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Figuraslugarnome-BezerraFilho-2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES 
DEPARTAMENTO DE LETRAS 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM 
 
ARNALDO RODRIGUES BEZERRA FILHO 
 
 
 
 
 
FIGURAS DO LUGAR, DO NOME E DA LETRA 
NA ESCRITA DE ANTONIN ARTAUD 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL/RN 
2018
 
ARNALDO RODRIGUES BEZERRA FILHO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FIGURAS DO LUGAR, DO NOME E DA LETRA 
NA ESCRITA DE ANTONIN ARTAUD 
 
 
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação 
em Estudos da Linguagem – PPGEL, da 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 
para obtenção do título de Doutor. 
 
Orientador: Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa 
 
 
 
 
NATAL/RN 
2018 
 
 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 
Sistema de Bibliotecas - SISBI 
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, 
Letras e Artes - CCHLA 
 
 
Bezerra Filho, Arnaldo Rodrigues. 
 Figuras do lugar, do nome e da letra na escrita de Antonin Artaud / 
Arnaldo Rodrigues Bezerra Filho. - Natal, 2018. 
 141f.: il. 
 
 Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 
Centro de Ciências humanas, Letras e Artes, Pós-graduação em Estudos da 
Linguagem. 
 Orientador: Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa. 
 
 
 1. Artaud - Tese. 2. Língua - Escrita bruta - Tese. 3. Análise do 
Discurso - Psicanálise. I. Barbosa, Márcio Venício. II. Título. 
 
RN/UF/BS-CCHLA CDU 81'42 
 
 
 
 
 
Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 
 
 
 
BANCA EXAMINADORA: 
 
Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa – Orientador e Presidente da Banca 
Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas – Externo ao Programa 
Prof. Dr. Djason Barbosa da Cunha – Externo à Instituição 
Prof. Dr. Fagner Torres de França – Externo ao Programa 
Prof. Dr. Luis Francisco Gonçalves de Andrade – Externo à Instituição 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ao amado pai, 
Arnaldo Rodrigues Bezerra 
(In memoriam), 
com quem aprendi o valor da amizade, 
simplicidade e liberdade no encanto da 
vida. 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Ao Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa, meu orientador, pelo acolhimento e pela sensível e 
valiosa escuta. Suas pontuações e ensinamentos me animaram no trânsito livre pelo intertexto. 
Aos meus amados filhos, Cristiano, Cíntia, Arnaldo Neto e Thiago. Vosso carinho e confiança 
me fortalecem e me entusiasmam na lide face aos desafios da vida. 
À Diana, minha primeira netinha, que está vindo ejá irradia luz em nossas vidas. 
À minha querida mãe, Maria Nazaré,exemplo de educadora infantil, pelo zelo, pelos ternos 
cuidados e motivações constantes. 
À minha esposa Karenina, pelo amor e dedicação ao longo dessa instigante jornada. 
Às minhas irmãs e amigo(a)s, pelo incentivo e afetos, que muito me estimularamnessa 
pesquisa. 
Aos Mestres e pacientes que sempre me ensinam e encorajam a procurar ver e escutar o que 
resiste à claridade e insiste no silêncio. 
 
 
 
 
RESUMO 
 
Sabemos o quanto é conhecida a posição crítica e insurgente do poeta e dramaturgo Antonin 
Artaud (1896 – 1948) em face da linguagem canônica, sobretudo desde o período quando foi 
membro do movimento artístico surrealista, entre 1924 e 1926, o qual buscavase libertar das 
amarras do racionalismo ocidental. Seus integrantes em suas criações bordejavam a loucura 
atraídos pelo fascínio do imaginário. Esta pesquisa procurou visualizar a escrita de Artaud 
sem lhe dar um estatuto de mais um estudo de caso clínico, mas o de um sujeito que apesar do 
sofrimento da psicose, expressou-se pela arte, especialmente literária e teatral, também como 
meio de preservar sua existência, de sobrexistir. Portanto, observamos a escrita feita pelo ente 
e não apenas pelo doente. Para isso, cotejamos a escrita tradicional e a escrita psicótica 
(bruta), rastreando-se, entre elas, elementos comuns e diferenciais sem a adoção da teoria a 
priori. Desse modo, à luz de uma análise crítica intertextual, tivemos como balizas teóricas: 
do lado da psicanálise, os trabalhos de Sigmund Freud e Jacques Lacan; da Análise do 
Discurso (AD), sobretudo o enfoque de Dominique Maingueneau; entre estudiosos de Artaud, 
os filósofos Gilles Deleuze e Jacques Derrida, o psicanalista Félix Guattari, a filósofa e 
psicanalista Julia Kristeva, o literato e filósofo Maurice Blanchot, além de vários outros 
estudos. Delimitamos o corpus com importantes escritos de Artaud, e a correspondência com 
seu médico Gaston Ferdière e outros,sobretudo durante a internação asilar em Rodez, na 
França, entre 1943 e 1946. Verificamos que Artaud transforma a sintaxe e a semântica 
convencionais da língua materna com as glossolalias e um discurso que chega ao limiar do 
sentido, e mesmo ao nonsense. Alçou sua escrita singular ao multiverso da arte performática. 
Inscreveu-se no meio literário e teatral com o estilo de uma poética sonora cuja eficácia o fez 
adentrar o mundo simbólico, e, por outro lado, constatamos a importância da pesquisa 
multidisciplinar - sobretudo entre os saberes acima citados - referente à escrita de Artaud 
situada na interface da psicose e da arte. 
Palavras-chave:Escrita bruta. Língua. Análise do discurso. Psicanálise. Artaud. 
 
 
 
 
 
 
 
RÉSUMÉ 
 
On sait combien la position critique et insurgée du poète et dramaturge Antonin Artaud (1896-1948) 
est connue face au langage canonique, surtout depuis l'époque où il était membre du mouvement 
artistique surréaliste entre 1924 et 1926, qui cherchait à se libérer de liens du rationalisme occidental. 
Ses membres dans leurs créations ont frôlé la folie attirée par la fascination de l'imaginaire. Nous 
avons cherché à voir l'écriture d'Artaud sans l’a situécomme un modèle d'une étude de cas clinique, 
mais venant d’un sujet qui, malgré la souffrance de la psychose, exprimée à travers l'art, en particulier 
littéraire et théâtral, aussi comme un moyen de préserver leur existence, de surexister. Par conséquent, 
nous observons l'écriture faite par l'être et pas seulement par le patient. Pour cela, nous comparons 
l'écriture traditionnelle et l'écriture psychotique (brute), traçant, parmi eux, des éléments communs et 
différentiels sans l'adoption d'une théorie a priori. Ainsi, à la lumière d'une analyse critique 
intertextuelle, nous avions comme référentiel théorique: du côté de la psychanalyse, les travaux de 
Sigmund Freud et de Jacques Lacan; d'analyse du discours (AD), en particulier l'approche de 
Dominique Maingueneau; parmi les chercheurs d'Artaud, les philosophes Gilles Deleuze et Jacques 
Derrida, le psychanalyste Félix Guattari, le philosophe et psychanalyste Julia Kristeva, l'écrivain et 
philosophe Maurice Blanchot, en plus de plusieurs autres études. Nous avons délimitécomme le 
corpus avec des écrits importants d'Artaud, et la correspondance avec votre médecin Gaston Ferdière 
et d'autres, en particulier pendant l'hospitalisation à Rodez, en France, entre 1943 et 1946. Nous avons 
constaté que Artaud transforme la syntaxe et la sémantique de la languematernelleavec des 
glossolalies et un discours qui atteint le seuil de la signification, et même un nonsense. Il a élevé son 
écriture singulière au multivers de l'art performatif. Il entra dans le milieu littéraire et théâtral avec 
le style d'une poétique sonore dont l'efficacité le fit pénétrer dans le monde symbolique et, 
d'autre part, on voit l'importance de la recherche pluridisciplinaire - notamment parmi les 
savoirs mentionné ci-dessus - en référence à l'écriture d'Artaud. dans l'interface de la psychose 
et de l'art. 
Mots-clés: Écriture brute. Langue. Analyse du discours. Psychanalyse. Artaud. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACTWe know how much the critical and insurgent position of the poet and dramaturge Antonin Artaud 
(1896-1948) is known in the face of canonical language, especially since the period when he was a 
member of the surrealist artistic movement between 1924 and 1926, which sought to free himself from 
ties of occidental rationalism.Its members in their creations bordered on madness attracted by the 
fascination of the imaginary. This research sought to visualize the writing of Artaud without giving it a 
status of another clinical case study, but that of a subject who despite the suffering of psychosis, 
expressed himself by art, especially literary and theatrical, also as a means of preserving his existence, 
of overexing. Therefore, we observe the writing made by the being and not only by the patient. For 
this, we compare traditional writing and psychotic writing (outsider), tracing between them common 
and differential elements without the adoption of a priori theory. Thus, with the light of an intertextual 
critical analysis, we had as theoretical goals: on the side of psychoanalysis, the works of Sigmund 
Freud and Jacques Lacan; of Discourse Analysis (AD), especially Dominique 
Maingueneau'sapproach; among the scholars of Artaud, the philosophers Gilles Deleuze and Jacques 
Derrida, the psychoanalyst Felix Guattari, the philosopher and psychoanalyst Julia Kristeva, the 
literary and philosopher Maurice Blanchot, and several other studies. We delimit the corpus with 
important writings of Artaud and correspondence with his doctor Gaston Ferdière and others, 
especially during the asylum in Rodez, in France, between 1943 and 1946.We find that Artaud 
transforms the conventional syntax and semantics of the mother tongue with glossolalia and a 
discourse that reaches the threshold of meaning, and even nonsense.He raised his singular writing to 
the multiverse of the performance art. He entered the literary and theatrical milieu with the style 
of a sound poetics whose effectiveness made him enter the symbolic world, and, on the other 
hand, we see the importance of multidisciplinary research - especially among the 
aforementioned knowledges - referring to Artaud's writing in the interface of psychosis and 
art. 
Keywords:Outsider writing. Language. Speech analysis. Psychoanalysis. Artaud 
 
 
SUMÁRIO 
 
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 08 
2 FIGURAS DO LUGAR para uma escrita bruta.................................................... 22 
3 FIGURAS DO NOMEpara um sujeito em processo.............................................. 59 
4 CRÍTICA E CLÍNICA DO ESCRITO: para além do sintoma............................. 93 
5 PARA (NÃO) CONCLUIRquanto a uma estética de sobrexistência.................... 122 
REFERÊNCIAS............................................................................................................ 134 
 
 
8 
 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
 “Não quero que ninguém ignore meus gritos 
de dor, e quero que eles sejam ouvidos” 
(Antonin Artaud). 
 
Antonin Artaud (1896-1948) foi um insurgente participante do movimento surrealista 
entre 1924 e 1926.Encontra, nesse espaço, a chance de dar vazão à contestação ao padrão 
artístico vigente: literário, teatral, cinematográfico, e também pictórico.Não apenas como uma 
ação de rebeldia sociopolítica mas também como protagonista de um projeto de vida que se 
confundirá com a essência e o valor de sua própria existência. De fato, viveu a poesia em ato! 
 Inconformou-se com o cenário tradicional da arte em geral onde o ato e a fala fazem 
sentido per se; seguiu um desejo que não se continha na satisfação do visível, do que estava à 
mão, porém do que tinha a substância de verdades que lhe eram caras apesar de angustiá-lo; 
iludiu-se ao achar que,numa comunidade vista como revolucionária,teria a grande chance de 
executar um extraordinário projeto artístico, apesar de esse lugar haver sido pautado pela 
linguagem do inconsciente descoberta pela psicanálise. 
Vejamos, então, o que diz André Breton, poeta e psiquiatra francês, no “Manifesto do 
Surrealismo” lançado em Paris em 1924,o qual foi o marco inicial do movimento: 
 
Vivemos, ainda, sob o reinado da Lógica(...). O racionalismo absoluto, ainda em 
moda, não nos permite considerar senão fatos estreitamente relacionados com a 
nossa experiência, [esta] passou a ter seus limites estabelecidos, [está presa] (...) e se 
funda na utilidade imediata, e é guardada pelo senso comum. [A pretexto] da 
civilização e do progresso, chegou-se a banir do espírito tudo que com razão ou sem 
ela, pode ser taxado de superstição ou de quimera; a proscrever todo modo de busca 
da verdade que não se conforme ao uso geral (BRETON, 1924/2001, p. 23). 
 
 Notamos, portanto, no Manifesto, uma veemente crítica ao domínio da razão absoluta 
no modo de vida social, em detrimento da fertilidade imaginativa do sujeito; a sociedade, por 
meio dos educadores, se encarregaria de reprimir desde a infância o potencial criativo a favor 
de valores utilitaristas. A imaginação alcança um estatuto privilegiado na criação surrealista; 
uma experiência apaixonante e livre que não se deixaria frear pelo medo do imaginário social 
da loucura. 
 É evidente o fascínio que exerceu a psicanálise na construção do surrealismo; a 
revelação freudiana do inconsciente com uma linguagem que mostrava o recôndito e 
9 
 
 
verdadeiro desejo do sujeito, o modus operandi do psicanalista que trazia à tona, por meio da 
associação livre, aquilo que surpreendia os hábitos e costumes sociais tão contidos pelos 
preconceitos da novidade. Na prática psicanalítica,o paciente se emancipa do padrão 
normativo social e dá vazão ao discurso sem o crivo da censura moral. Essa forma de livre 
expressão encontrou, no surrealismo, a chance de se realizar em ato social, de fazer emergir 
na arte a privacidade oculta do ser falante. 
O que importava mesmo era seguir o veio da imaginação tal como nos aparece no 
sonho, principal caminho para o inconsciente como nos ensinou Freud.Inspirado por ele mas 
por outra via, a da poíesis, o sonho pelo seu encanto quase que hipnotizou Breton (1924/2001, 
p. 25; 28) que chegou a priorizar o sono mais do que a vigília na produção do “(...) 
maravilhoso [que] é sempre belo, qualquer tipo de maravilhoso é belo, somente o maravilhoso 
é belo”. Compartilha com Freud a ideia de que, no sonho, o homem se satisfaz plenamente, o 
que é impossível de ocorrer na realidade repressora; entretanto crê na “resolução” desses dois 
estados, real e onírico, questionando seus limites, com uma “(...) espécie de realidade 
absoluta, de sobre-realidade, se é lícito chamá-la assim”. 
A atração de Artaud pelo imaginário foi registrada na pesquisa de França (2018)sobre 
a relação de suas criações com o cinema. Destaca a influência da psicanálise que põe à mostra 
o cenário onírico cuja plasticidade imagética dizem das verdades da alma. Além disso, refere-
se à realidade colocando no centro o corpo que, segundo a concepção artaudiana, sempre 
precisa ser refeito e reorganizado diante dos imperiosos sistemas racionais dominantes na 
sociedade. 
Ao realizar, então, um movimento artístico com a participação de vários membros que 
adotavam uma prática, inclusive de vida, pode-se dizer, segundo suas “fantasias”, que 
seguiam o fio de seus desejos e da criatividade; pareciam que monologavam juntos,e dentre os 
quais, Artaud.Entretanto, foi a Philippe Soupault que Breton comunicou seus primeiros 
escritos [nesse] “(...) novo modo de expressão pura”, designado por eles de 
“SURREALISMO” (BRETON, 1924/2001, p. 32; 37;39). 
Este se caracterizava pelo: 
 
(...) Automatismo psíquico puro mediante o qual se propõe exprimir, seja 
verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do 
pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pelarazão, 
alheio a qualquer preocupação estética ou moral (BRETON, 1924-2001, p. 40). 
 
10 
 
 
Com essa determinação, punham em questão o sujeito do discurso racional; 
procuravam mais uma linguagem própria e autônoma, desligada do seu escopo tradicional de 
representação da realidade, da universalidade linguística. A palavra deveria dizer das verdades 
dos sujeitosalém ou aquém do que eles transpareciam socialmente; a significação do discurso 
não importava na escrita automática. 
A linguagem tornar-se-ia uma realidade substancial e a palavra uma espécie de baliza 
com força e valor de atingir um grau absoluto de criatividade pelo sujeito imerso num certo 
ocultismo imaginário, mesmo profundamente destoante do que era dado pelas circunstâncias 
literárias canônicas. 
É enfática e significativa a afirmação de Blanchot (2011, p. 99; 100; 101)quanto à 
escrita surrealista: 
As palavras são livres e talvez possam nos libertar: basta que as sigamos, que nos 
abandonemos a elas, colocar à sua disposição todos os recursos da invenção e da 
memória; (...) somos dotados, até certo grau, da palavra e que, por ela, algo de 
grande e obscuro tende a se expressar imperiosamente através de nós (...). Daí a 
prioridade do imaginário, o apelo ao maravilhoso, a invocação ao surreal. A poesia e 
a vida estão ‘alhures’, (...) mas ‘alhures’ não designa uma região espiritual ou 
temporal: alhures é lugar nenhum; não é o além; significa que a existência 
nunca está ali onde está (grifos nossos). 
 
Vemos, nessa citação, além do sentido de liberdade da palavra, a estreita ligação entre 
a poesia e a vida, e o lugar onde se encontram que não se designa como espaço físico 
temporal – é um “lugar nenhum” e está “alhures”-; pode-se concebê-lo como um lugar de 
produção surrealista figurado como se fossem “(...) receptáculos surdos de tantos ecos, 
modestos aparelhos registradores que não se deixam hipnotizar pelos desenhos que 
produzem (...)” (BRETON, 1924/2001, p. 42; 43). Em consequência, o que se produziria 
nesse lugar não deveria se fixar, escaparia à nomeação, todavia seriam como figuras 
predispostas a obtê-la. Seria da natureza de uma produção desejante mutante na qual o autor 
aparece ao mesmo tempo que esvaece. A esse respeito, Artaud (2006, p. 06) conheceu uma 
cultura mexicana e lá observou que os nativos não apenas contemplam as formas, mas 
também com elas se imiscuem através de uma “identificação mágica”. 
 O liame diferencial que faz a ponte entre as criações surrealistas e psicóticas, no que 
diz respeito à forma, é, muitas vezes, tênue, basta ver uma tela de Salvador Dali e outra 
pintada por um paciente psicótico daqui mesmo, no nosso meio sociocultural, sem nenhuma 
projeção social, sem nenhum reconhecimento no âmbito artístico. Entretanto, muitos 
conseguem chegar aí; entre nós queremos ressaltar as artes pictóricas, plásticas e linguageiras, 
dos pacientes psicóticosassistidos pela psiquiatra e psicanalista Nise da Silveira (1905-
11 
 
 
1999),criadora do Museu de Imagens do Inconsciente1. Sua postura ética diante de um sujeito 
psicótico lhe deu a oportunidade de ser visto e escutado numa condição de ente e não apenas 
de doente. 
Nesse contexto da arte bruta2,destacamos a produção do renomado artista, Arthur 
Bispo do Rosário, diagnosticado como esquizofrênico paranoide e internado na Colônia 
[psiquiátrica] Juliano Moreira por 50 anos. Ele criou com pinturas, esculturas, colagens, 
bordados, usando uma diversidade de material; trabalhos que consistiram,além da arte 
figurativa,uma linguagem própria, na escritura de um texto que revelava o enfrentamento, não 
apenas da psicose da qual sofria mas também da vida em geral, como sujeito e artista. 
Dantas (2009, p. 126-128), reportando-se a Bispo afirma que “se do ponto de vista do 
discurso médico e/ou psicanalítico a ‘subversão’ da linguagem pode ser um sintoma de 
morbidez, nada impede que, do ponto de vista estético, ela seja considerada original”. 
Inclusive observa a analogia dos processos criativos do poeta e daquele tido como louco; 
afirma que “ a noção de ‘escrito bruto’ não sugere espontaneidade, falta de elaboração ou de 
sentido mas (...) uma nova atitude frente ao código, nova maneira de tratar a língua, [uma] 
nova escritura, capaz de subverter os aspectos úteis e bem fixados pela linguagem”. 
 Esta põe em questão a relação do eu com a realidade, dá ênfase e leva seriamente em 
conta a diferença entre o eu falante que reflete o olhar do outro no social e o recôndito eu, 
mais verdadeiro, cujo discurso está situado no registro inconsciente do sujeito - mais próximo 
do discurso surrealista. A autora citada logo acima sublinha a marca da escrita bruta como 
sendo “uma nova escritura”, portanto, como se instaurasse um novo código linguístico. Visto 
desse modo, o discurso psicótico que é uma forma de escrita bruta, se apartaria do contexto 
puramente clínico e conformaria um outro balizado por uma estética ímpar calcada mais no 
desejo inconsciente do sujeito, e até mais Realista – com maíscula para diferenciar da 
realidade comum; esse Real seria um registro do que se apresenta exterior à linguagem. 
 “O [R]eal, é para além do sonho que temos que procurá-lo – no que o sonho revestiu, 
envelopou, nos escondeu, por trás da falta de representação, da qual lá só existe um lugar-
tenente [representante]”, disse Lacan (1964-1985, p. 61), denotando a nosso ver uma 
proximidade da inscrição onírica imaginária, inconsciente, com o Real que não se inscreve. 
E assim parece ter feito Artaud em sua escritura; vai da palavra significada e delirante 
à sonoridade da letra, versando uma poesia que não se pretendia ser espelho de nenhuma 
 
1 Ver: FRAYSE-PEREIRA, J. A. Nise da Silveira: imagens do inconsciente entre psicologia, arte e política. 
Estudos Avançados, SP, ISSN 1806-9592, (17): 49, p. 1-9, 2003. 
2 Termo cunhado pelo pintor francês Jean Dubuffet para nomear a arte criada por pacientes psiquiátricos e outros 
desprovidos de formação acadêmica. Uma arte atípica frente aos padrões estilísticos convencionais. 
12 
 
 
realidade.Em suma, a falta de sentido, o irrepresentável, o inefável, enfim, são termos que 
procuram fazer aparecer e figurar o Real; que é, diga-se de passagem, como veremos depois 
nesta pesquisa, uma das facetas da letra, das letras, das lettres3 escritas por Artaud surRealista. 
Ele nos provocou com o modo peculiar de sua criação artística, especialmente quando 
a realizou ao mesmo tempoque sofria de uma psicose. Um cenário existencial que terminou 
sendo o motivo maior do presente estudo. Inspirou-nos interrogações sobre a especificidade 
de suas produções artísticas. Aqui sobrelevo o fato de ele ter sido diagnosticado como 
psicótico pela psiquiatria e continuar criando até o fim de uma vida; resistiu o quanto pode à 
paralisia de um aprisionado nas amarras da loucura, submetido a repressões e eletrochoques. 
Assim, sem a trégua da rejeição social e institucional foi internado por longos nove 
anos em vários hospícios, inclusive sofrendo a miséria asilar durante a França ocupada pelo 
horror nazista, contudo manteve o pensar poético vivo, uma escrita que o ajudou a sobrexistir, 
a chegar a um ponto inatingível de sua existência sob o preço de uma imensa solidão! 
O desafio para compreender, visualizar, ou simplesmente pensar Artaud, permanece. 
Desde sempre e depois cremos que foram, são e serão incontáveis os estudos, as pesquisas, e 
mesmo as teorias que se propuseram e se propõem a compreendê-lo, interpretá-lo em sintonia 
com os saberes canônicos. Não é bem o que pretendemos fazer com o presente trabalho, por 
isso, mais do que explicar o perfil de um artista, literato e dramaturgo, entrelaçado no seu 
desejo com a estrutura psicótica, buscamos figurá-lo em questões pertinentes, a nosso ver, ao 
escopo de sua produção desejante. E, nesse trabalho, observaremoso que resultará da leitura 
intertextual dos discursos teórico-literário, filosófico e psicanalítico, cujas referências autorais 
que nortearão nosso périplo, citaremos mais adiante. 
Interessa-nos, sobremaneira, pôr, em primeiro plano da nossa pesquisa, o sujeito-
artista, cuja criação é também composta pelos sintomas psicóticos, tais como o delírio e 
neologismos (sob a forma de glossolalias).Sondaremos a eficácia da escrita na preservação do 
sujeito criativodiante da possível derrocada na loucura estéril, o que implica indagar sobre a 
função da escrita na (re)inscrição social do sujeito psicótico. 
 
A seguir, dividimos nossa pesquisa em partes começando com as Figuras4do 
Lugarpara uma escrita bruta5, que intitula o Capítulo 2, não sem antes assinalar ao modo 
 
3Cartas em francês, para destacar a homofonia entre letras e lettres. 
4 Usamos esse termo no sentido da significância, e sobretudo no que é dado por BARTHES (2003): “As figuras 
se destacam segundo possamos reconhecer, no discurso que está passando, alguma coisa que foi lida, ouvida, 
experimentada” (p. XVIII); com Barthes, entendemos então que a figura é como um signo, uma imagem ou um 
conto. Auerbach (1997, p. 9; 11; 79) diz que “(...) a interpretação figural (...) está fundada numa alegoria, mas 
13 
 
 
de epígrafe o que disse Breton (1924-2014, p. 64), no final do Manifesto: “(...) Viver e deixar 
de viver é que são soluções imaginárias, a existência está em outra[o]parte[lugar]”. 
No percurso de Artaud, observamos o quanto foi difícil para ele encontrar um espaço 
onde pudesse inscrever sua arte. É evidente que a posição duramente crítica que adotou em 
frente dos padrões estabelecidos, artísticos e sociais em geral, deixou-o muito solitário apesar 
de ter encontrado,por dois anos,guarida no surrealismo. A exclusão desse movimento e, 
depois, os sucessivos internamentos em hospitais psiquiátricos intensificaram o sentimento de 
isolamento de seus pares, da vida em comunidade. Entretanto isso não foi suficiente para 
impedir sua luta pelo reconhecimento de suas criações por mais estranhas que pudessem 
parecer, sobretudo quando vistas com preconceito; este o acometia duplamente; de um lado, 
por sua contraposição diante do que se lhe apresentava como arte tradicional; de outro, pela 
condição de paciente mental. 
Ele incorporava esses traços em seu perfil identitário, foi um resistente à submissão, à 
inércia; quando esteve internado no asilo de Rodez, região de Aveyron na França, entre 1943 
e 1946,não cessou de escrever, principalmente cartas. Dirigiu um bom número - em torno de 
51-ao seu médico Gaston Ferdière, e isso chamou nossa atenção, pois,certamente,tinha chance 
de falar com elemas,curiosamente,optava, muitas vezes, pela escrita. À parte o hábito de se 
escrever cartas à época, esse aspecto se torna relevante porque cremos que, pela escrita, o 
poeta podia se mostrar com mais liberdade interior, visto que, provavelmente, o fazia sem a 
incidência do olhar do outro sobre si. Este outro estaria provavelmente num espaço 
imaginário, podendo, consequentemente, ser ele mesmo, outros personagens e até ninguém, 
como se passa, a título de ilustração, na situação do diálogo psicanalítico; poderia ser um 
Outro, lugar da linguagem. 
Imaginemos Artaud escrevendo essas cartas num espaço inóspito de um hospício 
durante o período da França ocupada pelo nazismo, e consideremos que, ao escrever, ele se 
deslocava para outra zona, a do discurso, no qual transitava livremente, testemunhando a 
realidade mas ao mesmo tempo sentindo, vivenciando e inventando outras de cenários 
familiares e estranhos, com letras, palavras e frases que,em geral,só cabiam no seu multiverso. 
 
difere da maioria das formas conhecidas de alegorização em virtude do caráter histórico dos seus termos”. Para 
ele, esse método estabelece uma relação entre acontecimentos históricos, ambos significativos em si mesmos e 
complementares um do outro. E, ao modo de conclusão, afirma que “(...) uma palavra pode evoluir dentro de 
uma situação histórica e dar nascimento a estruturas que serão efetivas durante muitos séculos”. 
5 “Por analogia à noção de arte bruta, inventada por Jean Dubuffet, [Michel Thévoz, em seu trabalho Le langage 
de la rupture de 1978], propõe a de ‘escritos brutos’ para designar a produção de textos que escapam à tradição 
literária” (DANTAS, 2009, p. 124). São escritos que subvertem a significação e função convencionais da 
linguagem; anulam o sentido, alteram a sintaxe, rompem com a semântica. Incluímos o discurso psicótico nessa 
forma escritural, principalmente quando nele observamos o delírio, os neologismos e as glossolalias. 
14 
 
 
Ele escrevia para um alocutário bem identificado civilmente, um médico por quem 
sentia amor e ódio e que, quando nele via evidências de delírios, lhe prescreviaeletrochoques. 
Apesar do endereço certo, suas cartas pareciam visar outro horizonte, um outro lugar. O 
médico seria apenas um intermediário, umaentre muitas âncoras necessárias à consecução do 
desejo de se fazer ouvir, ou, pelo menos, de fazer ressoar um discurso feito à revelia de 
quaisquer bússolas. 
Havia de encontrar um lugar diferente do espaço físico onde tinham-no posto, um 
lugar que não impedisse a estranha configuração de sua escrita. Esse lugar parecia ser 
ficcional mas ele o experimentava como real; nele, aparecia como ser mutante, aberto ao 
mundo sem nada dele esperar e reter, gerando mutações no pensar e agir do outro, de outrem, 
de ninguém; como se fosse um eterno passageiro que não deixa sua marca por onde passa mas 
que todavia, passa. 
Atuava em algum cenário existencial como 
 
 
(...) quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, 
quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que sua profundidade é ele ser 
vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o 
vestígio da própria imagem – então percebeu o seu mistério. (...) [E] só uma pessoa 
muito delicada [que] pode entrar no quarto vazio onde há um espelho vazio, e com 
tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca (LISPECTOR, 
1978-1992, p. 07-08). 
 
 Além da beleza poética dessa passagem clariceana, tocou-nos uma mensagem que 
referimos à posição subjetiva de Artaud em seu processo criativo. É como se ele fizesse um 
apelo ao outro para esquecer de si ao escutá-lo em suas produções desejantes, e, ao mesmo 
tempo, vendo-o através dele, sem nomeá-lo em algum padrão identitário subjetivo e social; 
vendo-o como se fosse um personagem virtual, ocupando um lugar-fonte de permanente 
criação. 
 
Investigaremos no Capítulo 3, com as Figuras do Nome para um sujeitoem 
processo6,essa fronteira entre a autoria da escrita poética, e a que se forma sob a intromissão 
da psicose por onde transita Artaud e suas mutações identitárias imaginárias. 
Artaud, durante um período de sua escrita, assinou as cartas usando o sobrenome de 
sua mãe ainda solteira, Nalpas. A partir de 17 de setembro de 1943, subscreve a carta 
endereçada a Ferdière com o sobrenome paterno, Artaud. Isso nos conduz a fazer uma análise 
mais apurada do lugar e da importância que ocupa o nome na constituição de sua identidade, 
não especificamente no sentido da resultante de um processo de cura clínica, mas também de 
 
6 Expressão de KRISTEVA (1977, p. 55), que, ao nosso ver, situa bem Artaud em seu modo singular de 
existência. 
15 
 
 
um reposicionamento subjetivo referente às suas produções e a relação com o outro, com a 
realidade externa. 
Artaud se tornou um sujeito estruturado segundo a função paterna, ou seja, a 
incidência do significanteNome-do-Pai como teoriza a psicanálise lacaniana, ou continuou 
um sujeito em processo, criando apesar do e com o sofrimento da psicose? Essa é uma 
pergunta que nos conduz a examinar de modo acurado a nomeação do sujeito como autor 
quando se aparta da realidade social comum. 
É durante sua internação no asilo de Rodez que ele recupera seu nome, acolhe o 
Nome-do-Pai que, segundo a concepção de Lacan (1966, p. 575), seria o significante 
“foracluído”, isto é, radicalmente rejeitado e que ensejaria a constituição da estrutura psicótica 
no sujeito e as consequentes singulares formações linguageiras - a propósito, há de se notar o 
que disse Artaud em relação ao pai: “vivi até os 27 anos, com o ódio ao meu pai, meu pai 
particular. Até o dia em que assisti sua morte” (BEDERE, 2007, p. 22). 
 A importância e função da escrita, nesse processo de reencontro com o nome próprio, 
foi tema de uma pesquisa feita por Bedere (2007, p. 9 – 34). Traz-nos o percurso de Artaud 
durante o período dramático em Rodez e depois dele, no qual atravessa seu confronto com a 
língua materna – de “(...) origens Legendárias, Místicas e sagradas (...)” (ARTAUD, 1977, p. 
60) – aponto de subvertê-la. A assinatura Nalpas (sobrenome materno) indicaria, segundo a 
psicanálise, algum grave conflito com a figura materna e, anosso ver, em decorrência disso a 
língua materna seria inconscientemente questionada, e de certo modo o levaria a falar em 
outra “língua” de forma psicótica em meio a personagens e situações imaginárias no intuito 
certamente de ter uma chance de ser escutado, lido. Assim, não se deixava morrer 
existencialmente. Apesar de ter dito o contrário a Ferdière na primeira carta quando recupera 
seu nome próprio; delirando, acreditava que tinha sido envenenado e assassinado pelas 
polícias inglesa e francesa e outros; contudo, desacreditado em sua consciência, revela o 
quanto se sentia feliz em se reconhecer um escritor, não mais do que isso (ARTAUD, 1977, p. 
61). 
 
O capítulo 4, denominamos de Crítica e Clínica do Escrito - para além do sintoma, 
apropriando-nos desse modo, com a máxima vênia, dos títulos doslivros de Allouch (2007, p. 
9-20) e Deleuze (1997). 
Com base especialmente no primeiro deles, referimo-nos ao escrito a tudo o que o 
sujeito produz em sua experiência subjetiva e dispõe à leitura do outro; do puro som vocal, 
16 
 
 
passando pela letra (a)significante até a palavra. Para ele, principalmente na situação 
psicanalítica, que abriu uma nova forma de acesso e de interrogar o dizer do outro, inclusive 
do psicótico; para nós, além dessa situação, atentamos nosso olhar para a do campo literário 
circunscrito, principalmente, às missivas artaudianas. 
Nestas, procuramos fazer uma “transleitura”, seguindo Paes (2008, p. 5-6), pela qual 
se procura ler o discurso de Artaud notando o que surge, ou o que se imagina que surge 
através e até além ou aquém do estilo literário tradicional, a criação do multiverso, do 
(a)verso, avesso do que se forma com sentido mas que é sentido. Já não seria apenas o sentido 
que contaria, mas o que estaria além ou aquém dele, com ele. “Afinal, como diz Tin (2011), 
pode-se estender também à correspondência aquilo que Lobato afirmou, em carta a Cesídio 
Ambrogi, sobre os livros: ´As coisas mais belas que um leitor encontra num livro não são o 
que pomos nele – são o que está dentro do leitor e nós apenas sugerimos`”. 
 Interessante reflexão que nos faz pensar e discutir a relação entre epístola e 
transferência psicanalítica, entre leitor e autor.Ambos se implicam com seus desejos; aquele 
se colocando, ainda que sem a consciência disso, num lugar que permitiria a inscrição do 
autor como sujeito pela escrita. 
Decerto, estamos, agora, sublinhando uma relação que seria imaginária, no entanto 
capaz de ultrapassar o Real da escrita e inscrevê-la enquanto simbólica no plano social. O 
alocutário, como dissemos, poderia intermediar essa inscrição da narrativa epistolar no campo 
da linguagem. A esse respeito, vejamos, de passagem, o que disse Artaudao seu médico: 
 
Sempre tenho querido arrastar-lhe a minha esfera poética própria mas tenho visto 
que você não queria crer nela e é o que tem fechado meu coração. Os estados 
místicos do poeta não são delírio Dr. Ferdière. São a base de sua poesia. Tratar-me 
como delirante é negar que desde a idade de quinze anos surge em mim ante as 
maravilhas do mundo do espírito que o ser da vida real jamais pode realizar; e deste 
sofrimento admirável do ser é de onde tenho tirado meus poemas e meus cantos 
(PAVINI, 2011, p. 09). 
 
 Vemos, nessas linhas, que ele recusa o delírio e exalta a poesia de seu pensamento; 
faz uma crítica ao médico que o diagnostica como psicótico e lhe pede para ver o que produz 
como literatura.De fato, seguindo Artaud em sua demanda notamos a importância de abordar 
algumas características de sua escrita sem reduzí-la à uma leitura sintomática. Para isso, 
ressaltam como parâmetros, em primeiro plano, a escrita surrealista e a glossolálica como 
estilos literários (MÈREDIEU, 2011, p. 908). Estas, vistas por esse ângulo, apesar da 
similaridade formal se diferenciam por não serem brutas ou outsiders. 
17 
 
 
Por outro lado, essa questão do delírio,presente no discurso de Artaud,remete ao 
apagamentodo sentido. Segundo Freud, um pensamento como esse significa uma defesa 
psíquica do Eu para lidar com vivências traumáticas ou fantasiosas. A representação destas 
seriam impedidas de passarao patamar da simbolização, portanto, de uma linguagem 
compreensível. Lacan, psicanalista alinhado com a base linguística, considera o delírio como 
uma metáfora, e essa visão nos leva a uma discussão crítica relacionada à noção tradicional 
desta figura de linguagem uma vez que traz, no âmago, um sentido alegórico, por 
conseguinte, simbólico. 
Consideramos que Artaud encontrou na escrita, um modo de corporificar ou de 
materializar sua presença no mundo como existente, e o fez livremente com a narrativa de um 
multiversodespegado do senso e estilos comuns.Esse fato nos dá a chance de analisar sua 
escrita cotejando-a com os conceitos psicanalíticos lacanianos de “sinthome”(sinthoma) e 
“lalangue” (alíngua). 
Parece haver uma importante diferença entre a alíngua e as glossolalias tendo-se como 
base reflexiva a noção de letra. Artaud usa a letra priorizando a sua sonoridadediante da 
ausência de representação. Ora, há de se perguntar se esse construto teria algum proveito 
subjetivo para ele no campo interdiscursivo. 
Quanto ao sinthoma, sabe-se que a visão teórica Lacan muda ao longo de seu percurso 
teórico; ele introduz essa noção e a diferencia do sintoma clínico, como uma função de 
suplência – como faz uma escrita - a um discurso que tende a permanecer estranho a ou fora 
da linguagem coletiva, tal como se passa com o discurso psicótico. 
Até que ponto uma escrita bruta se limita aos contornos de uma “suplência” ou 
configura algo mais; uma estética linguística que por esse motivo seria um fator decisivo para 
o reconhecimento social do autor como sujeito?Pergunta instigante que nos motiva a 
responder como parte do desenvolvimento deste capítulo. 
 Na presente investigação, delimitamos o corpusreferindo-nos ao volume de cartas 
dirigidas ao seu médico Gaston Ferdière, durante sua internação psiquiátrica no asilo de 
Rodez entre 1943 e 1946; são inéditas no Brasil e foram publicadas num livro intitulado 
Nouveaux Écrits de Rodez (ARTAUD, 1977). Ademais, consultamos outros escritos dele, 
sobretudoO Umbigo dos Limbos(1984 [1924]), O Pesa – Nervos (2004 [1925]), O Teatro e 
seu Duplo (2006),As Novas revelações do ser (2004 [1937]), As mães no estábulo (2004 
[1945]), Van Gogh, o Suicidado da Sociedade (2008 [1947]), Para terminar com o 
Julgamento de Deus (1983 [1948]), e outras cartas. 
18 
 
 
 Pretendemos fazer esse estudo, movendo-nos tal como Lima (2010, p. 33 - 34) nos 
indica: 
 
O únicomodo possível de lê-lo, de ouvi-lo, é devindo Artaud, deixando-se 
contagiar, encontrando a zona de vizinhança em que não é possível distinguir-se não 
da pessoa-Artaud, mas do acontecimento desencadeado por sua própria dissolução 
da identidade. Não há eu ou Artaud: apenas minorias íntimas se encontrando em 
outro lugar. 
 
 
Poderíamos dizer que,na manifestação do sujeito Artaud e suas criações literárias e 
dramáticas, evidencia-se o essencial da poesia em meio aos sintomas psicóticos (como o 
delírio e os neologismos); é o acontecimento da expressão criativa que toma a cena diante da 
expressão clínica, o que nos leva a vê-lo e escutá-lo em sua escrita sobretudo no lugar de 
poeta mais do que de um paciente mental em crise. 
Nesse sentido, E. Grossman, que é uma “excelente leitora de Joyce e Artaud”, diz: 
“(...) não é possível ler verdadeiramente os textos [de Artaud], se o sujeito que os lê recusa-se 
a perder-se, a abandonar provisoriamente suas referências subjetivas para entrar no processo 
de dissolução das identidades que eles impõem” (apud LIMA, 2010, p. 33-34). 
 Por conseguinte, deixamos que a escrita artaudiana nos tocasse passando pela 
ansiedade da estranheza à calmaria do discurso compreensível. Ao longo da narrativa, 
sublinhamos o que se expressa pelo sentido e pela falta dele, observando as construções do 
discurso numa posição de leitor vigilante às interferências do preconceito; entre fonemas e 
glossemas, letras e figuras de linguagem, frases articuladas ou não, significantes puros ou 
encadeados; fazendo uma análise textual sem tentar uma compreensão imediata, ao modo da 
atenção flutuante própria da escuta psicanalítica; fugindo das amarras de interpretações 
estanques, com um olhar voltado para a especificidade do discurso, mas atento às possíveis 
articulações da narrativa com as nossas coordenadas teóricas. 
 Almejamos trabalhar, em acordo com Barthes (1985),sem uma posição apriorística 
de encontraruma verdade oculta, empenhando-nos numa leitura do texto como um 
“intertexto”, isto é, ligando-o a outros códigos históricos e sociais, “(...) com a finalidade de 
conseguir conceber, imaginar, viver o plural do texto, a abertura de sua significância” 
(BARTHES, 1985, p. 240). 
Sem dúvida, julgamos impressionante perceber que, até o final da vida, Artaud criou 
sem se deixar paralisar pelo sofrimento da psicose. Na abordagem de sua escrita, podemos 
considerar tanto o discurso clínico (pelo viés da psicanálise e psicopatologia) quanto o crítico 
19 
 
 
(pelo viéssobretudo da filosofia e da teoria literária).Veremos, em nossa pesquisa, as 
aproximações, entrelaçamentos e distanciamentos entre eles, sem, no entanto, procurar reduzi-
los um ao outro. 
Do lado da psicanálise, referenciamos os trabalhos de Sigmund Freud e Jacques 
Lacan. Deles relevaremos os postulados ligados aos modos de inscrição do sujeito em relação 
à linguagem; desde a investigação freudiana dos sonhos, ou seja, da escrita inconsciente, à 
formulação lacaniana de lalangue [alíngua ou lalíngua], que abarca o irrepresentável da 
língua, o inefável. Sabemos que Artaudcom sua artedesbordou limites conceituais 
generalizantes, transgrediu-os e transpassou-os. Ele, com um discurso delirante e glossolálico, 
sem sentido e estranho,não se importava com o enquadre normativo no qual seria posto. 
Talvez quisesse,sobretudo,aparecer com suas verdades e incitar no outro, as dele. 
 Da Análise do Discurso (AD), consideramos a orientação de Dominique 
Maingueneau, o qual reconhece que a língua é um suporte material da ordem dodiscurso, 
todavia aponta uma outra ordem que se realiza por vias diversas; afirma que os conceitos 
estão em constante construção, não só em função da relação entre elesmas também quanto aos 
de outros campos discursivos. Além disso, ressalta a noção de linguagem como um 
instrumento que permite a construção e a transformação das relações entre interlocutores, seus 
enunciados e referentes, sem que se reduza a um mero suporte para transmissão de 
informações. 
Ademais, recorremos às análises da escrita de Artaud feita pelos filósofos Gilles 
Deleuze e Jacques Derrida, psicanalista Félix Guattari e filósofa e psicanalista Julia Kristeva, 
e ainda do escritor e filósofo Maurice Blanchot, além de vários outros estudos pertinentes. 
 Assim,pretendemos figurar um lugar diferente de um espaço geométrico, de onde 
pudesse emergir uma escrita bruta; um lugar de origem e, ao mesmo tempo,de jorro 
poéticomarcado pelo nonsense. Seria um lugar para um sujeito radicalmente crítico do padrão 
linguístico, livre dos automatismos impostos pelo “julgamento Divino” como quis Artaud. Ele 
construiu a noção do “Corpo sem Órgãos” (CsO) que, segundo Deleuze e Guattari, seria um 
lugar para o fluxo de desejos, do devir sujeito sobrepondo-se à alguma mesmidade. Com esses 
autores, colocaremos poremos em discussão o CsO, veremos que este, aparentemente vazio, 
seria imbuído de força para suportar o ser passageiro do poeta. Há corpo, contorno de um 
corpo, nuançado, figurando certa diafanidade, que não designa propriamente a base para a 
formação de um ego nomeável. Perguntarmo-nos se um corpo assim desenhado se relaciona 
com uma possível recusa a se deixar apreender enquanto identidade, requer especial atenção 
20 
 
 
em nosso estudo, mesmo porque a composição do ego em função da consistente unidade 
corporal é um princípio basilar para a psicanálise. 
Com base na visão do CsO como um “acontecimento” incorporal, contrariando a 
fixidez de uma estrutura física e identitária, passaremos pela teorização de Maurice Blanchot, 
sobre a noção do fora no campo da literatura. Nesse sentido, ele evidencia a experiência do 
fora como uma presença, um acontecimento na literatura no qual se identifica mais uma 
neutralidade do que uma autoria específica do verso, o que nos dá a chance de pensar o 
multiverso de Artaud. Esse teria certa conotação de virtualidade, similar à ficcional, contudo 
produzido e vivenciado na realidade; seria por vezes sem sentido e reduzido à letra, 
impossível de representação, e, assim, sem elementos para compor um discurso comum. Um 
multiverso singular que abre portas para uma reflexão sobre a estética escritural artaudiana 
tendo como referência o pensamento deleuziano sobre a virtualidade. 
Evidenciamos esse lugar que não tem referente na realidade no estudo de J. Derrida 
quando ele lê e analisa o Timeu de Platão. Nesse estudo, teoriza sobre Khôra, “o lugar dos 
lugares”, como definiu Fedida (1991, p. 115; 124). Examinaremos a pertinência e fertilidade 
desse conceito de lugar onde se poderia figurar a produção desejante artaudiana. E o faremos 
também baseados na visão de J. Kristeva sobre Khôra quando propôs, referindo-se a Artaud, a 
concepção de um sujeito em processo, sem reduzí-lo, portanto, aos limites estruturais 
psicopatológicos do sujeito psicótico. 
Essa questãodo sujeito em processonos permitirá discutir a singular posição de Artaud 
no fazimento da escrita. Dessa forma, poderemos ver a chance de ele, ao assumir o discurso 
assinando em nome próprio, portanto separando-se do sobrenome materno, continuar criando 
com as neoformações linguísticas – da palavra, da palavra delirante, da letra ao grito - 
estranhas ao cânone. 
Talvez Artaud tenha perseguido o reconhecimento do outro, não simplesmente como 
prestígiomas também como legitimação de uma genuína presença existencial. E isso 
implicaria, provavelmente, maiso acolhimento de uma estética escritural bruta do que um 
perfilamento da mesma. 
Antevemos, sem prejuízo dos nossos resultados, que a escrita poética e dramática de 
Artaud desborda o enquadre psicanalítico freud-lacaniano se se refere à questão da 
sublimação e à eficácia terapêutica pela via da simbolização; afinal, a reassunção do nome 
paterno pela escrita epistolar não o conformou ao padrão artístico convencional.Consideramos 
21 
 
 
quehá que se examinar a construção de uma estética singular por meio da escrita bruta e 
consequentes efeitos para um reconhecimento social. Em Artaud, o sentido e a imagética do 
discursoterminam perdendo valor heurístico em face da reverberação da sonoridade da letra, 
do significante puro. É como se o outro devesse ser tocado nem que fosse para reverberar em 
eco suas emissões, e assim,pelo menos,dar sinais de reconhecimento de uma virtual ou 
efêmera presença existencial. Evidentementeessa escrita não seria a convencionalmas bruta ou 
outsider, como um carvão revelando um valor de diamante. 
Enfim, com essas reflexões e balizas teóricas,dialogaremos na interface dos discursos 
literário e psicótico produzidos pelo sujeitoem processo, Antonin Artaud. Investigaremos que 
elementos são determinantes ou favorecem a inscrição social do sujeito por meio da escrita 
bruta ou outsider. Nessa posição subjetiva, perguntamo-nos quanto à construção de sua 
peculiar escrita, qual seria o lugar que ele ocupa como autor; o que representa o nome próprio 
ou a falta dele na assinatura do discurso, e ainda, à parte a ação da psicose em seu 
pensamento, o que representa, qual a função e quais as características das neoformações 
linguísticas no embate com a língua materna usual. 
Por enquanto, deixemos o poeta Artaud (2008, p. 267) com a palavra: “Há em todo 
demente um gênio incompreendido, cuja idéia que luzia na cabeça provocou medo, e que só 
no delírio pode encontrar uma saída para os estrangulamentos que a vida lhe prepara”. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
22 
 
 
2FIGURAS DO LUGARpara uma escrita bruta 
 
Artaud, poeta, dramaturgo e escritor francês, produziu uma vasta obra literária que 
consta de vinte e seis volumes.Essa produção singular e revolucionária alcançou outros 
horizontesalém da literatura e do movimento surrealista do qual foi membro, chegando aos 
campos do teatro, da pintura, filosofia, medicina, antropologia e psicanálise. 
A partir de 1937, ele foi internado na França em vários manicômios como psicótico e, 
após seis anos, foi transferido para o hospital psiquiátrico de Rodez, onde ficou três anos, de 
1943 a 1946. É quando escreve as cartas àFerdièrecomo já dissemos. 
A epistolografia ocupou um lugar privilegiado em sua obra. Confundia o ato de 
escrever suas lettres [cartas/letras] com o movimento de sua própria vida; disse ele: “A 
questão para mim não [é] a de saber o que chega a se insinuar no quadro da linguagem escrita, 
mas na trama de minha alma em vida”(KIFFER, 2008, p. 01). 
Com sua criação, não só inovamas também subverte e transforma profundamente a 
linguagem tida como normal. Fá-lo também com um discurso delirante, ou nem mesmo um 
discurso, mas o que antecede a palavra: significantes desarticulados – significantes puros –, 
letras conjuntas e/ou disjuntas, que afetam o outro com sons novos, estranhos, até 
perturbadores, sem nenhum significado visível, audível. Adentra o espaço privado do outro e 
se torna ao olhar dele um estrangeiro em sua própria terra; para tanto, chega até a inventar 
uma nova língua universal7(WILLER, 1983, p. 117), recusando-se pelas vias da arte 
tradicional e outras – incluindo-se aqui a escrita bruta - como a psicótica–, a permanecer 
estático no universo da língua materna. Então, ao escrever na forma de um discurso psicótico 
– entre delírios e glosssolalias –, é como se fosse impossível falar apenas na língua materna, 
com os sentidos que aí residem. 
Explode com ela e mergulha fundo até lugares insondáveis pela língua comum, até 
onde nada pode se nomear; opondo-se ao Simbólico com o Imaginário e, assim, chegando ao 
bojo inominável do Real no dizer psicanalítico de Jacques Lacan. 
Vejamos numa dessas cartas citadas acima como esses registros do Real, Simbólico e 
Imaginário, se desatam e produzem uma escrita inédita e estranha em frente dos parâmetros 
comuns da língua: 
 
 
7 “(...) Em 1934, escrevi um livro inteiro (...) numa língua que não era o francês, mas que todos podiam ler, 
qualquer que fosse a nacionalidade. Infelizmente esse livro perdeu-se”, escreveu Artaud (WILLER, 1983, p. 
117). 
23 
 
 
“Inemi tenter monietan 
 Inemon ton tarinan”... 
(ARTAUD, 1977, p. 27) 
 
Esses dizeres iniciam como epígrafe a primeira carta ao “Caro doutor e amigo” 
[Ferdière], e mais adiante, como se fosse outro, explica a ele: 
 
(...) que o caso de Antonin Artaud não é questão de literatura nem de teatro mas de 
religião e que é por suas idéias religiosas, por sua atitude religiosa e mística que 
Antonin Artaud ATÉ SUA MORTE foi perseguido pela loucura dos Franceses. (...) 
Antonin Artaud morreu de castigo e dor em Ville-Évrard no mês de Agosto 1939 e 
seu cadáver saiu de Ville-Évrard durante uma noite branca como aquelas das quais 
fala Dostoievsky (...) mas não incluídas no calendário deste mundo (...) (ARTAUD, 
1977, p. 28). 
 
E segue: 
 
o verdadeiro nome de Antonin Artaud é Hippolyte e Santo Hippolyte como o senhor 
sabe foi o bispo do Pirée nos primeiros séculos da era cristã após a morte de Jesus-
Cristo do qual Antonin Artaud Hippolyte no tempo transportou o corpo. Para mim 
meu nome Dr. Ferdière é Antonin Nalpas (...) (ARTAUD, 1977, p.29, grifo nosso). 
 
E afirma logo após que pertence a uma família do céu apesar de ela estar na terra. 
Na carta seguinte, ele narra a G. Ferdière suas reflexões “inspiradas” pela leitura do 
livro “Hino aos Demônios” do poeta Ronsard, por ele indicado. Como é evidente a forma 
dessa comunicação é da carta, que contém logo, no início, um estranho arranjo de letras sob 
forma de glossolalias: 
“Rat Vahl Vahenechti Kabban” (ARTAUD, 1977, p.29). 
O que isso quer dizer?, perguntamo-nos não sem antes ver que é numa atmosfera 
mística e mágica, num dizer delirante, queArtaud interpreta o que esse poeta expõe. O que ele 
lê nos versos vinha de Deus; é um poema que reflete uma misteriosa iniciação transcendental 
e que 
 
(...) não pode ser repetido pelo homem na medida em que ele não perdeu sua 
comunicação com Deus. Todo poema é uma liberação e vê-se bem que Ronsard 
escreveu esse poema para se livrar da impressão infernal que o Mau Espírito não 
cessa de introduzir em todas as coisas usadas pelo homem, e em primeiro lugar 
aquelas de sua sensibilidade interior, da consciência que lhes aplica e de seu 
julgamento (ARTAUD, 1977, p. 29-30). 
 
 
24 
 
 
Ao informar [e provavelmente indicar] a leitura desse livro de conteúdo místico-
religioso ao seu paciente, G. Ferdière de certo modo compartilha essa aura com ele. Isso nos 
faz considerar a circunstância em que se deu a feitura da carta com a interpretação de Artaud; 
ou seja, a carta tem uma autoria, mas que parece não estar completamente isolada do seu 
interlocutor. Além do mais, Antonin Artaud a assina revestido da identidade materna, isto é, 
como Antonin Nalpas. Ele, então, estaria envolto numa confusão de línguas: submetido à 
injunção da língua materna, no interdiscurso transferencial imaginário com o médico, cuja 
atitude hesita entre a compreensão e rejeição na escuta do discurso psicótico permeadopelo 
faltade sentido com o delírio e as glossolalias.Esse discurso não comportaria, segundo a 
psicanálise, lugar para o significante Nome-do-Pai, que possibilita a língua simbólica, 
compreendida socialmente. 
Essa posição subjetiva de Artaud teria uma conotação de fixidez psíquica dificultando-
lhe a assunção do nome próprio e dispersando-o em identidades imaginárias entremeadas no 
discurso delirante – psicótico, portanto –, e, muito além disso, produzindo e usando de modo 
enigmático, formações que se reduzem a unidades mínimas da língua, aos glossemas e 
fonemas, a significantes puros, lá onde o estatuto de sujeito não se configura; talvez nem 
mesmo o de sujeito do inconsciente, numa temporalidade aquém da palavra. 
Nesses fragmentos de cartas antes citados,evidenciamosque não se encontra uma 
identidade autoral civilmente reconhecida, tampouco um conteúdo em forma linear e 
compreensível segundo o cânone linguageiro. E o que se encontra? 
Na psicanálise lacaniana, as noções do Real, Simbólico e do Imaginário (RSI) 
nomeiam os elementos da estrutura (psíquica) do sujeito em relação à linguagem. Sabemos 
que a concepção do psiquismo conforme uma estrutura de instâncias, tais como o Id, Ego e 
Superego, lugares como os do consciente e inconsciente, foi originalmente descrita por S. 
Freud, todavia é com J. Lacan, apoiado na linguística estrutural, que essa topologia abre para 
a reflexão do sujeito relacionado à linguagem, aproxima-sedo campo discursivo em que o 
sujeito é inserto e incerto! (KAUFFMAN, 1996). 
“O inconsciente é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1996),tornou-se quase 
que uma máxima na psicanálise lacaniana; uma assertiva que abre a comporta de uma espécie 
de dique teórico que permite entrar em contato com o estranho, denso e, não raro, arrebatador 
do Real inefável que incrusta a estrutura do sujeito desde suas primitivas raízes. Referir-se ao 
Real como inefável é adjetivá-lo como algo ou um lugar de produção de algo que não pode se 
inscrever na linguagem comum, de consenso, ou seja, de algo que resiste a simbolização, 
inclusive metafórica. 
25 
 
 
Aqui recorremos à clínica, por meio da psicopatologia, para nos auxiliar na 
compreensão do Real na teoria lacaniana: quando o sujeito psicótico alucina há produção de 
algo Real em sua sensopercepção, pois escuta vozes, vê e sente o odor de coisas que, de fato, 
não existem na realidade, por exemplo. Não se trataria de imaginar o que se vê, no caso da 
alucinação visual, mas da visão de algo Real que não é objeto da realidade; o que difere de 
uma produção ficcional que se representa, tem lugar noregistro imaginário do sujeito, tem 
lugar numa história contada no tempo. E o que se representapode ser pensado, simbolizado 
pelas palavras, falado em língua compreensível para o outro da mesma comunidade 
linguística. Entretanto, não é o que se passa com o discurso delirante nem com as glossolalias, 
pelo menos à primeira vista ou à primeira audição, embora não seja assim que pensa Artaud 
quando escreve uma carta aos médicos-chefes dos manicômios: 
 
(...) Quantos, por exemplo, acham que o sonho do demente precoce 
[esquizofrênico], as imagens pelas quais ele é possuído, são algo mais que uma 
salada de palavras? (...) Nãoadmitimos que se freie o livre desenvolvimento de um 
delírio, tão legítimo e lógico quanto qualquer outra sequência de idéias e atos 
humanos, (...). Sem insistir no caráter perfeitamente genial das manifestações de 
certos loucos (...), afirmamos a legitimidade absoluta da sua concepção de realidade 
e de todos os atos que dela decorrem (WILLER, 1983, p. 30-3). 
 
Então, ele afirma a legitimidade e lógica do delírio, e certamente de outras formas do 
discurso psicótico – como os neologismos e, aparentemente, as glossolalias - como se 
reivindicasse um lugar social de reconhecimento pelo outro; adota uma posição rebelde frente 
ao cânone linguístico materno, questionando-o, desconstruindo-o veementemente. Ao mesmo 
tempo, procura criar uma nova linguagem na qual possa se expressar livremente sem as 
amarras e forma da sintaxe tradicional, muito menos segundo a lógica do sentido comum. É 
como se vivesse na realidade, em seus atos artísticos, o que, em geral, o sujeito experimenta 
num outro cenário, o do inconsciente, configurado e dirigido pelo Outro8, tal como Lacan o 
nomeia. 
É evidente que essa “língua” neológica não encontra receptividade na sociedade 
conservadora, tradicional, nem como conseguiu o movimento revolucionário artístico 
surrealista, do qual fez parte; afinal, um discurso delirante ou composto de neologismos 
carece de sentido e, em geral, não é consentido! Com seu comportamento e discurso 
 
8 O Outro com maiúscula se diferencia do outro para designar um lugar onde ficam os significantes. Estes se 
organizam como um discurso e aparecem numa outra cena, fora da (cons)ciência do sujeito, como nos sonhos, 
sintomas, chistes e atos falhos; portanto, na cena inconsciente. Esse Outro é a alteridade do campo da linguagem, 
simbólico, enquanto que o outro é o semelhante visto em espelho pelo sujeito numa relação imaginária. A mãe, 
sobretudo, ocupa o lugar do Outro e com seu discurso transmite ao sujeito-infante significantes compreensíveis 
e/ou enigmáticos, devendo em princípio aparecer-lhe como ser-de-falta, desejante, incompleto. 
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psicóticos, ele foi várias vezes excluído dessa sociedade para o isolamento no interior de 
hospitais psiquiátricos. 
Esse seria o único lugar onde ele poderia ter voz ativa? Onde poderia falar na ânsia de 
ser escutado? Nesse lugar fala da posição subjetiva e social de um louco, de um psicótico, por 
meio de suas lèttres/letras ao seu médico Ferdière; trata-o na maioria das vezes como “caro 
amigo”, e diz-lhe que não precisa receber eletrochoques porque na verdade é um “homem 
sóbrio e sem delírio” (ARTAUD, 1977, p. 42-43). 
Nesta carta, mais adiante, diz que sua “(...) internação [em Rodez] foi resultado de um 
sacrifício religioso e de um pacto com pessoas honestas, e que foi decidido na sequência de 
uma batalha que houve em Paris, em 1934, e onde as forças do Bem e do Mal colidiram com 
o mais implacável rigor”. Entende que foi vítima de longo “envenenamento” nos serviços 
psiquiátricos do Hospital do Havre e dos Asilos de Quatremarre e Sainte-Anne, por ação das 
forças do Mal do Anticristo; os diagnósticos de “mitomania” e “loucura persecutória” não 
passariam de uma “fábula policialesca” para se justificar alguma perturbação mental e, 
consequentemente uma internação. 
Acredita em sua interpretação e procura ancorá-la na literatura mística; assim, uns dois 
meses depois, explica seu raciocínio recorrendo ao livro de Marcel Granet intitulado “o 
Pensamento chinês”, no qual faz “(...) uma longa exposição da Teoria dos Trigramas que é 
incompreensível se se tem em conta a lógica ordinária do Pensamento Europeu e que seria 
considerada como uma Demência pela Medicina do ocidente se fosse exposta num Asilo de 
Alienados por aqueles que a inventaram (...)”(ARTAUD, 1977, p. 55-56). 
Em uma das cartas fictícias para Artaud, Galeno (2005, p. 133-188), com uma leitura e 
escuta sensível de seus escritos, aborda a questão do psicótico (dito louco, socialmente) 
relevando sua posição de sujeito e suas potencialidades criativas. Destaca o ardoroso e fértil 
trabalho da psicanalista brasileira Nise da Silveira com pacientes psicóticos internados 
buscando reinseri-los no meio social através de suas diversas produções artísticas. Tanto no 
Museu de Imagens do Inconsciente quanto no Museu de Arte Bruta de Lausanne, 
encontramos acervos que não são apenas mostras de mais um tipo diferente de arte, na 
verdade são lugares que testemunham como e quanto a sociedade deve incrustar em seu seio o 
inusitado, o estranho, a aparente bizarrice e a beleza das verdades mais íntimas do sujeito, em 
geral socialmente invisíveis e rejeitadas. 
A visão de Galeno sobre o valor heurístico da arte bruta é explicitada no livro que ora 
abordamos. Cita uma passagem de Nise cuja ressonância toca o leitor imprimindo-lhe um 
traço essencial da concepção artaudiana do ser no contato com a realidade. Trata-se do olhar 
27 
 
 
de Artaud para uma abelha fazendo-lhe refletir que nela tinha visto um “Ser (...) e isso lhe era 
suficiente”. Notamos nessa visão conjunta de Galeno, Nise e Artaud, a posição subjetiva deste 
último diante da natureza, de uma realidade que passa despercebida para a maioria dos seres 
que têm a razão como baliza principal de suas vidas. Com Galeno (2005, p. 179) 
compreendemos que há muito o que se explorar e legitimar da e na interligação entre a 
loucura, a artee a vida. Que o sujeito psicótico não se reduz a um quadro nosográfico mas 
transita em paragens estranhas, longe e tão perto, figuradas no “(...) a-pensamento estético 
(poesia, pintura, literatura, etc.)” e em cartografias múltiplas de seu desejo. 
Artaud questiona o pensamento médico atribuindo-lhe ignorância de uma lógica 
racional que não lhe é própria; mas teria Artaud querido convencer o receptor missivista? Não 
é o que parecem mostrar suas cartas cuja narrativa é como se não esperasse respostas, não 
esperasse compreensão, não as dirigisse para um endereço certo mesmo sabendo para quem 
redigia. Seria um tanto ingênuo responder, afirmativamente, a essa pergunta, até porque há de 
se considerar o fato de ele saber o quão era dogmático um pensamento médico assentado em 
doutrina cartesiana positivista. Pensava o célebre escritor com base em outra lógica que ele 
mesmo desconhecia. 
Já vimos que o que ele descrevia,em parte,não se coadunavacom o sentido e a forma 
da linguagem comum; estaria mais próximo do registro do Real lacaniano a que nos referimos 
antes: o que é próprio do Real não configura e compõe uma linguagem, está foradela, do 
campo simbólico em que o discurso tem sentido e o sujeito se apresenta como ser-de-falta; ou 
seja, a palavra advém para um sujeito incompleto em ser e por isso submetido à linguagem, 
adequado ao prazer no sentido freudiano e não para além dele – do gozo que irrompe do e no 
Real, tal como se passa no sintoma psicótico. 
Ora, se é assim, se ele procurou escrever fora de um contexto hermenêutico, qual seria 
seu intuitose é que existia? Essa escrita teria alguma função para o sujeito já que a 
simbolização linguística seria impossível, pelo menos, na crise psicótica? 
Muito já se pensou e se escreveu como respostas a essas indagações, e uma delas, 
prevalecente no discurso psicanalítico, é que a escrita per se é um modo sublimatório de lidar 
ou elaborar o que se produz no registro psíquico pulsional, portanto, o que estaria no registro 
Real da subjetividade. Lacan (2007 [1975-76]) esmera essa interpretação quando se dedica ao 
estudo da escrita de Joyce; concebe o conceito de sinthome (sinthoma) com base na topologia 
e gera uma teorização que permite compreender porque a escrita seria eficaz em interditar a 
derrocada do sujeito na psicose. O sinthoma seria um quarto registro de inscrição subjetiva 
que enodaria os outros três, isto é, o Real, o simbólico e o imaginário. Entretanto, parece que 
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a escrita do sujeito Artaud se conduz para um outro horizonte, um outro lugar que seria 
melhor concebido com o recurso de outros saberes, notadamente o da teoria literária e 
filosofia. Nesses campos, poder-se-ia talvez figurar o entrelaçamento dos discursos clínico e 
poético no multiverso de uma estética da virtualidade. 
Esse multiverso, a princípio descomprometido com efeitos de sentido nem de alguma 
nomeação precisa,não chega a ter lugar no universo das inscrições memoriais que traçam o 
caminho da história. Pelos idos do início do século passado, Freud, em 1900, escreveu: 
 
(...) Suporemos que um sistema [da percepção (Pcpt) – consciência (Cs)] logo na 
parte frontal do aparelho [psíquico] recebe os estímulos perceptivos, mas não 
preserva nenhum traço deles, e portanto, não tem memória, enquanto, por trás dele, 
há um segundo sistema que transforma as excitações momentâneas do primeiro em 
traços permanentes (FREUD, 1976 [1900], p. 493). 
 
Ele descrevia a estrutura e dinâmica de funcionamento do aparelho psíquico, e aí 
visualizava os lugares de inscrição do que se percebia do mundo exterior, como se ele fosse 
estratificado em instâncias interligadas mas, ao mesmo tempo, autônomas: as atividades 
consciente e inconsciente do sujeito configurariam sua divisão, e a descontinuidade 
operacional entre elas por assim dizer. O sujeito perde sua autonomia em função do que há de 
inconsciente nele. Nessa teorização, há de se notar que Freud, vinte e quatro anos depois, 
associa essa descontinuidade inerente ao sistema psíquico à origem do conceito de tempo 
(FREUD, 1976 [1925], p.290). 
Temporalidade descontínua que virtualiza os acontecimentos inconscientes para o 
sujeito que se pretende consciente todo o tempo, e o desloca para uma outra cena! 
Um outro cenário de forma surreal, enigmático, em que imagens se deslocam, 
deslizam umas sobre as outras, fundindo-se sem arranjos prévios, provocando prazeres e 
angústias, no qual pessoas familiares e estranhas aparecem, mutantes num átimo, num quadro 
de elementos plásticos que se movem sem nenhuma direção nem marcação de tempo mas que 
se prestam a alguma compreensão, alguma leitura desde que passem por uma interpretação 
decodificante. Como vemos, essa outra cena é a onírica, e “(...) a interpretação dos sonhos é a 
via real para o conhecimento das atividades inconscientes da vida anímica”, como escreveu 
Freud (1976 [1900], p. 550). 
Assim, tal como se decifra uma escrita hieroglífica mas com método novo inventado 
por Freud, por meio da leitura dos sonhos pode-se conhecer o discurso do Outroou seus traços 
que compuseram o universo psíquico infantil - é evidente que aqui se considera a visão 
lacaniana do inconsciente como discurso do Outro -. 
29 
 
 
Se se alcança alguma significação dos sonhos como linguagem dos sujeitos normal e 
neurótico, o mesmo não se passa com o discurso do sujeito psicótico que tem similitude com 
a figuração dodiscursoonírico. 
Freud (1976 [1900], p.112-115), tendo como base antigas descrições da psicopatologia 
tradicional por volta da segunda metade do século XIX, observa as relações entre sonhos e 
delírios e mostra como estão próximos; por exemplo, quando um sonho de angústia é 
desencadeante de psicose ou quando o pensamento desta continuar presente nos sonhos após a 
normalização do paciente. Cita renomados pensadores que viam a loucura como expressão de 
uma vida onírica produzida enquanto os sentidos estavam despertos, assim, dentre eles 
assinala na página 113 os dizeres de Kant, provavelmente em 1764: “O louco é um sonhador 
acordado”. 
Nesse estudo, dá crédito aos escritos de Radestock, certamente apoiado por Griesinger, 
fundador da psiquiatria organicista na época; assim, com essas referências nutre a essência da 
teoria sobre os sonhos, a de que estes tanto quanto os delírios são realizações imaginárias de 
desejos. Em seguida, acrescenta que essas duas formações psíquicas produzem um 
pensamento excêntrico e que parecem não ter sentido diante de um julgamento insensato. 
Relevamos, agora, outra que se refere ao registro, ao lugar, desses eventos no sujeito. 
Parece evidente que os conteúdos onírico e delirante se passam de forma imaginária, 
fantasiosa e até fantástica, mas se pomos uma lente sobre este último, o delirante, notamos 
que além da falta aparente de sentido, seria como se fosse construído sob o fomento de algo 
Real, desligado do tempo e espaço reais sociais, ou também de um lugar Real no qual a 
linguagem comum estaria interditada. 
Senão, vejamos essa passagem de Artaud com 47 anos, já fora do asilo de Rodez, ao 
escrever para o Dr. Latrémolière; é uma narrativa de um episódio que parece uma “fabulação 
mnêmica” como diz a psicopatologia, sem sê-la apesar das similitudes, pois tem a 
característica de uma construção delirante, isto é, de um discurso que parece uma recordação 
encoberta apenas pela fantasia comum, mas que, na verdade, vai além dela pois é formada 
por elementos delirantes desconectados de alguma linearidade histórico-pessoal, como 
também do sentido de um discurso ficcional. 
A situação se passa na infância de A. Artaud, quando tinha entre 10 e 11 anos, 
apelidado de Nanaqui.Ao pedir um sorvete num passeio de verão, sentiu-se de súbito e de 
forma “bizarra” e inexplicável, ameaçado por todas as pessoas em sua volta pois estas lhe 
pareciam “malvadas” e persecutórias. Mesmo duvidando acreditou que o sorveteestava 
envenenado, e o que o salvou foi um milagre que veio do céu como uma chama, uma força de 
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Deus que veio para abolir os demônios que o rodeavam e, assim, fazê-lo evitar de ingerir o 
veneno.Assim, pensou ele: 
 
 Essa chama era uma força de Deus, e essa força era um Anjo. (...) Também o Anjo 
que salvou Nanaqui em Marselha estava em estado de torvelinho anímico e atuava 
fora do Ser (...). Este Ser e este homem é você, Dr. Latrémolière; enquanto Nanaqui 
tinha onze anos quando você lhe arrancou da Morte, chamava-se na realidade 
Antonin Artaud e morreu no Asilo de Ville-Evrard na idade de quarenta e dois anos, 
em agosto de 1939. Morrer aos quarenta e dois não é um milagre, e todo mundo viu 
sair do Asilo de Ville-Evrard o cadáver de Antonin Artaud, o que é um milagre é 
que o Mundo tenha seguido depois desse crime, e sobretudo que alguém diferente 
tenha podido ocupar o lugar de Antonin Artaud e lhe suceder na dor. Esse alguém se 
chama Antonin Nalpas tal como pela noite de quinta-feira foi dito por Deus 
(ARTAUD, 1975, p. 73-76. Tradução nossa).) 
 
Provavelmente, esse é o primeiro, ou talvez únicorelato de Artaud, que apresenta uma 
ligação tão vívida com um evento histórico visto por ele de modo fantástico, delirante. 
Identifica, portanto, em Dr. Latrémolière a figura de um “Anjo” com uma força divina 
capaz de salvar o menino Artaud (Nanaqui) de um envenenamento que poderia ter ocorrido 
pelo menos, trinta e seis anos atrás. Um médico que, ao mesmo tempo, foi um Anjo salvavida 
deslocado no tempo há longo tempo atrás. 
Há quase quatro meses antes, escreveu ao Dr. Ferdière, identificando-o também a um 
“Anjo” do bem, como uma alma que habitava um outro corpo e que tinha encontrado em 
1901, “Joseph Jésus Marie e Nanaqui o Santo Espírito” em Esmirna, lugar de nascimento de 
sua mãe, Euphrasie Nalpas (ARTAUD, 1975, p. 35). 
A confusão de imagens entre os médicos e o personagem místico do Anjo se relaciona 
com a transferência psicótica que pode gerar certa simbiose imaginária; essa 
questão,examinaremos,com mais atenção, no capítulo 03.Agora,procuramoscom essa citação, 
figurar o registro do Real que não se baliza pelo tempo real, maspelo imaginário, por 
conseguinte sendo a-cronológico; como também aparece na mistura de espaços físicos 
(Rodez, Marselha, Esmirna) transpostos nessa estranha temporalidade, como se com a escrita 
aos interlocutores se compusesse, não um universo de coordenadas estanques, mas um 
multiverso que tivesse como substancia uma plasticidade ficcional selada pela (in)certeza de 
uma autoria quase virtual ou próxima disso. 
O que se produz num lugar assim, tão Real, é algo da ordem do irrepresentável. É 
Lacan que faz avançar a teoria de Saussure; este precisa a correspondência biunívoca entre 
significado e significante (conceito e imagem acústica), deslocando-os da relação tradicional 
entre coisa e palavra, e aquele aprofunda essa questão mostrando que o Real não se faz 
representar pelas palavras e imagens, contudo, emerge na tessitura da escrita feita do 
31 
 
 
encadeamento de significantes. A“(...) representação freudiana torna-se, em Lacan, o 
significante, esse significante que está enraizado no rastro e no traço e que se torna um 
elemento exclusivamente associativo e combinatório” (MACHADO, 1998, p. 219). 
De imediato, isso nos faz considerar dois aspectos: a) o significante não se limita a 
substituir a realidade por um símbolo, ou, dito de outro modo, a representar a coisa pela 
palavra; tem certa autonomia porque já se posta no campo simbólico criando sentidos quando 
articulado a outro significante, porém se estende ao mesmo tempo ao campo do Real; b) neste 
campo, quando está sobretudo enquanto significante puro, o sujeito imerge na estranheza da 
língua que não se pauta mais pelo sentido de abrangência coletiva. 
Se se considera essa relação da imagem com a palavra, com Freud no estudo sobre “o 
trabalho do sonho”, vemos a forma do conteúdo onírico manifesto como um “rébus”, portanto 
como um conjunto de figuras soltas numa cena incompreensível; uma “escrita pictográfica” 
(FREUD, 1976 [1900], p. 270-271). 
À medidaque o sonhador fale dessa cena e seus elementos associando-lhes palavras, 
obteremos o conteúdo latente que é lido de acordo com as costumeiras significações da 
linguagem. É como se fossem imagens-letras por assim dizer, passíveis de leitura porque 
comporiam palavras e frases segundo uma lógica escritural; o que era aparente absurdo visual 
exposto numa composição pictórica adquire valor significativo ao ser deslindado na forma de 
escrita, faz-nos entender Freud. 
É com essa referência que Machadonos diz como a escrita tem o poder de se tornar 
simbólica “subvertendo” sua dimensão visual no registro do imaginário. “Esse poder, [diz 
ela], é tão eficaz, que ele pode até fazer funcionar qualquer imagem sob o princípio da escrita, 
mesmo que ela não esteja previamente organizada num sistema: a utilização de qualquer 
forma visual, como letra, isto é, pelo seu valor fonético e associativo” (MACHADO, 1998, p. 
220). 
Mais adiante, enfatiza o quanto Lacan valoriza o campo simbólico com a teoria do 
significante; assim, muito do que poderia se fixar na relação especular imaginária do sujeito 
com o outro, com a realidade, adquire mais autonomia no universo da linguagem. Contudo, há 
algo do processo constitutivo do sujeito pela via da linguagem que escapa ao campo 
simbólico, detendo-se no Real sem chegar inclusive a se refletir no espelho da realidade. 
A prevalência no sujeito de um evento psíquico como esse, no qual o Real aparece 
como lugar dominante do sintoma psicótico, foi percebido por Freud já nos primórdios da 
psicanálise. 
32 
 
 
Cita uma passagem clínica em que o sujeito rejeita uma representação psíquica 
intolerável e fortemente angustiante; “(...) comporta-se como se ela jamais lhe tivesse 
ocorrido (...)”, e vivencia essa reação psicológica defensiva como uma alucinação, portanto, 
como se a imagem traumática tivesse somente ligação com a realidade, e ele fica como que 
separado parcial ou totalmente desta. Nesse estado subjetivo, “(...) o eu rechaçou a 
representação intolerável através de uma fuga para a psicose” (FREUD, 1976 [1894], p. 63-
64). 
Mais ou menos dezessete anos depois, em 1911, faz o estudo sobre Schreber, o qual 
narra no livro de sua autoria seu delírio sistematizado; aqui, precisa o mecanismo psíquico 
que intervem na dinâmica dos sintomas psicóticos, tais como a alucinação e o delírio, 
dizendo: “(...) que foi internamente abolido retorna desde fora (...)” [da realidade] (FREUD, 
1976 [1911], p. 95). Ou seja, retorna de outro lugar, do Real. Aqui com maiúscula para 
assinalar o real lacaniano, o qual comporá um dos registros de inscrição do significante na 
estrutura do sujeito – referido à linguagem, ao discurso - como lugar do impensável, do 
impossível, do inefável (LACAN, 1976); então, seguindo essa teorização, a afirmação 
freudiana logo antes citada será assim formulada: “(...) o [significante] que não veio à luz do 
simbólico [porque foi suprimido] aparece no real”(LACAN, 1988 [1966], p. 390-391), como 
se houvesse um “buraco” no simbólico permitindo a emergência do significante foracluído 
[suprimido] no real (R), fora da relação especular com o outro, com a realidade. 
A experiência subjetiva do Real, do que emerge do Real sempre é de intensa angústia, 
e esse sentimento manifesta a impossibilidade de representá-lo, de pô-lo em imagens e 
associa-lo a palavras significadas. A escrita, para o psicótico, aparece então para conformar 
uma certa materialidade que procura, não para significar esse Real ou mesmo nomeá-lo pelo 
senso comum, mas para contorná-lo pela via da inscrição em algum lugar. Ao escrever, de 
certo modo, busca às vezes desesperadamente sobreviver aos efeitos desse sofrimento 
existencial. 
A propósito, Artaudagradece aos médicos Ferdière e Delanglade

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