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Maternidadesituacaorua-Moreira-2021

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte 
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes 
Programa de Pós-Graduação em Psicologia 
 
 
 
 
 
 
MATERNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA E A SUSPENSÃO OU PERDA DO PODER 
FAMILIAR 
 
 
Tabita Aija Silva Moreira 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Natal/RN 
2021
2 
 
Tabita Aija Silva Moreira 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MATERNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA E A SUSPENSÃO OU PERDA DO PODER 
FAMILIAR 
 
 
 
 
 
Tese elaborada sob orientação da 
professora Dra. Ilana Lemos de 
Paiva, coorientação da professora 
Dra Antonia Picornell-Lucas e 
apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da 
Universidade Federal do Rio 
Grande do Norte, como requisito 
parcial para obtenção do título de 
Doutora em Psicologia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Natal/RN 
2021 
Moreira, Tabita Aija Silva.
 Maternidade em situação de rua e a suspensão ou perda do
poder familiar / Tabita Aija Silva Moreira. - Natal, 2021.
 183f.: il. color.
 Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas Letras e Artes,
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, 2021.
 Orientadora: Profa. Dra. Ilana Lemos de Paiva.
 Coorientadora: Profa. Dra. Antonia Picornell-Lucas.
 1. Acolhimento institucional - Tese. 2. Situação de rua -
Tese. 3. Reinserção familiar - Tese. 4. Gênero - Tese. 5.
Gravidez - Tese. I. Paiva, Ilana Lemos de. II. Picornell-Lucas,
Antonia. III. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710
4 
 
 
 
Campus Universitário BR-101 - Lagoa Nova - Natal/RN - CEP 59078-900 Telefax: • 
 Universidade Federal do Rio Grande do Norte 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA 
 
ATA Nº 81 
 
 
Aos quatro dias do mês de outubro do ano de dois mil e vinte e um, às dez horas, por meio virtual, foi 
instalada a Comissão Examinadora responsável pela avaliação da Tese de Doutorado intitulada: 
MATERNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA E A SUSPENSÃO OU PERDA DO PODER 
FAMILIAR, apresentada pela doutoranda TABITA AIJA SILVA MOREIRA ao Programa de Pós-graduação 
em Psicologia, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora em Psicologia. A Comissão 
Examinadora foi presidida pela professora orientadora ILANA LEMOS DE PAIVA e contou com a 
participação da professora doutora MARIA TERESA LISBOA NOBRE PEREIRA, na qualidade de 
examinadora interna, bem como dos professores doutores MARCOS ANTONIO BARBIERI 
GONÇALVES, BEATRIZ BORGES BRAMBILLA e RAFAEL NICOLAU CARVALHO, na qualidade 
de examinadores externos à instituição. A sessão teve a duração de --- horas e a doutoranda foi 
considerada: 
(X) aprovada 
 ( ) reprovada 
 
Dra. BEATRIZ BORGES BRAMBILLA, PUC - SP 
Examinadora Externa à Instituição 
 
 
Dr. MARCOS ANTONIO BARBIERI GONÇALVES 
Examinador Externo à Instituição 
 
 
Dr. RAFAEL NICOLAU CARVALHO, UFPB 
Examinador Externo à Instituição 
 
 
Dra. MARIA TERESA LISBOA NOBRE PEREIRA, UFRN 
Examinadora Interna 
 
 
Dra. ILANA LEMOS DE PAIVA, UFRN 
Presidente 
 
 
TABITA AIJA SILVA MOREIRA 
Doutoranda 
 
 
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A nossa escrevivência não pode ser lida 
 como história de ninar da casa-grande, 
e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. 
 
CONCEIÇÃO EVARISTO 
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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal 
de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Agradecimentos 
Agradeço a maravilhosa Ruah, mover do Criador na minha vida que me guia. 
Aos meus pais, irmãos e a todes amigues, que fazem a minha família, por me 
acolherem, apoiarem, amarem e cuidarem de mim. 
 A Dani que chamou minha atenção para a realidade das gestantes e mães em situação 
de rua em Natal-RN e muito contribuiu no percurso dessa pesquisa. 
 A Ilana por topar expandir os horizontes de pesquisa do OBIJUV/UFRN junto 
comigo, pelo apoio e confiança e, principalmente. 
Ao OBIJUV/UFRN lugar de pessoas comprometidas com a luta pelos direitos 
infantojuvenis com quem tanto aprendo. 
 A Amanda que assumiu com maestria a função de ser minha tutora. Gratidão pelas 
leituras, releituras e pelas palavras de ânimo. 
 A Antonia, querida coorientadora, que me recebeu com tanto carinho na Universidad 
de Salamanca em tempos tão difíceis, mas muito frutíferos. 
 Às professoras e professores que compõem a banca, pela generosidade em 
compartilhar seus saberes, práticas, pelo afeto e pelo sentimento de que não estou sozinha nas 
minhas reflexões. 
 À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela bolsa que 
permitiu a realização desta pesquisa e aos que fazem o PPGPSI/UFRN, em especial à 
secretária. 
 Às professoras Débora Diniz e Rosana Pinheiro-Machado por articularem formas 
valiosas e gratuitas de acesso à vida e escrita acadêmica. 
 As participantes da pesquisa a quem agradeço pelo tempo dedicado, por revisitarem 
situações de angústia e pela confiança depositada neste trabalho. 
 É a vocês que eu dedico este trabalho na fé de que amanhã vai ser outro dia! 
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Sumário 
Lista de siglas ........................................................................................................ vi 
Introdução .............................................................................................................. 13 
1. A população em situação de rua: contextos e políticas públicas ..................... 22 
1.1 Apontamentos históricos e sociais sobre a população em situação de rua. 24 
1.2 A população em situação de rua e as políticas públicas ............................ 30 
2. Ser mulher e mãe em situação de rua .............................................................. 42 
 2.1 Trabalho reprodutivo e maternidade .......................................................... 46 
 2.2 Mulheres em situação de rua e maternidade................................................ 51 
3. Estratégias de investigação…………………………………………...……… 67 
4. Gestar na rua: “Ela sabe que se fizer diferente perde o filho” ……...……….. 73 
 4.1 Pré-natal e puerpério: "Foi o filho que eu pedi a Deus!"………………... 75 
 4.2 Redes de apoio: “Querem obrigar a gente a ser uma coisa que não 
somos”…………………………………………………………………………… 
 
87 
 4.3 Criminalização materna: “Se eu soubesse tinha parido na rua!” ............. 99 
5. Maternidade e meritocracia: “É pobre: pra que pobre tem filho?” ................. 108 
 5.1 Acesso à justiça: “Ela é adulta, nossa responsabilidade maior é o bebê” 108 
 5.2 O discurso da adoção: “Eu mando oficial vir agora? A gente espera? A 
gente fala?”…………………………………………………………………………… 
 
119 
 5.3 Reinserção familiar: “A gente foi fazendo tudo que eles queriam” ……. 132 
Considerações Finais ............................................................................................. 140 
Referências ............................................................................................................ 140 
Apêndices 150 
 
 
9 
 
 
 
Lista de Siglas 
 
 
2ª VIJ/Natal 2ª Vara da Infância e da Juventude de Natal 
CAPS Centro de Atenção Psicossocial 
Centro Pop Centro de Referência Especializado para População em Situação de 
Rua 
CEPAL Comissão Econômica para América Latina e Caribe 
CEIJ Coordenadoria da Infância e Juventude do TJRN 
CF Constituição Federal 
CIAMP - Rua Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da 
PolíticaNacional para a População de Rua 
CLT Consolidação das Leis do Trabalho 
CnaR Consultório na Rua 
CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente 
CRAS Centro de Referência de Assistência Social 
CRDHMD Centro de Referência em Direitos Humanos Marcos Dionísio 
CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social 
CRP Conselho Regional de Psicologia 
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente 
FEBEM Fundação para o Bem Estar do Menor 
HIV Vírus da Imunodeficiência Humana 
HJPB Hospital Dr. José Pedro Bezerra 
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada 
IST Infecção Sexualmente Transmissível 
MDS Ministério de Desenvolvimento Social 
MEJC Maternidade Escola Januário Cicco 
MMDA Maternidade Municipal Dr. Araken Irerê Pinto 
MNPR Movimento Nacional da População de Rua 
10 
 
 
 
MPC Modo de Produção Capitalista 
MSR Mulher/es em Situação de Rua 
NUDECA Núcleo Especializado no Atendimento à Crianças e Adolescentes 
OBIJUV Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de 
Violência 
OXFAM Comitê de Oxford para Alívio da Fome 
PIA Plano Individual de Atendimento 
PNAS Política Nacional de Assistência Social 
PNPR Política Nacional para a População em Situação de Rua 
PNPSR Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua 
Pop Rua/PSR População em Situação de Rua 
RN Rio Grande do Norte 
SAMU Serviço de Atendimento Móvel de Urgência 
SEMTAS Secretaria de Trabalho e Assistência Social 
SGDCA Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes 
SInC Superior Interesse da Criança 
SUS Sistema Único de Saúde 
TAGV Termo de Autorização para Gravação de Voz 
TCLE Termos de Consentimento Livre e Esclarecido 
TJRN Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte 
TR Técnico/a de Referência 
UBS Unidade Básica de Saúde 
UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
11 
 
 
 
Resumo 
 
O Brasil possui um histórico de separação das famílias que remonta aos tempos coloniais e 
que tem se refinado ao longo do tempo através da institucionalização das crianças das famílias 
indígenas, negras e pobres. Diante dessa realidade, esta pesquisa pretende analisar a 
suspensão ou perda do poder familiar de mulheres em situação de rua na cidade de Natal-RN. 
Trata-se de uma investigação cuja metodologia foi composta por entrevistas semiestruturadas 
a partir de quatro grupos distintos que incluíram representantes de onze serviços 
socioassistenciais de atendimento em saúde, do sistema de justiça, além de dois casais em 
situação de rua. Os dados obtidos foram analisados e organizados em três temas baseados na 
análise de conteúdo temática, são eles: (a) gestações em situação de rua; (b) suspenção e/ou 
destituição do poder familiar; (c) maternidade e meritocracia. Os resultados apontam a 
ausência do Estado em prover alternativas concretas de moradia e renda para as mães 
permanecerem com seus filhos; a importância das redes de solidariedade e do apoio familiar 
como formas de resistência à separação de seus filhos; a criminalização das mulheres com 
base no moralismo e no uso de drogas. Nota-se que as mães e gestantes em situação de rua 
estão em constante risco de sequestro e roubo das suas crianças pelo Estado. De modo que é 
necessário desnaturalizar a concepção de que as mulheres pobres são inaptas para o cuidado 
das suas filhas e filhos através de ações intersetoriais alinhadas com as necessidades 
específicas desta população. 
 
Palavras-chave: acolhimento institucional; situação de rua; reinserção familiar; gênero; 
gravidez. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
12 
 
 
 
Abstract 
 
Brazilian history of child removals from families dates to colonial times. This approach was 
refined over time through the institutionalization of children from indigenous, black, and 
impoverished families. Therefore, this study analyzes the suspension or dismissal of custody 
of children of homeless women in Natal/RN. The method consisted of semi-structured 
interviews with representatives of 11 institutions, from four distinct groups that included 
representatives of social assistance services, health care services, the justice system, and two 
homeless couples. The data obtained were analyzed and organized into three themes based on 
thematic content analysis: (a) homeless pregnancies; (b) forcible separation and/or 
termination of parental rights; (c) motherhood and meritocracy. The results point to the 
absence of the State in providing concrete housing and income alternatives for mothers to 
remain with their children; the importance of solidarity networks and family support as forms 
of resistance to the separation of their children; the criminalization of women based on 
moralism and the use of drugs that. It is noted that homeless mothers and pregnant women are 
at constant risk of abduction and theft of their children by the State. It is necessary to 
denaturalize the conception that poor women are unfit to care for their daughters and sons 
through intersectoral actions aligned with the specific needs of this population. 
Keywords: foster care; homeless; return home; gender; pregnancy. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
13 
 
 
 
Resumen 
 
La historia de las separaciones familiares en Brasil se remonta a la época colonial y, con el 
tiempo, ha adquirido una mejoría a través de la institucionalización de los niños y niñas de 
familias indígenas, negras y pobres. Frente a esta realidad, el presente estudio pretende 
analizar la pérdida del poder familiar de las mujeres sin hogar de Natal/RN. La metodología 
cualitativa utilizada se fundamentó en la técnica de las entrevistas semiestructuradas. Se 
realizaron entrevistas a cuatro grupos distintos: representantes de los servicios de asistencia 
social, de la sanidad, de la justicia y dos parejas en situación de sin hogar. Sobre los datos 
obtenidos se realizó un análisis de contenido, previamente organizados en tres temáticas: (a) 
embarazos en situación de calle; (b) guarda y/o retirada de la patria potestad de los menores 
de edad; (c) maternidad y meritocracia. Los resultados alcanzados señalan la ausencia del 
Estado en la provisión de alternativas concretas a la vivienda y a los ingresos para que las 
madres puedan permanecer con sus hijos e hijas; la importancia de las redes de solidaridad y 
el apoyo familiar como formas de resistencia ante la separación de los hijos e hijas de su 
familia; la criminalización de las mujeres por la moralidad y el consumo de drogas. Se 
observa que tanto las madres como las mujeres embarazadas en situación de calle están 
expuestas al riesgo constante de secuestro y robo de sus hijos por parte del Estado. Por ello, se 
hace necesario desnaturalizar la creencia de que las mujeres pobres no tienen capacidades 
para el cuidado de sus hijos e hijas, a través de acciones intersectoriales alineadas con los 
derechos y las necesidades específicas de este grupo de población. 
Palabras-clave: acogimiento institucional/residencial; sinhogarismo; reinserción familiar; 
género; embarazo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
14 
 
 
 
Introdução 
 
Um juiz McClellan em Lansing teve autoridade 
sobre mim e todos os meus irmãos e irmãs. 
Éramos 'crianças', tutelados pelo Estado; 
ele tinha a última palavra sobre nós. 
Um homem branco cuidando dos filhos 
de um homem negro! 
Nada mais do que uma escravidão legal e 
moderna - por mais bem-intencionada que fosse. 
(Malcom X autobiografia, 1965) 
 
Há incontáveis registros de famílias que foram violentamente separadas no processo 
de venda para os escravagistas na história brasileira. Por conseguinte, mães escravizadas 
foram privadas do convívio com seus bebês por estarem presas a atividades de amas-de-leite, 
cultivose outros serviços. Após o fim da escravidão, mesmo com a aquisição da liberdade, 
não era sinônimo de reagrupamento familiar. Collins (2010) relata a história da africana 
Margarida que, após comprar sua alforria, continuou na casa dos “ex-senhores”, onde teve 
duas crianças livres. Quando conseguiu viver dos seus ganhos e residir em outro lugar, iniciou 
uma disputa jurídica para reaver a guarda dos filhos, sua antiga ‘senhora’ ganhou a tutela de 
seus filhos sob os argumentos “da incapacidade das mulheres africanas e descendentes 
exercerem apropriadamente a maternidade, eivados de preconceitos com respeito às mulheres 
negras africanas, descritas como ébrias, prostitutas, e de costumes bárbaros, representando 
uma dupla ameaça ao bem-estar dos filhos e da nação” (Telles, 2018, p. 40). 
A filósofa socialista estadunidense, Angela Davis, explica que diante da ameaça à 
produção agrícola, devido à abolição do tráfico internacional de mão de obra escrava, a 
reprodução natural se tornou método alternativo para repor e ampliar a população de 
escravizadas e escravizados nas colônias da América do Norte. Não há de se confundir, 
entretanto, com uma valorização da maternidade das mulheres negras, elas continuaram sendo 
15 
 
 
 
exploradas em outras áreas produtivas, seja na agricultura e/ou na indústria: “aos olhos de 
seus proprietários, elas não eram realmente mães; eram apenas instrumentos que garantiam a 
ampliação da força de trabalho escrava. Elas eram “reprodutoras” – animais cujo valor 
monetário podia ser calculado” (Davis, 2016, p. 25). 
De maneira análoga, No Brasil também ocorreu o direcionamento do interesse pela 
capacidade reprodutiva das mulheres escravizadas, principalmente após o fim do tráfico 
africano transatlântico e da promulgação da Lei do Ventre Livre em 1871. Esta última, 
concedia aos ‘proprietários’ o direito à tutela e uso da força de trabalho das crianças até os 
oito anos, quando em geral, optavam por sua exploração em serviços obrigatórios até os 21 
anos, em lugar de serem indenizados e encaminharem as crianças a instituições do Estado 
(Telles, 2008). Além disso, o incremento da requisição de amas de leite e trabalhadoras 
domésticas de aluguel reforçou o tráfico interno de jovens escravizadas advindas das 
províncias do Norte, Nordeste e Sul do país. Forçadas a cruzar o país a pé e separadas das 
filhas e filhos maiores e de outros membros das suas famílias (Slenes, 2005). 
Em 1981 um grupo de jangadeiros do Ceará iniciou uma das maiores revoltas 
antiescravagistas do país, movidos pela separação dos seus familiares e pelo espírito 
abolicionista, liderados por Chico da Matilde (sua mãe), posteriormente conhecido como 
‘Dragão do Mar’. Os jangadeiros se recusaram a fazer a travessia de embarque das pessoas 
escravizadas do porto de Fortaleza aos navios que os levariam ao sul do país. Essa negativa 
paralisou o tráfico na região que, em 1884, foi a primeira província brasileira a abolir a 
escravidão, construindo o caminho para a assinatura da Lei Áurea quatro anos depois 
(Rogero, 2021, 46m). 
A lei, entretanto, não foi suficiente para acabar com a escravização e formas de 
trabalho análogas a ela no país. Em parte, devido aos traços raciais não ofuscarem o status 
anterior de pessoa escravizada, contribuindo para a continuidade da hierarquia racial: “Nesse 
16 
 
 
 
racismo, o corpo escravizado desaparece, mas o corpo negro permanece, transmutando-se em 
sinônimo de gente pobre, sinônimo de criminalidade e um ponto de inflamação nas políticas 
públicas” (Morrison, 2019, p. 8). Diante disso observa-se que para as mulheres negras e 
periféricas planejar e usufruir da gestação, e ter recursos suficientes para exercer a 
maternidade, ainda é uma realidade distante. Ademais, seus filhos seriam alvos constantes da 
violência que atinge as periferias. 
Damasceno (2020), em seu estudo sobre as experiências abortivas entre mulheres 
negras de Salvador-BA, observou que por trás da realização do aborto havia histórias de vida 
marcadas pelo desemprego, violência sexual, abandono do parceiro - ou morte deste - 
ocasionada por ações violentas da polícia militar. Por trás dos altos números de mulheres 
latinas e negras que apelam ao aborto há histórias que falam mais “sobre as condições sociais 
miseráveis que as levam a desistir de trazer novas vidas ao mundo” (Davis, 2016, p. 199), do 
que sobre o desejo de liberdade da gestação. 
As trajetórias reprodutivas de mulheres negras em situação de rua apontam que a 
perspectiva de uma gravidez saudável é totalmente negada a estas mulheres, pois todos os dias 
seus direitos são violados quando, para além da violência de terem que estar nas ruas, chegam 
a ser expulsas destes ambientes, arrastadas pelos cabelos, dentre outras violências causadas 
pela polícia militar, mesmo estando grávidas. Além disso, ao darem à luz, o mesmo Estado 
que negligenciou seus direitos, toma suas crianças – de modo totalmente arbitrário - sob a 
justificativa da proteção infantil (Damasceno, 2020). Desse modo, a possibilidade de uma 
mulher conseguir ter um filho/filha, mesmo em contexto de total vulnerabilidade social, 
representa resistência diante de um Estado imbuído em eliminar pessoas negras e 
empobrecidas antes mesmo de nascerem. 
 Há, assim, uma política sistêmica de produção da pobreza que não pode ser minada 
somente por programas de transferência de renda, pois demanda a redução das desigualdades 
17 
 
 
 
a partir do enfrentamento as suas causas. Observa-se, entretanto, o aumento da desigualdade 
social e ampliação da dificuldade de acesso de grande parcela da população a direitos básicos, 
como o de acesso à alimentação, moradia e educação (Guzzo, 2016). 
Dados da OXFAM Brasil (2017) apontam que, nas regiões consideradas em 
desenvolvimento, 75% das mulheres trabalham sem contrato formal e não possuem acesso a 
direitos essenciais como à seguridade social. A pobreza interfere nos recursos disponíveis 
para a sobrevivência das mulheres e suas famílias, de modo que, na ausência de políticas 
públicas adequadas, estas situações tendem a piorar e reverberar suas consequências nas 
próximas gerações. Isso ocorre devido ao fato de que muitas destas famílias são chefiadas por 
mulheres, ou seja, quando a pobreza atinge as mulheres, por conseguinte, também atinge às 
crianças e adolescentes. 
O Estado, além de não garantir plenamente os direitos sociais dessas mulheres, transfere 
esta responsabilidade para as famílias, numa atitude que termina por fragilizá-las ainda mais. 
Neste cenário, Silva e Teixeira (2015) questionam a real intenção do Estado ao centralizar as 
políticas sociais na esfera da família: seria de promover proteção, controle ou a culpabilização 
destas? No cotidiano, as famílias são responsabilizadas pelo sucesso ou fracasso dos seus 
componentes, principalmente no que concerne às crianças e aos adolescentes que, por seu 
processo de desenvolvimento, demandam maior cuidado e proteção. 
Diante disso, uma visão descontextualizada das famílias provoca interpretações 
individualizantes que mascaram a pauperização provocada pelo modo de produção capitalista 
e difundem concepções errôneas sobre os pobres, como a culpabilização pelos seus fracassos, 
o desenvolvimento de discursos sobre sua (in)competência em obter um determinado padrão 
de vida, além da sua associação à violência (Cidade, Júnior, & Ximenes, 2012). Na prática, 
essas visões podem ser incorporadas pelas próprias famílias que se resignam diante da 
incompreensão dos seus modos de vida e potencialidades. 
18 
 
 
 
Ademais, a individualização da preservação do bem-estar da criança, recai sobre as 
mulheres: mães, tias e avós. Mulheres que são responsabilizadas por não suprirem a ausência 
do Estado, por não lutarem o suficiente e fazerem o impossível para prover os cuidados 
necessários aos seus filhos. Diante desta sobrecarga, adicionada à luta diáriapela 
sobrevivência, surge um cenário propício para a violência intrafamiliar e o aumento do 
consumo de álcool e outras drogas que podem fragilizar ainda mais a maternidade. Dessa 
forma, entendemos que, para garantir os direitos das crianças e dos adolescentes, é necessário 
prover melhores condições de vida para suas famílias, principalmente para as mulheres. 
Observa-se que, mesmo após o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 
8.069/1990) vetar a aplicação de medida protetiva em Acolhimento Institucional ou em 
Serviço de Família Acolhedora, por motivo de carência de recursos materiais dos pais (Art. 
23), ou por fazerem uso de substâncias entorpecentes(Art. 19 redigido pela Lei nº 13.257, de 
2016), esta prática ainda é recorrente. Nos levantamentos nacionais sobre os motivos do 
acolhimento, é possível verificar que a justificativa “carência de recursos materiais dos pais 
ou responsáveis” decresceu, enquanto o motivo “negligência” aumentou (Assis & Farias, 
2013; Conselho Nacional do Ministério Público, 2013; Silva, 2004). 
É preciso questionar se as crianças e adolescentes continuam sendo acolhidos por 
motivo de pobreza, mas, agora, de forma diluída numa categoria ampla como a “negligência”. 
Algumas situações corroboram, para que “negligência” torne-se um termo ambíguo, pois 
permanece a questão sobre o dever dos pais de fornecer os devidos cuidados aos filhos, e o 
dever do Estado, que falha em prover a devida assistência de alimentação, medicamentos, 
creches, dentre outras garantias fundamentais à população vulnerabilizada (Moreira & Paiva, 
2019). 
Não obstante, há uma lógica em que o amparo do Estado se apresenta às famílias 
somente em circunstâncias emergenciais. Para Correia (2015, p. 19), “essa lógica desqualifica 
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13257.htm#art25
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13257.htm#art25
19 
 
 
 
as famílias, não considera as potencialidades e, em nome da proteção, viola direitos quando 
não preserva os laços familiares e comunitários”. É necessário evidenciar que também há um 
recorte de classe que perpassa à vigilância das famílias de camadas mais populares que, 
segundo a autora, são mais suscetíveis a terem suas vidas expostas e sofrerem intervenções do 
Estado, no entanto vê-se que as famílias de classe média e alta não são submetidas a situações 
semelhantes. Desse modo, a violência, em suas múltiplas formas, ainda está impregnada no 
imaginário social como vinculada à pobreza, mesmo sendo encontrada em todas as classes 
sociais. Ao olhar para as famílias das crianças e adolescentes em acolhimento, portanto, é 
necessário considerar como está organizada sua comunidade e as ações do Estado para com 
ela, bem como quais os programas socioassistenciais que estão disponíveis. 
Diante da ausência de proteção social, a medida protetiva de acolhimento se torna a 
alternativa mais viável do ponto de vista do Estado, para assegurar o bem-estar das crianças e 
adolescentes. Sobre isto, Nascimento (2012) chama a atenção para um novo status que a 
família pauperizada recebe para justificar a continuidade da intervenção estatal e da retirada 
de crianças e adolescentes do convívio familiar: “família negligente”. A autora pontua que a 
aplicação da medida protetiva de acolhimento possui uma classe social específica como alvo, 
e que, na impossibilidade de acolher por pobreza, utiliza a justificativa da negligência, uma 
vez que “... não se retira por pobreza, mas por negligência, e são os pobres os considerados 
negligentes” (Nascimento, 2012, p. 40). Tal contexto revela o descompasso entre as diretrizes 
que preveem a medida de acolhimento como excepcional, e pelo menor tempo possível, com 
a sua real efetivação. 
Em virtude disso, faltam programas e ações que promovam a reintegração familiar, de 
modo que os Serviços de Acolhimento Institucional tendem a se tornar uma política pública 
muito valorizada pelas famílias, ao ocupar as lacunas deixadas pela insuficiência de 
programas que as atendam. Tem-se como exemplo os atendimentos de saúde ou de educação 
20 
 
 
 
serem mais acessíveis do que quando estavam com suas famílias, pela falta de conhecimento 
dos pais ou pela ausência de atendimento em sua comunidade (Constantino, Assis & 
Mesquita, 2013). Com isso, é importante enfatizar que tais serviços são direitos fundamentais 
de todas as crianças e adolescentes, de forma que é necessário refletir e investigar também a 
negligência do Estado para com a população brasileira empobrecida. Além disso, ingere-se a 
falácia das oportunidades iguais para todos, que nega e coloca em descrédito as consequências 
da insuficiência de ações que minam a crescente desigualdade social e econômica existente no 
país. 
 Entre 2009 e 2010 o, então, Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome 
(MDS) em cooperação com a Fundação Oswaldo Cruz realizou o Levantamento Nacional de 
Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento no Brasil. Os dados mostraram que a 
visão dos profissionais que atuam nos Serviços de Acolhimento Institucional sobre as famílias 
dos acolhidos é, muitas vezes, negativa, principalmente no que concerne à ausência paterna 
ou, quando presente, é observada como frágil ou prejudicial. Estes entendimentos interferem 
no modo de atuação dos Serviços, pois em razão do “descrédito em relação às famílias dos 
acolhidos tendem a apresentar postura menos atuante no fortalecimento dos vínculos, visando 
à reintegração familiar” (Constantino et al., 2013, p. 176). Assim, percebe-se a necessidade de 
conhecer melhor essas relações e superar paradigmas e estereótipos vinculados às famílias das 
crianças e adolescentes acolhidos. 
Os dados encontrados na nossa pesquisa de mestrado “O psicólogo e os Serviços de 
Acolhimento Institucional para crianças e adolescentes na Região Metropolitana de Natal” 
que teve por objetivo conhecer a atuação profissional dos psicólogos dos Serviços de 
Acolhimento, com o fim de refletir sobre o contexto de trabalho deste profissional que tem 
importante papel na efetivação do direito à convivência familiar e comunitária da população 
infantojuvenil apontaram: a dificuldade de as instituições trabalharem em parceria com as 
21 
 
 
 
famílias na perspectiva de superar as situações que levaram à situação de acolhimento; 
instituições localizadas em locais distantes do bairro de origem dos acolhidos, em difícil 
acesso e, submetidas a constantes mudanças de endereço; fragilidades no Sistema de Garantia 
de Direitos das crianças e adolescentes acolhidos, pois várias aplicações de medidas protetivas 
de acolhimento foram citadas como correlacionadas à situação de pobreza e falta de acesso às 
políticas públicas das suas famílias (Moreira, 2014). 
 Além disso, é necessário destacar que em uma pesquisa adicional sobre trajetórias de 
reinstitucionalização de crianças e adolescentes em Serviços de Acolhimento Institucional de 
Natal, da qual participei, por exemplo, foi observado que a maioria das/os acolhidas/os eram 
das Regiões Administrativas que apresentam maiores índices de vulnerabilidade social: Norte 
e Oeste (Paiva, Moreira, & Lima, 2019). A participação na organização de eventos 
promovidos pelo Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência 
(OBIJUV/UFRN) que visavam discutir o direito das crianças e adolescentes à convivência 
familiar e comunitária, possibilitou a compreensão de que a garantia deste direito não pode ser 
considerada uma responsabilidade apenas da família. Ela demanda a articulação de diversos 
serviços que, por vezes, estão fragilizados diante da carência de recursos materiais e humanos, 
além da falta de autonomia profissional devido aos frágeis contratos empregatícios e da 
ausência de formação inicial e continuada. 
A partir desse contexto, observou-se a necessidade de melhor conhecer a promoção do 
direitoà convivência familiar e comunitária, especialmente no cenário atual de enxugamento 
das políticas públicas, crescimento da miséria e criminalização da pobreza, situações que, em 
geral, são motivadoras do Acolhimento. Através dos pressupostos da teoria social marxiana, 
para a definição dos objetivos deste estudo, foi realizada uma imersão na realidade estudada, 
para apreender os processos históricos e sociais que orientam a promoção da convivência 
familiar e comunitária em Natal. 
22 
 
 
 
 O número considerável de acolhimentos institucionais de crianças e adolescentes 
associadas à negligência e abandono dos pais ou responsáveis é alarmante, pois, na ausência 
de critérios objetivos, podem mascarar a aplicação da medida protetiva devido à carência de 
recursos materiais dos pais ou responsáveis. Do mesmo modo, o uso de substâncias químicas 
ou entorpecentes pelas mães, pais ou responsáveis, por si só, também não justificaria o 
Acolhimento, embora, na prática, continuem presentes. 
 Nessa perspectiva, o contexto de criminalização das famílias pobres é ainda mais cruel 
com os pais e mães que estão em situação de rua. Eles compõem uma população que é 
historicamente alvo de processos de exclusão social e, assim, desprovida de garantias de 
direitos. As condições socioeconômicas nem sempre permitem que as mulheres empobrecidas 
cuidem dos seus filhos e, por vezes, ou fragilizam os vínculos familiares e/ou provocam 
separações. A sobrecarga laboral, emocional e mental que estas mulheres vivenciam reduz 
sobremaneira o tempo que possuem para si mesmas, como de participar de atividades sociais 
e políticas, durante as quais poderiam se organizar para reivindicar direitos. 
Nascimento (2016) aponta que, em face do alarmante crescimento da pobreza, 
“questões relativas à destituição do poder familiar e campanhas de incentivo à adoção se 
banalizam no Brasil” (p. 45). A autora ainda questiona o atendimento individualizante 
prestado a “questão social”1da pobreza, como se a negligência fosse um “modo de ser” da 
pobreza. Reflexos deste paradigma podem ser observados nos cortes do orçamento do SUAS 
e na aprovação ou postulação de leis que facilitam a adoção, caso da Lei 13.509 de 2017 que 
alterou o ECA visando a acelerar ações de suspensão ou destituição do poder familiar com 
consequente, facilitação de processos de adoção, em detrimento do trabalho com as famílias 
 
1“(...) questão social significaria o conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos postos pela emergência 
da classe operária no processo de constituição da sociedade capitalista. Questão social pode, pois, ser traduzida 
como a manifestação no cotidiano da vida social da contradição capital-trabalho” (Yamamoto 2007, p. 31). 
23 
 
 
 
de origem. A colocação em família substituta é uma importante possibilidade na garantia da 
convivência familiar e comunitária, entretanto, é preocupante que seja a saída prioritária para 
a negligência do Estado com os pobres. 
Além disso, é relevante apontar que, após denúncias de retiradas arbitrárias de bebês, 
ainda na maternidade, de mães em situação de rua e/ou usuárias de drogas, foi emitida uma 
“Nota de Repúdio” a estas ações pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do 
Adolescente (CONANDA)2. Não raro, essas intervenções costumam reverberar na suspensão 
da guarda e, posterior destituição do poder familiar (Dias, 2019; Gomes, 2018; Malheiro, 
2018). Atitudes como estas abrem precedentes para o que ocorreu no município de Mococa-
SP onde foi deferido judicialmente o procedimento compulsório de esterilização de uma 
mulher por ser classificada como “dependente química”. Observa-se que as mulheres em 
situação de rua (MSR) e que fazem uso de drogas são taxadas como incapazes de prover 
cuidado e proteção aos seus filhos, lógica que constrói a ideia de fracasso materno. 
Ao estudarmos sobre as mulheres em situação de rua, por exemplo, o que se percebe 
são impedimentos ao exercício da sua maternidade e o aprimoramento de estratégias 
históricas de separação das suas famílias. Relações sobre as quais nos aprofundaremos neste 
trabalho, pois é observada, uma realidade nacional de casos de retiradas compulsórias de 
bebês, ainda na maternidade, de mães em situação de rua e/ou usuárias de drogas. Destarte, 
em Natal, diante de denúncias recebidas de retiradas compulsórias de bebês das suas mães 
ainda na maternidade, o Conselho Regional de Psicologia (CRP/RN) promoveu uma série de 
reuniões nas suas comissões correlatas ao tema em 2018. A partir dos encontros, foi proposto 
 
2
Disponível em: https://www.direitosdacrianca.gov.br/documentos/notas-publicas-dos-conanda 
 
24 
 
 
 
o evento mobilizador “O ECA e os impactos da integralidade na proteção de famílias em 
situação de rua”, também, alusivo aos 28 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. 
Em resultado, os apontamentos dos participantes possibilitaram a compreensão de que 
o atendimento à infância no município parece priorizar a destituição do poder familiar, diante 
da ausência de ações que promovam o atendimento integral às famílias em situação de rua. 
Assim, o direito à convivência familiar das crianças em situação de rua, demanda ações 
integradas e contínuas que promovam a garantia de direitos mínimos como habitação e 
trabalho aos seus pais. Além da necessidade da mobilização contra a criminalização das 
famílias em situação de rua que, historicamente no Brasil, impede a multiplicidade das formas 
de ser família. 
 Diante do cenário apresentado, o presente estudo se propõe a analisar a suspensão ou 
perda do poder familiar de mulheres em situação de rua em Natal (RN). Os objetivos 
específicos compreendem investigar as concepções que direcionam a prática dos profissionais 
da rede de atendimento da Assistência Social, Sistema de Justiça e da Saúde sobre as famílias 
em situação de rua; investigar como as redes de atendimento de Saúde, Socioassistencial e o 
Sistema de Justiça se posicionam diante da suspensão ou perda do poder familiar de mulheres 
que estão em situação de rua; analisar as estratégias de enfrentamento aos desafios 
gestacionais e de proteção utilizadas pelas gestantes e puérperas em situação de rua. 
A organização desta tese consiste em quatro partes, sendo estas: fundamentação 
teórica, apresentada em dois capítulos; estratégias de investigação; dois capítulos de 
apresentação dos resultados e discussão e considerações finais. Portanto, apresentamos uma 
tentativa de tecer histórias, muitas vezes não contadas, invisibilizadas e esquecidas que 
entrecruzam questões de gênero, raça e questões socioeconômicas que resulta no sequestro e 
roubo de crianças pelo Estado no cenário natalense. 
 
25 
 
 
 
Capítulo 1 - A população em situação de rua: contextos e políticas públicas 
 
Antigamente o que oprimia o homem era a palavra calvário; hoje é salário 
(Carolina Maria de Jesus, 1960) 
 
 
A nomenclatura “população em situação de rua” (PSR/Pop Rua) pode apresentar 
diversas definições, que trazem consigo diferentes olhares sobre este grupo populacional. 
Podem abarcar pessoas que utilizam a rua para dormir, trabalho, uso de drogas (Silva, Cruz, 
&Vargas, 2015) e a chamada mendicância. Além disso, podem ser caracterizados como 
nômades ou andarilhos expulsos de locais pelo acúmulo de objetos no espaço da rua, uso de 
drogas, delírios ou pelo incômodo da sua presença aos moradores do bairro (Prates, Prates, & 
Machado, 2011). De acordo com a Política Nacional para a População em Situação de Rua 
(PNPR): 
considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui 
em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a 
inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as 
áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou 
permanente, bem como as unidades de acolhimentopara pernoite temporário ou como 
moradia provisória (Decreto nº 7.053, de 23 dezembro de 2009). 
A partir desta definição, é possível perceber que a população em situação de rua é 
caracterizada por sua diversidade para a PNPR. Por outro lado, ao caracterizá-la como apenas 
possuidora de carências, pode recair na visão da PSR como passiva diante da realidade. 
Autores como Abal e Gugelmin (2019), Mariño e Lizarrale (2019) e Medeiros (2019) 
chamam a atenção para a estigmatização dos espaços ocupados pela Pop Rua, comumente 
vistos como locais perigosos e violentos, ocupados por pessoas “imorais” que perderam o 
controle das suas vidas e com as quais é melhor evitar o contato. Outrossim, a demarcação 
destes territórios contribui para a invisibilidade dessa população que tende a ocupar cada vez 
mais espaços que passam despercebidos no cotidiano urbano, com o fim de evitar práticas 
26 
 
 
 
higienistas como intervenções com o uso de força e violência policial. A ocupação destes 
espaços tende a ampliar e naturalizar o não questionamento da sociedade sobre a produção da 
desigualdade social e sua importância no capitalismo. Estas relações serão aprofundadas ao 
longo deste capítulo. 
Nota-se que a PSR vive uma tensão entre invisibilização/hipervisibilização, no sentido 
de que o Estado se ausenta em prover políticas públicas para a superação da sua pauperização, 
mas se faz presente por meio de práticas de expulsão higienistas violentas e sistemáticas 
(Abal e Gugelmin, 2019). Neste contexto, por vezes, a PSR é encaminhada compulsoriamente 
para instituições totais, como presídios e hospitais psiquiátricos (Almeida et al., 2014). Desta 
forma, há uma construção social pautada ora na naturalização da população de rua, ora na sua 
representação como perigosa à sociedade. Ambas denotam a marginalização desta população 
e dificultam a garantia de acesso aos direitos básicos. 
Viver em situação de rua, por outro lado, não pode ser percebido como algo estático 
ou restrito ao espaço concreto da rua, pois ela também perpassa a vivência em espaços 
privados, familiares e institucionais (Mariño & Lizarralde, 2019). A territorialidade é 
construída a partir das trajetórias pessoais, principalmente a partir dos espaços que melhor 
garantirão a sobrevivência diante do contexto de precariedade. A “rua” congrega a dimensão 
espacial, temporal e relacional da vida. A temporalidade, por exemplo, é demarcada do acesso 
e permanência “em los “patios” entre lassiete de lamañana y las dos o tres de la tarde que se 
acabala jornada de acogida” (Mariño & Lizarralde, 2019, p. 22). Além disso, o viver em 
situação de rua pode ser compreendido como uma rede de lugares nos quais são construídas 
relações, nas palavras de Beto Franzisko3: 
 
3 Trecho do documentário “Conheço o meu lugar – a trajetória de Beto e outros Franciscos” (2015). Disponível 
em: https://youtu.be/pIuroeLherA. 
https://youtu.be/pIuroeLherA
27 
 
 
 
A rua, nos momentos mais difíceis, foi sempre meu abrigo, não teve outro lugar para eu ir. 
A rua foi o lugar que eu me encontrei. Eu não tenho a rua como a grande mazela. Minha 
vida na rua também tem meu lado liberto, tem meu lado livre. Não tenho a rua como a 
grande comoção negativa da minha vida, não… Minhas grandes alegrias são nas ruas. São 
nas ruas que eu vendo meu trabalho, são nas ruas que eu conheço pessoas, são nas ruas que 
eu namoro, são nas ruas que eu paquero, são nas ruas que eu conquisto coisas, são nas ruas 
que eu realizo projetos e hoje eu defendo um povo que está nas ruas. E o artista é isso 
mesmo [...]. Nós do movimento temos interesse em oxigenar isso. Que as pessoas saiam 
das ruas, mas aqueles que querem ficar, que fiquem com dignidade. 
Beto compôs a liderança nacional do Movimento Nacional da População de Rua 
(MNPR) e era coordenador estadual do Movimento de População de Rua no Rio Grande do 
Norte, no entanto faleceu precocemente em Natal no final de 2020. Sua fala evoca a 
diversidade de vivências que a rua pode congregar, não se restringindo ao lugar de violência e 
desamparo em que, na maioria das vezes, é colocada. É necessário compreender o estar em 
situação de rua como estado e não como processo é, também, um modo de reiterar a 
naturalização desta realidade permeada tanto pela “falta de acesso aos direitos sociais de 
habitação, saúde, educação, trabalho, entre outros, quanto à exposição e vitimização por 
violência psicológica, física, sexual, institucional, tortura e morte” (Medeiros, 2020, p. 52). 
São pessoas que, em sua grande maioria, não escolheram estar na rua, mas foram empurradas 
pelo chamado Processo de Rualização que “parte de uma concepção oposta à visão estática, 
na medida em que o reconhece como processo social, condição que vai se conformando a 
partir de múltiplos condicionantes, num continuum” (Prates et al., 2011, p.194). Desta forma, 
é preciso compreender que, embora o estar na rua seja ocasionado por diferentes fatores, estes 
possuem relação com as consequências do modo de produção capitalista (MPC), conforme 
discutiremos adiante. 
 
1.1 Apontamentos históricos e sociais sobre a população em situação de rua 
 
28 
 
 
 
Embora existam relatos de pessoas circulando pelo espaço da “rua”, por não 
possuírem moradia fixa, serem andarilhos e/ou em mendicância ao longo da história, é a partir 
das sociedades pré-industriais da Europa que esse fenômeno se coloca como manifestação da 
questão social (Nunes, 2019). Assim, durante a chamada acumulação primitiva, esta 
população passou a ser composta por pessoas que não tinham a cidade como seu local de 
referência social e moradia, quando os camponeses e camponesas foram desapropriados e 
expulsos de suas terras devido aos cercamentos (Silva, 2006). 
Os cercamentos correspondiam a um conjunto de estratégias adotadas por fazendeiros 
ricos e lordes ingleses, no século XVI, para eliminar o uso comum da terra e expandir suas 
propriedades. Através desta estratégia, os camponeses, além do direito ao acesso à terra, 
também perdiam sua moradia quando vilarejos inteiros foram demolidos e transformados em 
pastos. Federici (2017) registra que esta técnica ainda estava presente no século XVIII 
estendeu-se, nos tempos modernos, à África, Ásia e América Latina, com destaque para os 
ataques às terras ocupadas por seus povos originários, aumento da miséria e perda da 
solidariedade comunal. 
Sem as garantias e seguranças do feudalismo, a população camponesa foi forçada a 
migrar do campo para as cidades para vender a sua força de trabalho como forma de 
subsistência, tornando-se trabalhadora assalariada. Não foi uma transição tranquila, nem todos 
os camponeses e camponesas foram absorvidos pela indústria, pela própria incapacidade desta 
e pela dificuldade dessa população de se adaptar ao novo regime de trabalho (Silva, 2006). 
Como resultado, Engels (2010) afirmou que muitos passaram a utilizar, como estratégias de 
sobrevivência, a chamada “mendicância”, a “ladroagem” e a prostituição como formas de 
sobrevivência, além de estarem mais susceptíveis ao alcoolismo e suicídio. O autor ainda 
revela esta faceta mais desumana do capital: 
29 
 
 
 
O escravo, pelo menos, tinha assegurada sua existência graças ao interesse do seu 
senhor; o servo da gleba, pelo menos, dispunha de um pequeno pedaço de terra, do 
qual vivia; ambos tinham garantida, pelo menos, a sobrevivência pura e simples; mas 
o proletário está abandonado a si mesmo e, ao mesmo tempo, está impossibilitado de 
empregar sua força de modo a valer-se dela para viver. (Engels, 2010, p. 155) 
 
Sobre isto, Federici (2017) aponta que os camponeses passaram a associar o trabalho 
assalariado à escravidão. Assim, o crescimento do número de “vagabundos” e homens “sem 
senhor” era, antes de tudo, mostras da revolta dos camponeses em relação ao MPC. Muitos 
também se organizaram em lutas para defender suas terras da expropriação comparticipação 
ativa das mulheres na luta, posteriormente associadas à bruxaria. 
O proletariado, como os trabalhadores assalariados passam a ser chamados, viram 
cada vez mais suas possibilidades de sobrevivência reduzidas. Até mesmo, aqueles que se 
recusaram a aderir ao novo modo de produção, são chamados de vadios e tratados como 
criminosos. Especialmente no final do século XV e todo o século XVI, são instituídas, nos 
países europeus, legislações rígidas contra a vadiagem (Silva, 2006). O objetivo era forçar os 
trabalhadores a aceitarem empregos com baixos salários e o deslocamento geográfico em 
busca de melhores condições. É fundamental incluir a dimensão dos reflexos do processo de 
acumulação do capital que demanda a produção contínua de uma superpopulação relativa ou 
exército industrial de reserva, excedente à sua capacidade de absorção: 
Quando a produção capitalista se tornou organizada e independente não mais se limitou a 
manter a dissociação entre os trabalhadores e os meios de produção, mas passou a 
reproduzi-la em escala cada vez maior. A formação de uma superpopulação relativa passou 
a ser um processo contínuo, de acordo com as necessidades da acumulação do capital. 
Assim, o desenvolvimento do capitalismo quebra as resistências à criação de uma 
superpopulação relativa ou exército industrial de reserva, que mantém a oferta e a procura 
de trabalho e também os salários em sintonia com as necessidades de expansão do capital. 
Isso é a maior expressão do domínio do capitalista sobre o trabalhador. Portanto, a 
reprodução do fenômeno população em situação de rua ocorre no processo de acumulação 
do capital, no contexto da produção contínua de uma superpopulação relativa, excedente à 
capacidade de absorção pelo capitalismo. (Silva, 2009, p. 75) 
 
O exército industrial de reserva “pertence ao capital de maneira tão absoluta como se 
ele o tivesse criado por sua própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de 
30 
 
 
 
valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos 
limites do verdadeiro aumento populacional” (Marx, 2013, p. 462, 463). Logo, o exército de 
reserva é, assim, uma questão central para o capitalismo, embora seja necessário considerar as 
novas configurações do capitalismo atual que ainda não foram resolvidas. Destacamos, 
portanto, que as relações de mercado são construídas de modo que: “Por um lado, vemos 
pessoas altamente exploradas, com uma carga excessiva de sobretrabalho, e, do outro, um 
grupo de reserva, que pressiona o primeiro grupo a continuar no sobretrabalho” (Tiengo, 
2018, p.140). Esta relação intrínseca desmistifica a ideia de que o fenômeno PSR é 
consequência da preguiça e falta de esforço individual. 
Ao olharmos para o Brasil, vemos que a lógica da exploração inerente ao sistema 
capitalista está presente desde o início da colonização, especialmente através da escravização 
e “marginalização de determinadas parcelas da população, dentre elas a dos indígenas e 
africanos escravizados, apartados de seus territórios, famílias, culturas, e mesmo quando 
“livres” expostos à fome, doenças, criminalização, morte...” (Medeiros, 2020, p. 52). As leis 
abolicionistas no Brasil não foram acompanhadas de políticas reparadoras dos danos 
econômicos, políticos, sociais e psicológicos ocasionados pela escravização. Pelo contrário, a 
população negra foi privada de meios para sua subsistência e empurrada do campo para a 
cidade, onde a “rua” se colocou, para muitos, como único espaço possível para a 
sobrevivência através de trabalhos informais, mendicância e moradia. 
Ademais, o crescimento da população desempregada provocou a promulgação de leis 
no país com o intuito de reprimir a ocupação das ruas por este segmento. O artigo 59 do 
Decreto Lei 3.688/1941, ainda vigente, tipifica a vadiagem como crime e a define como 
“entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda 
que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante 
ocupação ilícita”. A penalidade imposta é de prisão que pode variar de quinze dias a três 
31 
 
 
 
meses e pode ser extinta antes, caso o condenado adquira superveniente de renda suficiente 
para sua subsistência. O Decreto, apesar de antigo e incongruente com os direitos garantidos 
na Constituição Federal de 1988, continua a ser aplicado. O mesmo decreto, no artigo 60, 
também tipificava o ato de mendigar “por ociosidade ou cupidez” como crime, e só foi 
revogado em 2009. Estas normativas indicam a normatização da criminalização da população 
pauperizada pela sua degradação diante da exploração do sistema capitalista. 
No século XX, situações como o êxodo rural e os grandes processos migratórios 
dentro do país levaram grandes contingentes populacionais, especialmente do Nordeste, para 
o Sudeste brasileiro em busca de empregos. Tal fato aumentou o número de pessoas 
ocupando as ruas. O mercado de trabalho não dava conta de empregar todos que chegavam, 
em sua maioria não alfabetizados e oriundos do trabalho agrícola. Com isso, sem a 
possibilidade de retornar para casa, seja por falta de recursos ou por não terem como 
sobreviver devido às secas, muitos permaneceram nas grandes cidades à mercê da 
mendicância e trabalhos informais que, em sua maioria, não possibilitavam melhoria na 
condição de vida. 
A essa população, hoje, agregam-se outros migrantes, “pessoas desempregadas, com 
problemas associados ao uso problemático de álcool e outras drogas, egressos do sistema 
penitenciário, com vínculos familiares fragilizados ou rompidos, dentre outras situações que 
levam muitos a fazerem das ruas um lugar de moradia e trabalho” (Nobre, Moreno, Amorin & 
Souza (2018). Ao ocupar o espaço das ruas, esta população modifica o cenário urbano e 
constrói suas próprias formas de habitar a cidade. A PSR, assim, é diferenciada também, pelos 
espaços geográficos que ocupa, pois há uma relação de mútua influência entre os territórios e 
as pessoas que é singular. Há, então, especificidades da Pop Rua tanto entre os países, como 
dentro de uma mesma cidade. 
32 
 
 
 
Como a expansão e retração da população em situação de rua é mediada pela oferta e 
condições de trabalho, consequentemente, é sensível às crises econômicas. A partir dos anos 
de 1970, ocorre, no mundo, a redução de postos de trabalho na indústria, o crescimento do 
trabalho precarizado e do pauperismo - o que, para Silva (2006), ajuda a explicar a expansão 
do fenômeno população em situação de rua. No Brasil, este processo é intensificado pela 
política econômica que promove a mudança do padrão de acumulação de agrário-exportador 
para o urbano-industrial, acrescido de outras mudanças nas relações trabalhistas introduzidas 
pela lógica neoliberal de intervenção estatal mínima para o social, e máxima para o capital. 
Ao estudar o fenômeno da PSR no Brasil nos anos de 1995 a 2005 (Silva, 2009) 
afirma que a quase totalidade desse contingente se encontra nesse profundo sedimento da 
superpopulação relativa: 
Pois, esta população se origina da forma flutuante, latente ou estagnada da superpopulação 
relativa, sendo que as suas características e perfil possibilitam associá-la ao lumpen-
proletariado (parte da classe trabalhadora que se encontra no pauperismo, é apta ao 
trabalho, mas não é absorvida pelo mercado) ou, no máximo, no exército industrial de 
reserva, na forma de superpopulação relativa estagnada, que sobrevive do trabalho 
precarizado. (Silva, 2009, p. 79) 
 
Na visão marxiana, a superpopulação relativa é característica do MPC e a ela todos os 
trabalhadores estão sujeitos. Ela foi dividida por Marx (2013) em três grandes grupos: 
flutuante, latente e estagnada. A primeira é caracterizada por trabalhadores que trabalham, 
mas que passam por momentos de não trabalho até que, eventualmente, conseguem se inserir 
no mercado de trabalho. Asuperpopulação latente é composta por migrantes da zona rural 
para a urbana, enquanto no terceiro grupo estão pessoas que, a despeito de estarem no exército 
ativo de trabalhadores, seus trabalhos não são regulares. 
Para Tiengo (2018),a multiplicidade de fatores do fenômeno da PSR e as diferentes 
expressões da “questão social” tornam inadequada sua classificação como 
lumpemproletariado, população flutuante, latente ou estagnada. A autora defende sua posição 
33 
 
 
 
a partir de três justificativas principais: estar em situação de rua é ocasionado por diferentes 
fatores que vão além de ter ou não um trabalho; há relatos de PSR que flutuam entre o 
trabalho formal e o desemprego, de modo que alternam a moradia nas ruas, com a saída dela; 
parte considerável da PSR trabalha em atividades informais. Em outras palavras, a PSR não 
está necessariamente fora do mercado de trabalho, embora o acesso ao mesmo seja mais 
precarizado do que para o restante da população. 
Além da ausência do trabalho, esse contexto é potencializado por outras determinações 
como: “o desentendimento com familiares, a perda de laços afetivos importantes por causa da 
morte de um parente ou cônjuge, a utilização de álcool e outras drogas, a migração, o 
sofrimento psíquico, dentre outros” (Tiengo, 2018, p. 143). As trajetórias de vida individuais 
são, assim, significativas na categorização da PSR que pode transitar entre flutuante, latente, 
estagnada ou lumpemproletariado. 
O fenômeno da PSR é cronificado no atual estado do capitalismo devido ao 
crescimento dos investimentos especulativos e a retração das políticas sociais públicas 
(Nunes, 2019). Ademais, há a redução dos direitos trabalhistas e os processos de precarização 
laboral, gentrificação e especulação imobiliária neoliberal (De Verteuil, May, & Von Mahs, 
2009) que limitam uma parcela cada vez maior da população de conseguir inserção no 
mercado de trabalho, além de consolidar o desemprego estrutural. A gentrificação pode ser 
caracterizada pela moradia e trânsito de grupos com maior poder de consumo que provocam o 
surgimento de novos comércios e bens de consumo na região. Já a especulação imobiliária, 
faz referência ao aumento dos preços dos aluguéis e, consequente pressão para a saída dos 
moradores e trabalhadores tradicionais de baixa renda, em geral, da região. 
A especulação imobiliária é definida pela compra de bens imóveis com a finalidade 
específica de vender ou alugar por um valor maior, após a passagem de determinado tempo. 
Ela restringe as possibilidades de a população pauperizada ter acesso à moradia. Para esta 
34 
 
 
 
população, as possibilidades de ascensão social tornam-se cada vez mais limitadas e 
retroalimenta-se pelas restrições impostas pelo MPC. 
 
1.2. A População em situação de rua e as políticas públicas 
 
O Golpe Parlamentar de 2016 impôs a agenda neoliberal de caráter radical no país e 
pretendeu deslegitimar as conquistas sociais, colocadas como privilégios que devem ser 
contidos, em favor do desenvolvimento econômico. Dentre as ações iniciais há “... a limitação 
dos gastos públicos em vinte anos; a desvinculação das pensões e aposentadorias das 
correções do salário-mínimo; o desmonte da CLT e a lei de regulamentação da terceirização 
irrestrita” (Castilho, Lemos & Gomes, 2017, p. 458). 
A edição de 2018 do Relatório Luz, desenvolvido por especialistas do Grupo de 
Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), apontou o agravamento 
da pobreza e das suas consequências entre os brasileiros: 
Os orçamentos de políticas e programas importantes para a sociedade e para o meio 
ambiente estão menores ou zerados, enquanto crescem o endividamento público, a pobreza 
e a fome. Os abismos sociais entre ricos e pobres se aprofundam, consolida-se a exclusão 
história baseada em raças, etnias, identidade de gênero e orientação sexual; continuam os 
ataques às Unidades de Conservação, à legislação ambiental (…)e o desmonte dos 
principais mecanismos de proteção social e ambiental, conquistados ao longo de décadas, 
avança. (Nilo & Pinto, 2018, p. 5) 
 
Além disso, o Relatório de 2020 observou um cenário ainda mais grave diante da 
pandemia ocasionada pelo COVID-19 e o distanciamento crescente do país da chamada 
Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável acordada com a Organização das Nações 
Unidas em todos os indicadores (GT Agenda 2030, 2020). Para Pastorini (2004), a “questão 
social” continua presente, pois, apesar de não se expressar da mesma forma em todos os 
países capitalistas, ela está intimamente articulada com o conjunto de problemas sociais 
relacionados ao MPC e à reprodução das relações capitalistas. Há uma tendência, ao mesmo 
https://gtagenda2030.org.br/
https://gtagenda2030.org.br/
35 
 
 
 
tempo, de naturalização da “questão social”, seja pelo sucateamento dos programas 
socioassistenciais focalizados no “combate à pobreza” ou através da criminalização da 
pobreza e extermínio da juventude periférica. 
A influência do neoconservadorismo contribui para legitimar a repressão dos 
trabalhadores associada à criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, de modo a 
servir de justificativa para a militarização da vida, principalmente nas periferias. Diante deste 
contexto, a PSR está “mais exposta à coerção e processos de estigmatização e discriminação, 
processos de higienização e interdição” (Nunes, 2019, p. 128). Situação que atinge 
particularmente às mulheres em razão da violência e discriminação de gênero. Em 
contrapartida, quando a PSR se contrapõe de forma consciente aos determinantes sociais do 
capitalismo, “pode ser um segmento populacional que enfrenta e faz movimento de resistência 
ao sistema simbolizado pela mercadoria e a propriedade privada, uma vez que, neste sentido, 
nada tem a perder” (Nunes, 2019, p. 128). Neste sentido, o MNPR tem se colocado como um 
importante instrumento no combate à desigualdade necessária à reprodução da sociedade 
capitalista. 
O MNPR foi fundado em 2004 como resposta à violência contra a Pop Rua, incluindo 
o “Massacre da Sé”, a chacina que vitimou entre sete e quinze pessoas que dormiam na praça 
da Sé, em São Paulo e desencadeou uma série de manifestações contra a violência e o 
processo de investigação. Na perspectiva de denúncia da violência praticada por membros do 
Estado que deveriam protegê-los: “Através de missas, vigílias, passeatas, homenagens e 
protestos de rua, buscou-se afirmar que o que aconteceu não foi uma exceção, mas sim uma 
regra, fato permanente e ordinário” (De Lucca, 2016, p. 10). Criando, assim, um espaço 
propício para a enunciação política da Pop Rua. 
Desde então, o movimento social tem se expandido por todo o Brasil através da 
articulação com diferentes organizações sociais, instituições, “moradores de rua” e “ex-
36 
 
 
 
moradores de rua”. A atuação do MNPR permite que a Pop Rua não se restrinja à condição de 
vítimas que lhes é colocada, para a união e fortalecimento coletivo na conquista de justiça, 
direitos e dignidade. Dentre as bandeiras de luta do MNPR estão o repúdio ao preconceito, à 
discriminação e às violações dos direitos humanos da PSR que têm sobre si o estigma da 
associação à criminalidade, incapacidade e preguiça. A atuação do movimento vai além da 
luta por moradia e trabalho para a Pop Rua, abrangendo a superação dos sentimentos de 
inferioridade ocasionados por sucessivas perdas como emprego, família, moradia e amigos, 
numa sociedade que mede o valor das pessoas por seu poder de consumo. 
Diante das desigualdades sociais no Brasil, a Pop Rua consegue se organizar para 
estabelecer estratégias de pressão política e mobilizar a consolidação dos seus direitos 
garantidos na Constituição Federal e na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), 
principalmente através do MNPR. Em 2005, ocorreu o I Encontro Nacional sobre População 
em Situação de Rua do qual participaramrepresentantes de diversos municípios, fóruns e 
entidades da população em situação de rua como o MNPR, organizações não governamentais 
e representantes do, então, Ministério de Desenvolvimento Social (MDS). Este encontro foi 
um marco histórico na defesa dos direitos desta população, visto que a partir dele foram 
lançadas as bases para a construção da Política Nacional sobre a População em Situação de 
Rua, a partir de estratégias e diretrizes nacionalmente articuladas. 
Ainda em 2005, foi aprovada a Lei nº 11.258 que dispõe sobre a criação de programas 
específicos de assistência social para as pessoas que vivem em situação de rua e alterou o 
parágrafo único do artigo 23 da Lei nº 8.742, Lei Orgânica da Assistência Social, no intuito de 
normatizar a criação de programas de amparo às pessoas que vivem em situação de rua. 
Ademias, é importante não perder de vista que o atendimento a esta população, apesar de estar 
incluído no âmbito da organização dos serviços de assistência social, não podem perder a 
37 
 
 
 
perspectiva de ação intersetorial, pois as causas da chegada e permanência das pessoas na rua 
são múltiplas. 
 O Decreto Presidencial de 25 de outubro de 20064 instituiu o Grupo de Trabalho 
Interministerial, coordenado pelo MDS, com o objetivo de elaborar estudos e ofertar 
propostas de políticas públicas para a inclusão social da população em situação de rua. Além 
do MDS, foram envolvidos os Ministérios da Saúde, Educação, Trabalho e Emprego, 
Cidades, Cultura e Secretaria Nacional de Direitos Humanos, bem como representantes do 
MNPR, da Pastoral do Povo da Rua e do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de 
Assistência Social (MDS, 2011). Como resultado, após a realização da Pesquisa Nacional 
sobre a População em Situação de Rua (PNPSR), de seminários em várias cidades e de 
consulta pública em âmbito nacional, foi publicada, em 2009, a Política Nacional para a 
População em Situação de Rua (PNPR). São princípios da PNPR, além da igualdade e 
equidade: 
I - respeito à dignidade da pessoa humana; II - direito à convivência familiar e 
comunitária; III - valorização e respeito à vida e à cidadania; IV - atendimento humanizado 
e universalizado; e V - respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, 
nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com 
deficiência. (Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009) 
 A PNPR, assim, parte da perspectiva de assegurar o acesso a direitos à população em 
situação de rua através da integralidade das políticas públicas de saúde, educação, previdência 
social, de assistência social, trabalho e renda, habitação, moradia, cultura, esporte, lazer e 
segurança alimentar e nutricional. Para tanto, também institui o Comitê Intersetorial de 
Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População de Rua5(CIAMP – 
 
4
 Revogado integralmente pelo Decreto nº 10.087/2019. 
5O CIAMP-Rua, assim como outros colegiados da administração pública federal foi extinto pelo decreto nº 
9.759, de 11 de abril de 2019 seguindo agenda antidemocrática do atual governo. 
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10087.htm#art1
38 
 
 
 
Rua), desta forma, busca promover uma gestão integrada corresponsável pela atenção integral 
a esses cidadãos. 
Sobretudo, é objetivo da PNPR que sejam criados Comitês Gestores Intersetoriais 
locais para elaborar, acompanhar e o monitorar os Planos de Ação para a População em 
Situação de Rua. Estes Comitês devem ser fomentados pelo Gestor local da Assistência 
Social, além disso, precisam contemplar a pactuação de responsabilidades e fluxos de 
articulação intersetorial institucionalizados para assegurar a atenção integral às pessoas em 
situação de rua. Outrossim, a PNPR ainda tem o desafio de concretizar: o atendimento 
qualificado através da formação e capacitação permanente de profissionais e gestores; o 
desenvolvimento de pesquisas, produção, sistematização e disseminação de dados e 
indicadores sociais, econômicos e culturais sobre esta população específica; o número oficial 
da população em situação de rua; a implantação de Centros de Defesa dos Direitos Humanos 
da População em situação de rua; o acesso desta população aos benefícios previdenciários e 
assistenciais e aos programas de transferência de renda; a implantação de Centros de 
Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros Pop) no âmbito da 
PNAS. 
Observa-se que entre agosto de 2007 a março de 2008 o então MDS realizou pela 
primeira vez a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (MDS, 2008). Foram 
pesquisados 71 municípios considerados centros urbanos, com mais de 300.000 habitantes 
sendo que, destes, 23 eram capitais. Os dados apontaram a existência de 50 mil adultos em 
situação de rua. Em uma estimativa da população em situação de rua mais recente realizada 
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 1.924 municípios, encontrou-se 
que a PSR cresceu 140% entre setembro de 2012 a março de 2020, chegando a quase 222 mil 
(Natalino, 2020). 
39 
 
 
 
A PNPSR apontou que a população em situação de rua é predominantemente 
masculina, 82% e, pode ser considerada jovem, pois 53% possuem entre 25 e 44 anos. Além 
disso, 67% identificaram-se como negros. A maior parte desta população é composta por 
trabalhadores, visto que 70,9% dos entrevistados afirmaram que exercem alguma atividade 
remunerada. Apesar disto, os níveis de renda são baixos, quando comparados ao salário-
mínimo, 52,6% recebem entre R$20,00 e R$80,00 semanais (MDS, 2008). 
A pesquisa relatou que os motivos de estarem em situação de rua foram condicionados 
ao alcoolismo ou uso de drogas (35,5%), desemprego (29,8%), problemas com familiares 
(29,1%), perda da moradia (20,4%), e separação/decepção amorosa (16,1%), contudo, estes 
dados podem estar correlacionados entre si ou um fator ser consequência do outro. Sobre os 
vínculos familiares é importante citar que 51,9% dos entrevistados possuíam algum parente 
residindo na cidade onde se encontravam, porém, 38,9% destes não mantinham contato com 
esses parentes, além disso, acerca do histórico de internação em instituições, 27% passaram 
por abrigos institucionais, 15% por orfanatos/internatos e 12,2% pela Fundação para o Bem-
Estar do Menor (FEBEM). Dados que sinalizam a fragilidade dos vínculos familiares ainda na 
infância o que não impede que novas redes sociais sejam construídas na vivência na rua 
(MDS, 2008). 
Além disso, o número de mulheres que vivem em situação de rua é apontado como 
substancialmente inferior ao de homens, porém esta população vem crescendo e está sujeita a 
maior vulnerabilidade devido a sua condição de gênero. Sobre os motivos que levam as 
mulheres para as ruas, podem ser citados o desemprego, as condições financeiras precárias, o 
uso de drogas, a separação conjugal, prisão e a busca pela liberdade (Costa et al., 2015). Sobre 
o uso de substâncias entorpecentes, é importante desmistificar que todas as PSR são usuárias 
de drogas e, por este motivo, permanecem na rua. Na PNPSR, observou-se que as principais 
razões indicadas pelas mulheres para o ingresso nas ruas foram a perda da moradia (22,56%) 
40 
 
 
 
e problemas familiares (21,92%), seguidos do alcoolismo e drogadição (11,68%) e 8,8% 
citaram o desemprego (Quiroga & Novo, 2009). Estes dados apontam para a falta de recursos 
econômicos para a sua sobrevivência e a fragilização ou rompimentos dos vínculos familiares 
que lhes forneceriam apoio diante das adversidades da vida, questões aprofundadas no 
segundo capítulo. 
Ainda sobre os motivos que levam as pessoas às ruas, em revisão da literatura, Silva 
(2006) verificou a presença de fatores estruturais, como a ausência de moradia, trabalho e 
renda, associadas a mudanças econômicas e fatores ligados a histórias de vidas marcadas por 
rompimentos dosvínculos familiares, doenças mentais, consumo recorrente de álcool e outras 
drogas, além de perdas dos componentes da família e dos bens. Foram encontrados, ainda, 
dados referentes a desastres naturais como inundações. Destas situações, as mais recorrentes 
fazem referência às rupturas dos vínculos familiares e comunitários que podem estar 
vinculadas à estrutura da sociedade capitalista, que atinge de modo particular as mulheres, 
conforme será discutido adiante. 
Costa et al. (2015) afirmam a existência de famílias que estão na terceira ou quarta 
geração nas ruas. As políticas públicas pouco chegam a esta população, a começar pela 
ausência de documentos de identificação (24,8%) e do exercício da cidadania através do voto 
(61,6%). Logo, contribuem para isto, os altos índices de discriminações sofridas pela 
população em situação de rua, como ser impedida de entrar em locais públicos, como o 
transporte coletivo, os serviços de saúde, dentre outros (MDS, 2008). Este contexto prioriza o 
atendimento a esta população através de práticas assistencialistas, repressivas ou violentas. 
 Almeida et al. (2014) salientam que, apesar da PNPR, a maioria das práticas exercidas 
pelos equipamentos de saúde e assistência social para as pessoas em situação de rua são, 
ainda, isoladas, assistencialistas e focalizadas. Dessa forma, cronificam a situação de rua ao 
impor o saber técnico e os valores dos profissionais, calando a voz da população. Além disso, 
41 
 
 
 
estes equipamentos não conseguem retirar as pessoas das ruas, pois não oferecem 
possibilidades reais de transformação de vidas. Em contrapartida, cresce a naturalização e a 
violência relacionada a esta população. Como exemplo, as autoras citam que entre 2012 e 
2013, de acordo com a mídia local, ocorreram 30 casos de homicídios sofridos pela população 
em situação de rua no Rio Grande do Norte. Dessarte, encontra-se a grave situação de não 
ocorrer sequer a abertura de inquéritos para a apuração da maior parte desses casos, sob a 
justificativa de que os familiares das vítimas precisariam solicitar sua abertura. Este contexto 
revela em si a fragilidade e invisibilidade desta população, além do descompasso das políticas 
de segurança pública com as especificidades da mesma. 
No Rio Grande do Norte, a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, 
também foi realizada em Natal e encontrou 223 adultos vivendo em situação de rua. Os dados 
do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal apontam 733 pessoas em 
situação de rua cadastradas em março de 2021 no município, agregando mais da metade 
(55,11%) da PSR do RN (Dias, 2021). Este número pode ser bem maior considerando o 
número reduzido de serviços socioassistenciais disponíveis à Pop Rua, de modo que 
considerável parte desta população pode não estar vinculada aos serviços. Ademais, o Centro 
Pop atendeu 1.588 pessoas em 2019, destas, 147 eram mulheres, de acordo com dados 
fornecidos por e-mail pela Coordenação Estadual de Gestão do SUAS através da Plataforma 
Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação do Governo Federal. De acordo com a 
Secretaria Municipal de Habitação, Regularização Fundiária e Projetos Estruturantes, o 
número de pessoas que “tinham a rua como moradia” entre março e dezembro de 2020, saltou 
42 
 
 
 
de 400 para três mil, um crescimento de 650%, impulsionado pela falta de condições 
econômicas de arcar com os aluguéis6. 
Portanto, como o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não 
abarca a população em situação de rua, há o projeto de Lei n° 236/2017 em trâmite na Câmara 
Municipal de Natal, que determina a realização de um estudo sobre a população em situação 
de rua na capital. A ausência de dados concretos sobre o perfil socioeconômico desta 
população dificulta ainda mais a elaboração e exercício de políticas públicas voltadas ao 
segmento7. Apenas em 2018 foi instituída a Política Estadual para a População em Situação 
de Rua, através da Lei nº 10.333, regulamentado pelo Decreto nº 30.119, de 2020. 
 De acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (Resolução nº 
109, de 11 de novembro de 2009), os programas com oferta de atenção especializada para as 
pessoas em situação de rua da Média Complexidade são o Serviço Especializado em 
Abordagem Social e o Serviço Especializado para a Pessoa em Situação de Rua, ofertado no 
Centro Pop. Na Alta Complexidade, há o Serviço de Acolhimento Institucional para 
indivíduos e famílias em situação de rua e o Serviço de Acolhimento em República para 
pessoas em processo de saída das ruas. Apesar das especificidades, os serviços devem 
funcionar em estreitar articulação com os demais dispositivos da rede socioassistencial. 
Isto posto, equipamentos sociais específicos para a população em situação de rua no 
Rio Grande do Norte, são recentes, criados a partir de 2011, e estão restritos a municípios da 
Região Metropolitana de Natal, a capital, e Parnamirim. No período da coleta de dados (2018 
 
6Reportagem disponível em: https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/12/03/numero-de-
pessoas-que-moram-nas-ruas-de-natal-cresce-650percent-durante-a-pandemia-diz-prefeitura.ghtml 
 
7Importante destacar que está em curso o projeto “Promoção dos direitos da população em situação de rua no 
Rio Grande do Norte: diagnóstico e intervenção nos caminhos de inovação no Sistema Único de Assistência 
social” (Processo nº 02010042.001727/2020-02) sob responsabilidade do governo estadual que inclui o objetivo 
de mapear, contar diagnosticar a situação da população em situação de rua. 
https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/12/03/numero-de-pessoas-que-moram-nas-ruas-de-natal-cresce-650percent-durante-a-pandemia-diz-prefeitura.ghtml
https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/12/03/numero-de-pessoas-que-moram-nas-ruas-de-natal-cresce-650percent-durante-a-pandemia-diz-prefeitura.ghtml
43 
 
 
 
e 2019), havia apenas o serviço de acolhimento noturno de adultos – conhecidos por 
Albergues – e um Centro Pop, executados pelas respectivas secretarias municipais de 
assistência social. Além disso, não há Serviço de Acolhimento disponíveis para acolher 
famílias em situação de rua, e os albergues são restritos aos adultos, assim, o próprio serviço 
que deveria proteger, termina por provocar novas rupturas de vínculos, como será discutido 
adiante. Com o início da pandemia de Covid-19, três abrigos provisórios, que funcionam 24 
horas, foram disponibilizados nos espaços físicos de escolas municipais. No entanto, após a 
flexibilização do distanciamento social no final de 2020, a prefeitura da capital decidiu fechá-
los mantendo apenas um em funcionamento. O MNPR/RN, então, posicionou-se por 
alternativas de abrigo para as/os usuárias/os e a gestão municipal assumiu o compromisso de 
garantir três abrigos 24 horas, promessa que não se manteve, visto que, ainda no primeiro 
semestre de 2021, apenas um deles continuava em ativo funcionamento. 
Em Natal-RN, existem ainda três equipes do Consultório na Rua (CnaR), dispositivo 
público municipal que integra a rede de atenção básica e é regido pela Portaria nº 122, de 25 
de janeiro de 2011 do Ministério da Saúde. Estes serviços têm a finalidade de desenvolver 
ações de Atenção Básica, através dos fundamentos e diretrizes da Política Nacional de 
Atenção Básica. As equipes do CnaR são multiprofissionais e suas atividades são dirigidas às 
necessidades de saúde da população em situação de rua. Para tanto, realizam a busca ativa e o 
cuidado aos usuários de álcool, crack e outras drogas in loco, de forma itinerante e 
referenciadas às Unidades Básicas de Saúde (UBS). Caso seja necessário, podem se articular 
os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços de Urgência e Emergência e outros 
pontos de atenção que sejam necessários. Além disso, seu horário de funcionamento deverá se 
adequar às demandas

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