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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CCHLA – DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ISAMABÉLI BARBOSA CANDIDO Do Romanesco à Cena: transbordamentos infinitos em Querô, uma reportagem maldita de Plínio Marcos NATAL – RN 2018 Isamabéli Barbosa Candido Do Romanesco à Cena: transbordamentos infinitos em Querô, uma reportagem maldita de Plínio Marcos Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora em Literatura Comparada. Linha de Pesquisa: Poéticas da Modernidade e da Pós- Modernidade. Orientador: Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante NATAL – RN 2018 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Candido, Isamabéli Barbosa. Do romanesco à cena: transbordamentos infinitos em Querô, uma reportagem maldita de Plínio Marcos / Isamabéli Barbosa Candido. - 2018. 189f.: il. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem. Natal, RN, 2018. Orientador: Prof. Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante. 1. Querô. 2. Rapsódia. 3. Trágico do Quotidiano. 4. Adaptação de Romance. 5. Apropriação (Arte). I. Cavalcante, Alex Beigui de Paiva. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091-1 Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748 ISAMABÉLI BARBOSA CANDIDO DO ROMANESCO À CENA: TRANSBORDAMENTOS INFINITOS EM QUERÔ, UMA REPORTAGEM MALDITA DE PLÍNIO MARCOS Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutora em Literatura Comparada. Linha de Pesquisa: Poéticas da Modernidade e da Pós-Modernidade. Banca Examinadora: ________________________________________ Prof. Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante Universidade Federal do Rio Grande do Norte Orientador _________________________________________ Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves Universidade Federal do Rio Grande do Norte Avaliadora ________________________________________ Profa. Dra. Monize Oliveira Moura Universidade Federal do Rio Grande do Norte Avaliadora ______________________________________ Profa. Dra. Rebeka Caroças Seixas Instituto Federal do Rio Grande do Norte Avaliadora ___________________________________ Profa. Dra. Vera Regina Martins Collaço Universidade do Estado de Santa Catarina Avaliadora Ao meu avô, Sr. Zé Cândido, pela força que tem demonstrado. Agradecimentos Agradeço, antes de todos e de tudo, a Deus por me permitir escrever além das linhas que se seguem uma Tese da vida, como costumava dizer, de aprendizados que pude colher ao longo desses anos e que levarei para sempre. Ao mestre Jesus, nosso Sol de grandeza maior e a toda a espiritualidade amiga que aliviaram a tensão e o sofrimento me permitindo aprender a confiar cada vez mais, por todo amor. Aos meus pais que se esforçaram e se sacrificaram quando precisei morar em Natal ainda sem bolsa. Por me fazerem acreditar que é possível e mostrar a importância do conhecimento. Aos meus irmãos, Neto, Erivelton e Mariéli que tanto me ajudaram e se doaram, muitas vezes seguindo viagem comigo para que eu não perdesse aula. Aos meus pequenos, minha fonte de energia e de vida, Maísa, Miguel, Michel, Heloísa e Eduarda, pela significativa contribuição, principalmente, na escrita da Tese da vida. Aos familiares, avós, tios, primos, cunhadas e cunhado que acreditam no meu potencial e por todo incentivo em dias de desânimo. Ao meu companheiro, amigo, amor, Danilo Losada, que chegou quando a caminhada do doutorado já havia iniciado e me trouxe aconchego e paz. Pela compreensão quando precisei me isolar, por segurar em minha mão sempre que me faltou força e pela família que estamos construindo. Ao meu orientador Dr. Alex Beigui, não apenas pelas orientações e contribuição para a construção da Tese, mas, pelo professor apaixonado que é pela profissão, por dividir comigo sua experiência em sala de aula. Aos jovens, crianças e à equipe de evangelizadores do Nosso Lar, Adalberto, Catarina, Cris, Dani, Eduardo, Flávia, Graça e Tiana pelo companheirismo, incentivo e apoio. A banca de qualificação, Rebeka Caroças e Márcio Venício, pelo olhar atento que fizeram a diferença para que conseguisse concluir. Ao professor Edvaldo, Beth e Gabriel, por estarem sempre abertos a nos receber e dispostos a ajudar. Aos que fazem o Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, por abrirem suas portas e nos tornarem pessoas de casa. Aos amigos de hoje e de sempre, Thereza, Ana, Maísa, Maria da Luz, o Velho, Sr. Leopoldo, Eulália e aos queridos professores do programa Marta Gonçalves, Rosanne e Ilza Matias. À Capes que não imagina o quanto agradeço a ajuda que tornou o fim desse sonho possível. RESUMO Este trabalho faz uma reflexão teórica de aspectos relativos à nova forma dramatúrgica, em desenvolvimento no teatro brasileiro moderno e contemporâneo, trata-se de um estudo, a partir das leituras de Querô, uma reportagem maldita, de Plínio Marcos (1992, 2003, 2009). Compara-se, neste percurso, a adaptação do romance pelo próprio Plínio Marcos para o texto dramatúrgico e a apropriação, nos termos de Beigui (2006), que culmina no espetáculo, elaborado pelo grupo teatral de São Paulo, o Galpão Folias d‟Arte, com o objetivo de discutir criticamente as leituras e construção dessas produções. Observou-se que o processo apropriativo resulta em uma forma dramatúrgica profundamente ligada às propostas de Jean-Pierre Sarrazac (2000, 2011, 2012), uma vez que aponta para o “rapsódico”, sobretudo porque se percebe nas várias leituras de Querô uma forma mais livre, cujos limites entre mimese e diegese estão tênues, como um conceito que amplia a mudança de paradigma, o “drama- da- vida” (termo do próprio Sarrazac). Pesquisa-se também sobre a romancização, uma vez que o conceito de “rapsódia”, pensado por Sarrazac (2002; 2012), de algum modo, está relacionado à discussão apresentada por Bakhtin (1998) sobre a “romancização”. Esta Tese, incluída no âmbito dos estudos comparativos, devido apresentar um caráter intermidial, propõe discutir, através da análise/comparação de Querô, os elementos do trágico, tendo em vista que, nela, se defende a presença de um “trágico do quotidiano” bem como, conforme Sarrazac (2013), a presença do homem comum, o impersonagem que vai sustentar o princípio do trágico no autor trabalhado. PALAVRAS-CHAVE: Querô; rapsódico; trágico do quotidiano; adaptação; apropriação. ABSTRACT This work seeks to make a theoretical reflection on aspects related to the new dramaturgic forms, in development in modern and contemporary Brazilian theater, it is a study, with several readings of Querô, a cursed report, by Plínio Marcos (1992, 2003, 2009). A comparsion is made, from the adaptation of the novel by Plínio Marcos himself to the dramaturgical text and of the appropriation, in the terms of Beigui (2006), that culminates in the spectacle, elaborated by the theatrical group of São Paulo, the Galpão Folias d’Arte, with The objective ofcritically discuss the readings and construction of these new productions. In this sense, it was observed that the appropriative process results in a dramaturgical form that is deeply linked to the proposals of Jean-Pierre Sarrazac (2000, 2011, 2012), since it points to the "rhapsodic", especially since it is perceived in the various readings of Querô a freer form, in which the boundaries between mimesis and diegesis are tenuous, as a concept that extends the paradigm shift, the "drama-of-life" (Sarrazac's own term). In this way, we also discuss about romanticise, since the concept of "rhapsody", by Sarrazac (2002, 2012), is related to Bakhtin's (1998) discussion of "romantisizing". So that this thesis, included in the scope of the comparative studies due to present an intermidial character, proposes to discuss through the analysis / comparison of Querô, the tragic elements in the works, considering that the presence of a “tragic quotidian" as well as, according to Sarrazac (2013), the presence of the common man, the impersonnage that will sustain the tragic. KEY WORDS: Querô; rhapsodic; tragic quotidian; adaptation; appropriation. RESUMEN Este trabajo busca hacer una reflexión teórica de aspectos relativos a las nuevas formas dramatúrgicas, en desarrollo en el teatro brasileño moderno y contemporáneo, se trata de una obra, con varias lecturas de Querô, un reportaje maldito, de Plínio Marcos (1992, 2003, 2009 ). Se comparó, en este ensayo, a partir de la adaptación de la novela por el propio Plinio Marcos para el texto dramatúrgico y la apropiación, en los términos de Beigui (2006), que culmina en el espectáculo, elaborada por el grupo teatral de São Paulo, el Galpão Folias d’Arte, con el objetivo de discutir críticamente las lecturas y la construcción de esas nuevas producciones. En ese sentido, se observó que el proceso apropiativo resulta en una forma dramatúrgica profundamente vinculada a las propuestas de Jean-Pierre Sarrazac (2000, 2011, 2012), ya que apunta al "rapsódico", sobre todo porque se percibe en las varias lecturas de Querô una forma más libre, en que los límites entre mimese y diegese son tenues, como un concepto que amplía el cambio de paradigma, el "drama de la vida" (término del propio Sarrazac). Por lo tanto, se discurre también sobre la romanciación, ya que el concepto de "rapsodia", pensado por Sarrazac (2002; 2012), de algún modo, está relacionado con la discusión presentada por Bakhtin (1998) sobre la "romancización". De modo que esta tesis, incluida en el marco de los estudios comparativos, debido a presentar un carácter intermedio, propone discutir, a través del análisis / comparación de Querô, los elementos del trágico en Querô, teniendo en vista que se defiende la presencia de un "trágico de la vida cotidiana "así como, según Sarrazac (2013), la presencia del hombre común, el impersonaje que va a sostener lo trágico. PALABRAS CLAVE: Querô; rapsódico; trágico de la vida cotidiana; adaptación; apropiación. ÍNDICE DE FIGURAS FIGURA 01 – A Cantora e a banda do Cabaré Leite da Mulher Amada ................... 157 FIGURA 02 – Primeira Cena ..................................................................................... 159 FIGURA 03 – Cena do conflito entre Querô e os policiais ........................................ 159 FIGURA 04 – Cena entre Querô e a Repórter ............................................................ 160 FIGURA 05 – O coro de prostitutas do Cabaré Leite da Mulher Amada .................. 161 FIGURA 06 – O fantasma de Leda ............................................................................ 164 FIGURA 07 – Conflito entre Neslão, Sarará e Querô ................................................ 165 FIGURA 08 – Encontro entre Querô e Tainha ........................................................... 165 FIGURA 09 – Batismo de Querô ............................................................................... 166 FIGURA 10 – Diálogo entre “Tainha de Jesus” e Querô ........................................... 167 FIGURA 11 – Morte de Querô ................................................................................... 167 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13 CAPÍTULO 1 QUERÔ: UM TRÁGICO DO QUOTIDIANO ........................................................................ 24 1.1 QUALQUER TEATRO É O MEU TEATRO ............................................................... 24 1.2 O NASCIMENTO DE UM TRÁGICO DO QUOTIDIANO ........................................ 30 1.3 IMPERSONAGEM E FAIT DIVERS .............................................................................. 50 1.4 QUERÔ: SUBALTERNIDADE, MARGINALIDADE E MULTIDÃO ..................... 56 CAPÍTULO 2 ENTRE LIMITES: ADAPTAÇÃO E APROPRIAÇÃO ......................................................... 62 2.1. O SURGIMENTO DE UM DIÁLOGO ........................................................................ 62 2.2. ADAPTAÇÃO TEXTUAL: DO ROMANCE À CENA ............................................... 71 2.3. APROPRIAÇÃO CÊNICA: DA PEÇA AO PALCO ................................................... 83 CAPÍTULO 3 UMA FORMA MAIS LIVRE DO DRAMA ........................................................................... 93 3.1 ROMANCE, OBRA HÍBRIDA E ROMANCIZAÇÃO: CAMINHOS PARA O RAPSÓDICO ........................................................................................................................... 93 3.1.1 ROMANCIZAÇÃO ................................................................................................... 103 3.2 A MUTAÇÃO DA FORMA DRAMÁTICA .............................................................. 109 3.2.1 O RAPSÓDICO EM QUERÔ, UMA REPORTAGEM MALDITA ............................ 115 3.2.2 A PERSONAGEM NO TEATRO ............................................................................. 124 3.2.3 DIÁLOGO E DIALOGISMO ................................................................................... 135 CAPÍTULO 4 O TEATRO QUE SE QUER FAZER: GRUPO GALPÃO FOLIAS d‟ARTE ..................... 140 4.1 TEATRO - CONTEXTUALIZAÇÃO ............................................................................. 140 4.2 A CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA ....................................................................... 142 5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 169 6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 174 7 - ANEXOS ........................................................................................................................... 184 7.1 FICHA TÉCNICA ............................................................................................................ 185 7.2 CRONOLOGIA DO TEATRO ADULTO – PLÍNIO MARCOS ................................... 186 7.3 PROGRAMA DO ESPETÁCULO .................................................................................. 188 7.4 MANUSCRITO ................................................................................................................ 189 13 INTRODUÇÃO Durante nossa pesquisa, a proposta inicial de estudar aspectos da obra de Plínio Marcos, Querô, uma reportagem maldita à luz das teorias desenvolvidas por Sarrazac (2002; 2013a), as noções de “rapsódico” e o “trágico do quotidiano”, bem como uma leitura que compara pela diferença a partir do conceito de apropriação, com base em Beigui (2006) e Sanders (2015), se deparou com a falta de outros parceiros teóricos que nos ajudassem ainda mais a fundamentaro que estávamos querendo defender. Dessa forma, nosso primeiro passo ao ter em mãos o texto dramatúrgico Querô, uma reportagem maldita (1979) de Plínio Marcos foi pensar o lugar dessa obra no teatro moderno e contemporâneo brasileiro. Assim, as primeiras leituras despertaram nosso interesse, levando-nos a inquietações que começaram desde os estudos iniciados no ano de 2011, no projeto de Mestrado 1 . Desse modo, em nossas primeiras reflexões observamos que a obra não correspondia às exigências das formas dramatúrgicas conforme preconizadas pelas clássicas teorias dos gêneros. A partir de uma reportagem, Plínio escreve a história de um menor abandonado, nascido e criado por entre o Cais do Porto e os cabarés da cidade de Santos em São Paulo. A teia de complexidades que se forma em Querô 2 é representada a partir de cada personagem que caracteriza a figura do homem moderno revelando, assim, através dos contrastes e dos vazios, a forma estética do caos contemporâneo. Uma teia composta por elementos comuns como: o menino que abandona a infância e junto ao bando do Tainha ganha maturidade assumindo de vez o nome Querô; o lugar que torna-se o palco onde acontecem as confusões, “O leite da Mulher Amada”, o cenário perfeito para a personagem Cantora entoar para os fregueses a dor de uma vida; no cabaré somos levados a conhecer Leda e sua forte vontade de ser mãe, a amizade com Ju e toda a briga com Violeta, a cafetina encurralada pelas mulheres – primeira, segunda e terceira mulher – uma espécie de coro formado para alertar Leda sobre os perigos que o filho de 1 Dissertação denominada Salmo 91: formas narrativas, adaptação e dramaturgia contemporânea no Brasil orientada pelo Porfessor Dr. Diógenes André Vieira Maciel pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), defendida no ano de 2013 e desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI/UEPB). 2 Iniciamos a apresentação da obra a partir do texto dramatúrgico por ser o primeiro texto com que tivemos contato. 14 uma prostituta pode sofrer; o Repórter, escalado para fazer a cobertura do caso e escrever sobre a reportagem maldita, surge como aquele que auxilia Querô na rememoração dos fatos; e, por fim, o núcleo dos perseguidores do menino, os policiais, Nelsão e Sarará e, com uma passagem rápida, o Delegado. Para tanto, continuamos as pesquisas já iniciadas, visto constatar a necessidade de alimentar debates mais amplos em torno da dramaturgia e do teatro, bem como entre conceitos como de adaptação e de apropriação. O título “Do Romanesco à Cena: transbordamentos infinitos em Querô, uma reportagem maldita de Plínio Marcos” está associado à ideia de extravasamento, da mescla entre os gêneros, bem como aos desdobramentos e as várias leituras de Querô 3 , uma vez que utilizamos como corpus da pesquisa o romance (1976) e a adaptação 4 para teatro (1979), ambos de mesmo título Querô, uma reportagem maldita escritos por Plínio Marcos, bem como o espetáculo Querô, uma reportagem maldita (2009) encenado pelo Grupo Teatral Galpão Folias d‟Arte 5 e dirigido por Marco Antônio Rodrigues 6 . O mote inicial do nosso estudo é a reflexão sobre o drama moderno e contemporâneo, principalmente, porque as novas produções exigem uma linguagem que acompanhe os dramas do homem moderno e contemporâneo e os anseios de tradução 7 desse ser em uma sociedade sempre em transformação. Para acompanhar as mudanças que se davam no campo filosófico, das ciências e das ideologias, no final do século XX, de certo modo, foi necessário reconstruir os novos modos de vida da sociedade nos palcos. Nesse sentido, o “drama moderno” surge quando o teatro começa a ganhar outras interpretações de seus dramaturgos, cada um especificando e recriando sua arte. 3 Valemo-nos do estilo da fonte itálico para nos referir a obra, Querô, diferenciando do nome da personagem Querô. 4 Acreditamos que uma breve apresentação da obra auxilie o leitor não familiarizado com o texto. A primeira adaptação textual de Querô, uma reportagem maldita aconteceu em 1979, elaborada pelo próprio Plínio Marcos. No livro Querô narra a sua vida em um único ato: a vida do filho de uma prostituta que engravida e decide ter o menino “para ter um precioso bem que seja só seu”. No entanto, ao ter a criança, a mãe de Querô é expulsa do prostíbulo onde trabalhava e, para acabar com seus problemas, se mata ao tomar querosene, por isso, o apelido Querô. Criado pela cafetina que se sentiu culpada pela morte da prostituta, logo cedo o menino se envolve em cenários violentos, roubos, confusões como estratégia de sobreviver. Morre furado de balas e esquecido. 5 Ver: Anexo 7.1 – Ficha Técnica. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento428123/quero-uma-reportagem-maldita>. Acesso em: 17 de Mai. 2018. 6 “Marco Antônio Rodrigues (Santos SP 1955). Diretor. Artista identificado com um teatro de cunho popular e brechtiano, um dos fundadores do grupo Folias d´Arte e do teatro Galpão do Folias”. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa350894/marco-antonio-rodrigues>. Acesso em: 16 de Mai. 2018. 7 O termo tradução está no sentido de expressar, interpretar, uma vez que o sujeito no drama moderno é utilizado para expressar uma subjetividade coletiva. http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo407427/folias-darte 15 Para melhor esclarecimento, o drama moderno, a que nos referimos, consiste em identificar recursos estilísticos da Lírica e da Épica 8 como forma de superar a “crise”. Nesse ínterim, mostrar os sentidos da “crise do drama moderno”, propostos por Szondi (2011), é sublinhar as associações problemáticas entre forma e conteúdo e a crise do diálogo, na tentativa de perceber a composição das novas formas dramáticas. Rodrigues (2005) ao se referir a “crise” atesta que a Teoria do Drama Moderno “[...] fornece munição para se pensar a emergência e o modo de configuração das crises no campo artístico a partir de um prisma particular: a dramaturgia” (RODRIGUES, 2005, p. 211). O teórico Jean-Pierre Sarrazac (2011) se debruça sobre a obra de Peter Szondi e em resposta a Teoria do drama moderno (2011) afirma que “[...] em vez de „crise‟ – [...] eu preferia falar de mutação, melhor, de mutação lenta, e duma mudança de paradigma do drama” (SARRAZAC, 2011, p. 39). Entenda-se que Sarrazac não exclui a ideia de uma crise, para ele, há uma continuidade e não uma superação. Dessa forma, aponta quatro grandes crises, a saber: crise da fábula, crise da personagem, crise do diálogo e crise da relação palco-plateia 9 . Dentre as crises da forma dramática apresentadas por Sarrazac 10 (2012), elegemos para esse estudo a crise da personagem como categoria de análise, tendo em vista que as transformações que ocorrem no drama implicam em uma nova concepção de personagem. Entende-se assim que Querô ganha características de uma personagem que deixa de ser o suporte da ação, deixa de impulsionar a ação, sobretudo porque torna a ação diluída em fragmentos de vida, em extratos da realidade. De modo que a crise do drama moderno eclodiu nos anos de 1880 em resposta às inovadoras relações que o homem mantém com a sociedade. Tais relações que denotam a crise da forma dramática são estabelecidas perante o indício da fragmentação entre sujeito e objeto. Outras mudanças significativas aconteceram com a ruptura das formas tradicionais do drama, em outras palavras, queremos dizer assim que a crise da 8 “A Lírica tende a ser a plasmação imediata das vivências intensas de um Eu no encontro com o mundo, sem que se interponham eventos distendidos no tempo (como na Épica e na Dramática). A manifestação verbal „imediata‟ de umaemoção ou de um sentimento é o ponto de partida da Lírica” (p.22). “O gênero épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo (naturalmente imaginário), com suas paisagens, cidades e personagens (envolvidas em certas situações), emancipa-se em larga medida da subjetividade do narrador. Este geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de outros seres” (ROSENFELD, 2008, p. 22 – 24). 9 Ver: SARRAZAC, Jean-Pierre. Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São Paulo: Cosac Naif, 2012, p. 33. 10 Para maior esclarecimento ver: Sarrazac, 2012, p. 33. 16 personagem resultou também na reformulação do conceito de herói, tendo em vista que ganhou nova roupagem. Entendido como o eixo que dá sustentação ao drama, o herói passa a ter incluídas em sua forma as inquietações, inseguranças e convicções, visto que agora está mais voltado para si e, desse modo, promove uma discussão a respeito do que se entende pelo termo. É importante enfatizar que o nosso interesse em discutir sobre essa nova definição está em compreendê-la para além do sentido clássico de protagonista, sobretudo porque as transformações ocorridas e a adoção do conceito de “mudança de paradigma” nos permitem falar cada vez mais sobre a figura do homem comum, o “impersonagem 11 ”, nos termos de Sarrazac: [...] o objeto da representação não é tanto a fábula mas o seu comentário. E é assim que as personagens – prefiro chamar-lhes „impersonagens’ - de uma parte considerável do nosso teatro se transformam em recitantes. Não apenas pela razão [...] de que „eles habitam o tempo‟ mais do que o espaço, mas porque, encostados à sua própria morte, produzem solilóquios contínuos sobre os percursos erráticos, sobre os cruzamentos, as alternativas antigas, enfim, sobre os possíveis de suas vidas, percorrendo-os continuamente (SARRAZAC, 2009, p. 88). Para Sarrazac, a personagem moderna é “sem caráter 12 ”, e, nesse sentido, fraca em diversos níveis, perdeu características tanto físicas quanto sociais. São personagens sem referência como Querô que experimentam a “desterritorialização 13 ” de sua própria identidade com a ausência de essência e substância que resulta no vazio de sua própria existência. No primeiro capítulo do romance, após extenso sofrimento, Querô relembra o episódio do seu nascimento “Eu vim na pior. Com um urubu pousado na minha sorte. [...] O filho da puta do meu pai encheu de porra a filha da puta da minha mãe e se arrancou, deixando a desgraçada no “ora veja tou choca” (MARCOS, 1992, p. 9). O menino percorre a vida a partir dos fragmentos que consegue ouvir de outras personagens, assim, desterritorializa-se criando seus possíveis. De acordo com Deleuze 11 O termo impersonagem, pensado por Sarrazac (2009; 2011; 2013a), refere-se à figura do homem comum, do homem quotidiano. 12 Quando nos referimos ao herói sem nenhum caráter, é impossível não citar Macunaíma, texto de Mário de Andrade, de 1928, apontado pela crítica como a “rapsódia 12 ” modernista (GEORGE, 1990, p. 41). O conceito de herói até então sustentado pela crítica é questionado em Macunaíma, uma vez que o “herói brasileiro” se torna conhecido não apenas por sua preguiça, mas, especialmente, por não pertencer a lugar algum e apresentar uma identidade rizomática, notadamente, devido às metamorfoses que marcam sua passagem na obra. 13 As “[...] três características da literatura menor: a desterritorialização da língua, a articulação do individual com o político e o agenciamento coletivo da enunciação” (DELEUZE, 2010, p. 13 – 14). 17 e Guatarri (1996, p. 37): “Jamais nos desterritorializamos sozinhos [...]”. Desse modo, entendemos que nesse movimento de passar de um território para o outro, Querô desterritorializa sua própria história ao abandonar o estado de coisa, de não pertencimento quando busca encontrar o inesperado, na verdade, colher os fatos de sua vida e construir sua história como gente. Para Marco Antônio Rodrigues, diretor do espetáculo, Querô “„[...] tem muito a ver com o tema do trabalho do Folias: êxodos, desterritorialização, essa ideia de não- pertencimento, de perda do território político, geográfico, afetivo, que deixa o indivíduo órfão de Deus e de si mesmo 14 ‟”. Em Querô as personagens parecem não pertencer a nenhum lugar, partilham do sentimento de que são esquecidos, aniquilados pela nova ordem. Nesse caso, impersonagens que explicam e comentam, retrospectivamente, o seu drama, como Querô, construindo uma espécie de análise da vida a partir dos relatos sobre sua própria existência. Assim, aberto às “virtualidades” e às “máscaras que vai acumulando” ao longo de sua trajetória, esses impersonagens seguem enquanto fixam para si sua não-identidade. Diante desse quadro, Plínio Marcos pertenceria à escrita desses autores menores, pois, como afirma Deleuze (2010): “[...] Mas os verdadeiros grandes autores são os menores, os intempestivos. É o autor menor quem dá as verdadeiras obras-primas, o autor menor não interpreta seu tempo, o homem não tem um tempo determinado, o tempo depende do homem” (DELEUZE, 2010, p. 35). Nesse sentido, é importante compreender que ao falarmos sobre uma literatura menor não estamos defendendo a ideia de uma língua menor, “[...] mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE; GUATARRI, 1977, p. 25). Considerar Querô, uma reportagem maldita como pertencente ao grupo da “literatura menor” é declarar que há nessa escrita um movimento de transgressão, visto que esse “menor” se encontra em uma escala de nível abaixo da palavra de ordem, tendo em vista que se impõe por desafiar as verdades estabelecidas. Autor considerado maldito, Plínio Marcos ao representar em suas obras a “multidão”, nos termos de Justino (2015), ou seja, os marginais, as prostitutas, os menores abandonados, cafetinas, gays, entre outros, também contribui para a construção de textos dramáticos que se preocupam com o homem moderno brasileiro. Alguns de seus textos surgem como verdadeiros gritos. Embora não seja considerado um 14 Ver: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2901200910.htm. Acesso em: 22 de julho de 2014. 18 dramaturgo com estética e força dramática, a exemplo de Nelson Rodrigues, os textos de Plínio merecem atenção, sobretudo pela carga trágica 15 presente em cada um deles, bem como por apresentar a “mudança de paradigma”, ou seja, de um “drama-na-vida” para uma “drama-da-vida 16 ”, conforme Sarrazac (2010). Em Plínio Marcos não estamos mais lidando com uma ação que tem começo, meio e fim, sobretudo porque com o surgimento desse novo paradigma do drama, de acordo com Sarrazac (2010), a concepção da “peça bem feita”, com base em Aristóteles, desaparece. Assim, a ação dramática eclode a partir de uma ação fragmentada, característica fundamental do drama-da-vida, uma vez que só pode ser compreendida como fragmento. De modo que as modificações na compreensão do drama moderno refletem também na concepção de herói que era considerado como o modelo específico do sentido da vida, um subordinado às forças dos deuses, mas, desde o romantismo, esse herói ganha autonomia frente aos deuses, tendo em vista que agora o que o move são as paixões, a cupidez e o delito. Eagleton (2013), no que se refere ao conceito de herói, expõe: “É provável que palavras como „heroísmo‟ estejam por demais contaminadas pela sua história aristocrática e patriarcal para terem outros usos, e rejeitá-las significa uma radical reescrita da história” (EAGLETON, 2013, p. 116). É assim que, para a representação dessas personagens, o drama moderno começa a apresentar um anti-herói dotado de individualismo e indiferença em relação aos acontecimentos que o rodeiam. A mudança de paradigma nospermite compreender que as novas produções de Querô surgem apresentando em sua forma um caráter “híbrido 17 ” já anunciando 15 O termo trágico é considerado um princípio filosófico que encontra “[...] sua expressão mais pura na tragédia, no entanto, pode „manifestar-se também no romance, na música, nas artes plásticas, às vezes até na comédia, para não falar da tragicidade de situações da vida real‟” (LESKY, 2006, p. 14). 16 “[...] drama-na-vida – ou seja, da forma dramática de modelo aristotélico-hegeliano – para o drama-da- vida. Drama-da-vida liberto dos antigos princípios da ordem, da extensão, e da completude (“o belo animal”) e trabalhado por uma pulsão rapsódica que lhe abre todos os horizontes e o vota a um princípio fundamental de irregularidade, o leva por vezes a roçar o monstruoso, e põe em prática não a “superação” da forma dramática pelas formas épicas do teatro (Szondi) mas um constante transbordamento mútuo dos diferentes modos poéticos: o dramático, o épico e o lírico” (SARRAZAC, 2010, p. 14-15). 17 Diante dos conceitos do termo híbrido apresentados pelo dicionário Houaiss (2009), optamos por apresentar os que afirmam que híbrido: “2. diz-se de ou palavra formada por elementos tomados de línguas diferentes; 3. que ou o que é composto de elementos diferentes, heteróclitos, disparatados”. Estudos nos mostram que o conceito de hibridismo parte, a princípio, dos estudos na área da biologia, tendo em vista que essas pesquisas investigam a fusão entre diferentes espécies. No caso da literatura: “A produção crítica, artística e literária resultante dos cruzamentos étnicos, raciais e culturais ocorridos nas últimas décadas vem contaminando a academia e a cultura de modo geral e provocando dissonância e polêmica. A discussão da idéia de híbrido, do impuro e do transcultural é atualmente elaborada por pensadores e correntes que por vezes se misturam, hibridamente, mas conservam especificidades e podem também abrigar profundas discordâncias” (COSER, 2010, p. 171). 19 questões do teatro contemporâneo, ao que denominaremos “teatro rapsódico” nos termos de Jean-Pierre Sarrazac (2002; 2012). Assim, teremos respaldo na apropriação para os palcos com o espetáculo do Grupo de teatro Galpão Folias d‟Arte (2009) que aparece como uma atualização da primeira montagem do espetáculo pelo Grupo TAPA (1991), em São Paulo. O romance Querô, uma reportagem maldita escrito em 1976, por Plínio Marcos, recebeu o prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor romance daquele ano. De modo que apresenta dez capítulos enumerados e sem títulos. No primeiro capítulo esbarramos com a história do menino Querô contada na primeira pessoa. A partir do Capítulo VIII nos deparamos com a personagem jornalista, momento em que o leitor compreende que aquela história é, na verdade, uma entrevista sobre o ocorrido no cabaré. O Capítulo X apresenta o relato do jornalista diante dos fatos colhidos. Como revela Beigui (2006) sobre a dialética baseada na percepção da tensão entre o Eu e a realidade do mundo que encontra abrigo nos modelos estruturalistas; no caso do teatro, trata-se “[...] de perceber o que leva estruturas e matrizes a sua inerente condição de processo e o que conduz o posicionamento do artista a reinvenção de modelos guiados pela urgência de respostas individuais e sociais” (BEIGUI, 2006, p. 19). Destaca-se, em todos os sentidos, que Querô é considerado uma obra híbrida, tanto por fazer parte de um processo de transição da escrita de Plínio Marcos, ou seja, de uma fase mística para uma fase caracterizada por adotar o tema do banditismo, mas, principalmente, pelo fato de apresentar características de outros gêneros. Nosso primeiro capítulo que recebe o título de Querô: um trágico do quotidiano apresenta uma reflexão acerca do “trágico” no sentido de compreender como é que houve a adequação de determinados elementos de uma forma dramatúrgica por muito tempo considerada superior, marcando-se a maneira como Plínio Marcos utilizou-se disso para compor uma dramaturgia nova no contexto nacional. O tópico Qualquer teatro é o meu teatro apresenta um panorama da obra de Plínio e o contexto de escrita do autor, tendo em vista que escreveu em um período marcado pela presença da ditadura e, consequentemente, pela censura. Percebe-se que a noção de “trágico” desvinculada da forma antiga da tragédia ajusta-se ao que se tem, atualmente, chamado de “trágico do quotidiano”, também nos termos de Sarrazac (2013a). Para tanto, apresenta-se também as discussões de Motta (2011) no que se refere às montagens de 20 tragédias no Brasil, ainda mais, o problema do trágico na era contemporânea, notadamente porque espetáculos construídos nesse período trazem em sua marca o questionamento dos modelos de dominação cultural e política. Nesse percurso, obviamente, tornou-se imprescindível a compreensão em torno dos conceitos de fait-divers 18 , “[...] na sua banalidade jornalística, uma poderosa fonte de inspiração” e Impersonagem, sobretudo porque Querô é um exemplo desse homem do quotidiano, o “impersonagem”. Nas palavras de Sarrazac (2013a) “[...] é cada vez mais a figura do homem comum, do homem quotidiano, que vai sustentar o trágico. Um homem comum que não pode ser chamado de „herói‟, a não ser impropriamente, apenas porque possui o/um papel principal na peça” (SARRAZAC, 2013a, p. 7). Desse modo, o teórico francês afirma: “Nem herói e nem mesmo „personagem agindo‟ (prattontes 19 ), a figura trágica moderna não combate, não age, não decide. Ela se submete” (SARRAZAC, 2013a, p. 7). Esse impersonagem do fait divers quando pensado como personagem do teatro pode se reconhecer como “pequeno criminoso”, como sub- homem. Há entre eles um denominador comum, “um mergulho no não-humano do humano”, visto que carregam consigo a marca do Zé Ninguém. Nosso objetivo ao longo do segundo capítulo, Entre limites: adaptação e apropriação é observar as relações entre as obras na tentativa de entender como acontecem os cortes, ajustes, assimilações, entre outras ações, de modo que durante nossa busca por parceiros que nos ajudassem a compreender melhor as relações entre as obras, chega-se aos conceitos de tradução, adaptação e apropriação. Em seguida, o tópico O surgimento de um diálogo apresenta questões referentes aos termos tradução, adaptação e apropriação. Com base nestes conceitos, destacamos que todos os estudos desenvolvidos por Linda Hutcheon (2011) sobre a adaptação sustentavam a discussão já apresentada por Plínio Marcos ao dizer que o texto dramatúrgico (2003) é uma adaptação do romance (1992). Desse modo, a partir do conceito de adaptação, conforme propõe Linda Hutcheon (2011), desenvolve-se também um estudo entre o romance Querô, uma reportagem maldita (1992) e o texto dramatúrgico de mesmo nome (2003). Embora as discussões sobre a adaptação respondessem nossas questões em relação ao romance e ao 18 SARRAZAC, 2011, p. 59. 19 Essa concepção prattontes, de Platão e Aristóteles, é utilizada para nomear o ator, especificamente, o fingidor (FERNANDES, 2011, p. 13). Disponível: https:< portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/5391/3860>. Acesso em: 12 de maio de 2017. https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/5391/3860 https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/5391/3860 21 texto dramatúrgico, precisávamos ampliar nossa pesquisa e sentimos a real necessidade de estudar o espetáculo do grupo teatral Galpão Folias d‟Arte, que nos tirava do nosso lugar confortável e nos levava a refletir sobre a mise en scène, nesse caso, percebemos que não nos era suficiente falar de adaptação. Foi quando encontramos parceria nas discussões de Beigui (2006) e Sanders(2015) no que tange às questões em torno da apropriação no teatro contemporâneo. No terceiro capítulo, de título Uma forma mais livre do drama, reservamos a análise das obras a partir do conceito de “teatro rapsódico”, de Jean-Pierre Sarrazac (2002). O ponto de partida é a discussão sobre o romance, gênero por muito tempo considerado problemático, à luz da teoria de Féher (1997) que considera o romance como “gênero ambivalente”, bem como do conceito de “romance polifônico 20 ”, conforme Bakhtin (2015). Em Querô as personagens não são “[...] apenas objetos do discurso do autor; mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante” (BAKHTIN, 2015, p. 5), desse modo, compreende-se que a multiplicidade de vozes, consciências, ideologias e contradições de cada personagem acontece em “pé de absoluta igualdade”. O intuito do percurso é o de ampliar as discussões que apontam o texto de Plínio como obra híbrida, nos levando a escrever algumas linhas sobre híbrido e hibridismo. O conceito de “rapsódia”, pensado por Sarrazac (2002; 2012), de algum modo, está relacionado à discussão apresentada por Bakhtin (1998) sobre a “romancização”: Na época da supremacia do romance, quase todos os gêneros resultantes em maior ou menor grau, „romancizaram-se‟: romancizou-se o drama (por exemplo, o drama de Ibsen, o de Hauptmann, todo o drama naturalista” (BAKHTIN, 1998, p. 399). Assim sendo, discorre-se em torno do conceito de romancização, embora a teoria tenha sido pensada em um momento diferente, a partir de uma compreensão distinta de drama. Desse modo, a teoria de uma “forma mais livre” do drama formulada por Sarrazac (2002, 2012), ou seja, de uma “pulsão rapsódica” é o que o diferencia do 20 “Dostoiévski é o criador do romance polifônico. Criou um gênero romanesco essencialmente novo. Por isso sua obra não cabe em nenhum limite, não se subordina a nenhum dos esquemas histórico-literários que costumamos aplicar às manifestações do romance europeu. Suas obras marcam o surgimento de um herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance comum. A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características, mas tampouco serve de intérprete da voz do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis” (BAKHTIN, 2015, p. 5). 22 pensamento de Peter Szondi (2011), visto que para o teórico alemão a crise do drama se instaura quando os pilares do drama (ação no presente, relacionamento interpessoal e o diálogo) entram em conflito 21 . Assim, “[...] a rapsódia afirma-se como um conceito transversal importante, que se declina em uma série de termos operatórios, desembocando na constituição de uma verdadeira constelação rapsódica” (SARRAZAC, 2012, p. 152). O objetivo de Sarrazac (2012) é explicar o surgimento de um novo paradigma do drama, ou seja, o drama-da-vida em oposição ao drama-na-vida, mais conhecido como o “drama absoluto 22 ”, teoria desenvolvida por Szondi (2011) para enfatizar o surgimento das dramaturgias épicas de Piscator e Brecht como a saída para a superação do drama em crise. Nesse sentido, Sarrazac (2012) não se refere a uma crise do drama, visto que insiste na idéia de uma fragmentação, de uma ruptura necessária para o estabelecimento desse novo paradigma. Com base no exposto, buscamos para as leituras de Querô a teoria do teatro rapsódico, de Sarrazac, como uma linguagem direta que mais se aproxima do homem contemporâneo. Nosso quarto capítulo, de título O teatro que se quer fazer: Galpão Folias d’Arte, apresenta uma conversa inicial, com o título Contextualização, sobre questões em torno do drama e da cena, principalmente, no que se refere aos estudos que tentam abordar não somente os textos, como também espetáculos, e por sua vez, os elementos que estão por traz do maquinário teatral. Após essa apresentação, a proposta do tópico A construção de um caminho é mostrar a luta de um coletivo para fazer teatro no Brasil, a trajetória do Grupo, bem como questões em torno não só do espetáculo Querô, como também de outros trabalhos montados pelo Folias. Por fim, compreender as dinâmicas do Grupo e expor uma leitura das cenas com base em discussões que envolvem também questões sobre a teatralidade, figurino, música e iluminação, de acordo com Sílvia Fernandes (2010); Silva (2010), Beigui (2010) e Patrice Pavis (2008; 2013). Em suma, seguimos com o objetivo de compreender os processos de leituras de Querô como uma forma de atualizar a história e recontar os fatos dentro de uma estrutura social. Entendemos assim que Querô forma um “[...] mosaico de escrita em 21 Por isso, propõe uma tentativa de superação, sobretudo porque a antiga forma dramática se esforça para conter os novos assuntos, todos com uma dimensão épica, e, por fim, as tentativas de solução do drama em crise. 22 “O drama, definido como um „acontecimento inter-humano‟ em presença, é absoluto na medida em que exclui todo elemento exterior à troca interpessoal exprimida pelo diálogo” (KUNTZ; LESCOT, 2012, p. 73). 23 constante transformação 23 ” e a figura do rapsodo 24 , “[...] artífice por excelência do drama no mundo contemporâneo 25 ”, ganha sentido nesse estudo, como aquele que é capaz de dar voz a uma memória coletiva e pessoal. 23 HERSANT; NAUGRETTE (2012, p. 152). 24 “Através do poeta, algo passa dos deuses para nós; através do rapsodo, algo é passado do poeta para nós” (OLIVEIRA, 2011, p. 63). Nesse sentido, a figura do rapsodo é entendida como intérprete do intérprete, como revela o diálogo entre Socrátes e Íon (rapsodo): “Socrátes. Mas, então, vós, os rapsodos, por sua vez, interpretais os versos dos poetas? Íon. Também em relação a isso dizeis a verdade. Sócrates. Mas, então vós vos tornais intérpretes de intérpretes? Íon. Sim, completamente” (PLATÃO, 2011, p. 41). 25 MORAES, 2012, p. 13. 24 CAPÍTULO 1 QUERÔ: UM TRÁGICO DO QUOTIDIANO 1.1 QUALQUER TEATRO É O MEU TEATRO Em 1969, a dramaturgia ganha a deformidade de “teatro alienado” por não se guiar pelas formas do teatro político apresentado pelo Arena, Oficina e o Opinião. No entanto, essa “[...] geração de 1969 constituiu um núcleo de criadores que, „coletivamente‟ produziu algo reconfortante não só do ponto de vista estético como também sob o viés político” (ANDRADE, 2013, p. 243). Nesse período aparece uma nova geração formada por Antônio Bivar, José Vicente, Consuelo de Castro, Leilah Assunção e Isabel Câmara. Entre esses dramaturgos está Plínio Marcos que “irrompe na dramaturgia brasileira”, diz-nos Andrade. Quando o governo publicou o AI-5, em 1968, o terror foi implantado e a censura tornou-se as algemas para aqueles que tentassem proferir palavras contrárias. De modo que “[...] se tornou tão feroz que somente passavam pelo seu crivo os textos nebulosos, alegóricos, [...] incompreensíveis para o grande público de linguagem cifrada para poucos entendedores de senhas ocultas, Plínio Marcos jamais tergiversou” (ZANOTO, 2009, p. 11). Em meados dos anos de 1970 a cena brasileira se volta à “questão experimental”. De acordo com Mostaço (2013), o novo quadro sociopolítico faz gerar em meados dos anos 70, três movimentos simultâneos, são eles: i) o teatro de resistência formado também pelos cepecistas; ii) um front contracultural conhecido às vezes por desbunde, udigrudi, ou alternativo; bemcomo, iii) os lucros culturais do “milagre econômico” dispostos pelos militares como uma alternativa de que o país conhecesse intensamente o desenvolvimento das comunicações e da cultura de massa. Ensaiava-se um novo fazer teatral com tendências formais e temáticas a partir de peças de Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna, Dias Gomes, Jorge Andrade e a presença 25 do teatro político, de Brecht nas produções de Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho. Dentre esses novos autores que revelavam em suas obras a necessidade de mudança, ou seja, uma “nova moldura dramatúrgica”, Plínio Marcos leva para os palcos “[...] uma nova classe integrada por indivíduos até então ignorados pela saga teatral, aos quais devota solidariedade irrestrita pelo simples fato de fazê-los existir (ZANOTTO, 2009, p. 15). Durante esse período o teatro foi uma importante ferramenta de expressão, uma vez que representou as lutas políticas da época. Essas representações da história das lutas coletivas no teatro tiveram seu nascedouro no épico. Conforme Beigui (2006): O olhar paralelo e pela tangente encontrou na encenação e não na dramaturgia um modo de reflexão e de compreensão dos nossos problemas e de nossa miscigenação ideológica. De modo mais ou menos consciente, a exploração da cena e dos arranjos de palco, incluindo a improvisação concretizou a primeira e mais importante contribuição do teatro épico no Brasil, ou seja: aproximou a crise da representação à crise da consciência ligada, sobretudo, às transformações ocorridas no drama. Paralelamente à crise da consciência, a materialidade cênica revelou problemas de produção e as limitações técnicas, o que de modo pouco justificável, mas inegável, contribuiu para uma maior valoração da criatividade tanto do diretor quanto do ator (BEIGUI, 2006, p. 22). Embora algumas peças tenham sido impedidas de ganhar os palcos, muitos foram os grupos e coletivos que continuaram construindo a história da dramaturgia no Brasil, e, como afirma a citação, a exploração da cena, dos arranjos do palco e a improvisação tornam-se um marco no que se refere à presença do épico no Brasil. Dessa forma, surge o novo drama brasileiro a partir das absorções que fez dos conflitos da geração de 1968, criando uma cena totalmente particular. Em suma, desde a década de 1960 uma nova geração de teatrólogos brasileiros marca o período conhecido como a “Nova Dramaturgia”, entre eles, o teatro pliniano torna-se um marco diferencial. Plínio é “[...] saudado pela crítica como um acontecimento original, ao lançar mão de uma atmosfera de expressionismo confessional e investir em um naturalismo perturbador” (ANDRADE, 2013, p. 39). Esse período também se caracterizou pela inserção da temática do quotidiano já abordada na década anterior, ou seja, “[...] a classe média e seus impasses não deixaram de figurar em cena, ao lado da adaptação de temas históricos, com o passado visto como metáfora do presente” (VENDRAMINI, 2013, p. 257). A proposta da dramaturgia 26 coletiva muito intensa na década de 70 revelou uma grande importância para o desenvolvimento da dramaturgia e dos espetáculos que surgiam pouco a pouco, uma vez que assinala formas distintas de representação. As obras do dramaturgo tentavam resistir às opressões de um sistema que não deixava falar sobre “puta, pobre e cafetão”. Plínio Marcos revela o tom de sua escrita quando defende que “[...] o intelectual brasileiro é um marginal de classe média querendo ganhar status através da cultura” (MENDES, 2009, p. 210). Era assim que escolhia suas personagens, os esquecidos que viviam junto a ele comendo quando conseguiam e ainda assim, cantando samba e escrevendo suas obras. A fama de Plínio como analfabeto sempre ganhou mais atenção, ele mesmo “[...] cuidou de difundir a lenda de ser um analfabeto, citando à sua maneira uma crítica de Patrícia Galvão 26 . Aos compradores de seus livros prometia morrer logo para valorizar o autógrafo” (MENDES, 2009, p. 53). Para Cacilda Becker 27 , após ler Navalha na carne, a escrita de Plínio era “Incrível! Conhece vinte palavrões e consegue escrever uma peça” (MENDES, 2009, p. 53). No entanto, Patrícia Galvão afirma: “Atendendo à obrigação de escrever a respeito, devemos partir da separação dos dois textos. O primeiro é o texto de um principiante ainda: o segundo é um bom texto”. É interessante conhecer a crítica que Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, tece ao principiante Plínio Marcos e a sua peça Os Fantoches, e a Jenny do Pomar, o bom texto de Charles Thomas. Caracteriza a tentativa do autor de passar do plano da reportagem, que era o principal defeito da sua peça anterior, „A Barrela‟, para um plano de criação, invadindo terreno difícil para sua experiência e seus conhecimentos, desde que há a intenção de nos proporcionar um texto de tonalidades filosóficas. E o nível mental e intelectual do autor, 26 “Patrícia Rehder Galvão (São João da Boa Vista, SP, 1910 - Santos, SP, 1962). Romancista, tradutora, jornalista e professora. Aos três anos, muda-se com a família para São Paulo e vai residir no bairro industrial do Brás. Conclui os estudos na Escola Normal em 1928, ao mesmo tempo que estuda literatura e arte dramática no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. No ano seguinte, aos 19 anos, conhece o escritor Oswald de Andrade (1890-1954) e a artista plástica Tarsila do Amaral (1886-1973), envolvidos com o movimento antropofágico, e tem um de seus desenhos publicado na Revista de Antropofagia. Em 1930, Pagu, nome criado pelo amigo e escritor Raul Bopp (1898-1984), casa-se com Oswald e realiza o sonho de emancipar-se definitivamente da família”. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa451572/pagu>. Acesso em: 16 de Mai. 2018. 27 “Atriz. Protagonista de vários espetáculos do Teatro Brasileiro de Comédia, fundadora da companhia que leva o seu nome, Cacilda Becker interpreta personagens antagônicos, como o moleque de Pega Fogo, a velha de Jornada de um Longo Dia para Dentro da Noite, a devassa de Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, a rainha de Maria Stuart, o clown de Esperando Godot. Indo da farsa à tragédia, do clássico ao moderno, é considerada, por alguns teóricos, a maior atriz do teatro brasileiro”. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa349429/cacilda-becker>. Acesso em: 16 de Mai. 2018. http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2794/oswald-de-andrade http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa824/tarsila-do-amaral http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo4904/revista-de-antropofagia http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo4904/revista-de-antropofagia http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa3426/raul-bopp http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo112774/teatro-brasileiro-de-comedia http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento398284/pega-fogo http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento399262/jornada-de-um-longo-dia-para-dentro-da-noite http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento397674/maria-stuart http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento397672/santa-marta-fabril-s-a3 27 infelizmente, se desencontra, como possibilidade, para palmilhar o terreno ambicionado 28 [...]. Muitos dos textos de Plínio apresentam um discurso que tenta representar sua própria experiência social, por conseguinte, problematiza a posição do intelectual como único porta-voz dos sujeitos subalternos visto que fala e se torna um escritor advindo da marginalidade. Dentre os autores considerados marginais, Plínio Marcos é referência para os novos escritores: “A história da literatura marginal começou assim, eu nem bolei nada, só peguei a referência do Plínio Marcos e do João Antônio [...]” (FERRÉZ apud NASCIMENTO, 2008, p. 44). Do mesmo modo, Plínio Marcos afirma: [...] o palavrão.Eu, por essa luz que me ilumina, não fazia nenhuma pesquisa de linguagem. Escrevia como se falava entre os carregadores do mercado. Como se falava nas cadeias. Como se falava nos puteiros. Se o pessoal das faculdades de lingüística começou a usar minhas peças nas suas aulas de pesquisas, que bom! Isso era uma contribuição para o melhor entendimento entre as classes sociais 29 . A linguagem utilizada pelo dramaturgo pressiona os que se posicionam no centro a partir da ação da margem. Plínio não fez parte do cânone literário, escreveu sem se preocupar muito com as formas. Baseado no que reflete Justino (2015) há nessas obras algo que nos impulsiona a observá-las pela [...] representação [...], dezenas de personagens vivendo vidas ordinárias, no mais das vezes contra alguma espécie de ordem e ao mesmo tempo radicalmente inseridos nelas, produzindo ininterruptamente num ambiente dialógico [...], cujas negociações são de solidariedade, de confronto ou da mais pura indiferença, mas que se produzem, sempre, coletivamente (JUSTINO, 2015, p. 137). Plínio, por sua vez, parece não ter se deixado abater e seguiu, possibilitando aos silenciados, como ele, o direito à voz na tentativa de também se libertar dos poderes opressivos da sociedade. Autores que “[...] se distinguem dos demais porque são também atores dos espaços retratados nos textos e, portanto, sujeitos marginais que estão inserindo suas experiências sociais no plano cultural” (NASCIMENTO, 2008, p. 76). Desse modo, é notável o crescente número de autores marginalizados que investem no campo da literatura brasileira apresentando novas questões e dimensões. 28 Ver: <http://www.pliniomarcos.com/criticas/jornada-pagu.htm>. Acesso em 07 de fevereiro de 2018. 29 Ver: <http://www.pliniomarcos.com/dados/censura.htm>. Acesso em: 14 de julho de 2014. http://www.pliniomarcos.com/criticas/jornada-pagu.htm 28 O dramaturgo de origem mais ou menos humilde foi de tudo um pouco, jornalista, vendedor, palhaço, não foi bom aluno, repetiu de ano diversas vezes, por isso, foi retirado da escola pelos pais e não concluiu os estudos. No começo da carreira como dramaturgo, Plínio Marcos torna-se reconhecido por levar para os palcos personagens bandidos, considerada a primeira grande fase do autor. Em sua segunda fase os místicos começam a surgir como personagens, o que lhe rendeu severas críticas. Os últimos 30 textos escritos depois de Querô, uma reportagem maldita (1976) marcam o período de transição da escrita de Plínio, por exemplo, em Jesus-homem (1978) surge à personagem Jesus, uma idealização do homem como uma espécie de místico-libertário, destinado a buscar um Deus justo; e, logo em seguida, Sob o signo da discoteque (1979) traz Zé das Tintas, um profissional que trabalha como pintor de parede, ganha um salário mínimo e por não conseguir um amor para si participa de uma curra, visto que só fazia sexo quando recebia o pagamento uma vez no mês. Desse modo, Querô, uma reportagem maldita é em todos os sentidos, ou seja, formal e temático, uma obra híbrida, especificamente, pelo fato do dramaturgo mesclar em Querô temáticas abordadas em sua fase anterior e o tema do banditismo. A terceira fase do autor ganha características de uma escrita pautada na religiosidade. Assim, surge Madame Blavatsky (1985) e em sequência Balada de um palhaço (1986), visto que em “[...] sua mais recente criação, Plínio fez metateatro, emprestando à palavra feliz carga poética. Muito se pode esperar de sua permanente inquietação” (MAGALDI, 2008, p. 220). A personagem Bobo Plin, o palhaço que está em crise com a sua profissão, improvisa com o parceiro Menelão no picadeiro. Muitos são as personagens que atravessam a vida de Querô, algumas deixam marcas, outras, nem tanto, visto que apenas são citadas durante os relatos. Entre um acontecimento e outro conhecemos: Ju (amiga de Alzira), Violeta (madrinha de Querô), padre, prostitutas, Alzira da Piedade (mãe), Tainha (chefe do bando), Bolacha Preta (negro meio pirado da cuca), gringo (bichona louca), Kioto Japonês (empregador), delegado, Nelsão e Sarará (policiais), todos os pivetes do reformatório: (Pivete da Madame, Malhado, Tuim, Corvo Louco, Brancura, Zoinha, Mosca de Bolo, Lavinho, Cativeiro entre outros), Cocada, Zulu, Edgar (cozinheiro), Dona Quita, Naná, Gina de Obá, Bilu de Angola, Lica, Brandão, Toco de Vela e o Jornalista. 30 Ver: Anexo 7. 2 para conhecer a cronologia do Teatro adulto escrito por Plínio Marcos (MARCOS, 2003, p. 278 – 279). 29 Com dez capítulos enumerados e sem títulos Querô surge com base em uma dessas “reportagens malditas” marcadas pela violência. Somos guiados pelo olhar de um menino que narra os fatos de sua existência, desde o primeiro capítulo, quando conta a história triste do seu nascimento, até o oitavo, quando se envolve na briga com os policiais e é baleado, – “Eu ali, naquela escuridão do cais do porto, estava mal. Percebi que, se parasse, não ia poder ir a mais nenhum lugar. Aquela porra daquela perna estava doendo muito” (MARCOS, 1992, p. 84). Em seguida, nos deparamos com o diálogo entre Querô e o Jornalista, nome da personagem no romance, e no décimo capítulo o Jornalista assume a voz do narrador. Cada capítulo apresenta ao leitor uma fase da vida de Jerônimo da Piedade, as transformações, como a mudança de identidade quando assume o nome Querô, o crescimento do menino, o ódio alimentado pela sede de vingar a morte da mãe e ao mesmo tempo a necessidade de sobreviver. Assim, observamos que o leitor conhece a zona portuária de Santos, em São Paulo, as ruas, becos, cabarés e a vida daquele lugar. Embora a ação se volte para Querô, à multidão que circula pelos ambientes do cabaré (as prostituta, clientes, Violeta, Ju), do reformatório (todos os meninos citados), da delegacia (Nelsão e Sarará) constrói a trama. O capítulo I traz a história do nascimento de Querô, filho de pai desconhecido, bem como a luta de Alzira da Piedade, mãe do menino, para tê-lo e a maneira que encontrou como saída para resolver seus conflitos, o suicídio. Outras personagens que fazem parte desse mosaico são progressivamente apontadas ao longo dos relatos, como a cafetina Violeta que após ser pressionada pelas outras prostitutas e responsabilizada pela morte da mãe de Querô, sem saída, torna-se madrinha e ao mesmo tempo perseguidora do menor. Ju, amiga de Alzira, surge como uma espécie de protetora do menino. Embora não apareça muito no romance, também é responsável por contar alguns fatos da vida de Jerônimo, ainda desconhecidos por ele, e a ajudá-lo a construir uma imagem da mãe. Além das características até então percebidas na obra de Plínio Marcos, o que também aponta uma mudança é a presença do autor como personagem. Em Querô (1976), o dramaturgo aparece como o Repórter que se sensibiliza pelos dilemas do menino Jerônimo. Traçar esse panorama sobre as fases do autor e identificar as personagens de uma escrita marcada esteticamente pela presença do marginalizado, pela figura do homem comum, nos impulsiona a entender a categoria da personagem na 30 escrita plianiana, especificamente, em Querô, observando o que há de trágico no simples fato de viver. 1.2 O NASCIMENTO DE UM TRÁGICO DO QUOTIDIANO O termo “tragédia” não é utilizado apenas nas discussões da academia, visto que no dia a dia o ser humano quando quer se referir as adversidades da vida sempre recorre à expressão ligada à tragédia da vida humana. Raymond Williams diz que tragédia “[...] não [é] um tipo de fato único e permanente, mas uma série de experiências, convenções e instituições 31 ”. No entanto, a palavra “tragédia” marca as produções de obras que ganharam evidência pelo conteúdo e pela forma queapresentam, por exemplo, Oréstia, de Ésquilo. Ainda que partamos do conceito de tragédia, nossa intenção é entender a nova concepção de trágico desvinculada da tragédia, ou seja, o que Sarrazac (2013a) chama de trágico do quotidiano. Para Sarrazac (2013a) o desaparecimento da tragédia não implica no desaparecimento do trágico, uma vez que as relações tanto pessoais, quanto sociais influenciaram na produção de possíveis ferramentas para a construção de um novo trágico. Achamos importante, nesse quadro, apresentar o que influenciou as montagens de tragédias no Brasil. Motta (2011) revela em suas pesquisas que a produção de tragédias no contexto nacional foi influenciada pela ideia de questionar os modelos de dominação tanto cultural, quanto política. Segundo Motta (2011) o aumento da montagem de tragédias no contexto brasileiro é resultado dos acontecimentos “[...] na ordem social, política nacional e internacional, como os atentados terroristas, as guerras, a devastação do meio ambiente, a grande massa de desabrigados, a violência na esfera da vida doméstica, o controle da vida sobre o cotidiano [...]” (MOTTA, 2011, p. 216). Para o teórico, esse movimento de avivar a tragédia, do ponto de vista brasileiro, entre o período de 1960 até os dias atuais 32 , permite identificar três fases, a saber: 31 WILLIAMS apud EAGLETON, (2013, p. 26). 32 Vale ressaltar o ano de publicação do livro (2011). 31 Uma primeira – final dos anos de 1960 até meados da década de 1970 – [...] rompem com a representação tradicional da tragédia e estabelecem um diálogo direto com a realidade social e política brasileira; A segunda fase parece ter início após o término da ditadura militar estendendo-se até meados dos anos de 1990. [...] período de mobilização em que a necessidade da afirmação de si, como elemento fundamental da ética pós-moderna, procura se coadunar com o corpo coletivo; Uma terceira fase do movimento da revivificação da tragédia grega e do próprio pós-modernismo teatral brasileiro parece se anunciar a partir do final do século XX. [...] a tragédia grega se tornará uma forma privilegiada para questionar modelos de dominação cultural e política, assim, como os diversos níveis de desigualdade, de injustiça e de violência na vida atual (MOTTA, 2011, p. 216 – 218). O surgimento de um posicionamento ontológico da tragédia revela, no contexto brasileiro, uma escrita marcada pelo questionamento dos modelos pré-estabelecidos. Observa-se que Plínio Marcos pode ser inserido em pelo menos duas das fases apontadas por Motta (2011), embora não fosse um autor de tragédias. A primeira delas refere-se ao engajamento do dramaturgo e a necessidade de auto-afirmação a partir de uma escrita dilacerante; a segunda, diz respeito às características de suas obras marcadas pelo diálogo direto com a realidade social e política nacional, tornando-se o modo como expressa a violência, a multidão e a desigualdade, resultado dos acontecimentos vividos. Plínio reúne, através de sua escrita, elementos importantes que contribuem para a construção do que hoje se tem chamado de trágico do quotidiano, marcando-se a maneira como o dramaturgo se utiliza desses fatores para compor uma nova dramaturgia no contexto nacional. A experiência estética da tragédia abriu espaço para uma especulação de ordem ontológica: o trágico é visto como uma característica fundamental da existência, decorrente da revelação de uma contradição essencial entre o homem e o universo, contradição que conduz ao sofrimento extremo. A tragédia revelou a questão do trágico (MOTTA, 2011, p. 13). Motta (2011, p. 216) assinala que espetáculos analisados em seu estudo, por exemplo, Oresteia, o Canto do Bode, montagem do Grupo Galpão Folias d‟Arte da trilogia Oréstia, de Ésquilo, refere-se também ao “problema trágico na era contemporânea”, notadamente porque esses espetáculos trazem em sua marca o questionamento dos modelos de dominação cultural e político. O espetáculo possui também certa exemplaridade por vários aspectos ao longo destas análises: o processo de deslocamento do texto grego 32 para o contexto político e cultural brasileiro; a atualização do texto a partir da inserção de diversas linguagens artísticas e da fusão de linguagens teatrais de caráter popular; o enquadramento da tragédia grega no contexto urbano; a crítica à mídia; a utilização de recursos tecnológicos para a construção da linguagem cênica; o movimento de autorreflexão do grupo em relação ao próprio trabalho e, por fim, a utilização de um espaço cênico de características alternativas (MOTTA, 2011, p. 219-220). De certo modo, as leituras de Querô apresentam aspectos desse modelo “trágico”, mesmo que não exista um deslocamento de um texto grego para o contexto nacional. No espetáculo, corpus da pesquisa, construído pelo Galpão Folias d‟Arte, a fusão entre diversas linguagens acontece através da dança, da música, bem como da crítica à sociedade que parte tanto do texto, como da reflexão que leva a construção de um espetáculo inovador, colaborativo e também alternativo. [...] porque preciso fazer teatro disso? A vida já não é tão forte? Que poética pode saltar dali? A imagem daquela mulher sem cabelos, ou a do menino que mama em pé em plena rua: isso não é suficientemente expressivo e real? Que força terá a representação disso? (GUEDES, 2009, p. 14). Foram questões como essas, levantadas durante uma oficina proposta pelo Galpão Folias D‟arte, que revelaram ao grupo a necessidade de (re)montar o texto de Plínio Marcos. Motta (2011) adverte que: “O interesse atual pela tragédia grega é estimulado também pela reflexão acerca da moral” (MOTTA, 2011, p. 11), como uma necessidade de mostrar a vida comum do homem comum. Esse panorama geral da tragédia no contexto brasileiro torna-se fundamental para compreendermos a diferença existente entre a tragédia e o trágico com vistas a entender o “trágico do quotidiano” proposto por Sarrazac (2013a) nas produções de Querô, uma reportagem maldita. Szondi (2004, p. 23) em seu livro Ensaio sobre o trágico afirma que: “Desde Aristóteles há uma poética da tragédia apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico”. Para Staiger (1977) o uso do termo trágico precisa ser esclarecido e assim expõe que “[...] teremos que levar em conta a divergência da tradição antiga e estar cientes! De que nem toda obra chamada „tragédia‟, poderá ser considerada „trágica‟” (SATAIGER, 1977, p. 78). Com a compreensão de que era possível pensar na vida, ou seja, pensar na condição do humano, a tragédia ganhou um viés filosófico, de acordo com Szondi (2004), o que deu início a noção de trágico. 33 Embora a base desse pensamento fosse as teorias de Schelling, teóricos como Goethe e Schiller igualmente apresentaram apontamentos significativos quando se tratava do trágico, sobretudo porque cada vez mais a fixação no pensamento aristotélico perdia suas forças. Desse modo, “[...] Goethe reconhece como essencial ao trágico um traço que o sistema idealista de Schelling e até o de Hegel ocultam, mas que lhe causa grande estranheza: o fato de que o conflito trágico „não permite nenhuma solução” (SZONDI, 2004, p. 48). Nesse sentido: Se é verdade que a interpretação ontológica da tragédia grega foi realizada, desde Schelling, em termos de antagonismo de princípios, a definição da tragédia a partir da contradição ou do antagonismo se deve a Schiller, antes mesmo de ter sido formulada por Schelling, Hegel ou Hölderlin. Schiller, o mais kantiano dos autores de tragédia e dos filósofos ou poetas que escreveram sobre a arte trágica, profundamente imbuído da ética e da estética kantianas, pensa a tragédia a partir da dualidade entre a vontade humana e os instintos, a vontade livre e a determinação natural,a liberdade moral e a necessidade natural (MACHADO, 2006, p. 50). A partir de uma tradição normativa os teóricos chegaram a um raciocínio filosófico que resultou na filosofia do trágico. A mudança de posicionamento pode ser percebida com os novos conceitos elaborados. Do ponto de vista do pensamento de Schiller, o trágico é entendido como um combate entre instinto e liberdade que resulta na consolidação da liberdade moral. Em Schiller, o sofrimento das personagens ganha vez e, por conseguinte, a tragédia se realiza. Em sua obra intitulada O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche, Machado (2006, p. 7) elabora um estudo que investiga a “[...] constituição histórica do pensamento sobre o trágico”. Para isso, volta-se à Poética, referindo-se ao estudo “poetológico” da tragédia desenvolvido por Aristóteles, e, aponta Schiller como elemento fundamental que marca o processo de mudança entre um posicionamento “poetológico” de encarar os estudos sobre o trágico para um “ontológico”. Para Machado (2006), Schiller em sua teoria já apresenta sinais de uma discussão sobre uma “filosofia do trágico”, embora defenda que somente com Schelling esse posicionamento ontológico tenha realmente iniciado, pensamento que encontra aproximação entre os estudos de Peter Szondi (2004), ao defender que a “filosofia do trágico” tem origem com Schelling. 34 É interessante frisar que a associação do trágico à tragédia se rompe somente no final do século XVIII. Machado (2006, p. 94) chega a questionar qual é a concepção do trágico e da tragédia em Schelling. Como resposta, afirma que embora Schiller tenha apresentando uma interpretação moral da tragédia, “Schelling é o grande marco da reflexão sobre o trágico”. Há em Schelling, segundo Machado (2006, p. 106), “[...] uma interpretação metafísica da tragédia”. O conceito de trágico em Schelling é consequência do modo como se apreendia a tragédia, nesse sentido, a arte para ele era considerada como uma manifestação conflitante entre o destino e a liberdade humana. Eagleton adverte-nos: Em seu Filosofia da arte, Schelling presume que a tragédia deve se envolver com o destino e pergunta se pode haver uma versão moderna dela. Ele responde que Shakespeare substitui o destino pelo caráter, agora apresentado como necessidade insuperável. Para os antigos gregos, argumenta ele, os deuses frequentemente infligiam erro à humanidade e seu tipo de destino é, portanto, defectivo; mas esse não pode ser o caso do deus perfeito do cristianismo. Portanto, o destino como causa da ruína trágica precisa delocar-se, em vez disso, para o caráter, que não mais pode ser considerado livre (EAGLETON, 2013, p. 172). A versão moderna da tragédia, com base em Schelling, dispensa o destino imperfeito para apresentar o caráter como necessidade insuperável. Sendo assim, liberdade e necessidade se ligam na tragédia, sobretudo, porque ao optar espontaneamente vivenciar o caminho posto pelo destino, a personagem estaria vencendo a necessidade. Nesse caso, o conflito entre a liberdade e necessidade surge a partir do instante em que há a superação e a oposição com base na diferença apresentada entre ambas. Para Schelling, compreender o ser está no íntimo dessa relação entre liberdade e necessidade, ou seja, uma maneira de existir no mundo que leva a eclosão do trágico. Assinalamos que Querô tenta compreender o que se passa em sua vida. Há uma investida, por parte da personagem, em mudar o destino, no entanto, seu nascimento torna-se um castigo, uma vez que não importa o que faça, será sempre apontado como filho de prostituta e de pai desconhecido. Sendo assim, não pode mais ser considerado livre. Percebe-se que a personagem assume seu destino sustentado na ideia de vingar a morte da mãe, força que sempre joga o menino para a roda da vida, desse modo, ao mesmo tempo em que é livre para superar a marca que carrega, perde sua liberdade 35 quando precisa lutar contra as forças que lhe aprisionam. Nesse sentido, identificamos na história traços desses conflitos entre liberdade e necessidade que surgem a partir da superação e objeção nas ações de Querô. Com a ajuda de Gina de Obá e Pai Bilu de Angola, Querô começa a escolher os caminhos que o destino lhe apresenta. Encontra em sua caminhada Lica, menina por quem se apaixona e, a partir das defumações e das conversas com os pretos velhos, segundo ele, a vida parece querer se ajustar. Consegue passar um bom tempo em paz, trabalhar para se sustentar, frequentar lugares sem se envolver em brigas, voltar a pensar em si e até em sua aparência física até se envolver em uma nova confusão. Ela também ria. Mas ficava nisso. E já era uma boa. Pensando nela, quando ficava sozinho no meu quarto, eu ficava numa boa. Não me lembrava da desgraceira que me fizeram e que eu fiz. Já me sentia à vontade. Já não ficava mais nas encolhas. Me chegava nos pedaços onde a corriola se juntava. Escutava papo, jogava sinuca, escutava história e tudo. Até pensava em dar um capricho em mim, pra ela me ver bem vestido. Parei de pensar tanto em arrumar um revólver, pra pensar em roupa. Era do caralho curtir aquela menina, a tal da Lica. Minha vida melhorou [...] Eu estava botando fé. Pela boca da moçada do cais do porto, fiquei sabendo que o gorgota 33 lá do Reformatório não morreu. Ficou aleijado e se aposentou. O que já era menos bronca em cima de mim. A bichona Naná eu via passar pelo cais do porto e ela também me via. Nunca disse nada. Era sinal que não deu parte de mim e que tudo saiu no mijo. E sem me meter em salseiro, fiquei quase dois anos. Mas, uma tardinha de frio e chuva, por causa de uma besteira de merda minha vida bagunçou tudo de novo (MARCOS, 1992, p. 52). Com base no exposto, a compreensão da personagem Querô acontece a partir da análise de suas ações, ou seja, de ações conscientes ligadas à liberdade e ações inconscientes voltadas a necessidade formando, assim, o caráter da personagem que não mais pode ser considerado livre. Essa falta de liberdade da personagem é resultado também do seu próprio destino social, visto que Querô vem de uma genealogia social que determina sua tragédia pessoal, é filho de pai desconhecido, mãe prostituta e criado pela cafetina Violeta em um cabaré. Nesse sentido, o familiar aqui é social. Desse modo, “[...] o herói trágico, afirma Schelling, pode erguer-se acima da necessidade, valendo-se de sua inclinação em relação a ela, e assim ser vencido e vencedor ao mesmo tempo” (EAGLETON, 2013, p. 174). Há uma compreensão por 33 De acordo com o dicionário Houaiss a palavra “gorgota” significa: “1) marujo com algum tempo de experiência, veterano; 2) homossexual ativo” (HOUAISS, 2009). 36 parte de Schelling de um herói que combate. Embora exista um destino, esse herói busca a autonomia mesmo que se depare com a derrota. À medida que o herói trágico, na interpretação de Schelling, não só sucumbe ao poder superior do elemento objetivo como também é punido por sua derrota, ou simplesmente pelo fato de ter optado pela luta, volta-se contra ele próprio o valor positivo de sua atitude, a vontade de liberdade que constitui a „essência de seu eu‟ (SZONDI, 2004, p. 31). A percepção de Schelling sobre a tragédia independente do aristotelismo permite ir além da poética da tragédia, visto que transpõe tal legado e estabelece uma interpretação filosófica. Com base em tais pressupostos, o trágico em Querô parte também da liberdade com que o menino experimenta combater o destino e, ao mesmo tempo, ser esmagado por ele. Nesse sentido, Querô é livre para combater e lutar contra o destino ao passo que não pode derrotá-lo por completo, uma vez que está preso aos fatos. Assim, resiste ao peso do destino e, através da perda de sua liberdade, prova a existência
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