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Relação de trabalho e realidade social Prof. Dennis Novaes, Profª. Natânia Lopes Descrição Relações de trabalho, especialmente nas sociedades capitalistas, desigualdade social e atuação do assistente social. Propósito Identificar os processos de exclusão a partir do entendimento da estruturação da sociedade em hierarquias de poder a fim de perceber nuances da questão social. Objetivos Módulo 1 O Estado de bem-estar social e a exploração do trabalho Identificar o panorama histórico e teórico sobre a exploração humana e o Estado de bem-estar social. Módulo 2 Exclusão social, pobreza e emprego Analisar as correlações entre desemprego, subemprego e exclusão social. Módulo 3 Desigualdade social e questão social Definir o conceito de questão social em seus desdobramentos. Módulo 4 Desigualdade social e vulnerabilidade social Reconhecer a desigualdade social como produtora da vulnerabilidade social humana. 1 - O Estado de bem-estar social e a exploração do trabalho É a partir do trabalho que a humanidade produz as condições materiais de sua existência. As diferentes formas de divisão do trabalho que os seres humanos estabelecem entre si impactam, consequentemente, todas as esferas da vida em sociedade. Nos últimos anos, as relações de trabalho têm passado por transformações profundas que dão características muito peculiares à sociedade contemporânea. A velocidade do fluxo de informações e a inovação tecnológica sem precedentes têm sido contraditoriamente acompanhadas por um crescimento profundo das desigualdades, de verdadeiros abismos sociais entre os seres humanos. Neste material, investigaremos quais foram as transformações mais recentes que impactaram as relações de trabalho e, por consequência, toda a sociedade humana cada vez mais globalizada. Introdução Ao final deste módulo, você será capaz de identificar o panorama histórico e teórico sobre a exploração humana e o Estado de bem-estar social. Panorama histórico O Estado de Bem-estar Social O professor Dennis Novaes apresenta o panorama histórico do processo de exploração do trabalho no contexto do Estado de bem-estar social. Compreendendo o panorama histórico No início do século XX, os Estados Unidos da América se consolidaram como a principal economia do mundo. O país viveu um grande crescimento econômico após a Primeira Guerra Mundial, que teve fim em 1918. A doutrina que orientava o Estado norte-americano era o liberalismo econômico, sistema baseado em três pilares: Livre concorrência Defesa da propriedade privada Não intervenção do Estado na economia Por alguns anos, esse modelo parecia de fato ser a melhor receita para o sucesso no capitalismo, ao menos para empresários e financistas. A produção industrial crescia vertiginosamente, bem como os lucros dos proprietários de indústrias e dos investidores da bolsa de valores. Os Estados Unidos da América tornaram-se responsáveis por 42% de toda a produção industrial do planeta, mas tudo veio abaixo com a queda da bolsa de valores de Nova York em 1929. A imensa oferta de produtos não foi acompanhada pela demanda, ou seja, embora a quantidade de bens industrializados produzidos fosse enorme, não havia trabalhadores com dinheiro suficiente para comprar todos esses produtos, gerando uma crise de superprodução. Como bem resumiu o historiador Eric Hobsbawm: O que acontecia, como muitas vezes acontece nos booms de mercados livres, era que, com os salários ficando para trás, os lucros cresceram desproporcionalmente, e os prósperos obtiveram uma fatia maior do bolo nacional. Mas como a demanda da massa não podia acompanhar a produtividade em rápido crescimento do sistema industrial nos grandes dias de Henry Ford, o resultado foi superprodução e especulação. Isso, por sua vez, provocou o colapso. (HOBSBAWM, 2010, p. 104) Os anos que se seguiram ficaram conhecidos como a Grande Depressão. O desemprego se espalhou de forma avassaladora por todo o planeta e o PIB dos países foi reduzido drasticamente. Para se ter ideia das proporções da crise, 44% dos trabalhadores na Alemanha estavam desempregados em 1932 (HOBSBAWM, 2010, p.97). Fila de desempregados em Chicago (EUA), na época da Grande Depressão, aguardando a doação de um prato de sopa (free soup). Diante daquela situação, era evidente que a doutrina do liberalismo econômico precisava ser revista. A solução encontrada para sair da crise veio por meio do New Deal, um plano de recuperação econômica implementado pelo presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt em 1933. Inspirado pelas teorias do economista John Maynard Keynes, que defendia uma maior intervenção do Estado na economia, o New Deal preconizava algumas medidas estruturais como um grande pacote de investimentos em obras públicas, concessão de empréstimos e fixação de preços de produtos. As principais reformas trazidas por esse plano econômico, no entanto, estavam ligadas às relações de trabalho. O New Deal, instituído naquele país, estabeleceu: O aumento dos salários A legalização dos sindicatos O limite da jornada de trabalho de 8 horas diárias A criação de uma previdência social para os aposentados A instauração do seguro-desemprego em caso de demissão Maior representante das ideias do liberalismo econômico, os Estados Unidos da América até aquele momento não garantiam nenhum desses direitos aos trabalhadores, uma vez que isso seria visto como uma intervenção do Estado na economia (HOBSBAWM, 2010, p. 97). O fato de o maior representante do liberalismo ter mudado os rumos de sua doutrina econômica acabou causando mudanças em todos os Estados capitalistas do mundo, gerando um movimento que o historiador Eric Hobsbawm chamou de “a queda do liberalismo” (HOBSBAWM, 2010, p. 113). Além da crise econômica de 1929, outro fator que influenciou a adoção dessas medidas foi o receio de que os trabalhadores de países capitalistas se organizassem de modo revolucionário, influenciados pelo bloco socialista da União Soviética, onde o acesso a direitos como emprego, saúde e educação já era universalizado. A partir dos anos 1930, a maioria dos países capitalistas passou a implementar medidas que garantissem maiores direitos aos trabalhadores, um tipo de política conhecida como Welfare State, ou Estado de bem- estar social. Nessa doutrina, o Estado passa a ser visto como o organizador da economia e o garantidor de direitos aos cidadãos, como acesso à saúde, educação, segurança e a condições dignas de vida e trabalho. Em outras palavras, caberia ao Estado reduzir as desigualdades sociais geradas pelo sistema capitalista, tendo como foco uma preocupação humanitária com seus cidadãos. Essa atuação é extremamente necessária, conforme afirma o historiador Hobsbawn: O capital globalizado continuará dependendo do Estado para a realização de políticas sociais, pois esse seguirá cumprindo o papel de realocar recursos desigualmente distribuídos. (HOBSBAWM, 2010, p. 250) Estado de bem-estar social O Estado de bem-estar social e as relações de trabalho Embora o Brasil nunca tenha de fato experimentado um Estado de bem-estar social, as políticas públicas pautadas nessa doutrina também tiveram alguma repercussão em nosso país. Em 1930, por exemplo, Getúlio Vargas criou o Ministério do Trabalho e promulgou em 1943 a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que determinava alguns direitos fundamentais dos trabalhadores. Embora tenha passado por uma série de transformações ao longo das décadas e esteja sendo profundamente enfraquecida pelas políticas neoliberais das décadas mais recentes, a CLT atualmente ainda é um marco no que se refere aos direitos trabalhistas no Brasil. Legislação sindical estabelecida pelo getulismo em 1931. Os princípios do Estado de bem-estar social também orientam em grande parte a Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, por ser considerada a mais democrática das constituições brasileiras. Como observou o jurista Nairo Lopes, “a Constituiçãode 1988 retoma o compromisso para com a promoção da justiça social” (LOPES, 2014, p. 1). Estão previstas na Constituição de 1988, por exemplo, a realização da reforma agrária, visando a uma distribuição mais justa das terras no Brasil, bem como a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS, considerado uma referência mundial de sistema público de saúde. Vários princípios básicos do Estado de bem-estar social estão previstos na Constituição de 1988, por exemplo: [...] os incisos do art. 3º, que nitidamente trazem como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos. (LOPES, 2014, p. 1) Mas não há um único modelo de Estado de bem-estar social. O sociólogo dinamarquês Esping-Andersen (1991) propõe que essa forma de governo se manifestaria em ao menos três diferentes regimes ou sistemas: o conservador, o liberal e o social-democrata. Para diferenciar esses regimes de Estado de bem-estar social, o autor propõe o conceito de desmercadorização, que seria “a liberdade dos cidadãos de, sem perda potencial de trabalho, rendimentos ou benefícios sociais, pararem de trabalhar quando acharem necessário” (ESPING-ANDERSEN, 1991, p. 103). Esse conceito permite avaliar o grau de independência e autonomia conferido aos cidadãos pelas políticas sociais para que eles consigam sobreviver para além das relações de mercado. Além disso, as políticas sociais desmercadorizadoras (ou desmercantilizadoras) fortalecem os trabalhadores, pois garantem que eles possam recusar trabalhos considerados degradantes, pois teriam um padrão de sobrevivência assegurado, com alimentação e moradia adequadas, por exemplo (ESPING-ANDERSEN, 1991). Vamos ver agora as características de cada regime: Conservador Os Estados de bem-estar social conservadores são corporativistas e os direitos sociais estão ligados à classe e ao status. Um elemento central nesse tipo de regime é a família e “o Estado só interfere quando a capacidade da família servir seus membros se exaure” (ESPING- ANDERSEN, 1991, p. 109). Entre as nações caracterizadas por esse regime estão a França e a Alemanha. Liberal Nos Estados de bem-estar social liberais, predominam a assistência aos comprovadamente pobres, reduzidas transferências universais ou planos modestos de previdência social. As regras para a habilitação aos benefícios são, portanto, restritas e muitas vezes associadas ao estigma; os benefícios são tipicamente modestos. O Estado, por sua vez, encoraja o mercado, tanto passiva — ao garantir apenas o mínimo — quanto ativamente — ao subsidiar esquemas privados de previdência. A consequência é que esse tipo de regime minimiza os efeitos da desmercadorização. Os exemplos arquetípicos desse modelo são os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália (ESPING-ANDERSEN, 1991, p. 108). Social-democrata Nos Estados de bem-estar social de regime social-democrata, os princípios de universalismo e desmercadorização dos direitos sociais estendem-se também às novas classes médias. Os social-democratas buscaram um Estado de bem-estar social que promovesse a igualdade com os melhores padrões de qualidade. Isso implicava, em primeiro lugar, que os serviços e benefícios fossem elevados a níveis compatíveis até mesmo com o gasto mais refinado das novas classes médias; e, em segundo lugar, que a igualdade fosse concedida garantindo-se aos trabalhadores plena participação na qualidade dos direitos desfrutados pelos mais ricos (ESPING-ANDERSEN, 1991, p. 109). Além disso, nesse regime, cujos principais países d t t ã di t d d ã i d i t i l Neoliberalismo: características O neoliberalismo e a “uberização” do trabalho Nos anos 1970, a economia global sofreu um novo baque, dessa vez motivado em grande medida pela Crise do Petróleo. Naquela década, os cientistas descobriram que o petróleo era um recurso natural não renovável, ou seja, que as reservas em algum momento terminariam. Um posto de gasolina americano fechado durante o embargo ao petróleo em 1973. Em poucos meses, de outubro de 1973 a março de 1974, o preço do petróleo aumentou em 400%, causando prejuízos imensos para todas as economias do globo. Como resumiu o historiador Eric Hobsbawm (2010, p. 393): “a história dos vinte anos após 1973 é a de um mundo que perdeu suas referências e resvalou para a instabilidade e a crise”. Esse cenário desolador abriu espaço para uma série de correntes políticas e ideológicas que questionavam o modelo de doutrina econômica do Estado de bem-estar social. Diante da crise econômica e da dificuldade de encontrar caminhos para sair dela, “a única alternativa oferecida era a propagada pela minoria de adotantes são os escandinavos, todas as camadas são incorporadas a um sistema universal de seguros, mesmo assim os benefícios são graduados de acordo com os ganhos habituais. Esse modelo exclui o mercado e, em consequência, constrói uma solidariedade essencialmente universal em favor do Estado de bem-estar social (ESPING-ANDERSEN, 1991, p. 109-110). teólogos econômicos ultraliberais. [...] O zelo ideológico dos velhos defensores do individualismo era agora reforçado pela visível impotência e o fracasso de políticas econômicas convencionais, sobretudo após 1973” (HOBSBAWM, 2010, p. 398). Teóricos ultraliberais como Friederich von Hayek e Milton Friedman se tornaram bastante influentes no pensamento econômico mundial, especialmente este último, considerado um dos principais expoentes da Escola de Chicago — um conjunto de professores da Universidade de Chicago que foi responsável pela disseminação das ideias neoliberais. Buscando resgatar as bases do pensamento liberal que havia fracassado décadas atrás, esses economistas pregavam a ideia do Estado mínimo, ou seja, a mínima intervenção do Estado na economia. Um dos primeiros “laboratórios” para essas teorias neoliberais foi o Chile, que, após o golpe dado pelo ditador Augusto Pinochet, passou a ser administrado pelos “Chicago Boys”, grupo de economistas chilenos que haviam estudado em Chicago. As consequências do golpe chileno impactaram diretamente os trabalhadores. Como afirmou o economista Óscar Landerretche, em entrevista para a BBC, após a adoção das políticas neoliberais de Pinochet "não havia seguro de saúde universal, seguro-desemprego, gratuidade no ensino superior, nem pilares solidários no sistema de previdência. No setor previdenciário, a mudança para um regime de capitalização — no qual cada indivíduo faz sua própria poupança — também causou forte impacto social anos depois. Quando o novo modelo começou a produzir os seus primeiros aposentados, o valor das aposentadorias se mostrou baixo: 90,9% recebem menos de 149.435 pesos (cerca de R$694,08)” (BBC, 2019). O Chile acabou sendo pioneiro na adoção das políticas neoliberais, entretanto, nos anos 1980, esse receituário econômico passou a se disseminar por diversos países, especialmente a partir de 1989. Naquele ano, economistas liberais, representantes do governo norte-americano, do Fundo Monetário Internacional, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial, se reuniram em Washington para definir as diretrizes econômicas que os países da América Latina deveriam adotar a fim de obterem crédito para solucionarem suas respectivas crises econômicas. Essa reunião ficou conhecida como Consenso de Washington e se tornou um marco na adoção de políticas neoliberais pelos Estados latino-americanos, entre eles o Brasil. O neoliberalismo no Brasil O principal responsável pela implementação do receituário neoliberal em nosso país foi o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Algumas das principais medidas neoliberais preconizadas pelo Consenso de Washington e aplicadas no Brasil a partir dos anos 1990 foram: Repressão às organizações sindicais e movimentos populares. Abertura comercial e diminuição das tarifas alfandegárias. Diminuição das leis trabalhistas parareduzir os custos dos empresários contratantes. Diminuição de impostos para que as grandes empresas aumentassem seus lucros. Diminuição da presença do Estado no mercado, com a privatização de empresas estatais. O neoliberalismo tem como característica a ideologia de que a ação individual seria a única possibilidade emancipadora, enquanto a perspectiva coletiva seria burocrática, autoritária e ultrapassada. Algumas consequências disso para os trabalhadores no Brasil foram a redução de empregos com carteira assinada e o crescimento de vagas precárias, sem benefícios sociais como férias, 13º salário, licença-maternidade, FGTS etc. A ideia de que os indivíduos podem negociar os termos de seus contratos com os empregadores acabou enfraquecendo os sindicatos, por exemplo, que teriam um poder maior de barganha com os donos de empresa por representarem os trabalhadores coletivamente. As políticas neoliberais têm impactado a vida dos trabalhadores ainda hoje com a Reforma Trabalhista de 2017, aprovada no governo de Michel Temer, e a Reforma da Previdência, aprovada em 2019 no governo de Jair Bolsonaro. Curiosidade Paulo Guedes, ministro da Economia no governo Bolsonaro, foi um economista formado na Escola de Chicago, que chegou inclusive a atuar como professor de economia em uma universidade chilena durante o governo Pinochet. O economista José Dari Krein observa que a Reforma Trabalhista de 2017 marca a mudança de uma regulação pública do trabalho para uma regulação privada. Na regulação privada, é o empregador quem define, de forma discricionária, as regras do contrato de trabalho no âmbito do mercado. A regulação pública, por outro lado, compreende o processo de definição das regras com base na ação dos trabalhadores, por meio de negociação coletiva ou regulamentação estatal, que se traduz na colocação de limites sobre a forma como o capital utiliza a força de trabalho. Ela compreende dois princípios básicos do direito do trabalho: Primeiro princípio O trabalho não pode ser considerado como uma mercadoria qualquer, pois quem vende a força de trabalho é uma pessoa humana e sua dignidade precisa estar assegurada. Segundo princípio A relação entre capital e trabalho é marcada por uma assimetria, sendo fundamental assegurar a existência do sindicato e da negociação ou a intervenção do Estado para proteger o elo mais frágil da relação O autor considera que a regulação pública é fundamental, uma vez que a racionalidade econômica não tem como foco proteger a dignidade do trabalhador (KREIN, 2018, p. 80). Essa regulação se mostra cada vez mais necessária para enfrentar os desafios da contemporaneidade e as transformações mais recentes nas relações de trabalho. Trabalhos mediados por plataformas digitais como aplicativos de entrega e de transporte, a exemplo de empresas como Uber, 99 Taxi, Ifood, Rappi, entre muitas outras, têm apresentado diversos dilemas no que se refere a direitos trabalhistas e dignidade dos trabalhadores. Para descrever o processo de surgimento dessas novas relações, têm sido usados termos como uberização ou plataformização do trabalho. Nessas atividades, os trabalhadores não têm necessariamente um vínculo com a plataforma a partir das quais prestam serviços, o que muitas vezes os deixam desamparados por direitos trabalhistas. Entregadores e motoristas de aplicativo realizam o microtrabalho, vocábulo utilizado pelos estudiosos do tema para designar esse modelo de trabalho no qual as tarefas se dão numa escala micro e há pouca ou nenhuma capacidade de organização coletiva por parte dos trabalhadores, já que eles nem mesmo têm contato uns com os outros. Trata-se, em última instância, de um exemplo extremo das relações trabalhistas em um contexto neoliberal. A Lei 14.297, de 2022 trata exatamente sobre isso: assegurar direitos trabalhistas aos trabalhadores por aplicativo, o que demonstra a importância da regulação estatal para garantir condições dignas de trabalho aos profissionais que atuam nesse setor. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Os principais fatores para a adoção do Estado de bem-estar social por diversos países nos anos 1930 foram A a Crise do Petróleo e o pleno emprego. Parabéns! A alternativa B está correta. A Crise de 1929 e o receio de que novas revoluções comunistas tomassem os Estados Unidos e a Europa motivaram a adoção das políticas do Estado de bem-estar social por diversos países. Questão 2 Entre os economistas que são identificados com o neoliberalismo do século XX estão B a Crise de 1929 e o temor de novas revoluções comunistas. C os golpes ditatoriais na América Latina e o ódio aos EUA. D a eleição de um operário para a presidência e a Crise do Petróleo. E a ascensão do nazismo e a inspiração na Alemanha. A Carl Menger e Friedrich Engels. B David Ricardo e Schumpeter. C Schumpeter e Werner Sombart. D Milton Friedman e Friedrich Hayek. E Adam Smith e Karl Marx. Parabéns! A alternativa D está correta. Milton Friedman e Friedrich Hayek foram os principais teóricos do neoliberalismo. 2 - Exclusão social, pobreza e emprego Ao final deste módulo, você será capaz de analisar as correlações entre desemprego, subemprego e exclusão social. Contexto da pobreza no Brasil Realidade social e pobreza no Brasil O Brasil é um país de extremos. A colonização portuguesa e o processo histórico que resultou no país como hoje o conhecemos foram caracterizados pela violência para com os povos indígenas que aqui habitavam, bem como pelo tráfico e pela escravização de povos africanos. Esse padrão sócio-histórico deixou marcas profundas que podem ser sentidas ainda hoje. De acordo com o coeficiente de Gini, fórmula que permite a classificação da desigualdade social, o Brasil está entre os dez países mais desiguais do mundo. De acordo com um relatório da Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) divulgado em 2019, ou seja, antes da pandemia, o 1% da população mais rica do Brasil detinha 28,3% de toda a renda do país. Uma pesquisa recente do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, da USP, demonstrou que os 705 mil homens brancos que fazem parte do 1% mais rico e representam 0,56% da população adulta do país concentram uma renda maior do que a de todas as mulheres negras adultas juntas, contingente este que representa 26% da população adulta. A verdade é que, embora as políticas econômicas neoliberais tenham avançado no Brasil a partir dos anos 1990, nunca houve em nosso país um Estado de bem-estar social. É possível perceber que o processo de “penalização da miséria” que o sociólogo francês Louïc Wacquant viu como uma novidade na Europa, com a adesão dos países europeus ao neoliberalismo, já não era tão estranho ao Brasil. Segundo o autor, a penalização da miséria seria um conjunto de práticas estatais por meio do qual “a ‘mão invisível’ do mercado de trabalho precarizado conseguiu seu complemento institucional no ‘punho de ferro’ do Estado, que tem sido empregado para controlar desordens geradas pela difusão da insegurança social” (WACQUANT, 2008, p. 93-94). Resumindo Wacquant chama atenção para o fato de que, com o neoliberalismo e a precarização do mercado de trabalho, criou-se uma série de instabilidades sociais como aumento da violência, da pobreza e da fome, às quais o Estado neoliberal responde não com políticas sociais, mas com a polícia e outros mecanismos de coerção. Exclusão social Conceito de exclusão social O professor Dennis Novaes apresenta estudo de caso para o melhor entendimento do conceito de exclusão social, contextualizado à realidade brasileira. É dentro desse cenário de uma desigualdade desoladora que surgem os excluídos sociais. A expressão exclusão social ficou popular entre os estudiosos justamente depois do advento do neoliberalismo, como observa a pesquisadora Sarah Escorel: Exclusão social passou a ser usado para denominar o fenômeno integrante de uma ‘nova questão social’, problemáticaespecífica do final de século XX, cujo núcleo duro foi identificado na crise do assalariamento como mecanismo de inserção social. Essa crise, por sua vez, era oriunda de mudanças no processo produtivo e na dinâmica de acumulação capitalista gerando a diminuição de empregos, inviabilizando essa via de constituição de solidariedades e de inserção social, constituindo os ‘inválidos pela conjuntura’ e provocando fraturas na coesão social. A exclusão foi então percebida como uma marca profunda de disfunção societal que assume uma multiplicidade de formas. O conceito expressa a existência de um fenômeno diferente de uma ’nova pobreza’, e ao mesmo tempo, tem a capacidade de vocalizar a indignação com esse mundo partido em dois. (ESCOREL, 2009, p. 203) A desigualdade e, por consequência, a exclusão social são problemas crônicos no capitalismo, mas são severamente agravadas quando não há políticas sociais voltadas para amenizar seus efeitos. Em seu livro O Capital no século XXI, Thomas Piketty (2014) afirma que, na sociedade contemporânea, estamos vivendo de maneira semelhante ao século XIX, quando havia um grande papel da herança na concentração de renda. Para esse autor, a desigualdade de renda cresceu até o século XX, com exceção de um curto período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais, quando as grandes fortunas foram abaladas. Segundo Piketty (2014, p. 27), “a história da desigualdade é moldada pela forma como os atores políticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assim como pela influência relativa de cada um desses atores e pelas escolhas coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinação, do jogo de forças, de todos os atores envolvidos”. Piketty observou que a alta taxa de retorno do capital é um desafio para a meritocracia e que atualmente há uma tendência forte de aumento da desigualdade. Como solução, ele propõe a progressiva taxação do capital e das grandes fortunas e indica que as instituições reguladoras estejam articuladas globalmente para que não haja evasões fiscais. Outro autor que se debruçou sobre a desigualdade e a exclusão social foi Robert Castel. Para Castel, a humanidade vivenciou uma transição de um sistema baseado na comunidade para outro baseado na sociedade, processo por meio do qual o indivíduo passa a ser mais importante que o coletivo. Trata-se de uma “sociedade salarial”pautada pelo que o autor chama de “individualismo negativo”. Na sociedade salarial, os indivíduos, “da liberdade, conhecem sobretudo a falta de vínculos e, da autonomia, a ausência de suportes” (CASTEL, 1998, p. 598). Castel também argumenta que a crise da solidariedade material amplia a vulnerabilidade de massa e o individualismo negativo ameaça a coesão social. Segundo o autor: [...] a contradição que atravessa o processo atual de individualização é profunda. Ameaça a sociedade de uma fragmentação, que a tornaria ingovernável, ou de uma polarização entre os que podem associar individualismo e independência, porque sua posição social está assegurada, e os que carregam sua individualidade como uma cruz, porque significa falta de vínculos e ausência de proteções. (CASTEL, 1998, p. 609-610) Por esse motivo, Castel defende que o enfrentamento desse cenário de exclusão social demanda uma ampliação da proteção social por parte do poder público, que deve ser a única ponte entre os individualismos positivo e negativo. Desemprego e subemprego no Brasil O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) define a pessoa desempregada da seguinte forma: Aquela com idade para trabalhar (acima de 14 anos) que, embora não esteja trabalhando, está disponível e tenta encontrar trabalho. Em outras palavras, para alguém ser considerado desempregado não basta não possuir um emprego, é preciso que essa pessoa procure uma ocupação e não consiga. De acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a PNAD Contínua, 12,6% da população brasileira se encaixa nesse perfil, o que representa cerca de 13,5 milhões de pessoas. Trata-se de uma taxa elevada que retrata uma tragédia social para muitas pessoas. Em uma sociedade capitalista, na qual ter emprego é fundamental para o acesso a uma cidadania plena e a condições dignas de existência, estar desempregado pode despertar sentimentos de vergonha, ansiedade, insegurança, abandono e angústia, especialmente em uma “sociedade marcada pela indiferença, pela desconfiança e pela falta de compromisso mútuo entre as pessoas, que passam a buscar soluções individuais para problemas produzidos socialmente” (SANTOS, 2008, p. 155). A pesquisa “Impactos do Desemprego: saúde, relacionamentos e estado emocional”, conduzida pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), publicada em 2017, demonstrou que 59% dos entrevistados se sentiam deprimidos e 62% relatavam sofrer de angústia. A pessoa desempregada muitas vezes se sente culpada, como se a situação vivida por ela fosse sua responsabilidade, o que não é verdade. Karl Marx, um dos maiores analistas do capitalismo, observou, já no século XIX, que o desemprego era uma necessidade estruturante desse sistema econômico (MARX, 2001). Segundo o autor, para que o capitalista continue aumentando seus lucros, é necessário que haja uma “superpopulação relativa”, algo como um exército de reserva. É justamente o fato de existir uma massa de desempregados procurando emprego que permite aos capitalistas reduzirem os salários ou ofertarem vagas precárias sem garantias de direitos básicos como férias, 13º salário, FGTS etc. Afinal, um enorme contingente de pessoas desesperadas implica dizer que há muita gente à procura de qualquer tipo de emprego. A esse respeito, a socióloga Geórgia dos Santos observa: O cerne do processo de racionalização produtiva poupador de força de trabalho está em produzir mais com um menor número de trabalhadores, mantendo praticamente inalterado o tempo da jornada de trabalho, mediante a incorporação de inovações tanto tecnológicas como organizacionais. (SANTOS, 2008, p. 154) Isso quer dizer que as empresas em geral procuram sempre modernizar seu modo de produção com o objetivo de contratarem o mínimo possível de empregados. Trata-se, mais uma vez, de um fenômeno observado por Karl Marx, segundo o qual “a burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção” (MARX; ENGELS, 2010, p. 48). Embora a modernização dos meios de produção seja uma explicação importante para as taxas de desemprego em países mais “desenvolvidos”, essa não é a única razão que explica os elevados índices de desemprego em países em desenvolvimento. Em regiões como a América Latina e a África, ocorre uma profunda desigualdade no acesso aos postos de trabalho, o que resulta em um tipo de desemprego estrutural, ou seja, um desemprego crônico, sempre presente, mas que afeta as pessoas de modos distintos a partir de critérios como cor, gênero e classe social (SANTOS, 2008, p. 154). O perfil dos desempregados no Brasil reflete em grande medida as desigualdades que marcam toda a estrutura da nossa sociedade. Se vimos anteriormente que, em 2021, a taxa de desemprego no Brasil chegou a mais de 12%, esse número é muito maior entre as mulheres: 54,4% delas se encontram desempregadas nesse momento. Quando o critério passa a ser a cor da pele, também há uma disparidade significativa. A taxa de desemprego entre brancos é menor do que 10%, enquanto entre negros ultrapassa os 18%. A conclusão trazida pela matéria da revista Istoé que levanta esses números alarmantes é um importante recado para que o Brasil se torne um país menos desigual. Perspectivas de superação da realidade atual Como é possível alterar essa realidade? Se, como vimos, o emprego é fundamental para a inclusão social e o pleno acesso à cidadania, mas não é uma prioridade dos agentes econômicos, interessados exclusivamenteno lucro, é importante que a garantia de acesso ao emprego seja objeto de políticas públicas a fim de mitigar os efeitos do capitalismo. Mais uma vez, podemos perceber as diferenças entre políticas econômicas pautadas no ideário neoliberal para outras que se aproximam da noção de Estado de bem-estar social. Em 1994, quando as políticas neoliberais ainda estavam adentrando o cenário nacional, o índice de desemprego no Brasil era menor que 5%. Esse percentual sofreu um crescimento considerável e passou a impressionantes 19% ao fim do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. E não foi apenas o desemprego que cresceu nesse período, a qualidade do emprego também se transformou drasticamente. Como observou Georgia Santos, a informalidade se tornou um traço marcante do mercado de trabalho brasileiro, de modo que uma proporção muito significativa dos empregados passou a não possuir carteira assinada e, consequentemente, se ver desprovida de qualquer amparo por direitos trabalhistas básicos. Esse tipo de trabalho precarizado, que nos anos 1970 era descrito pelo nome subemprego, passa a ser denominado informalidade a partir dos anos 1990, com as transformações gerenciais e organizacionais da economia global, pautadas pelas mudanças neoliberais (SANTOS, 2008, p. 157). As consequências desse processo de precarização do trabalho são trágicas, como aponta a autora: Desse modo, amplia-se o excedente estrutural da força de trabalho e, assim, as novas formas de ocupação têm absorvido grande parte da população excluída do mercado formal, por meio de diversas estratégias de sobrevivência, incluindo: práticas de contrabando, pirataria, prostituição, tráfico de drogas, assaltos, sequestros e outros crimes, presentes no que hoje se poderia chamar de mercado ilegal de trabalho, estabelecendo uma linha muito tênue entre informalidade e ilegalidade. (SANTOS, 2008, p. 156) Outra característica marcante das políticas neoliberais é a terceirização e subcontratação das empresas. Estabelecem-se redes de complementaridade em que empresas de menor porte prestam serviços para grandes empresas, fornecendo insumos, embalagens, produtos intermediários e força de trabalho. Nesse processo, os salários dos empregados são reduzidos consideravelmente, tendo em vista que agora essas empresas de menor porte também passam a lucrar em cima da mão de obra do trabalhador, que se vê cada vez menos remunerado. Até mesmo departamentos vitais de grandes empresas, como o de recursos humanos, atualmente são terceirizados. Santos também resume bem esse processo, mostrando que “em 1995 havia 1,8 milhões de terceirizados formais. Dez anos depois, eram 4,1 milhões – uma expansão de 127%” (SANTOS, 2008, p. 157). Variável 2012 2013 2014 2 Ocupados 57,2 57,1 56,8 5 Desocupados 7,1 6,9 6,8 8 Tabela: Taxa de ocupação e desocupação geral no Brasil (%) - período de referência: 3º trimestre de 2012 a 2020. Ghiraldelli, 2021, p. 9. A partir da tabela acima, podemos perceber que, embora o desemprego tenha caído profundamente ao longo dos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), chegando ao seu nível mais baixo em 2014, esses índices voltaram a crescer ao longo dos governos Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2019-). A conjuntura tomou contornos ainda mais dramáticos durante a pandemia da covid-19 que teve início em março de 2020. Como observou o professor do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília, Paulo Ghiraldelli, “isso evidencia que as medidas de retirada de direitos por meio das reformas aprovadas nos últimos anos (como é o caso da reforma trabalhista e da previdência) como ‘salvação’ para a saída da crise contribuíram para acentuar a pobreza e aprofundar as desigualdades sociais” (GHIRALDELLI, 2021, p. 3). Para criarmos uma sociedade mais justa, que reverta as desigualdades em vez de aprofundá-las, é preciso investimento não só na criação de emprego, mas em empregos de qualidade e que garantam direitos trabalhistas básicos à população. Bolsonaro (2019-) No sentido de atualização das informações, o site do IBGE informa que a taxa de desocupação 4º Trimestre 2021 foi de 11,1 %. Lembre-se que é no site dessa instituição que você conseguira dados oficiais e atualizados. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 O Brasil é um país profundamente desigual. Uma pesquisa recente do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, da USP, demonstrou que os 705 mil homens brancos que fazem parte do 1% mais rico e representam 0,56% da população adulta do país concentram uma renda maior do que a de todas as mulheres negras adultas juntas, contingente este que representa 26% da população adulta. A concentração de renda possui uma série de causas, no Brasil, entre as principais estão A o passado colonial e escravocrata, os privilégios das grandes empresas e do capital financeiro e a precarização do trabalho. B a baixa circulação de capital, a retração do PIB e a crise migratória. C a falta de interesse da população em empreender. D programas de distribuição de renda como o Bolsa Família. Parabéns! A alternativa A está correta. Como demonstrado no módulo 2, o processo colonial de conformação da sociedade brasileira e as dinâmicas neoliberais de exploração do trabalho são fundamentais para o aprofundamento das desigualdades no país. Questão 2 As mudanças estruturais na economia impactam diretamente o mercado de trabalho, gerando com frequência um quadro conhecido como “desemprego estrutural”. É correto afirmar que essa modalidade de desemprego Parabéns! A alternativa B está correta. Como demonstrado no módulo 2, o desemprego estrutural é um quadro crônico que assola principalmente os países em desenvolvimento e tem como motivações fatores como a adoção de E os desastres naturais que assolam o território nacional. A tem como característica a sazonalidade, ou seja, perdura apenas por alguns anos, geralmente em ciclos de recessão econômica. B é um quadro crônico de desemprego, atrelado a diversos fatores como a adoção de novas tecnologias e as desigualdades de acesso ao emprego. C é mais presente em países desenvolvidos como os Estados Unidos, Canadá e Suécia. D ocorreu nos países da América Latina apenas durante o período em que seus Estados foram comandados por ditaduras militares. E é consequência das políticas de bem-estar social. novas tecnologias e as desigualdades de acesso ao emprego. 3 - Desigualdade social e questão social Ao final deste módulo, você será capaz de definir o conceito de questão social em seus desdobramentos. A questão social A questão social é um conceito utilizado para se referir ao fenômeno da pobreza e das desigualdades nas sociedades capitalistas. Além da pobreza, o racismo, o desemprego, a exclusão, a carência de serviços que deveriam ser oferecidos pelo Estado e as desigualdades de gênero também integram o que se pensa contemporaneamente como questão social. A questão social surgiu no século XIX, na Europa, com a Revolução Industrial e o surgimento das classes proletárias, cada vez mais pauperizadas, em contraste com uma economia aquecida e com a ideia de progresso inspirada pelo acrescente emprego da tecnologia no processo de produção. Karl Marx acabou sendo, nesse contexto histórico específico, o pensador de maior destaque na denúncia da questão social e da exploração das classes trabalhadoras pela burguesia (MARX, 2010). Pode-se dizer que o principal objeto de estudo e trabalho do assistente social seja a questão social. O assistente social atua justamente na dobra entre a questão social em suas mais variadas expressões e a resistência contra ela e suas injustiças, bem como contra os problemas humanos e éticos que ela representa. O capitalismo, por ser um sistema produtor de desigualdades, é marcado por uma questão social profunda, sobre a qual o assistente social se debruça, pensa e atua, assim como outros profissionais. Não é exagero afirmar, aliás, que todotrabalho e todo trabalhador, em uma sociedade marcada por desigualdades estruturais, precisará lidar com a questão social. O professor, o médico, o jurista, por exemplo, também terão suas atuações o tempo todo atravessadas por essas mazelas, tal é sua gravidade e importância na organização da sociedade. Desigualdade social e concentração de renda A desigualdade social é um pressuposto das sociedades capitalistas. Uma vez que a organização social desse sistema socioeconômico gira em torno do lucro e do acúmulo de bens e riquezas, cria-se um sistema de divisão das populações segundo classes sociais pautadas pela renda e poder que dela advém, o poder aquisitivo. Vamos nos demorar nesta expressão conhecida de todos: “poder aquisitivo”. É o poder de adquirir. Ganha relevo aqui o potencial dos indivíduos para o consumo. É precisamente esse potencial que torna as pessoas mais ou menos poderosas numa sociedade capitalista. Contraste entre as moradias na favela de Paraisópolis e os prédios de luxo no bairro vizinho do Morumbi em São Paulo. As classes sociais se constituem na distribuição da população em uma régua de pobreza-riqueza. As classes baixas sendo as mais pobres, a classe média, que se costuma dividir em média baixa e média alta, sendo uma classe mediana de pessoas em termos de poder aquisitivo e a classe alta sendo a elite, os que têm maior poder econômico. No caso brasileiro, historicamente, a classe média e a classe baixa têm disputado em termos de tamanho, comportando, hora uma, hora outra, a maior parte da população. É claro que a classe alta, chamada também de classe A, sempre se manteve como o menor grupo, a classe mais seleta de pessoas, posto que um sistema social e econômico que funciona mediante uma lógica exclusivista sempre terá uma elite muito menor do que as outras classes. A desorganização da economia mundial agravada pela pandemia aumentou o número de pessoas pobres, acirrando antigas mazelas sociais como a pobreza extrema, marcada pelo desemprego e pela fome. A fome, um dos maiores fantasmas da precariedade, sempre fez parte da paisagem, em especial em um país com a economia pautada na ideia do latifúndio e da exportação. No Brasil, dois romances clássicos abordam de forma paradigmática a experiência da fome: O quinze, de Rachel de Queiroz, publicado em 1930, que trata da seca de 1915 vivida pela escritora na sua infância; e A bagaceira, de José Américo de Almeida, publicado em 1928, no qual o período compreendido entre duas grandes secas no Nordeste brasileiro (a de 1898 e a de 1915) ambientam e marcam a história e vida dos protagonistas do romance. Os retirantes, Cândido Portinari, 1944. Representa a migração nordestina em busca de melhores condições de vida. Globalmente, o debate sobre a desigualdade social por meio da percepção da chaga da fome se dá a partir dos anos 1940, depois da Segunda Guerra Mundial. Em 1948, foi criada a FAO, Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, assim como se criou o Fundo Internacional de Socorro à Infância, a UNICEF, em 1945. Também na década de 1940, a Organização das Nações Unidas criou um indicador chamado PoU (Prevalence of Undernourishment, em inglês, que pode ser traduzido por “prevalência da subnutrição”). E por meio desse indicador foi construído o Mapa da Fome no mundo, indicando aquelas regiões onde se estimava que a porcentagem da população cujo consumo alimentar era insuficiente para manter uma vida saudável era alta. Classes sociais no Brasil O professor Dennis Novaes apresenta elementos das estruturas das classes sociais no país e como podem ser compreendidas na realidade nacional. Desigualdade social e fome Grandes fortunas versus fome O Brasil, segundo é referendado por pesquisas e órgãos internacionais como a FAO e a OMS, graças aos programas de redistribuição de renda, como era o caso do Bolsa Família, e à dinamização de economias locais, saiu temporariamente do Mapa da Fome. Nos últimos anos, no entanto, a fome no país vem crescendo e o Brasil voltou a figurar no Mapa da Fome, com 9% dos brasileiros enquadrados no perfil desse problema social. É imprescindível ressaltar, contudo, que o problema da fome, como termômetro do acirramento das desigualdades sociais no Brasil e no mundo nos últimos anos, não é episódico. Mesmo antes de a fome ser vista e pensada como um problema social grave pelas pesquisas e instituições no mundo, nos anos 1940, já havia parcelas significativas das populações do globo marcadas em sua existência por essa condição precária de vida. O que se torna especialmente escandaloso se observado ao lado do acúmulo de riquezas por uma ínfima parte da população, a classe A, para quem os grilhões territoriais são inoperantes; para quem as fronteiras regionais e nacionais são, via de regra, atenuadas, “atravessáveis”, pois possuem um alto poder aquisitivo e o capital, como sabemos, não tem pátria. Exemplo Um viajante rico é bem-vindo em quase qualquer parte do mundo, situação diametralmente oposta àquela experimentada por migrantes pobres, clandestinos, que fogem de guerras e de condições degradantes de vida em seus territórios de origem e são perseguidos pelos Estados. A situação de Chico Bento, personagem do romance já citado de Rachel de Queiroz, que vai a pé com sua família de Quixadá, município do Ceará, até a capital Fortaleza, fugindo da seca, também se encontra em condição oposta à de tais viajantes da classe A. No cenário mundial, considerando-se as grandes fortunas de indivíduos e famílias bilionárias e, por outro lado, áreas de extrema pobreza em países subdesenvolvidos, constata-se que uma elite mundial concentra, sozinha, a maior parte das riquezas, ficando com uma riqueza ora similar, ora pouco maior do que a riqueza distribuída entre todas as pessoas situadas nas classes médias e baixas. Segundo o Relatório da Riqueza Global, publicado anualmente pelo banco Credit Suiss, no Brasil, 1% da população mais rica detém 49,6% de toda a riqueza nacional. Já segundo dados de 2018, que compuseram o relatório global da organização não governamental Oxfam (OXFAM, 2018), o patrimônio das 26 pessoas mais ricas do mundo equivale ao da metade mais pobre. O relatório da Oxfam, intitulado Bem Público ou Riqueza Privada?, propõe uma solução que é recorrentemente aventada quando se discute desigualdade social e concentração de renda: a taxação de grandes fortunas. Segundo a ONG, uma taxação de 0,5% das fortunas da fatia da população mais rica do mundo, que representa 1% da população mundial, renderia recursos suficientes aos governos para atender a mais de 200 milhões de crianças que estão fora das escolas, proporcionando-lhes educação, e para salvar vidas de 3 milhões de pessoas mediante investimentos em saúde pública. É digno de nota que o ranking dos mais ricos do mundo é ocupado exclusivamente por homens, em sua maioria brancos e da área de tecnologia. Formas de desigualdade social Para além das classes sociais: outras formas de desigualdade O sistema de castas é um sistema hereditário de estratificação do hinduísmo, que foi, durante muitas décadas, chancelado pelo Estado indiano. É um sistema fortemente pautado em raça que estrutura a sociedade segundo um modelo piramidal em que, no topo, estão os brâmanes, considerados sábios e sacerdotes, investidos de poderes cosmológicos na prática dos rituais religiosos, seguidos dos xátrias, que são pensados como “guerreiros” (aqui estão juristas e militares), passando pelos vaixás (comerciantes, artesãos e agricultores), os sudras, trabalhadores braçais e, por último, os párias, considerados intocáveis porque estariam fora do sistema de castas e abaixo dele, ocupando trabalhos considerados indignos, como coveiros e limpadores de fossas sanitárias. Segundo se acredita, enquanto os brâmanes teriam saído da boca do Deus Brahma, o criador do universo, os xátrias teriam sido formados do seu braço forte, os vaixás das coxas, os sudras dos pés e os párias nãoteriam nascido do Deus Brahma. Numa sociedade como a indiana, profundamente desigual, o sistema de castas pode ser pensado comparativamente em relação ao sistema de classes sociais, por diferentes caminhos: ambos os sistemas promovem a estratificação social e organizam a política e a economia a partir de diferentes gradientes de poder outorgados aos indivíduos. Como resultado desse sistema hierárquico de castas (classes), algumas pessoas e famílias vivem bem, confortavelmente, se alimentam, estudam, têm acesso à serviços e gozam de prestígio, enquanto outras, como vimos, a maior parte da população, vivem em condições difíceis ou até mesmo degradantes. O antropólogo francês Louis Dumont é conhecido por suas proposições a respeito do individualismo nas sociedades modernas, elaboradas a partir de suas pesquisas sobre o sistema de castas na sociedade tradicional indiana. Dumont concluiu, a partir de seus estudos, que o individualismo, que é a base do sistema capitalista e que é indissociável da noção de igualdade, teve dois momentos históricos importantes que marcam sua gênese e desenvolvimento processual nas culturas ocidentais. Cristianismo original O indivíduo era pensado como “indivíduo-fora-do-mundo”, isto é, a igualdade plena se estabeleceria apenas em um plano transcendente, no paraíso, unicamente na presença de Deus. Paradoxalmente, o maior cuidado com os "desiguais" vinha de instituições religiosas. Cristianismo Reformado Com a Reforma, e especialmente com o Calvinismo, a noção de indivíduo passa a ganhar uma dimensão imanente, passa a ser pensada como “indivíduo-no-mundo”. Se por um lado a "prosperidade" marca o pensamento reformado, a igualdade enquanto preceito ético passa a habitar o mundo social, a ser uma prerrogativa ideal da organização das sociedades. O indivíduo passa, então, a ser a célula do Estado. Na cultura ocidental, a noção de individualismo vai se consolidando juntamente à ideia de igualdade. A desigualdade social passa a ser questionada, então, como um problema; a má distribuição de riquezas, como um desafio a ser enfrentado pelos Estados, e não mais como ordem natural outorgada por Deus. Dumont avalia que provém dessa evolução a nossa aversão à hierarquia e a partir dela a igualdade se torna uma busca constante. Para o autor, o problema não estaria na hierarquia em si, o que conclui a partir do seu estudo do sistema de castas. O problema é, sim, o vigor de formas patológicas e dissimuladas de hierarquia, como esta que se estabelece na divisão entre as classes sociais e seus diferentes poderes aquisitivos, em sociedades que perseguem o preceito da igualdade. No fim das contas, a noção de indivíduo e a cultura do individualismo moderno, em vez de proporcionar uma ordem social igualitária, muito pelo contrário, agravou as desigualdades, pois os sujeitos perderam a dimensão holista de pertencimento e integração a um todo social. Para Louis Dumont, a hierarquia constitui uma necessidade universal, que, de uma forma ou de outra, se manifestará nas sociedades humanas. É o que ele chama de Homo hierarchicus. Castas, estratificação e mobilidade social O que amplificou a relevância social das castas teria sido a ação colonial e os discursos hegemônicos do ocidente. Habituados a pensar as sociedades nos seus próprios termos, projetaram numa organização sociocultural religiosa e laboral a sua perspectiva da exclusão, discriminação e racismo oriundas da experiência dos países do tronco cristão e capitalista. Com isso, Dumont representa um dos lados de um debate polarizado entre pesquisadores sobre o tema das castas. Os estudos pós-coloniais sobre o sistema de castas afirmam que não se trata, no final das contas, de valorar as castas e o seu papel na organização da sociedade, não se trata de uma estruturação que perpetua a exclusão ou não. Nas aldeias indianas, o funcionamento das castas é muito mais fluido, e a Índia foi o país pioneiro no mundo na adoção de medidas de ação afirmativa a favor das classes baixas. No final das contas, a discussão aberta por esse debate nos convida a pensar sobre a importância de situar as questões de que nos ocupamos na nossa própria experiência social. Com efeito, no ocidente, a desigualdade social e seus contornos de classe ganharam centralidade do nosso pensamento sobre como as sociedades se organizam e sobre como a distribuição de bens e riquezas pode ser mais justa e igualitária. Outras diferenças sociais acabam, assim, também sendo revestidas do viés da desigualdade na nossa sociedade. E não apenas através do olhar de pesquisadores e estudiosos do ocidente, mas como instituições culturais imbuídas da lógica da exclusão e do individualismo. Desse modo, os problemas de gênero/sexualidade e o racismo, por exemplo, tenderão a seguir o modelo de distribuição de poder segundo o poder aquisitivo, valorando ou desvalorizando as pessoas em função da orientação sexual, da sua identificação de gênero e da sua raça. Exemplo No mercado de trabalho brasileiro, mulheres que ocupam as mesmas funções que homens ainda recebem salários inferiores; menor poder aquisitivo para as mulheres, portanto. Mulheres transgênero e travestis ainda são pouco incorporadas ao mercado de trabalho em função do preconceito, e pessoas negras constituem a grande massa das classes baixas, enquanto a elite é eminentemente branca. Quando se fala em estratificação, considera-se ainda uma terceira pirâmide social como modelo possível de estrutura social, além das classes sociais e das castas: os estamentos. Na Idade Média, a sociedade feudal se dividia em quatro estratos: rei, nobreza, clero e servos. Esse sistema é mais fechado do que o das classes sociais e mais aberto do que o das castas, ou seja, o grau de mobilidade social que ele é permite é intermediário em relação aos dois outros. A partir do que estudamos até agora, podemos concluir que o fato de a mobilidade social ser possível ou mais provável em uma sociedade de classes como a brasileira não significa que os indivíduos, de um modo geral, tenderão a ter mais oportunidades de alcançar uma vida melhor. Pelo contrário, a julgar pelo crescente movimento dos últimos anos de concentração da renda não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, bem como pelo avanço da fatia de classe baixa sobre as classes médias, entendemos que é mais provável, para o cidadão comum, experimentar um movimento de descensão do que de ascensão. E aqui a mobilidade social passa a funcionar antes como risco que como benesse. Mobilidade social Mobilidade social é a capacidade que um indivíduo ou grupo tem, numa sociedade hierárquica, de mudar de posição. Há a mobilidade horizontal, que é aquela em que um indivíduo pode mudar de posição, geralmente por fatores profissionais ou geracionais, mas isso não acarreta mudança significativa no estrato social que o indivíduo ou grupo ocupa. E há também a mobilidade vertical, que implica uma mudança efetiva de estrato. Aí podemos falar em ascensão (subida de camada) ou descensão social (queda em relação ao estrato originalmente ocupado pela pessoa ou grupo). Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Considerando-se a estratificação da sociedade capitalista em classes sociais, assinale a alternativa correta: Parabéns! A alternativa A está correta. As classes sociais são próprias do sistema econômico capitalista, diferentemente das castas, que têm uma fundamentação religiosa, ou dos estamentos, que eram a pirâmide social do feudalismo. Questão 2 Assinale a alternativa que melhor completa a frase a seguir: A mobilidade social traduz-se pela A As classes sociais traduzem a desigualdade social estrutural no sistema capitalista de produção. B O sistema de classes por si mesmo nada tem a ver com as desigualdades sociais, uma vez que a hierarquia faz parte da natureza humana. C O capitalismo produz classes sociais na sociedade para que haja justiça social, pois certas populações precisammesmo estar subalternizadas. D A única possibilidade de justiça social é taxação das classes C e D. E Na pandemia, a classe média encolheu em prol do alargamento da fatia mais rica da população. A possibilidade de um indivíduo ou grupo herdar privilégios sociais. B Parabéns! A alternativa D está correta. A mobilidade social diz respeito ao movimento que indivíduos, famílias ou grupos fazem dentro da estrutura social, podendo melhorar suas condições de vida ou decair. possibilidade de um indivíduo ou grupo mudar de posição na sociedade em sentido ascendente. C alta probabilidade de um indivíduo ou grupo mudar de posição numa sociedade estamental ou na sociedade capitalista. D possibilidade de um indivíduo ou grupo mudar de posição na sociedade, podendo assumir uma trajetória de ascensão ou descensão. E alta probabilidade de um indivíduo ou grupo mudar de posição numa sociedade de castas em função da precarização de sua vida. 4 - Desigualdade social e vulnerabilidade social Ao final deste módulo, você será capaz de reconhecer a desigualdade social como produtora da vulnerabilidade social humana. Estado de vulnerabilidade A desigualdade termina por gerar condições de vulnerabilidade social. Vulneráveis são os indivíduos, grupos ou famílias que se encontram expostos aos riscos de uma vida degradante. Falta ou dificuldade de acesso a serviços de educação e saúde, precariedade de recursos, que não chegam a dar conta de suprir os gastos com moradia, deslocamentos, consumo de gêneros de primeira necessidade, como alimentos, remédio, itens de higiene etc., além da localização geográfica em lugares nos quais o Estado não provê infraestrutura adequada para ocupação humana digna, são elementos de circunscrevem os indivíduos ou grupos em situações de vulnerabilidade. A configuração da estrutura socioeconômica — seja ela a casta, as classes sociais, os antigos estamentos ou estruturas mais laterais e igualitárias como aquelas que organizam sociedades mais simples como povos originários amazônicos, por exemplo — impacta diretamente as formas de vida das populações. A vulnerabilidade constitui, portanto, um processo de exclusão em que os indivíduos atingidos passam a enfrentar carências de diversas ordens, não dependendo apenas do fator renda. Exemplo Um indivíduo ou núcleo familiar que enfrenta dificuldades econômicas temporárias, mas que conta com redes de apoio e colaboração da família extensiva não necessariamente se enquadra na categoria de vulnerável. Neste ponto, é importante notar como outros capitais influenciam a qualidade de vida das pessoas para além do chamado capital econômico. O conceito de capital pode ser usado para se referir a vários tipos de acúmulo que posicionam pessoas em diversos níveis sociais: Capital econômico Tem a ver com a renda propriamente dita. Capital cultural Tem a ver com saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos. Capital social Tem a ver com as relações sociais que a pessoa tem e que podem ser revertidas em renda ou em condições mais favoráveis de vida. Capital simbólico Tem a ver com o poder outorgado por algum tipo de pertencimento ou característica que valoriza o indivíduo, como ser evangélico em certos ambientes como nas favelas e periferias cariocas ou nos presídios, onde esse tipo de pertencimento parece denotar honestidade, retidão, dignidade aos olhos dos outros. Pesquisas em penitenciárias relatam que os presos que frequentam cultos pentecostais organizados no interior das instituições pelos próprios internos tendem a ter benefícios e redução de pena por bom comportamento. Capital de rede S lh t it l i l f à l õ i i d i di íd di õ é O indivíduo vulnerável, ao contrário, é aquele que se encontra destituído de relações que possam projetá-lo ou melhorar sua inserção na sociedade, muito menos colecionar contatos variados com figuras de contextos diversos simultaneamente. Além disso, sem dinheiro e sem atributos que o valorizem, é como se essa precariedade o mantivesse em uma espécie de buraco em que o processo de marginalização se realiza pelo movimento de exclusão que experimenta. Assim, quando um indivíduo ou grupo, em função de determinado arranjo sociocultural, é lançado nesse movimento centrífugo em relação ao funcionamento da sociedade, sendo atirado para fora dos serviços comuns e mesmo do atendimento do Estado, podemos dizer que a saída frequentemente está na sua transformação em um sujeito político. Nesse sentido, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), aprovada em 2004, apresenta as diretrizes para a efetivação da assistência social, como o direito à cidadania e a responsabilidade do Estado. É na Constituição de 1988, art. 204, que se encontra o fundamento jurídico da PNAS: descentralização político- administrativa, participação da população e controle social. Entende-se, então, que a assistência social deve concorrer para o bom funcionamento da sociedade por meio da agência dos próprios cidadãos, dirimindo os movimentos de exclusão e dialogando tanto com os indivíduos quanto com o Estado, tanto com a força disruptiva da resistência quanto com a ordem. Representação de grupos Representatividade A representatividade pode ser pensada como a visibilidade de um grupo quando suas questões passam a ser formuladas dentro de uma gramática de apelo pelo reconhecimento de seus direitos. Isto é, quando certos dramas sociais de exclusão, precariedade, violência, perseguição, injustiça etc. são representados por intermédio de uma instituição, pessoa ou grupo de pessoas e ganham expressão e projeção social, é Semelhante ao capital social, refere-se às relações sociais de que o indivíduo dispõe, porém, mais especificamente, à capacidade que esse indivíduo tem de se conectar com diferentes pessoas de diferentes meios ou nichos, tornando-o potencialmente capaz de mediar encontros, digamos, improváveis, entre figuras pertencentes a meios sociais diversos e relativamente inacessíveis umas às outras. Noutras palavras, o capital de rede pode ser pensado como um poder de encurtar distâncias sociais. possível criar mecanismos para reverter ou frear a situação de vulnerabilidade. Juntamente com a representatividade, fala-se muito em protagonismo para se referir à ideia de que os indivíduos interessados nas mudanças sociais devem ser as molas propulsoras do seu próprio processo de integração, à medida que contestam o estado de coisas atual para melhor acomodar suas próprias existências. Manifestações de rua no ano de 2020 inspiradas pelo movimento afro-americano Black lives matter (vidas negras importam). Exemplos da importância da representatividade podem ser encontrados na visibilidade e na projeção das denúncias relacionadas ao racismo no Brasil. O fato de a população negra ser mais vulnerável à violência do Estado e à discriminação, graças às lutas do movimento negro ao longo de muitos e muitos anos, pode gerar uma importante repercussão social. Esse processo produziu efeitos como a criação de ações afirmativas, política de cotas e a valorização ética e estética de atributos raciais relacionados às culturas negras. Não é que o racismo e a exclusão da população negra tenham deixado de ocorrer em diversos espaços e na cultura brasileira de um modo geral, mas o movimento antirracista tem se fortalecido e crescido cada vez mais nos últimos anos, provocando um movimento centrípeto, de inclusão de pessoas negras, que procura fazer frente ao racismo estrutural e à violência sistemática contra os negros. Trata-se de uma verdadeira guerra simbólica. Uma disputa dos sentidos culturais atribuídos à negritude. Mas quando se fala em representatividade e na importância de um certo grupo populacional ser representado politicamente e se fazer ouvir pelo Estado e pelo restante da população, chamando atenção para a importância de suas questões, surge pautas interessantes: quem pode ser chamado a representar esses grupos e de que maneiras eles serão representados.Essa discussão está intrinsecamente ligada ao conceito de lugar de fala, que veremos adiante. Representatividade no cenário nacional O professor Dennis Novaes apresenta elementos que demonstram os impactos da representatividade na realidade brasileira, quando exercida efetivamente. Lugar de fala Com efeito, o que chamamos de “o dilema da representatividade” pode ser ilustrado por um caso interessante, muito divulgado na mídia e nas redes sociais no ano de 2018. O caso da blogueira Emma Hallberg, uma modelo sueca acusada de “fingir ser negra” para ganhar seguidores, aproveitando-se do movimento crescente de representatividade da estética negra no mundo. Duas fotos da mesma modelo. A da esquerda foi registrada em processo de produção e a da direita, já produzida e maquiada. Ainda que se possa argumentar que para os padrões suecos a modelo talvez seja negra, ou “não branca”, o caso de Emma Hallberg levantou a importante questão de quem pode representar uma determinada causa para ampliar as vozes de combate às vulnerabilidades, ou de como essa representação é feita. De fato, se o caso dissesse respeito a uma mulher que se identifica como branca e finge ser negra para ganhar seguidores em redes sociais e visibilidade para sua figura e carreira, a questão da representatividade passaria a ficar subordinada aos interesses do mercado, esvaziando-se o seu conteúdo político. Lugar de fala é um conceito que vem do feminismo dos 1960, do conceito de standpoint, que pode ser traduzido por “ponto de vista”. Recentemente, a filósofa Djamila Ribeiro organizou uma coleção de livros estruturados por temas e escritos por autores negros. Chama-se Feminismos plurais, dos quais o mais conhecido ficou sendo o seu O que é lugar de fala?, no qual a autora explicita a gênese do conceito e a sua importância política: Essas experiências comuns resultantes do lugar social que ocupam impedem que a população negra acesse certos espaços. É aqui que entendemos que é possível falar de lugar de fala a partir do feminist standpoint: não poder acessar certos espaços acarreta não se ter produções e epistemologias desses grupos nesses espaços; não poder estar de forma justa nas universidades, meios de comunicação, política institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos indivíduos desses grupos, sejam catalogadas, ouvidas, inclusive, até de quem tem mais acesso à internet. O falar não se restringe ao fato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e hierarquização de saberes consequente da hierarquia social. Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência. (RIBEIRO, 2017, p. 64) O lugar de fala, como voz que emana a partir de determinado ponto de vista, propõe relacionar experiência e enunciação, uma vez que se entenda que falar significa poder, inseridas em um sistema de poder-saber. O saber, assim entendido, pode ser pensado como capital cultural. É, portanto, uma aposta sobretudo política defender que o poder de falar sobre dada experiência relacionada às injustiças sociais e à violação de direitos seja dado antes àquele que se encontra situado neste lugar usurpado na estrutura social. O lugar de fala não é um lugar individual. É um lugar social, coletivo. Racismo ambiental Desigualdade social regional e o racismo ambiental Outra expressão do racismo pode ser compreendida por meio do conceito de racismo ambiental. Racismo ambiental é o termo usado para se referir à injustiça ambiental que se processa obedecendo à geografia social da distribuição de populações não brancas no território. Exemplo Os lugares escolhidos para funcionarem como aterros sanitários nunca estão localizados em bairros onde vivem as elites brancas. Áreas alagadas para a construção de hidroelétricas afetam a vida de povos originários, populações indígenas e ribeirinhas, não brancos. Durante muito tempo se pensou que os problemas ambientais fossem distribuídos de forma equânime, digamos, como se toda a população do globo fosse igualmente afetada por eles. Atualmente se sabe que os danos ambientais afetam primeiro e de forma mais direta as populações menos favorecidas pela estrutura social. O conceito de racismo ambiental denuncia as desigualdades sociais regionais, identificando que a vulnerabilidade está distribuída obedecendo a uma certa geografia humana dos territórios. A precarização de territórios de favela é um exemplo disso. Outras áreas que enfrentam uma política de abandono planejado pelo Estado (CASTEL, 1998), ou seja, áreas cuja gestão por parte do Estado é feita mediante sua própria ingerência, concentram grupos vulnerabilizados. Pode-se falar em um processo de guetoização, ou seja, de isolamento dessas populações encerradas em espaços abertos, mas cuja circulação para fora daquelas fronteiras simbólicas é dificultada por fatores como preconceito de classe, racismos, violência policial, falta de serviços de transporte, entre outros fatores estruturais. Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Lugar de fala é um conceito muito utilizado pelos movimentos sociais atualmente para A reforçar a autoridade dos grupos privilegiados sobre as minorias de direitos. B defender a legitimidade das narrativas dos protagonistas de experiências de violência e exclusão. C salientar a força de certas trajetórias e perspectivas individuais. Parabéns! A alternativa B está correta. O lugar de fala tematiza a importância da voz daquele que vive a experiência a fim de confrontar o jogo de poder estabelecido e a “histórica única” contada por quem costuma ter mais voz na sociedade. Questão 2 Que relação se pode corretamente estabelecer entre a noção de representatividade e a de vulnerabilidade? D ocultar as desigualdades sociais por meio do silenciamento dos grupos privilegiados. E afirmar a estrutura de classes, assim como o racismo estrutural, como um “mal necessário”. A A representatividade política é um modo de trazer visibilidade para certos problemas que atingem grupos vulneráveis. B A vulnerabilidade é agravada pela representatividade desde que haja desigualdade social. C A desigualdade social produz vulnerabilidade apenas para gerar um efeito mediático de representatividade dos oprimidos. D A representatividade é problema da sociedade industrial contemporânea, apenas aplacado pela vulnerabilidade de certas populações. E A vulnerabilidade possui uma relação meramente formal com a representatividade. Parabéns! A alternativa A está correta. A representatividade é uma das formas de se tentar solucionar situações de vulnerabilidade a partir da voz dos próprios atores de processos de exclusão social. Considerações finais É importante salientar que, na exploração do tema da realidade social, o assistente social precisa estar atento às formas que a questão social pode assumir. Em uma sociedade capitalista como a nossa, a divisão do trabalho resulta em exploração do trabalhador com vistas ao acúmulo da capital. As desigualdades sociais oriundas da lógica da formação de lucro parecem, contudo, se transferir para outras relações, gerando outras expressões de exclusão, diferenciação e discriminação, como as relações de gênero e raça, por exemplo. Estar atento à questão social em suas mais diversas expressões, contudo, é mais do que perceber que a desigualdade se processa em muitos níveis, é também saber que os indivíduos e a sociedade civil possuem suas próprias formas de elaboração das dificuldades que experimentam. A atuação dos movimentos sociais, a representatividade, todos os processos criativos oriundos dos protagonistas das dinâmicas de exclusão precisam ser valorizados pelo profissional cuja prática consiste em assistir essas populações na observância de seus direitos e na sua inclusão social. Podcast Agora, o professor Dennis Novaes encerraabordando os principais pontos estudados. Referências BBC. Bolsonaro no Chile: como a Escola de Chicago transformou país latino-americano em laboratório do neoliberalismo. 23 de março de 2019. Consultado na internet em: 26 jan. 2022. CASTEL, R. O individualismo negativo. In: ______. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. ESCOREL, S. 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Nelas, poderá aprofundar os dados apresentados em nosso conteúdo: Saiba qual é a verdadeira face do desemprego do Brasil, de Paula Cristina, na Revista Istoé, de 28 de maio de 2021. Desemprego fica em 19% em 2002, a maior taxa desde 1999, na Revista Exame, de 9 de outubro de 2008. Nela, poderá aprofundar os dados apresentados em nosso segundo módulo. Depressão e desânimo atingem 59% dos desempregados, em G1, 18 de março de 2017. 705 mil homens brancos têm renda maior que a de todas as 33 milhões de mulheres negras do Brasil, de Douglas Gavras, em Folha de São Paulo, 10 de dezembro de 2021. Em temáticas tão envolventes, e em nada unânimes, com a questão da vulnerabilidade, sempre vale a pena trazermos textos de contraponto, em nome de um maior aprofundamento teórico: O artigo O estado proibir o porte de armas é, acima de tudo, um problema de ordem moral, de Tim Hsiao (Universidade de Grantham /Inglaterra) traz uma interessante reflexão sobre a situação de vulnerabilidade que o próprio Estado pode impor aos cidadãos. A reportagem Instituto de advogados vê aborto como assassinato e envia carta ao Supremo, de Rogério Gentile (Folha de São Paulo, 22 ago. 2018) mostra como um tema tão importante e recorrente — a vulnerabilidade das mulheres que realizam aborto — pode negligenciar a amplitude do conceito.
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