abarcado algumas propriedades lindeiras. Ainda nesse sentido, o mapa ampliou informações importantes acerca dos pontos geográficos indicados pelos lagoanos, o que evidencia a participação desses povos no processo de reconhecimento e delimitação da comunidade. Nessa perspectiva, o antropólogo Rafael dos Santos (2004) considera que “[...] o conjunto de documentos cartográficos possuem informações importantes, principalmente sobre o 191 Entrevista concedida a Simone de Oliveira Matos em 29 de jul. de 2009 e 07 de jan. de 2012. Comunicação oral R Marques, 86 anos – Lagoa das Emas). 192 MATOS, Simone de Oliveira. Povos de Lagoas-PI na construção da territorialidade quilombola: uma etnografia. (Dissertação em Antropologia). Teresina (PI), 2013, p. 54. 193 ARRUTI, J. M. Mocambo: antropologia e história no processo de formação quilombola. Bauru: Edusc, 2006. p. 42. 194 ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. Conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 12. 85 reconhecimento, a delimitação e a demarcação que contribuem na titulação dos seus territórios”.195 Gráfico 1: Composição percentual do Território quilombola de Lagoas. Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. De forma mais detalhada, o gráfico apresenta a composição percentual da área total do quilombo Lagoas, sendo, aproximadamente, 25.184,85 hectares (41,34%) correspondentes a jurisprudência do município de São Raimundo Nonato, 13.835,86 hectares (22,71%) no município de Fartura, 11.195,81 hectares (18,38%) inseridos em Várzea Branca, 7.123,39 hectares (12, 84%) correspondentes a São Lourenço, 2.232,188 hectares (3,10%) no município de Dirceu e apenas 994,2045 hectares (1,63%) correspondentes a Bonfim. Embora o território distribua a comunidade em seis municípios, e cada um desses tenham características específicas, unidades sociais independentes e distribuições geográficas diferentes, ressalto que as experiências históricas relacionadas a natureza étnica, as relações de parentesco e as sociabilidades realizadas os agregam nesse território comum. Além disso, essas relações contribuem ao auxiliarem “[...] os programas em desenvolvimento ligados à Presidência da República, ao INCRA, ao Ministério da Justiça, à 195ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Cartografia e cultura: territórios dos remanescentes de quilombos no brasil. VIII congresso luso-brasileiro de ciências sociais, Coimbra, 2004, p. 12. 41 , 34 84 , 12 10 , 3 63 , 1 , 38 18 , 22 71 São Raimundo São Lourenço Dirceu Bonfim Várzea Branca Fartura 86 Fundação Cultural Palmares e aos vários Institutos de Terras dos Estados brasileiros”,196 no que diz respeito a implementação de programas específicos para a comunidade em seus respectivos municípios. Nessa perspectiva, o cadastramento das famílias do território quilombola também foi importante, pois expressa, de maneira simplificada e sistematizada, a situação socioeconômica das famílias pertencente à comunidade. Tabela 1: Distribuição do número de famílias, pessoas e comunidades cadastradas nos 12 (doze) núcleos populacionais. Núcleos Famílias Pessoas Comunidades 1-NÚCLEO SÃO VICTOR 300 990 19 2- NÚCLEO XIQUE-XIQUE 65 223 9 3- NÚCLEO LAGOA DOS MENINOS 168 543 12 4- NÚCLEO LAGOA DAS PEDRAS 185 683 12 5- NÚCLEO DO ANGICAL 134 458 13 6- NÚCLEO FAZENDA DO MEIO 57 222 3 7- NÚCLEO LAGOA DAS EMAS 206 749 14 8- NÚCLEO DE MONTES CLAROS 64 151 9 9- NÚCLEO DE UMBURANA 43 148 4 10- NÚCLEO DO ESPINHEIRO 117 391 10 11- NÚCLEO DA LAGOA NOVA 93 360 6 12- NÚCLEO LAGOA DA FIRMEZA 66 210 8 TOTAL 1.498 5.128 119 Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. De acordo com a tabela 1, verifica-se que o núcleo de São Victor apresenta o maior número de famílias, pessoas e comunidades, sendo cadastradas 300 (trezentas) famílias comaproximadamente 990 (novecentos e noventa) pessoas em 19 (dezenove) comunidades, totalizando assim 20% das 1.498 (um mil quatrocentos e noventa e oito) famílias cadastradas no quilombo Lagoas. Em seguida vêm-se o núcleo de Emas com 206 (duzentos e seis) famílias com aproximadamente 749 (setecentos e quarenta e nove) pessoas em 14 (quatorze) comunidades. Foram consideradas como unidades familiares as pessoas ligadas por laços de parentescos, dependência doméstica ou normas de convivência. Em alguns casos, com o objetivo de restringir o conceito de família aos laços consanguíneos, foi adotado como unidades familiares os casais sem filhos, casais com filhos e mulher chefe de família (sem cônjuge). Nesse cadastramento, as informações sobre cada pessoa na família, ou domicílio, foram obtidas através da autodeclaração associada à pessoa de referência, isto é, a pessoa responsável pela família ou assim considerada pelos demais membros. Considerando essas informações, podemos compreender que o maior agrupamento de famílias se encontra no núcleo de São 196 ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Cartografia e cultura: territórios dos remanescentes de quilombos no brasil. VIII congresso luso-brasileiro de ciências sociais, Coimbra, 2004, p. 12. 87 Victor, principalmente na sede da localidade, pois possuem relações históricas no que se refere a serem áreas de cultivo que se deram através de processos hereditários, pois há tempos longínquos esta localidade era a sede de uma antiga fazenda escravocrata, constituída pela casa grande e a senzala. Em compressões gerais, apesar de ser consenso à auto atribuição da comunidade como remanescente de quilombo, verifica-se que não existia uma associação jurídica formal que representasse e contemplasse todas as famílias quilombolas das localidades, logo no que se refere ao aspecto associativista, a comunidade ainda se encontrava como incipiente à organização, existindo algumas associações de famílias quilombolas – a exemplo da associação dos pequenos produtores rurais de São Victor, Lagoa das Emas, Angical, Jatobazeiro e Lagoa da Pedra –, onde a representação é bem localizada, muitas vezes representativa de poucas localidades. Tabela 2: Número de chefe de famílias sócio efetivo em Associação inserida no Território quilombola de Lagoas. NÚMERO DE CHEFE DE FAMÍLIAS 1- NÚCLEO SÃO VICTOR 2- NÚCLEO XIQUE-XIQUE 3- NÚCLEO L. DOS MENINOS 4- NÚCLEO L. DAS PEDRAS 5- NÚCLEO DO ANGICAL 6- NÚCLEO FAZ. DO MEIO 7- NÚCLEO L. DAS EMAS 8- NÚCLEO DE MONTES CLAROS 9- NÚCLEO DE UMBURANA 10- NÚCLEO DO ESPINHEIRO 11- NÚCLEO DA L. NOVA 12- NÚCLEO L. DA FIRMEZA ASSOCIAÇÃO SIM NÃO 172 27 71 87 59 35 70 16 12 49 16 29 128 38 97 98 75 22 136 48 31 68 77 37 TOTAL 643 855 Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. Nesse sentido, a partir da análise da tabela 2, podemos observar que a comunidade possui uma fragilidade no que diz respeito a não possuírem uma organização social mais sólida, pois a maioria dos representantes (chefes de família) ainda não participam da associação, sendo de aproximadamente 855 chefes de famílias, representando assim 57% de todas as famílias inseridas no território quilombola de Lagoas. Essa situação se torna preocupante visto que se regularizado o título do território, este será emitido em nome de uma associação, logo, teoricamente, quem não é sócio, possivelmente, fica mais fragilizados diante da lei, mesmo todas as famílias quilombolas sendo proprietárias do território. 88 A fragilidade está totalmente relacionada à agricultura de subsistência e a pecuária extensiva desenvolvidas na localidade, pois se constituem de práticas estritamente familiar, destacando na criação de ovinos, caprinos e na apicultura, bem como a partir da produção de milho, feijão, mandioca e mamona, sendo estes os que representam a principal fonte de renda e subsistência dos quilombolas. O grande problema, é que muitos quilombolas não possuem a noção exata do quanto corresponde a sua renda real. Desse modo, não levam em conta o que produzem, consomem e arrecadam na atividade agropecuária, dados que contribuem para estimação da renda real. Tabela 3: Percentual da renda da população pertencente à comunidade Quilombola de Lagoas NÚMERO DE FAMÍLIAS 1-NÚCLEO SÃO VICTOR 2-NÚCLEO XIQUE-XIQUE 3-NÚCLEO L. DOS MENINOS 4-NÚCLEO L. DAS PEDRAS 5-NÚCLEO DO ANGICAL 6-NÚCLEO FAZ. DO MEIO 7-NÚCLEO L. DAS EMAS 8-NÚCLEO DE MONTES CLAROS 9-NÚCLEO DE UMBURANA 10-NÚCLEO DO ESPINHEIRO 11-NÚCLEO DA L. NOVA 12-NÚCLEO L. DA FIRMEZA RENDA FAMILIAR INTRA NÚCLEO (%) 0 - 50 51-150 151 – 510 511 – 1020 > 1020 4,7 1,5 3,0 4,3 2,2 0,0 5,3 1,6 2,5 0,0 2,2 12,1 43,7 53,8 53,0 53,5 56,0 50,9 57,8 53,1 47,5 42,7 54,8 45,5 25,7 23,1 16,7 20,5 21,6 21,1 22,8 25,0 35,0 30,8 32,3 22,7 23,3 21,5 20,8 15,1 18,7 21,1 12,1 15,6 15,0 23,9 9,7 18,2 2 , 7 0 , 0 6 , 5 6 , 5 1 , 5 7 , 0 1 , 9 4 , 7 0 , 0 2 , 6 1 , 1 1 , 5 Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010. Desta maneira, observa-se na tabela 3, que a grande maioria da população de todos os núcleos populacionais do território quilombola Lagoas, sem exceção, possuem a maior renda mensal oscilando entre 51 e 150 reais, sendo esta a faixa que contempla os beneficiários do programa assistencialista bolsa-família. Ademais, outra grande contribuição na renda local familiar provém dos proventos de aposentadoria, renda entre 511 e 1.020 reais. Sendo assim, o nível de precariedade é notório, existindo famílias que sobrevivem exclusivamente do auxílio do governo federal. Torna-se importante frisar que, além das fontes acima citadas, todos os remanescentes quilombolas entrevistados dependem diretamente da exploração de gêneros alimentícios de subsistência e da criação de pequenos animais domésticos. Outro fator importante, das localidades situadas no território da Comunidade Lagoas, muitas contam com unidades escolares, porém apenas o núcleo de São Victor apresenta escola que dispõe de ensino médio. Desta forma os alunos que pretendem avançar nos estudos têm que se deslocarem principalmente à sede municipal de Fartura e Várzea Branca. Da população 89 pesquisada, constata-se que os núcleos de Lagoa da Pedra e Lagoa das Emas apresentam em termos proporcionais à maior população de analfabetos funcionais, representando 39,1% e 37,4% respectivamente, de toda população cadastrada em seus respectivos núcleos, como consta na tabela 4. Tabela 4: Escolaridade da população pertencente à comunidade Quilombola de Lagoas. POPULAÇÃO DO QUILOMBO LAGOAS 1-NÚCLEO SÃO VICTOR 2- NÚCLEO XIQUE-XIQUE 3- NÚCLEO L. DOS MENINOS 4- NÚCLEO L. DAS PEDRAS 5- NÚCLEO DO ANGICAL 6- NÚCLEO FAZ. DO MEIO 7- NÚCLEO L. DAS EMAS 8- NÚCLEO DE MONTES CLAROS 9- NÚCLEO DE UMBURANA 10- NÚCLEO DO ESPINHEIRO 11- NÚCLEO DA L. NOVA 12- NÚCLEO L. DA FIRMEZA ESCOLARIDADE INTER NÚCLEO (%) Analfabeto Ensino Fundamental Ensino médio Superior 33,2 11,8 24,1 39,1 30,5 28,6 37,4 26,7 9,2 19,8 33,7 33,1 50,5 76,9 67,9 54,1 64,5 61,2 56,2 63,6 74,6 65,3 56,1 52,0 15,1 11,3 6,8 6,6 4,8 8,3 5,9 9,1 13,8 13,6 9,8 13,7 1 , 3 0 , 0 1 , 2 0 , 2 0 , 3 1 , 9 0 , 5 0 , 6 2 , 3 1 , 4 0 , 3 1 , 1 Fonte: Relatório técnico de caracterização ocupacional, fundiário e agroambiental do território quilombola de Lagoas, 2010Como podemos observar, a maior proporção da população de todos os núcleos ainda não concluiu o ensino fundamental, estando no nível de escolaridade entre a 1ª e 8ª série, destacando o núcleo de Xique-Xique com 76,9% de toda a população. Porém, deste total há um grande contingente representado principalmente por jovens e adultos que já abandonaram os estudos, principalmente para constituir família e pelas dificuldades de acesso decorrente da falta de escola dentro da comunidade. Verifica-se na tabela 4, que apenas 2,3% da população do núcleo de Umburana frequenta o curso superior, sendo esta a maior proporção quando comparado com os outros núcleos populacionais. Acerca de informações gerais, além dessas famílias cadastradas, distribuídas em todos os 12 (doze) núcleos, acrescentam-se mais 152 (cento e cinquenta e duas) residências que não foram efetivamente cadastradas, pois se tratavam, na grande maioria, de residências fechadas ou desocupadas, decorrente do êxodo temporário de algumas famílias, que partiram para outros estados em busca de trabalho nos canaviais de São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso ou viajaram com o intuito de realizar tratamentos médicos. Assim como na comunidade Lagoas, esse êxodo temporário também ocorre em outros quilombos. De acordo com a historiadora Simoní Leal (2020), o quilombo “Contente”, localizado no município de Paulistana-PI, possui 90 dados que apresentam as principais motivações de migração dos quilombolas, sendo estes: o desemprego com 44%, a seca com 35%, a falta de educação com 22%.197 Um fato em comum no quilombo Lagoas é que depois de atingido a maioridade ou concluído o ensino médio, os homens tendem a migrar para outros estados, principalmente Brasília, Minas Gerais e São Paulo, essencialmente jovens do sexo masculino, em busca de trabalho nas usinas de “corte de cana”. Entretanto, quando não saem da comunidade, optam por construir suas casas nas proximidades do núcleo familiar, continuando a cultivar nas terras do pai, mesmo depois de terem constituído uma nova unidade familiar, engrossando assim a massa de cidadãos sem um pedaço de terra suficiente para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. É nesse sentido, que no próximo capítulo discutiremos acerca dos problemas causados pela não titulação da comunidade e como os lagoanos reivindicam a sua existência frente aos conflitos vivenciados. 197 LEAL, Simoní Portela. “Já conheci com essa nação, o chamado negro”: etnicidade, territorialidade e educação nas Comunidades Quilombolas de Barro Vermelho e Contente em Paulistana-PI (2000-2019). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Piauí, Programa de Pós Graduação em História, Teresina, 2020. 91 CAPÍTULO III A REIVINDICAÇÃO EXISTENCIAL DA COMUNIDADE QUILOMBOLA LAGOAS Do que todas essas comunidades são acusadas? De serem povos atrasados, improdutivos e sem cultura, portanto, um empecilho ao avanço e ao desenvolvimento da integridade moral, social e econômica e cultural dos colonizadores. O que podemos perceber é que essas comunidades continuam sendo atacadas pelos colonizadores que se utilizam de armas com poder de destruição ainda mais sofisticado, numa correlação de forças perversamente desigual. Só que hoje, os colonizadores, ao invés de se denominarem Império Ultramarino, denominam a sua organização de Estado Democrático de Direito e não apenas queimam, mas também inundam, implodem, trituram, soterram, reviram com suas máquinas de terraplanagem tudo aquilo que é fundamental para a existência das nossas comunidades, ou seja, os nossos territórios e todos os símbolos e significações dos nossos modos de vida.198 Nêgo Bispo 198 SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significados. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa. Universidade de Brasília, 2015, p. 76. Disponível em: http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/07/BISPO-Antonio.-Colonizacao_Quilombos.pdf. Acessado em: 20 de novembro de 2018. http://cga.libertar.org/wp-content/uploads/2017/07/BISPO-Antonio.-Colonizacao_Quilombos.pdf 92 3.1 Conflitos quilombolas: do racismo institucional ao ambiental Ao vivenciar e debater, na contemporaneidade, a situação dos quilombos rurais, o lavrador e ativista piauiense do movimento social quilombola, Antônio Bispo dos Santos, conhecido popularmente como Nêgo Bispo, analisa criticamente os ataques e as consequências das políticas desenvolvimentistas no Brasil. Na epígrafe acima, tem-se uma narrativa que sucede uma série de tentativas de ecocídios no nosso país,199 que, por sua vez, estão relacionadas a grupos rurais, povos indígenas e comunidades quilombolas brasileiras. De acordo com Nêgo Bispo, o modelo de desenvolvimento econômico do Brasil representa um projeto de sociedade autodestrutiva, no qual as suas medidas resultam em “queimar, inundar, implodir, triturar, soterrar e revirar” elementos que são essenciais para a existência desses grupos. Nessa perspectiva, as acusações sofridas pelos quilombolas acontecem, na maioria dos casos, em decorrência das disputas de terras, no qual esses sujeitos enfrentam problemas tanto relacionados à demarcação e reconhecimento de seus territórios como em razão das invasões acontecidas nestes. A reflexão proposta por Nêgo Bispo, sobre o exercício do poder do Estado, tem sido pertinente nas discussões atuais que atravessam a temática quilombola, sobretudo no que diz respeito as insinuações sofridas por esses povos, que podem ser observadas, a nível de exemplo, nos canais oficiais do Youtube do vigente presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, e de seu filho, o vereador Carlos Nantes Bolsonaro, que em suas funções representativas afirmam a existência de esquemas ilícitos no processo de titulação de algumas comunidades quilombolas do Brasil. Intitulados de: “A farsa de alguns quilombolas” e “Quilombolas: a verdade que omitem”;200 os vídeos compartilham uma matéria feita pelo Jornal Nacional em 2007,201 que tratava sobre uma investigação, no Recôncavo Baiano, de uma comunidade que estava prestes a ser reconhecida como “remanescente quilombola” e vinha sendo acusada de fraude por fazendeiros da região – questão que foi esclarecida pela sindicância da Fundação Palmares, que 199 O conceito de ecocídio está ligado a danificação extensiva ou a destruição de um ou vários ecossistemas num determinado território, seja por ação humana ou por outras causas, implicando assim na qualidade de vida dos habitantes desse território. Disponível em: < https://eradicatingecocide.com >. Acessado em: 14 de março de 2019. Para se aprofundar na discussão conceitual e dos temas relacionados, consultar: Polly HIGGINS, Eradicating Ecocide: Law and Governance to Stop the Destruction of the Planet. Shepheard-Walwyn: Londres, 2010. 200 Respectivamente: Bolsonaro, Carlos Nantes. “A farsa de Alguns quilombolas”. Publicado em 17 de abril de 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FAmdjNoWqpk.> Acessado em: 02 de fevereiro de 2019. Bolsonaro, Jair Messias. “Quilombolas: a verdade que omitem”. Publicado em 15 de abril de 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ShinYQp--zA.> Acessado em: 02 de fevereiro de 2019. 201 Matéria sobre a comunidade quilombola São Francisco do Paraguaçu, uma das 11 comunidades do Recôncavo Baiano reconhecidas como remanescentes de quilombos. https://eradicatingecocide.com/ https://www.youtube.com/watch?v=FAmdjNoWqpk https://www.youtube.com/watch?v=ShinYQp--zA 93 confirmou a legalidade dessa comunidade.202 Nesse sentido, compreendo que as afirmações contidas nostítulos podem ser entendidas como desdobramentos dos princípios que estão relacionados à política de cunho neoliberal, firmadas por esses políticos, que não conseguem visualizar um valor utilitário nas comunidades quilombolas, isto é, na visão desses sujeitos as comunidades não contribuem em nada para o Estado,203 sendo consideradas “atrasadas, improdutivas e sem cultura”, representando “um empecilho ao avanço e ao desenvolvimento da integridade moral, social, econômica e cultural dos colonizadores”. De acordo com o filósofo francês Jacques Rancière (2005), a centralidade do poder estatal, motivada pelas tecnologias de poder, – neste caso os princípios neoliberais – fomenta a perpetuação hegemônica de algumas esferas sociais, que, por sua vez, são controladas pelo Estado. Na perspectiva do autor, algumas ações institucionais do Estado, a partir das tecnologias de poder, objetivam “[...] suplantar as alteridades, identidade étnicas, ou seja, “matar o Outro como Outro”,204 quando compreendem este “Outro” como um sujeito subalternizado, a partir de algumas diferenças culturais, com a finalidade de anular os seus direitos coletivos partindo de diferenciações sociais, culturais e políticas. O Estado pode até lhe conferir oportunidade para (re)produção cultural, entretanto, as tecnologias de poder os quais o Estado têm se servido, em muitos casos, servindo ao propósito de uma “limpeza étnica”, é permeada pelo discurso da participação, da oportunidade construída pela lei para se ouvir o outro, espaço para vocalizar seus interesses e demandas, mas que instrumentaliza-se como bandeira a fim de que o Estado, ao ter conhecimento sobre esse outro, venha exitosamente banir e promover formas de “esquecimento” daquelas comunidades tradicionais. 205 Os mecanismos utilizados pelo Estado tentam impedir, de diferentes formas, a inviabilização de conquistas das comunidades quilombolas por estas representarem, na visão neoliberal, um “[...] empecilho para o ímpeto capitalista de progresso, modernização e avanço 202 YABETA, Daniela. Um território: São Francisco do Paraguaçu. Boletim Territórios Negros. (v.7, n.30, jul./ago. 2007). Disponível em: <http://www.koinonia.org.br/oq/artigos-detalhes.asp?cod=12682>. Acessado em: 14 de março de 2019. 203 PORTO, Maria Célia da Silva. Estado e neoliberalismo no Brasil contemporâneo: implicações para as políticas sociais. IV Jornada Internacional de Políticas Públicas. Universidade Federal do Maranhão, 2009. Disponível em: <https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=http://ww.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIV/eixos/ 1_Mundialização/estado-e-neoliberalismo-no-brasil- contemporaneo.pdf&ved=2ahUKEwjnmbHNpcXJAhX7ILKGHfHIAKoQFJAAegQIBBAB&usg=AOvVaw263 1XtxcixJReKdo153Kbx>. Acessado em: 20 de julho de 2019. 204 RANCIÈRE, Jacques. Chroniques des Temps Consensuels. Paris. Ed. du Seuil. 2005, p.15. (Traduzido para o português, por José Carlos Macedo, como “Ossuário da purificação étnica” – Folha de São Paulo. 10 de março de 1997. 205 GONÇALVES, Andréa Cristina Serrão. Direitos, embates, lutas e resistências: Comunidades Quilombolas face as Ações do Estado Neoliberal. III Jornada Internacional Políticas Públicas, 2015, p. 1. Disponível em: http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2015/pdfs/eixo3/direitos-embates-lutas-e-resistencias-comunidades- quilombolas-face-as-acoes-do-estado-neoliberal.pdf. Acessado em: 22 de maio de 2020. http://www.koinonia.org.br/oq/artigos-detalhes.asp?cod=12682 https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=http://ww.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIV/eixos/1_Mundialização/estado-e-neoliberalismo-no-brasil-contemporaneo.pdf&ved=2ahUKEwjnmbHNpcXJAhX7ILKGHfHIAKoQFJAAegQIBBAB&usg=AOvVaw2631XtxcixJReKdo153Kbx https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=http://ww.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIV/eixos/1_Mundialização/estado-e-neoliberalismo-no-brasil-contemporaneo.pdf&ved=2ahUKEwjnmbHNpcXJAhX7ILKGHfHIAKoQFJAAegQIBBAB&usg=AOvVaw2631XtxcixJReKdo153Kbx https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=http://ww.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIV/eixos/1_Mundialização/estado-e-neoliberalismo-no-brasil-contemporaneo.pdf&ved=2ahUKEwjnmbHNpcXJAhX7ILKGHfHIAKoQFJAAegQIBBAB&usg=AOvVaw2631XtxcixJReKdo153Kbx https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=http://ww.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIV/eixos/1_Mundialização/estado-e-neoliberalismo-no-brasil-contemporaneo.pdf&ved=2ahUKEwjnmbHNpcXJAhX7ILKGHfHIAKoQFJAAegQIBBAB&usg=AOvVaw2631XtxcixJReKdo153Kbx http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2015/pdfs/eixo3/direitos-embates-lutas-e-resistencias-comunidades-quilombolas-face-as-acoes-do-estado-neoliberal.pdf http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2015/pdfs/eixo3/direitos-embates-lutas-e-resistencias-comunidades-quilombolas-face-as-acoes-do-estado-neoliberal.pdf 94 tecnológico em uma estrutura social calcada pelo ideal de lucro que se promove, tão somente, pela via da exploração”.206 Desse modo, podemos compreender que a manifestação do neoliberalismo, relativo a efetivação de capital nacional e internacional na economia brasileira, ocasiona a produção de diversos projetos que visam a implementação destes pautados na perspectiva “(neo)desenvolvimentista”, que, por sua vez, provoca conflitos entre o Estado e alguns grupos indígenas, camponeses e comunidades quilombolas. Na visão de Nêgo Bispo, por exemplo, a não atribuição do título de quilombo às comunidades brasileiras abre margem para a exploração e a destruição de alguns territórios, “[...] seja pela expansão do agronegócio com monoculturas transgênicas, seja para exploração de mineradoras ou construção de megaprojetos desenvolvimentistas, como complexos hidroelétricos, construção de portos, rodovias e ferrovias [...]”,207 que, consequentemente, provocam conflitos que revelam tanto o racismo ambiental como o institucional ligados ao processo de reconhecimento das comunidades quilombolas, o que as afetam existencialmente, pois sem a titulação dos seus territórios os quilombolas não conseguem se desenvolverem enquanto grupos étnicos. Assim como as discussões sobre as comunidades quilombolas se acentuaram na década de 1990, a historiadora Lays Silva (2012) coloca que esse período também foi um verdadeiro marco no que diz respeito aos debates ambientalistas nas Américas, pois foi a partir da “[...] consolidação e extensão de um movimento popular que, desde sua gênese na década de 1970, recebeu diversas nomenclaturas, a saber: movimento pela justiça ambiental (environmental justice movement); movimento contra o racismo ambiental (environmental racism) e movimento pela igualdade ambiental (environmental equity)”,208 que ocorreu a emergência da atuação de novos grupos “[...] em resposta às ameaças materializadas por situações desiguais de vulnerabilidade”.209 Nesse contexto, as discussões visavam identificar situações de injustiça ambiental, com a finalidade de desenvolver projetos voltados para políticas e leis de regulamentação ambiental. 206 GONÇALVES, Andréa Cristina Serrão. Direitos, embates, lutas e resistências: Comunidades Quilombolas face as Ações do Estado Neoliberal. III Jornada Internacional Políticas Públicas, 2015, p. 2. Disponível em: http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2015/pdfs/eixo3/direitos-embates-lutas-e-resistencias-comunidades- quilombolas-face-as-acoes-do-estado-neoliberal.pdf. Acessado em: 22 de maio de 2020. 207 SILVA, Liana Amin Lima da; MORAES, Oriel Rodrigues de Moraes. Racismo ambiental, colonialismos e necropolítica: direitos territoriais quilombolas subjugados no Brasil. Ensaios sobre racismos: pensamento de fronteira. Org. LIMA, Emanuel Fonseca; SANTOS, Fernanda Fernandes dos; NAKASHIMA, Henry Albert Yukio; TEDESCHI, Losandro Antonio, 2019, p. 33. 208 SILVA, Lays Helena Paes e. Ambiente e Justiça: sobre autilidade do conceito de racismo ambiental no contexto brasileiro. E-cadernos, n. 17, 2012, p. 85. Disponível em: <http://eces.revues.org/1123>. Acesso em: 28 maio de 2020. 209 Idem, p. 86. http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2015/pdfs/eixo3/direitos-embates-lutas-e-resistencias-comunidades-quilombolas-face-as-acoes-do-estado-neoliberal.pdf http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2015/pdfs/eixo3/direitos-embates-lutas-e-resistencias-comunidades-quilombolas-face-as-acoes-do-estado-neoliberal.pdf 95 Denota-se, assim, a existência de situações de injustiça ambiental, o que compreende, em sociedades desiguais, os grupos discriminados racialmente e as populações de baixa renda, ou seja, grupos vulneráveis e marginalizados que são obrigados a arcar com a maior carga dos danos ambientais oriundos do processo de desenvolvimento. Logo, a concepção de justiça ambiental seria edificada a partir de experiências das lutas protagonizadas por grupos vulneráveis e marginalizados [...].210 As situações de injustiça ambiental estão amplamente ligadas às noções de racismo ambiental e racismo institucional. De acordo com Arivaldo Souza (2015), a desterritorialização dos povos negros foi estabelecida como uma prática racista, enquanto padrão de discriminação territorial, desde a diáspora africana, isto é, os conflitos ambientais que as comunidades quilombolas enfrentam na contemporaneidade são reflexos dessa desterritorialização. Nesse sentido, compreendemos que as diversas formas de práticas racistas, a exemplo da “[...] expulsão das comunidades quilombolas de seus territórios de vida, com a remoção forçada das comunidades e omissão do Estado quanto ao reconhecimento, demarcação e titulação coletiva da terra”,211 representa uma das faces do racismo ambiental, que corrobora com os interesses neoliberais. Desse modo, partindo da compreensão de que muitos conflitos territoriais estão relacionados com o exercício do racismo ambiental, podemos considerar que as terras dos povos indígenas e quilombolas não sofreram injustiças ambientais decorrentes do acaso, mas são afetadas pela exploração predatória neoliberal, quer dizer, o racismo ambiental é “[...] institucionalizado com o discurso assimilacionista, afetando o modo de vida tradicional indígena, quilombola e de outros povos tradicionais, com a finalidade explícita de esvaziamento de suas terras para transformá-las em mercadoria”.212 Essa forma de classificação social da população com a ideia de raça, como apontou Arivaldo Souza (2015), faz parte de uma construção mental que permeia o imaginário da nossa sociedade, onde a racialidade aparece como força motriz justificada pela estrutura biológica. De acordo com Anibal Quijano (2005), os colonizadores codificaram uma linha de cor e traços fenótipos dos colonizados e as assumiram como características emblemáticas à categoria racial. Nesse sentido, os territórios quilombolas ainda aparecem inseridos na lógica de um “[...] 210 RANGEL, Tauã Lima Verdan. Racismo ambiental às comunidades quilombolas. Bauru, v. 4, n. 2, p., 2016, p. 128. 211 SILVA, Liana; MORAES, Oriel. Racismo ambiental, colonialismos e necropolítica: direitos territoriais quilombolas subjugados no Brasil. Ensaios sobre racismos. 2019, p. 33. 212 Idem, p. 37. 96 primeiro espaço-tempo de um padrão de poder na elaboração teórica da ideia de raça para naturalizar as relações de dominação e opressão”.213 Voltando o nosso olhar para as formas práticas de expressão do racismo ambiental, a respeito dos casos de injustiça que envolveram comunidades quilombolas no Piauí, constam-se dois que representam alguns conflitos no estado. O primeiro caso, encontra-se relacionado à implantação do Núcleo de Produção Comunitária Santa Clara, que foi empreendido pela Brasil Ecodiesel e atingiu os municípios de Floriano, Canto do Buriti e Eliseu Martins. Em relação a empresa, foram conferidas terras cedidas por estes órgãos: Governo do Estado do Piauí, Instituto de Terras do Piauí e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária/INCRA; que em certa medida apresentou dois lados do processo de reforma agrária no Brasil: a primeira sendo ligada à distribuição de terras para o plantio, por agricultores familiares; e a segunda relacionada às dificuldades de conjugação das políticas agrícolas, com políticas sociais, para a consolidação das comunidades e assentamentos rurais. Os assentados do Núcleo de Produção Comunitária Santa Clara estão vivendo, desde 2006, altos e baixos do processo de implementação do projeto de produção de biodiesel, empreendido pela empresa Brasil Ecodiesel, em terras cedidas, por dez anos, pelo governo do Estado do Piauí, o Instituto de Terras do Piauí e a administração do Incra no Estado. Esta concessão se fez sob a forma de um comodato através do qual a terra passaria para os agricultores em 10 anos, mas estes estão tentando acelerar esta transferência e assumir a terra após o quinto ano do projeto.214 Nessa circunstância, o que aparentemente parecia ser o estabelecimento de ligações entre assentamentos rurais e o projeto da mamona, como fonte de produção de biodiesel, converteu-se num projeto de produção de carvão vegetal que teve como base a utilização da mata nativa do cerrado piauiense. Após alguns obstáculos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, no que diz respeito à produção de carvão vegetal na área, as comunidades quilombolas transformaram a usina de óleo vegetal em uma casa de farinha. No entanto, além do desmatamento do bioma, sendo aproximadamente uma área de 7.500 hectares, houve a baixa rentabilidade dos plantios, que, por sua vez, deixaram os quilombolas com dificuldades financeiras. Desde o início desse processo, as dificuldades existentes nos municípios foram enfrentadas pelos trabalhadores rurais em ambos técnicos, sociais e financeiros, o que 213 QUIJANO, Anibal. “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005, p. 117. 214 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. Disponível em: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-erro-de-calculo-colocou-projeto-de- assentamento-rural-em-risco. Acessado em: 22 de maio de 2020. http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-erro-de-calculo-colocou-projeto-de-assentamento-rural-em-risco http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-erro-de-calculo-colocou-projeto-de-assentamento-rural-em-risco 97 contrariou o acordo entre a Ecodiesel e as famílias quilombolas, pois o planejado era que a empresa seria responsável pelo custeio do programa de energia, educação e saúde da comunidade; já as famílias estariam responsabilizadas pela colheita e limpeza das plantações de mamona e feijão, onde trabalhariam cultivando alguns legumes e pequenas criações, assim como plantariam mamona e feijão. Todavia, ao longo dos anos, a área do plantio de mamona foi diminuída, pois consideravam a terra extensa para a agricultura familiar praticada pelos assentados e quilombolas. O segundo caso, ocorreu a partir de 2006 nos municípios Redenção do Gurguéia, Avelino Lopes, Bom Jesus, Curimatá, Guaribas e Morro Cabeça no Tempo, onde inúmeros conflitos culminaram numa situação crítica de desmatamento dos biomas da Caatinga e Mata Atlântica, o que ocasionou, consequente, a destruição de alguns territórios de populações e trabalhadores rurais. Desse modo, compreendemos que a injustiça ambiental e alguns problemas ligados à saúde, foram os principais resultados do projeto Energia Verde, que foi implementado pela CODEVASF (Companhia de Desenvolvimento dosVales do São Francisco e Parnaíba) em parceria com o governo do Estado, situado no Plano de Desenvolvimento da Bacia do Rio Parnaíba. Licenciado pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o desmatamento do cerrado nativo, visando a produção de carvão vegetal pela JB Carbon S/A, denominado Plano de Manejo Florestal Sustentável, situa-se nas chapadas do extremo sul do Piauí, numa área particular conhecida como Condomínio do Chapadão do Gurguéia. Com indícios de irregularidades no tocante à titularidade das áreas de atuação da JB Carbon, o Instituto de Terras do Piauí (INTERPI) iniciou uma série de investigações e contestações acerca da origem das terras.215 Referente às investigações e ao desmatamento na região, ocorreram danos ambientais relacionados a saúde dos trabalhadores e as populações locais, cujo o Ministério Público acionou o IBAMA e conseguiu a suspensão dessas atividades. No entanto, no início de 2007, até que houvesse essa intervenção, verificou-se que mais de 6.000 hectares haviam sido desmatados. No caso, o próprio IBAMA constatou, ao longo do processo, que o desmatamento foi ilegal por incidir sobre Mata Atlântica primária e pela dúvida sobre a legitimidade da titularidade das terras, o que provocou a suspenção das atividades da empresa. Nesse sentido, no final de 2007, a empresa conseguiu o apoio do governo do Piauí, que concedeu a licença para exploração, junto ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), para extrair 215 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. Disponível em: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do- piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas- caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e. Acessado em: 22 de maio de 2020. http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e 98 minério de ferro nas proximidades da Serra Vermelha, “[...] localizada entre a Serra das Confusões e a Serra da Capivara, deflagrando mais ameaças ao patrimônio regional de relevante interesse arqueológico, histórico e científico”.216 Nesse sentido, a partir destes dois casos, podemos compreender que o exercício da poder do Estado, no que diz respeito a proteção à vida dos quilombolas e assentados, falhou desde o momento em que cedeu as terras ocupadas e comprometeu a saúde e existência desses grupos. Além disso, configurou tais ações como práticas racistas, tanto no âmbito institucional como no ambiental, pois compreendemos que essas expressões constituem um “[...] conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus governos, que aceitam a degradação ambiental e humana, com a justificativa da busca do desenvolvimento e com a naturalização implícita da inferioridade de determinados segmentos da população afetados [...]”,217 que, como consequência, sofrem os danos negativos do utilitarismo neoliberal em razão da tentativa de “[...] crescimento econômico a quem é imputado o sacrifício em prol de um benefício para os demais”.218 No caso das comunidades quilombolas, o racismo institucional e ambiental se correlacionam ainda com a concepção de quilombo ligada à definição Ultramarina, no qual faz com que as comunidades contemporâneas tidas como “remanescentes” ainda sejam ligadas a concepção de outrora, isto é, como aqueles que sobraram, comunidades quilombolas que restaram após a abolição da escravidão, ignorando assim todo o processo de luta política que os quilombolas enfrentaram ao longo do século XX. Em outras palavras, podemos entender que ainda existe um cenário de desigualdade racial relacionado à injustiça ambiental, caracterizando o caso das comunidades quilombolas como alvo do racismo ambiental. De acordo com Maria Sueli Rodrigues Sousa (2019), o próprio processo de regulamentação se caracteriza enquanto um desdobramento do racismo institucional, pois o que vale “[...] é o que o Estado afirma; por isso, as empresas e o Estado não levam em conta a autodeclaração das comunidades, só vale se o Estado certificar e titular”,219 ou seja, uma das primeiras dificuldades enfrentadas para cumprir todo o processo é a necessidade “[...] de um 216 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. Disponível em: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do- piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas- caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e. Acessado em: 22 de maio de 2020. 217 HERCULANO, Selene. Lá como cá: conflito, injustiça e racismo ambiental. I Seminário Cearense contra o Racismo Ambiental, 2006, p. 11. Disponível em: <http://www.professores.uff.br/seleneherculano/publicacoes/la- comoca.pdf>. Acessado em: 28 de maio 2020. 218 Idem, p. 12. 219 SOUSA, M. S. R. de; SANTOS, J. J. F. Territorialidade quilombola e trabalho: relação não dicotômica cultura e natureza. Revista Katalysis, v. 22, 2019, p. 201. http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e 99 profissional para realizar o RTID, O art. 9º da IN.57/2009 do INCRA, que terá a elaboração à cargo da Superintendência Regional do INCRA”.220 Além disso, Maria Sueli Sousa considera que a demora da execução de regulamentação das terras é ligada a uma falha administrativa da instituição, em lidar com as questões étnicas, pela falta de técnicos com diversidade exigida pelo RTID. Ainda nesse sentido, a autora pontua que o nível de detalhamento exigido para uma comunidade chegar à titulação é uma das facetas usadas pelo racismo, “[...] a resposta para tudo isso é racismo! Não o racismo declarado, mas aquele sinuoso, encoberto, menos identificável, com origem na estruturação e no funcionamento da sociedade”.221 A exemplo, o historiador Tauã Rangel (2016) coloca o Estado do Espírito Santo, cujo existem “[...] 100 comunidades quilombolas identificas, 68 reconhecidas e 38 certificadas, nenhuma foi titulada”,222 sendo esta uma realidade vivenciada por milhares de comunidades quilombolas que, por sua vez, reivindicam a sua existência frente à luta contra o racismo ambiental e institucional, por não conseguirem a regularização e posse das terras em que vivem. Sendo assim, considerando a importância de sediscutir sobre os conflitos desencadeados pelo racismo ambiental, no tópico a seguir daremos ênfase às proporções que surgem quando alguns grupos étnicos são marcados pela vulnerabilidade ao “[...] se deparam com a chegada do estranho, fortemente marcada pela chegada de novos empreendimentos responsáveis pela ruptura de um modo de vida local”.223 Além disso, abordaremos, principalmente, como se caracterizam as representações do “Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil” ao listar práticas de racismo e injustiça ambiental em diversos territórios do país. 3.2 O mapa dos conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil: um olhar voltado para as comunidades quilombolas A atuação da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA),224 se caracteriza por reivindicar a identificação, organização e o fortalecimento das lutas contra as desigualdades 220 SOUSA, M. S. R. de; SANTOS, J. J. F. Territorialidade quilombola e trabalho: relação não dicotômica cultura e natureza. Revista Katalysis, v. 22, 2019, p. 202. 221 Idem, p. 206. 222 RANGEL, Tauã Lima Verdan. Racismo ambiental às comunidades quilombolas. Bauru, v. 4, n. 2, 2016, p. 129. 223 Idem, p. 127. 224 “A Rede Brasileira de Justiça Ambiental foi criada em setembro de 2001, quando representantes de movimentos sociais, sindicatos, ONGs, entidades ambientalistas, organizações afrodescendentes e indígenas, e pesquisadores universitários do Brasil – com a presença de convidados dos EUA, Chile e Uruguai - se reuniram no Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania, na Universidade Federal Fluminense, na cidade de 100 injustiças ambientais existentes no Brasil. Sendo um dos projetos que clamam por justiça ambiental, a RBJA revela, em suas pesquisas, a existência de diversos casos conflituosos em que a injustiça e racismo ambiental são cotidianos na maioria dos municípios do país, que por sua vez atingem “[...] os povos no campo, na floresta e na zona costeira, ou ainda as populações urbanas de megalópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, ou mesmo outras capitais e cidades menores”,225 que, consequentemente, evidenciam disputas entre grupos específicos, que possuem objetivos e interesses confrontantes, em relação ao uso do território – sendo as ameaças de existência desses povos, em seus territórios, que costumam ser um dos componentes centrais no que tangem os casos de injustiça ambiental. Conflitos ambientais encontram-se presentes em diversos continentes e países e vêm sendo objeto de produção acadêmica de diversos autores no campo das ciências sociais e ambientais, incluindo a Geografia Política e a Ecologia Política (ACSELRAD, 2004; ACSELRAD, HERCULANO & PÁDUA, 2004; LITTLE, 2004; MARTINEZ-ALIER, 2002; HERCULANO & PACHECO, 2006; PORTO, 2007). Sua emergência e intensificação, principalmente nas últimas décadas de globalização econômica do capitalismo, resultam de uma visão economicista restrita de desenvolvimento pautada por critérios produtivistas e consumistas que desrespeitam a vida humana e dos ecossistemas, bem como a cultura e os valores dos povos nos territórios onde os investimentos e as cadeias produtivas se realizam.226 A contemporânea crise socioambiental, ocorrida a partir da apropriação dos recursos naturais, em diferentes territórios, ao longo dos anos geraram a exclusão e a expropriação de diversos grupos em relação aos seus espaços habitacionais. Geralmente, em reação aos casos de injustiça ambiental, as populações afetadas e os movimentos sociais atuam na busca dos “[...] seus direitos fundamentais envolvendo questões como saúde, trabalho, cultura e preservação ambiental”.227 De acordo com Marcelo Porto e Tania Pacheco (2009), o contexto dessas lutas é marcado pela reivindicação da existência desses grupos em seus territórios, que são “[...] desenvolvidas por movimentos, estudiosos e militantes que buscam deslegitimar os discursos, práticas e políticas públicas voltadas para defender os modelos de desenvolvimento hegemônicos que hipervalorizam os benefícios dos grandes empreendimentos e da economia de mercado”,228 que, por sua vez, ocultam os riscos ambientais que atingem as populações envolvidas nesses conflitos. Niterói/RJ”: PORTO, Marcelo Firpo; PACHECO, Tania. Conflitos e injustiça ambiental em saúde no Brasil. Tempus. Actas em Saúde Coletiva, vol. 4, n. 4, 2009, p. 29. 225 Idem, p. 30. 226 Idem, p. 27. 227 Idem, p. 28. 228 PORTO, M. F. Conflictos, (in)justicia ambiental y salud en Brasil. Revista Ecologia Politica 37: 65-70, Barcelona. 2009, p. 33. 101 Foram a partir dessas discussões, que o projeto “Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil” passou a ser desenvolvido em 2008,229 no qual se caracteriza por listar territórios onde os riscos e impactos ambientais afetam diferentes populações, a exemplo de grupos camponeses e comunidades quilombolas, tornando assim públicas as vozes que buscam justiça ambiental. Vale ressaltar, que essas populações possuem um histórico de discriminação e invisibilidade, que, por sua vez, não são considerados como problemas sociais pelas instituições e mídia, tendo em vista serem ignorados por estes. Nesse sentido, observa-se que muitos casos são frequentemente ameaçados pela violência apenas por buscarem os seus direitos enquanto cidadãos, isto é, ao entrarem em defesa dos seus direitos, que incluem a posse do território, a garantia de saúde e a preservação de cultura, alguns grupos são perseguidos e afetados por ações de injustiça ambiental, como pode ser observado no mapa 3. Mapa 3: Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil Fonte: FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. Espalhados no mapa por todas as regiões do país, foram registrados, no primeiro resultado do projeto, mais de 300 casos de injustiça ambiental em todo o Brasil. Com isso, desde o início, o projeto foi idealizado a partir dos princípios da prática de uma ciência mais cidadã ao assumirem uma posição ética ligada à solidariedade com tais populações, 229 Resultado da cooperação técnico-científica entre a Fiocruz e a FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), ONG que está na secretaria executiva da RBJA desde sua criação. 102 reconhecendo assim que os problemas conflitantes apresentados fazem parte de alguns complexos que, em nossa compreensão, exigem a viabilidade de soluções a curto, médio e longo prazo. Em outras palavras, o projeto objetiva mudanças drásticas que incluem resoluções estruturais “[...] nos sistemas de produção e consumo das sociedades capitalistas modernas, bem como nas políticas públicas e práticas das organizações”.230 A ideia de promoção da saúde relacionada à perspectiva de justiça ambiental, assumida pelo projeto, contribui com as políticas e ações sociais que buscam a defesa dos direitos humanos fundamentais, assim como a redução das desigualdades e, consequentemente, o fortalecimento da democracia no que diz respeito ao direito à da vida dos sujeitos que estão envolvidos nos variados tipos de conflitos. O objetivo maior do projeto é socializar informações e dar visibilidade a denúncias e conflitos ambientais envolvendo situações de injustiça ambiental e saúde no país, com a intenção de permitir o monitoramento de ações e de projetos que atendam às demandas das populações por justiça, saúde e cidadania. A ideia não é se restringir aos casos e territórios onde problemas sociais, ambientais e sanitários já estejam em nível avançado de deterioração, mas também apontar conflitos cujos riscos e/ou efeitos à saúde estejam ainda por ocorrer. São casos em quepopulações e movimentos sociais estejam se mobilizando contra a implementação de políticas e empreendimentos que gerem situações de injustiça ambiental, como hidrelétricas, fábricas poluentes, aterros de lixo, incineradores, grandes empreendimentos turísticos no litoral e condomínios residenciais, ou ainda a não demarcação de terras indígenas, de quilombolas ou para a reforma agrária.231 Como podemos observar, os objetivos do projeto estão amplamente ligados a promover a vida e desenvolvimento de todos sujeito e comunidades que se encontram em meio a esses conflitos. Desse modo, podemos entender também que quando esses objetivos não são alcançados, todos os âmbitos que atravessam a vida desses povos – economia, política e decisões governamentais –, acabam abalando e prejudicando os direitos fundamentais de “[...] comunidades indígenas e quilombolas, agricultores familiares, pescadores artesanais, comunidades tradicionais diversas, mas também trabalhadores e moradores das cidades que vivem nas zonas de sacrifício”.232 Quer dizer, os casos apresentados no Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil revelam algumas situações que são ocasionadas por modelos de desenvolvimento que, por sua vez, desprezam a vida das populações que habitam seus territórios. 230 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. Disponível em: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do- piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas- caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e. Acessado em: 22 de maio de 2020. 231 PORTO, Marcelo Firpo; PACHECO, Tania. Conflitos e injustiça ambiental em saúde no Brasil. Tempus. Actas em Saúde Coletiva, vol. 4, n. 4, 2009, p. 32. 232 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e 103 De acordo com a política que envolve o projeto, o mapeamento dos conflitos ambientais parte das demandas, das estratégias de resistência e das propostas de resolução dos problemas que envolvem própria a reinvindicação existencial desses grupos. É tanto, que o projeto não desenvolveu estudos, trabalhos ou avaliações de campo que “[...] aprofundassem, do ponto de vista técnico-científico, os detalhes dos impactos ambientais e à saúde”.233 Nesse sentido, as informações destacadas nos casos são, sobretudo, as vozes expressivas das populações atingidas, que ocorreram “[...] seja a partir de suas experiências, seja a partir de relatórios e artigos desenvolvidos por entidades, ONGs e instituições parceiras, inclusive grupos acadêmicos, instituições governamentais, Ministérios Públicos ou órgãos do judiciário”.234 O fato de tais posições serem muitas vezes contraditórias com as versões apresentadas por outras instituições ou empresas envolvidas expressa, mais que o grau de incertezas e falta de informações existentes, o nível de conflito e de dificuldades no encaminhamento de soluções que atendam aos interesses legítimos das populações atingidas. Ao privilegiarmos a visão de tais populações, buscando não cair em reducionismos ou denúncias inconsequentes, estamos contribuindo, acreditamos, com o papel de dialogar com a sociedade e transformá-la para que sejamos mais democráticos, sustentáveis e saudáveis.235 Desse modo, podemos compreender que as fontes de informação são extremamente importantes ao sistematizarem os casos apresentados e, também, por seguirem as orientações da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), que incluem a experiência de suas entidades, que por sua vez estão relacionadas com as suas discussões e com os seus grupos de trabalho, sendo estes: o GT Químicos e o GT Racismo Ambiental;236 destacando este último à responsabilidade de levantar, inicialmente, as informações que constam no Mapa do Racismo Ambiental no Brasil. Além desses grupos, o acesso às informações e a construção dos casos incorporaram a experiência de alguns grupos que discutem a temática, a exemplo de algumas entidades e grupos universitários, em parceria com movimentos sociais, que lutam por justiça ambiental no país.237 233 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 234 Idem. 235 Idem, 236 Parcela dos documentos que circulam na RBJA e seus GTs encontram-se disponibilizadas no Banco Temático, ferramenta construída pela Fiocruz e Fase acessível na internet que permite a busca e consulta de documentos. 237 Somente para citar alguns exemplos, destacamos: o Mapa dos Conflitos Ambientais no Estado do Rio de Janeiro construído pelo IPPUR/UFRJ; o Mapa dos Conflitos Socioambientais da Amazônia Legal, organizado pela Fase Belém; os dados constantes da Nova Cartografia Social, organizada pelo pesquisador Alfredo Wagner; trabalhos realizados por universidades e centros de pesquisa como o Gesta/UFMG, UFCE, UFBA, UFMT e UFMS, dentre outros; os relatórios da Plataforma DESCH sobre direitos humanos, em especial a Relatoria de Meio Ambiente; e as contribuições de inúmeras ONGs e fóruns atuantes na justiça ambiental e na própria RBJA. Tais fontes foram complementadas pelo acesso a informações da mídia ou de instituições, incluindo Ministérios Públicos e a Justiça, quando envolviam informações sobre ações ou processos em andamento. 104 Inicialmente, a proposta do projeto foi apresentar os casos de conflitos que existiam em todo o país, mais ou menos numa média de 15 conflitos por estado. No entanto, os conflitos chegaram a se concentrar entre cinco até trinta casos, que dependiam “[...] da intensidade de conflitos, sua extensão e mobilizações”.238 A exemplo, os estados de Roraima e Sergipe que continham uma quantidade de casos menores que os números levantados nos estados de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse sentido, o levantamento apresentou um quadro de denúncias que existiam desde janeiro de 2006, assim como alguns casos em que o início dos conflitos tinha ocorrido anteriormente a essa data. Para o fichamento dos casos, foram considerados, entre outros, os seguintes itens: – o tipo de população atingida e o local do conflito, como: povos indígenas, operários/as, quilombolas, agricultores/as familiares, moradores/as em encostas, ribeirinhos/as, pescadores/as e outros/as tantos/as, urbanos ou rurais; – tipo de dano à saúde (contaminação por chumbo, desnutrição, violência física, dentre outros) e de agravo ambiental (desmatamento, queimada, contaminação do solo e das águas por agrotóxicos, por exemplo); – a síntese do conflito e o contexto ampliado do mesmo, apresentando os principais responsáveis pelo conflito, as entidades e populações envolvidas na luta por justiça ambiental, os apoios recebidos ou não (como participação de órgãos governamentais, do Ministério Público e de parceiros da sociedade civil), as soluções buscadas e/ou encontradas; – os principais documentos e fontes de pesquisa usadas na pesquisa sobre o caso.239Na organização dos dados, as informações iam sendo inseridas num banco de dados que foi criado pelo programa do DataSus: o FormSus. Desse modo, de acordo com a medida em que as informações de cada estado chegavam, o material era organizado e enviado para ser avaliado “[...] por um pesquisador ou uma pesquisadora local – acadêmico ou militante de movimentos sociais e ONGs”,240 que eram encarregados de analisar a pesquisa realizada e, além disso, corrigiam ou complementavam os dados, de acordo com o necessário. Após essa etapa, as fichas que iam sendo aprovadas foram enviadas para editoração e padronização, para só então serem inseridas no banco de dados do Mapa.241 Nesse sentido, os casos que constam no Mapa foram sistematizados até o momento, o que não limitam as diversas situações existentes no país, que de certa forma refletem uma parcela importante e significativa em relação a exposição das populações atingidas. 238 PORTO, Marcelo Firpo; PACHECO, Tania. Conflitos e injustiça ambiental em saúde no Brasil. Tempus. Actas em Saúde Coletiva, vol. 4, n. 4, 2009, p. 33. 239 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. Disponível em: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do- piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas- caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e. Acessado em: 22 de maio de 2020. 240 Idem. 241 Esta ferramenta foi criada por uma equipe técnica do ICICT/Fiocruz especializada no georreferenciamento de informações sobre saúde, utilizando-se do Google Earth como plataforma auxiliar de localização espacial dos territórios onde os casos estão inseridos. http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/?conflito=pi-regiao-de-chapadoes-no-extremo-sul-do-piaui-patrimonio-singular-de-importancia-mundial-arqueologica-e-pela-transicao-entre-areas-ricas-dos-biomas-caatinga-e-cerrado-e-ameacada-por-projetos-de-e 105 Sendo assim, compreendemos que as informações contidas no Mapa podem ser visualizadas como processos e dinâmicas que aperfeiçoam, em certa medida, as novas informações assim como as novas situações que possam, “[...] na continuidade do projeto, aprimorar, corrigir e complementar o presente resultado. Portanto é importante ressaltar que não consideramos o Mapa fechado”,242 ao contrário, o Mapa representa o momento iniciante de “[...] um novo espaço para denúncias, para o monitoramento de políticas públicas e, ainda, de desafio para que o Estado, em seus diversos níveis, responda às necessidades da cidadania, respeitando e implementando a Constituição Federal”.243 3.3 “Um grito no semiárido”: a crise existencial da comunidade quilombola Lagoas No mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil, consta-se o caso da comunidade quilombola Lagoas no que diz respeito à luta contra a instalação de empresas de mineração e carvoarias em seu território. Nas reinvidicações da comunidade, os quilombolas afirmaram que houveram impactos ambientais relativos às alterações do regime tradicional de uso e ocupação do território, sendo estes: (1) desertificação; (2) queimadas; (3) irregularidade na autorização ou licenciamento ambiental; (4) irregularidade na demarcação de território; (5) dano a área protegida; poluição atmosférica; (6) poluição de recurso hídrico; que provocaram doenças não transmissíveis e crônicas, assim como insegurança alimentar e uma queda na qualidade de vida dos lagoanos. Mapa 4: Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Piauí Fonte: FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 242 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 243 Idem. 106 Centrados no território de São Raimundo Nonato, observa-se no mapa que existem doze municipios do Piauí, até o ano de 2014, que encontravam-se em situações conflituosas. Entre os municípios, destacam-se aqui os integrantes do território quilombola Lagoas, que por sua vez eram ameaçados de expulsão das suas terras pelas investidas de algumas empresas voltadas para a mineração e carvoaria. Nesse sentido, desde 2009, existem registros sobre algumas atividades da empresa mineradora São Camilo no território, sem que tenha houvesse nenhuma comunicação com os quilombolas. Além diso, nos registros constam que existiam falhas no licenciamento ambiental da empresa, isto é, “[...] as empresas de mineração e carvoaria estavam derrubando árvores nobres e promovendo queimadas em áreas ambientais sob a responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)”,244 que, por sua vez, impossibilitavam o avanço de atividades, assim como ameaçavam a vida dos quilombolas. A gente está no semiárido e a gente tem que viver nessa região como nossos antepassados sempre viveram. As futuras gerações também precisam viver desse semiárido. Então isso é uma preocupação, se a gente não achar uma solução, se as autoridades não olharem pra isso, e vierem evitar essas devastações, não sei como vai ser o futuro – Claudio Teófilo, Quilombo Lagoas.245 As palavras do quilombola Claudio Teófilo, representam a reivindicação existencial da comunidade Lagoas frente à produção ilegal de carvão e avanço das empresas de mineração no território lagoano.246 Na reportagem do Jornal Imirante,247 consta-se que durante o ano de 2008 algumas mineradoras, de portes grandes e médios, investiram no Piauí cerca de R$ 800 milhões em pesquisa e na exploração de algumas terras. A guisa exemplo, a empresa Vale do Rio Doce realizou investigações referentes à busca pela constatação de ouro, ferro e manganês no município de São Raimundo Nonato, devido o estado ser rico em minério de ferro, que existe em quase toda sua extensão territorial.248 Como consequência das ações conflituosas, o quilombola Raimundo Junior registrou, em 2009, um boletim de ocorrência contra a referida mineradora, pois a empresa o havia 244 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 245 Idem. 246 Nesse sentido, quando pontuo que as reivindicações dos lagoanos partem de uma questão existencial, estou me refiro que “[...] ser um quilombola significa compartilhar uma mesma existência, um modo de vida, em que as perspectivas culturais, religiosas, ambientais, econômicas, históricas, geográficas e sociológicas estão todas integradas”: SAHR, C. L. L. et al. Geograficidades quilombolas: estudo etnográfico da comunidade de São João, Adrianópolis - Paraná. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2011, p. 92. 247 IMIRANTE. Mineradoras investem R$ 800 milhões no Piauí. 01/03/2008. Disponível em: http://goo.gl/QfSXBR. Acessado em: 24 de fev. 2020. 248 Segundo, Reinaldo Batista, Chefe de Fiscalização do 210 – Distrito do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) no Piauí, este foi um dos motivos para que ao longo de 40 anos tenham sido concedidos em torno de 700 títulos de pesquisa e exploração, e que em um período de apenas três anos, entre 2005 e 2008, tenham sido concedidos 1.400 novos títulos. 107 acusado de furtar algumas carreadasde pedras para alicerce na localidade de Lagoa do Nascimento, que é um dos povoados pertencentes ao território da comunidade quilombola Lagoas. Nesse caso, a acusação havia sido feita por um representante da Mineradora São Camilo, cujo afirmava que haviam sido retiradas “[...] cinco carreadas de pedra para alicerce, cujo foram vendidas para a obra no CEFET de São Raimundo Nonato”.249 Na ocasião, o quilombola Raimundo Junior contestou à acusação pontuando que a área explorada faz parte de uma propriedade particular que pertence a sua família e a outros moradores da localidade Lagoa do Nascimento. Segundo reportagem do São Raimundo.com, que disponibiliza o boletim de ocorrência, o declarante, Raimundo Junior, afirma ter conhecimento de que a empresa adquiriu uma propriedade na região do Morro do Mel de tamanho aproximado de 460 hectares, mas que o Sr. Dalmo afirma que a Mineradora São Camilo tem o direito de exploração de uma área de 12.000 hectares. No entanto, nenhum proprietário de terra naquele local conhece tais direitos e como eles foram adquiridos, questionou Raimundo Junior.250 Com a finalidade de resolver a situação, Raimundo Junior buscou informações no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) sobre ter havido a possibilidade da concessão daquelas terras para a empresa, no qual, na ocasião foi informado que a mineradora não possuía nenhuma licença para exploração, nem para os 460 hectares que ela havia comprado. Nesse sentido, como forma de reivindicação, os quilombolas juntamente com alguns grupos de agricultores da região participaram do documentário “O Semiárido Grita”, que foi organizado e produzido pelos alunos do Instituto Comrádio do Brasil, com a finalidade de trazer visibilidade para as injustiças ambientais que os lagoanos e outros assentados estavam sofrendo. Assim como no caso do quilombo Lagoas, outras comunidades quilombolas no Brasil também sofrem conflitos similares, a exemplo da comunidade quilombola “Pontal dos Crioulos”, que fica localizada no município de Amparo do São Francisco no estado de Sergipe. De acordo com Marcelo Porto e Tania Pacheco (2009), a comunidade possui cerca de 150 famílias e ainda não recebeu a titulação de suas terras, pois tem travado conflitos contra grandes proprietários rurais, “[...] políticos e fazendeiros ligados, inclusive por parentesco, a um ex- governador do Estado, sendo auxiliados também por um delegado de polícia”,251 que são os responsáveis por exercerem oposição à titulação da comunidade. 249 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 250 Idem. 251 PORTO, Marcelo Firpo; PACHECO, Tania. Conflitos e injustiça ambiental em saúde no Brasil. Tempus. Actas em Saúde Coletiva, vol. 4, n. 4, 2009, p. 36. 108 A partir desses conflitos, esse grupo foi acusado, pelos quilombolas da comunidade Pontal dos Crioulos, de terem invadido a comunidade algumas vezes e por terem feito “[...] demonstração de força com a exibição de armas, de impedirem a passagem de quilombolas por logradouros de uso comum, de destruírem plantações no entorno da lagoa, de matarem animais de criação e de agredirem fisicamente pessoas”.252 Desse modo, compreendemos que os conflitos ambientais, protagonizados pelas comunidades quilombolas, ocorrem em razão da luta pelo direito de usar o território e os recursos naturais existentes, pois “[...] as injustiças ambientais permanecem invisibilizadas e os conflitos surgem justamente pela emergência de formas organizadas de resistência e afirmação de outros projetos de desenvolvimento e sociedade”. 253 Nessa perspectiva, considerando a emergência das reivindicações da comunidade Lagoas, em 2011 o INCRA iniciou o processo de regularização fundiária de terras do quilombo Lagoas, ao publicar o Relatório Antropológico de Identificação e Delimitação (RTDI). De acordo com o Projeto Dom Helder Câmara, os proprietários que possuíam imóveis na área do território quilombola foram notificados em 2012, no que se refere ao processo de desocupação das áreas que seriam regularizadas. Nesse caso, as áreas se tornariam uma propriedade coletiva, que por sua vez seriam administradas pela associação representativa das famílias. Nesse sentido, Nêgo Bispo considerou que a mobilização da comunidade foi importante no processo de regularização, pois “[...] as famílias já viviam um processo, já estavam mobilizadas; isso facilitou em muito o trabalho da equipe”.254 Todavia, embora o andamento do processo de regularização fundiária seja importante para garantir a titulação do território, consta-se que isso “[...] não impede que a pressão da mineradora avance sobre diferentes comunidades no território Lagoas”.255 Nesse sentido, ainda em 2011, o Bispo da diocese de São Raimundo Nonato, João Santos Cardoso, reuniu algumas lideranças e representações de suas paróquias e pastorais com o objetivo de discutir a respeito das consequências da seca naquela região. A partir da reunião foi produzida uma lista de demandas, que por sua vez foi encaminhada para diferentes secretarias estaduais, assim como para o governo do Estado. No entanto, não houve resposta, o que corroborou para a ampliação do movimento junto a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que converteram a lista de 252 PORTO, Marcelo Firpo; PACHECO, Tania. Conflitos e injustiça ambiental em saúde no Brasil. Tempus. Actas em Saúde Coletiva, vol. 4, n. 4, 2009, p. 37. 253 NUNES, J. A. Saúde, direito à saúde e justiça sanitária. Rev. Crítica de Ciências Sociais 2009; p. 149. 254 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 255 Idem. 109 solicitações num documento em formato de denúncia, cujo aborda sobre a ausência de ações sociais públicas no município. Desta organização nasceu o Grito do Semiárido, uma iniciativa de luta popular de agricultores/agricultoras familiares em vista de uma política pública permanente no semiárido. O I Grito consistiu em uma audiência pública em São Raimundo Nonato que contou com mais de mil participantes, incluindo agricultores, quilombolas e representantes do poder público. Neste momento as inquietações acerca do avanço das mineradoras na região começavam a crescer. Em mensagem de correio eletrônico de novembro 2011 para o grupo da Cáritas Diocesana de São Raimundo Nonato, Hildebrando Pires, membro da organização, expressa sua preocupação com as ofensivas da mineradora São Camilo contra a comunidade do entorno do Morro do Mel.256 De acordo com Hildebrando Pires, nesse contexto, a mineradora ainda buscava de todos os modos conseguir se instalar na região, sendo que mais de cem famílias fizeram um documento afirmando que não queriam deixar as suas terras a mercê da empresa, isso porque a mineração iria causar impactos ambientais assim como atingiria também a população local. De acordo com Antônio Euzébio de Souza, coordenador da CPT no Piauí, a mineração representava a degradação, de modo impactante, onde seria impossível estabelecer qualquer tipo de conciliação, tanto com a população como em relação ao meio ambiente. Nesse sentido, em 2012, outras instituições se aliaram ao movimento “Grito do Semiárido”, discutindo o tema “piauiense em convivência com o semiárido”,257 com a finalidade de reforçar algumas demandas das comunidades frente a luta pelas terras. Juntamente com outras associações,258 com o intuito de organizar o IV Grito do Semiárido, a Associação Territorial do Quilombo Lagoas optou por estabelecer uma metodologia que envolvesse mais as famílias residentes nas áreas de pesquisa de mineração, buscando fortalecer a luta da comunidade, que foi visitada “[...] para ouvir seu testemunho e também para mobilizá-la,”259pois as famílias ainda não entendiam como ocorria o processo e não tinha conhecimentos amplos sobre os impactos provocados pela mineração, pois estavam preocupadas, sobretudo, com a desapropriação, “[...] alguns dizem ter áreas de propriedade familiar onde já houve pesquisas. Segundo informações de famílias visitadas, a empresa entra nas terras sem autorização e perfura poços, deixando a área toda demarcada”.260 256 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 257 O II Grito foi realizado na cidade de Picos em 2012. Em 2013, o III Grito aconteceu em São Raimundo Nonato e, diante da preocupação com o avanço das pesquisas de empresas do setor de mineração naquele território, este foi o tema do encontro: Política Pública para o Semiárido e a intervenção da mineração. 258 Associação das Comunidades Pé do Morro e Morro do Mel, Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAG/Polo Sindical de São Raimundo Nonato), Centro Popular Educacional e Cultural do Sertão Piauiense, Cáritas Diocesana de São Raimundo Nonato e CPT. 259 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 260 Idem. 110 Algumas comunidades do Quilombo Lagoas (Angical, Lagoa do Amaro e Tobões, em Fartura-PI; Lagoa Nova, Lagoa das Flores, Caraíbas e Lagoa Nova, em Várzea Branca) receberam esta vista no dia 17 de setembro, da qual constatou-se que entre Várzea Branca, Fartura e São Raimundo Nonato, verifica-se grandes áreas de queimada de madeira autorizada pela SEMAR [Secretário de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí], segundo os executores, dentro da área quilombola ainda sob responsabilidade do INCRA para regularização fundiária. Além disso, a equipe da visita às comunidades quilombolas afirmou que: As famílias estão assustadas, mas ainda não sabem o que fazer, nem a quem recorrer, visto que, segundo as informações, os representantes do poder público local e o Sindicato estão envolvidos com a proposta de apoio ao desmatamento.261 Nessas circunstancias, algumas áreas numerosas de mata já estavam sendo desmatadas, cujo o destino da madeira era para a Mineradora GALVANI, em Angico dos Dias. Conta-se que na localidade Lagoa Nova, que a instalação da carvoaria já estava materializada com 32 fornos construídos e 28 sendo que se encontravam ativos. De acordo com Carlos Rodrigues de Oliveira, encarregado da empresa de carvoaria, “[...] os 60 fornos irão funcionar na localidade e que enquanto tiver madeira estaremos trabalhando, quando um não aguentar mais, vem outro para continuar”,262 declaração que demonstra o racismo institucional, pois a empresa estava no território sob responsabilidade do INCRA, sendo que a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Piauí (SEMAR) havia também concedido a licença para retirada de madeira. No caso, compreendemos que havia o abuso e desrespeito por parte do Estado, assim como das empresas em relação a comunidade quilombola Lagoas, tais por existir a “[...] intensidade da atividade de pesquisa sem a informação necessária às comunidades; atividade de lavra sem audiência pública conforme determinação legal; 100 processos de pesquisa só no município de São Raimundo Nonato”,263 sendo que a comunidade não tinha tenham nenhuma informação relativa à realização dessas atividades, enquanto o Estado havia conferido uma licença para a SEMAR iniciar suas atividades. Segundo a Cáritas Brasileira, no território da comunidade quilombola Lagoas, cuja as famílias foram visitadas pela ocasião da preparação do IV Grito do Semiárido, foram realizadas pesquisas em seu território cujo verificou-se que “[...] grandes áreas de queimada de madeira, que, segundo os executores, estão autorizadas pela SEMAR”.264 Tudo isso acontece dentro da área quilombola ainda sob responsabilidade do INCRA para regularização fundiária. Ao todo, 60 fornos funcionarão na comunidade quilombola. As comunidades do entorno do Morro do Mel relataram durante a visita, segundo reportagem da Cáritas Brasileira, que a mineradora São Camilo já comprou mais de mil hectares de terra, e até o momento nenhum diálogo foi estabelecido com as comunidades do entorno, como destacamos anteriormente. Norberto dos Santos, da 261 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 262 Idem. 263 Idem. 264 Idem. 111 Comunidade de Lagoa Nova, em Várzea Branca, contou no vídeo produzido pela Cáritas Diocesana de São Raimundo Nonato, em setembro de 2014, durante a preparação para o IV Grito, que: Aqui é a vida de nós todos, da comunidade toda, vivemos disso aqui, tudo que criamos é dentro dessa propriedade, se ficamos sem ela acaba com tudo pra nós.265 No mesmo sentido, Dona Aldete de Brito, moradora da mesma localidade que Norberto dos Santos, considerou sua preocupação em relação ao futuro da comunidade, sobretudo com as crianças, pois “[...] se destruir toda a caatinga, como é que essas crianças depois vão chegar na idade de 50 anos? Isso aqui não existe mais!”,266 pois a chegada da empresa visava a exploração da áreas de mata ainda virgem com carvoeiro. Desse modo, o tema da exploração manteve sendo discutido no IV Grito do Semiárido,267 que, a partir das discussões, realizaram uma marcha pelas ruas do centro de São Raimundo Nonato, contando com a participação de cerca de quatro mil pessoas que reivindicavam a não implantação de mineradoras na região. Na marcha, o vice-presidente da Associação Territorial do Quilombo Lagoas, Cláudio Teófilo Marques, marcou presença e relatou que o movimento funcionava em reação à chegada das mineradoras na região e aos impactos que a comunidade já vinha sentido. Além disso, Claudio Marques apontou que a iniciativa pretendia chamar atenção das autoridades para os casos que estavam acontecendo na região, pois do jeito que estava, com a região sendo ocupada pelas empresas, os quilombolas tenderiam a deixar suas terras, pois “[...] onde se instalam empresas de mineração, o futuro do povo é sair da região. Se não muda de Estado, muda sua vida inteira. Nós queremos ficar nos nossos municípios, em nossas terras”.268 Nós estamos reagindo por que a mineração destrói as terras, expulsa os moradores da região para ir morar nas periferias da cidades e não ganham nada em troca. A nossa vida foi trabalhar na agricultura familiar e queremos continuar assim. […] A gente anda pela mata e vê no mínimo 40% dela morta. Isso é muito ruim não só para mim, mas para as futuras gerações. Se as autoridades não olharem para isso, não sei como será o futuro. Daqui a dez anos, se as coisas continuaram assim, nossa comunidade vai desaparecer. A gente do território não está satisfeito com a ideia dessas empresas tentando invadir as nossas áreas, porque aqui é uma área que faz parte de um território quilombola, aqui nesse território moram aproximadamente 1.500 famílias, […] a gente não tá satisfeito com essa empresa chegando aqui, não. A gente está muito preocupado com a chegada dessas empresas aqui, tanto na área da carvoaria, como da mineração.269 Mesmo com o passar dos anos, como podemos observar, os relatos dos quilombolas sobre os conflitos ainda não cessaram. A respeito, o coordenador da Cáritas de São Raimundo 265 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 266 Idem. 267 De acordo com matéria do Jornal de Luzilândia, o Grito do Semiárido buscou denunciar que as atividades de pesquisa mineral na região têm sido intensas – há mais de 100 registros de processos de pesquisa apenas em São Raimundo Nonato -, e que as famílias afetadas não têm recebido as devidas informações. 268FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 269 Idem. 112 Nonato, Hildebrando Pires, pontuou também que “[...] a SEMAR concedeu licença para plano de manejo de uma empresa, do ano de 2013 a julho de 2014, que naquele momento havia cortado algumas árvores, a exemplo da aroeira, umburana e angico”,270 e que em alguns lugares precisava de manejo ambiental, pois em outra região havia implantado uma carvoaria com 60 fornos, sendo que os quilombolas não foram comunicados: “[...] a Associação do Quilombo nunca viu, as entidades de apoio também nunca viram”.271 Reafirmando o discurso, o quilombola Manoel Aragão comenta sobre o desmatamento: “Isso aqui é uma Umburana, Umburana essa que nós, trabalhadores e agricultores, somos proibidos de tirar para fazer uma porta para nossas casas. Aí vem uma grande empresa, que nem sabemos da onde é, e vai e leva, sem nenhuma combinação com os moradores”.272 As irregularidades continuaram permanecendo. Nesse sentido, a historiadora Ana Estela, diretora do escritório do Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional – PI (IPHAN-PI), relatou para o documentário “Grito do Semiárido” que estava assombrada com a situação que os lagoanos estavam passando. Nesse sentido, a historiadora ainda colocou que a comunidade Lagoas é reconhecida pela Fundação Palmares e “[...] até nós do IPHAN, que somos do governo federal, não podemos entrar na área quilombola e fazer nenhuma intervenção, não podemos fazer nada, nem escavar um sitio arqueológico, se não tiver autorização deles”,273 isto é, as instalações de carvoaria naquela região não deveriam ocorrer, pois representavam ações gravíssimas. Ao final das atividades do IV Grito do Semiárido, no dia 16 de novembro de 2014, um passo importante havia sido dado em favor da comunidade do quilombola Lagoas, que foi a criação da Associação Cultural do Quilombo Lagoas. Em compreensões gerais, o objetivo da associação era garantir que as comunidades pudessem ter oportunidades de acesso aos direitos constituídos pela lei, referente as comunidades remanescentes de Quilombo. No entanto, embora associação represente um marco importante para os lagoanos, destacamos que apesar de ter sido retomado em 2011, o processo de regularização fundiária do Quilombo Lagoas não obteve avanço desde então. 270 FIOCRUZ, Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. 22 de dezembro de 2009. 271 Idem. 272 Idem. 273 Idem. 113 O PERIGO DE UMA ÚNICA NARRATIVA, considerações finais Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas as histórias podem também serem usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias podem reparar essa dignidade perdida.274 Chimamanda Ngozi Adiche 274 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 2009. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ> Acessado em 4 de junho de 2020. https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ 114 A fala de Chimamanda Adichie sobre “O perigo de uma única história”,275 retrata uma narração pessoal de experiências da autora, cujo destaca os perigos que uma história única pode ter. É seguindo esse raciocínio, que Chimamanda Adichie exemplifica suas vivências desde a tenra idade, onde aos dois anos começou a ler, se caracterizando assim enquanto uma leitora precoce que folheava alguns livros infantis britânicos e americanos. Consequentemente, Adichie passou a escrever precocemente, destacando nos seus escritos os sujeitos brancos de olhos azuis, apesar do fato dela ser negra e morar na Nigéria, isto é, a escrita da autora era amplamente influenciada pelas percepções de mundo eurocêntricas. O relato da autora é extremamente importante, pois demonstra como nós, pessoas num contexto marcado pela colonização ocidental, somos vulneráveis a uma história que valorizou, por muito tempo, os homens europeus e tudo o que eles produziram, configurando e estabelecendo, desse modo, um não lugar para os(as) negros(as). O fato da autora ter escrito suas histórias sobre pessoas brancas, se justifica porque tudo aquilo que ela havia lido eram livros nos quais os personagens se caracterizavam por ser estrangeiros, convencendo-a de que naturalmente estes tinham que ser representados em seus escritos. Todavia, em detrimento das discussões descoloniais, a autora passou a descontruir a categoria de gênero como um conjunto de normas que orientavam as ações dos sujeitos e regulavam a produção dos corpos considerados naturais e pré-discursivos, entendendo a importância da mulher, sobretudo a mulher negra, como protagonista de histórias. Isto só ocorreu, inicialmente, quando Adichie descobriu os livros africanos, mesmo não havendo muitos disponíveis, a autora teve contato com alguns exemplares que abordavam sobre meninas com a pele da “cor de chocolate”, cujos cabelos crespos não poderiam formar rabos- de-cavalo, que também existiam na literatura. Sendo assim, Adichie começou a escrever sobre as coisas que eram do seu cotidiano, estabelecendo uma desconstrução de uma única narrativa histórica, que outrora havia privilegiado, sobremaneira, os homens europeus. Nesse sentido, as considerações finais aqui partem das reflexões acima embaladas por Chimamanda Adichie. Uma única narrativa histórica representa, ao nosso ver, tudo o que é contrário à ideia do “devir quilombola”, pois continuam estabelecendo ações colonialistas e, ao mesmo tempo, tentam sucumbir todos os esforços contra colonizadores destes sujeitos. Durante o trabalho, abordamos sobre alguns momentos que antecederam e sucederam o ano de 1888,276 cujo foram marcados por profundas disputas políticas envolvendo senhores de 275 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 2009. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ> Acessado em 4 de junho de 2020. 276 O ano de 1888 foi marcado pela abolição da escravatura no Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ 115 escravos, abolicionistas, escravos e sujeitos livres no Brasil escravista. Nos anos posteriores ao pós-emancipação, a situação conflituosa continuou, contudo, o novo cenário político republicano sinalizou, para a grande massa de ex-escravos e seus descendentes, outras arenas de lutas, essas a serem construídas e imaginadas no campo do acesso aos direitos sociais. Nesse sentido, a luta ocorreu na, imperiosa e urgente, construção da cidadania de uma parcela da sociedade brasileira herdeira da escravidão, a exemplo das comunidades negras que surgiram como unidades legitimadoras de um lócus da luta antiescravista. Nesse contexto, a posse pela terra foi, portanto, o caminho a seguir durante o período republicano. Partindo dessa compreensão, no primeiro capítulo procuramos apresentar como o cenário brasileiro, relativo ao contexto da invisibilidade dos negros na primeira Constituição Política do Império, partiu de uma composição social elitista que detinha o poder em todo o país. Na década de 1820, por exemplo, estes grupos moderaram diretamente a grande parcela do poder político nacional, que controlavam a produção agroexportadora e constituíam um extenso conjunto de políticos e burocratas que lotavam os cargos institucionais do Executivo, Legislativo e Judiciário no Império. A composição social citada anteriormente, exerceu influência política durante as décadas seguintes do século XIX. Como vimos, essa configuração só passou por uma mudança drástica a partir da década de 1980, quando algumas organizações, a exemplo doMovimento Quilombola, estabeleceram relações com à Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e promoveram assim uma maior relação entre o Estado e as comunidades quilombolas brasileiras. No Piauí, mesmo não havendo um corpo jurídico que atuasse na causa quilombola, as comunidades quilombolas passaram a receber assistência do INCRA. No caso do quilombo Lagoas, os lagoanos estavam cientes em relação aos seus direitos étnicos e territoriais, cujo, a partir da organização da comunidade, recorreram a fundamentação legal que respaldaram a territorialização da comunidade, bem como para asseguraram as ações que foram constituídas durante esse processo. Nessa perspectiva, partindo das discussões do quilombola Nêgo Bispo, que se estendem como práticas que estão amplamente relacionadas com as comunidades quilombolas piauienses. Ao considerar os quilombolas enquanto sujeitos que são capazes de ressemantizar e elaborar conceitos, de se apropriarem dos seus direitos e de estabelecerem relações com outros grupos não quilombolas, o ativista piauiense nos deu base para traçar uma discussão em que evidenciamos o protagonismo dos lagoanos. Foi a partir dessa perspectiva, que observamos como os lagoanos escreveram sua própria história e, assim, se contrapuseram aos perigos de uma única narrativa. 116 Este fato se expressa ainda mais claramente no segundo capítulo, quando foi abordado sobre a importância dos saberes quilombolas no que diz respeito à territorialização da comunidade. Durante muitos anos, percebemos que a historiografia brasileira sobre os quilombos narrou diversas experiências em que destacavam a memória, a identidade, os conflitos e a importância da terra para esses povos. No entanto, ignoraram, mesmo que de forma não intencional, a historicidade dos territórios quilombolas, isto é, postergaram os processos históricos relacionados a territorialização das comunidades. Nesse sentido, apresentamos como os lagoanos conheceram e produziram o seu território ao partirem das memórias do cativeiro, das práticas culturais, do parentesco e das sociabilidades que existiam na comunidade. Além desses aspectos, demonstramos que a materialização da comunidade, através do relatório técnico, foi fundamental para a própria comunidade ter o controle sobre algumas informações, a exemplo da quantidade de famílias que existem na comunidade, a renda salarial desses grupos, a escolaridade dos lagoanos; fazendo com que eles possam reivindicar alguns direitos com base nessas informações. Foi justamente sobre este último aspecto, que desenvolvemos o terceiro capítulo. A respeito, observamos como alguns mecanismos utilizados pelo Estado tentaram impedir, de diferentes formas, a inviabilização de conquistas das comunidades quilombolas. A contemporânea crise socioambiental, ocorrida a partir da apropriação dos recursos naturais, em diferentes territórios, ao longo dos anos geraram a exclusão e a expropriação de diversos grupos em relação aos seus espaços habitacionais. Na visão de Nêgo Bispo, por exemplo, a não atribuição do título de quilombo às comunidades brasileiras abriu margem para a exploração e a destruição de alguns territórios, o que, consequentemente, provocou conflitos que revelam tanto o racismo ambiental como o institucional ligados ao processo de reconhecimento da comunidade quilombola Lagoas. As situações de injustiça ambiental, ao nosso ver, estiveram amplamente ligadas às noções de racismo ambiental, pois os relatos contidos no Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil demonstram como os conflitos ameaçam a existência da comunidade. No mais, acredito que a comunidade quilombola Lagoas possui outros pontos, além da questão territorial, a serem explorados, a exemplo da memória e a construção da identidade quilombola da comunidade. A análise singular proposta neste trabalho, ocorreu para além da delimitação da área de concentração do PPGH da UFRN – História e Espaços –, mas esteve relacionada, em grande medida, à lógica que circula em algumas comunidades quilombolas no Piauí, de que as universidades brasileiras são potencialmente colonizadoras. Desse modo, acredito que, a partir de alguns diálogos mais estreitos entre a comunidade acadêmica e os 117 quilombolas, novos temas possam ser abordados, partindo, é claro, de questões epistemológicas da comunidade quilombola Lagoas. 118 REFERÊNCIAS ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 2009. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ> Acessado em 4 de junho de 2020. ADORNO, Sergio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de Preto. Terras de Santo. Terra de Índio. Em: Habette, J. /Castro, E. M. 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