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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO MATEUS WESLEY TEIXEIRA DE LIMA E SOUSA O DUALISMO ENTRE O CRÉDITO TRIBUTÁRIO E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL: A REFORMA DA LEI DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA E A TRANSAÇÃO TRIBUTÁRIA COMO ALICERCES À SUA SUPERAÇÃO NATAL/RN 2022 MATEUS WESLEY TEIXEIRA DE LIMA E SOUSA O DUALISMO ENTRE O CRÉDITO TRIBUTÁRIO E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL: A REFORMA DA LRJF E A TRANSAÇÃO TRIBUTÁRIA COMO ALICERCES À SUA SUPERAÇÃO Trabalho de Conclusão de Curso, na modalidade de monografia apresentada como requisito parcial para a Conclusão do Curso de Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientador: Prof. Me. Cleanto Fortunato da Silva. NATAL/RN 2022 Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Sistema de Bibliotecas – SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN – Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Sociais Aplicadas - CCSA Sousa, Mateus Wesley Teixeira de Lima e. O dualismo entre o crédito tributário e a Recuperação Judicial: a reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência e a transação tributária como alicerces à sua superação / Mateus Wesley Teixeira de Lima e Sousa. - 2021. 108f.: il. Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento Direito. Natal, RN, 2021. Orientador: Prof. Me. Cleanto Fortunato da Silva. 1. Recuperação Judicial - Monografia. 2. Crédito Tributário - Monografia. 3. Dualismo - Monografia. 4. Transação Tributária - Monografia. 5. Reforma da Lei 11.101/05 - Monografia. I. Silva, Cleanto Fortunato da. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 34:336.2 Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355 ATA DE DEFESA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO DE GRADUAÇÃO Aos vinte (20) dias do mês de janeiro de dois mil e vinte dois, às 17h:00, em Plataforma Virtual Google Meet, realizou-se a sessão pública para a defesa oral do Trabalho final de Curso de Graduação em Direito (Monografia) intitulado: “O Dualismo entre o Crédito Tributário e a Recuperação Judicial: A reforma da LRJF e a transação tributária como alicerces à sua superação”, apresentado pelo formando do Curso de Direito Mateus Wesley Teixeira de Lima e Sousa, matrícula nº 20170078498. A Comissão Examinadora foi composta pelos professores Cleanto Fortunato da Silva, matrícula Siape n° 1149387, Anderson Souza da Silva Lanzillo, matrícula Siape nº 3456619, lotados no Departamento de Direito Privado, Carlos Wendel Peixoto de Alcântara, CPF 086.584.884-03, na condição de membro externo. A Comissão teve a presidência do primeiro, e após a defesa oral e o cumprimento dos procedimentos regulares, considerou a monografia APROVADA, atribuindo-lhe a nota 10 (dez). (X) Este TCC é um trabalho de excelência e a Comissão Examinadora o considera INDICADO a concorrer ao prêmio de melhor TCC do Curso de Graduação em Direito do CCSA/UFRN neste semestre. Comissão Examinadora Cleanto Fortunato da Silva Presidente Anderson Souza da Silva Lanzillo 1º Membro Carlos Wendel Peixoto de Alcântara 2º Membro MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE SISTEMA INTEGRADO DE PATRIMÔNIO, ADMINISTRAÇÃO E CONTRATOS FOLHA DE ASSINATURAS Emitido em 25/01/2022 ATA Nº 6/2022 - CCDIR/CCSA (16.06) (Nº do Protocolo: NÃO PROTOCOLADO) (Assinado digitalmente em 25/01/2022 18:07 ) ANDERSON SOUZA DA SILVA LANZILLO PROFESSOR DO MAGISTERIO SUPERIOR DPR/CCSA (16.16) Matrícula: 3456619 (Assinado digitalmente em 25/01/2022 18:29 ) CLEANTO FORTUNATO DA SILVA PROFESSOR DO MAGISTERIO SUPERIOR DPR/CCSA (16.16) Matrícula: 1149387 Para verificar a autenticidade deste documento entre em https://sipac.ufrn.br/documentos/ informando seu número: 6, ano: 2022, tipo: ATA, data de emissão: 25/01/2022 e o código de verificação: ee10efd35c https://sipac.ufrn.br/public/jsp/autenticidade/form.jsf AGRADECIMENTOS Quando paro para pensar em tudo que trilhei na graduação até aqui, encho-me de orgulho pelos vínculos que estabeleci, pelos conhecimentos que adquiri e pelos novos anseios que passei a buscar. Iniciei a minha trajetória na universidade envolto por diversos sonhos que foram se moldando conforme as vivências e experiências a que me deparava. E, de acordo com que eu ia me desenvolvendo no mundo acadêmico, passei a perceber o quanto tudo passou tão rápido e, ao mesmo tempo, o quão grato eu sou pelas pessoas que me permitiram chegar ao final de mais uma etapa da minha vida. Inicialmente, gostaria de agradecer a minha família por tantos ensinamentos e por me apoiar apesar das angústias e dos receios de que, por algum acaso, não fosse dar certo. Sou eternamente grato aos meus pais, Antanael e Suzana, por me mostrarem o que é um amor incondicional, que eu sou capaz de tudo e que o melhor fruto que eles poderiam me deixar nesta vida terrena é a educação. Às minhas irmãs, Dani e Gabi, que serviram sempre de inspiração para mim e me trouxeram o sentido do que é o compartilhar e do que representa um amor que perdura independentemente das diferenças. Muito obrigado por estarem do meu lado em todos os momentos e de me ensinarem que a educação é sempre o caminho mais fácil. Também sou grato à minha namorada Júlia Cano e à minha Sogra Vanessa Pache que, apesar de terem chegado tão repentinamente na minha vida, representam um braço amoroso e acolhedor neste momento de desafios, sendo ambas grandes fontes de inspiração nesta jornada. Não poderia ainda deixar de agradecer ao meu melhor amigo Thiago José que esteve sempre ao meu lado em todos os momentos, além de tantos outros que marcaram a minha infância no Chacon Residence, minha trajetória no CEI Mirassol e aos que conheci na universidade e que, com toda certeza, levarei para o resto da vida, grupo que carinhosamente denominamos “GC”. Agradeço à SOI e, especialmente, ao Capitólio por abrirem os meus olhos na universidade e me auxiliarem no sentido em que resolvi prosseguir a minha trilha profissional. Gostaria também de agradecer ao Professor e Magistrado Cleanto Fortunato que tenho a honra de ter como meu orientador, por ceder grandes ensinamentos e que, a partir da base de pesquisa GrupEmp, teve grande participação no desenvolvimento do meu carinho pela área do Direito Empresarial. Sou muito grato também a todas as experiências profissionais a que tive acesso durante esses últimos 05 (cinco) anos. À 17ª Vara Cível do TJRN, nas pessoas de Dra. Divone, Luciana e de Teolinda, por me proporcionarem a oportunidade de estagiar, ainda no início do curso, e de ter um primeiro acesso ao direito, na prática. À Dra. Dalila e Marcos, que compõem a equipe da 10ª Promotoria Criminal do Ministério Público do Rio Grande do Norte, por terem me providenciado tantas experiências e, quase, dois anos de muito aprendizado e reciprocidade. Não poderia deixar de agradecer, principalmente, ao Escritório André Elali Advogados e à equipe de Dr. Evandro Zaranza, por terem me acolhido ainda nesse momento de pandemia e me mostrado o que representa uma advocacia competente e de qualidade, além de terem sido peça-chave para o desenvolvimento de minha paixão pelo Direito Tributário e Civil. Meus agradecimentos à Genário Torres e Manoel Ciprianoe demais estagiários do escritório, por tantos momentos de descontração, por me ensinarem que ser advogado é muito mais do que o simples protocolo de uma peça, mas também representa o companheirismo, o trabalho em equipe, a parceria e a resiliência de saber se reinventar apesar dos erros e das circunstâncias que se fizerem dispostas. E, por fim, de maneira imensurável, agradeço ao meu querido Deus que nunca me deixou só e que esteve ao meu lado a cada passo da minha vida. Àquele que me proporciona um amor tão grande que não há como descrever ou explicar, e que não desiste de mim, sustentando-me pela Tua destra e me fazendo prevalecer. A todos vocês, minha eterna gratidão. O tamanho dos seus sonhos deve sempre exceder a sua capacidade de alcançá-los, se os seus sonhos não te assustam, eles não são grandes o suficiente. (Elen Johnson-Sirleaf, 2006) RESUMO O presente trabalho tem como escopo tratar sobre o desenvolvimento e os efeitos negativos da fixação de um dualismo (ou distanciamento) entre os interesses das empresas em recuperação judicial e do credor fiscal diante da cobrança de um crédito tributário cada vez mais desprezado. Assim, partindo da construção do sentido e dos princípios afeitos aos institutos colocados em dicotomia, este artigo evidencia a influência que o nosso ordenamento jurídico, eivado pela instabilidade jurisprudencial, teve sobre a determinação de um ambiente de incertezas conivente com o incentivo à postergação de uma dívida tributária. Nessa vereda, a problemática reside no cenário de um passivo tributário em constante acumulação e de um estoque contencioso dominado, até então, por processos e soluções ineficazes, que para além de tornar benéfica à supressão do interesse fiscal em detrimento dos credores privados, direciona o estado de crise das recuperandas a um quadro de, quase que total, irrecuperabilidade. Diante dessa percepção, a regulamentação da Transação Tributária e a Reforma trazida pela Lei 14.112/20 ao cerne recuperacional, evidenciam a chegada de novos mecanismos capazes de servir de alicerce à superação de um dualismo supressivo que contamina os interesses e objetivos das recuperandas e do Fisco, trazendo esperanças a um quadro insustentável tomado pela desconfiança. Com isso, a conclusão que se faz necessária, é o reconhecimento de que esse dualismo ainda não foi integralmente superado, mas que os caminhos necessários para a harmonização entre as recuperandas e o crédito tributário já estão dispostos em nosso ordenamento e que, quando utilizados da maneira correta, contribuem para a redução do passivo tributário cumulado, à ampliação dos espaços negociais e à construção de uma recuperação judicial pautada não só na preservação empresarial, mas também na tutela do interesse fiscal. Palavras-chave: recuperação judicial; crédito tributário; dualismo; transação tributária; reforma da lei 11.101/05. ABSTRACT This article aims to discuss the development of negative effects of establishing a dualism (or distance) between the interests of companies in judicial restructuring and the tax creditor facing the collection of an increasingly neglected tax credit. Thus, starting from the construction of the meaning and principles attached to the institutes placed in dichotomy, this article certify the influence that our legal system, permeated by jurisprudencial instability, had on the determination of an area of uncertainties colluding with the incentive to postpone a tax debts. In this path, the problem lies in the scenario of a constantly accumulating tax liability and a contentious stock dominated, until then, by ineffective processes and solutions, which, in addition to favoring the suppression of the fiscal interest to the detriment of private creditors, directs the state of crisis of the companies under reorganization to a framework of, almost total, irrecoverability. In light of this perception, the regulation of Tax Transactions and the Reform brought by Law 14.112/20 to the restructuring institute, show the entry of new mechanisms capable of supporting the overcoming of a suppressive dualism that contaminates the interests and objectives of companies under reorganization and the Tax Authorities, bringing hope to an unsustainable environment dominated by distrust. With that, the conclusion that is necessary is the recognition that this dualism has not yet been fully overcome, but that the necessary paths for the harmonization between the companies under restructuring and the tax credit are already provided in our legal system and that, when used in the correctly way, they contribute to the reduction of the accumulated tax liability, the expansion of negotiation spaces and the construction of a judicial reorganization based not only on business preservation, but also on the protection of the fiscal interest. Key-Words: judicial restructuring; tax credit; dualism; tax transactions; reform of law n. 11.101/05. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Recolhimento Tributário (caso 01) ........................................................................ 67 Gráfico 2 - Recolhimento Tributário (caso 02) ........................................................................ 68 Gráfico 3 - Recolhimento Tributário (caso 04) ........................................................................ 68 Gráfico 4 - Tempo médio de litígio tributário .......................................................................... 70 Gráfico 5 - Impacto da Execução Fiscal ................................................................................... 72 Gráfico 6 - Evolução do Estoque Contencioso ......................................................................... 74 Gráfico 7 - Estoque do Contencioso (PIB) ............................................................................... 74 file:///C:/Users/Mateus/Desktop/Trabalhos%20importantes/TCC%20-%20MATEUS/Monografia%20UFRN%20-%20MATEUS%20WESLEY%20TEIXEIRA%20DE%20LIMA%20E%20SOUSA%20Revisado%20e%20Atualizado.docx%23_Toc93661273 LISTA DE TABELAS Tabela 1- Fatores Internos ou causas endógenas ...................................................................... 63 Tabela 2 - Fatores Externos ou causas exógenas ...................................................................... 64 Tabela 3 - Contencioso Tributário, por nível federativo e esfera processual ........................... 73 Tabela 4 - Número de Transações entre 2019/20 ..................................................................... 83 Tabela 5 - Número de transações individuais até 2021 ............................................................ 84 Tabela 6 - Número de empresas em recuperação judicial/falência (transação)........................ 84 file:///C:/Users/Mateus/Desktop/Trabalhos%20importantes/TCC%20-%20MATEUS/Monografia%20UFRN%20-%20MATEUS%20WESLEY%20TEIXEIRA%20DE%20LIMA%20E%20SOUSA%20Revisado%20e%20Atualizado.docx%23_Toc91167920 file:///C:/Users/Mateus/Desktop/Trabalhos%20importantes/TCC%20-%20MATEUS/Monografia%20UFRN%20-%20MATEUS%20WESLEY%20TEIXEIRA%20DE%20LIMA%20E%20SOUSA%20Revisado%20e%20Atualizado.docx%23_Toc91167921 11 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 13 2 A RECUPERAÇÃO JUDICIAL E O CRÉDITO TRIBUTÁRIO ............................... 15 2.1. Da Recuperação Judicial ......................................................................................... 15 2.1.1. O desenvolvimento histórico do atual sentido do DireitoRecuperacional ................ 15 2.1.2. A construção da Lei nº 11.101/05 e a Recuperação à luz do princípio da preservação da empresa ............................................................................................................................... 18 2.2. O Crédito Tributário e o cumprimento de sua função social a fim de resguardar a sua efetividade ......................................................................................................................... 26 2.3. A posição do crédito tributário em sede de Recuperação Judicial antes da reforma da Lei nº 11.101/05 (Lei da Recuperação Judicial e Falência) ........................................... 31 3 DA INSTABILIDADE JURISPRUDENCIAL ACERCA DA (IN) EXIGIBILIDADE DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL NO ÂMBITO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL ....................................................................................................................................... 35 3.1. A evolução de um dualismo perante o entendimento nos Tribunais Superiores ..... 37 3.2. A análise da exigência da certidão de regularidade fiscal: o art. 57 da Lei nº 11.101/05 e a função social do tributo versus a preservação da empresa? ........................ 49 4 O DUALISMO ENTRE O CRÉDITO TRIBUTÁRIO E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL ........................................................................................................................................ 57 4.1. Da incidência de um dualismo e a sua aplicação frente à relação em apreço ......... 57 4.2. Da situação das empresas em recuperação em um cenário de distanciamento do crédito tributário .................................................................................................................... 61 4.3. O acúmulo de Execuções Fiscais como gargalo do Poder Judiciário......................... 70 5 NOVOS PARADIGMAS À REAPROXIMAÇÃO DOS INSTITUTOS..................... 76 5.1. A transação tributária como objeto de alicerce .......................................................... 77 5.1.1. Da recente regulamentação da Lei da Transação Tributária e suas nuances ............. 78 5.1.2. A viabilidade da transação como meio adequado à resolução dos conflitos entre a Fazenda e as recuperandas e sua ampliação com a reforma da LRJF ..................................... 83 5.2. A reforma da LRJF e suas principais alterações na realidade do crédito tributário frente às empresas em recuperação judicial ...................................................... 89 5.3. Da nova conjuntura formada pela reforma e pela regulamentação da transação tributária: houve uma efetiva superação do dualismo? ...................................................... 94 12 6 CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 99 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................... 103 13 1 INTRODUÇÃO Em reconhecimento à função social e ao princípio da preservação da empresa, a Recuperação Judicial tem como finalidade viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira dos empresários individuais e das sociedades empresárias, em estímulo à manutenção da atividade econômica. Para tanto, em seu interior, cria-se um ambiente adequado para que exista uma negociação equilibrada e transparente entre o devedor e seus credores, em vista a garantir a adequação dos interesses envolvidos no processo. Ocorre que, muito embora a Lei nº 11.101/05 (Lei de Recuperação Judicial e Falência — LRJF), desde a sua essência, assentasse expressamente que o soerguimento das empresas em recuperação, além de prezar pelos credores privados, também deveria abarcar a equalização de seu passivo fiscal, a realidade prática ainda se limitava a um modelo de incentivo à postergação do interesse do Fisco, contribuindo para o acúmulo de irrecuperáveis dívidas tributárias no dorso de empresas inseridas em processo de Recuperação Judicial.1 Somado a isso, a instabilidade jurisprudencial acerca da (in)exigibilidade da certidão de regularidade fiscal e da disposição dos atos constritivos perante as Execuções Fiscais vinculadas ao sujeito inserido na Recuperação Judicial, também contribuiu efetivamente para o surgimento de um dualismo entre o crédito tributário e o devedor em recuperação judicial. Assim, restou evidenciado o embate entre o princípio da efetividade da cobrança fiscal e da preservação das empresas. Entretanto, com a recente regulamentação da transação tributária e dos avanços perpetrados com a reforma da Lei de Falências e Recuperação Judicial, surgem novos alicerces hábeis a ampliar não apenas a oportunidade de se buscar saídas consensuais ao presente problema, mas também de tornar tangíveis dívidas que antes eram vistas como absolutamente irrecuperáveis, denotando um maior enfoque ao crédito tributário e, ao mesmo tempo, à garantia da preservação das empresas em crise. Nesse contexto, este estudo propõe a análise dogmática e jurisprudencial do desenvolvimento desse citado dualismo em nosso ordenamento jurídico, a fim de alcançar a 1 GONÇALVES, Gabriel Augusto Luís Teixeira; ZANFORLIN, Daniele de Lucena. A superação do dualismo entre o crédito tributário e a recuperação judicial: novos paradigmas jurisprudenciais na relação do fisco com as empresas em recuperação judicial. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e- analise/https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-superacao-do-dualismo-entre-o-credito-tributario-e-a- recuperacao-judicial-16102020artigos/a-superacao-do-dualismo-entre-o-credito-tributario-e-a-recuperacao- judicial-16102020. Acesso em: 07 set. 2021. 14 determinação de novas balizas hábeis a nortear o lampejo da superação do distanciamento entre o passivo fiscal e a situação das empresas em recuperação. Assim, cercando-se do método lógico-dedutivo, em seu primeiro capítulo, o presente trabalho parte das premissas históricas, conceituais, principiológicas e normativas necessárias ao entendimento da inter-relação entre ambos os institutos, abrindo espaço para que, em seu capítulo seguinte, seja possível auferir a responsabilidade que a inconsistência jurisprudencial, decorrente da volatilidade dos entendimentos nos Tribunais, teve na construção deste desequilíbrio — tema central deste excerto. Vencidas as dúvidas sobre o surgimento desse dualismo, o terceiro capítulo visa discorrer sobre o uso dessa terminologia e da incidência dos seus efeitos na prática. Para tanto, demonstrará a nocividade causada pelo desprezo ao crédito tributário, tanto na intensificação do acúmulo de processos e débitos fiscais, sem quaisquer perspectivas de saneamento nas mãos de empresas que já se encontram em recessão fiscal, quanto na constatação de um interesse em priorizar o retardamento de um problema ao invés da sua solução. Em vista a alcançar a superação desse dualismo, também será abordado como a recente reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência e a regulamentação da Transação Tributária servirão como objeto de rompimento com o problema em comento. Desse modo, serão trazidas possibilidades de reversão desse quadro através de saídas consensuais que incentivem a mudança de paradigmas importantes e façam valer, de fato, a busca pela preservação e soerguimento de empresas em recuperação judicial. Como já adiantado, este trabalho prezou pelo método lógico-dedutivo, valendo-se da apreciação da bibliografia afeita ao tema, abarcando a pesquisa pormenorizada em artigos científicos, dissertações e trabalhos acadêmicos. Além de prezar pela análise da legislação vigente e não mais vigente, de embasamentos jurisprudenciaise de dados oficiais de órgãos jurídicos e institutos de pesquisas nacionais. 15 2 A RECUPERAÇÃO JUDICIAL E O CRÉDITO TRIBUTÁRIO 2.1. Da Recuperação Judicial 2.1.1. O desenvolvimento histórico do atual sentido do Direito Recuperacional A atual conjuntura da Recuperação Judicial desenvolveu as suas balizas a partir das diversas rupturas históricas, as quais influenciaram na relação entre a prevalência dos interesses dos credores em detrimento das dificuldades dos devedores em cumprir com suas responsabilidades e sanar os débitos assumidos. Assim, ainda na Roma Antiga, com a chegada da Lex Poetelia Papiria (326 a.C.), quebrou-se o primeiro paradigma da determinação do patrimônio como emanação da própria personalidade2, ou seja, o devedor deixou de se preocupar com a restrição de sua liberdade pessoal como moeda de troca, para passar a ver suprimida a livre disposição de seus bens, com o intuito de saldar a dívida que tinha em relação aos seus credores. Desse modo, em que pese tal período ainda não contasse com um processo falimentar propriamente dito, essa suavização dos efeitos pessoais da cobrança da dívida, frente ao devedor, abriu portas para o surgimento dos primeiros procedimentos de execução concursal.3 Nessa senda, o Direito Comercial, influenciado pelo desenvolvimento das feiras comerciais nos primórdios do medievo4, começava a ser lapidado ainda em um viés consuetudinário. É tanto que, nas palavras do professor Miguel Pupo Correia5, foi na Idade Média que tal ramo do Direito alcançou a sua expressão própria, consolidando-se, em meados do século XII, após a superação das invasões bárbaras e o desenvolvimento das cidades 2 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falências comentadas. 4. ed. São Paulo: RT, 2007. P. 33-34. 3 PEREIRA, Geailson Soares. Dissertação de Mestrado Recuperação de empresas em crise no Estado Democrático de Direito: Limites e fundamentos constitucionais da aplicação do cram down para a concretização do princípio da preservação da empresa, 2016. P. 23. 4 Segundo DEMERCINO, o termo “Medievo” vem do latim medium aevo, sendo também conhecido como Idade Média ou período medieval e compreende o lapso histórico compreendido entre os séculos V e XV, surgiu deste latim. (JÚNIOR SILVA, Demercino José. O conceito de Idade Média. Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiag/conceito-idade-media.htm. Acesso em: 08 out. 2021). 5 O Professor Miguel J. A. Pupo Correia assim se expressa: “É na Idade Média que o direito comercial vai adquirir expressão própria. Destruída a vida comercial com as invasões bárbaras, ela só renasce com as Cruzadas e com o desenvolvimento, a partir do século XII, das cidades comerciais na Itália, Flandres, na Alemanha, bem como das feiras, que constituem os polos da vida comercial da época” (1999 apud NEGRÃO, Ricardo. Direito Comercial, Comercial e de empresa: recuperação de empresas, falência e procedimentos concursais administrativos - vol. 3 – 14. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.). 16 comerciais europeias, como um corpo normativo sistematizado, mas ainda enviesado na análise da insolvência eminentemente em seu caráter geral e aplicável a qualquer devedor. Acontece que, em uma sociedade altamente influenciada pelos preceitos religiosos e pelo julgamento divino ponderado na dualidade entre o bem e o mal, a expressão do Direito não poderia seguir de maneira diferente. E em sendo o devedor retratado como um agente fraudador, endemoniado e irresponsável, não houve outra saída senão a estabilização de um “Direito Falimentar” extremamente repressivo e com o enfoque primordial de garantir a punição do devedor inadimplente, ao invés de se buscar a satisfação dos legítimos interesses dos seus credores mediante o adimplemento dos débitos pendentes.6 Somente após a Revolução Francesa, com a promulgação do Código Comercial Francês encabeçado por Napoleão Bonaparte, em 1803, é que se rompeu com o generalismo do Direito Concursal de modo a dar-lhe um tratamento disciplinar mais específico, assumindo um sentido objetivo que distinguia, expressamente, a insolvência civil da insolvência empresarial. Esse segundo sentido do Direito Concursal foi crucial ao constituir um arcabouço de regras especiais, aplicáveis, restritamente, aos devedores insolventes que revestiam a devida qualidade de comerciantes, afastando as disposições falimentares do devedor insolvente de natureza cível, aplicando a estes tão somente os regramentos gerais do Direito Civil. Porém, apesar de suas inovações, tal corrente ainda pecou ao preservar o caráter repressivo e punitivo herdado desde a Antiguidade, perdurando a impressão da recuperação das empresas em estado de crise como uma consequência da improbidade dos devedores, fatores que reforçaram o seu reconhecimento como um status de mácula social e de patologia do mercado econômico.7 Entretanto, com as mudanças socioeconômicas oriundas da Revolução Industrial e potencializadas pela globalização do século XX, a visão do conceito e da função social das empresas tomaram uma nova forma. Dessa forma, passaram a ser enxergadas como elementos imprescindíveis ao giro econômico, à manutenção dos empregos dos trabalhadores e aos interesses dos credores. De tal forma, a antiga noção pejorativa que bitolava o Direito Falimentar à supressão e ao afastamento das empresas inadimplentes do mercado foi superada, ganhando força o 6 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial: volume único. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo; MÉTODO, 2020, p. 738. 7 Ibid. 17 entendimento de que a crise é apenas uma consequência do risco empresarial8, mas que deve ser prontamente remediada, a fim de evitar a irreversibilidade de seus efeitos. Assim, o terceiro e atual sentido passou a priorizar a busca por mecanismos que forneçam ao devedor, em recessão econômica, os instrumentos necessários não somente à sua recuperação e à consequente manutenção de sua atividade econômica, mas também que sirvam de alicerce para a superação do distanciamento entre as empresas recuperandas e o seu passivo pendente. Arregimentava-se, portanto, o sentido essencial que nortearia o conceito e as finalidades intrínsecas à instituição da Recuperação Judicial. Naquele momento, o Direito Falimentar rompia com as amarras que ansiavam pela arbitrária punição dos devedores e pela criminalização de suas condutas, passando a ampliar os espaços de solução do problema e abrir caminho à busca pela efetiva superação do estado de crise comercial, reservando a Falência, apenas, aos devedores efetivamente irrecuperáveis. Por tal guinada principiológica, o ordenamento desprendia-se da visão de um Direito voltado à ruína, para estabelecer uma união indissolúvel entre o Direito Recuperacional e o princípio da busca e da priorização pela preservação da empresa, premissa esta que será destrinchada com mais enfoque no tópico seguinte. 8 Em ALMEIDA, lê-se que “De há muito tempo a falência deixou de, só por si, configurar um delito. É, antes de qualquer conotação criminosa, uma consequência dos riscos dos negócios, podendo, em época de crise econômica, juros extorsivos e restrição da demanda, alcançar, inclusive, empresários dos mais escrupulosos. É, portanto, um percalço da atividade econômica”. (ALMEIDA, Amador Paes. Curso de falência e recuperação de empresa. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006). 18 2.1.2. A construção da Lei nº 11.101/05 e a Recuperação à luz do princípio da preservação da empresa No Brasil, não foi diferente. É tanto que, conforme a doutrina de Penalva e Salomão9, o desenvolvimento doDireito Falimentar brasileiro se perfez mediante quatro fases que, gradativamente, também nortearam a passagem de um antagônico modelo de repressão para uma conjuntura de preservação do interesse empresarial. Na primeira fase, marcada pela chegada do Código Comercial de 1850, o ordenamento falimentar pátrio ainda pecava pela ausência de técnicas capazes de proteger as empresas inadimplentes do estado de falência, resumindo-se a um modelo excessivamente moroso e que, concedendo ampla autonomia aos credores, contribuía para a punitividade dos devedores. Entretanto, tal realidade não era uma exceção. Dentro de um Brasil imperial, a adoção de sistemas repressivos, desbalanceados e completamente alheios aos verdadeiros anseios sociais e econômicos dos polos envolvidos, era um fator natural e consequente da forte centralização estatal ainda vigente. Como prova disso, naquele período, nem sequer havia a estruturação de um sistema de tributação compatível com a capacidade econômica dos cidadãos. O Estado utilizava-se de altas cargas tributárias, a fim de preencher os seus cofres, mas não entregava retornos compatíveis à sua cobrança fiscal, contribuindo para uma sociedade desamparada e, desde já, desacreditada na importância do pagamento dos tributos. Só com a chegada do período Republicano, em 1889, foi que o Estado brasileiro passou a atuar diretamente na superação dessa nociva centralidade e na disposição de uma atividade governamental mais democrática e que, de fato, se alinhasse àquilo que realmente se espera de um “governo do povo”. Para tanto, a nova ordem constitucional de 1891, buscando manter uma divisão equilibrada do poder e dar maior autonomia e descentralização governamental, instaurou o federalismo pátrio. Por tal medida, criou-se uma rígida e estruturada separação das competências e da distribuição de rendas entre a União e os recém-criados Estados-membros, passando a abranger entes federativos autônomos e que, agora, conseguiam atuar, de maneira mais próxima e efetiva, diante do conjunto de interesses econômicos, sociais e tributários. 9 SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2012. 19 Justamente durante esse período, foi dado início a uma nova fase do Direito Falimentar. Isto porque, com o advento do Decreto nº 917/1890 que revogou as disposições falimentares do Código de 1850, foram instituídos novos mecanismos de prevenção à Falência: a moratória, a cessão de bens, o acordo extrajudicial e a concordata preventiva. Simultaneamente, criava-se um abismo entre o desprezo aos credores e a impunidade dos devedores que passaram a ser resguardados por vantagens excessivas, além de terem a oportunidade de promover acordos negociais entre si, a exemplo da utilização da concordata, sem a necessária tutela estatal. Visando rebalancear a relação entre credores e devedores, o Decreto-Lei nº 7661/1945 promoveu uma forte regulação do Direito Falimentar. Assim, foram estabelecidas novas rédeas ao instituto da concordata, inserindo-a em um sistema rígido, dependente de sentença judicial e repleto de requisitos específicos e restritos. Nesta terceira fase, o ordenamento passou a sufocar a relação entre os credores e devedores, na medida em que proibia a busca por saídas consensuais e dialogadas entre eles, investindo em um sistema de concordatas rigoroso e, ao mesmo tempo, ineficaz10. Ou seja, na concessão de um “favor legal” que, mais uma vez, tão somente postergava a falência, ao invés de prezar por caminhos que realmente levassem ao soerguimento das empresas em crise. Embora tenha sido um instrumento jurídico indispensável à recuperação econômico- financeira dos empresários, a concordata foi se tornando obsoleta e ultrapassada conforme as novas demandas que surgiam, tendo em vista que não mais assegurava ao devedor os recursos necessários para a manutenção de estoques e à efetiva continuação da atividade empresarial11. Neste sentido, reforça Amador Almeida12: De outro lado, sem garantia efetiva de receber seus créditos, as instituições financeiras recusavam-se, sistematicamente, a financiar a atividade negocial de concordatários, tornando impraticável o fiel cumprimento das obrigações destes, o que, na prática, culminava na convolação da concordata em falência, com prejuízos insanáveis para o devedor, fornecedores e empregados. Em outras palavras, tal instituto, de certa forma, até visava a continuidade das atividades da empresa, mas o fazia de forma precária, visto que não previa soluções efetivas ao problema em questão. De tal modo, vigia-se um processo falimentar ainda desnorteado, lento e ineficaz, que caminhava a passos nulos em comparação às novas perspectivas econômicas e sociais que 10 PEREIRA, 2016. 11 DIAS, Norton Maldonado. Influências na valoração do falido no histórico da proteção jurídica da recuperação de empresas. Revista do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da UNIJUÍ. Volume XXV, n. 45, p. 98-122, jan-jun, 2016. 12 ALMEIDA, 2006. 20 se estabeleciam, como bem elenca Geailson Pereira13 em sua dissertação de mestrado: Um dos problemas detectados na legislação anterior era a grande morosidade em todas as fases do processo falimentar, o que contribuía com o devedor desonesto e para a não superação da crise pela empresa. Dito em outras palavras, a empresa não se recuperava e, quase sempre, o credor não recebia os seus créditos porquanto faltava efetividade na aplicação das normas, seja na perspectiva da reestruturação ou na falência. Essa precariedade de um movimento falimentar preso à irrecuperabilidade das empresas em crise não passava despercebida pelo Estado brasileiro. E, já na vigência da constituição de 1946, regida sob a influência dos efeitos do pós-guerra, crescia a importância de se alcançar um sistema capaz de caminhar para a reestruturação nacional e de promover uma prosperidade econômica e regional que satisfizesse, não somente os interesses públicos, mas também servisse de amparo às empresas que lutavam pela continuidade de suas atividades. Partindo da necessidade de uma governabilidade mais ativa e de um sistema pautado pelo progresso, novos gastos públicos surgiam e, com eles, crescia a demanda por verbas que comportassem o rápido crescimento do país. Para tanto, essencial era o papel que o crédito tributário assumia, pois, em se tratando da principal fonte de renda do Poder Público, somente com ele o Estado conseguiria alcançar o fim que buscava, qual seja, o progresso. Na visão de Pablo Dutra Martuscelli14, a urgência pela alavancagem de recursos necessários ao desenvolvimento da infraestrutura nacional, contribuiu para a consolidação de um sistema tributário mais racional, o que trouxe uma necessidade de se dar uma maior estruturação ao crédito tributário e à cobrança fiscal, de modo a torná-los mais acessíveis à realidade dos contribuintes, ou seja, dos verdadeiros financiadores dos interesses estatais. Partindo desse ideal de desenvolvimento econômico, as empresas, ainda que em crise, passaram a ser enxergadas como relevantes aliadas ao desenvolvimento nacional, não apenas pela sua ampla importância para a produção e circulação de riquezas privadas, mas também por serem contribuintes essenciais que, quando incentivados, são capazes de cumprir com as suas responsabilidades tributárias frente ao credor fiscal. 13 PEREIRA, 2016. 14 MARTUSCELLI, Pablo Dutra. Para uma compreensão histórica do sistema tributário nacional de 1988. 2010. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3117.pdf. Acesso em: 26 nov. 2021. 21 Basicamente, sob essenovo viés, a preservação da sua atividade empresarial e a busca pela sua recuperabilidade econômica tornaram-se mais importantes do que a antiga concepção de incessante reprovabilidade das dívidas e de incentivo à falência. Assumindo esse novo status de importância diante da sociedade e do Estado, as empresas em crise ansiavam por um Direito Falimentar que, de fato, cumprisse com o papel que lhe era esperado, qual seja, servir de norte ao soerguimento empresarial. Nesse sentido, a própria Constituição Federal de 1988 consolidou a importância da entidade empresarial à ordem econômica nacional, reconhecendo a incidência de sua função social (art. 170, caput e inc. III, da CF), na medida em que atua em busca de lucros e, com isso, reflete diretamente na produção e circulação de mercadorias, na geração de empregos, no cumprimento dos créditos aos fornecedores e, inclusive, na potencialização do pagamento de tributos ao Estado. Sob tal influência, entrava em vigor a Lei de Recuperação Judicial e Falência (nº 11.101/05) com o intuito de revogar o antigo instituto da concordata e alcançar uma forma real de preservação da fonte produtiva de riqueza diante de uma crise financeira do empresário devedor, dado que a Falência não era interessante para nenhum dos setores da sociedade15. Ou seja, instituiu-se a Recuperação Judicial como a regra a ser buscada, enquanto a Falência passou a ser a exceção destinada tão somente àqueles que se encontram em um estado irreversível e de total irrecuperabilidade. Logo, o grande diferencial entre a atual Lei de Recuperação Judicial e Falência e o Decreto-Lei nº 7.661/45, que antes regulava a Falência e o velho instituto da concordata, é que o foco central passou a ser, realmente, a preservação da empresa — isto é, da produção de bens e serviços, dos empregos e dos interesses dos credores.16 Tentando sanar as incongruências da legislação anterior, diversos foram os efeitos da Lei nº 11.101/05, segundo Waldo Fazzio Junior17: Promulgada em 2005, a LRJF dilatou os tímidos e frustrados horizontes da legislação do século passado, consagrando justificável preferência por outras estratégias legais predispostas a assegurar sobrevida útil às empresas viáveis em crise econômico- financeira. Traz como divisa a reestruturação empresarial como meio de proporcionar 15 SALOMÃO FILHO, Calixto. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005 / coordenação Francisco Satiro de Souza Junior, Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 220. 16 PRINCÍPIO da Preservação da Empresa no olhar do STJ. Superior Tribunal de Justiça, Brasília, 2018. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-09-02_06- 03_O-principio-da-preservacao-da-empresa-no-olhar-do-STJ.aspx. Acesso em: 28 set. 2021. 17 FAZZIO JUNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 17/18. 22 maiores possibilidades de satisfazer aos credores, minimizar o desemprego, fortalecer e facilitar o crédito e, em consequência, poupar o mercado dos reflexos perversos da insuficiência dos agentes econômicos. Por esse ângulo, segundo Sacramone18, o novo regramento falimentar procurou elaborar instrumentos para que os diversos interesses envolvidos na condução da atividade empresarial, sejam eles do devedor, dos credores, da sociedade, dos consumidores, pudessem ser guarnecidos para que fosse alcançada a melhor solução comum a todos. Assim, desde a sua redação originária, houve uma limitação aos comportamentos do binômio credor-devedor, em vista a incentivar que ambos negociassem maneiras de superar o problema que se colocava em pauta. De um lado, o devedor teve tolhida a sua autonomia patrimonial, quando da distribuição do pedido de recuperação judicial, ficando impossibilitado de alienar ou onerar seus bens do ativo permanente, a não ser que fosse a utilidade reconhecida pelo juiz, após a oitiva do comitê de credores (art. 66, da Lei nº 11.101/05). Ademais, na defesa de uma isonomia de tratamento entre os credores, as empresas em estado de crise passaram a não poder satisfazer as suas obrigações vencidas mediante o pagamento de uma parcela dos credores em detrimento dos demais, ou seja, foram impedidas de exercer um juízo de predileção dos interesses, a não ser que houvesse a aprovação do plano de recuperação judicial para tanto (art. 172, da Lei nº 11.101/05).19 De outro lado, foi estabelecido um sistema cooperativo20 que incentivava a solidariedade e a comunhão entre os credores para a satisfação de seus interesses. Para tanto, comportamentos oportunistas que se limitavam à busca incessante do adimplemento dos créditos individuais foram deixados de lado, dando lugar ao empenho por alcançar uma solução comum que permitisse o cumprimento de todos os débitos.21 18 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de empresas e falência. 2. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 330. 19 Ibid. 20 Conforme SACRAMONE “Esse comportamento cooperativo entre os credores foi incentivado mediante a suspensão de suas ações e execuções com o deferimento do pedido de processamento da recuperação judicial (art. 6º). A suspensão propicia que, por maioria, buscassem os credores uma solução comum para a satisfação de todos os débitos, seja pela novação de suas obrigações na recuperação judicial das empresas viáveis, seja por meio da liquidação dos ativos da empresa inviável, por ocasião da decretação de eventual falência”. (SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, pág. 190) 21 Ibid. 23 No mesmo caminho, o art. 47 da supracitada lei fixou as balizas, e o próprio conceito, da Recuperação Judicial, reconhecendo-a como um instituto que tem por objetivo22: Viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Até então, a finalidade concursal vinha sendo fortemente influenciada pela conjuntura econômica e política do momento. Por isso, o ordenamento jurídico oscilava entre ora dar uma prevalência aos credores, ora promover uma maior preponderância ao devedor, denotando um movimento pendular que, procurando sanar as ineficiências da legislação anterior, abria espaços para que fosse dada uma maior centralidade aos agentes inseridos no procedimento concursal.23 Tentando romper com essa instabilidade (pendular) do escopo falimentar, a nova legislação estabeleceu um ambiente cooperativo pautado tanto na busca pela preservação empresarial quanto na satisfação das obrigações decorrentes da vontade dos credores envolvidos. Elementos estes que, à primeira vista, deveriam ser inseparáveis. Para tanto, buscou harmonizar os interesses dos credores e devedores, colocando em cena, pela primeira vez, a figura do instituto da Recuperação Judicial e, consequentemente, ampliando as possibilidades de saneamento financeiro das sociedades em crise, de modo a evitar a ruptura permanente da atividade econômica. Com isso, iniciava-se a era da busca pela efetivação do princípio da preservação da empresa. Consoante a doutrina de Fábio Ulhôa Coelho, por tal princípio24 O que se tem em mira é a proteção da atividade econômica, como objeto de direito cuja existência e desenvolvimento interessam não somente ao empresário, ou aos sócios da sociedade empresária, mas a um conjunto bem maior de sujeitos. O que se busca preservar, na aplicação do princípio da preservação da empresa, é, portanto,a atividade, o empreendimento. Nesse ponto, a Lei da Recuperação rompeu com a dinâmica das legislações antecessoras e dilatou o sentido desse princípio, para considerar a superação da crise econômico-financeira como um modo de satisfação, não apenas de interesses do devedor e de seus credores privados, 22 BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível na Internet: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm. Acesso em: 17 set. 2021. 23 SCALZILLI, Joao Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. História do Direito Falimentar da Execução pessoal à preservação da empresa. São Paulo: Almedina, 2018, p. 194/199. 24 COELHO, Fabio Ulhôa. Curso de direito empresarial: direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2014. 24 mas, em sendo reconhecida a sua função social, para assegurar também o atendimento dos interesses da população no geral, dos empregados e, inclusive, do Fisco. Por tal princípio, orientaram-se os intérpretes e aplicadores do Direito, utilizando-o como fundamento norteador à superação de eventuais conflitos, lacunas ou aparentes contradições e omissões legislativas. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça25 já reconheceu a importância do princípio da preservação da empresa, de modo que, na visão da Ministra Nancy Andrighi, o juízo falimentar passou a adotar melhores condições à superação da crise econômica e à consequente satisfação dos interesses econômicos abarcados: Não se pode perder de vista o objetivo maior, de preservação da empresa (...). O que buscou o legislador foi implementar a ideia de que a flexibilização de algumas garantias de determinados credores, conquanto possa implicar aparente perda individual, numa análise imediata e de curto prazo, pode significar ganhos sociais mais efetivos, numa análise econômica mais ampla, à medida que a manutenção do empreendimento pode implicar significativa manutenção de empregos, geração de novos postos de trabalho, movimentação da economia, manutenção da saúde financeira de fornecedores, entre inúmeros outros ganhos. (grifo nosso) Entretanto, a própria jurisprudência também oscilou em sua aplicação, ao ponderar entre a proteção da preservação da empresa e a defesa do interesse do credor estatal, frente à inconstância sobre a exigência (ou não) da certidão negativa de débitos fiscais junto ao processo recuperacional. Tal instabilidade será crucial ao entendimento do dualismo em que se estrutura o presente trabalho. Destarte, tal análise precisaria ser determinada de uma maneira proporcional que realmente ponderasse sobre os riscos acerca do embate gerado entre: a tutela da empresa em crise e a importância que deve ser dada à equalização da dívida tributária, com o escopo de ver realmente efetivada a recuperação da atividade econômica. Para tanto, não comporta sentido uma realidade que se limite a deixar como herança dos benefícios judiciais concedidos, o incentivo à postergação do problema e ao acúmulo de um passivo bilionário cada vez mais propício à insuperabilidade. E, em sentido completamente contrário ao desejo recuperacional, uma exagerada procura pela preservação de uma atividade sem propósitos e sem viabilidade econômica, apenas agravaria a insegurança e a desconfiança dos diversos credores. Visto que esses, deixados de 25 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Conflito de Competência nº 118.183 - MG (2011/0162516-0). Suscitante: Juízo da 1ª Vara do trabalho de Poços de Caldas - MG. Suscitado: Juízo de Direito do Juizado Especial Cível de Poços de Caldas - MG. Relator: Ministro Moura Ribeiro. Brasília, 04/09/2019. 25 lado, estariam cada vez mais distantes de enxergar a efetividade dessa recuperação e, por conseguinte, alcançar o resultado que lhe era esperado, ou seja, a satisfação de seu crédito ante o devedor inadimplente. Nessa linha, não há dúvidas que o Fisco, assim como os demais credores, também possui interesse no soerguimento da empresa, a fim de que esta torne-se capaz de honrar os débitos tributários que estejam em aberto. Entretanto, inócua seria a importância da Recuperação Judicial caso ela fosse utilizada em sentido contrário aos objetivos a que foi constituída, isto é, como subterfúgio para tentar se eximir das responsabilidades pendentes e, consequentemente, criar uma falsa impressão de preservação, maquiada pela procrastinação de certas dívidas. Assim, para alcançar a sua finalidade, não haveria outra saída senão fazer com que a empresa, que antes estava em crise, tivesse a oportunidade de voltar ao seu estado de prosperidade e cumprir com as suas responsabilidades pendentes, de modo a desempenhar a sua função social e ser economicamente eficaz. Ora, como seria possível retornar ao seu status quo ante26 sem que a recuperanda também preze pela regularização de sua situação fiscal? Diante de tal conjuntura, não se pode deixar de considerar que, observando-se a realidade econômica brasileira, os empresários e as sociedades empresárias em crise, geralmente, apresentam alto passivo tributário, sendo as obrigações dessa natureza as que, por norma, primeiramente deixam de ser cumpridas pelo devedor. É evidente que o soerguimento de uma empresa em crise não pode se limitar ao mero cumprimento dos interesses de seus credores privados, mas também precisará prezar pela equalização de seu passivo fiscal a fim que, de fato, seja cumprida a função social da empresa, a qual também passa pelo pagamento dos tributos, conforme será bem demonstrado nos tópicos seguintes. 26 MORENO conceitua o Statu quo como “uma redução da expressão latina in statu quo ante, que significa, literalmente, ‘no mesmo estado em que se encontrava antes’”. (MORENO, Cláudio. Statu quo. Disponível em: https://sualingua.com.br/2009/05/05/statu-quo/. Acesso em: 08 out. 2021). No sentido empregado no texto, leia-se “Estado anterior à crise econômica”. 26 2.2. O Crédito Tributário e o cumprimento de sua função social a fim de resguardar a sua efetividade Antes de entrar mais a fundo nessa necessidade de valorização do passivo fiscal em sede de Recuperação Judicial, importa-nos desvencilhar também sobre o desenvolvimento conceitual do crédito tributário ao longo dos anos e os princípios que norteiam a sua incidência no nosso ordenamento jurídico. Nesse ínterim, consoante a doutrina de Hugo de Brito Machado27, o crédito tributário representa “a formalização da obrigação tributária, ou seja, do dever de pagar o tributo ou a penalidade pecuniária”. Em outras palavras, o autor conceitua tal instituto como um vínculo jurídico, proveniente do lançamento tributário, de natureza obrigacional, por força do qual o Estado, no papel de sujeito ativo, terá a possibilidade de exigir do particular, contribuinte ou responsável (sujeito passivo), o pagamento do objeto da relação jurídica, isto é, do tributo ou da penalidade pecuniária, tornando o tributo exigível por sua liquidez e certeza.28 Nesse sentido, assegura com propriedade Eduardo Sabbag29 que “o poder de tributar é, em verdade, um poder de Direito, lastreado no consentimento dos cidadãos, destinatários da invasão patrimonial, tendente à percepção do tributo”. Com isso, o Estado exerce o seu direito subjetivo de cobrar do contribuinte aquilo que o Código Tributário Nacional, em seu art. 3º, define como uma prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada, ou seja, o tributo. Para além do seu conceito, o tributo,assim como ocorre na atividade empresarial, também cumpre uma função social em nosso ordenamento jurídico. Isto porque, a partir de sua arrecadação, tal prestação pecuniária contribuirá para que o Estado cumpra com o seu papel de viabilizador do bem-estar social, ou melhor, que proceda ao pleno desenvolvimento de suas atividades de modo a estimular o progresso social. Assim nos esclarece Salete de Oliveira Domingos30: 27 MACHADO, Hugo de Brito. Manual de Direito Tributário. 11 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2019. 28 Ibid. 29 SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. São Paulo: SaraivaJur, 2019, p. 55-56. 30 DOMINGOS, Salete de Oliveira. A Função Social do Tributo sob o enfoque do princípio da dignidade humana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 223. 27 Os efeitos da política tributária se refletem diretamente em toda sociedade e definem a estrutura econômica de um país; ela é decisiva para definir a estrutura da sociedade. Por essa razão, para haver equilíbrio nas relações que envolvem a tributação, devem ser observadas a aplicação dos ditames constitucionais e dos direitos fundamentais, mas principalmente os seus princípios norteadores. Assim, a política tributária deve ser estabelecida sempre respeitando a função social do tributo. Ocorre que, do mesmo modo em que o Estado cumpre o seu papel, urge ponderar que o indivíduo também detém como incumbência o dever de contribuir, mediante o pagamento de tributos, para a comunidade em que se insere, em vista a gerar reciprocidade e solidariedade em seu meio. Reforçando tal visão, o professor Ricardo Lobo Torres31 reconhece o dever fundamental da tributação: O tributo se define como dever fundamental estabelecido pela Constituição no espaço aberto pela reserva da liberdade e pela declaração dos direitos fundamentais, transcende o conceito de mera obrigação prevista em lei, posto que assume uma dimensão constitucional. No mesmo sentido, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso32, ao proferir seu voto em sede da Repercussão Geral 601.314, foi incisivo ao reconhecer que, em se tratando de um dever fundamental, a interpretação das regras e princípios que regem a cobrança tributária não pode servir para afastar tal responsabilidade, concluindo que: Não há um direito subjetivo a fugir da incidência tributária, como alguns podem pensar. O Estado é um projeto coletivo, financiado pela contribuição de toda a Sociedade, e, portanto, o pagamento de tributos é um dever fundamental estabelecido constitucionalmente. Essa noção decorre diretamente da feição Fiscal assumida pelo Estado Contemporâneo e é a contrapartida ao elenco de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. É por isso que, muito embora, aprecie-se a situação de empresas em estado de crise, não há que se falar aqui em um direito de “impunidade” à cobrança tributária, ou seja, não deve a situação de crise servir de parâmetro para a oportunidade de postergar infinitamente a dívida fiscal em prol da preservação empresarial. Muito pelo contrário, também é dever das empresas, ainda que em estado de recessão econômica, contribuir com a política tributária e, assim, buscar sanar o seu passivo fiscal, ainda 31 TORRES, Ricardo Lobo. O conceito constitucional de tributo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004, p. 07. 32 BARROSO, 2016 apud BARBOSA, Marcus Vinícius. Constitucionalização do Direito Tributário e o Supremo Tribunal Federal: Aportes Doutrinários e Jurisprudenciais para um Direito Tributário Renovado. Revista da EMERJ - v. 21 - n. 03, set - dez, 2019, p. 432. 28 que, para tanto, seja necessário o apoio de novos mecanismos que evitem a irrecuperabilidade de seus débitos e facilitem o alcance de sua regularização. E, para tanto, a dívida tributária não deve ser vista como um instrumento nocivo e capaz de ferir o mínimo existencial das recuperandas, mas enxergada como um elemento hábil a exercer uma função social e que, quando cumprido, passará a ser valorado como uma etapa superada na trajetória de soerguimento do estado de crise empresarial. Aproximando-se do âmbito da recuperação, é evidente que, se de um lado, há a busca pela preservação da empresa, do outro, também se estabelecem os interesses do Fisco em ver cumpridas, de maneira efetiva, as dívidas tributárias pendentes, visando ratificar a vigência desse dever fundamental e, por conseguinte, alcançar tal função social. E é em razão desse interesse, que o princípio da máxima efetividade também se torna perfeitamente aplicável ao cerne fiscal, visto que aquilo se busca é a efetiva cobrança do crédito público, em vista a alcançar o seu adimplemento, ainda que, para tanto, seja preciso equilibrar as balizas entre tal efetividade e a preservação da dignidade do devedor. Nesse sentido, Cândido Rangel Dinamarco33 comenta que não se deve abrir espaço para exageros nem aceitar que estes conduzam ao comprometimento da efetividade da tutela executiva em nome do suposto direito do devedor a resistir descontroladamente ao exercício da jurisdição. Aqui fica clara, portanto, a repulsa à já citada ideia ao direito de impunidade do devedor, uma vez que um princípio, ao menos em regra, não pode ser aplicado de maneira desenfreada a ponto de esvaziar, por completo, o campo de incidência de outro sem que tenha fundamentos efetivos para tanto. Em verdade, os princípios, quando dispostos em estado de conflito, indicam soluções diferentes conforme o caso em que se inserem. Assim, leciona Robert Alexy em sua obra “Teoria dos Direitos Fundamentais”34: A solução para essa colisão consiste no estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto. Levando-se em consideração o caso concreto, o estabelecimento de relações de precedências condicionadas consiste na fixação de condições sob as quais um princípio tem precedência em face do outro. Sob outras condições, é possível que a questão da precedência seja resolvida de forma contrária. 33 DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova Era do Processo Civil. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. 34 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. Disponível em: http://noosfero.ucsal.br/articles/0010/3657/alexy-robert-teoria-dos-direitos- fundamentais.pdf?fbclid=IwAR1SRmq5I3YBvVijjVZv_DMvu1nH-A3-HdUt4lMTZLi5t_QUaSKWQE5F8fk. Acesso em: 04 out. 2021. 29 De tal forma, a solução para o conflito principiológico só será encontrada a partir da análise das circunstâncias do caso concreto. Isto é, apenas se examinando a situação disposta, será possível encontrar condições sob as quais um princípio venha a preceder o outro. Com base em tais preceitos, geralmente, enquanto a empresa que vive aguda crise econômico-financeira busca meios para, a partir de um plano de recuperação judicial devidamente aprovado pelos credores, se reerguer; o Fisco, exercendo um direito que lhe é legítimo, exige regularmente os seus créditos tributários, inscrevendo-os em dívida ativa, remetendo as Certidões de Dívida Ativa para protesto e ajuizando as respectivas ações de execução fiscal, sem qualquer relação ou comprometimento com o plano de reestruturação. Ocorre que, na prática, o tributo ainda tende a ser o primeiro dos “cortes” realizados pelo empresário em situação de crise35. Posto que é mais interessante ao devedor cumprir com suas pendências junto aos seus fornecedores, consumidores e empregados, a fim de manter em giro o ciclo econômico a que está inserido, ao passo em que posterga a equalização do seu passivo fiscal frente a um Estado “capaz de arcar com tal morosidade” e que sequer oferecerá ameaças à continuidadede sua atividade. Ora, mas se o pagamento dos tributos cumpre uma função social e, ao mesmo tempo, representa um dever fundamental a ser cumprido pela sociedade, não deveria ser tal responsabilidade um objeto central a também ser seguido no âmbito da Recuperação Judicial? Ou melhor, seria efetiva uma reestruturação que se restringisse tão somente aos interesses dos credores privados em detrimento à situação do Fisco? Afinal, a busca pela preservação da empresa e pela máxima efetividade dos tributos caminham em sentidos harmônicos ou opostos? Conforme será visto minuciosamente no tópico seguinte, para a Lei de Recuperação Judicial, ao menos em seu teor originário, o crédito tributário é extraconcursal, ou seja, não se submete às negociações inseridas no processo, além de não ver suspensa a sua cobrança após o deferimento do processamento da Recuperação Judicial. Tanto que, visando, ao menos no papel, garantir uma maior centralidade a tais créditos no âmbito recuperacional, a própria lei prevê, em seu art. 57, a importância de que seja juntada a certidão de regularidade fiscal36 para fins de prosseguimento da Recuperação Judicial. Com 35 AMORIM, Julia Andery. Análise do Pagamento Tributário durante o processamento da Recuperação Judicial. Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu, 2020. 36 Lei de Recuperação Judicial e Falência (n. 11.101/05): Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 — Código Tributário Nacional. 30 isso, a lei objetivava que a superação do estado de crise também estivesse alinhada à regularização junto ao Fisco. Para os procuradores da Fazenda Nacional Daniele de Lucena Zanforlin e Gabriel Augusto Luís Teixeira Gonçalves37: A LRJF não deixava brechas (ou assim se imaginava): o soerguimento de uma empresa em dificuldade deve necessariamente abarcar a equalização de seu passivo fiscal, de sorte que a par de obter a novação de sua dívida junto aos credores privados, a recuperanda também se encontre em situação regular perante o Fisco. A homologação do plano de recuperação atenderia, a um só tempo, ao princípio da preservação da empresa (art. 47 da LRJF) e à função social da mesma, que também passa pelo pagamento de tributos. Tais autores entendem que a Lei nº 11.101/05 até tentou aproximar a relação entre o credor fiscal e as empresas em recuperação judicial. Entretanto, conforme será bem tratado no presente escrito, o mesmo esforço não vem sendo perpetrado pelos Tribunais que, colecionando teses voláteis e conflituosas sobre tal conjuntura, acabam contribuindo para que o passivo tributário assuma “uma figura meramente decorativa nos balanços contábeis de empresas em recuperação judicial”.38 Como consequência disso, restava estabelecido o chamado dualismo entre o crédito tributário e a Recuperação Judicial. Ou seja, a determinação de uma disposição antagônica entre dois institutos que, na realidade, deveriam atuar em conjunto de modo a alcançar o objetivo comum, qual seja, a efetivação das dívidas fiscais com o intuito de resguardar a preservação da empresa e ver cumprida a função social de ambos. Para tanto, maquiar o problema não representava uma solução a ser considerada. Em virtude disso, tal realidade urgia por mecanismos que tornassem viáveis o soerguimento das empresas em estado de crise, permitindo a recuperabilidade de débitos tidos antes como insanáveis, e servindo como alicerce de reaproximação entre o crédito tributário e as empresas recuperandas. Sob tal premissa, o Fisco passaria a ver tutelado, de maneira efetiva, os seus interesses, ao passo em que a Recuperação Judicial deixaria de ser utilizada como forma de obtenção de vantagens tributárias, para realmente cumprir com o seu papel de preservação empresarial. 37 GONÇALVES; ZANFORLIN, 2021. 38 Ibid. 31 2.3. A posição do crédito tributário em sede de Recuperação Judicial antes da reforma da Lei nº 11.101/05 (Lei da Recuperação Judicial e Falência) Conforme já tratado nos tópicos anteriores, a Recuperação Judicial tem como escopo essencial a busca por viabilizar a superação da realidade de crise econômico-financeira do devedor e, com isso, garantir a preservação da empresa e de sua função social. Contudo, sem o equacionamento do seu passivo tributário, não seria possível afirmar que determinada empresa estaria, de fato, recuperada, uma vez que restaria pendente o cumprimento de tais obrigações fiscais e a satisfação dos interesses do Fisco, como credor que também deve ser considerado. Além disso, o incessante acúmulo de tais pendências relegadas, ao invés de contribuir para a visada preservação empresarial, tão somente favorece o surgimento de dívidas cada vez mais difíceis de serem saneadas e de um estado de crise quase que irreversível, colocando a perder todo e qualquer avanço colhido no âmbito recuperacional. Entretanto, antes de tornar ainda mais compreensível o estabelecimento do dualismo em que se depreende o presente trabalho, é imprescindível perpassar também pelo modo em que o crédito tributário foi inserido, desde o início pela Lei nº 11.101/05, perante o processo de recuperação judicial. Como ponto de origem, o Código Tributário Nacional, em seus arts. 186 e 187, na redação disposta pela Lei Complementar nº 118/2005, instaurada no mesmo dia da promulgação da Lei de Recuperação Judicial e Falência, estabeleceu que: Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em Falência, Recuperação Judicial, Concordata, inventário ou arrolamento. De tal forma, o crédito tributário não poderia se sujeitar ao plano de reestruturação e aos efeitos da Recuperação Judicial. Na verdade, por tais dispositivos, o legislador objetivou dar evidência à função social conferida aos tributos, de modo a garantir um tratamento privilegiado à cobrança fiscal, uma vez que não concorreria e, ao mesmo tempo, teria preferência sobre as demais dívidas. Nestes termos, conclui Tiago Luiz de Moura Albuquerque39: 39 ALBUQUERQUE, Tiago Luiz de Moura. O crédito tributário na recuperação judicial: um novo paradigma na participação da Fazenda Pública no saneamento da situação de crise da devedora. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/credito-tributario-recuperacao-judicial-26042021. Acesso em: 18 out. 2021. 32 No pressuposto de que o crédito tributário pertence ao Estado e, portanto, importa a todos nós, o tratamento que lhe é dispensado é de privilégio: tem preferência legal (CTN, art. 186) e não está sujeito a concurso de credores ou habilitação em recuperação judicial (CTN, art. 187). Partindo desse ideal de que os efeitos recuperacionais não alcançariam a cobrança judicial da dívida fiscal e, por sua vez, iriam se restringir aos débitos ligados aos credores particulares, a Lei nº 11.101/05 também previu que em sendo deferido o processamento da Recuperação Judicial, ao contrário do que acontecia com as demais execuções, as execuções fiscais não estariam sujeitas à suspensão. É o que se extrai da redação antiga do § 7º, do art. 6º: Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário: (redação originária) § 7º As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperaçãojudicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica. (redação originária) Afastava-se aqui, parcialmente, o chamado princípio da universalidade do juízo falimentar ou princípio da força atrativa da Falência (vis attractiva), processo ao qual devem acorrer todos os credores do devedor em sede de Recuperação Judicial.40 Ao mesmo tempo, a própria lei abria uma exceção, permitindo que fosse suspensa a execução fiscal, nos casos de parcelamento. Com isso, tornava-se clara a tentativa, ainda que insuficiente por falta de regulamentação, do legislador em, ao menos em tese, buscar mecanismos para sanear tal passivo fiscal, ou ao menos, reconhecer a necessidade de se dar maior centralidade ao interesse do Fisco no âmbito recuperacional. No entanto, ao passo em que se abria espaço para que as execuções fiscais permanecessem em curso ainda na vigência do processo recuperacional, surgia também a preocupação de que tal prosseguimento incentivasse a determinação de penhoras e da constrição dos bens das empresas sob o afã de satisfazer o crédito tributário. Fato este que poderia trazer como resultado uma eventual impossibilidade física de cumprir os ditames arrolados pelo devedor e aprovado pelos demais credores. Ainda visando reaproximar o crédito tributário do processo de Recuperação Judicial, uma vez que prezava pela harmonia entre os princípios da preservação e da satisfação do interesse do credor público, a Lei nº 11.101/05 foi taxativa ao prever, em seu art. 57, que após 40 BEZERRA FILHO, Manoel Justino Bezerra. Nova Lei de Recuperação e Falência comentada. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. 33 a juntada do plano de recuperação aprovado pela assembleia-geral de credores, a empresa recuperanda e devedora teria o dever de apresentar certidões negativas de débitos tributários para homologação do plano.41 Sob o mesmo pretexto, a LRJF também acresceu, ao Código Tributário Nacional, a exigência de que a concessão da recuperação judicial somente ocorra mediante apresentação da prova de quitação de todos os tributos, consoante o disposto no art. 191-A da Lei Complementar nº 5.172/66 (CTN): Art. 191-A. A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei. (Incluído pela LC nº 118, de 2005) Em razão disso, ao menos na seara legal, não havia dúvidas de que a superação da crise empresarial somente poderia se perfazer mediante a equalização do passivo fiscal. Contudo, do modo que se verá no tópico seguinte, a instabilidade jurisprudencial e a volatilidade de entendimentos acerca de tais dispositivos, acabaram por criar um limbo entre a relação firmada perante a satisfação do crédito tributário e a busca pela preservação e recuperação das empresas em crise. Basicamente, proliferaram-se entendimentos pautados na prevalência da preservação da empresa e na necessidade de se flexibilizar as formas de pagamentos aos credores, nos quais também se incluem o Poder Público. Entretanto, “flexibilizar as formas de pagamento” é completamente diferente de “suprimir e mitigar” os meios de saneamento da dívida pública. Como consequência dessa volatilidade jurisprudencial, os dispositivos expressos na Lei de Recuperação e Falência passaram a se resumir à mera folha de papel diante de uma realidade em que as empresas, mesmo em estado de crise, simplesmente, não saneavam as suas dívidas fiscais. Tanto que, nas palavras de Tiago Albuquerque42, não havia meios de consolidar o débito tributário dentro de uma reestruturação de dívida no processo, já que o crédito tributário não era habilitado na Recuperação Judicial. Em verdade, as empresas até tinham a Recuperação Judicial como um meio para alcançar a superação da crise, mas ainda se esbarravam em um sistema sem mecanismos efetivos à renegociação do passivo tributário, fato este que contrariava 41 Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional. (Lei nº 11.101/05) 42 ALBUQUERQUE, 2021. http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%205.172-1966?OpenDocument 34 por completo o sentido de preservação e, tão somente, contribuía para o acúmulo incessante de dívidas que, ignoradas, tornavam-se irrecuperáveis. Por tal cenário, a Fazenda Pública era deixada de lado por não ter uma existência efetiva na Recuperação Judicial. E, em boa parte das vezes, a dívida pública era o principal motivo da empresa se encontrar em estado de crise econômica, mas, em razão de ser sempre desprezada e o Fisco não conseguir exercer a influência necessária, não era possível alcançar, de fato, o objetivo do art. 47 da Lei em estudo, qual seja, a “viabilização da superação da situação de crise-econômica do devedor”. Em razão de toda essa conjuntura, a própria Lei nº 11.101/05 acabou por ser influenciada e, com isso, criavam-se desvios à eficiência da Recuperação Judicial e abriam-se brechas para o desenvolvimento de um dualismo entre o crédito tributário e as empresas recuperandas. Em outras palavras, o ordenamento jurídico, contrariando os princípios condizentes aos interesses dispostos na recuperação, impedia que os objetivos de maximizar ativos e distribuí- los de forma igualitária entre os credores, sejam eles públicos ou privados, se concretizassem, prejudicando não só o cumprimento das obrigações estabelecidas, mas o próprio ideal de preservação da empresa. 35 3 DA INSTABILIDADE JURISPRUDENCIAL ACERCA DA (IN)EXIGIBILIDADE DE CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL NO ÂMBITO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL Consoante o que já foi adiantado no presente trabalho, esse citado distanciamento do crédito tributário no âmbito da Recuperação Judicial, não surgiu do nada. Nessa toada, não há dúvidas de que o nosso ordenamento jurídico está sujeito a mudanças, seja em razão da dinamicidade imposta pela sociedade, da alteração na realidade fática, de uma nova percepção do Direito ou, até mesmo, por uma necessidade de renovação e adequação do que deve ser considerado ético ou justo. Apesar disso, quando tratamos de empresas que se encontram em situação de crise, ou melhor, que já estão inseridas em um contexto de ruptura, desequilíbrio e de instabilidade, não há outra saída senão a busca por soluções estáveis, concretas, e que, realmente, contribuam para a superação do problema apresentado. Observe que a ninguém interessa um sistema inflexível e engessado, mas o que se busca é um modelo que, ao menos, proporcione o mínimo de segurança jurídica, principalmente, àqueles que se encontram em situação de desamparo e que carecem de apoio para alcançar o tão esperado soerguimento empresarial. No entanto, não é essa a realidade que vem sendo oferecida às empresas em recuperação. Na verdade, o exercício independente da jurisdição tem motivado certa insegurança aos jurisdicionados, principalmente, em função da volatilidade dos entendimentos jurisprudenciais sobre temas relevantes à sociedade.43 Seja no Superior Tribunal de Justiça, no STF ou nos demais Tribunais espalhados pelo país, a mudança constante de entendimentos, completamente antagônicos entre si, deixou de ser somente a exceção e vem se tornando, cada vez mais, a regra. Por exemplo, no próprio âmbito recuperacional, perduram-se questionamentos acerca da consonância da (in)exigibilidade de certidão
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