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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DIREITO JOÃO LUIS MACEDO SILVA CARDOSO OS ASPECTOS JURÍDICOS DA POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA NO CONTEXTO DA DIÁSPORA VENEZUELANA NATAL - RN 2021 JOÃO LUIS MACEDO SILVA CARDOSO OS ASPECTOS JURÍDICOS DA POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA NO CONTEXTO DA DIÁSPORA VENEZUELANA Monografia apresentada ao curso de Direito sob a orientação do Professor Dr. Thiago Oliveira Moreira como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientador: Prof. Dr. Thiago Oliveira Moreira. NATAL – RN 2021 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA Cardoso, João Luis Macedo Silva. Os aspectos jurídicos da política migratória brasileira no contexto da diáspora venezuelana / João Luis Macedo Silva Cardoso. - 2021. 139f.: il. Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de Direito. Natal, RN, 2021. Orientador: Prof. Dr. Thiago Oliveira Moreira. 1. Diáspora venezuelana - Monografia. 2. Política migratória brasileira - Monografia. 3. Efetivação dos direitos humanos dos migrantes - Monografia. I. Moreira, Thiago Oliveira. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 342.7:325.11 Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355 AGRADECIMENTOS Este trabalho representa o fim de um importante ciclo. Ao longo dessa trajetória, tive o privilégio de estar acompanhado de pessoas incríveis, que, de maneira direta ou indireta, contribuíram para a elaboração deste modesto texto. Primeiramente, eu gostaria de agradecer à minha amada mãe e às demais pessoas da minha família, que me apoiaram em todos os momentos — sobretudo nos mais difíceis — e me incentivaram a lutar pelos ideais em que acredito. Da mesma forma, eu gostaria de registrar a minha sincera gratidão aos meus amigos e amigas, que, a despeito do distanciamento físico, alegram os meus dias e sempre me estimulam a ser um ser humano melhor. Também agradeço ao Prof. Dr. Thiago Oliveira Moreira, meu orientador. Muito prestativo e responsável, o referido docente teve uma participação ativa no processo de construção desta pesquisa e me ajudou a amadurecer do ponto de vista acadêmico. Sem o auxílio desse grande estudioso do Direito Internacional, eu jamais teria conseguido desenvolver as reflexões suscitadas nesta monografia. Ademais, sou muito grato ao Prof. Dr. Luís Renato Vedovato e à Profª. Drª. Yara Maria Pereira Gurgel, que influenciaram este trabalho por meio das suas publicações científicas e gentilmente concordaram em fazer parte da banca encarregada de avaliá-lo. RESUMO Atualmente, a República Bolivariana da Venezuela está imersa em uma grave crise política, econômica e social. Embora as origens dessa crise remontem ao final do regime do ex- presidente Hugo Chávez, ela ganhou uma nova dimensão em 2015, ano em que as tensões entre o governo e a oposição se agravaram devido à vitória desta nas eleições parlamentares. Desde então, muitos venezuelanos têm migrado para outros Estados com o objetivo de garantir a própria subsistência. Como o Brasil é um dos principais países afetados por esse fluxo, faz-se necessário responder à seguinte questão-problema: o Estado brasileiro tem tutelado os direitos humanos desses migrantes de modo satisfatório? Parte-se da hipótese de que, apesar de as autoridades brasileiras terem adotado algumas medidas para resguardar os interesses dessas pessoas, os direitos destas não têm sido protegidos a contento, devido a um déficit quanto à aplicação do Direito Internacional. Assim, este trabalho visa a examinar a forma como o Brasil tem gerenciado esse fenômeno, de sorte a confirmar ou falsear a hipótese apresentada. Para tanto, é fundamental alcançar alguns objetivos específicos, quais sejam: explicar a origem e a atual dimensão da diáspora venezuelana; examinar o arcabouço normativo internacional e estatal que rege a situação desses migrantes; investigar os principais elementos da política migratória brasileira implementada para acolher esses indivíduos; e, por fim, perscrutar a forma como os tribunais brasileiros têm tratado os casos que envolvem a efetivação dos direitos dessas pessoas. Por meio desta pesquisa, foi possível constatar a existência de diversas violações de direitos perpetradas por órgãos e agentes públicos, especialmente os que integram o Poder Executivo. Espera-se que as reflexões promovidas neste texto fomentem o debate acadêmico a respeito desse assunto e contribuam, direta ou indiretamente, para que os integrantes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário possam aprimorar a sua atuação. Palavras-chave: Diáspora venezuelana. Política migratória brasileira. Efetivação dos direitos humanos dos migrantes. ABSTRACT Currently, the Bolivarian Republic of Venezuela is immersed in a serious political, economic, and social crisis. Although the roots of this crisis date back to end of the regime of former President Hugo Chávez, it gained a new dimension in 2015, when tensions between the government and the opposition intensified due to the victory of the latter in parliamentary elections. Since then, several Venezuelans have migrated to other countries in order to guarantee their own survival. As Brazil is one of the countries that have been greatly affected by this influx, this dissertation sets out to answer the following question: has the Brazilian state protected the human rights of those migrants in an effective way? The a priori hypothesis from which we depart is that, in spite of having implemented a few measures on behalf of those people, Brazilian authorities still have not been able to fully protect their rights. Hence, this dissertation shall examine the way such state has operated in this context, with the aim of ascertaining the accuracy of the aforementioned hypothesis. In order to do so, it is necessary to accomplish the following goals: explaining the origins and the present dimension of the Venezuelan diaspora; analyzing the national and international legal instruments that can be applied to this situation; investigating the main aspects of the Brazilian migration policy targeted at those migrants; and scrutinizing the way Brazilian courts have operated in the cases involving the concretization of the rights of those individuals. Through this research, it was possible to identify several cases in which the human rights of those migrants were violated by state agents, notably the ones related to the Executive Branch. It is hoped that the discussion promoted in this text will contribute to the academic debate regarding this topic and that it will help the members of the Executive, the Legislative and the Judicial Branches improve their own performance. Keywords: Venezuelan diaspora. Brazilian migration policy. The concretization of migrants’ human rights. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados ACO Ação Cível Originária ACP Ação Civil Pública AD Aliança Democrática CNDH Conselho Nacional de Direitos Humanos CNIG Conselho Nacional de Imigração COPEI Comitê de OrganizaçãoPolítica Eleitoral Independente DADDH Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem DPU Defensoria Pública da União DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos FUNAI Fundação Nacional do Índio ICMS Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação IPEA Instituto de Pesquisa Econômica MERCOSUL Mercado Comum do Sul MP Medida Provisória MS Mandado de Segurança MPF Ministério Público Federal MVR Movimento V República OIM Organização Internacional para as Migrações OIR Organização Internacional para os Refugiados OMS Organização Mundial da Saúde ONU Organização das Nações Unidas PIDCP Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos PIDESC Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9 2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIÁSPORA VENEZUELANA ................... 12 2.1 AS ORIGENS DA CRISE MIGRATÓRIA VENEZUELANA E A SUA ATUAL DIMENSÃO ............................................................................................................................. 12 2.2 OS EFEITOS DA DIÁSPORA VENEZUELANA NO BRASIL ...................................... 20 3 A DIÁSPORA VENEZUELANA SOB A ÓTICA DO DIREITO INTERNACIONAL .................................................................................................................................................. 26 3.1 A PROTEÇÃO DOS MIGRANTES VENEZUELANOS À LUZ DAS DECLARAÇÕES E TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS DO SISTEMA ONUSIANO ............................ 26 3.2 A TUTELA DOS MIGRANTES VENEZUELANOS NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS ............................................................... 33 3.3 A (IM)POSSIBILIDADE DE CLASSIFICAR OS MIGRANTES VENEZUELANOS COMO REFUGIADOS ............................................................................................................ 38 4 A TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS DOS IMIGRANTES VENEZUELANOS À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ................................................... 53 4.1 A PROTEÇÃO DOS MIGRANTES VENEZUELANOS CONFORME A SISTEMÁTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ................................................ 53 4.2 A IMPORTÂNCIA DAS LEIS Nº 9.474/1997 E Nº 13.445/2017 PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DOS MIGRANTES VENEZUELANOS ................................ 61 4.3 OS ATOS INFRALEGAIS QUE CONFERIRAM UMA PROTEÇÃO SUBSIDIÁRIA AOS MIGRANTES VENEZUELANOS ................................................................................. 73 4.4 A TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS DOS MIGRANTES VENEZUELANOS NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19 ...................................................................... 77 5 A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DOS MIGRANTES VENEZUELANOS PELO JUDICIÁRIO BRASILEIRO .................................................. 90 5.1 A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO TOCANTE À PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DOS MIGRANTES VENEZUELANOS ................................ 90 5. 2 O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DOS MIGRANTES VENEZUELANOS ............................................................ 96 5. 3 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DOS MIGRANTES VENEZUELANOS NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL ........................................................................................................ 99 5. 4 A JUSTIÇA ESTADUAL E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DOS MIGRANTES VENEZUELANOS ........................................................................................ 111 6 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 115 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 121 9 1 INTRODUÇÃO O desejo de deixar o seu lugar de origem e se dirigir a outro com condições mais favoráveis para o seu desenvolvimento, indubitavelmente, é intrínseco ao ser humano. Por essa razão, as migrações existem desde priscas eras, de modo que a sua história, em certa medida, confunde-se com a história da própria humanidade. É imperioso destacar que, na atualidade, o fluxo de cidadãos da República Bolivariana da Venezuela para outros países tem preocupado diversos membros da sociedade internacional, devido à sua dimensão e às suas consequências nos demais Estados da América Latina, a exemplo do Brasil. Partindo da premissa de que ele, em razão dos compromissos que firmou internacionalmente, tem a obrigação de proteger esses migrantes, eis que surge a seguinte problemática: o Estado brasileiro vem garantindo o efetivo gozo dos direitos humanos — civis, políticos e sociais — por parte dos migrantes venezuelanos? Adota-se a hipótese de que, embora esse Estado receptor não se tenha mantido inerte diante desse fenômeno, os direitos dessas pessoas não vêm sendo protegidos na sua integralidade, tendo em vista o aparente descompasso entre a política migratória do Brasil e o Direito Internacional. O objetivo geral desta monografia, portanto, é analisar a forma como o Estado brasileiro tem tutelado os direitos desse grupo de migrantes. Para tanto, será necessário alcançar os seguintes objetivos específicos: descrever as origens e a atual magnitude da diáspora venezuelana; discorrer sobre o arcabouço normativo internacional e estatal que se aplica a essa crise; investigar os principais elementos da política migratória brasileira para o acolhimento dos venezuelanos; e perscrutar a forma como os tribunais brasileiros têm tratado os casos que envolvem a efetivação dos direitos humanos desses migrantes. Além da introdução e da conclusão, a presente monografia contém quatro seções. Na primeira delas, serão feitas algumas considerações acerca dos fatores que desencadearam essa diáspora, que se iniciou no final do regime do ex-presidente Hugo Chávez e se agravou em 2015, ano em que o Partido Socialista Unido da Venezuela foi derrotado nas eleições parlamentares. Outrossim, será examinado o impacto desse fenômeno no Brasil. A segunda seção do desenvolvimento deste trabalho, por sua vez, vai expor as principais questões jurídicas concernentes à situação de tais migrantes. Serão analisados os tratados e declarações que regem essa matéria nos Sistemas Onusiano e Interamericano. Para complementar essa discussão, a seção subsequente versará sobre os direitos dessas pessoas à 10 luz da Constituição Federal de 1988, da Lei nº 9.474/97, da Lei nº 13.445/2017, das resoluções do Conselho Nacional de Imigração e dos atos infralegais expedidos pelos Ministérios que integram a Administração Pública Direta no âmbito federal. A última seção vai promover uma reflexão sobre a maneira como o Poder Judiciário brasileiro vem comportando-se nos casos em que se discute a concretização dos direitos humanos dos migrantes venezuelanos. Em virtude do recorte adotado, optou-se por limitar essa análise à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, da Justiça Federal e da Justiça Estadual. Logo, não foram contempladas as decisões oriundas das Justiças do Trabalho, Militar e Eleitoral. No total, foram escolhidos doze casos, que estão disponíveis na página virtual de entidades como a ONG Conectas ou no endereço eletrônico dos respectivos tribunais. Assim, procedeu-se a uma busca nos sites retromencionados, a partir da numeração dos processos mais emblemáticos noticiados pela imprensa nacional. Adite-se que todas as lides que serão abordadasneste trabalho tiveram início entre os anos de 2017 e 2021, período no qual a imigração de venezuelanos para o Brasil atingiu o seu ápice. Esta pesquisa é qualitativa e tem um nítido matiz descritivo, já que visa a descrever a diáspora venezuelana e a maneira como ela tem sido gerenciada pelo Estado brasileiro1, com base em dados obtidos de fontes oficiais, como a Plataforma de Coordenação para Migrantes e Refugiados Venezuelanos. No entanto, ela também apresenta um caráter exploratório, porquanto busca aprimorar as ideias que a comunidade científica tem acerca desse tema, de modo a viabilizar a formulação de novas hipóteses2. A técnica de procedimento que preponderou no processo de elaboração deste texto foi a bibliográfica3. Dessarte, cotejou-se uma série de artigos e livros que versam sobre esse assunto sob a perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos, da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, do Direito Migratório, da Demografia e da Filosofia Política. Além disso, a análise de conteúdo foi utilizada como técnica de procedimento subsidiária4. 1 GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002. p.42. 2 GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002. p.43. 3 Segundo Antonio Carlos Gil, “A pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos”. GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002. p.44. 4 De acordo com Laurence Bardin, essa técnica envolve o emprego de mecanismos de análise das comunicações, que buscam obter, por meio de uma descrição sistemática e objetiva do conteúdo das mensagens, indicadores [...] que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção [...]” dos elementos comunicativos examinados. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1977. p.42. 11 A elaboração deste trabalho justifica-se pelo fato de esse tema ser extremamente atual e envolver a proteção de milhares de pessoas que estão em uma situação de vulnerabilidade. Por meio desta investigação científica, constatou-se não apenas um déficit quanto à aplicação do Direito Internacional, como também uma sistemática violação de normas constitucionais e legais por parte do Estado brasileiro. Espera-se, pois, que esta pesquisa fomente o debate acadêmico a respeito desse assunto e que ela contribua para que os integrantes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário tenham uma melhor compreensão sobre a necessidade de respeitar a ordem jurídica e resguardar os direitos humanos dos migrantes venezuelanos. 12 2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIÁSPORA VENEZUELANA Por muito tempo, a Venezuela foi conhecida por acolher uma grande quantidade de nacionais de outros Estados. De acordo com Claudio Ribas Vargas, dentre os fluxos migratórios que marcaram a história venezuelana, destaca-se o de cidadãos europeus nas décadas de 1950 e 19605. Abalados pelas nefastas consequências da Segunda Guerra Mundial, muitos desses indivíduos foram atraídos pela aparente estabilidade do país caribenho. Nesse passo, cumpre frisar que eles desempenharam um importante papel no que tange à modernização da Venezuela, que se iniciou no período em comento6. A partir da década de 1970, esse país passou a receber um grande contingente de pessoas provenientes de outros Estados latino-americanos, como a Colômbia. Os principais fatores que desencadearam essa segunda onda migratória foram os elevados índices de violência e a desestruturação econômica desses Estados7. Entretanto, nos últimos anos, a Venezuela transformou-se em um país emissor de migrantes, em razão da grave crise social, política e econômica que a assola8. De fato, muitos dos seus cidadãos e dos migrantes que nela residiam deslocaram-se para outros territórios para escapar dessa instabilidade e garantir a própria sobrevivência. Posto isso, é mister examinar as causas dessa crise migratória e identificar a atual magnitude desse fenômeno. 2.1 AS ORIGENS DA CRISE MIGRATÓRIA VENEZUELANA E A SUA ATUAL DIMENSÃO Depois de conquistar a sua independência política9, a Venezuela foi governada por diversos indivíduos pertencentes às forças armadas. Conquanto os chefes de governo que 5 RIBAS VARGAS, Claudio. La migración en Venezuela como la dimensión de la crisis. Pensamiento proprio, año 23, p.92, enero/junio 2018. 6 RIBAS VARGAS, Claudio. La migración en Venezuela como la dimensión de la crisis. Pensamiento proprio, año 23, p.92, enero/junio 2018. 7 MEJÍA, William; QUINTERO, Vanessa. Éxodo venezolano a Colombia. In: BAENINGUER, Rosana; SILVA, João Carlos Jarochinski. Migrações venezuelanas. 1.ed. Campinas: Núcleo de Estudos de População Elza “Berquó” — Nepo, Unicamp, 2018. p.147. 8 SERBIN PONT, Andrei. La crisis humanitaria en Venezuela y su impacto regional: migración, seguridad y multilateralismo. Pensamiento proprio, año 23, p.132, enero/junio 2018. 9 Apesar de o Congresso da Venezuela ter elaborado uma declaração de independência em 1811, o historiador Germán Carrera Damas observa que ela permaneceu juridicamente subordinada à sua antiga metrópole até o ano de 1845, quando a soberania da antiga colônia espanhola foi reconhecida pela rainha Isabel II. Esta última, portanto, é a data da independência política venezuelana. CARRERA DAMAS, Germán. Sobre la responsabilidad social del historiador venezolano contemporáneo. Akademos, [s. l.], v.15, n.1-2, p.22, 2013. 13 comandaram esse país até a primeira metade do século XX não tenham implementado políticas públicas totalmente idênticas, é possível dizer que, sob uma perspectiva econômica, esse período foi marcado pela intensa exploração petrolífera, que expandiu a capacidade fiscal do Estado e contribuiu para o surgimento de oligarquias vinculadas a essa atividade produtiva10. Considerada uma herança do “caudilhismo”11, a concentração do poder político nas mãos de alguns grupos também foi uma das características da Venezuela do início do século XX12. É por essa razão que Allan Randolph Brewer Carías argumenta que, nesse contexto, o país ainda não tinha uma democracia robusta13. Na década de 1950, a diminuição dos preços do petróleo no mercado internacional desencadeou uma crise na Venezuela, visto que a sua economia já era extremamente dependente dessa commodity. Como observa Raphael Lana Seabra, a redução do volume de capital gerado pelo setor petroleiro afetou diretamente outros setores, como o de construção14. Diante da elevação das taxas de desemprego e do comprometimento das finanças públicas, a população insurgiu-se contra a ditadura de Pérez Jiménez, cuja derrocada foi formalizada por meio da celebração do Pacto de Punto Fijo15. Na prática, a criação desse acordo inaugurou um período em que a Aliança Democrática (AD) e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (COPEI) – partidos com 10 A esse respeito, Raphael Lana Seabra frisa que “Tal mecanismo de acumulação pautado na renda petroleira deu lugar à formação de uma oligarquia, ou seja, de frações da classe capitalista vinculadas direta ou indiretamente ao setor primário exportador” (destaque do autor). SEABRA, Raphael Lana. A via venezuelana ao socialismo. 1.ed. Curitiba: Editora CRV, 2014. p.39-41. 11 A figura do caudilho “[...] es un subproducto de la Guerra de Independencia, al mismo tiempo éstos hijos serán multiplicadores de rebeliones, revoluciones, revueltas, sublevaciones y otras acciones bélicas, con la finalidad de luchar para mantener o aumentar su cuota de poder político, ya sea, de carácter local, regional o nacional. En ésta simbiótica relación, es decir, guerra-caudillo se debatióel país sin descanso por más de cien años con relativos lapsos de paz”. MENDONZA, Alexandra. Recurrencia del sistema caudillista en la historia republicana de Venezuela: una aproximación positivista del fenómeno. Tiempo y espacio, Caracas, v.24, n.61, jun. 2014. Disponível em: http://ve.scielo.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1315-94962014000100015. Acesso em: 13 fev. 2021. 12 ALBERTO OLIVAR, José. Prolegómenos de una dictadura militar y su filosofía del poder (1948-1958). Latinoamérica, México, n.52, ene./jun.2011. Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1665-85742011000100007. Acesso em: 13 fev. 2021. 13 BREWER CARÍAS, Allan R. The collapse of the rule of law and the struggle for democracy in Venezuela: lectures and essays (2015-2020). 1.ed. Miami: Ediciones EJV International, 2020. p.88-89. 14 SEABRA, Raphael Lana. A via venezuelana ao socialismo. 1.ed. Curitiba: Editora CRV, 2014. p.54. 15 SEABRA, Raphael Lana. A via venezuelana ao socialismo. 1.ed. Curitiba: Editora CRV, 2014. p.54. 14 ideologias diferentes – revezaram-se no poder, com o fito de promover a estabilidade social e fortalecer a democracia venezuelana16-17. Entretanto, um novo processo de deterioração econômica teve início na década de 1970 e se agravou na década subsequente. Isso resultou na redução das expectativas dos venezuelanos com relação ao Pacto de Punto Fijo, apesar de as instituições do país já estarem fortalecidas e de as liberdades individuais serem preservadas. Nesse cenário, a oposição ao governo cresceu, porque uma parcela significativa da população estava descontente com a agenda neoliberal que foi adotada com o objetivo de reequilibrar as contas públicas18-19. Depois de ter participado de uma insurreição popular no ano de 199220, Hugo Rafael Chávez Frías — integrante das Forças Armadas — ganhou notoriedade na sociedade venezuelana. Em que pese ao aparente fracasso dessa rebelião, Margarita López Maya nota que ela representou o início de “[...] um incontível processo de desmoronamento da sustentação 16 “Arquitetado em New York e firmado na cidade de Punto Fijo, no ano de 1958, tal acordo culminou com o predomínio de dois partidos, Acción Democrática (AD) e Comité de Política Electoral Independiente (Copei) na cena política por um período de aproximadamente 40 anos”. SILVA, Marcos Antonio da; ARCE, Anatólio Medeiros. O petróleo e a democracia na política externa da Venezuela: a difícil conciliação entre ruptura e continuísmo na era Chávez. Videre, Dourados, ano 3, n. 5, p. 68, jan./jun. 2011. 17 A União Republicana Democrática (URD) também esteve envolvida no processo de elaboração do Pacto de Punto Fijo. No entanto, com o passar do tempo, os outros dois partidos que firmaram esse acordo tiveram um maior destaque, por se alternarem no governo. MCCOY, Jennifer L. Latin America’s imperiled progress: Chavez and the end of “partyarchy” in Venezuela. Journal of Democracy, [s. l.], v.10, n.3, 1999. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/16973. Acesso em: 13 fev. 2021. 18 LÓPEZ MAYA, Margarita. Luta hegemômica na Venezuela: a crise do puntofijismo e a ascensão de Hugo Chávez. Tradução por Flávio Benedito. 2.ed. Caracas, Alfadil, 2009. p.16-22. 19 No final da década de 1980, o então presidente Carlos Andrés Pérez, da Aliança Democrática, “[...] reagiu à crise adotando um pacote de medidas neoliberais [...]. A opção neoliberal inaugurada em 1989, que incluía um forte ajuste fiscal, privatização das principais empresas estatais, com exceção da petrolífera, e o enxugamento da máquina administrativa do Estado (em um país onde o Estado e suas empresas eram os principais empregadores), nunca suscitou o [...] entusiasmo popular”. VILLA, Rafael Duarte. Venezuela: mudanças políticas na era Chávez. Estudos Avançados, São Paulo, v.19, n.55, set./dez.2005. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142005000300011. Acesso em: 14 fev. 2021. 20 Cumpre sublinhar que a insurreição conduzida por Hugo Chávez no ano precitado não foi a única que ocorreu no período. De fato, ela não pode ser compreendida de forma isolada, já que se insere em um contexto no qual vários diversos movimentos procuraram desestabilizar, direta ou indiretamente, a ordem vigente. VILLA, Rafael Duarte. Venezuela: mudanças políticas na era Chávez. Estudos Avançados, São Paulo, v.19, n.55, set./dez.2005. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142005000300011. Acesso em: 14 fev. 2021. 15 política do governo” e viabilizou a emergência de atores políticos que, nos anos subsequentes, provocariam grandes mudanças no país21-22-23. Candidato pelo partido Movimento V República (MVR), Hugo Chávez foi eleito presidente da Venezuela em 1998. Indubitavelmente, o resultado desse processo eleitoral consiste em um dos grandes marcos da história venezuelana, porquanto rompeu com a hegemonia da AD e do COPEI24-25. Nesse sentido, a vitória de um indivíduo vinculado aos movimentos sociais evidenciou a insatisfação da maior parte da população venezuelana com os agentes políticos tradicionais26. A eleição de Hugo Chávez insere-se, pois, em um contexto no qual os cidadãos venezuelanos com menor capital político e social se insurgiram contra o status quo, defendendo com veemência os seus interesses em face dos grupos que até então comandavam esse Estado27. No mesmo dia em que tomou posse, Hugo Chávez anunciou a realização de um referendo para a convocação de uma nova Assembleia Constituinte28. Promulgada em dezembro de 1999, a nova Carta Magna venezuelana consagrou a saúde e a educação como deveres do Estado, previu uma série de direitos de titularidade dos indígenas, dedicou um capítulo aos direitos ambientais e reduziu a jornada de trabalho de 48 para 44 horas semanais29. 21 LÓPEZ MAYA, Margarita. Luta hegemômica na Venezuela: a crise do puntofijismo e a ascensão de Hugo Chávez. Tradução por Flávio Benedito. 2.ed. Caracas, Alfadil, 2009. p.98. 22 Acerca desse assunto, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt ressaltam que, “Led by Hugo Chávez, the rebels called themselves ‘Bolivarians’, after revered independence hero Simón Bolívar. The coup failed. But when the now detained Chávez appeared on television to tell his supporters to lay down their arms (declaring, in words that would become legendary, that their mission had failed ‘for now’), he became a hero in the eyes of many Venezuelans, particularly poorer ones”. LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. How democracies die: what history reveals about our future. 1.ed. New York: Penguin Books, 2018. p.16. 23 Nos dizeres de Rafael Duarte Villa, “[...] o próprio Chávez, a princípio não compreendeu bem a dimensão política das conseqüências de sua tentativa de golpe de 1992, e o porquê desta ter sido tão bem recebida por grandes contingentes da população, tamanha era a descrença nas lideranças democráticas de Punto Fijo”. VILLA, Rafael Duarte. Venezuela: mudanças políticas na era Chávez. Estudos Avançados, São Paulo, v.19, n.55, set./dez.2005. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142005000300011. Acesso em: 14 fev. 2021. 24 LÓPEZ MAYA, Margarita. Luta hegemômica na Venezuela: a crise do puntofijismo e a ascensão de Hugo Chávez. Tradução: Flávio Benedito. 2.ed. Caracas: Alfadil, 2009. p.102. 25 “Venezuela [...] was beset in the 1990s by an economic crisis due to the decades-long decline in its oil industry, coupled with a collapse in its party system. Between 1994 and 1999, President Rafael Caldera confronted these pressures by fashioning a parliamentary pact with the opposition Democratic Action Party, and by resisting calls to follow the Peruvian example of the self-coup [...]. His successor, Hugo Chávez, however, ran on a populist platform of opposition to corrupt and collusive elites, and a vow to sweep establishparties ‘from the face of the earth’” (grifo nosso). GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz Z. How to save a constitutional democracy. 1.ed. Chicago: The University of Chicago Press, 2018. p.45. 26 LÓPEZ MAYA, Margarita. Luta hegemômica na Venezuela: a crise do puntofijismo e a ascensão de Hugo Chávez. Tradução: Flávio Benedito. 2.ed. Caracas: Alfadil, 2009. p.171. 27 SEABRA, Raphael Lana. A via venezuelana ao socialismo. 1.ed. Curitiba: Editora CRV, 2014. p.87-92. 28 SEABRA, Raphael Lana. A via venezuelana ao socialismo. 1.ed. Curitiba: Editora CRV, 2014. p.96. 29 SEABRA, Raphael Lana. A via venezuelana ao socialismo. 1.ed. Curitiba: Editora CRV, 2014. p.96-97. 16 Adite-se que, no período em comento, foram executadas políticas públicas com o objetivo de combater a miséria e a exclusão social30-31. Denominadas Missões Bolivarianas, essas políticas públicas lograram reduzir, de forma drástica, as taxas de pobreza do país32. Ademais, elas tiveram uma grande repercussão no âmbito da educação e fizeram com que a Venezuela fosse reconhecida pela UNESCO como um Território Livre de Analfabetismo33. Malgrado a sua retórica revolucionária, Hugo Chávez perpetuou o modelo rentista e não promoveu uma diversificação da economia. Como os preços dos barris de petróleo estavam mais elevados do que nas décadas precedentes, essa opção política, a princípio, contribuiu para o enriquecimento do Estado venezuelano34. Pode-se dizer, pois, que a conjuntura econômica foi uma das responsáveis pelo sucesso das Missões Bolivarianas. Apesar dos inegáveis avanços verificados nesse período, o projeto político desse governante e o seu sectarismo o tornaram impopular perante alguns setores sociais, mormente aqueles ligados à atividade empresarial35. Ademais, Edgardo Lander afirma que a postura anti- imperialista desse líder comprometeu as suas relações diplomáticas com os Estados Unidos36- 30 HUMAN RIGHTS CONCIL. Report of the United Nations High Commissioner for Human Rights on the situation of Human Rights in the Bolivarian Republic of Venezuela. [S. l.], 5 jul. 2019. p.5. 31 No mesmo sentido, Ruth Matos Bazó e Egleé Vargas Acosta afirmam que “[...] el gobierno ha realizado algunos intentos de atender las demandas de la mayoría de la población de escasos recursos a través de la puesta en marcha de diferentes políticas públicas (educativas, salud, vivienda, asistencia técnica y financiera para la producción, estímulo a las cooperativas, entre otras). Acciones que están en concordancia con la definición del Estado Venezolano como Democrático y social de derecho y justicia que se señala en el texto constitucional y que se basan en los principios que rigen este tipo de Estado”. MATOS BAZÓ, Ruth; VARGAS ACOSTA, Egleé. Algunas reflexiones sobre las misiones desde la perspectiva de los beneficiarios. Gazeta Laboral, Maracaibo, v.14, n.3, dic. 2008. Disponível em: http://ve.scielo.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1315-85972008000300006. Acesso em: 14 fev. 2021. 32 PANTOULA, Dimitri; MCCOY, Jennifer. Venezuela: an unstable equilibrium. Revista de ciencia política, Santiago, v.39, n.2., 2019. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718- 090X2019000200391. Acesso em: 9 fev. 2021. 33 NEVES, Rômulo Figueira. Cultura política e elementos de análise da política venezuelana. 1.ed. Fundação Alexandre Gusmão: Brasília, 2010. p.74. 34 SALGADO BUSTILLOS, Flavio. Capitalismo rentístico, revolución bolivariana y la crisis del imaginario e clase media venezolana. Temas Sociales, La Paz, n.46, maio 2020. Disponível em: http://www.scielo.org.bo/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0040-29152020000100004&lang=pt. Acesso em: 30 jan. 2021. 35 LANDER, Edgardo. Venezuelan social conflict in a global context. Latin American Perspectives, [s. l.], v.32, n.3, p.34, mar.2005. 36 LANDER, Edgardo. Venezuelan social conflict in a global context. Latin American Perspectives, [s. l.], v.32, n.3, p.34, mar.2005. 17 37. Esse conflito de interesses motivou, inclusive, a imposição de sanções econômicas ao país caribenho 38. No ano de 2013, Hugo Chávez faleceu e, por esse motivo, foram realizadas novas eleições presidenciais. Estas foram extremamente polarizadas e resultaram na vitória de Nicolás Maduro — aliado de Chávez e membro do Partido Socialista Unido da Venezuela — por uma pequena diferença de votos39. Nesse contexto, os preços do petróleo voltaram a cair no mercado internacional, o que ocasionou o empobrecimento da população e comprometeu a manutenção das políticas sociais em curso40-41. Insta frisar que a referida crise ganhou novas proporções em 2015, quando da realização das eleições para a Assembleia Nacional. A derrota do partido de Nicolás Maduro nessas eleições parlamentares aumentou a animosidade entre o governo e a oposição, que foi severamente reprimida pelas autoridades estatais42. Em meio a essas tensões, a taxa de inflação da Venezuela cresceu exponencialmente e, por conseguinte, diminuiu o poder de compra da população. Para ilustrar a atual magnitude desse problema, cumpre mencionar que, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, a 37 Nas palavras de Charles Pennaforte, “O processo comandado pelo líder venezuelano ganhou destaque ao possuir em concepção, uma lógica marcada pelo combate à influência política, ideológica e econômica dos EUA”. Esse processo teve, portanto, um matiz antissistêmico. PENNAFORTE, Charles. Movimentos antissistêmicos no sistema-mundo contemporâneo: o caso da Venezuela. 1.ed. Rio de Janeiro: CENEGRI – Centro de Estudos em Geopolítica e Relações Internacionais, 2013. p.15. 38 CONGRESSIONAL RESEARCH SERVICE. Venezuela: overview of U.S. sanctions. [S. l.], 30 out. 2020. p.1. Disponível em: https://fas.org/sgp/crs/row/IF10715.pdf. Acesso em: 30 jan. 2021. 39 RIBAS VARGAS, Claudio. La migración en Venezuela como la dimensión de la crisis. In: LEGLER, Thomas; PONT SERBIN, Andrei; GARELLI-RÍOS, Ornela. Venezuela: la multidimensionalidad de una crisis. 1.ed. Buenos Aires: Cries, 2018. p.109. 40 SALGADO BUSTILLOS, Flavio. Capitalismo rentístico, revolución bolivariana y la crisis del imaginario de clase media venezolana. Temas Sociales, La Paz, n.46, maio 2020. Disponível em: http://www.scielo.org.bo/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0040-29152020000100004&lang=pt. Acesso em: 30 jan. 2021. 41 Segundo Dimitri Pantoula e Jennifer McCoy, “One of the main reasons for the decline of Venezuela's GDP is the collapse of the oil sector. Deepening its historic reliance on oil revenues coming from the international markets to account for nearly 95% of Venezuelan exports, the government neglected investment in other essential industries, choosing instead to import most of its goods. Furthermore, although a long commodities boom in the first decade of the 21st century saw oil prices reaching the highest in the country's history, the Chavez and Maduro governments failed to accrue foreign exchange reserves or savings in sovereign funds”. PANTOULA, Dimitri; MCCOY, Jennifer. Venezuela: an unstable equilibrium. Revista de ciencia política, Santiago, v.39, n.2., 2019. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-090X2019000200391. Acesso em: 9 fev. 2021. 42 LÓPEZ MAYA, Margarita. El colapso de Venezuela: ¿qué sigue? In: LEGLER, Thomas; PONT SERBIN, Andrei; GARELLI-RÍOS, Ornela. Venezuela: la multidimensionalidad de una crisis. 1.ed. Buenos Aires: Cries, 2018. p.22. 18 variação da inflação venezuelana foi de 65.370 % em 2018 e será de 5.500 % no ano de 2021, como demonstra o seguinte gráfico43: Fonte: International Monetary Fund. Em consequência disso, mais de 2,5 milhões de venezuelanos encontram-se em uma situação de insegurança alimentar severa, como indica o relatório divulgado pelo Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas em 12 de fevereiro de 202144. Além de diminuiro número de refeições diárias e a qualidade delas, muitos desses indivíduos têm adotado medidas drásticas para lidar com essa situação, a exemplo da redução considerável dos gastos com vestuário e educação. O sistema de saúde da Venezuela também tem sido comprometido pela crise atual. De acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, a população hodiernamente sofre com a escassez de medicamentos e vacinas, com a falta de estrutura das unidades de atendimento e com a redução do número de profissionais da área, a qual se deve à precariedade das condições de trabalho45. 43 INTERNATIONAL MONETARY FUND. Inflation rate, average consumer prices. [S. l.], 2021. Disponível em: https://www.imf.org/external/datamapper/PCPIPCH@WEO/WEOWORLD/VEN/TUR. Acesso em: 15 fev. 2021. 44 UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS OFFICE. Preliminary findings of the visit to the Bolivarian Republic of Venezuela by the Special Rapporteur on the negative impact of unilateral coercive measures on the enjoyment of human rights. Caracas, 12 fev. 2021. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=26747&LangID=E. Acesso em: 14 fev. 2021. 45 UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS OFFICE. Preliminary findings of the visit to the Bolivarian Republic of Venezuela by the Special Rapporteur on the negative impact of unilateral coercive measures on the enjoyment of human rights. Caracas, 12 fev. 2021. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=26747&LangID=E. Acesso em: 14 fev. 2021. 19 É importante acrescentar que as taxas de criminalidade da Venezuela aumentaram nos últimos anos. De fato, diante dessa sistemática violação de direitos sociais e econômicos, muitos indivíduos têm sido cooptados por grupos criminosos46 e, em consequência disso, o país se tornou um dos mais violentos da região47. Outrossim, os cidadãos e entidades que criticam o desempenho do governo vêm sendo perseguidos. A esse respeito, a representante do Escritório das Nações Unidas para os Direitos Humanos — Marta Hurtado —, em janeiro de 2021, externou a sua preocupação com os “[...] contínuos e crescentes ataques, na Venezuela, às organizações da sociedade civil, defensores de direitos humanos e jornalistas” (tradução nossa)48-49-50. Devido a essa instabilidade, muitos estrangeiros que viviam na Venezuela decidiram retornar para os seus países de origem51. Da mesma forma, muitos venezuelanos viram-se 46 OBSERVATORIO VENEZOLANO DE VIOLENCIA. La delincuencia cobra fuerza en el modelaje de niños y jóvenes. [S. l.], 2 abr. 2020. Disponível em: https://observatoriodeviolencia.org.ve/news/la-delincuencia-cobra- fuerza-en-el-modelaje-social-de-ninos-y-jovenes/. Acesso em: 15 fev. 2021. 47 Apesar de a criminalidade convencional continuar afligindo a população, a crescente “dolarização” da economia e a emigração em massa estão modificando o perfil da criminalidade venezuelana. Cada vez mais, a delinquência tem-se concentrado “[...] en los nichos económicos que logran sobrevivir y que tienen acceso a moneda extranjera, y de los cuales pueden extraer una renta [...]”, como o setor de tecnologia. OBSERVATORIO VENEZOLANO DE VIOLENCIA. Informe anual de violencia 2020: entre las epidemias de la violencia y del covid-19. [S. l.], 29 dez. 2020. Disponível em: https://observatoriodeviolencia.org.ve/news/informe-anual-de-violencia-2020-entre- las-epidemias-de-la-violencia-y-del-covid-19/. Acesso em: 15 fev. 2021. 48 “We are deeply concerned by continuous and increasing attacks in Venezuela against civil society organizations, human rights defenders and journalists. In the latest incident, on 12 January in Zulia state, military counter- intelligence and regional police officers raided the NGO Azul Positivo. Documents were seized and six staff members were arrested. Five of them remain in detention. They have not been able to see their lawyers or families. At least three media outlets were also targeted on 8 January, when public servants reportedly seized their equipment, sealed their offices and intimidated staff. These incidents followed similar cases of journalists being harassed or intimidated, as public officials issued a series of statements delegitimizing the media. There are increasingly worrying reports that journalists are censoring themselves out of fear.” UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS OFFICE OF THE HIGH COMMISSIONER. Comment by UN Rights Office Spokesperson Marta Hurtado on Venezuela. Geneva, 14 jan. 2021. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=26660&LangID=E. Acesso em: 15 fev. 2021. 49 Nesse diapasão, Thomas Christiano assevera que, em países realmente democráticos, “[...] political parties, interest groups, and diverse media outlets all provide a fairly wide representation of views and provide means by which citizens can come to understand what is at stake in collective decision-making. [...] Without these institutions, citizens are at a sea with the great number of issues and alternatives. They become prey to demagogic politicians and the system seems to be run essentially by elites”. CHRISTIANO, Thomas. International democracy. In: BESSON, Samantha; TASIOULAS, John (ed.). The philosophy of international law. 1.ed. New York: Oxford University Press, 2010. p.134-135. 50 Na sua obra intitulada The Idea of Justice, Amartya Sen afirma, com veemência, que o respeito à liberdade de imprensa é fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade. Para ele, “We have reason enough to want to communicate with each other and to understand better the world in which we live. Media freedom is critically important for our capability to do this. The absence of a free media and the suppression of people’s ability to communicate with each other have the effect of directly reducing the quality of human life, even if the authoritarian country that imposes such suppression happens to be very rich in terms of gross national product”. SEN, Amartya. The idea of justice. 1.ed. Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009. p.335-336. 51 O próprio governo da Venezuela estimulou a saída dos migrantes que viviam nesse país. Como ressalta Luis Roniger, as autoridades atribuíram a responsabilidade pela crise aos cidadãos de outros Estados, principalmente 20 obrigados a sair da sua pátria para preservar a própria vida52. Assim, é oportuno fazer alguns comentários a respeito do impacto dessa crise migratória no Brasil. 2.2 OS EFEITOS DA DIÁSPORA VENEZUELANA NO BRASIL Conforme os dados da Plataforma de Coordenação para Migrantes e Refugiados Venezuelanos, até abril de 2021, mais de 5,6 milhões de cidadãos da Venezuela deixaram esse Estado 53. Como pontua Eduardo Stein, a maioria desses indivíduos atualmente reside na região da América Latina e Caribe54. Conquanto o Brasil não seja o principal destino desses migrantes, não se pode negar que ele também vem sendo afetado por essa diáspora55. Com efeito, estima-se que, em abril do corrente ano, mais de 261 mil venezuelanos56 residiam nesse país, como indica o seguinte infográfico, disponível na Plataforma supramencionada57: aos colombianos, que foram acusados de se aproveitar da política de subvenções de implementada na Venezuela. RONIGER, Luis. Historia mínima de los derechos humanos en América Latina. 1.ed. Ciudad de México: El Colegio de México, 2018. p.190-192. 52 RIBAS VARGAS, Claudio. La migración en Venezuela como la dimensión de la crisis. In: LEGLER, Thomas; PONT SERBIN, Andrei; GARELLI-RÍOS, Ornela. Venezuela: la multidimensionalidad de una crisis. 1.ed. Buenos Aires: Cries, 2018. p.111. 53 COORDINATION PLATFORM FOR REFUGEES AND MIGRATS FROM VENEZUELA. Refugees and migrants from Venezuela. [S. l.], 5 abr. 2021. Disponível em: https://r4v.info/en/situations/platform. Acesso em: 28 abr. 2021.54 INTER-AGENCY COORDINATION PLATFORM FOR REFUGEES AND MIGRANTS FROM VENEZUELA. RMRP 2021 for refugees and migrants from Venezuela: regional refugee and migrant response plan. [S. l.], [jan. 2021]. p.6. 55 Países como a Colômbia, o Peru e o Equador abrigam uma quantidade de venezuelanos muito maior do que aquela verificada no Brasil. COORDINATION PLATFORM FOR REFUGEES AND MIGRATS FROM VENEZUELA. Refugees and migrants from Venezuela. [S. l.], 5 mar. 2021. Disponível em: https://r4v.info/en/situations/platform. Acesso em: 10 abr. 2021. 56 Neste trabalho, a expressão “migrantes venezuelanos” é empregada de forma genérica, já que contempla inúmeros indivíduos que apresentam características, valores e vivências distintas. À guisa de ilustração, é útil lembrar que alguns deles fazem parte de grupos sociais específicos, como a comunidade LGBTQIA+. Além disso, não se pode deixar de mencionar que muitos desses migrantes sequer se identificam como venezuelanos, pois pertencem a grupos indígenas com línguas e tradições próprias. Nesse sentido, Elaine Moreira e Marcelo Torelly afirmam que, “Até o momento, no fluxo migratório da República Bolivariana da Venezuela ao Brasil, foram identificados três povos indígenas: Warao, Eñepa e Pemón”. MOREIRA, Elaine; TORELLY, Marcelo (coord.). Soluções duradouras para indígenas migrantes e refugiados no contexto do fluxo venezuelano no Brasil. 1.ed. Brasília: Organização Internacional para as Migrações, 2020. p.27. 57 COORDINATION PLATFORM FOR REFUGEES AND MIGRANTS FROM VENEZUELA. Refugees and migrants from Venezuela. [S. l.], 5 mar. 2021. Disponível em: https://r4v.info/en/situations/platform. Acesso em: 14 abr. 2021. 21 Fonte: Coordination Platform for Refugees and Migrants from Venezuela. Inicialmente, esse fluxo migratório tinha um caráter pendular, pois muitos venezuelanos vinham para o Brasil em busca de produtos que estavam escassos no seu Estado. Alguns deles exerciam atividades laborais temporárias no território brasileiro, porém retornavam para a sua pátria depois de realizarem o trabalho que lhes foi designado58. No entanto, o agravamento da crise venezuelana alterou essa dinâmica, porquanto a diminuição da capacidade econômica dos migrantes pendulares dificultou a aquisição de bens no Brasil. Assim, desde 2016, esse deslocamento de pessoas tem ganhado um caráter mais definitivo59, como mostra a seguinte tabela60: Fonte: OBMigra apud IPEA. 58 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. A economia de Roraima e o fluxo venezuelano: evidências e subsídios para políticas públicas. 1.ed. Rio de Janeiro: FGV DAPP, 2020.p.25. 59 “Desde 2016, o número de chegadas vem aumentando, assim como o saldo de pessoas que permanecem no Brasil ou saem deste para outras localidades que não a fronteira entre Brasil e Venezuela.” FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. A economia de Roraima e o fluxo venezuelano: evidências e subsídios para políticas públicas. 1.ed. Rio de Janeiro: FGV DAPP, 2020.p.25. 60 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Imigração Venezuela-Roraima: evolução, impactos e perspectivas. 1.ed. Brasília: IPEA, 2021. p.38. 22 Para entrar no Brasil, a maior parte desses migrantes atravessa a fronteira terrestre entre a Venezuela e Roraima61. É por essa razão que esse estado tem sido o mais impactado pela presente crise. Para ter uma noção mais precisa das consequências dessa diáspora para o ente federativo supracitado, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) conduziu um estudo sobre esse assunto, a partir de dados fornecidos por organismos governamentais e internacionais. Publicada em janeiro de 2021, essa pesquisa revelou que o aumento populacional verificado nesse contexto realmente promoveu uma sobrecarga do ensino básico, principalmente no município de Pacaraima62. Da mesma forma, o funcionamento das unidades de saúde desse estado tem preocupado os gestores públicos. Apesar de ser anterior à diáspora venezuelana, esse problema cresceu à medida que esse fluxo migratório se intensificou, uma vez que a demanda por serviços de assistência médica aumentou. O relatório precitado destaca, ainda, que alguns venezuelanos que chegam ao Brasil não recebem um tratamento de saúde há anos e, por conseguinte, necessitam de uma atenção especial, a qual pressupõe gastos mais elevados63. Nos últimos anos, alguns profissionais da saúde vinculados às forças armadas vêm atuando na região da fronteira, com o fito de proporcionar cuidados básicos para os migrantes recém-chegados. Todavia, a pesquisa conduzida pelo IPEA salienta que essa atuação é temporária e que, até o presente momento, não se vislumbra um “[...] um plano efetivo para mudança na estrutura do atendimento prestado pelo estado”64. De acordo com a última edição do Atlas da Violência — referente ao ano de 2020 —, a taxa de violência em Roraima também aumentou nos últimos anos. Apesar de não se debruçar sobre as causas dessa elevação, o estudo em comento identificou uma correlação entre essa tendência e a diáspora venezuelana65. Nesse sentido, ele indicou que a situação vivenciada no 61 INTER-AGENCY COORDINATION PLATFORM FOR REFUGEES AND MIGRANTS FROM VENEZUELA. RMRP 2021 for refugees and migrants from Venezuela: regional refugee and migrant response plan. [S. l.], [jan. 2021]. p.61. 62 Não obstante, a lotação das escolas e creches não deve ser considerada um indício de que as crianças e adolescentes venezuelanos não encontram óbices para ter acesso à educação no Brasil. Na verdade, a publicação em epígrafe revelou que muitos deles se deparam com grandes desafios para frequentar a escola, em virtude das barreiras linguísticas e da exigência, por parte de algumas instituições de ensino, do histórico escolar. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Imigração Venezuela-Roraima: evolução, impactos e perspectivas. 1.ed. Brasília: IPEA, 2021. p.33-35. 63 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Imigração Venezuela-Roraima: evolução, impactos e perspectivas. 1.ed. Brasília: IPEA, 2021. p.28. 64 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Imigração Venezuela-Roraima: evolução, impactos e perspectivas. 1.ed. Brasília: IPEA, 2021. p.30. 65 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência 2020. 1.ed. [S. l.]: IPEA, 2020. p.16. 23 país caribenho repercutiu na segurança pública não apenas em razão da imigração propriamente dita, mas também devido à crescente atuação de grupos envolvidos com o tráfico transfronteiriço66. Por outro lado, não se pode omitir o fato de que essa onda migratória tem movimentado a economia de Roraima. Nos últimos anos, ela tem passado por um processo de diversificação, em decorrência do crescimento demográfico horizontal. Também é crucial destacar que o setor varejista tem sido beneficiado por esse fenômeno, devido à elevação da demanda local. Por isso, nesse estado, foi constatado um aumento expressivo da arrecadação do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS)67. Conquanto Roraima ainda seja o estado com o maior número de nacionais da Venezuela, é importante esclarecer que outras localidades também têm abrigado uma grande quantidade de migrantes desse país, principalmente depois de 2018. Nesse ano, o Poder Executivo Federal iniciou a Operação Acolhida, com fundamento na Medida Provisória 820 — posteriormente convertida na Lei 13.684/2018. O objetivo dessa Operação foi criar espaços de acolhimento para esses indivíduos, ordenar a fronteira e diminuir a pressão social em Roraima, mediante programas de interiorização68. O desenvolvimento dessa iniciativa de caráter humanitário só foi possível por meio do estabelecimento de parcerias entre o Governo Federal e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados(ACNUR), a Organização Internacional para as Migrações (OIM), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e algumas organizações não governamentais. Dentre os agentes estatais que mais têm contribuído para o desenvolvimento da Operação Acolhida, destaca-se o Exército, que atua no âmbito da logística, segurança e saúde69. Apesar de reconhecerem a relevância desse programa para o gerenciamento desse fluxo, alguns pesquisadores questionam o protagonismo do Exército, porque o consideram um 66 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência 2020. 1.ed. [S. l.]: IPEA, 2020. p.16-17. 67 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. A economia de Roraima e o fluxo venezuelano: evidências e subsídios para políticas públicas. 1.ed. Rio de Janeiro: FGV DAPP, 2020.p.15. 68 SILVA, João Carlos Jarochinski; JUBILUT, Liliana Lyra; VELÁSQUEZ, Militza Zulimar Pérez. Proteção humanitária no Brasil e a Nova Lei de Migrações In: RAMOS, André de Carvalho; VEDOVATO, Luís Renato; BAENINGUER, Rosana (coord.). Nova Lei de Migração: os três primeiros anos. 1.ed. Campinas: UNICAMP; FADISP, 2020. p.59. 69 CHAVES, João Freitas de Castro. Panorama da resposta humanitária ao fluxo venezuelano no Brasil na perspectiva da Defensoria Pública da União. In: BAENINGER, Rosana et al. Migrações venezuelanas. 1.ed. Campinas: Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó”, 2018. p.94. 24 resquício de uma abordagem militarista do fenômeno migratório70. No entanto, recentemente, tem sido discutida a elaboração de um plano institucional que viabilize a gradual diminuição da participação desse segmento das Forças Armadas na Operação Acolhida71. Até março do corrente ano, a Operação Acolhida envolveu mais de 400 municípios72, que receberam 50.475 venezuelanos73. Disponível no site da Plataforma de Coordenação para Migrantes e Refugiados Venezuelanos, a seguinte imagem mostra quais foram as localidades que acolheram mais migrantes nesse processo de interiorização74: Fonte: Coordination Platform for Refugees and Migrants from Venezuela. 70 Os princípios que atualmente regem a política migratória brasileira serão abordados em outro momento, quando da análise da Lei 13.445/2017. 71 INTER-AGENCY COORDINATION PLATFORM FOR REFUGEES AND MIGRANTS FROM VENEZUELA. RMRP 2021 for refugees and migrants from Venezuela: regional refugee and migrant response plan. [S. l.], [jan. 2021]. p.62. 72 MINISTÉRIO DA CIDADANIA. Acolhida. [S. l.], 18 fev. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/acolhida/historico/. Acesso em: 10 abr. 2021 73 COORDINATION PLATFORM FOR REFUGEES AND MIGRATS FROM VENEZUELA. Estratégia de interiorização. [S. l.], mar. 2021. Disponível em:. https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMDc5ZTk2YjktM2I5Yi00YWM1LWEyNzMtMzkzMjFlOTlkMzZkIiw idCI6ImU1YzM3OTgxLTY2NjQtNDEzNC04YTBjLTY1NDNkMmFmODBiZSIsImMiOjh9&pageName=Rep ortSection50c1cda4ca53f9fc2c34. Acesso em: 19 abr. 2021. 74 COORDINATION PLATFORM FOR REFUGEES AND MIGRATS FROM VENEZUELA. Estratégia de interiorização. [S. l.], mar. 2021. Disponível em:. https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMDc5ZTk2YjktM2I5Yi00YWM1LWEyNzMtMzkzMjFlOTlkMzZkIiw idCI6ImU1YzM3OTgxLTY2NjQtNDEzNC04YTBjLTY1NDNkMmFmODBiZSIsImMiOjh9&pageName=Rep ortSection50c1cda4ca53f9fc2c34. Acesso em: 19 abr. 2021. 25 Segundo os dados dessa Plataforma, os estados que tiveram uma participação mais expressiva nesse plano foram o Paraná, São Paulo e Rio Grande do Sul. O Rio Grande do Norte, por sua vez, recebeu apenas 252 venezuelanos cadastrados nessa Operação75. A maior parte dos migrantes levados para o território deste último ente federativo, atualmente, vive nas cidades de Caicó (147), Mossoró (67), Natal (12) e Parnamirim (8)76. É mister sublinhar que a Operação Acolhida tem sido reconhecida como uma ação humanitária de sucesso, “[...] em que a arquitetura de governança permite aos agentes públicos envolvidos na recepção dos venezuelanos agir de maneira rápida, segura e coordenada”77. Feitos esses apontamentos, é fundamental perscrutar a forma como a diáspora venezuelana é disciplinada pelo Direito Internacional. 75 COORDINATION PLATFORM FOR REFUGEES AND MIGRATS FROM VENEZUELA. Estratégia de interiorização. [S. l.], mar. 2021. Disponível em:. https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMDc5ZTk2YjktM2I5Yi00YWM1LWEyNzMtMzkzMjFlOTlkMzZkIiw idCI6ImU1YzM3OTgxLTY2NjQtNDEzNC04YTBjLTY1NDNkMmFmODBiZSIsImMiOjh9&pageName=Rep ortSection50c1cda4ca53f9fc2c34. Acesso em: 15 abr. 2021. 76 COORDINATION PLATFORM FOR REFUGEES AND MIGRATS FROM VENEZUELA. Estratégia de interiorização. [S. l.], mar. 2021. Disponível em:. https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMDc5ZTk2YjktM2I5Yi00YWM1LWEyNzMtMzkzMjFlOTlkMzZkIiw idCI6ImU1YzM3OTgxLTY2NjQtNDEzNC04YTBjLTY1NDNkMmFmODBiZSIsImMiOjh9&pageName=Rep ortSection50c1cda4ca53f9fc2c34. Acesso em: 15 abr. 2021. 77 MOREIRA, Elaine; TORELLY, Marcelo (coord.). Soluções duradouras para indígenas migrantes e refugiados no contexto do fluxo venezuelano no Brasil. 1.ed. Brasília: Organização Internacional para as Migrações, 2020. p.81. 26 3 A DIÁSPORA VENEZUELANA SOB A ÓTICA DO DIREITO INTERNACIONAL Na sua obra International Migration Law, Vincent Chetail assevera que o arcabouço jurídico internacional que rege as migrações é formado por diversas normas esparsas, que têm âmbitos de incidência próprios, mas frequentemente se sobrepõem78. O estudo dessa temática, portanto, exige a análise de diversos instrumentos que regulam a mobilidade internacional sob um determinado prisma. Considerando o recorte metodológico deste trabalho, inicialmente, serão abordados os textos normativos que tratam da tutela geral dos migrantes nos Sistemas Onusiano79 e Interamericano. Posteriormente, far-se-ão alguns comentários a respeito da (im)possibilidade de os migrantes venezuelanos serem contemplados pelo regime jurídico internacional dos refugiados80. 3.1 A PROTEÇÃO DOS MIGRANTES VENEZUELANOS À LUZ DAS DECLARAÇÕES E TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS DO SISTEMA ONUSIANO Adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser considerada o marco inicial da universalização dos direitos humanos81-82. 78 Para esse autor, “[...] the current international legal framework governing migration consists of an eclectic set of superimposed norms that are scattered throughout a vast number of overlapping fields (such as human rights law, trad law, humanitarian law, labour law, refugee law, maritime law, air law, consular law, criminal law, etc.)”. CHETAIL, Vincent. International migration law. 1.ed. Oxford: Oxford University Press, 2019. p.6. 79 Nesse sentido, Thiago Oliveira Moreira afirma que, “[...] enquanto não existir um tratado internacional que regule todas as questões que são inerentes ao fenômeno migratório, as pessoas em mobilidade internacional, notadamente as vulneráveis, contam com a tutela geral [...]” do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), a qual contempla os textos normativos e as manifestações dos comitês vinculados a esse organismo internacional. MOREIRA, Thiago Oliveira. A concretização dos direitos humanos dos migrantes pela jurisdição brasileira. 1.ed. Curitiba: Instituto Memória, 2019. p.175. 80 Optou-se por analisar apenas as principais declarações internacionais e os tratados que foram ratificados pelo Estado brasileiro. Por isso, este estudo não tratou do Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular, cuja criação promoveu um avanço no que tange ao regramento da mobilidade internacional. Como lembra Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, “O Brasil assinou o Pacto durante o governo de Michel Temer, mas recuou e rompeu com a sua posição, tendo sido esta uma das primeiras medidas tomadas pelo governo de Jair Bolsonaro, em 8 de janeiro de 2019”. WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. A Lei 13.445/2017 e a ruptura paradigmática rumoà proteção dos Direitos Humanos dos migrantes no Brasil: avanços e retrocessos. In: RAMOS, André de Carvalho; VEDOVATO, Luís Renato; BAENINGUER, Rosana (coord.). Nova Lei de Migração: os três primeiros anos. 1.ed. Campinas: UNICAMP; FADISP, 2020.p.110. 81 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 5.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p.33. 82 “The UDHR was adopted by forty-eight votes to none, with eight abstentions. The abstentions were cast by South Africa, which had just inaugurated its ‘apartheid’ policy and thus opposed the affirmation of equality without distinction as to race; Saudi Arabia, which opposed the freedom to change one’s religion; as well as the USSR and its satellite States which then already formed what was referred to during the Cold War as the ‘Soviet Block’, who considered that the Declaration could be used as a pretext for interfering with the domestic affairs of the Member States of the United Nations [...]”. DE SCHUTTER, Olivier. International human rights law. 1.ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p.16. 27 No seu artigo 13, ela positiva o direito de circular livremente dentro do seu país de origem e de emigrar83-84. Além disso, o artigo subsequente estabelece que todas as pessoas sujeitas a algum tipo de perseguição têm o direito de buscar asilo em um Estado diferente do seu, desde que essa perseguição não seja “[...] legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas”85. Malgrado a natureza não vinculante dessa Declaração, a maior parte da doutrina entende que os direitos previstos nos dispositivos citados fazem parte do costume internacional86-87-88. Não obstante, Thiago Oliveira Moreira afirma, com veemência, que o reconhecimento desses direitos não implica a consagração do “direito a imigrar”89-90. De acordo com Olivier de Schutter, o teor da Declaração Universal dos Direitos Humanos foi reforçado pela elaboração de dois textos normativos de natureza vinculante, quais sejam: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional 83 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração universal dos direitos humanos. Paris, 10 dez. 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 19 fev. 2021. 84 Entretanto, do ponto de vista teórico, as origens do direito de emigrar são mais antigas. Segundo Vincent Chetail, “Vattel lui rend un hommage appuyé dans Le droit des gens, où il souligne avec une vigueur toute particulière que chaque citoyen a le droit de quiter son pays, lorsqu’il ne peut y trouver sa subsistance ou que la Nation édicte des lois intolérantes”. CHETAIL, Vincent. Droit international des migrations: Fondements et Limites du Multilatéralisme (March 20, 2012). In : GHERARI, Habib ; MEHDI, Rostane. La societe internationale face aux defis migratoires. 1.ed. [S. l.]: Pedone, 2012. p. 35. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2026388. Acesso em: 21 maio 2020. 85 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração universal dos direitos humanos. Paris, 10 dez. 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 19 fev. 2021. 86 CHETAIL, Vincent. International migration law. 1.ed. Oxford: Oxford University Press, 2019. p.164. 87 Segundo Olivier de Schutter, “[...] a majority of the doctrine takes the view today that, whatever the intent of the governments which voted on the Declaration, the rights stipulated in the UDHR now have acquired the status of customary international law or should be considered as part of the ‘general principles of law recognized by civilized nations’ mentioned in Article 38 (1)(c) of the Statute of the International Court of Justice as a source of international law”. DE SCHUTTER, Olivier. International human rights law. 1.ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p.16. 88 Por sua vez, James Crawford sustenta que “The Declaration is not a treaty, but many of its provisions reflect general principles of law or elementary considerations of humanity, and the Declaration identified the catalogue of rights whose protection would come to be the aim of later instruments. Overall the indirect legal effect of the Declaration should not be underestimated” (grifo nosso). CRAWFORD, James Richard. Brownlie’s principles of public international law. 8.ed. [S. l.]: Oxford University Press, 2012. p.637. 89 Para esse autor, “[...] ao contrário do que muitos defendem, não se vislumbra um fundamento na DUDH, ou em qualquer tratado internacional, que possa garantir um direito à imigração”. MOREIRA, Thiago Oliveira. A concretização dos direitos humanos dos migrantes pela jurisdição brasileira. 1.ed. Curitiba: Instituto Memória, 2019. p.175-176. 90 Da mesma forma, Vincent Chetail preleciona que “Human rights law recognizes the right to leave any country at one side of the migration continuum, and the right to return to one’s own country at the other extreme. In between the two, there is no explicit right of admission into another country. This intentional omission plainly signals that, at its current stage of development, public international law does not guarantee a general freedom of movement” (grifo nosso). CHETAIL, Vincent. International migration law. 1.ed. Oxford: Oxford University Press, 2019. p.91. https://ssrn.com/abstract=2026388 28 sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)91. Ambos foram adotados em 16 de dezembro de 1966 e fazem parte da “Carta Internacional dos Direitos Humanos”92. Além de positivar o princípio da não discriminação93, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos dispõe, no seu artigo 12, que toda pessoa que estiver regularmente em um território tem “[...] o direito de nele circular e escolher sua residência”94. Nesse passo, deve- se frisar que esse artigo reitera a existência de um direito humano à emigração, já que ele praticamente reproduz a redação do artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos95. Ao tratar do diploma normativo em comento, deve-se lembrar que ele instituiu o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. Como assenta Malcom N. Shawn, esse órgão de controle é formado por dezoito especialistas independentes, que são eleitos pelos Estados partes do PIDCP a cada 4 anos e atuam com base na regra do consenso96. É oportuno pontuar que esse Comitê já emitiu diversos posicionamentos sobre temáticas atinentes aos direitos humanos dos migrantes. Algumas dessas manifestações foram oriundas 91 DE SCHUTTER, Olivier. International human rights law. 1.ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p.16. 92 Nas palavras de André de Carvalho Ramos: “[...]a doutrina consagrou o termo ‘Carta Internacional de Direitos Humanos’ (International Bill of Rights), fazendo homenagem às chamadas Bill of Rights do Direito Constitucional e que compreende o seguinte conjunto de diplomas internacionais: (i) a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948; (ii) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966; (iii) Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966”. RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 5.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p.162. 93 O artigo 2º, 1 desse Pacto Internacional tem a seguinte redação: “Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição” (grifo nosso). Ademais, o artigo 26 dispõe: “Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteçãoda Lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação”. BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Brasília: Presidência da República, 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 21 fev. 2021. 94 BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Brasília: Presidência da República, 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 21 fev. 2021. 95 Thiago Oliveira Moreira nota que “É com base no citado art. 12 do PIDCP que alguns fundamentam, mais uma vez, que migrar é um direito humano. Nesse ponto, ao que parece, a interpretação é mesma da anunciada com relação ao art. 13 da DUDH. Com efeito, em momento algum, do teor do art. 12, notadamente de seu item 2, é possível depreender que o direito humano à imigração foi consagrado”. MOREIRA, Thiago Oliveira. A concretização dos direitos humanos dos migrantes pela jurisdição brasileira. 1.ed. Curitiba: Instituto Memória, 2019. p.177. 96 Em consonância com os dizeres desse doutrinador, o Comitê de Direitos Humanos da ONU “[...] consists of eighteen independent and expert members, elected by the states parties to the Covenant for four-year terms, with consideration given to the need for equitable geographical distribution and representation of the different forms of civilisation and of the principal legal systems. The Committee meets three times a year (in Geneva and New York) and operates by way of consensus. The Covenant is primarily implemented by means of a reporting system, whereby states parties provide information on the measures adopted to give effect to the rights recognised in the Covenant”. SHAW, Malcom N. International law. 6.ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.p.315. 29 de queixas individuais e outras se caracterizam como “recomendações gerais”, dirigidas a todos os Estados partes do tratado em questão97. Conforme o atual entendimento desse Comitê, a expulsão de não nacionais do território de um Estado tem como limite o comando normativo ínsito no artigo 7º do PIDCP, que determina que “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes [...]”98. Esse entendimento, como nota Thiago Oliveira Moreira99, foi sufragado no caso Kindler c. Canadá100. Também é salutar destacar que, no caso Karakurt c. Áustria, dito Comitê considerou que uma lei “[...] que reservava aos austríacos e aos nacionais de Estados-Membros da UE a possibilidade de pertencerem a um conselho de empresa era discriminatória [...]” e, por conseguinte, violava o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos101. O fundamento dessa manifestação foi a inexistência de elementos objetivos que justificassem a concessão desse tratamento diferenciado102. 97 MOREIRA, Thiago Oliveira. A concretização dos direitos humanos dos migrantes pela jurisdição brasileira. 1.ed. Curitiba: Instituto Memória, 2019. p.181. 98 BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Brasília: Presidência da República, 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 21 fev. 2021. 99 O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas interpreta o artigo 7º do PIDCP de forma extensiva. Para ele, “[...] há proibição de expulsão de indivíduo para países em que o risco de submissão à tortura ou tratamento desumanos ou degradantes seja elevado. O descrito entendimento encontra-se evidente na decisão Kindler c. Canadá”. MOREIRA, Thiago Oliveira. A concretização dos direitos humanos dos migrantes pela jurisdição brasileira. 1.ed. Curitiba: Instituto Memória, 2019. p.182. 100 No caso em epígrafe, um cidadão estadunidense chamado Joseph Kindler acionou o Comitê para que este se manifestasse sobre esse tema. Em novembro de 1983, o Poder Judiciário do estado da Pensilvânia condenou Kindler à pena de morte devido à prática dos crimes de homicídio e sequestro. Antes de a sentença ser executada, ele conseguiu escapar; porém, em abril de 1985, ele foi preso pela polícia do Quebec, província do Canadá. Embora o Canadá não admitisse a pena de morte, a Suprema Corte do país entendeu que a extradição de Kindler não violaria a Carta Canadense de Direitos Humanos. Depois de considerar as ponderações feitas pelo representante de Kindler e as alegações do governo canadense, o Comitê sustentou que, naquela situação, não havia sido configurada uma violação ao artigo 7º do PIDCP. Ele salientou, todavia, que esse artigo deve ser interpretado em conjunto com aquele que o antecede. Sendo assim, “In determining whether, in a particular case, the imposition of capital punishment could constitute a violation of article 7, the Committee will have regard to the relevant personal factors regarding the author, the specific conditions of detention on death row, and whether the proposed method of execution is particularly abhorrent”. UNIVERSITY OF MINNESOTA HUMAN RIGHTS LIBRARY. Kindler v. Canada, Communication No. 470/1991, U.N. Doc. CCPR/C/48/D/470/1991 (1993). [S. l.], 1993. Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/undocs/html/dec470.htm. Acesso em: 21 fev. 2021. 101 MOREIRA, Thiago Oliveira. A concretização dos direitos humanos dos migrantes pela jurisdição brasileira. 1.ed. Curitiba: Instituto Memória, 2019. p.178. 102 O caso que deu origem a essa discussão envolveu Mümtaz Karakurt, um cidadão turco que vivia na Áustria. Ele era funcionário da Associação para o Apoio de Estrangeiros, situada na cidade de Linz. Em maio de 1994, o autor e um colega — Vladimir Polak — foram eleitos para o Conselho de trabalho da Associação. Entretanto, Polak acionou o Poder Judiciário austríaco e requereu que Karakurt fosse destituído dessa função, sob o argumento e que a legislação do país reservava esse posto aos seus nacionais e aos nacionais dos demais Estados da União Europeia. A Corte Regional de Liz acolheu a pretensão de Polak e a sua decisão foi confirmada pela Corte de Apelação. O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas foi instado a se pronunciar sobre esse caso e aduziu que “[...] it is not reasonable to base a distinction between aliens concerning their capacity to stand for election for a work council solely on their different nationality. Accordingly, the Committee finds that the author has been the 30 O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), por sua vez, inovou ao atribuir densidade normativa a direitos outrora tidos como meras exortações ou diretrizes não vinculantes103. Assim como o PIDCP, o PIDESC determina que os seus dispositivos sejam aplicados sem qualquer discriminação, inclusive por motivo de origem nacional104. O artigo 2º, 3 do tratado ora discutido, contudo, prevê a possibilidade de países em desenvolvimento restringirem o exercício dos direitos econômicos por parte dos não nacionais, desde que essa diferenciação seja feita de maneira racional 105-106. No seu artigo 11, o PIDESC reconhece a existência de um direito a um padrão de vida adequado, que pressupõe o acesso à alimentação, ao vestuário e à moradia107. Dessarte, os Estados que o ratificaram — como o Brasil — têm o dever de tomar as medidas apropriadas para a concretização desse direito. O artigo em análise enfatiza, ainda, a importância da cooperação internacional para o adimplemento dessa obrigação108. Por força do artigo
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