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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia MATERNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA E A SUSPENSÃO OU PERDA DO PODER FAMILIAR Tabita Aija Silva Moreira Natal/RN 2021 2 Tabita Aija Silva Moreira MATERNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA E A SUSPENSÃO OU PERDA DO PODER FAMILIAR Tese elaborada sob orientação da professora Dra. Ilana Lemos de Paiva, coorientação da professora Dra Antonia Picornell-Lucas e apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Psicologia. Natal/RN 2021 Moreira, Tabita Aija Silva. Maternidade em situação de rua e a suspensão ou perda do poder familiar / Tabita Aija Silva Moreira. - Natal, 2021. 183f.: il. color. Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2021. Orientadora: Profa. Dra. Ilana Lemos de Paiva. Coorientadora: Profa. Dra. Antonia Picornell-Lucas. 1. Acolhimento institucional - Tese. 2. Situação de rua - Tese. 3. Reinserção familiar - Tese. 4. Gênero - Tese. 5. Gravidez - Tese. I. Paiva, Ilana Lemos de. II. Picornell-Lucas, Antonia. III. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 4 Campus Universitário BR-101 - Lagoa Nova - Natal/RN - CEP 59078-900 Telefax: • Universidade Federal do Rio Grande do Norte PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ATA Nº 81 Aos quatro dias do mês de outubro do ano de dois mil e vinte e um, às dez horas, por meio virtual, foi instalada a Comissão Examinadora responsável pela avaliação da Tese de Doutorado intitulada: MATERNIDADE EM SITUAÇÃO DE RUA E A SUSPENSÃO OU PERDA DO PODER FAMILIAR, apresentada pela doutoranda TABITA AIJA SILVA MOREIRA ao Programa de Pós-graduação em Psicologia, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora em Psicologia. A Comissão Examinadora foi presidida pela professora orientadora ILANA LEMOS DE PAIVA e contou com a participação da professora doutora MARIA TERESA LISBOA NOBRE PEREIRA, na qualidade de examinadora interna, bem como dos professores doutores MARCOS ANTONIO BARBIERI GONÇALVES, BEATRIZ BORGES BRAMBILLA e RAFAEL NICOLAU CARVALHO, na qualidade de examinadores externos à instituição. A sessão teve a duração de --- horas e a doutoranda foi considerada: (X) aprovada ( ) reprovada Dra. BEATRIZ BORGES BRAMBILLA, PUC - SP Examinadora Externa à Instituição Dr. MARCOS ANTONIO BARBIERI GONÇALVES Examinador Externo à Instituição Dr. RAFAEL NICOLAU CARVALHO, UFPB Examinador Externo à Instituição Dra. MARIA TERESA LISBOA NOBRE PEREIRA, UFRN Examinadora Interna Dra. ILANA LEMOS DE PAIVA, UFRN Presidente TABITA AIJA SILVA MOREIRA Doutoranda 5 A nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. CONCEIÇÃO EVARISTO 6 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 7 Agradecimentos Agradeço a maravilhosa Ruah, mover do Criador na minha vida que me guia. Aos meus pais, irmãos e a todes amigues, que fazem a minha família, por me acolherem, apoiarem, amarem e cuidarem de mim. A Dani que chamou minha atenção para a realidade das gestantes e mães em situação de rua em Natal-RN e muito contribuiu no percurso dessa pesquisa. A Ilana por topar expandir os horizontes de pesquisa do OBIJUV/UFRN junto comigo, pelo apoio e confiança e, principalmente. Ao OBIJUV/UFRN lugar de pessoas comprometidas com a luta pelos direitos infantojuvenis com quem tanto aprendo. A Amanda que assumiu com maestria a função de ser minha tutora. Gratidão pelas leituras, releituras e pelas palavras de ânimo. A Antonia, querida coorientadora, que me recebeu com tanto carinho na Universidad de Salamanca em tempos tão difíceis, mas muito frutíferos. Às professoras e professores que compõem a banca, pela generosidade em compartilhar seus saberes, práticas, pelo afeto e pelo sentimento de que não estou sozinha nas minhas reflexões. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela bolsa que permitiu a realização desta pesquisa e aos que fazem o PPGPSI/UFRN, em especial à secretária. Às professoras Débora Diniz e Rosana Pinheiro-Machado por articularem formas valiosas e gratuitas de acesso à vida e escrita acadêmica. As participantes da pesquisa a quem agradeço pelo tempo dedicado, por revisitarem situações de angústia e pela confiança depositada neste trabalho. É a vocês que eu dedico este trabalho na fé de que amanhã vai ser outro dia! 8 Sumário Lista de siglas ........................................................................................................ vi Introdução .............................................................................................................. 13 1. A população em situação de rua: contextos e políticas públicas ..................... 22 1.1 Apontamentos históricos e sociais sobre a população em situação de rua. 24 1.2 A população em situação de rua e as políticas públicas ............................ 30 2. Ser mulher e mãe em situação de rua .............................................................. 42 2.1 Trabalho reprodutivo e maternidade .......................................................... 46 2.2 Mulheres em situação de rua e maternidade................................................ 51 3. Estratégias de investigação…………………………………………...……… 67 4. Gestar na rua: “Ela sabe que se fizer diferente perde o filho” ……...……….. 73 4.1 Pré-natal e puerpério: "Foi o filho que eu pedi a Deus!"………………... 75 4.2 Redes de apoio: “Querem obrigar a gente a ser uma coisa que não somos”…………………………………………………………………………… 87 4.3 Criminalização materna: “Se eu soubesse tinha parido na rua!” ............. 99 5. Maternidade e meritocracia: “É pobre: pra que pobre tem filho?” ................. 108 5.1 Acesso à justiça: “Ela é adulta, nossa responsabilidade maior é o bebê” 108 5.2 O discurso da adoção: “Eu mando oficial vir agora? A gente espera? A gente fala?”…………………………………………………………………………… 119 5.3 Reinserção familiar: “A gente foi fazendo tudo que eles queriam” ……. 132 Considerações Finais ............................................................................................. 140 Referências ............................................................................................................ 140 Apêndices 150 9 Lista de Siglas 2ª VIJ/Natal 2ª Vara da Infância e da Juventude de Natal CAPS Centro de Atenção Psicossocial Centro Pop Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua CEPAL Comissão Econômica para América Latina e Caribe CEIJ Coordenadoria da Infância e Juventude do TJRN CF Constituição Federal CIAMP - Rua Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da PolíticaNacional para a População de Rua CLT Consolidação das Leis do Trabalho CnaR Consultório na Rua CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CRAS Centro de Referência de Assistência Social CRDHMD Centro de Referência em Direitos Humanos Marcos Dionísio CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social CRP Conselho Regional de Psicologia ECA Estatuto da Criança e do Adolescente FEBEM Fundação para o Bem Estar do Menor HIV Vírus da Imunodeficiência Humana HJPB Hospital Dr. José Pedro Bezerra IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IST Infecção Sexualmente Transmissível MDS Ministério de Desenvolvimento Social MEJC Maternidade Escola Januário Cicco MMDA Maternidade Municipal Dr. Araken Irerê Pinto MNPR Movimento Nacional da População de Rua 10 MPC Modo de Produção Capitalista MSR Mulher/es em Situação de Rua NUDECA Núcleo Especializado no Atendimento à Crianças e Adolescentes OBIJUV Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência OXFAM Comitê de Oxford para Alívio da Fome PIA Plano Individual de Atendimento PNAS Política Nacional de Assistência Social PNPR Política Nacional para a População em Situação de Rua PNPSR Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua Pop Rua/PSR População em Situação de Rua RN Rio Grande do Norte SAMU Serviço de Atendimento Móvel de Urgência SEMTAS Secretaria de Trabalho e Assistência Social SGDCA Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes SInC Superior Interesse da Criança SUS Sistema Único de Saúde TAGV Termo de Autorização para Gravação de Voz TCLE Termos de Consentimento Livre e Esclarecido TJRN Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte TR Técnico/a de Referência UBS Unidade Básica de Saúde UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte 11 Resumo O Brasil possui um histórico de separação das famílias que remonta aos tempos coloniais e que tem se refinado ao longo do tempo através da institucionalização das crianças das famílias indígenas, negras e pobres. Diante dessa realidade, esta pesquisa pretende analisar a suspensão ou perda do poder familiar de mulheres em situação de rua na cidade de Natal-RN. Trata-se de uma investigação cuja metodologia foi composta por entrevistas semiestruturadas a partir de quatro grupos distintos que incluíram representantes de onze serviços socioassistenciais de atendimento em saúde, do sistema de justiça, além de dois casais em situação de rua. Os dados obtidos foram analisados e organizados em três temas baseados na análise de conteúdo temática, são eles: (a) gestações em situação de rua; (b) suspenção e/ou destituição do poder familiar; (c) maternidade e meritocracia. Os resultados apontam a ausência do Estado em prover alternativas concretas de moradia e renda para as mães permanecerem com seus filhos; a importância das redes de solidariedade e do apoio familiar como formas de resistência à separação de seus filhos; a criminalização das mulheres com base no moralismo e no uso de drogas. Nota-se que as mães e gestantes em situação de rua estão em constante risco de sequestro e roubo das suas crianças pelo Estado. De modo que é necessário desnaturalizar a concepção de que as mulheres pobres são inaptas para o cuidado das suas filhas e filhos através de ações intersetoriais alinhadas com as necessidades específicas desta população. Palavras-chave: acolhimento institucional; situação de rua; reinserção familiar; gênero; gravidez. 12 Abstract Brazilian history of child removals from families dates to colonial times. This approach was refined over time through the institutionalization of children from indigenous, black, and impoverished families. Therefore, this study analyzes the suspension or dismissal of custody of children of homeless women in Natal/RN. The method consisted of semi-structured interviews with representatives of 11 institutions, from four distinct groups that included representatives of social assistance services, health care services, the justice system, and two homeless couples. The data obtained were analyzed and organized into three themes based on thematic content analysis: (a) homeless pregnancies; (b) forcible separation and/or termination of parental rights; (c) motherhood and meritocracy. The results point to the absence of the State in providing concrete housing and income alternatives for mothers to remain with their children; the importance of solidarity networks and family support as forms of resistance to the separation of their children; the criminalization of women based on moralism and the use of drugs that. It is noted that homeless mothers and pregnant women are at constant risk of abduction and theft of their children by the State. It is necessary to denaturalize the conception that poor women are unfit to care for their daughters and sons through intersectoral actions aligned with the specific needs of this population. Keywords: foster care; homeless; return home; gender; pregnancy. 13 Resumen La historia de las separaciones familiares en Brasil se remonta a la época colonial y, con el tiempo, ha adquirido una mejoría a través de la institucionalización de los niños y niñas de familias indígenas, negras y pobres. Frente a esta realidad, el presente estudio pretende analizar la pérdida del poder familiar de las mujeres sin hogar de Natal/RN. La metodología cualitativa utilizada se fundamentó en la técnica de las entrevistas semiestructuradas. Se realizaron entrevistas a cuatro grupos distintos: representantes de los servicios de asistencia social, de la sanidad, de la justicia y dos parejas en situación de sin hogar. Sobre los datos obtenidos se realizó un análisis de contenido, previamente organizados en tres temáticas: (a) embarazos en situación de calle; (b) guarda y/o retirada de la patria potestad de los menores de edad; (c) maternidad y meritocracia. Los resultados alcanzados señalan la ausencia del Estado en la provisión de alternativas concretas a la vivienda y a los ingresos para que las madres puedan permanecer con sus hijos e hijas; la importancia de las redes de solidaridad y el apoyo familiar como formas de resistencia ante la separación de los hijos e hijas de su familia; la criminalización de las mujeres por la moralidad y el consumo de drogas. Se observa que tanto las madres como las mujeres embarazadas en situación de calle están expuestas al riesgo constante de secuestro y robo de sus hijos por parte del Estado. Por ello, se hace necesario desnaturalizar la creencia de que las mujeres pobres no tienen capacidades para el cuidado de sus hijos e hijas, a través de acciones intersectoriales alineadas con los derechos y las necesidades específicas de este grupo de población. Palabras-clave: acogimiento institucional/residencial; sinhogarismo; reinserción familiar; género; embarazo. 14 Introdução Um juiz McClellan em Lansing teve autoridade sobre mim e todos os meus irmãos e irmãs. Éramos 'crianças', tutelados pelo Estado; ele tinha a última palavra sobre nós. Um homem branco cuidando dos filhos de um homem negro! Nada mais do que uma escravidão legal e moderna - por mais bem-intencionada que fosse. (Malcom X autobiografia, 1965) Há incontáveis registros de famílias que foram violentamente separadas no processo de venda para os escravagistas na história brasileira. Por conseguinte, mães escravizadas foram privadas do convívio com seus bebês por estarem presas a atividades de amas-de-leite, cultivose outros serviços. Após o fim da escravidão, mesmo com a aquisição da liberdade, não era sinônimo de reagrupamento familiar. Collins (2010) relata a história da africana Margarida que, após comprar sua alforria, continuou na casa dos “ex-senhores”, onde teve duas crianças livres. Quando conseguiu viver dos seus ganhos e residir em outro lugar, iniciou uma disputa jurídica para reaver a guarda dos filhos, sua antiga ‘senhora’ ganhou a tutela de seus filhos sob os argumentos “da incapacidade das mulheres africanas e descendentes exercerem apropriadamente a maternidade, eivados de preconceitos com respeito às mulheres negras africanas, descritas como ébrias, prostitutas, e de costumes bárbaros, representando uma dupla ameaça ao bem-estar dos filhos e da nação” (Telles, 2018, p. 40). A filósofa socialista estadunidense, Angela Davis, explica que diante da ameaça à produção agrícola, devido à abolição do tráfico internacional de mão de obra escrava, a reprodução natural se tornou método alternativo para repor e ampliar a população de escravizadas e escravizados nas colônias da América do Norte. Não há de se confundir, entretanto, com uma valorização da maternidade das mulheres negras, elas continuaram sendo 15 exploradas em outras áreas produtivas, seja na agricultura e/ou na indústria: “aos olhos de seus proprietários, elas não eram realmente mães; eram apenas instrumentos que garantiam a ampliação da força de trabalho escrava. Elas eram “reprodutoras” – animais cujo valor monetário podia ser calculado” (Davis, 2016, p. 25). De maneira análoga, No Brasil também ocorreu o direcionamento do interesse pela capacidade reprodutiva das mulheres escravizadas, principalmente após o fim do tráfico africano transatlântico e da promulgação da Lei do Ventre Livre em 1871. Esta última, concedia aos ‘proprietários’ o direito à tutela e uso da força de trabalho das crianças até os oito anos, quando em geral, optavam por sua exploração em serviços obrigatórios até os 21 anos, em lugar de serem indenizados e encaminharem as crianças a instituições do Estado (Telles, 2008). Além disso, o incremento da requisição de amas de leite e trabalhadoras domésticas de aluguel reforçou o tráfico interno de jovens escravizadas advindas das províncias do Norte, Nordeste e Sul do país. Forçadas a cruzar o país a pé e separadas das filhas e filhos maiores e de outros membros das suas famílias (Slenes, 2005). Em 1981 um grupo de jangadeiros do Ceará iniciou uma das maiores revoltas antiescravagistas do país, movidos pela separação dos seus familiares e pelo espírito abolicionista, liderados por Chico da Matilde (sua mãe), posteriormente conhecido como ‘Dragão do Mar’. Os jangadeiros se recusaram a fazer a travessia de embarque das pessoas escravizadas do porto de Fortaleza aos navios que os levariam ao sul do país. Essa negativa paralisou o tráfico na região que, em 1884, foi a primeira província brasileira a abolir a escravidão, construindo o caminho para a assinatura da Lei Áurea quatro anos depois (Rogero, 2021, 46m). A lei, entretanto, não foi suficiente para acabar com a escravização e formas de trabalho análogas a ela no país. Em parte, devido aos traços raciais não ofuscarem o status anterior de pessoa escravizada, contribuindo para a continuidade da hierarquia racial: “Nesse 16 racismo, o corpo escravizado desaparece, mas o corpo negro permanece, transmutando-se em sinônimo de gente pobre, sinônimo de criminalidade e um ponto de inflamação nas políticas públicas” (Morrison, 2019, p. 8). Diante disso observa-se que para as mulheres negras e periféricas planejar e usufruir da gestação, e ter recursos suficientes para exercer a maternidade, ainda é uma realidade distante. Ademais, seus filhos seriam alvos constantes da violência que atinge as periferias. Damasceno (2020), em seu estudo sobre as experiências abortivas entre mulheres negras de Salvador-BA, observou que por trás da realização do aborto havia histórias de vida marcadas pelo desemprego, violência sexual, abandono do parceiro - ou morte deste - ocasionada por ações violentas da polícia militar. Por trás dos altos números de mulheres latinas e negras que apelam ao aborto há histórias que falam mais “sobre as condições sociais miseráveis que as levam a desistir de trazer novas vidas ao mundo” (Davis, 2016, p. 199), do que sobre o desejo de liberdade da gestação. As trajetórias reprodutivas de mulheres negras em situação de rua apontam que a perspectiva de uma gravidez saudável é totalmente negada a estas mulheres, pois todos os dias seus direitos são violados quando, para além da violência de terem que estar nas ruas, chegam a ser expulsas destes ambientes, arrastadas pelos cabelos, dentre outras violências causadas pela polícia militar, mesmo estando grávidas. Além disso, ao darem à luz, o mesmo Estado que negligenciou seus direitos, toma suas crianças – de modo totalmente arbitrário - sob a justificativa da proteção infantil (Damasceno, 2020). Desse modo, a possibilidade de uma mulher conseguir ter um filho/filha, mesmo em contexto de total vulnerabilidade social, representa resistência diante de um Estado imbuído em eliminar pessoas negras e empobrecidas antes mesmo de nascerem. Há, assim, uma política sistêmica de produção da pobreza que não pode ser minada somente por programas de transferência de renda, pois demanda a redução das desigualdades 17 a partir do enfrentamento as suas causas. Observa-se, entretanto, o aumento da desigualdade social e ampliação da dificuldade de acesso de grande parcela da população a direitos básicos, como o de acesso à alimentação, moradia e educação (Guzzo, 2016). Dados da OXFAM Brasil (2017) apontam que, nas regiões consideradas em desenvolvimento, 75% das mulheres trabalham sem contrato formal e não possuem acesso a direitos essenciais como à seguridade social. A pobreza interfere nos recursos disponíveis para a sobrevivência das mulheres e suas famílias, de modo que, na ausência de políticas públicas adequadas, estas situações tendem a piorar e reverberar suas consequências nas próximas gerações. Isso ocorre devido ao fato de que muitas destas famílias são chefiadas por mulheres, ou seja, quando a pobreza atinge as mulheres, por conseguinte, também atinge às crianças e adolescentes. O Estado, além de não garantir plenamente os direitos sociais dessas mulheres, transfere esta responsabilidade para as famílias, numa atitude que termina por fragilizá-las ainda mais. Neste cenário, Silva e Teixeira (2015) questionam a real intenção do Estado ao centralizar as políticas sociais na esfera da família: seria de promover proteção, controle ou a culpabilização destas? No cotidiano, as famílias são responsabilizadas pelo sucesso ou fracasso dos seus componentes, principalmente no que concerne às crianças e aos adolescentes que, por seu processo de desenvolvimento, demandam maior cuidado e proteção. Diante disso, uma visão descontextualizada das famílias provoca interpretações individualizantes que mascaram a pauperização provocada pelo modo de produção capitalista e difundem concepções errôneas sobre os pobres, como a culpabilização pelos seus fracassos, o desenvolvimento de discursos sobre sua (in)competência em obter um determinado padrão de vida, além da sua associação à violência (Cidade, Júnior, & Ximenes, 2012). Na prática, essas visões podem ser incorporadas pelas próprias famílias que se resignam diante da incompreensão dos seus modos de vida e potencialidades. 18 Ademais, a individualização da preservação do bem-estar da criança, recai sobre as mulheres: mães, tias e avós. Mulheres que são responsabilizadas por não suprirem a ausência do Estado, por não lutarem o suficiente e fazerem o impossível para prover os cuidados necessários aos seus filhos. Diante desta sobrecarga, adicionada à luta diáriapela sobrevivência, surge um cenário propício para a violência intrafamiliar e o aumento do consumo de álcool e outras drogas que podem fragilizar ainda mais a maternidade. Dessa forma, entendemos que, para garantir os direitos das crianças e dos adolescentes, é necessário prover melhores condições de vida para suas famílias, principalmente para as mulheres. Observa-se que, mesmo após o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990) vetar a aplicação de medida protetiva em Acolhimento Institucional ou em Serviço de Família Acolhedora, por motivo de carência de recursos materiais dos pais (Art. 23), ou por fazerem uso de substâncias entorpecentes(Art. 19 redigido pela Lei nº 13.257, de 2016), esta prática ainda é recorrente. Nos levantamentos nacionais sobre os motivos do acolhimento, é possível verificar que a justificativa “carência de recursos materiais dos pais ou responsáveis” decresceu, enquanto o motivo “negligência” aumentou (Assis & Farias, 2013; Conselho Nacional do Ministério Público, 2013; Silva, 2004). É preciso questionar se as crianças e adolescentes continuam sendo acolhidos por motivo de pobreza, mas, agora, de forma diluída numa categoria ampla como a “negligência”. Algumas situações corroboram, para que “negligência” torne-se um termo ambíguo, pois permanece a questão sobre o dever dos pais de fornecer os devidos cuidados aos filhos, e o dever do Estado, que falha em prover a devida assistência de alimentação, medicamentos, creches, dentre outras garantias fundamentais à população vulnerabilizada (Moreira & Paiva, 2019). Não obstante, há uma lógica em que o amparo do Estado se apresenta às famílias somente em circunstâncias emergenciais. Para Correia (2015, p. 19), “essa lógica desqualifica http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13257.htm#art25 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13257.htm#art25 19 as famílias, não considera as potencialidades e, em nome da proteção, viola direitos quando não preserva os laços familiares e comunitários”. É necessário evidenciar que também há um recorte de classe que perpassa à vigilância das famílias de camadas mais populares que, segundo a autora, são mais suscetíveis a terem suas vidas expostas e sofrerem intervenções do Estado, no entanto vê-se que as famílias de classe média e alta não são submetidas a situações semelhantes. Desse modo, a violência, em suas múltiplas formas, ainda está impregnada no imaginário social como vinculada à pobreza, mesmo sendo encontrada em todas as classes sociais. Ao olhar para as famílias das crianças e adolescentes em acolhimento, portanto, é necessário considerar como está organizada sua comunidade e as ações do Estado para com ela, bem como quais os programas socioassistenciais que estão disponíveis. Diante da ausência de proteção social, a medida protetiva de acolhimento se torna a alternativa mais viável do ponto de vista do Estado, para assegurar o bem-estar das crianças e adolescentes. Sobre isto, Nascimento (2012) chama a atenção para um novo status que a família pauperizada recebe para justificar a continuidade da intervenção estatal e da retirada de crianças e adolescentes do convívio familiar: “família negligente”. A autora pontua que a aplicação da medida protetiva de acolhimento possui uma classe social específica como alvo, e que, na impossibilidade de acolher por pobreza, utiliza a justificativa da negligência, uma vez que “... não se retira por pobreza, mas por negligência, e são os pobres os considerados negligentes” (Nascimento, 2012, p. 40). Tal contexto revela o descompasso entre as diretrizes que preveem a medida de acolhimento como excepcional, e pelo menor tempo possível, com a sua real efetivação. Em virtude disso, faltam programas e ações que promovam a reintegração familiar, de modo que os Serviços de Acolhimento Institucional tendem a se tornar uma política pública muito valorizada pelas famílias, ao ocupar as lacunas deixadas pela insuficiência de programas que as atendam. Tem-se como exemplo os atendimentos de saúde ou de educação 20 serem mais acessíveis do que quando estavam com suas famílias, pela falta de conhecimento dos pais ou pela ausência de atendimento em sua comunidade (Constantino, Assis & Mesquita, 2013). Com isso, é importante enfatizar que tais serviços são direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes, de forma que é necessário refletir e investigar também a negligência do Estado para com a população brasileira empobrecida. Além disso, ingere-se a falácia das oportunidades iguais para todos, que nega e coloca em descrédito as consequências da insuficiência de ações que minam a crescente desigualdade social e econômica existente no país. Entre 2009 e 2010 o, então, Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em cooperação com a Fundação Oswaldo Cruz realizou o Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento no Brasil. Os dados mostraram que a visão dos profissionais que atuam nos Serviços de Acolhimento Institucional sobre as famílias dos acolhidos é, muitas vezes, negativa, principalmente no que concerne à ausência paterna ou, quando presente, é observada como frágil ou prejudicial. Estes entendimentos interferem no modo de atuação dos Serviços, pois em razão do “descrédito em relação às famílias dos acolhidos tendem a apresentar postura menos atuante no fortalecimento dos vínculos, visando à reintegração familiar” (Constantino et al., 2013, p. 176). Assim, percebe-se a necessidade de conhecer melhor essas relações e superar paradigmas e estereótipos vinculados às famílias das crianças e adolescentes acolhidos. Os dados encontrados na nossa pesquisa de mestrado “O psicólogo e os Serviços de Acolhimento Institucional para crianças e adolescentes na Região Metropolitana de Natal” que teve por objetivo conhecer a atuação profissional dos psicólogos dos Serviços de Acolhimento, com o fim de refletir sobre o contexto de trabalho deste profissional que tem importante papel na efetivação do direito à convivência familiar e comunitária da população infantojuvenil apontaram: a dificuldade de as instituições trabalharem em parceria com as 21 famílias na perspectiva de superar as situações que levaram à situação de acolhimento; instituições localizadas em locais distantes do bairro de origem dos acolhidos, em difícil acesso e, submetidas a constantes mudanças de endereço; fragilidades no Sistema de Garantia de Direitos das crianças e adolescentes acolhidos, pois várias aplicações de medidas protetivas de acolhimento foram citadas como correlacionadas à situação de pobreza e falta de acesso às políticas públicas das suas famílias (Moreira, 2014). Além disso, é necessário destacar que em uma pesquisa adicional sobre trajetórias de reinstitucionalização de crianças e adolescentes em Serviços de Acolhimento Institucional de Natal, da qual participei, por exemplo, foi observado que a maioria das/os acolhidas/os eram das Regiões Administrativas que apresentam maiores índices de vulnerabilidade social: Norte e Oeste (Paiva, Moreira, & Lima, 2019). A participação na organização de eventos promovidos pelo Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência (OBIJUV/UFRN) que visavam discutir o direito das crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária, possibilitou a compreensão de que a garantia deste direito não pode ser considerada uma responsabilidade apenas da família. Ela demanda a articulação de diversos serviços que, por vezes, estão fragilizados diante da carência de recursos materiais e humanos, além da falta de autonomia profissional devido aos frágeis contratos empregatícios e da ausência de formação inicial e continuada. A partir desse contexto, observou-se a necessidade de melhor conhecer a promoção do direitoà convivência familiar e comunitária, especialmente no cenário atual de enxugamento das políticas públicas, crescimento da miséria e criminalização da pobreza, situações que, em geral, são motivadoras do Acolhimento. Através dos pressupostos da teoria social marxiana, para a definição dos objetivos deste estudo, foi realizada uma imersão na realidade estudada, para apreender os processos históricos e sociais que orientam a promoção da convivência familiar e comunitária em Natal. 22 O número considerável de acolhimentos institucionais de crianças e adolescentes associadas à negligência e abandono dos pais ou responsáveis é alarmante, pois, na ausência de critérios objetivos, podem mascarar a aplicação da medida protetiva devido à carência de recursos materiais dos pais ou responsáveis. Do mesmo modo, o uso de substâncias químicas ou entorpecentes pelas mães, pais ou responsáveis, por si só, também não justificaria o Acolhimento, embora, na prática, continuem presentes. Nessa perspectiva, o contexto de criminalização das famílias pobres é ainda mais cruel com os pais e mães que estão em situação de rua. Eles compõem uma população que é historicamente alvo de processos de exclusão social e, assim, desprovida de garantias de direitos. As condições socioeconômicas nem sempre permitem que as mulheres empobrecidas cuidem dos seus filhos e, por vezes, ou fragilizam os vínculos familiares e/ou provocam separações. A sobrecarga laboral, emocional e mental que estas mulheres vivenciam reduz sobremaneira o tempo que possuem para si mesmas, como de participar de atividades sociais e políticas, durante as quais poderiam se organizar para reivindicar direitos. Nascimento (2016) aponta que, em face do alarmante crescimento da pobreza, “questões relativas à destituição do poder familiar e campanhas de incentivo à adoção se banalizam no Brasil” (p. 45). A autora ainda questiona o atendimento individualizante prestado a “questão social”1da pobreza, como se a negligência fosse um “modo de ser” da pobreza. Reflexos deste paradigma podem ser observados nos cortes do orçamento do SUAS e na aprovação ou postulação de leis que facilitam a adoção, caso da Lei 13.509 de 2017 que alterou o ECA visando a acelerar ações de suspensão ou destituição do poder familiar com consequente, facilitação de processos de adoção, em detrimento do trabalho com as famílias 1“(...) questão social significaria o conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos postos pela emergência da classe operária no processo de constituição da sociedade capitalista. Questão social pode, pois, ser traduzida como a manifestação no cotidiano da vida social da contradição capital-trabalho” (Yamamoto 2007, p. 31). 23 de origem. A colocação em família substituta é uma importante possibilidade na garantia da convivência familiar e comunitária, entretanto, é preocupante que seja a saída prioritária para a negligência do Estado com os pobres. Além disso, é relevante apontar que, após denúncias de retiradas arbitrárias de bebês, ainda na maternidade, de mães em situação de rua e/ou usuárias de drogas, foi emitida uma “Nota de Repúdio” a estas ações pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)2. Não raro, essas intervenções costumam reverberar na suspensão da guarda e, posterior destituição do poder familiar (Dias, 2019; Gomes, 2018; Malheiro, 2018). Atitudes como estas abrem precedentes para o que ocorreu no município de Mococa- SP onde foi deferido judicialmente o procedimento compulsório de esterilização de uma mulher por ser classificada como “dependente química”. Observa-se que as mulheres em situação de rua (MSR) e que fazem uso de drogas são taxadas como incapazes de prover cuidado e proteção aos seus filhos, lógica que constrói a ideia de fracasso materno. Ao estudarmos sobre as mulheres em situação de rua, por exemplo, o que se percebe são impedimentos ao exercício da sua maternidade e o aprimoramento de estratégias históricas de separação das suas famílias. Relações sobre as quais nos aprofundaremos neste trabalho, pois é observada, uma realidade nacional de casos de retiradas compulsórias de bebês, ainda na maternidade, de mães em situação de rua e/ou usuárias de drogas. Destarte, em Natal, diante de denúncias recebidas de retiradas compulsórias de bebês das suas mães ainda na maternidade, o Conselho Regional de Psicologia (CRP/RN) promoveu uma série de reuniões nas suas comissões correlatas ao tema em 2018. A partir dos encontros, foi proposto 2 Disponível em: https://www.direitosdacrianca.gov.br/documentos/notas-publicas-dos-conanda 24 o evento mobilizador “O ECA e os impactos da integralidade na proteção de famílias em situação de rua”, também, alusivo aos 28 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Em resultado, os apontamentos dos participantes possibilitaram a compreensão de que o atendimento à infância no município parece priorizar a destituição do poder familiar, diante da ausência de ações que promovam o atendimento integral às famílias em situação de rua. Assim, o direito à convivência familiar das crianças em situação de rua, demanda ações integradas e contínuas que promovam a garantia de direitos mínimos como habitação e trabalho aos seus pais. Além da necessidade da mobilização contra a criminalização das famílias em situação de rua que, historicamente no Brasil, impede a multiplicidade das formas de ser família. Diante do cenário apresentado, o presente estudo se propõe a analisar a suspensão ou perda do poder familiar de mulheres em situação de rua em Natal (RN). Os objetivos específicos compreendem investigar as concepções que direcionam a prática dos profissionais da rede de atendimento da Assistência Social, Sistema de Justiça e da Saúde sobre as famílias em situação de rua; investigar como as redes de atendimento de Saúde, Socioassistencial e o Sistema de Justiça se posicionam diante da suspensão ou perda do poder familiar de mulheres que estão em situação de rua; analisar as estratégias de enfrentamento aos desafios gestacionais e de proteção utilizadas pelas gestantes e puérperas em situação de rua. A organização desta tese consiste em quatro partes, sendo estas: fundamentação teórica, apresentada em dois capítulos; estratégias de investigação; dois capítulos de apresentação dos resultados e discussão e considerações finais. Portanto, apresentamos uma tentativa de tecer histórias, muitas vezes não contadas, invisibilizadas e esquecidas que entrecruzam questões de gênero, raça e questões socioeconômicas que resulta no sequestro e roubo de crianças pelo Estado no cenário natalense. 25 Capítulo 1 - A população em situação de rua: contextos e políticas públicas Antigamente o que oprimia o homem era a palavra calvário; hoje é salário (Carolina Maria de Jesus, 1960) A nomenclatura “população em situação de rua” (PSR/Pop Rua) pode apresentar diversas definições, que trazem consigo diferentes olhares sobre este grupo populacional. Podem abarcar pessoas que utilizam a rua para dormir, trabalho, uso de drogas (Silva, Cruz, &Vargas, 2015) e a chamada mendicância. Além disso, podem ser caracterizados como nômades ou andarilhos expulsos de locais pelo acúmulo de objetos no espaço da rua, uso de drogas, delírios ou pelo incômodo da sua presença aos moradores do bairro (Prates, Prates, & Machado, 2011). De acordo com a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR): considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimentopara pernoite temporário ou como moradia provisória (Decreto nº 7.053, de 23 dezembro de 2009). A partir desta definição, é possível perceber que a população em situação de rua é caracterizada por sua diversidade para a PNPR. Por outro lado, ao caracterizá-la como apenas possuidora de carências, pode recair na visão da PSR como passiva diante da realidade. Autores como Abal e Gugelmin (2019), Mariño e Lizarrale (2019) e Medeiros (2019) chamam a atenção para a estigmatização dos espaços ocupados pela Pop Rua, comumente vistos como locais perigosos e violentos, ocupados por pessoas “imorais” que perderam o controle das suas vidas e com as quais é melhor evitar o contato. Outrossim, a demarcação destes territórios contribui para a invisibilidade dessa população que tende a ocupar cada vez mais espaços que passam despercebidos no cotidiano urbano, com o fim de evitar práticas 26 higienistas como intervenções com o uso de força e violência policial. A ocupação destes espaços tende a ampliar e naturalizar o não questionamento da sociedade sobre a produção da desigualdade social e sua importância no capitalismo. Estas relações serão aprofundadas ao longo deste capítulo. Nota-se que a PSR vive uma tensão entre invisibilização/hipervisibilização, no sentido de que o Estado se ausenta em prover políticas públicas para a superação da sua pauperização, mas se faz presente por meio de práticas de expulsão higienistas violentas e sistemáticas (Abal e Gugelmin, 2019). Neste contexto, por vezes, a PSR é encaminhada compulsoriamente para instituições totais, como presídios e hospitais psiquiátricos (Almeida et al., 2014). Desta forma, há uma construção social pautada ora na naturalização da população de rua, ora na sua representação como perigosa à sociedade. Ambas denotam a marginalização desta população e dificultam a garantia de acesso aos direitos básicos. Viver em situação de rua, por outro lado, não pode ser percebido como algo estático ou restrito ao espaço concreto da rua, pois ela também perpassa a vivência em espaços privados, familiares e institucionais (Mariño & Lizarralde, 2019). A territorialidade é construída a partir das trajetórias pessoais, principalmente a partir dos espaços que melhor garantirão a sobrevivência diante do contexto de precariedade. A “rua” congrega a dimensão espacial, temporal e relacional da vida. A temporalidade, por exemplo, é demarcada do acesso e permanência “em los “patios” entre lassiete de lamañana y las dos o tres de la tarde que se acabala jornada de acogida” (Mariño & Lizarralde, 2019, p. 22). Além disso, o viver em situação de rua pode ser compreendido como uma rede de lugares nos quais são construídas relações, nas palavras de Beto Franzisko3: 3 Trecho do documentário “Conheço o meu lugar – a trajetória de Beto e outros Franciscos” (2015). Disponível em: https://youtu.be/pIuroeLherA. https://youtu.be/pIuroeLherA 27 A rua, nos momentos mais difíceis, foi sempre meu abrigo, não teve outro lugar para eu ir. A rua foi o lugar que eu me encontrei. Eu não tenho a rua como a grande mazela. Minha vida na rua também tem meu lado liberto, tem meu lado livre. Não tenho a rua como a grande comoção negativa da minha vida, não… Minhas grandes alegrias são nas ruas. São nas ruas que eu vendo meu trabalho, são nas ruas que eu conheço pessoas, são nas ruas que eu namoro, são nas ruas que eu paquero, são nas ruas que eu conquisto coisas, são nas ruas que eu realizo projetos e hoje eu defendo um povo que está nas ruas. E o artista é isso mesmo [...]. Nós do movimento temos interesse em oxigenar isso. Que as pessoas saiam das ruas, mas aqueles que querem ficar, que fiquem com dignidade. Beto compôs a liderança nacional do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e era coordenador estadual do Movimento de População de Rua no Rio Grande do Norte, no entanto faleceu precocemente em Natal no final de 2020. Sua fala evoca a diversidade de vivências que a rua pode congregar, não se restringindo ao lugar de violência e desamparo em que, na maioria das vezes, é colocada. É necessário compreender o estar em situação de rua como estado e não como processo é, também, um modo de reiterar a naturalização desta realidade permeada tanto pela “falta de acesso aos direitos sociais de habitação, saúde, educação, trabalho, entre outros, quanto à exposição e vitimização por violência psicológica, física, sexual, institucional, tortura e morte” (Medeiros, 2020, p. 52). São pessoas que, em sua grande maioria, não escolheram estar na rua, mas foram empurradas pelo chamado Processo de Rualização que “parte de uma concepção oposta à visão estática, na medida em que o reconhece como processo social, condição que vai se conformando a partir de múltiplos condicionantes, num continuum” (Prates et al., 2011, p.194). Desta forma, é preciso compreender que, embora o estar na rua seja ocasionado por diferentes fatores, estes possuem relação com as consequências do modo de produção capitalista (MPC), conforme discutiremos adiante. 1.1 Apontamentos históricos e sociais sobre a população em situação de rua 28 Embora existam relatos de pessoas circulando pelo espaço da “rua”, por não possuírem moradia fixa, serem andarilhos e/ou em mendicância ao longo da história, é a partir das sociedades pré-industriais da Europa que esse fenômeno se coloca como manifestação da questão social (Nunes, 2019). Assim, durante a chamada acumulação primitiva, esta população passou a ser composta por pessoas que não tinham a cidade como seu local de referência social e moradia, quando os camponeses e camponesas foram desapropriados e expulsos de suas terras devido aos cercamentos (Silva, 2006). Os cercamentos correspondiam a um conjunto de estratégias adotadas por fazendeiros ricos e lordes ingleses, no século XVI, para eliminar o uso comum da terra e expandir suas propriedades. Através desta estratégia, os camponeses, além do direito ao acesso à terra, também perdiam sua moradia quando vilarejos inteiros foram demolidos e transformados em pastos. Federici (2017) registra que esta técnica ainda estava presente no século XVIII estendeu-se, nos tempos modernos, à África, Ásia e América Latina, com destaque para os ataques às terras ocupadas por seus povos originários, aumento da miséria e perda da solidariedade comunal. Sem as garantias e seguranças do feudalismo, a população camponesa foi forçada a migrar do campo para as cidades para vender a sua força de trabalho como forma de subsistência, tornando-se trabalhadora assalariada. Não foi uma transição tranquila, nem todos os camponeses e camponesas foram absorvidos pela indústria, pela própria incapacidade desta e pela dificuldade dessa população de se adaptar ao novo regime de trabalho (Silva, 2006). Como resultado, Engels (2010) afirmou que muitos passaram a utilizar, como estratégias de sobrevivência, a chamada “mendicância”, a “ladroagem” e a prostituição como formas de sobrevivência, além de estarem mais susceptíveis ao alcoolismo e suicídio. O autor ainda revela esta faceta mais desumana do capital: 29 O escravo, pelo menos, tinha assegurada sua existência graças ao interesse do seu senhor; o servo da gleba, pelo menos, dispunha de um pequeno pedaço de terra, do qual vivia; ambos tinham garantida, pelo menos, a sobrevivência pura e simples; mas o proletário está abandonado a si mesmo e, ao mesmo tempo, está impossibilitado de empregar sua força de modo a valer-se dela para viver. (Engels, 2010, p. 155) Sobre isto, Federici (2017) aponta que os camponeses passaram a associar o trabalho assalariado à escravidão. Assim, o crescimento do número de “vagabundos” e homens “sem senhor” era, antes de tudo, mostras da revolta dos camponeses em relação ao MPC. Muitos também se organizaram em lutas para defender suas terras da expropriação comparticipação ativa das mulheres na luta, posteriormente associadas à bruxaria. O proletariado, como os trabalhadores assalariados passam a ser chamados, viram cada vez mais suas possibilidades de sobrevivência reduzidas. Até mesmo, aqueles que se recusaram a aderir ao novo modo de produção, são chamados de vadios e tratados como criminosos. Especialmente no final do século XV e todo o século XVI, são instituídas, nos países europeus, legislações rígidas contra a vadiagem (Silva, 2006). O objetivo era forçar os trabalhadores a aceitarem empregos com baixos salários e o deslocamento geográfico em busca de melhores condições. É fundamental incluir a dimensão dos reflexos do processo de acumulação do capital que demanda a produção contínua de uma superpopulação relativa ou exército industrial de reserva, excedente à sua capacidade de absorção: Quando a produção capitalista se tornou organizada e independente não mais se limitou a manter a dissociação entre os trabalhadores e os meios de produção, mas passou a reproduzi-la em escala cada vez maior. A formação de uma superpopulação relativa passou a ser um processo contínuo, de acordo com as necessidades da acumulação do capital. Assim, o desenvolvimento do capitalismo quebra as resistências à criação de uma superpopulação relativa ou exército industrial de reserva, que mantém a oferta e a procura de trabalho e também os salários em sintonia com as necessidades de expansão do capital. Isso é a maior expressão do domínio do capitalista sobre o trabalhador. Portanto, a reprodução do fenômeno população em situação de rua ocorre no processo de acumulação do capital, no contexto da produção contínua de uma superpopulação relativa, excedente à capacidade de absorção pelo capitalismo. (Silva, 2009, p. 75) O exército industrial de reserva “pertence ao capital de maneira tão absoluta como se ele o tivesse criado por sua própria conta. Ela fornece a suas necessidades variáveis de 30 valorização o material humano sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro aumento populacional” (Marx, 2013, p. 462, 463). Logo, o exército de reserva é, assim, uma questão central para o capitalismo, embora seja necessário considerar as novas configurações do capitalismo atual que ainda não foram resolvidas. Destacamos, portanto, que as relações de mercado são construídas de modo que: “Por um lado, vemos pessoas altamente exploradas, com uma carga excessiva de sobretrabalho, e, do outro, um grupo de reserva, que pressiona o primeiro grupo a continuar no sobretrabalho” (Tiengo, 2018, p.140). Esta relação intrínseca desmistifica a ideia de que o fenômeno PSR é consequência da preguiça e falta de esforço individual. Ao olharmos para o Brasil, vemos que a lógica da exploração inerente ao sistema capitalista está presente desde o início da colonização, especialmente através da escravização e “marginalização de determinadas parcelas da população, dentre elas a dos indígenas e africanos escravizados, apartados de seus territórios, famílias, culturas, e mesmo quando “livres” expostos à fome, doenças, criminalização, morte...” (Medeiros, 2020, p. 52). As leis abolicionistas no Brasil não foram acompanhadas de políticas reparadoras dos danos econômicos, políticos, sociais e psicológicos ocasionados pela escravização. Pelo contrário, a população negra foi privada de meios para sua subsistência e empurrada do campo para a cidade, onde a “rua” se colocou, para muitos, como único espaço possível para a sobrevivência através de trabalhos informais, mendicância e moradia. Ademais, o crescimento da população desempregada provocou a promulgação de leis no país com o intuito de reprimir a ocupação das ruas por este segmento. O artigo 59 do Decreto Lei 3.688/1941, ainda vigente, tipifica a vadiagem como crime e a define como “entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”. A penalidade imposta é de prisão que pode variar de quinze dias a três 31 meses e pode ser extinta antes, caso o condenado adquira superveniente de renda suficiente para sua subsistência. O Decreto, apesar de antigo e incongruente com os direitos garantidos na Constituição Federal de 1988, continua a ser aplicado. O mesmo decreto, no artigo 60, também tipificava o ato de mendigar “por ociosidade ou cupidez” como crime, e só foi revogado em 2009. Estas normativas indicam a normatização da criminalização da população pauperizada pela sua degradação diante da exploração do sistema capitalista. No século XX, situações como o êxodo rural e os grandes processos migratórios dentro do país levaram grandes contingentes populacionais, especialmente do Nordeste, para o Sudeste brasileiro em busca de empregos. Tal fato aumentou o número de pessoas ocupando as ruas. O mercado de trabalho não dava conta de empregar todos que chegavam, em sua maioria não alfabetizados e oriundos do trabalho agrícola. Com isso, sem a possibilidade de retornar para casa, seja por falta de recursos ou por não terem como sobreviver devido às secas, muitos permaneceram nas grandes cidades à mercê da mendicância e trabalhos informais que, em sua maioria, não possibilitavam melhoria na condição de vida. A essa população, hoje, agregam-se outros migrantes, “pessoas desempregadas, com problemas associados ao uso problemático de álcool e outras drogas, egressos do sistema penitenciário, com vínculos familiares fragilizados ou rompidos, dentre outras situações que levam muitos a fazerem das ruas um lugar de moradia e trabalho” (Nobre, Moreno, Amorin & Souza (2018). Ao ocupar o espaço das ruas, esta população modifica o cenário urbano e constrói suas próprias formas de habitar a cidade. A PSR, assim, é diferenciada também, pelos espaços geográficos que ocupa, pois há uma relação de mútua influência entre os territórios e as pessoas que é singular. Há, então, especificidades da Pop Rua tanto entre os países, como dentro de uma mesma cidade. 32 Como a expansão e retração da população em situação de rua é mediada pela oferta e condições de trabalho, consequentemente, é sensível às crises econômicas. A partir dos anos de 1970, ocorre, no mundo, a redução de postos de trabalho na indústria, o crescimento do trabalho precarizado e do pauperismo - o que, para Silva (2006), ajuda a explicar a expansão do fenômeno população em situação de rua. No Brasil, este processo é intensificado pela política econômica que promove a mudança do padrão de acumulação de agrário-exportador para o urbano-industrial, acrescido de outras mudanças nas relações trabalhistas introduzidas pela lógica neoliberal de intervenção estatal mínima para o social, e máxima para o capital. Ao estudar o fenômeno da PSR no Brasil nos anos de 1995 a 2005 (Silva, 2009) afirma que a quase totalidade desse contingente se encontra nesse profundo sedimento da superpopulação relativa: Pois, esta população se origina da forma flutuante, latente ou estagnada da superpopulação relativa, sendo que as suas características e perfil possibilitam associá-la ao lumpen- proletariado (parte da classe trabalhadora que se encontra no pauperismo, é apta ao trabalho, mas não é absorvida pelo mercado) ou, no máximo, no exército industrial de reserva, na forma de superpopulação relativa estagnada, que sobrevive do trabalho precarizado. (Silva, 2009, p. 79) Na visão marxiana, a superpopulação relativa é característica do MPC e a ela todos os trabalhadores estão sujeitos. Ela foi dividida por Marx (2013) em três grandes grupos: flutuante, latente e estagnada. A primeira é caracterizada por trabalhadores que trabalham, mas que passam por momentos de não trabalho até que, eventualmente, conseguem se inserir no mercado de trabalho. Asuperpopulação latente é composta por migrantes da zona rural para a urbana, enquanto no terceiro grupo estão pessoas que, a despeito de estarem no exército ativo de trabalhadores, seus trabalhos não são regulares. Para Tiengo (2018),a multiplicidade de fatores do fenômeno da PSR e as diferentes expressões da “questão social” tornam inadequada sua classificação como lumpemproletariado, população flutuante, latente ou estagnada. A autora defende sua posição 33 a partir de três justificativas principais: estar em situação de rua é ocasionado por diferentes fatores que vão além de ter ou não um trabalho; há relatos de PSR que flutuam entre o trabalho formal e o desemprego, de modo que alternam a moradia nas ruas, com a saída dela; parte considerável da PSR trabalha em atividades informais. Em outras palavras, a PSR não está necessariamente fora do mercado de trabalho, embora o acesso ao mesmo seja mais precarizado do que para o restante da população. Além da ausência do trabalho, esse contexto é potencializado por outras determinações como: “o desentendimento com familiares, a perda de laços afetivos importantes por causa da morte de um parente ou cônjuge, a utilização de álcool e outras drogas, a migração, o sofrimento psíquico, dentre outros” (Tiengo, 2018, p. 143). As trajetórias de vida individuais são, assim, significativas na categorização da PSR que pode transitar entre flutuante, latente, estagnada ou lumpemproletariado. O fenômeno da PSR é cronificado no atual estado do capitalismo devido ao crescimento dos investimentos especulativos e a retração das políticas sociais públicas (Nunes, 2019). Ademais, há a redução dos direitos trabalhistas e os processos de precarização laboral, gentrificação e especulação imobiliária neoliberal (De Verteuil, May, & Von Mahs, 2009) que limitam uma parcela cada vez maior da população de conseguir inserção no mercado de trabalho, além de consolidar o desemprego estrutural. A gentrificação pode ser caracterizada pela moradia e trânsito de grupos com maior poder de consumo que provocam o surgimento de novos comércios e bens de consumo na região. Já a especulação imobiliária, faz referência ao aumento dos preços dos aluguéis e, consequente pressão para a saída dos moradores e trabalhadores tradicionais de baixa renda, em geral, da região. A especulação imobiliária é definida pela compra de bens imóveis com a finalidade específica de vender ou alugar por um valor maior, após a passagem de determinado tempo. Ela restringe as possibilidades de a população pauperizada ter acesso à moradia. Para esta 34 população, as possibilidades de ascensão social tornam-se cada vez mais limitadas e retroalimenta-se pelas restrições impostas pelo MPC. 1.2. A População em situação de rua e as políticas públicas O Golpe Parlamentar de 2016 impôs a agenda neoliberal de caráter radical no país e pretendeu deslegitimar as conquistas sociais, colocadas como privilégios que devem ser contidos, em favor do desenvolvimento econômico. Dentre as ações iniciais há “... a limitação dos gastos públicos em vinte anos; a desvinculação das pensões e aposentadorias das correções do salário-mínimo; o desmonte da CLT e a lei de regulamentação da terceirização irrestrita” (Castilho, Lemos & Gomes, 2017, p. 458). A edição de 2018 do Relatório Luz, desenvolvido por especialistas do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), apontou o agravamento da pobreza e das suas consequências entre os brasileiros: Os orçamentos de políticas e programas importantes para a sociedade e para o meio ambiente estão menores ou zerados, enquanto crescem o endividamento público, a pobreza e a fome. Os abismos sociais entre ricos e pobres se aprofundam, consolida-se a exclusão história baseada em raças, etnias, identidade de gênero e orientação sexual; continuam os ataques às Unidades de Conservação, à legislação ambiental (…)e o desmonte dos principais mecanismos de proteção social e ambiental, conquistados ao longo de décadas, avança. (Nilo & Pinto, 2018, p. 5) Além disso, o Relatório de 2020 observou um cenário ainda mais grave diante da pandemia ocasionada pelo COVID-19 e o distanciamento crescente do país da chamada Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável acordada com a Organização das Nações Unidas em todos os indicadores (GT Agenda 2030, 2020). Para Pastorini (2004), a “questão social” continua presente, pois, apesar de não se expressar da mesma forma em todos os países capitalistas, ela está intimamente articulada com o conjunto de problemas sociais relacionados ao MPC e à reprodução das relações capitalistas. Há uma tendência, ao mesmo https://gtagenda2030.org.br/ https://gtagenda2030.org.br/ 35 tempo, de naturalização da “questão social”, seja pelo sucateamento dos programas socioassistenciais focalizados no “combate à pobreza” ou através da criminalização da pobreza e extermínio da juventude periférica. A influência do neoconservadorismo contribui para legitimar a repressão dos trabalhadores associada à criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, de modo a servir de justificativa para a militarização da vida, principalmente nas periferias. Diante deste contexto, a PSR está “mais exposta à coerção e processos de estigmatização e discriminação, processos de higienização e interdição” (Nunes, 2019, p. 128). Situação que atinge particularmente às mulheres em razão da violência e discriminação de gênero. Em contrapartida, quando a PSR se contrapõe de forma consciente aos determinantes sociais do capitalismo, “pode ser um segmento populacional que enfrenta e faz movimento de resistência ao sistema simbolizado pela mercadoria e a propriedade privada, uma vez que, neste sentido, nada tem a perder” (Nunes, 2019, p. 128). Neste sentido, o MNPR tem se colocado como um importante instrumento no combate à desigualdade necessária à reprodução da sociedade capitalista. O MNPR foi fundado em 2004 como resposta à violência contra a Pop Rua, incluindo o “Massacre da Sé”, a chacina que vitimou entre sete e quinze pessoas que dormiam na praça da Sé, em São Paulo e desencadeou uma série de manifestações contra a violência e o processo de investigação. Na perspectiva de denúncia da violência praticada por membros do Estado que deveriam protegê-los: “Através de missas, vigílias, passeatas, homenagens e protestos de rua, buscou-se afirmar que o que aconteceu não foi uma exceção, mas sim uma regra, fato permanente e ordinário” (De Lucca, 2016, p. 10). Criando, assim, um espaço propício para a enunciação política da Pop Rua. Desde então, o movimento social tem se expandido por todo o Brasil através da articulação com diferentes organizações sociais, instituições, “moradores de rua” e “ex- 36 moradores de rua”. A atuação do MNPR permite que a Pop Rua não se restrinja à condição de vítimas que lhes é colocada, para a união e fortalecimento coletivo na conquista de justiça, direitos e dignidade. Dentre as bandeiras de luta do MNPR estão o repúdio ao preconceito, à discriminação e às violações dos direitos humanos da PSR que têm sobre si o estigma da associação à criminalidade, incapacidade e preguiça. A atuação do movimento vai além da luta por moradia e trabalho para a Pop Rua, abrangendo a superação dos sentimentos de inferioridade ocasionados por sucessivas perdas como emprego, família, moradia e amigos, numa sociedade que mede o valor das pessoas por seu poder de consumo. Diante das desigualdades sociais no Brasil, a Pop Rua consegue se organizar para estabelecer estratégias de pressão política e mobilizar a consolidação dos seus direitos garantidos na Constituição Federal e na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), principalmente através do MNPR. Em 2005, ocorreu o I Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua do qual participaramrepresentantes de diversos municípios, fóruns e entidades da população em situação de rua como o MNPR, organizações não governamentais e representantes do, então, Ministério de Desenvolvimento Social (MDS). Este encontro foi um marco histórico na defesa dos direitos desta população, visto que a partir dele foram lançadas as bases para a construção da Política Nacional sobre a População em Situação de Rua, a partir de estratégias e diretrizes nacionalmente articuladas. Ainda em 2005, foi aprovada a Lei nº 11.258 que dispõe sobre a criação de programas específicos de assistência social para as pessoas que vivem em situação de rua e alterou o parágrafo único do artigo 23 da Lei nº 8.742, Lei Orgânica da Assistência Social, no intuito de normatizar a criação de programas de amparo às pessoas que vivem em situação de rua. Ademias, é importante não perder de vista que o atendimento a esta população, apesar de estar incluído no âmbito da organização dos serviços de assistência social, não podem perder a 37 perspectiva de ação intersetorial, pois as causas da chegada e permanência das pessoas na rua são múltiplas. O Decreto Presidencial de 25 de outubro de 20064 instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial, coordenado pelo MDS, com o objetivo de elaborar estudos e ofertar propostas de políticas públicas para a inclusão social da população em situação de rua. Além do MDS, foram envolvidos os Ministérios da Saúde, Educação, Trabalho e Emprego, Cidades, Cultura e Secretaria Nacional de Direitos Humanos, bem como representantes do MNPR, da Pastoral do Povo da Rua e do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (MDS, 2011). Como resultado, após a realização da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (PNPSR), de seminários em várias cidades e de consulta pública em âmbito nacional, foi publicada, em 2009, a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR). São princípios da PNPR, além da igualdade e equidade: I - respeito à dignidade da pessoa humana; II - direito à convivência familiar e comunitária; III - valorização e respeito à vida e à cidadania; IV - atendimento humanizado e universalizado; e V - respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência. (Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009) A PNPR, assim, parte da perspectiva de assegurar o acesso a direitos à população em situação de rua através da integralidade das políticas públicas de saúde, educação, previdência social, de assistência social, trabalho e renda, habitação, moradia, cultura, esporte, lazer e segurança alimentar e nutricional. Para tanto, também institui o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População de Rua5(CIAMP – 4 Revogado integralmente pelo Decreto nº 10.087/2019. 5O CIAMP-Rua, assim como outros colegiados da administração pública federal foi extinto pelo decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019 seguindo agenda antidemocrática do atual governo. http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10087.htm#art1 38 Rua), desta forma, busca promover uma gestão integrada corresponsável pela atenção integral a esses cidadãos. Sobretudo, é objetivo da PNPR que sejam criados Comitês Gestores Intersetoriais locais para elaborar, acompanhar e o monitorar os Planos de Ação para a População em Situação de Rua. Estes Comitês devem ser fomentados pelo Gestor local da Assistência Social, além disso, precisam contemplar a pactuação de responsabilidades e fluxos de articulação intersetorial institucionalizados para assegurar a atenção integral às pessoas em situação de rua. Outrossim, a PNPR ainda tem o desafio de concretizar: o atendimento qualificado através da formação e capacitação permanente de profissionais e gestores; o desenvolvimento de pesquisas, produção, sistematização e disseminação de dados e indicadores sociais, econômicos e culturais sobre esta população específica; o número oficial da população em situação de rua; a implantação de Centros de Defesa dos Direitos Humanos da População em situação de rua; o acesso desta população aos benefícios previdenciários e assistenciais e aos programas de transferência de renda; a implantação de Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros Pop) no âmbito da PNAS. Observa-se que entre agosto de 2007 a março de 2008 o então MDS realizou pela primeira vez a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (MDS, 2008). Foram pesquisados 71 municípios considerados centros urbanos, com mais de 300.000 habitantes sendo que, destes, 23 eram capitais. Os dados apontaram a existência de 50 mil adultos em situação de rua. Em uma estimativa da população em situação de rua mais recente realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 1.924 municípios, encontrou-se que a PSR cresceu 140% entre setembro de 2012 a março de 2020, chegando a quase 222 mil (Natalino, 2020). 39 A PNPSR apontou que a população em situação de rua é predominantemente masculina, 82% e, pode ser considerada jovem, pois 53% possuem entre 25 e 44 anos. Além disso, 67% identificaram-se como negros. A maior parte desta população é composta por trabalhadores, visto que 70,9% dos entrevistados afirmaram que exercem alguma atividade remunerada. Apesar disto, os níveis de renda são baixos, quando comparados ao salário- mínimo, 52,6% recebem entre R$20,00 e R$80,00 semanais (MDS, 2008). A pesquisa relatou que os motivos de estarem em situação de rua foram condicionados ao alcoolismo ou uso de drogas (35,5%), desemprego (29,8%), problemas com familiares (29,1%), perda da moradia (20,4%), e separação/decepção amorosa (16,1%), contudo, estes dados podem estar correlacionados entre si ou um fator ser consequência do outro. Sobre os vínculos familiares é importante citar que 51,9% dos entrevistados possuíam algum parente residindo na cidade onde se encontravam, porém, 38,9% destes não mantinham contato com esses parentes, além disso, acerca do histórico de internação em instituições, 27% passaram por abrigos institucionais, 15% por orfanatos/internatos e 12,2% pela Fundação para o Bem- Estar do Menor (FEBEM). Dados que sinalizam a fragilidade dos vínculos familiares ainda na infância o que não impede que novas redes sociais sejam construídas na vivência na rua (MDS, 2008). Além disso, o número de mulheres que vivem em situação de rua é apontado como substancialmente inferior ao de homens, porém esta população vem crescendo e está sujeita a maior vulnerabilidade devido a sua condição de gênero. Sobre os motivos que levam as mulheres para as ruas, podem ser citados o desemprego, as condições financeiras precárias, o uso de drogas, a separação conjugal, prisão e a busca pela liberdade (Costa et al., 2015). Sobre o uso de substâncias entorpecentes, é importante desmistificar que todas as PSR são usuárias de drogas e, por este motivo, permanecem na rua. Na PNPSR, observou-se que as principais razões indicadas pelas mulheres para o ingresso nas ruas foram a perda da moradia (22,56%) 40 e problemas familiares (21,92%), seguidos do alcoolismo e drogadição (11,68%) e 8,8% citaram o desemprego (Quiroga & Novo, 2009). Estes dados apontam para a falta de recursos econômicos para a sua sobrevivência e a fragilização ou rompimentos dos vínculos familiares que lhes forneceriam apoio diante das adversidades da vida, questões aprofundadas no segundo capítulo. Ainda sobre os motivos que levam as pessoas às ruas, em revisão da literatura, Silva (2006) verificou a presença de fatores estruturais, como a ausência de moradia, trabalho e renda, associadas a mudanças econômicas e fatores ligados a histórias de vidas marcadas por rompimentos dosvínculos familiares, doenças mentais, consumo recorrente de álcool e outras drogas, além de perdas dos componentes da família e dos bens. Foram encontrados, ainda, dados referentes a desastres naturais como inundações. Destas situações, as mais recorrentes fazem referência às rupturas dos vínculos familiares e comunitários que podem estar vinculadas à estrutura da sociedade capitalista, que atinge de modo particular as mulheres, conforme será discutido adiante. Costa et al. (2015) afirmam a existência de famílias que estão na terceira ou quarta geração nas ruas. As políticas públicas pouco chegam a esta população, a começar pela ausência de documentos de identificação (24,8%) e do exercício da cidadania através do voto (61,6%). Logo, contribuem para isto, os altos índices de discriminações sofridas pela população em situação de rua, como ser impedida de entrar em locais públicos, como o transporte coletivo, os serviços de saúde, dentre outros (MDS, 2008). Este contexto prioriza o atendimento a esta população através de práticas assistencialistas, repressivas ou violentas. Almeida et al. (2014) salientam que, apesar da PNPR, a maioria das práticas exercidas pelos equipamentos de saúde e assistência social para as pessoas em situação de rua são, ainda, isoladas, assistencialistas e focalizadas. Dessa forma, cronificam a situação de rua ao impor o saber técnico e os valores dos profissionais, calando a voz da população. Além disso, 41 estes equipamentos não conseguem retirar as pessoas das ruas, pois não oferecem possibilidades reais de transformação de vidas. Em contrapartida, cresce a naturalização e a violência relacionada a esta população. Como exemplo, as autoras citam que entre 2012 e 2013, de acordo com a mídia local, ocorreram 30 casos de homicídios sofridos pela população em situação de rua no Rio Grande do Norte. Dessarte, encontra-se a grave situação de não ocorrer sequer a abertura de inquéritos para a apuração da maior parte desses casos, sob a justificativa de que os familiares das vítimas precisariam solicitar sua abertura. Este contexto revela em si a fragilidade e invisibilidade desta população, além do descompasso das políticas de segurança pública com as especificidades da mesma. No Rio Grande do Norte, a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, também foi realizada em Natal e encontrou 223 adultos vivendo em situação de rua. Os dados do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal apontam 733 pessoas em situação de rua cadastradas em março de 2021 no município, agregando mais da metade (55,11%) da PSR do RN (Dias, 2021). Este número pode ser bem maior considerando o número reduzido de serviços socioassistenciais disponíveis à Pop Rua, de modo que considerável parte desta população pode não estar vinculada aos serviços. Ademais, o Centro Pop atendeu 1.588 pessoas em 2019, destas, 147 eram mulheres, de acordo com dados fornecidos por e-mail pela Coordenação Estadual de Gestão do SUAS através da Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação do Governo Federal. De acordo com a Secretaria Municipal de Habitação, Regularização Fundiária e Projetos Estruturantes, o número de pessoas que “tinham a rua como moradia” entre março e dezembro de 2020, saltou 42 de 400 para três mil, um crescimento de 650%, impulsionado pela falta de condições econômicas de arcar com os aluguéis6. Portanto, como o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não abarca a população em situação de rua, há o projeto de Lei n° 236/2017 em trâmite na Câmara Municipal de Natal, que determina a realização de um estudo sobre a população em situação de rua na capital. A ausência de dados concretos sobre o perfil socioeconômico desta população dificulta ainda mais a elaboração e exercício de políticas públicas voltadas ao segmento7. Apenas em 2018 foi instituída a Política Estadual para a População em Situação de Rua, através da Lei nº 10.333, regulamentado pelo Decreto nº 30.119, de 2020. De acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009), os programas com oferta de atenção especializada para as pessoas em situação de rua da Média Complexidade são o Serviço Especializado em Abordagem Social e o Serviço Especializado para a Pessoa em Situação de Rua, ofertado no Centro Pop. Na Alta Complexidade, há o Serviço de Acolhimento Institucional para indivíduos e famílias em situação de rua e o Serviço de Acolhimento em República para pessoas em processo de saída das ruas. Apesar das especificidades, os serviços devem funcionar em estreitar articulação com os demais dispositivos da rede socioassistencial. Isto posto, equipamentos sociais específicos para a população em situação de rua no Rio Grande do Norte, são recentes, criados a partir de 2011, e estão restritos a municípios da Região Metropolitana de Natal, a capital, e Parnamirim. No período da coleta de dados (2018 6Reportagem disponível em: https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/12/03/numero-de- pessoas-que-moram-nas-ruas-de-natal-cresce-650percent-durante-a-pandemia-diz-prefeitura.ghtml 7Importante destacar que está em curso o projeto “Promoção dos direitos da população em situação de rua no Rio Grande do Norte: diagnóstico e intervenção nos caminhos de inovação no Sistema Único de Assistência social” (Processo nº 02010042.001727/2020-02) sob responsabilidade do governo estadual que inclui o objetivo de mapear, contar diagnosticar a situação da população em situação de rua. https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/12/03/numero-de-pessoas-que-moram-nas-ruas-de-natal-cresce-650percent-durante-a-pandemia-diz-prefeitura.ghtml https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/12/03/numero-de-pessoas-que-moram-nas-ruas-de-natal-cresce-650percent-durante-a-pandemia-diz-prefeitura.ghtml 43 e 2019), havia apenas o serviço de acolhimento noturno de adultos – conhecidos por Albergues – e um Centro Pop, executados pelas respectivas secretarias municipais de assistência social. Além disso, não há Serviço de Acolhimento disponíveis para acolher famílias em situação de rua, e os albergues são restritos aos adultos, assim, o próprio serviço que deveria proteger, termina por provocar novas rupturas de vínculos, como será discutido adiante. Com o início da pandemia de Covid-19, três abrigos provisórios, que funcionam 24 horas, foram disponibilizados nos espaços físicos de escolas municipais. No entanto, após a flexibilização do distanciamento social no final de 2020, a prefeitura da capital decidiu fechá- los mantendo apenas um em funcionamento. O MNPR/RN, então, posicionou-se por alternativas de abrigo para as/os usuárias/os e a gestão municipal assumiu o compromisso de garantir três abrigos 24 horas, promessa que não se manteve, visto que, ainda no primeiro semestre de 2021, apenas um deles continuava em ativo funcionamento. Em Natal-RN, existem ainda três equipes do Consultório na Rua (CnaR), dispositivo público municipal que integra a rede de atenção básica e é regido pela Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2011 do Ministério da Saúde. Estes serviços têm a finalidade de desenvolver ações de Atenção Básica, através dos fundamentos e diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica. As equipes do CnaR são multiprofissionais e suas atividades são dirigidas às necessidades de saúde da população em situação de rua. Para tanto, realizam a busca ativa e o cuidado aos usuários de álcool, crack e outras drogas in loco, de forma itinerante e referenciadas às Unidades Básicas de Saúde (UBS). Caso seja necessário, podem se articular os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços de Urgência e Emergência e outros pontos de atenção que sejam necessários. Além disso, seu horário de funcionamento deverá se adequar às demandas
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