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JEAN ALLOUCH A Alteridade Literal Posfácio 2021 Letra a Letra Jean Allouch (1984), Lettre pour lettre, Transcrire, traduire, translittérer, seguido de L’altérité littérale (posfácio, 2021), Paris, Epel, 2021. Sumário A ALTERIDADE LITERAL ....................................................................................................................................... 3 DO ESCRITO NA ANÁLISE ....................................................................................................................................... 3 Demonstração algébrica, demonstração icônica ...................................................................................... 4 A alteridade literal ................................................................................................................................................... 7 Dois exemplos ........................................................................................................................................................ 14 MUTAÇÃO EPISTÊMICA ........................................................................................................................................ 17 NECESSIDADE VERSUS CAUSALIDADE ....................................................................................................... 22 POTÊNCIA DA IMAGEM ........................................................................................................................................ 27 O despertar, a vigília ........................................................................................................................................... 28 Freiheitsdrang ......................................................................................................................................................... 30 Do fantasma ............................................................................................................................................................. 35 SOBRE A ENCARPAÇÃO ........................................................................................................................................ 40 A ALTERIDADE LITERAL Mais de trinta anos depois de sua publicação, a presença nas livrarias de uma obra que ficou durante muito tempo inacessível, deve ser tomada como um retorno de... E não então como um saudosista, senão nostálgico e enganador, retorno à... Não uma repetição, e sim uma retomada. Também me dedicarei, neste “Posfácio 2021”, a revisitar, a ponderar certas posições até então sustentadas, considerando o que, nesse intervalo, surgiu em minha leitura de Lacan, e que participa desses retoques [repentirs] tratar-se-á de pintura [peinture]). Recusar que a interpretação seja uma resolução para uma palavra insensata, dar outro valor à imagem, reduzir o alcance atribuído à causa, limitar a relevância do objeto nas mentes e práticas, exercer a análise sem jamais excluir que o analisante possa ter exercido sua liberdade (que ele possa igualmente exercê-la durante sua análise), reavaliar o problema do despertar, não mais negligenciar a incidência da vontade ao lado do desejo, são todos traços suscetíveis de inflectir o exercício analítico tal como ele se exerce ainda hoje sob a dominação de um pensamento pretensamente “lacaniano” da intersubjetividade e da “estrutura”. A LITERALIDADE foi primordial no que hoje é visto como um percurso por alguns de meus leitores, os quais me assinalaram. Letra à Letra (1984)i buscou esclarecer tornando mais explicito o que se entende por “clínica psicanalítica”, limitando a incidência muito ampla e assim imprecisa da tradução – aliás um emprego que foi valorizado não sem excelentes razões, embora parciais. Com esse fim, propus situar a tradução no centro de um ternário: transcrever, traduzir e transliterar, que distinguia três diferentes maneiras de escrita – ou seja, do som, do sentido e da letra, respectivamente. Em Lacan, a clínica analítica é uma clínica do escrito. DO ESCRITO EM ANÁLISE Com os recursos do alfabeto latino, como se expressa o nome próprio daquele que foi um dos grandes mestres do taoísmo? Duas soluções se leem nos textos eruditos ou populares, conforme escolhemos nos basear no som ou na letra. Escreve-se “Chouang-tse” quando se elege o som, “Zhuangzi” quando se prefere a letra (adotando a convenção internacional pinyin). No primeiro caso transcreve-se, no outro translitera-se. Uma ou outra escolha são indicadores de certa relação à língua chinesa falada, ideografada (chinês clássico). Gozo e saber não estão aí em jogo da mesma maneira: a transcrição permanece ligada à voz, a transliteração a dispensa. E claro ninguém pensa em traduzir esse nome, pois um nome próprio enquanto tal não é portador de nenhum sentido e, portanto, não se presta a ser traduzido. Traduzi-lo é trai-lo, e às vezes, é uma maneira de se zombar de quem o porta. A citação de Freud a seguir, escolhida entre várias outras igualmente significativas, deixa entrever certa oscilação na teorização, assim como uma última palavra oferecida à tradução (reforçada por duas ocorrências de “conteúdo” [Inhalt]): Os pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho nos aparecem como duas apresentações dos mesmos fatos em duas línguas diferentes: ou melhor, o conteúdo do sonho nos aparece como uma transcrição (Übertragung, transferência) dos pensamentos do sonho em outro modo de expressão, cujos signos e regras só podemos conhecer quando comparamos a tradução (Übersetzung) e o original 1. Seria pertinente denominar «tradução» essa passagem de um a outro conjunto de signos? Freud suspeita da existência dessa dificuldade, nem que seja pelo fato de empregar dois termos nessa mesma proposição: Übertragung e Übersetzung. Ou de maneira geral: o que então torna necessário, para que adquira consistência o conceito de tradução, recorrer a esse registro que faz com que se louve ou se condene uma tradução pelo motivo de que ela seja considerada como literal? A tradução parte do sentido, inicialmente lido e assim sabido, capturado na língua de origem, nesse mesmo sentido transportado para a língua de destino (Umberto Eco, prudente e vago, propõe ao tradutor exprimir “quase a mesma coisa”). Não há, de partida, nenhum sentido quando se está prestes a decifrar o que quer que seja que, já de início assinala por alguma bizarrice seu estatuto de cifra. A transliteração não parte do sentido; ela o dispensa; ela diz respeito não tanto ao significante ou ao signo, mas à cifra, reconciliando assim notadamente com a maneira pela qual Freud analisava os sonhos na Traumdeutung – o sonho interpretado como um rébus (Bilderschrift) é ali assim decifrado. Podemos ir verificar (Letra a letra se dedicou a isso) que cada uma das retomadas2 por Lacan dos casos de Freud e de outros (até “Joyce o sintoma [sinthome]”) consistiu em revisitá-los lendo-os com a ajuda de uma cifração (um matema) de sua própria autoria. A operação se releva heurística: esses matemas convidam Lacan a colocar certas questões a respeito do caso que seriam inconcebíveis sem eles. Demonstração algébrica, demonstração icônica A despeito deste alcance heurístico, a transliteração permanece na sombra, inclusive ali mesmo onde a praticamos. Não somente entre os antiquistas e os especialistas do código genético (que frequentemente preferem os termos “transcrição” ou “tradução”), mas também na matemática. Dominique Bourn 3, matemático, se interessou pelos escritos e desenhos de Pierre Soury publicados 1 Sigmund Freud, L’Interprétation des rêves [1926], trad. Ignace Meyerson, Paris. PUF, 1967, p.241. 2 Pelo menos para algumas. 3 Dominique Bourn, “Tresses et détresses; voiler/dévoiler” (Tranças e sofrimentos; velar/desvelar), conferência ministrada por ocasiãodo Colóquio « Lacan, le moment Soury » (Lacan, o momento Soury), École lacanienne de psychanalyse, Paris, 26-27 de setembro de 2020. por Christian Léger e Michel Thomé nos três espessos volumes de Chaînes et noeuds 4. Bourn notou inicialmente que a relação texto/desenho era muito peculiar nessas páginas, pois o desenho habitualmente serve para ilustrar ou como simples suporte. Em Soury “parecem, ao contrário, ter a vocação de significar por si mesmos” (itálico de Bourn). Assim se encontrava colocada a questão “de um rigor bidimensional”, enquanto que, na escrita de tipo clássico, a prova se apresenta “sob a forma de um texto linear ou então extremamente linearizado”. Bourn fundamentou essas observações com a ajuda de um exemplo que retomarei aqui, por serem suas consequências tão decisivas no que concerne à teoria da demonstração. Trata-se, então, de um trapézio cujos vértices são denominados de a, b, c, d. E ω o ponto de intersecção das diagonais. Busca-se (de)monstrar que os triângulos aωc e bωd têm a mesma superfície, isso que a fórmula algébrica do cálculo da superfície do triângulo não permite [ A = (b.h)/2, onde b é a base e h a altura adjacente], pois não se conhece nem sua base, nem sua altura. “O recurso à fórmula algébrica é inibidor”, escreve Bourn, “um impasse”. Em contrapartida, uma solução se apresenta, que vem dos antigos Gregos, que sabiam que dois triângulos tendo uma mesma base e cujos vértices estão situados em uma linha paralela a essa base têm a mesma superfície. Por conseguinte, os triângulos acb e adb têm uma superfície igual. Se subtraio do triângulo acb o triângulo acω, obtenho o triângulo aωb. Se do triângulo adb subtraio o triângulo dωb, obtenho igualmente o triângulo aωb. Ora, se de dois valores iguais subtraio um valor desconhecido e cujo resultado dessas duas operações é idêntico, então os dois valores subtraídos são iguais. Portanto aωc = bωd. CQFD (C’est Qu’il Fallait Démontrer [O que era necessário demonstrar]). Esse raciocínio bidimensional 5, Bourn o denomina de “fórmula icônica”, diferente pois da solução algébrica. “Mensuramos melhor, acredito, prossegue Bourn, com esse exemplo em que a fórmula algébrica mascara, ofusca, abafa uma solução ultrarrápida e ultraeficaz fornecida naturalmente pela fórmula icônica que foi desqualificada e esquecida.” Duas escritas operam aqui para uma mesma demonstração, o que me conduziu a colocar uma questão para Bourn sobre sua(s) possível(eis) relação(ões), tendo em mente a ideia de que essa relação poderia ser uma transliteração. Quando então fico sabendo, surpreso, que esse problema tem ocupado atualmente os matemáticos. 4 (Cadeias e nós). Esses volumes podem ser encomendados junto a Michel Thomé. 5 Ei-lo aqui desdobrado: se de duas quantidades iguais abc e abd subtraímos de cada uma delas uma quantidade desconhecida e o resultado é o mesmo para as duas, então cada uma das duas quantidades é igual à outra: aωc = bωd. As coisas chegam ao ponto em que um pouco mais de culhão e de desembaraço em relação à Lacan teria podido (devido) me fazer escrever – e teria sido mais eloquente – “a cifra representa o sujeito para outra cifra. ” 6 Pois, mais claramente do que o significante, a cifra está ajustada à estrutura formal S1 → S2. Uma cifra não está ela própria voltada para seu sentido ou sua significação, nem tampouco para seu suposto referente. Ela apresenta-se, de início, opaca, ilegível; diferentemente do significante, ela é ostensivamente enigma. Ela interrompe o fluxo; como com um significante, não se pode passar rapidamente acreditando tê-lo lido ou entendido sem precisar se questionar mais a respeito. Tanto é que podemos nos perguntar se Lacan já não teria em mente a cifra quando produziu o matema S1 → S2. Até aqui ainda não a havíamos percebido e Lacan não a observou, mas essa estrutura oferece seu lugar à magia, em particular aquela que evocamos quando constatamos certos efeitos produzidos pela descoberta de uma homofonia, “l’effet yau de poêle” 7, como se diz para zombar o primeiro Lacan (poderíamos também criticar a poesia em seu conjunto – exceto o verso livre -, como Boby Lapointe, Jean Tardieu8 e muitos outros, assim como o jornal Libération). Ao se questionar sobre a eficácia dos signos, Alain de Libera escreve: A hipertrofia do significante, a inflação dos signos, as “milhares observações – ou observâncias – insanas” (inanissimarum observationum) que fazem o ordinário do encantamento do mundo têm uma única fonte, o erro que consiste em acreditar que “é em razão de seu valor que se reconhece os signos”, quando, ao contrário, “é fazendo certas coisas dos signos que se os faz valer” (II, XXIV, 37)9. Tendo em vista a palavra escrita “significante”. Ela se mantém de pé, tal como um edifício isolado sustentado em seu interior por três pilares, seus três [i] – a vogal reconhecida como sendo a mais fechada dos “graus de abertura” (da mais aberta à mais fechada: [a], [é], [ê], [i]. “Significante” é estável, convida a habitá-lo, enquanto que a cifra é como um e com acento agudo (o [é] “vogal anterior não arredondada semiaberta”)10. O circunflexo desse outro [ê], de alguma forma, o mantém no lugar. [ê] convida a olhar o que estava escrito antes. O [é] semiaberto faz ir mais longe 11. Uma vez reconhecido ter que enfrentar uma enigmática cifra (o que de início não sabemos ler, mesmo sabendo que não o sabemos) e, salvo que se perca a voz, somos dirigidos para outra cifra como em espera e que falta descobrir (o S1 foi 6 Enquanto o signo (versão Lacan) “representa algo para alguém”. Para uma abordagem menos abrupta do signo em Lacan, nos reportaremos ao artigo de Mayette Viltard “Parler aux murs. Remarques sur la matérialité du signe” (Falar com as paredes. Observações sobre a materialidade do signo), L’Unebévue, nº5, Paris, 1994. 7 François George, L’Effet ‘yau de poêle de Lacan et des lacaniens, Paris, Hachette, 1979. Um exemplo foi discutido na Escola Freudiana, que lembrarei mais adiante. 8 Jean Tardieu, Um mot pour un autre (Uma palavra por outra), Paris, Gallimard, 1951. 9 Alain de Libera, “La face caché du monde » (« A face escondida do mundo »), Critique, nº 673-674, juin-juillet 2003, « 2000 ans de magie » (« 2000 anos de magia) (as citações reenviam à De doctrina christiana d’Augustin). 10 Agradeço aqui Isabelle Simatos que, quando a consultei, compartilhou comigo esse pedacinho de seu saber fonológico. 11 A oposição fechado/aberto reenvia ao espaço entre a língua e o palato. O [è] aberto deixa um espaço entre o palato e língua, essa última se expondo assim a ser mais facilmente cortada. O mesmo ocorre para o [o]: chose [coisa] pronunciada por um parisiense da gema vale como fechado, enquanto que o sotaque meridional marca uma abertura para “chose”. declarado “o começo do saber 12”); assim nos vemos solicitados, convidados, levados a considerar a flecha. Tomada sozinha (o que permanece sem nenhum interesse) uma cifra se escreve: c →? É, se quisermos, um significante – se não fosse porque ele estivesse “rebaixado ao signo13”, ou à cifra – já tendendo, não em sua significação, seu sentido ou seu referente, mas à outra cifra; assim ele convida seu leitor/decifrador a proceder um pouco como um campeão de esqui a atravessar um portal em uma competição de slalom especial (onde os portais são muito próximos uns dos outros). Nesse atravessamento, o esquiador hábil, ágil, já tem em vista a maneira pela qual vai negociar com o portal seguinte. Da mesma forma que esse esquiador só sabe com certeza que de fato atravessou um portal depois de ter atravessado o seguinte, assim também o sentido alojado silenciosamente em uma cifra só surge depois do reconhecimento dessa outra cifra, cuja eleição depende do esclarecimento que ela possibilitaà primeira. A alteridade literal E eis que recebemos agora (2019) de Michel Foucault uma notável confirmação dessa ênfase lacaniana então dada à escrita da letra14. Um único gesto de Foucault matou três coelhos com uma única cajadada. Ele foi apresentá-lo na Tunísia, entre meados dos anos 1960 e início dos anos 1970. Sua proposição esclarece quatro problemas que até ali permaneciam sem resolução, embora muito já havia sido escrito a respeito: a loucura, o estruturalismo, a literatura moderna e a análise literária contemporânea. Caracterizar com um só traço esses quatro problemas, foi o que Foucault fez, e esse traço nada mais é do que a literalidade – certa literalidade, a que remete a letra à letra, aquela, eu diria, da “alteridade literal”. Ela mostra discretamente a ponta do nariz quando Lacan denomina seu S2 como “o outro significante” (sublinho), aquele junto ao qual intervém S1 em um lugar reconhecido como “lugar do Outro”. Seja então a loucura. Como para melhor aproximar-se dela, Foucault primeiro a desaloja do lugar onde foi atribuído seu domicílio (seu encarceramento) nas sociedades ocidentais modernas: “A assimilação loucura-doença se tornou uma evidência sobre a qual dormimos tranquilamente”, escreve ele (p. 42). Ou ainda, marcando sua distância em relação a essa designação da loucura: O sistema que se manifesta na oposição loucura/razão é totalmente outro do que aquele que apoia a oposição normal/patológico, saúde/doença (p. 78). 12 J. Lacan, L’insu que sait de l’unebévue s’aile à mourre, in L’Unebévue, nº 21, 2003-2004. (Versão bilíngue francês-espanhol no site www.ecole-lacanienne.net). 13 J. Lacan, “Radiophonie”, in Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p.413. Esse « rebaixado ao signo » intervém no seio de proposições de difícil acesso. Lacan afirma aí “ter para a lógica do significante encontrado uma maneira de romper com a armadilha do signo”. 14 Michel Foucault, Folie, langage, littérature, (Loucura, linguagem, literatura), texto estabelecido por H.-P. Fruchaud, D. Lorenzini e J. Revel, introdução de J. Revel, Paris, Vrin, 2019. As indicações das páginas no texto referem-se a essa obra. A loucura pode então ser objeto de uma observação que explicita de que maneira, muito própria a ela, ela se exerce na (e com a) linguagem. Assim como com a literatura moderna, avança Foucault apoiando-se notadamente em Artaud, Roussel, Blanchot, Robbe-Grillet e alguns outros15, a loucura atenta contra a língua enquanto código 16 (p. 105); a fala reconhecida como louca (e/ou literária) põe a língua em perigo. Como? Tendo em si mesma sua cifra (p. 106). Enquanto tal, a loucura não recorre ao código comum, e sim veicula seu próprio código na sua fala (um pouco como o amor, eu acrescentaria, uma alusão à “linguagem privada” dos amantes, aquela que, enquanto cúmplices, somente eles entendem): A loucura não obedece a nenhuma língua (e é por isso que é insensata); mas contém seu próprio código nas falas que pronuncia (e é por isso que tem sentido)17 (p.120). “Insensata”: quase sempre, não se dá suficiente atenção à que tipo de resposta faz apelo uma declaração “insensata” – enquanto que Foucault parece aqui in fine dar sentido a essa fala, embora considerada não ter nenhum. O que seria acolher, e não recolher, uma fala insensata? Justamente, “fala” não convém, e podemos aqui lamentar que Jacques Lacan, no momento em que se interessava pelo furo do simbólico, não acreditou ser oportuno voltar à ênfase colocada, muito antes, na “fala plena”, em contraste ou mesmo em oposição à “fala vazia” que lhe serviu de contraponto 18. Cada fala louca é uma declaração no sentido em que se declara sua amizade, seu amor, seus pecados ou ainda os direitos do homem. Essas declarações “loucas” são outros tantos performativos cuja maneira tão específica não foi levada em conta por um Austin tão envergonhado, no entanto (como observamos), com sua descoberta (desmentida no final da obra). Quando Artaud declara ao interessado: “Mudamos Breton19” depois que Breton negou o que acabava de lhe se dito (uma fala julgada por ele como insensata, ou seja, que ele teria atacado com tiros de metralhadora o cárcere onde Artaud estava encerrado), esse dizer remete a um evento que realmente aconteceu – sua mudança. Breton não a percebe, 15 Uma observação a respeito de Robbe-Grillet torna sensível essa mudança que Foucault descreve e que constituiu, segundo ele, a literatura moderna (reler “La pensée du dehors” (“O pensamento do exterior”, 1966), Dits et écrits (Ditos e escritos), Paris, Gallimard, 1974, vol. I, p. 518-539): enquanto que Balzac descreve o contexto extralinguístico da obra, Robbe-Grillet começa Le Labyrinthe (O Labirinto) com um simples “aqui”, sem que jamais se tenha dele nenhuma outra explicitação (p. 188). Um rumor relata que Marguerite Duras tendo proposto à Éditions Minuit um manuscrito que havia intitulado Destruir, Robbe-Grillet, que então trabalhava como revisor para essa editora, modificou o título: Destruir, diz ela. Ela? Esse “ela” é da mesma ordem que o “aqui”, em uma época onde Duras sempre escrevia “diz-se”, deixando seu leitor se virar com sua questão “lacaniana”: “Quem fala? ” uma questão, sem dúvida, deslocada nesse sentido que respondê-la seria remeter essa escrita “moderna” (Foucault) ao universo balzaquiano. 16 Foucault também se explica a respeito notadamente em “Philosophie et psychologie” (“Filosofia e psicologia”, 1965), in Dits et écrits (Ditos e escritos), vol I, op.cit,. 17 Os termos “língua”, “fala”, “linguagem” não têm aqui o sentido que lhes atribuiu a linguística, que serviu de referência a numerosos autores de outras disciplinas – dentre os quais Jacques Lacan. Veremos mais adiante, a respeito de Roland Barthes, como Foucault toma explicitamente suas distâncias desta linguística e do amplo uso de seus conceitos. 18 “Fala vazia e fala plena na realização psicanalítica do sujeito”: título da primeira parte de “Função e campo da fala e da linguagem” (J. Lacan, Escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 1998, p.248). 19 Gérard Mordillat & Jerôme Prieur, La Véritable Histoire d’Artaud le Mômo (A Verdadeira história de Artaud, le Mômo), Bazas, Le Temps qu’il fait, 2020, p. 50. embora a tenha manifestado em sua resposta. A fala vista como insensata... tem razão. Ela é, além do mais, portadora de uma exigência que se presta a ser formulada nos termos de Lacan: “que se diga” (“alguém” [on], não Artaud) não fica esquecido naquilo que é dito20 - o que, propriamente, define a declaração. Artaud não diz que seu ponto de vista sobre Breton mudou; nem tampouco que Breton mesmo mudou. Sua frase, no neutro, é um constativo. Contudo, eis que, ao decifrar uma frase insensata, a tentação hermenêutica de lhe atribuir um sentido é grande, dito de outro modo, lhe dar as costas (desconhecê-la) enquanto insensata. Esse é o erro que veicula o deciframento mais aplicado aos enunciados que todavia são reconhecidamente insensatos, um erro, ou uma falha na qual Freud não se precipitou (e tampouco Lacan, embora de outra forma, só de passagem) pois soube distinguir esse ponto limite com o qual se depara a interpretação do sonho (uma “psicose, para falar a verdade, de curta duração21”) e que nomeou de “umbigo22” [nombril], o ponto “pelo qual o [o sonho] se coloca em conexão com aquilo que não é identificado23”, o ponto em que é colocado (aufsitz) como não-conhecido (Unerkannt)24. Muito cedo, Foucault se sensibilizou com essa auto-implicação da fala insensata, onde nada é ostensivamente dito, com essa identidade perdida de um sentido, com isso que convém considerar não como uma provisão de sentido, mas como uma figura que suspende o sentido, que acomoda um vazio. Por isso, só se pode escutar suas proposições na Tunísia como o fundamento doque ele já havia dito bem antes25 (ou escrito em outro lugar) quando se interessava pela psiquiatria fenomenológica, pela Daseinanalyse, por certos autores tais como Politzer26 (importante também para Lacan). Eis aqui uma frase, dita na Tunísia a respeito de Artaud, que tomo como caracterizando também toda fala efetivamente analisante: “Todas as palavras que Artaud escreve falam desse vazio, remetem a esse vazio, nascem dele, mas só para se precipitar nele, e daí 20 “Qu’on dise reste oublié derrière ce qui se dit dans ce qui s’entend”. [“Que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se escuta”] (J. Lacan, “L’étourdit”, in Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 449). 21 “Eine Psychose zwar von kurzer Dauer » (S. Freud, Abrégé de psychanalyse [1938], trad. do alemão por Anne Berman, Paris, PUF, 1955, p. 39 [S. Freud, Esboço de psicanálise, Imago, OCB, Rio de Janeiro, 1975. P. 198]. Bem ao final desse parágrafo, esse posicionamento do sonho conduz Freud a evocar (fórmula lacaniana) um tratamento possível das psicoses. Thierry Marchaisse me indica que essa observação de Freud cruza com uma palavra de Proust que escrevia: “esses períodos passageiros de loucura que são nossos sonhos” (Albertine disparue (Albertina desaparecida), in À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido), Paris, Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 1989, t. IV, p. 117). 22 Em francês foi traduzido também como ombilic. Esse limitador é evitado pela hermenêutica que admite a priori que um texto seja inesgotável, que oferece sempre a possibilidade de uma outra e nova interpretação (o que destacou, depois de Schleiermacher e Dilthey, o filósofo protestante Paul Ricoeur e, recentemente, Delphine Horvilleur, rabino em Paris, em uma breve e iluminada obra intitulada Le Rabbin et le psychanalyste (O Rabino e o psicanalista)). 23 S. Freud, L’interprétation du rêve, trad. por Jean-Pierre Lefebvre, Paris, Seuil, 2010, p. 149. [S. Freud, A interpretação do sonho, Imago, OCB, 1975, Vol. IV]. 24 Ibid., Vol. V, p. 568. 25 Pode-se consultar a esse respeito os notáveis e importantes trabalhos de Elisabetta Basso, em particular seu artigo “Foucault entre psichanalyse et psychiatrie “Reprendre la folie au niveau de son langage” (Foucault entre psicanálise e psiquiatria “Retomar a loucura à nível de sua linguagem”), Archives de philosophie, 2016/1 (t. 79), pp. 27-54, on-line. 26 Ler ou reler sua Critique des fondements de la psychologie (Crítica dos fundamentos da psicologia), publicado em 1928, reeditado pela Editora PUF em 1967 e em 2003. só se escapam no movimento de sua perda. ” Querem disso um exemplo à maneira das máximas de Diógenes o Cínico ou ainda à maneira dos chistes de Lacan? Eis uma colegial, um pouco particular sem dúvida, porque, sentada no Bar do restaurante do Dôme em Paris (no lugar marcado por Artaud27) diante de uma xícara de café com creme e lendo Montaigne. De repente, uma voz estrondosa ressoa em seus ouvidos: “Oh! Alguém que lê os Ensaios de Montaigne, vocês se dão conta disso? ” Eu me desesperaria por meu leitor se ele não se apercebesse a que ponto essa frase abre um vazio, que parte dele e remete a ele. Em seguida, se dirigindo aos presentes no ambiente, o orador prossegue com a mesma voz alta, tão inadequada neste lugar muito elegante e aconchegante: “Adamov28, você se dá conta, alguém que lê os Ensaios de Montaigne!” Esse vazio, a colegial percebeu-o, a ponto de logo perguntar a um amigo quem haveria de ser essa pessoa que pôde dizer isso: “Mas, só pode ser Antonin Artaud. Não vejo ninguém mais que possa fazer isso. ” O vazio permanecia presente quando, voltando mais tarde ao Dôme, a colegial aceitou que Artaud se sentasse ao seu lado. Ela pôde então lhe perguntar: “Mas enfim, me explica por que você me interpelou dessa maneira tão grosseira a respeito dos Ensaios de Montaigne? ” Artaud: “Eu odeio Montaigne porque ele é um desses que contribuíram para desesperar o espírito humano. ” Insatisfeita, a colegial reformula pouco depois sua pergunta: “Mas, essa história de Montaigne, decididamente, eu não entendi bem o que aconteceu. ” Resposta: “Mas, minha criança, era preciso que eu encontrasse um meio de te abordar! ” O vazio se renova ao longo desses intercâmbios teatrais e uma vez mais no momento atual, quando Marthe Robert (a colegial) os relata em 2020 na obra La Véritable Histoire d’Artaud le Mômo 29. A obra reporta também (p. 50) uma troca entre Artaud e Breton (evocado acima) onde esse último, por maior que tenha sido sua genialidade, responde da maneira mais comum, desconhecendo o vazio da fala insensata que lhe foi dirigida. Breton esquecido de seu surrealismo. Dedicar-se a interpretar frases insensatas, a atribuir-lhes um sentido, a inscrevê- las em uma história não seria negligenciar, ao mesmo tempo esse vazio de onde emergem, ao qual remetem e onde, uma vez pronunciadas, se perdem?30 A dificuldade com a qual o analista, a respeito disso avisado, tem que lidar se encontra aqui com a de Foucault que, fazendo valer “o pensamento de fora”31 27 Artaud que escrevia que a proprietária do Dôme era “uma certa Fanny que se pretendia santa Théophanie ou a encarnação de Deus” (Lettres 1937-1943, Paris, Gallimard, 2015, p. 87). Nesta mesma longa carta ao Dr Chapoulaud, o paciente internado descreve o Dôme como um lugar onde acontecem “batalhas graves e escândalos retumbantes”. Um pouco mais tarde, escreverá para um doutor (não identificado) que a “gentalha do Dôme [o] trata como mitômano e como perseguido” (p. 94). 28 Adamov, que teve que se empenhar como um diabo para liberar Artaud das mãos do Dr Ferdière, quem o ameaçava permanentemente com eletrochoques, depois de lhe ter infligido uns quantos. Artaud não dirigiu nenhum agradecimento a Adamov que, para tirá-lo do asilo de Rodez, havia convocado todas as celebridades literárias e antiquistas que existia em Paris. Essa abstenção criava, também ela, um vazio. Muito pelo contrário, Artaud deixava saber seu julgamento irônico sobre um livro de Adamov: da digestão, mas sem estômago. 29 G. Mordillat et J. Prieur, La Véritable Histoire d’Artaud le Mômo, op. cit. 30 Assim como a célebre frase de Ernesto em Ah! Ernesto de Marguerite Duras. A leitura que proponho dela tenta alcançar esse vazio, do qual se trata acima (Jean Allouch, Transmaître, Jacques Lacan et son elève hérisson (Transmitir[transmestre] Jacques Lacan e seu aluno ouriço), Paris, Epel, 2020, chap. IV). 31 M. Foucault, “La pensée du dehors » [O pensamento do exterior], art. cité. (nascido com Sade e Hölderlin no instante mesmo em que Hegel e Kant desenvolvem seu “eu penso32”) considera que “todo discurso puramente reflexivo corre o risco (de fato) de continuar a experiência do fora na dimensão da interioridade”. Blanchot33 soube contornar essa dificuldade, observa Foucault, em termos que são da mesma ordem daqueles pronunciados na Tunísia em relação à Artaud. Ali, dizia também: A loucura, sabe-se bem desde Freud, que é sua fala que detém sua própria cifra (p. 105, sublinho). Ou ainda a respeito de Freud: E se pensamos que a doença mental desde Freud voltou a ser loucura [sublinho], então compreendemos que a consciência crítica da literatura se tornou a partir daí infinitamente próxima da consciência lírica do louco (p. 122). Certos freudianos poderiam dar pulos a respeito desse reconhecimento bem-vindo do deslocamento operado por Freud, objetando que se a loucura “contém seu próprio código em suas falas”, então se trata do inconsciente, não somente da loucura. Ao que Foucault poderia retorquir que a loucura joga com a cifra de uma maneira que não se parece com nenhuma outra (explicarei a respeito mais adiante). A cifragem inconsciente, por sua parte, explora amplamente o código comum; a loucura inventa seu própriocódigo. Esta “auto-implicação” Consiste em que a língua (ou o código) esteja comprometida na fala, arriscada nela (supomos que a fala seja agora a detentora de todas as regras do código), e em troca a fala deve valer como uma língua (p. 105). Dizer a um vizinho de mesa a frase: “Por favor, me passe o sal”, ou qualquer outra fala dessa mesma banalidade, não atenta contra a língua; essa fala se contenta em se exaurir aí, ela se submete aos usos convencionais. O mesmo ocorre com a produção de um exemplar sintoma “freudiano” reportado por Darian Leader: uma paciente descreve sua obstinação em esfregar seu braço, “a ponto de arrancar a pele”34. Tendo visto seu pai em um caixão, ela se recorda ter tocado seu braço tão frio, que ela o esfregou de maneira a reaquecê-lo, ou até a lhe dar vida novamente. Não há aí nenhum código novo, ou código no código, mas uma substituição, seu próprio braço dando lugar ao de seu pai morto.35 Outra é a fala louca. Foucault propõe um convincente paralelo com o teatro no teatro (Shakespeare, Artaud) que se apresenta como sendo da mesma fatura. Ele explicita que há aí um traço que ele 32 Jacques Lacan convidou o analista a não pensar (ver minhas Nouvelles remarques sur le passage à l’acte (Novas observações sobre a passagem ao ato), Paris, Epel, 2019, onde esse convite é apresentado.) 33 Neste dia minha sessão com Lacan estava habitada por minha leitura recente de L’Écriture du désastre [A Escrita do desastre]. Menciono o perturbador impacto de Blanchot. Resposta de Lacan: “Ele conhece melhor minha mulher do que eu”, se apercebendo de imediato minha reação de espanto, um pouco incomodado, pelo o que ele acabava de me dizer... 34 Darian Leader, La Jouissance, vraiment? (O Gozo, efetivamente?), trad. do inglês por Anna Feissel-Leibovici, Paris, Stilus, 2020, p. 26-27. 35 Ou melhor, sem dúvida, por pouco que o inconsciente se meta, poderia não se tratar de um braço paterno, mas do órgão ereto desse pai vivo que ela masturbaria. destaca igualmente na literatura moderna: “A literatura coloca seu código na fala. [...] ela tem sua cifra em si mesma” (p. 106). Um código no código, o que quer dizer? O que é então “ter [(a)voir] sua cifra em si mesma”? O que vem primeiro à mente é a obra de Leo Strauss, A Perseguição e a arte de escrever 36. Há um “código no código”, nessa maneira de escrever sob perseguição política, de modo que a censura não encontre aí nada de suspeito, enquanto que aqueles a quem endereçamos uma mensagem assim discretamente cifrada e que a esperam saberão lê-la. Foucault, quanto a ele, não pode considerar outra referência possível, ou seja, os anagramas saussurianos, publicados dez anos depois de suas conferências tunisianas e que continuam sendo, eles também, um caso exemplar, a meu ver, do código no código. Lacan reconheceu seu próprio avanço na exploração saussuriana dos anagramas nesses termos: Um sonho, isso não introduz a nenhuma experiência insondável, a nenhuma mística, isso se lê no que dele se diz, e que possamos ir mais longe ao tomar os equívocos no sentido mais anagramático da palavra. É nesse ponto da linguagem, que um Saussure se colocava a questão de saber se nos versos saturnianos onde ele encontrava as mais estranhas pontuações de escrito, era ou não algo intencional. É aí onde Saussure espera Freud. E é aí que se renova a questão do saber37. É aí também que Lacan os esperava à ambos. No mesmo dia (10 de abril de 1973), convidado por Lacan, Jean-Claude Milner intervém (uma proposição não mantida pela transcrição da editora Seuil). Milner faz observar que na linguística transformacional Não há apenas uma estrutura que estaria copresente nos dados [entender: como no Curso de Saussure], mas há pelo menos duas estruturas, uma que é observável que a chamamos estrutura de superfície, e outra ou várias outras que não são observáveis, cuja estrutura é dita profunda. É possível que Foucault tenha sido impedido de tratar essas questões mais de perto quanto teria sido desejado por uma outra abstenção. Ele declarou na Tunísia querer: “escrever um livro que já tinha escrito no passado e que, bem entendido, eu deixei passar”. Um livro que ele evoca e que não escreverá (p. 50). Em que sentido sua História da loucura na idade clássica38 se constituiu – ao escutá-lo – uma obra “perdida”? A razão disso é que veio no lugar deste outro livro que, como ele explicita, “me fazia rudemente querer e que teria sido a história dos loucos [...] sobre os quais, no fundo, nada se sabe”. Aquilo que foi esse enxame, é isso o que eu gostaria de ter feito e isso foi o que não fiz. [...] Pude encontrar apenas esse molde oco, de alguma maneira, no qual os 36 Leo Strauss, , La Persécution et l’art d’écrire, Paris, Presses Pocket, 1989. 37 Jacques Lacan, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 88 – os três sublinhados são meus. 38 M. Foucault, Histoire de la folie à l’âge classique, Paris, Plon, 1961. colocaram, mas sobre eles mesmos, sobre a loucura, sobre os loucos em sua existência positiva, real, histórica, eu não pude fazê-lo (p. 74). E sem dúvida lhe teria sido necessário ter aprofundado mais nos arquivos desse inacessível enxame e ter falado com “eles” que evoca aqui, para estar em condição de precisar o que ele vislumbrava como sendo um “código no código”. Entretanto, na Tunísia, há muitas indicações laterais que permitem entrever o que tinha em mente. À guisa de exemplo dessa fala louca que “provoca uma série de reações, que não são nem as que correspondem à fala cotidiana, nem as que correspondem à fala religiosa”, ele convoca e descreve a fala do bufão: provocante, ofende sem ferir, desprovida de poder está, no entanto, encarregada de dizer a verdade. É uma fala disfarçada, que “se faz de intermediária de uma verdade que ela mesma não possui” (p. 37). Igualmente, recorre lateralmente ao personagem do louco no teatro barroco. Ele também, objeto do qual se zomba, ele engana os outros, brinca com a seriedade da razão, detém, até certo ponto, “a verdade dessa famosa razão que os outros acreditam deter”. Ele tem, por traz do olhar um pouco cego da razão, um olhar mais penetrante que vê as coisas, que desmascara, que denuncia, que percebe a verdade, que reconhece no relâmpago cintilante do delírio o que a razão, em seu longo discurso, não consegue chegar a formular (p. 57-58). Ele fez também apelo ao teatro de Artaud que “reduz a fala à magia das palavras, a um tipo de palpitação e de dança macabra”, onde “o que existe não é nem o sentido nem o espírito do texto, mas o deslocamento de ar que sua enunciação provoca”, onde o desempenho dos atores fala “uma linguagem muda que não passa pelas palavras [...] outra linguagem, direta e violenta; uma linguagem, ao mesmo tempo, augural e divinatória” (p. 101)39. Em Roussel, também ele convocado, as frases estão submetidas a “explosões fonéticas e os dados sonoros uma vez caídos” constroem “um novo edifício verbal” (p. 117), os jogos de palavras e suas rupturas podem fazer nascer o impossível (p. 118)40. O bufão, o louco do teatro barroco, Artaud, Roussel (dentre outros) sustentam a tese segundo à qual a fala louca, que detém sua própria cifra, vale “como uma língua” (p. 105). Esses diversos atentados aos códigos são como que tornados necessários pelo fato de que uma sociedade impõe limitações ao uso da linguagem (p. 121-122): seu vocabulário41, sua estrutura, sua gramática e as “condutas verbais” das quais é indesejável se distanciar, mesmo empregando “uma linguagem correta (por sua forma, seu ritmo, suas palavras, seu sentido), mas que só obedece em aparência à 39 Tudo se passa como se esses comentários tivessem sido lidos por Patrice Trigano cuja obra Artaud Passionfoi encenada por Ewa Kraska e atuada por William Mesguich e Nathalie Lucas, por ocasião do festival de Avignon (França) em 2019. 40 Por duas vezes, em notas de página, os editores da obra (H.-P. Fruchaud, D. Lorenzini e J. Revel) observam a “muito surpreendente ausência de Lacan”. De fato, o esperávamos. 41 Esse vocabulário não ofereceu a Jacques Lacan tudo o que ele necessitava. Ele inventou não menos de 789 “neologismos” (ver Marcel Bénabou, Laurent Cornaz, Dominique de Liège, Yan Pélissier, 789 néologismes de Jacques Lacan, Paris, Epel, 2002). linguagem de todo mundo [...] e que só está aberta àqueles mesmos que a compreendem”. Além da transgressão dessas regras (nas páginas 104 e 105, Foucault distingue três delas), eu acrescentaria, há outra maneira quase imperceptível de introduzir um código no código, essa que Jean Genet opera em seu prefácio a Frères de Soledad42 de George Jackson, membro do Black Panthes Party. A obra foi escrita na prisão e “na língua do inimigo” (sem a qual o manuscrito não seria publicado nem, portanto, a obra seria lida), mas ao mesmo tempo corrompendo-a tão habilmente que os Brancos se deixariam pegar por ela. O próprio Genet teve que usar essa estratégia ao publicar, ele também, a partir de sua prisão, para sair dali e para ter dinheiro. Melhor do que qualquer outra coisa, um detalhe indicará qual foi sua maneira de interpelar seus inimigos ao escrever. A primeira frase de seu primeiro romance era: “Weidmann vos foi apresentado em uma edição de cinco horas [...]. ” A gráfica lhe sugeriu mudar o “vos” para “nos”, o que ele recusou, pois, disse “eu já marcava a diferença entre vós a quem falo e o eu (moi) que vos fala”. A meditar... Dois exemplos A confrontação de dois exemplos permitirá precisar o que me leva a ratificar a observação de Foucault concernindo a essa fala louca (e/ou literária) que, dispensando o solo comum de uma codificação disponível 43, carrega com ela seu próprio código. O primeiro, ao qual já me referi 44 retoma um de meus sonhos de analisante, aquele de uma placa azul sobre a qual estava representada em branco a letra H. Com apenas esta descrição, qualquer um vê e sabe do que se trata...45 Essa cifra se referia ao que, por vezes, está escrito na parte de baixo de tais placas dispostas nas ruas e nas estradas, ou seja, a palavra “silêncio” situada abaixo do “H”. Esse sonho muito simples usava uma codificação que reconhecemos como comum (e mesmo como uma sinalização). Seu relato ao meu analista lhe pedia com meias palavras que se calasse. Uma mensagem cifrada, portanto, arriscada a não ser lida por aquele a quem era contado, ou até dirigido. A censura do sonho é claramente devida ao fato de que eu não me autorizava a dizer francamente à Lacan: “Na última vez, você teria feito melhor se tivesse ficado em silêncio. ” E agora, uma interpretação delirante que também já mencionei46. Um certo M., hospitalizado em psiquiatria, vendo um enfermeiro que usava um colarinho de 42 Jean Genet, “Préface aux Frères de Soledad», in Oeuvres complètes, t. VI, Paris, Gallimard, 1991. 43 Leitor crítico de uma primeira versão deste posfácio, Thierry Marchaisse recusou essa concepção de uma “codificação disponível”. Ele objetou que um código no sentido criptológico é alguma coisa que se pode “decifrar”, um traço que não poderíamos atribuir a uma língua ou a uma linguagem. A objeção se apoiaria em uma afirmativa universal que não aceitaria a menor exceção? Deveríamos, em nome dessa universal, afastar toda função de codificação atribuída a cada língua? 44 Aqui mesmo na contracapa de Lettre à lettre, Paris, Epel, 2021. 45 “No esquema comum, [...] sublinhamos que o destinatário deve possuir o código para que a coisa funcione. Se não o possui, terá que conquistá-lo, terá que decifrá-lo” (J. Lacan, 09 de fevereiro de 1972). 46 Aqui mesmo, p. 224 sq. (Lettre pour Lettre, capítulo VIII: “Du discord paranoïaque”). celuloide, decifra: “É Lulu Lloyd” [“C’est Loulou Lloyd”]. Uma certa Luluii havia lhe enviado pela companhia de navegação Loyd (que era, à época, conhecida)47 um jogo de damas graças ao qual ele preenchia sua vacuidade de hospitalizado. Enquanto a ligação do “H” e do silêncio estava como que disponível no código comum, com o que a formação do sonho recorria ao que Lacan chamava, a respeito de Joyce, às “escadas do depósito”, aqui ocorre de forma diferente. Ninguém, exceto M., pensaria em ler “é Lulu Lloyd” (S2) na imagem do celuloide (S1). Esta interpretação não está já como que à disposição no código, acessível ao que quer que seja ou a quem quer que esteja querendo se apoderar dela. O mesmo ocorre em relação à ligação, em Schreber, entre os pássaros do céu e as mulheres, ligação graças à qual, segundo Lacan, Freud teve acesso a “toda a cadeia do texto”, ao que se chamou “língua fundamental” (no mínimo próximo, senão idêntica, ao que Foucault indicava com seu “código no código”). Assim como, com Lacan observando em sua Aimée [Amada] Esse gosto pela escrita graças ao qual ela apela, como a tantos outros, ao círculo restrito de pessoas, na falta de uma coletividade maior, para que lhe compensasse seu fracasso – esse gozo quase sensível que lhe dão as palavras de sua língua – [...]48. Me dou conta agora de que, trazida por Letra a Letra, a proposição de cessar de negligenciar essa relação da cifra com a cifra (na mais condensada e exemplar: uma transliteração) não era diferente daquela que Foucault, vinte anos antes, apresentava a seu público tunisiano. Me dou conta também de que eu não soube, como ele, desenvolver a descoberta. A página 156 de Lettre pour lettre, (página 122 de Letra a letra) reproduz uma prancha de Champollion: as correspondências uma vez estabelecidas (inicialmente, graças a uma leitura sem sentido de nomes próprios de faraós) entre, de uma parte, o alfabeto grego e, de outra parte, as duas escritas egípcias (hierática e demótica) permitiram à Champollion ler as frases egípcias, remetendo, ao modo de Foucault, a um documento no documento. Há mais aí. Realizando essa performance, Champollion reconectava, sem o saber, com o que havia sido a alavanca da própria invenção da escrita. Os especialistas nesse domínio estabeleceram essa tendência, James G. Février em particular49, e o que ele dizia a respeito, não foi, até onde sei, jamais recusado 50; eles chamaram essa alavanca de “rébus de transferência”, que nada mais é do que uma cifração. 47 A mesma companhia marítima que levou Freud aos Estados Unidos. 48 Os sublinhados são meus. Ver J. Lacan, De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité (Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade). Seguido de Premiers écrits sur la paranoïa (Primeiros escritos sobre a paranóia), Paris, Seuil, 1975, p. 289. Jorge Baños me lembrou a tempo essa citação, a quem agradeço aqui por isso. 49 James G. Février, Histoire de l’écriture (História da escrita), Paris, Payot, 1948. 50 O que confirmam os trabalhos de Anne-Marie Christin e de Pascal Vernus que acompanharam os primeiros passos de Littoral (nº 2, 7 e 11-12). Escrito de alguma forma sob suas supervisões, Letra a Letra muito lhes deve. Por exemplo, o desenho de um íbis – - que representa o deus Thot, que o torna presente por ocasião do ritual51. Esse desenho, que existia antes da invenção da escrita, remetia ao “objeto”, a saber, a esse deus, e ao nome próprio desse deus. Persistir em ler esse desenho como uma escrita “pictogramática” foi um erro, esse que Éliane Formentelli denominou de “sonho do ideograma” 52, um erro que sublinhava também Magritte quando assinalava com seu célebre quadro de um cachimbo (no qual estava escrita a frase “isso não é um cachimbo”), um “obstinado abuso de linguagem”. não é um íbis; o desenho doíbis nem voa nem come. Existe a escrita, a escrita só decola quando esse mesmo desenho serve para escrever a sílaba “tot” de “Thoutemosis” (um faraó da XIII dinastia) e qualquer outra sonoridade “tot” presente em qualquer palavra do egípcio antigo. Se a homofonia intervém, notamos, no entanto, que não se trata de uma escrita fonética, nem de uma franca transcrição, pois o apoio na homofonia está colocado a serviço de um jogo de escritas, onde ficam perdidos os encantos do pictograma53. Sua imagem suprimida, o deus desaparece, o laço se rompe. Mudamos de um modo de escrita para outro, quando serve senão para escrever a sílaba “tot”. Suprimindo o valor representativo da imagem, o rébus de transferência translitera: no exemplo eleito, passa-se de uma escrita “pictogramática” para uma escrita “silábica”. Como em Champollion, há ganho de saber e perda de gozo. Qual perda? Dentre outras, a própria beleza do desenho encontra-se erradicada pelo efeito do rébus de transferência. Não servindo mais do que para escrever “tot”, o desenho do íbis acaba por se simplificar, por se perder até se tornar irreconhecível na escrita demótica. Não deixa de ser notável que o mesmo ocorre com certos sintomas. Como uma fobia de pequenos botões (o exemplo foi discutido no seio da Escola Freudiana de Paris) suscita, em uma criança, uma preocupação concernindo ao que lhe disseram ser “teu pequeno pedaço”. A imagem fóbica do pequeno botão (phobos, medo, pavor) funcionava como a do íbis antes de sua retomada pelo rébus de transferência. E assim como a do íbis foi suprimida, “apagada” dirá Lacan, como imagem que serve para escrever “tot”, assim também a do pequeno botão perde 51 Por qual razão essa precisão: “durante o ritual”? Eu me expliquei a respeito durante um colóquio consagrado “A interdição da representação”, 1981 em Montpellier e cujos artigos foram publicados pela Editora Seuil em 1984. 52 “Rêver l’idéogramme: Mallarmé, Ségalen, Michaux, Macé » (Sonhar o ideograma : Mallarmé, Ségalen, Michaux, Macé), in Écritures (obra coletiva, Paris, Le Sycomore, 1982, p. 209-233). 53 Esses encantos do pictograma não foram definitivamente varridos pela escrita alfabética; eles retomam vida e vigor atualmente em um terreno especialmente eleito, o da erótica. Nos anos 1980, inicialmente tomamos os signos dos teclados para criar imagens. Muito lento, pois eram necessários vários. Em 1997, nasce a escrita emoji (palavra japonesa para imagem-letra), normatizada em 2010 por Unicode. Em seu artigo “Emojis. Une orgie de sous-entendus” (“Emojis, uma orgia de subentendidos”), Fanny Guyomard (Libération, 15 de dezembro de 2020) lembra vários exemplos: uma berinjela, uma banana ou uma cenoura para um falo (vantajosamente apresentado), para nádegas um pêssego apropriadamente sombreado, um cacho de cereja para quem quer encontrar sua outra cereja, uma flecha orientada para cima para anunciar que será ativo no ato sexual, um punho erguido para um fist-fucking, dois pequenos corações rosa para indicar que há amor no ar. Ao envio de um floco de neve ou de um prato de macarrão (para dizer “você me agrada”) pode ser respondido por um guarda-chuva (“não é recíproco”), etc. seu caráter fóbico quando já não é mais vista e sim lida, interpretada, transliterada, como tendo escrito “teu pequeno pedaço”. Aqui também, se reconfiguram as relações do saber e do gozo. Como o sabemos, o espírito científico é particularmente desconfiado, até mesmo hostil em relação à vidência (como para poder melhor se diferenciar?), enquanto que a psicanálise, depois de ter se interessado por ela, manteve o oculto à margem de suas questões. No entanto, uma vez mais aqui é o rébus de transferência que pode operar, e Bertrand Méheust fornece disso um caso exemplar54. Céticos, os especialistas colocam à prova um vidente inglês. Apresentam-lhe um envelope fechado contendo uma foto, e o desafiam a dizer de quem se trata, e desta forma provar que é mesmo esse vidente que se diz ser. Ele responde pelo desenho de uma colina e de uma igreja, e imediatamente se dizem (aliviados?) que ele nada soube ver, o infeliz. A razão triunfa, a vidência é descartada. Entretanto, a abertura do envelope vai logo trazer seu desmentido a essa primeira e esperada conclusão. Ele continha a foto de Churchill, cujo nome havia sido escrito efetivamente pelo desenho do vidente: church hill. Méheust observa que “o vidente fez apenas a metade do caminho, não foi ele quem decifrou o rébus”. Ele fez algo muito melhor, como o sonho, ele o configurou. Assim, levanta-se uma questão: a magia estaria já presente e operante na colocação em relação de S1 → S2? Estudando o chiste, Freud não convoca a iluminação? Pierre Vesperini vê na iluminação (ellampsis) um fogo jorrando, uma luz inflamada onde “culmina a experiência da iniciação eleusiniana55”. Contar um chiste de judeus a alguém que ignora tudo sobre o judaísmo permanecerá sem nenhum efeito. O relato não provocará nem iluminação nem riso. Aparecerá então que algo ficou... oculto – experiência onde se encontra confirmada a incidência do oculto na relação S1 → S2. MUTAÇÃO EPISTÊMICA 2019. Outra obra foi publicada muito oportunamente56. Désirer désobéir. Ce qui nous soulève I veio como que sustentar o tipo de descoberta inesperada que constituiu, em 1994, a publicação de Letra à letra, seguido de minha recente discriminação, em Lacan, de duas diferentes analíticas do sexo57: a primeira, uma analítica do laço (focalizada no objeto a, reconhecido como causa do desejo) e, até então despercebida, uma analítica celibatária 58, onde se manifesta a inexistência 54 Spy 2020, “Le spirituel se manifestant”, Paris, Epel, p. 37. 55 Pierre Vesperini, La philosophie antique. Essai d’histoire, Paris, Fayard, 2019, p. 142. Esse livro deve ser tomado como uma necessária vacina contra a epidemia de hegelianismo, do qual foram vítimas os contemporâneos de Lacan e, sem dúvida, Lacan mesmo, embora estivesse advertido disso. 56 Georges Didi-Huberman, Désirer désobéir. Ce qui nous soulève I, Paris, Éditions de Minuit, 2019. 57 J. Allouch, Pourquoi y a-t-il de l’excitation sexuelle plutôt que rien ?, Paris, Epel, 2017. 58 Entenderemos “celibatário” no sentido de Marcel Duchamp: “Adágio de espontaneidade = o celibatário mói o seu chocolate sozinho” (Marcel Duchamp, Duchamp du signe, Paris, Flammarion, 2013, p.52). Ou ainda (p. 73): “A noiva tem um centro de vida – os celibatários não o têm. Vivem pelo o carvão ou outra matéria prima extraída não deles, mas de seus não-eles. ” de uma relação sexual reconhecida sem razão. Esta distinção salientou um certo número de temáticas negligenciadas pelas diversas correntes da psicanálise e da psiquiatria atuais: a literalidade, a liberdade, o levante, a vontade. Embora a VONTADE em Lacan figure no topo subjetivamente rotatório do “grafo do desejo”59, embora tenha sido explorada por ele com um tanto de bravura (ao jogar com “Eu me pergunto o que você quer” articulado à “Eu te pergunto o que eu quero”60), embora concebida como “vontade de gozo”, ela seja um elemento chave em “Kant com Sade”, embora revisitando a interpretação do sonho, Lacan explicite que a questão a ser colocada não é “o que quer dizer isso?”, e sim “o que é que, ao dizer, isso quer? 61”, embora o fantasma masoquista tenha sido situado como uma vontade de gozar por ser o objeto de um gozo do Outro 62, embora, sobretudo, a vontade esteja conjugada ao desejo (e portanto, admitida como diferente do desejo) quando no final da análise o sujeito é “chamado a renascer para saber se quer o que deseja” 63, ela como que cedeu todo lugar ao desejo64. Infeliz desejo que, por ter sido convocado o tempo todo (e de longe, quando é declarado sem mais ser “inconsciente”) terminou por irritar alguns! A LIBERDADEfoi, também ela, colocada de escanteio porque se persistia nesse credo que se lê em Taine: “Que os fatos sejam físicos ou morais, não importa, eles sempre têm uma causa.”65 Transportado pelo “sempre”, esse preconceito foi mantido durante toda a história da psiquiatria (e retomado por alguns psicanalistas). Assim Jean-Pierre Delteil, chefe de serviço no Hospital Sainte-Anne e perito judicial, escrevia em 1995: As passagens ao ato antissociais [elas o seriam? 66] cometidas por esses sujeitos são motivadas por um determinismo que escapa totalmente ou parcialmente a suas vontades e aos seus controles.67 59 Com a questão: Che vuoi? (J. Lacan, Écrits, op. cit., p. 805 sq. [ Escritos, op. cit., p. 829.]). 60 J. Lacan, Seminário de 11 de dezembro de 1968, onde “vontade” e “desejo” parecem equivalentes enquanto que em “Subversão do sujeito e dialética do desejo” a vontade é distinguida do desejo (Écrit, op. cit., p. 815. Escritos, op. cit., p. 841) 61 J. Lacan, De um Outro ao outro, 26 de fevereiro de 1964. 62 J. Lacan, A Angústia, 06 de março de 1963 (sublinho). 63 J. Lacan, Écrit, op. cit., p. 649. [Escritos, op. cit., p. 682] (sublinho). 64 A lista que acabamos de percorrer é apenas indicativa; ela permanece longe de um estudo, o qual falta realizar sobre a vontade em Lacan. 65 Citado por Marc Renneville, Crime et folie. Deux siècles d’enquête médicales et judiciaires, Paris, Fayard, 2003, p. 190. A ideia, sem mais, de uma « causa orgânica » ou « psíquica » é uma outra coisa do que uma asserção vazia de sentido? Sobre a vã busca freudiana de uma causa do sintoma histérico, ler, de Guy Le Gaufey, L’”abandon” de la théorie de la séduction”, Littoral, n° 34-35 e 36 (acessível nos sites da École Lacanienne de psychanalyse e da Editora Epel). 66 Uma das exigências que se impõe ao psiquiatra pode formular-se nos termos de Michel Foucault (odiado por Henri Ey): “defender a sociedade”. E esta exigência hipoteca, ou até contamina, a outra dimensão (médica) de sua prática: o exame do paciente, a “conversa”. Poderemos ler a esse respeito a obra de Jonathan Metzl, Étouffer une revolte (Paris, Autrement, 2020). Ou também, e sobretudo, a “Lettre aux médecins-chefs des asiles de fous”, assinada por Antonin Artaud (internado em psiquiatria compulsoriamente durante nove anos) e Robert Desnos (carta inicialmente publicada em La Révolution surréaliste e retomada em A. Artaud, Lettres 1937-1943, op. cit., p. 31-32). Artaud e Desnos viram perfeitamente que o psiquiatra tinha um poder dado pela sociedade, o “de sancionar por encarceramento perpétuo suas investigações no domínio da mente”. (Seria esse poder psiquiátrico que fascina os filósofos, que conduziu Foucault, Hipólito, Ricoeur a ir escutar Lacan?) Qual determinismo? Buscaríamos em vão uma resposta atinente à experiência; no fundo, parece que aqui só o que conta é o pensamento “tudo tem uma causa” 68. Este enunciado se perde rápido na areia, pois, como a causa também faz parte desse “tudo”, nos perguntaremos qual é a causa da causa. Uma resposta vem quase de imediato, suscetível de deter a infernal fuga para trás e que só nos resta colher. Ela faz apelo a uma transcendência: Deus, a causa das causas, como último recurso. Frédéric Nef: os sábios que acreditavam que as coisas estavam bem fundamentadas, que possuíam uma essência intrínseca e que a linhagem das causas se detinha em uma causa suprema intrínseca, repugnavam em geral a assegurar a existência de um vazio físico, até que a observação lhes mostrasse, sobre a base de uma inferência causal, sua inelutável presença nos fenômenos.69 “Deus crê em Deus? ” se perguntava aquele que havia dado um primeiro grande passo ao interrogar a paranoia e que fez notar bem mais tarde que Napoleão não se tomava por Napoleão, nem um rei por um rei – nem, eu acrescentaria, pois estava aí o que era sem dúvida visado, um psicanalista por um psicanalista. Enquanto Jacques Lacan redigia sua tese de psiquiatria, seu colega Paul Guiraud70 escrevia: Toda ciência só é possível se ela admite ao menos como postulado a determinação rigorosa dos fenômenos que ela estuda. Os alienistas devem então estar convencidos de que todos os atos dos alienados, por mais extravagantes e inesperados que sejam, têm causas precisas, assim como os mais normais dos atos. 71 Confrontado com uma psicanálise que se esboçava como junguiana, Freud escriva: “O psicanalista se distingue por uma crença [sublinho] particularmente rigorosa no determinismo da vida da alma.”72 Se essa crença devia rechaçar tudo o que, na experiência analítica, se manifesta como contingência (que Freud não negligencia), se devia não dar nenhum lugar ao acaso, então sim, poderíamos descartá-la como intempestiva. Freud reconheceu em seus relatos de casos outros tantos relatos Artaud e Desnos acrescentam: “A repressão das reações antissociais é tão quimérica quanto inaceitável em seu princípio. Todos os atos individuais são antissociais. Os loucos são as vítimas por excelência da ditadura social.” Teremos um panorama geral sobre o tom dessa carta (convido meu leitor a consultá-la sem mais tardar) lendo as duas primeiras frases: “As leis, os costumes, vos concedem o direito de mensurar o espírito; essa jurisdição soberana, temível, é com vossos entendimentos que vocês a exercem. Que piada! ” 67 M. Renneville, Crime et folie, op. cit., p. 425. 68 Se se pode fazer de Tales de Mileto o primeiro dos filósofos e dos cientistas foi porque ele soube atribuir ao universo uma causa material, nada mais do que a água (ver P. Vesperini, La Philosophie antique, op. cit., p. 34- 35). 69 Frédéric Nef, La Force du vide, Paris, Seuil, 2011, p. 320. 70 Autor em 1922 (com Maurice Dide) de um manual de psiquiatria que foi autoridade durante muito tempo, Guiraud pretendeu ser um amigo da psicanálise afirmando que as alucinações se deviam a uma disfunção cerebral; ele ensinou seu aluno Henri Ey sobre Jackson. Seu nome é atualmente o de um hospital psiquiátrico sediado em Villejuif. Uma homenagem é assim prestada a sua obra e a sua memória. 71 Paul Guiraud, “Les meurtres immotivés”, L’Évolution psychiatrique, nº 2, 1931. 72 S. Freud, “Sur la psychanalyse”, in Cinq leçons sur la psychanalyse, trad. par Yves Le Lay, Paris, Payot et Rivages, 2001. [S. Freud, OCB, Cinco lições de psicanálise, Vo. XI]. Freud vê também um obstáculo no caminho do pensamento psicanalítico no fato de não ter “o hábito de contar com o determinismo rigoroso e válido sem exceção”. literários, romances, um registro onde, pelo menos à primeira vista, o determinismo não reina como senhor e mestre. “Literário”, o que quer dizer? Segundo Foucault, já o lembramos, a literatura moderna põe em jogo o código no código, e é mesmo esse traço que a distingue de outros escritos e que a torna vizinha da escrita de casos tal como Freud a exerceu: A literatura é um certo uso da linguagem tal que a fala corre o risco, a cada instante, de ser para si mesma sua própria língua (p. 146). Igualmente para a análise literária, segundo Foucault, que tomou um novo rumo no século XX. De julgadora, ela se transformou em analisante: E agora, a análise literária se tornou uma relação não mais da escrita com a leitura, mas da escrita com a escrita (p. 179). Pensamos em Pierre Ménard, autor de Quichotte de Borges. A pintura não ficou de fora. Picasso, pintando As Meninas, instaura uma relação da pintura com a pintura, que provém, salta aos olhos, de um registro distinto daquele dos comentários da obra, mesmo os assinados por Jacques Lacan ou Michel Foucault 73. Falar de inspiração é ficar muito longe do que teve lugar, embora Picasso tivesse escrito em um pequeno desenho de sua própriamão: “Greco, Velásquez, INSPIREM-ME!”74 De 17 de agosto a 3 de dezembro de 1957, durante quatro meses de intensa atividade pictural, ao mesmo tempo de um grande desconforto e de uma grande felicidade também, Picasso pintou não menos do que 58 estudos, quer do geral quer de detalhes dessa tela de Velásquez. Ele muda seu formato; ele move um pouco as figuras, dando-lhes novas dimensões a algumas delas; ele abre as janelas; modifica os jogos de luz. Picasso travou combates semelhantes com outros mestres: pintou O Rapto das sabinas de Jacques-Louis David, As Mulheres de Argel de Delacroix, O Almoço na relva de Manet, ele “copia” Goya, El Greco, os grandes mestres venezianos. Pinta um Retrato de Góngora segundo Velásquez, assim como Jacqueline vestida de menina ou ainda Jacqueline (musa, amante, modelo) a cavalo segundo Velásquez. Evocando sua primeira visita ao museu do Prado, ele declarava: Me defrontei pela primeira vez com meus ídolos. Eles me esperavam no museu do Prado. Desde então ficou fixado em minhas retinas, de uma maneira obsessiva, o quadro de Velásquez As Meninas. 75 O termo “paráfrase” é utilizado pelo autor de As Meninas de Picasso para dizer essa relação da pintura com a pintura. Seria devido à falta de algo melhor? Parece que nenhum conceito atualmente disponível seja suscetível de dar conta da operação da qual se trata. Em outros trabalhos debruçados sobre esse problema, lê-se 73 Mayette Viltard, “Foucault-Lacan: la leçon des Ménines », L’Unebévue, n° 12, 1999. 74 Citado com essa grafia por Claustre Rafart i Planas, Las Meninas de Picasso, Prólogo de Valeriano Bozal, Barcelona, Editorial Meteora, 2001, p. 25. 75 Ibid, p. 21 (a tradução para o francês é de Jean Allouch). “paródia”, “reinterpretação”, ou até “canibalismo”. Esta operação, teria ela sido negligenciada por não ter podido ser denominada? Em que consiste precisamente essa novidade que Foucault trazia à tona e que veio marcar com seu selo inclusive a pintura moderna? A descrição foucaultiana dessa guinada, que marcou, ao mesmo tempo, a literatura moderna e a crítica literária, vale também para a psicanálise, ao menos para essa que recebo de Lacan. Foucault: É essencialmente agora a possibilidade de constituir, a partir de uma linguagem dada que chamam a obra, uma nova linguagem, e uma nova linguagem que seja tal que essa segunda linguagem obtida a partir da primeira possa falar da primeira (p. 179, sublinho). “Obtida a partir da primeira” e “falar da primeira” pronuncia o fim do comentário sua inanidade, sua inconveniência. Ou ainda esta questão foucaultiana: Qual transformação se deve operar na linguagem de uma obra para que a linguagem assim transformada fale dessa obra e manifeste algo a respeito dessa obra 76 (p. 179-180, sublinho)? Esta maneira inédita de ler um texto (que pode ser trazido por uma fala) remetendo-se ao texto no texto (à cifra), a uma “segunda linguagem” 77, oferece à Foucault a possibilidade de definir o estruturalismo (na diversidade de suas manifestações) como ciência do documento que trata “do documento enquanto 76 Essa questão é transponível: o que é que As Meninas de Picasso torna manifesto nas de Velásquez? 77 Em “Função e campo da fala e da linguagem”, Lacan aproximou essa “segunda linguagem”. Ele observa que “um discurso de outrora em sua língua arcaica, ou mesmo estrangeira” encontra-se “no epos onde ele [o sujeito] relaciona com o momento presente as origens de sua pessoa” (Écrits, op. cit., p. 255. [Escritos, op, cit, p. 256]). documento”. Ele denomina então “deixologia” essa ciência78 que cobre vários domínios, chegando a preferir esse nome em vez de “arqueologia”, julgado então “afinal não ser bom” (p. 207). A análise deixológica trata dos enunciados. Ela ratifica esse gesto pelo qual Foucault se diferenciava daquilo que foi amplamente adotado como “ciência piloto”, a saber a linguística. A esse respeito, a abordagem de Roland Barthes lhe parece exemplar desse intempestivo linguistic turn que consiste em dizer: visto que o método fonológico teve sucesso à nível dos fonemas, são os mesmos esquemas que devemos transportar para a obra literária mesma. Dito de outro modo, passa-se do nível fonemático para a totalidade do discurso; e deixamos escapar, acredito, a realidade própria do enunciado (p. 200- 201). A deixologia tornou-se possível por esse gesto foucaultiano que retirava o estruturalismo de sua ancoragem na linguística estrutural. Mencionando Georges Dumézil, que ao colocar em relação a estrutura dos mitos indo-europeus e aquela, tripartida, da sociedade, faz notar que o estruturalismo é “um prodigioso instrumento de análise comparativa” (p. 203-204). Encontra-se então deste modo e assim colocado o seguinte problema: Esses isomorfismos são indicativos de uma causalidade? E quando tentei distinguir a análise econômica, que é a análise da produção de coisas, e a análise deixológica, que é a análise da estrutura documental da coisa, é precisamente a isso que eu queria fazer alusão (p. 204). Isso? Constatando a presença de relações entre os elementos (os isomorfismos), “a sincronia da obra a respeito dela mesma” (p.183), a análise estrutural coloca sob novos enfoques o problema da causalidade. NECESSIDADE VERSUS CAUSALIDADE Aquele que abre as portas de uma eclusa é ele a causa da passagem da água? Um isomorfismo seria a indicação de uma causalidade? Foucault convoca a embriologia a fim de tornar seus interlocutores sensíveis a sua resposta negativa. Do mesmo modo que ele distinguia a análise da produção das coisas e a análise deixológica, e como eu distingo uma analítica do objeto a e outra da inexistência da relação sexual, ele também isola duas “camadas” em embriologia: a dos processos energéticos e a dos processos informacionais (p.176). A embriologia se perguntava como é que “duas ou quatro pequenas células” podiam dar lugar a um indivíduo; ela colocava o problema em termos de causalidade, em termos energéticos, e... 78 Que Foucault não tenha dado continuidade a essa apreensão não me parece razão suficiente para negligenciá-la. “não se chegou a lugar nenhum” (p.205)79. Sabe-se agora, prossegue ele, que intervém um processo informacional, um isomorfismo entre a constituição do núcleo da célula e o organismo, “como se houvesse tido uma mensagem depositada no núcleo da célula e depois que essa mensagem tivesse sido como que entendida” (lembramos aqui da leitura de “celuloide”). Ele observa que então “nada se conhece da causalidade, penetramos no processo informacional” 80. Descobriu-se “um objeto novo e um objeto no qual não há mais substância, no qual não há mais causa” (p. 207). Essa constatação de uma ausência de causa foi assim possibilitada pelo isolamento deixológico de duas diferentes camadas: em embriologia, a dos processos energéticos e informacionais; na loucura, as do código no código e, igualmente, na literatura moderna “analisante” e o estruturalismo. Sem o saber, a distinção de duas analíticas do sexo entrava na lista – o que indica que, se na analítica do objeto a, esse pôde ser reconhecido como “objeto causa” (do desejo), não há causalidade na analítica celibatária da não-relação sexual. Não há causa, mas como em outras questões que acabam de ser evocadas, razões, laços se não de necessidade, ao menos compostos de relações contingentes que se solidificaram até ao ponto em que se chega, erradamente, a declará-las causadas por não se sabe o quê. Foi por ter escolhido o terreno logico-matemático que Lacan foi levado a pronunciar o enunciado “não existe relação sexual”. Um discurso é composto de enunciados, essa “forma terceira, ao mesmo tempo dependente e independente da fala e dalinguagem” (p. 246). E não se fica nem um pouco surpreso com o fato de que em 1969 Lacan tenha tão rapidamente e tão amplamente repercutido sobre a conferência de Foucault “O que é um autor? ” que introduzia a discursividade. “Corte um, os dois outros se separam”, eis aqui o borromeano. Essa separação foi causada pelo corte de um dos círculos de corda? Somente o a priori que sugere que tudo tem uma causa permite afirmá-lo. É um laço de necessidade que se encontra então desfeito, fabricado com todas as peças por esse evento contingente que foi a fabricação do nó. Um nó se reconhece como borromeano em razão do fato de que ele se compõe de pelo menos três círculos de corda que não se atravessam jamais uns pelos outros, que não se interpenetram, ao mesmo tempo que estão interligados. Vislumbra-se que mudança de universo do discurso estaria em operação ao se substituir, na frase acima, o “em razão de” por “por causa de”. Ainda não avaliamos a dimensão das consequências do borromeano. Um exemplo? O borromeano devia definitivamente (e silenciosamente) afastar a foraclusão. A 79 Semelhante tentativa surgiu no campo freudiano, sem que jamais, parece, tenha sido amplamente adotada. Darian Leader considera isso em La Jouissance, vraiment? (op. cit., p. 35). Pretendeu-se substituir um modelo cibernético de codificação das excitações pelo modelo energético freudiano que apresentava muitas dificuldades, Freud mesmo tendo observado que excitação genital objetava ao prazer definido como redução das tensões (que, ademais, supunha “a multiplicação de homúnculos na psique, encarregado de promover a aumento das excitações”). 80 Foucault teria podido escolher, pensa-se aqui, os jogos literais do código genético. razão disso é que ela só se sustentava pelas distinções do simbólico, do imaginário e do real (“o que está foracluído do simbólico reaparece no real”), enquanto que o borromeano permitia situar a paranoia como uma colocação em continuidade dessas três dimensões (atadas em um nó de trevo, elas desaparecem enquanto distintas 81). O que não impediu, muito depois, certos lacanianos de promover, atualmente ainda, a foraclusão. Ignorantes do borromeano e querendo sem dúvida agradar ao Lacan que haviam “abandonado”, Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis dedicaram três páginas inteiras à foraclusão em seus Vocabulário da psicanálise. O que fez com que Jacques Lacan tenha se precipitado tão decididamente, intensamente e mesmo (é sua palavra, sua última palavra, diz-se) obstinadamente na exploração do borromeano? Qual fúria o tomou82, que foi perceptível àqueles que iam lhe escutar ou que, desde seu divã, o via manipular sem parar as cordas ou desenhar nós enquanto eles lhe falavam? 83 Isso, desde esse momento em que lhe foi trazido o borromeano (08 de fevereiro de 1972 à noite; ele menciona esse nó pela primeira vez publicamente no dia seguinte). Ele havia, outrora, deixado sua marca em sua invenção maior, essa apresentada em 08 de julho de 1953, o ternário simbólico imaginário real. O que se passou nesses dias 08 e 09 de fevereiro de 1972? Eu diria, para logo me explicar: um tremor de terra que sacudia até os fundamentos de sua doutrina 84, o surgimento em um clarão de questões que até então não tinham sido abordadas senão lateralmente. Em 1972, vinte anos de seminários se mostravam sob uma nova perspectiva arrepiante. S. I. R. já não era mais somente isso mesmo que o havia permitido tratar a maioria das questões levantadas no campo freudiano e outros, sendo novas, ou até inesperadas; tomado pelo borromeano, de repente iluminado pelo borromeano, seu paradigma era objeto de uma e até mesmo de várias questões ao mesmo tempo novas e cruciais. E isso, o borromeano o fazia saber. Por qual razão três dimensões? O que as fez ter 81 Damos com os burros n’água ao perguntar aos escritos e outros seminários de Jacques Lacan de onde, em 1953, pode lhe advir sua proposição – embora mais decisiva do que qualquer outra – de distinguir o simbólico, o imaginário e o real. Nos vemos obrigados a formular conjecturas. Um filósofo poderia propor que ele a obteve de Kant, o qual pensava que entre nossos afetos e nossos conceitos o intervalo era tão importante que era preciso uma “arte oculta da imaginação” para produzir uma síntese. Um teólogo poderia propor a Trindade (um pensamento não em dois, mas em três) fazendo observar, aliás, que Jacques Lacan foi imerso em um banho de cristianismo em seus primeiros anos, isso ao ponto de mergulhar muito cedo em Agostinho e alguns outros. Uma outra conjectura se apresenta aqui, bizarra é verdade, mas permanecendo no domínio do possível. Se Lacan então idoso pôde apresentar a paranoia como uma colocação em continuidade do simbólico, do imaginário e do real, não seria porque talvez tivesse emergido de seu encontro com Marguerite Anzieu (apresentado em sua tese) habitado pela ideia de que na paranoia de sua “Aimée” [Amada] essa distinção faltava? Foi também o momento em que ele revisou seu diagnóstico. 82 Em suas cartas, bilhetes e mesmo correio pneumáticos (era urgente) a Pierre Soury e a Michel Thomé, um “estou furioso” aparece com frequência. 83 Uma situação de fala que Soury reteve, observando que as melhores chances para uma criança se dirigir a uma mãe minimamente disponível era abordá-la enquanto ela estivesse ocupada com outra coisa, em uma “pequena atividade” (costurando, por exemplo). 84 Quando ele retorna pela primeira vez em seu seminário sobre o nó borromeano, Jacques Lacan relata ter sonhado que não havia ninguém no auditório (09/02/1972). “Só me restava continuar a luta da vida”. Interpreta ele minimizando e sem ligar seu sonho ao borromeano. Contudo, isso era o que iria efetivamente acontecer, o auditório se esvaziando cada dia mais, enquanto ele, frequentemente silencioso, explorava o borromeano. um mesmo estatuto embora sejam reconhecidas como diferentes? E qual é esse mesmo estatuto? Há aí uma que prevalece sobre a outra, ou seriam equivalentes? O que é então as liga? Elas são indispensáveis umas às outras? Sobre a supressão de uma dentre elas poderia ser causa ou então razão do desmembramento do conjunto? Para dispor de um começo de resposta a essa última questão, nos reportaremos a um caso de algum modo fútil. Em 09 de dezembro de 1975, Lacan se pergunta se um nó borromeano pode ser feito de vários nós de trevo. Ele não conseguiu produzir um tal nó de quatro, não encontrou “a razão demonstrativa do que não existe” (sublinho). Esse nó existe, Pierre Soury e Michel Thomé lhe entregariam em breve. Lemos nessa última citação um discreto indício de que Lacan pensa o borromeano como uma questão de razão. Mas, não dizia ele, afastando a causa: “O que me perturba nos nós é uma questão de matemática, e é matematicamente que pretendo tratá-la (20/01/1979)? Teria acontecido com Lacan uma desventura da mesma ordem daquela ocorrida com os embriologistas segundo Foucault? Lacan teve problemas com a causalidade: em 11 de abril de 1956, ele mostrou sua “repugnância” a respeito da causa, em seguida a confirmou dez anos mais tarde: “Aquilo que chamamos a causa, se podemos dar uma existência a este ser fantasmático” (07/12/1966). Lacan estava advertido de que “a causa” cheirava a enxofre. Nem por isso, a causa foi radicalmente afastada, mas foi como que colocada em concorrência com “razão” – sem que essa proximidade que assombrou muitas filosofias (Descartes, Spinoza, Leibniz, Schopenhauer e outros) fosse explicitada. O contraste segue sendo impressionante entre, de uma parte, a “Proposição sobre a causalidade psíquica” (1946), como também, à beira da morte, a lamentável promoção de uma “causa freudiana” e, de outra parte, o artigo “A insistência da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957).
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