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José Reginaldo Santos Gonçalves Roberta Sampaio Guimarães Nina Pinheiro Bitar – organizadores – Cip-Brasil. Catalogação-na-Fonte sindiCato naCional dos editores de livros, rJ. Copyright © by José Reginaldo Santos Gonçalves, Roberta Sampaio Guimarães, Nina Pinheiro Bitar et alii, 2013 Direitos desta edição reservados à MAUAD Editora Ltda. Rua Joaquim Silva, 98, 5º andar Lapa — Rio de Janeiro — RJ — CEP: 20241-110 Tel.: (21) 3479.7422 — Fax: (21) 3479.7400 www.mauad.com.br em coedição com Faperj – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro Av. Erasmo Braga, 118, 6º andar – Centro CEP: 20020-000 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 3231.2929 – Fax: (21) 2533.4453 www.faperj.br Projeto Gráfico: Núcleo de Arte/Mauad Editora Revisão: Leticia Castello Branco Braun Agradecimento à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – Faperj, pelo apoio recebido. A441 A alma das coisas : patrimônio, materialidade e ressonância / [organização] José Reginaldo Santos Gonçalves, Nina Pinheiro Bitar e Roberta Sampaio Guimarães. - Rio de Janeiro : Mauad X : Faperj, 2013. Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-7478-526-4 1. Etnologia. 2. Antropologia. I. Gonçalves, José Reginaldo Santos. II. Bitar, Nina Pinheiro. III. Guimarães, Roberta Sampaio. IV. Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. V. Título. 13-0730. CDD: 306 CDU: 316.7 Sumário APrESENTAÇÃo 7 1. o SorriSo irÔNiCo DoS BuDAS: DEmoLiÇÃo E PATrimÔNio No VALE SAGrADo DE BAmiYAN 19 Alberto Goyena 2. o ENCoNTro mÍTiCo DE PErEirA PASSoS Com A PEQuENA áFriCA: NArrATiVAS DE PASSADo E FormAS DE HABiTAr NA ZoNA PorTuáriA CArioCA 47 Roberta Sampaio Guimarães 3. PATrimÔNio E DáDiVA: AS BAiANAS DE ACArAJÉ No rio DE JANEiro 79 Nina Pinheiro Bitar 4. A ViDA oCuLTA DAS PEDrAS: HiSToriCiDADE E mATEriALiDADE DoS oBJEToS No CANDomBLÉ 105 Roger Sansi 5. BANDEirAS E máSCArAS: SoBrE A rELAÇÃo ENTrE PESSoAS E oBJEToS mATEriAiS NAS FoLiAS DE rEiS 123 Daniel Bitter 6. À mESA Com oS SANToS: A NoÇÃo DE “FArTurA” NAS FoLiAS DE uruCuiA (miNAS GErAiS) 155 Luzimar Paulo Pereira 7. umA BioGrAFiA Do KÀJrE, A mACHADiNHA KrAHÔ 185 Ana Gabriela Morim de Lima 8. AS morADAS DA CALuNGA DoNA JoVENTiNA: oBJEToS, PESSoAS E DEuSES NoS mArACATuS DE rECiFE 211 Clarisse Kubrusly 9. ENTrE A roDA DE Boi E o muSEu: um ESTuDo DA CArETA DE CAZumBA 231 Flora Moana Van de Beuque 10. A morADA E A CASA: mATEriALiDADE E mEmÓriA No ProCESSo DE CoNSTruÇÃo Do PATrimÔNio FAmiLiAr 267 Anelise dos Santos Gutterres SoBrE oS AuTorES 293 imAGENS 297 7A Alma das Coisas APRESENTAÇÃO As coisas no exílio Para quem não se lembra, A alma das coisas era um antigo programa da Rá- dio Nacional dos anos 1950, que ia ao ar todas as quintas-feiras, em horário nobre, precisamente às oito horas da noite. Em sua apresentação, o locutor anunciava em tom solene: “Contam histórias antigas que Deus nosso senhor deu alma a todas as coisas que se encontram no mundo. As coisas não falam. Se falassem ouviríamos então a alma das coisas...”. Logo em seguida, sempre no mesmo tom de voz, anunciava o patrocinador do programa: “Através da Rádio Nacional, a fita celulose marca Scotch tem o prazer de apresentar A alma das coisas.” Não era um programa religioso, apesar da referência a Deus em sua apresentação. Durava não mais que dez minutos, e nesse espaço de tempo narravam-se histórias imaginárias cujos protagonistas eram objetos materiais cotidianos: um bule, uma árvore de natal, etc. Eram apresentados como se formassem verdadeiras sociedades de objetos, com relações de pa- rentesco, vizinhança, amizade, inimizade e traços de personalidade; eram descritos como se fossem pessoas, com capacidade similar para sentir, pen- sar, agir, falar e emitir opiniões sobre seu destino e suas relações com o mun- do e com o seres humanos. Correndo o risco (e já assumindo o crime) de cometer o que os historiadores chamam de “anacronismo”, digo que A alma das coisas talvez expressasse certa percepção imaginária do que se conhece no jargão antropológico atual como “agência” dos objetos. Mas esse certamente não é um tema novo. Afinal, essa percepção, de modo periférico ou central, assumindo contornos semânticos variados, pa- rece estar presente em qualquer sociedade humana. A natureza da relação sujeito–objeto, tal como a modernidade ocidental veio a concebê-la, em que os objetos servem tão somente aos propósitos e necessidades de um sujeito soberano, não é algo evidente para a maioria das sociedades existentes no planeta. O “espírito das coisas dadas” é um tema clássico da Antropologia, 8 Apresentação e Marcel Mauss, em seu Ensaio sobre a dádiva, soube evocá-lo com sensibilidade e insights duradouros. É o próprio Mauss que, em seu Manual de Etnografia, re- comenda cautela aos pesquisadores diante de objetos materiais como um vaso de barro: “Frequentemente, o vaso tem uma alma; o vaso é uma pessoa” (1967, p. 46).1 São numerosas as possibilidades de conceber as formas dessa relação entre seres humanos e coisas. Os mitos, o folclore, as narrativas populares, os discursos cotidianos estão repletos de experiências que apontam nessa direção. Para nós, modernos, as coisas não falam; mas para muitas culturas e para mui- tos grupos em nossas próprias sociedades contemporâneas, o problema não é exatamente que as coisas não falem; é que desaprendemos os idiomas em que se expressam. Pois, se isolamos as coisas na lógica da “razão prática”, na condi- ção de instrumentos estritamente utilitários ou ornamentais, nos afastamos da possibilidade de estabelecer com elas relações de comunicação. Ao atribuir-lhes uma alma, mesmo que imaginariamente, resgatamos essa possibilidade. É preciso também não esquecer que, enquanto portadoras de uma “alma”, de um “espírito”, as coisas não existem isoladamente, como se fossem en- tidades autônomas; elas existem efetivamente como parte de uma vasta e complexa rede de relações sociais e cósmicas, nas quais desempenham funções mediadoras fundamentais entre natureza e cultura, deuses e seres humanos, mortos e vivos, passado e presente, cosmos e sociedade, corpo e alma, etc. Essa possibilidade nunca desapareceu completamente de nosso horizonte moderno. E, nesse aspecto, Bruno Latour oportunamente nos faz lembrar uma lição clássica dos antropólogos, que, em seus estudos, assina- laram a permanência no mundo contemporâneo do chamado “pensamento selvagem” (Lévi-Strauss) e das formas de vida não modernas: realmente, “nunca fomos modernos” (Latour, 2006). Pelos menos, não no sentido de que o processo de secularização teria varrido definitivamente as modalidades do pensamento mágico, através das quais nos conectamos significativamente com a ordem cósmica e social. As coisas podem não falar como nas histórias imaginárias daquele programa radiofônico. Nesse sentido, elas parecem vi- ver uma espécie de exílio. Mas, a exemplo dos deuses pagãos exilados pelo cristianismo e cujos rastros Heinrich Heine (2009 [1835]) encontrava no mundo moderno, é provável que a alma das coisas ainda nos afete secreta- mente. Sob ângulos diversos, os dez estudos reunidos neste livro nos fazem perceber os efeitos de sua humilde e poderosa presença em nossa vida indi- vidual e coletiva. 1 “Très souvent le pot a une âme, le pot est une personne” (Mauss, 1967, p. 46). 9A Alma das Coisas A vida social dos patrimônios É vasta a literatura antropológica recentemente dedicada à “cultura mate- rial” (Appadurai, 2008; Tilley et al., 2006; Henare; Holbraad; Wastell, 2007). Os antropólogos anglo-americanos usam a expressão “material turn” para diagnosticar a renovação do interesse por essa área de pesquisa. Um dos tra- ços dessa nova configuração intelectual é o uso da palavra “materialidade”, seja no singular ou no plural (Miller,2005). Evidentemente, quando aqui a utilizamos, não pretendemos designar um dado natural ou um atributo intrínseco aos objetos e lugares descritos e analisados. Trata-se de uma cate- goria e, portanto, compreensível na medida em que se possam entender os diversos contextos socioculturais em que é usada e de que forma específica.2 Podemos ampliar essa discussão para a conhecida distinção entre patri- mônios “materiais” e “intangíveis”, que deve ser entendida nos limites his- tóricos e semânticos dos seus usos pela modernidade ocidental, sem que se possa assumir apressadamente a sua universalidade como um dado. O que pode ser percebido como universal é a relação de oposição entre esses polos (o material e o imaterial), relação essa que varia entre uma demarcação on- tológica radical e uma perspectiva em que se explore a relação de “simetria” entre eles (Latour, 2009) ou seu entendimento através de uma “antropologia reversa” (Wagner, 2010). Embora resultem de pesquisas realizadas em diferentes contextos sociocul- turais (no meio urbano, em povoados rurais, em aldeias indígenas), os es- tudos aqui reunidos3 mantêm entre si uma evidente afinidade: a descrição etnográfica minuciosa e a análise de diferentes usos de objetos materiais e formas espaciais na vida social: representações materiais de divindades, máscaras rituais, culinária religiosa, espaços urbanos, arquiteturas, casas, imagens. Eles realizam um esforço coletivo de reflexão sobre a natureza da 2 Para uma discussão critica da categoria “materialidade”, ver o artigo de Tim Ingold, Materials against Materiality, in Being Alive (2011, p. 19-32). 3 Os textos reunidos neste livro resultam de teses e dissertações produzidas, em sua quase totalidade, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS /da UFRJ (http:// www.ifcs.ufrj.br/~ppgsa/); e do Núcleo de Antropologia dos Objetos (Nuclao) do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS (www.laares-ufrj.com) e, que, por sua vez, resultaram na publicação de artigos, capítulos de livro e livros (Gonçalves 2000; 2003 [1996]; 2003a; 2007: 175-194; 2007: 117-138; 2007: 42-63; 2005; 2007: 139-158; 2007a; 2008; 2009a; 2009b; 2009c; 2010; 2010a; 2011; 2011a; Silva, 2007; Kubrusly, 2007; Bitter, 2008; 2010; Pereira, 2009; 2011; Paiva, 2009; Goyena 2010; Nascimento, 2010; Bitar, 2010; 2011; Guimarães, 2004; 2011; Paterman, 2008; Migliora, 2010; Miguel, 2010). 10 Apresentação relevância desses objetos e espaços nos processos de produção sensível de diversas formas de autoconsciência individual e coletiva. Buscam, desse modo, desvendar o seu papel na vida cotidiana de diferentes segmentos so- cioculturais e, sobretudo, descobrir de que modo nos ajudam a nos tornar o que somos. Esses estudos descrevem e analisam os usos, deslocamentos, transformações e destruição desses itens, mostrando como esse processo repercute de modo eficaz na experiência corporal e no pensamento de in- divíduos e coletividades. Revelam, assim, o quanto somos dependentes, como coletividades e indivíduos, desses processos de produção, circulação, consumo e destruição de objetos materiais e espaços que usamos e fre- quentamos em nosso dia a dia. Dependentes não apenas quando os con- sideramos do ponto de vista estritamente utilitário; nem apenas quando os consideramos emblemas de nossas identidades; mas sobretudo depen- dentes na medida em que neles reconhecemos “poderes de agência” (Gell, 1998), cujo efeito consiste precisamente na constituição sensível de nossas formas de autoconsciência. Em cada um desses estudos perpassam, explicita ou implicitamente, os usos diversos da categoria “patrimônio”, explorando suas concepções nati- vas. Eles mostram que aquilo que poderíamos designar a “vida social” dos “patrimônios” inclui necessariamente as diversas formas de recepção e usos de objetos e espaços, assim como seus efeitos sobre aqueles que os classi- ficam na vida cotidiana. Podemos qualificar essas formas de recepção por intermédio da noção de “ressonância”, de Stephen Greenblatt.4 No entanto, podemos ir além da estimulante proposição desse autor e qualificarmos a própria noção de “ressonância”, mostrando seus diferentes significados.5 A partir dessa perspectiva, é possível perguntar: de que formas os lugares, edi- ficações e objetos materiais oficialmente reconhecidos como “patrimônio” podem ser experimentados por seus usuários no cotidiano? Como uma es- pécie de herança exemplar transmitida pelo passado? Como um instrumento de reconstrução presente de suas identidades individuais e coletivas? Como algo a ser negado e destruído (uma espécie de ressonância negativa)? 4 Segundo o historiador Stephen Greenblatt: Por ressonância quero me referir ao poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o espectador, o representante (1991, p. 42-56. Tradução de José Reginaldo Santos Gonçalves) 5 Um exemplo brilhante desse procedimento pode ser encontrado em um texto de Antonio Candido, no qual, ao analisar a relação entre textos literários, descreve diferentes formas de ressonância de um texto em outro, ora na forma de “inspiração”, ora da forma de “citação” (Candido, 2004). 11A Alma das Coisas É notório que, nas últimas décadas, a categoria “patrimônio” vem circu- lando intensamente em diferentes meios sociais e acadêmicos, podendo evi- dentemente assumir significados bastante variados. No entanto, é possível, numa perspectiva mais ambiciosa, perceber uma dimensão estrutural nos usos dessa categoria, dimensão talvez presente, sempre de modos diferenciados, em quaisquer formas de vida sociocultural. Essa dimensão consiste no poder de mediação exercido pelos chamados patrimônios. Sejam eles classificados, como é o caso dos contextos ocidentais contemporâneos, como “materiais” ou “imateriais”, sua existência se justifica pelo exercício dessas mediações entre diversos domínios sociais e cosmológicos (Gonçalves, 2007). É curioso que, no Ocidente contemporâneo, quando se fala mais e mais de “patrimônio imaterial” ou “intangível”, torna-se flagrante a “materialidade” dos patrimônios. Afinal, como separar a materialidade e a imaterialidade de uma edificação, de uma prática culinária ou de determinadas festas populares? Essa separação, que tão facilmente tomamos como natural, será mesmo de validade universal? Os estudos aqui apresentados nos mostram precisamente essa indeterminação, revelando como, em diferentes contextos socioculturais, essa e outras oposições podem ser desenhadas de formas distintas. O estudo assinado por Alberto Goyena analisa as polêmicas que acom- panharam o processo de destruição, por parte dos talibãs, de duas estátuas de Buda no Afeganistão no ano de 2001 e que haviam sido classificadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unes- co) como “patrimônio da humanidade”. A partir desse caso, ele levanta alguns questionamentos a respeito das relações entre “cultura material” e “transmis- são de identidades coletivas”. E ressalta o caráter instável e indeterminado das práticas inseparáveis de conservação e destruição dos patrimônios e sua incessante ressignificação pelos atores envolvidos nesses processos. As narrativas de passado e as formas de habitar que entraram em choque durante o processo de construção de um “sítio histórico de origem portu- guesa” no Morro da Conceição, Zona Portuária do Rio de Janeiro, é o tema do artigo de Roberta Sampaio Guimarães. A autora analisa como, durante esse processo ocorrido entre os anos de 1998 e 2000, planejadores urbanos da prefeitura deslocaram diversos sobrados, logradouros e modos de vida de seu contexto polissêmico cotidiano e os reordenaram discursivamente atra- vés da categoria “patrimônio”, colocando diversos outros itens como mar- gens do sítio histórico imaginado. Comoefeito dessa ação, é demonstrado que gerou-se não apenas a afirmação de diferentes memórias e identidades, mas também novos processos políticos, sociais e estéticos, como a criação na 12 Apresentação região de um “memorial” e um “circuito histórico e arqueológico” dedicado à herança africana. O artigo de Nina Pinheiro Bitar aborda a relação entre pessoas e deter- minado tipo de comida, o acarajé, através da análise do processo de registro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do “ofí- cio das baianas de acarajé” e a posterior reapropriação nativa de tal política pública. E o faz problematizando a noção de “patrimônio”, entendendo-a não apenas em termos jurídicos, mas em sua formulação cotidiana por tais baianas no contexto da cidade do Rio de Janeiro. Focalizando o “sistema culinário” envolvido no ofício, a autora então explora a hipótese de que os objetos materiais não atendem apenas a funções utilitárias; e nem são apenas suportes identitários; mas mediadores e constituidores da vida social, não existindo separadamente dos sujeitos. No artigo seguinte, Roger Sansi analisa, no contexto das religiões afro- -brasileiras, as relações entre iniciados e cultura material. Explora especifica- mente suas relações com determinado tipo de objeto que, de certo modo, é inseparável do corpo dos iniciados: as pedras ocultas nos terreiros, os “otã”. Para tanto, explica como essa pedra incorporou diversos e por vezes contra- ditórios valores dos objetos do candomblé, na Bahia do século XX: desde armas de feitiçaria e sintomas de patologia racial até peças de arte erudita. E tece considerações mais gerais com relação ao papel das noções de “histori- cidade” e “materialidade” como instrumentos fundamentais para entender a vida e a ”agência” desse objeto. No artigo de Daniel Bitter são apresentados a produção e os usos sociais e simbólicos das “bandeiras dos santos” e das “máscaras” no contexto do em- preendimento festivo das Folias de Reis no Rio de Janeiro. O autor demons- tra como tais objetos rituais envolvem amplas teias de reciprocidades sociais através do estabelecimento de um intenso campo de interações e agencia- mentos: seja no caso da bandeira, considerada detentora de poderes supra- mundanos, trazendo “bênçãos” e “graças” a quem a recebe em sua casa; seja no caso da máscara, portadora de significados moralmente negativos ao ser usada pelo personagem do “palhaço”, tipo marcadamente liminar, cômico e ambíguo. Por serem simultaneamente objetivos e subjetivos, materiais e imateriais, o autor mostra como tais objetos caracterizam-se por uma pro- funda ambivalência, sendo capazes de realizar mediações entre os domínios natural, social e cósmico. O estudo de Luzimar Paulo Pereira nos mostra o papel central da comen- salidade nas Folias de Reis em Urucuia, Minas Gerais. Ressalta os momentos 13A Alma das Coisas das refeições coletivas da festa como etapas primordiais do sistema ritual para saudar os Santos Reis Magos. Através de uma descrição densa das etapas do “evento alimentar”, o analisa de modo inseparável de relações sociais e sim- bólicas estruturais da folia. Em especial, o autor destaca a “fartura de comida”, segundo os devotos, como um dos critérios fundamentais para o sucesso de uma festividade. Demonstra como a relação de dívida e dádiva estabelecida entre os foliões, imperadores e divindades obedece uma sequência ritual que não apenas demarca relações hierárquicas, mas constitui tais relações. O artigo de Ana Gabriela Morim de Lima nos oferece uma diferente pers- pectiva sobre os objetos etnográficos colecionados por museus. Propõe a análise do caso de um machado cerimonial, o Kajré, guardado no Museu Paulista, e que em 1986 foi reapropriado pela comunidade indígena Krahô. Além de descrever o processo político de “repatriamento” de tal objeto, a autora faz uma análise dos diferentes mitos de origem que possibilitam múl- tiplas ressignificações do mesmo objeto. A autora demonstra que tal objeto passa a ser “símbolo” também de identidade indígena perante a “sociedade de brancos” e recebe diversas ressignificações. Já o artigo de Clarisse Kubrusly analisa uma série de narrativas biográficas sobre a boneca Joventina, personagem importante dos maracatus do Recife. Nesse caso, tal objeto aparece como mediador de uma série de controvérsias entre o Museu do Homem do Nordeste, maracatus e a antropóloga Katarina Real. A autora explora as negociações de posse dessa boneca pelos maraca- tus e as diferentes narrativas sobre as origens e usos desse objeto. A partir da boneca Joventina e da experiência de Katarina Real com os maracatus, a autora ilumina diferentes imaginários sobre o que significa um objeto como este no museu. Aponta, assim, a característica fragmentada da biografia de tal objeto, que se mistura com as biografias de pessoas, grupos e instituições. Um outro ponto de vista é oferecido por Flora Moana van de Beuque em seu estudo de objetos utilizados no bumba meu boi do Maranhão, exploran- do a ideia da circulação de uma máscara: a “careta de cazumba”. A autora descreve e analisa de que forma tal máscara é classificada neste contexto festivo, focalizando as relações sociais e simbólicas envolvidas. Dentre tais relações, destaca o papel central de um artesão responsável pela confecção da careta de cazumba e de sua trajetória de vida. Assim, propõe o entendimento da máscara e de seu produtor inseridos também em outros contextos que não os festivos, como nos museus. Revela que, através do deslocamento do contexto da festa para o museus, esse objeto e o artesão ou “artista popular” são diferentemente classificados e ressignificados. 14 Apresentação O artigo de Anelise dos Santos Gutterres nos desloca para eventos co- tidianos. Explora como a biografia de uma casa pode nos levar a pensar as relações de parentesco e projetos de vida. A autora dialoga com duas in- terlocutoras da cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, que relatam as transformações de espaços a partir de suas histórias de vida. Através das nar- rativas de “mudanças de casa”, dos espaços da casa e de objetos guardados, aborda a visão de mundo constituída por suas interlocutoras. A autora ob- serva, assim, os esforços simbólicos de controlar a transformação, implícitos no ato de guardar ou não guardar objetos materiais ligados à vida familiar. Rio de Janeiro, verão de 2013 José Reginaldo Santos Gonçalves Roberta Sampaio Guimarães Nina Pinheiro Bitar Bibliografia APPADURAI, Arjun (org.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma pers- pectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008. BITAR, Nina Pinheiro. Agora que somos patrimônio: um estudo sobre as baianas de acarajé no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, 2010. _____. Baianas de Acarajé: comida e patrimônio no Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011. 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Pertencente ao clã dos Gau- tama e descendente de uma família da casta dos guerreiros, lá estava a figura de Sidarta, homem reconhecido por ter recebido, em vida, o título de Buda.2 1 Tive a oportunidade de apresentarversões preliminares deste artigo durante a 28. Reunião Brasileira de Antropologia, em grupo de trabalho coordenado pelos professores Renata de Castro Menezes e Ronaldo de Almeida, a quem agradeço pelos comentários e sugestões. Sou igualmente grato aos professores José Reginaldo Gonçalves, Marcia Contins, Edlaine de Campos Gomes e Roberta Sampaio Guimarães por suas considerações e críticas no marco do Seminário de Pesquisas Deslocamentos, espaços e patrimônios, organizado em agosto de 2011 na Unirio, onde apresentei um primeiro esboço deste trabalho. Foram também muito instigantes e profícuos os debates em torno deste tema com os colegas do Laboratório de Antropologia da Arquitetura e Espaços (Laares) do PPGSA da UFRJ. 2 Segundo a enciclopédia Eastern Definitions de religiões do Oriente, “Buda” é um título, assim como, por exemplo, o de “presidente”. Ele é dado, sob a perspectiva propriamente budista, às encarnações de um “arquétipo que se manifesta no mundo em diferentes períodos, através de personalidades diversas, cujas particularidades individuais não devem ser, de modo algum, levadas em consideração” (Rice, 1986, p. 76). O estudioso de religiões orientais Edward Rice comenta que discussões a respeito da existência histórica de Sidarta foram amplamente travadas pela historiografia moderna, apresentando razões suficientes para não ser mais colocada em questão. Os longos debates envolvendo as datas precisas de seu nascimento e morte, acrescenta Rice, perdem qualquer importância considerando-se que Sidarta teria, em vida, recebido o título de “Buda”. 20 Alberto Goyena Tratava-se, mais especificamente, de uma gravura – ou melhor, de uma reprodução ampliada de uma gravura do final do século XIX3 – em que o Buda é representado em rara posição corporal: em pé. Não havia, contudo, nesse centro parisiense de arte e cultura, como seria talvez de se esperar, nenhuma exposição propriamente dita da qual o cartaz fosse referência. Em outras palavras, não estavam aqueles pedestres, apenas e como de costume, diante de um instrumento museográfico de divulgação. Segundo relatado em nota do jornal francês Libération e na revista La Vie, a exposição desse cartaz na fachada principal do edifício fora uma demons- tração pública contra um episódio ocorrido algumas semanas antes, no vale de Bamiyan, no atual Afeganistão. Idealizada pelo presidente do Centro Ge- orges Pompidou e financiada pelo diretor da empresa Yves Saint-Laurent, a imagem em questão estava lá para ser vista, afirmou o periódico francês, como um “cartaz de manifestação política”. A imagem ficará dois meses exposta. É um gesto de protesto contra o fanatismo e o ódio às diferenças. Ele é também um sinal de esperança já que, apesar de destruídos, os budas de Bamiyan não deixarão de fazer parte do patrimônio imaterial da humanidade. (Cazenave, 2001, p. 9) Naquela manhã, as duas estátuas que dão propósito a este artigo acaba- vam de ser metralhadas, bombardeadas e dinamitadas, deixando à mostra apenas fragmentos e estilhaços em um nicho vazio. Com efeito, desde que o regime talibã assumiu o poder no Afeganistão, no final da década de 1990, um grande acervo material, incluindo duas estátuas do Buda esculpidas em um penhasco, foi alvo de investidas bélico-religiosas, primeiro verbais, logo concretas. Segundo líderes do governo talibã, esses objetos atentavam contra os preceitos islâmicos por serem peças de “idolatria”, devendo, assim, ser totalmente destruídos. “Como é que nós vamos nos justificar, na hora do úl- timo julgamento, por termos deixado essas impurezas em solo Afegão?” – foi com essa pergunta do ministro talibã da Informação que os grandes jornais internacionais tornaram públicas as supostas motivações do regime (cf. Le Monde, apud Pierre Centlivres, 2002, p. 75). 3 Embora seu autor seja desconhecido, essa gravura permaneceu muitas décadas guardada no acervo do Museu Britânico, em Londres. Acredita-se que a gravura tenha sido entalhada durante as missões artísticas financiadas pela coroa britânica no período histórico denominado The Great Game, quando os impérios Russo e Britânico disputavam a supremacia no que hoje é o Afeganistão (Rathje, 2004). 21A Alma das Coisas Em janeiro de 2001, quando a província separatista de Bamiyan foi reto- mada pela terceira vez, o líder do governo talibã, o mulá� Mohammed Omar, assinou um decreto que, além de formalizar as ameaças verbais, gerou mo- bilização de diversos meios de comunicação, organismos internacionais, go- vernos nacionais e instituições artísticas e culturais. Também na imprensa brasileira ressoaram as incriminações internacionais, e a decisão talibã foi noticiada como um “ultrajante gesto de vandalismo”, um exemplo de “fun- damentalismo que incentiva a intolerância religiosa”, até mesmo qualificada de “maluquice”.4 O atentado havia muito anunciado a essas estátuas, que nos anos 1970 haviam sido decretadas “patrimônio mundial da humanidade”5 ocorreu ao longo de mais de vinte dias, em março de 2001. O gesto iconoclasta, no entanto, não foi conduzido na surdina. Ao que tudo indica, não bastava dinamitar as estátuas de um dia para o outro e sem prévio aviso. Quis-se propagar a cena, assinar a obra e registrar a intervenção. E lá estiveram, para cumprir esse propósito, as câmeras da emissora televisiva Al Jazeera, cujas imagens logo seriam divulgadas em grandes canais internacionais. Pretendeu-se, como veremos, adotar uma postura de afronta. Mas contra quem? Que argumentos poderiam legitimar uma intervenção como essa? Se as estátuas sobreviveram a tantos diferentes regimes igualmente ico- noclastas, por que haveriam os talibãs de temer, mais que os outros, esse “julgamento final”? 4 Segundo a revista Época: “Na quinta-feira, ignorando protestos do mundo todo, os soldados começaram a destruir o que o Talibã classifica de “falsos deuses”. Os alvos constituem um acervo artístico de mais de dois mil anos, síntese de culturas do Oriente e do Ocidente. [...] Ao anunciar a campanha de demolição, o ministro da Informação do Talibã, Qudratullah Jamal, disse que as tropas agiam em vários locais, inclusive em Bamiyan e na capital afegã, Cabul. Até o fim da semana não havia informações sobre o total de monumentos pulverizados pelo vandalismo estatal (Vandalismo religioso, Época, 27/05/2010). Ver também: Dias, 2001; Taleban mantém ordem de destruir estátuas, Estadão. com, 05.03.2001; e Ramos, 2001. 5 Informação e documentação oficial a respeito da destruição das estátuas de Buda em Bamyan podem ser encontradas no artigo Cultural Landscape and Archaeological Remains of the Bamiyan Valley publicado no site da Convenção do Patrimônio Mundial, Unesco (Disponível em: http://whc.unesco.org/en/list/208/). 22 Alberto Goyena Figura 1.1. Nota publicada no jornal Libération, 2 de abril de 2001, p. 39 Das estátuas retiradas de seu pedestal Posto que se trata aqui de um esforço para qualificar uma demolição, notemos logo de início que o verbete demolitio do dicionário Félix Gaffiot (2000), traz uma definição para o verbo que se perdeu no uso corrente do português. Em latim, é apenas em seu sentido figurado que demolir é sinô- nimo de “destruir”, como aponta o verbete: “demolitio, onis, f. (demolior), 1. ação de descender uma estátua de seu pedestal, retirar do nicho. 2. [fig.] destruir, reverter”. Em sintonia com essa definição introdutória, o episódio que passo agora a comentar pode ser tido como uma demolição no sentido mais estrito da palavra. Será a partir desse caso que levantarei alguns questionamentos a respeito das relações entre “cultura material” e “transmissão de identidades coletivas”. Se é verdade que há hoje, como destaca Derek Gillman, “uma 23A Alma das Coisas larga aceitação de que é um dever passar as expressões materiais que nos vie- ram do passado para as gerações seguintes” (Gillman 2010, p. 16), veremos que, mediado por instituições nacionais e internacionais do patrimônio, esse “dever” pode colidirfrontalmente contra algumas sólidas barreiras culturais. Segundo foi possível acompanhar através de informações divulgadas nos meios de comunicação que noticiaram essa operação, a intervenção se iniciou com disparos oriundos de armamento antiaéreo. Como os danos causados às estátuas por esse instrumento não teriam sido suficientes para retirá-las de seu pedestal, na etapa seguinte os responsáveis empregaram uma nova estratégia. Alocaram minas antitanque na base das estátuas, a fim de que elas estivessem enfraquecidas quando chegasse o momento de metralhá-las novamente. Mas, de modo um tanto alegórico, podemos dizer, as estátuas se empenharam em resistir. Soldados especializados tiveram então de ser içados ao penhasco para instalar dinamite em diversos orifícios abertos nas pedras da construção escultórica.6 Por fim, ainda teria sido lançado contra as estátuas um míssil de alto calibre. Só então o mulá Mohamed Omar deu-se, por satisfeito. Em artigo que retomaremos mais adiante, o etnólogo Pierre Centlivres esclarece que a operação transcorreu em sintonia com os preceitos islâmicos para rituais sacrificais. Nesse sentido, acompanhou-se a demolição das está- tuas com um sacrifício expiatório envolvendo a degola de cem vacas através do país, cuja carne teria sido distribuída aos mais necessitados (Centlivres, 2001). Quando o duplo sacrifício foi dado por concluído (o das estátuas e o das vacas), o ministro talibã da Informação, Qudratullah Jamal, comentou a intervenção ao jornal Daily Times. Este trabalho de destruição não é tão simples quanto as pessoas po- dem acreditar. Não foi possível demolir essas estátuas derrubando-as ou escavando em seu relevo. Tivemos de empreender um trabalho custoso e complexo, já que as estátuas tinham sido entalhadas em uma falésia e estavam firmemente atreladas à montanha. (Hasan, 2006. Daily Times, 19 de março de 2006) 6 Na versão do jornalista afegão Farhad Peikar, o exercito teria contado com a “colaboração” dos habitantes locais: “Não foram apenas as estátuas que eles destruíram, mas todo o vilarejo, povoado pela minoria xiita hazara. Essa gente foi torturada. Os Talibãs não se deram por satisfeitos apenas em destruir os Budas, eles fizeram com que os moradores os ajudassem, mesmo contra a vontade. Eles tiveram de escalar as estátuas, pendurados em cordas, abrindo buracos na rocha para colocar dinamite. Quem não o fizesse, seria preso. [...] O povo de Bamiyan não se esquece dessas atrocidades e odeia os Talibãs (Peikar apud Carranca, Afeganistão dez anos sem os Budas de Bamiyan, 01/03/2011). 24 Alberto Goyena As impressões do ministro Jamal são deveras surpreendentes. Falam-nos das propriedades materiais das estátuas, de sua solidez e qualidade cons- trutiva, mas sob um prisma negativo. Para quem esperava algum pedido de desculpas, o registro no qual o ministro comentou a intervenção não terá parecido nada apropriado. Mas seu comentário chama a atenção para uma característica central das estátuas, quer seja, sua relação com outro objeto, uma sorte de “pedestal”. As estátuas do Buda estavam esculpidas e fundiam- -se, precisamente, com uma montanha que lhes dava suporte. De fato, se colocarmos o gesto iconoclasta em suspensão, abandonando, mesmo que provisoriamente, a necessidade de produzir um julgamento so- bre a demolição dos Budas de Bamiyan, será possível encontrar, nas diversas declarações a seu respeito, indicações sobre as particularidades materiais dos objetos em questão. Como veremos mais adiante, há certamente muito que aprender sobre as coisas ao incorporarmos – aos conhecimentos e interpre- tações de historiadores, arqueólogos e estudiosos das belas artes – as per- cepções e saberes daqueles que as demoliram. A demolição, assim como a construção e a restauração, tem mesmo seus vocabulários próprios e parece- -me central levá-los em consideração ao empreendermos um estudo sobre objetos. Como escreveu o antropólogo Tim Ingold, “o foco – na Antropolo- gia, Arqueologia e nos estudos sobre cultura material – tendeu a privilegiar a materialidade dos objetos em detrimento dos materiais e suas propriedades” (Ingold, 2011, p. 15). Aprenderíamos também sobre as coisas, postula o antropólogo, se tratássemos mais [...] diretamente dos materiais, acompanhando-os em seus desloca- mentos, em suas fusões com outros objetos e em seus processos de solidificação e dissolução. Processos esses que constituem a formação de coisas mais ou menos duráveis. (Ingold, 2011, p. 16) Antes de prosseguir, voltemos ao cartaz na Praça Beaubourg para perce- ber uma contradição central. Quero dizer com isso que, para além da decisão do regime talibã e da indignação dos diretores do Centro Pompidou, havia um problema muito anterior envolvendo a escolha do pedestal apropriado para as estátuas quando de sua construção. Notemos, pois, a volumosa cascata de imagens e materiais que pesavam so- bre aquele cartaz: na matéria de jornal reproduzida acima foi impressa uma fotografia contendo a imagem de um cartaz que era, por sua vez, a ampliação de uma das cópias de uma gravura. Vimos que se tratava de uma gravura do século XIX, onde um gravurista havia tido por modelo uma estátua esculpi- 25A Alma das Coisas da em um relevo calcário. Desdobrando mais uma etapa, lembremos que a estátua representava uma das encarnações de um “arquétipo”. Quão irônico ou paradoxal não será mesmo perceber que esse homem, essa encarnação do Buda – reproduzida em pedra, madeira, lâmina de cartaz e em papel de jornal – proferiu, como escrito no Digha Nikaya,7 a seguinte recomendação sagrada a seus fiéis: “Apenas nos cintilantes reflexos sobre a água quero eu ver a minha imagem reproduzida”.8 Da chegada dos Budas ao Afeganistão Segundo Deborah Klimburg-Salter (2011), historiadora da arte asiática, uma série de estátuas do Buda foi entalhada durante a dinastia Tang da Chi- na, no século VI d.C., nas falésias de arenito que circundam Bamiyan, cidade localizada no centro de um vale que separa as cadeias montanhosas do Hin- dukush e do Kuh-i-Baba. Durante esse período, a China havia logrado a reunificação entre os ter- ritórios do norte e do sul, atingindo a maior expansão territorial de sua his- tória e chegando até o Mar Cáspio, na Ásia Central. A cidade de Bamiyan, situada a cerca de três mil metros acima do nível do mar, foi fundada em um vale por onde passava a lendária Rota da Seda. Bamiyan era um lugar de pou- so para comerciantes, viajantes e peregrinos que transitavam entre a China e o Império Romano. Durante cinco séculos, foi importante referência para o budismo, sendo eleita por seus monges um dos mais importantes centros de oração e práticas cerimoniais da cultura budista pancontinental. As numero- sas cavernas e aberturas naturais no penhasco teriam servido, escreve ainda a historiadora, de hospedaria para forasteiros, de esconderijo para infratores, de depósito de mercadorias e mesmo de cômodos para os monges da região9 (Klimburg-Salter, 2011). 7 O Digha Nikaya é uma das escrituras budistas e quer dizer “coleção dos longos discursos” (Rice, Eastern Definitions). 8 A questão da reprodutibilidade da imagem do Buda é assunto longamente discutido. Segundo o arqueólogo W. L. Rathje (2004), imagens do Buda só foram feitas quatrocentos anos depois da morte de Sidarta Gautama. Ainda assim, diz ele, as imagens eram criadas apenas para relembrar aos seguidores sua própria natureza budista inata. 9 Segundo Rathje (2004), algumas dessas cavernas estão ocupadas hoje por refugiados da guerra no Afeganistão. No artigo de Centlivres (2002), diz-se que guardavam armas, serviam de depósito para várias coisas, moradia e esconderijo. 26 Alberto Goyena Peregrinos chineses, como o celebrado monge Xuan-Zang – relata Derek Gillman (2010), historiador de arte especializado em estudos chineses –, deslocavam-se até Bamiyan para meditar diante dessas estátuas colossais que chegavam a medir em torno de 60 metros de altura. Muito emboraa data precisa de sua construção seja desconhecida e alvo de disputas, Xuan- -Zang é apontado como um dos primeiros a testemunhar, por escrito e no século VII d.C., a existência de tais obras, que observou quando se dirigiu à região em busca de cópias dos Sutras originais do ensinamento budista, perdidos na China. Figura 1.2. Ilustração mostrando a aparência dos Budas de Bamiyan no final do século X. As partes avariadas em períodos posteriores foram aqui ressaltadas em azul. Ilustração: Anna Thereza Menezes 27A Alma das Coisas Gillman relata também que essas representações escultóricas do Buda haviam sido concebidas e entalhadas sem rosto e sem mãos. Diferentemente do que se pensava quando as estátuas se tornaram alvo do interesse da Or- ganização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unes- co) – o que resultou em seu tombamento oficial –, para Gillman, as estátuas de Bamiyan não foram desfiguradas nem “amputadas” por terceiros, poste- riormente a seu entalhe. “Essas estátuas foram pensadas assim”, sustenta o autor. O que, contudo, não significa que os Budas não tivessem expressão facial e gestual. Seguindo uma periodicidade ritual, monges budistas confec- cionavam máscaras e luvas de cobre, que forjavam e dispunham nas secções do rosto e das mãos das estátuas (Gillman, 2010, p. 19). Atribuíam assim, ao Buda, feições e gestos diferenciados em função de calendários e precei- tos próprios. Às estátuas, por sua vez, imprimiam uma destacada ilusão de movimento e transformação, o que remetia justamente à ideia de imagem refletida no curso das águas. Contornado desse modo o problema de sua representação, um Buda que surge já desfigurado parece mesmo pôr em xe- que qualquer tentativa de demolição: o gesto iconoclasta já havia sido, pois, incorporado em sua própria construção. Seu entalhe, comenta o arqueólogo americano William Rathje, fora alta- mente custoso para a época, estando muito acima dos padrões escultóricos da região. Podendo ser vistas a quilômetros de distância, reluzindo os raios solares no cobre de suas máscaras e luvas, mediam precisamente 37 e 55 metros de altura. O maior dos Budas, que teria portado tecidos vermelhos, representaria Vairocana (ou “luz que brilha através do universo”) e o menor, de vestes bran- cas, representaria o próprio Sidarta. Segundo esse arqueólogo, as estátuas eram ainda símbolos centrais para o budismo mahayana, que enfatizava a habilidade de todos, e não apenas dos monges, de alcançar a iluminação (Rathje, 2004). A opinião de Gillman e Rathje não é, contudo, aceita por todos os arque- ólogos voltados para pesquisas nessa região. Para Finbarr Flood, professor de belas artes na Universidade de Nova York e especialista em iconoclasmo islâmico,10 é igualmente possível que as estátuas tenham sido desfiguradas 10 É importante frisar o contexto político em que Barry Flood escreveu seu artigo. Publicado em 2002, logo após os atentados contra as torres gêmeas e no contexto de ondas de anti-islamismo, o autor enfatiza a importância de perceber essa ação como tendo sido conduzida por certos atores em determinados contextos históricos. Em resposta à percepção difundida em jornais e colunas de opinião americanas, Flood busca comparar esse momento a outros momentos iconoclastas. Nesse sentido “a concepção de uma resposta monolítica ou patologicamente muçulmana à imagem deve ser substituída por uma que leve em consideração os diferentes modos de práticas culturais e suas variações” (Flood, 2002). 28 Alberto Goyena ou mutiladas por ordem de uma linhagem específica de sultões medievais. Flood explica que durante os governos dos seguidores de Mahmud al-Ghazni, uma série de imagens foi alvo dos mais variados tipos de iconoclasmo (Flood, 2002). Figura 1.3. Ilustração do Vale de Bamiyan com os nichos esculpidos para as estátuas do Buda. Ilustração: Anna Thereza Menezes Embora não chegue a negar a possibilidade de que os budas tenham sido representados já sem rosto nas falésias da cadeia montanhosa, Barry Flood pondera que a prática do desfiguramento era muito comum no século XII, sendo realizada por iconoclastas muçulmanos, mas também por cristãos e judeus. Especialista em formas, técnicas e práticas medievais de “neutra- lização” de imagens, os estudos desse pesquisador nos despertam para a grande complexidade material presente em ações desse gênero. Não se pode, escreve Flood, considerar todas as demolições por igual. Há, historicamen- te, quem tenha quebrado o nariz de uma estátua para que ela não pudesse respirar; quem tenha furado seus olhos com uma faca para que o objeto não pudesse ver; quem tenha traçado uma linha preta sobre o pescoço das imagens figurativas para indicar que não estavam animadas; ou quem tenha arrancado seus dedos com alicates para infligir alguma punição nesse tipo de representações figurativas. Investigar as técnicas que determinados povos empregaram para demolir imagens é, paralelamente, perceber algo a respeito dos modos através dos 29A Alma das Coisas quais essas pessoas interagiram com tais objetos. Nas suas técnicas de de- molição, o demolidor se comunica com um objeto e suas formas. Analisar as particularidades dessa interação é ler o modo segundo o qual um determi- nado grupo concebeu aquilo que um objeto “é” ou aquilo que poderia “estar fazendo”. Cada uma dessas empreitadas se insere em contextos cosmológi- cos diferenciados, apresentando importantes correlações com as ferramen- tas e regras presentes nos rituais e intervenções aplicados também sobre os corpos das pessoas. Enterros, julgamentos, nascimentos ou casamentos são marcados assim não só por transformações em corpos, mas também em objetos. Nos países e épocas em que se arrancavam, com alicates oficiais, as mãos ou dedos de infratores, encontrar uma estátua assim mutilada não é, pois, um dado menor. Da ocupação islâmica Com a chegada e o estabelecimento de tribos islâmicas no Afeganistão no início do século XI, as fronteiras chinesas na Ásia Central recuaram para o oriente, as rotas comerciais e os sistemas tributários foram remanejados e os monges budistas, forçados a deixar o vale de Bamiyan. Embora a confecção periódica de máscara e luvas para as estátuas tenha sido doravante abando- nada, as estátuas em si não foram percebidas como uma grande ameaça para o vitorioso sultão Mahmud al-Ghazni. Ele teria, inclusive, encomendado ao sábio muçulmano medieval al-Biruni um tratado sobre elas. Com o crescente avanço do islã no oriente, era importante para o sultão conhecer bem as prá- ticas culturais dos povos da Índia e China. Aos olhos de Mahmud al-Ghazni, estudar a relação desses povos com seus objetos era uma estratégia de guer- ra. Para conquistá-los, era central saber, em sua percepção, como “neutra- lizar” suas linga (do árabe, “estátuas que incorporam divindades”) (Flood, 2002). Preservar os budas era assim, para o sultão, duplamente importante. Se por um lado as estátuas eram vistas como “armas”, por outro eram tam- bém troféus de guerra, “reféns” exibidos em plena rota da seda (Flood, 2002; Klimburg-Salter, 2011). Não obstante, mesmo que o sultão al-Ghazni não tenha ordenado a de- molição das estátuas sagradas, ele era, sim, escreve Barry Flood, um reco- nhecido iconoclasta. Transformou templos budistas em mesquitas e palácios por meio da decapitação ou recontextualização de todas as figuras humanas e animais presentes. Conta-se também que, em vez de desperdiçar esforços 30 Alberto Goyena de destruição, ele teria arquitetado estratégias de negociação de peças figu- rativas com mercadores europeus, asiáticos e até mesmo com comerciantes muçulmanos que, de diversos modos, puderam fazer uso de seus materiais. A partir de certo momento, contudo, sua relação teria começado a levantar suspeitas e, escreve Flood, o sultão teria passado a ganhar a injuriosa fama de “negociador de imagens”. Foi necessário fazer prova do contrário. Em 1025 Mahmud al-Ghazni invadiu a cidade deSomnath [no Pa- quistão] e saqueou seus principais templos. Segundo contam algu- mas lendas, os monges brâmanes ofereceram generosas quantias como pagamento pelo resgate das estátuas do templo. Mahmud recu- sou a oferta, repudiando a visão popular de que ele era um negociador de imagens [image broker] e afirmando-se como um negador de imagens [image breaker]. (Flood, 2002) Segundo as pesquisas do arqueólogo, na prática, conquanto não ocupas- sem os recintos sagrados de casas e palácios, as estátuas figurativas pré- -islâmicas foram, sim, empregadas na ornamentação de exteriores, jardins ou áreas ditas impuras, como os salões de exposição de relíquias de guerra. Existe até uma categoria árabe de classificação de objetos, a ruh, que descreve um objeto “neutralizado” ou cuja alma fora retirada em função da disposição na qual o objeto é apresentado. Colocados de cabeça para baixo, no chão sem tapete ou de acordo com uma composição expositiva que denotasse claramente sua condição de estátua despida de poderes (estátua pisoteada), os objetos da iconografia pré-islâmica encontrados pelos muçulmanos em Bamiyan quan- do de sua ocupação continuaram a encher, ainda segundo o arqueólogo Barry Flood, os novos palácios públicos e privados de vários sultanatos. De fato, até mesmo os tecidos com motivos figurativos encontrados pelos muçulmanos em Bamiyan foram transformados em ruh, mediante seu corte e recostura. Ser- viram assim de almofada de chão ou tapete de áreas impuras das residências islâmicas. Recontextualizados, os objetos impuros puderam assim se infiltrar, de formas lícitas e ilícitas, na cultura pós-budista de Bamiyan. Um investimento considerável de energia e de recursos se fez presen- te tanto na destruição de templos budistas e hinduístas quanto em sua conversão em mesquitas, reutilizando os elementos arquitetôni- cos dos primeiros. Nesse sentido, os determinantes do iconoclasmo não são apenas políticos ou religiosos, mas também econômicos. O processo iconoclasta podia ser, no contexto islâmico medieval, alta- mente demorado, calculado e burocratizado. (Flood, 2002) 31A Alma das Coisas Ao menos do ponto de vista de suas práticas sociais, notamos que os iconoclastas muçulmanos da linhagem de Mahmud al-Ghazni não eram nem tão avessos à iconofilia nem tão iconofóbicos assim. Em outras palavras, com graus variantes de receio, colecionavam imagens figurativas eles também. Tudo dependia de uma questão de contextos, do espaço preciso em que se situ- avam segundo as categorias classificatórias nativas. Já do ponto de vista teoló- gico, as prescrições dos religiosos eram, realmente, mais rígidas. Ainda assim, como escreve o antropólogo Jean-François Clément – pesquisador das socieda- des magrebinas – os quatro califas pelos sunitas considerados os companheiros do profeta, muito embora condenassem a criação de imagens de Deus, respei- tavam aquilo que denominavam pela categoria “tesouro do passado”. Em seu artigo “The Empty Niche of the Bamiyan Buddha”, Clément (2002) destaca que a teologia muçulmana fora sempre, de forma geral, crítica a repre- sentações humanas de divindades, por percebê-las como rivais de Deus. Em diversas passagens dos Hadiths (palavras dos profetas), diz ele, vê-se a figura divina desafiando os humanos criadores de formas a soprar uma alma em suas criações. O pesquisador pondera, contudo, que são apenas algumas linhagens mais radicais na sucessão de sultões que veem, em sua leitura dos Hadiths, uma necessidade concreta de promover empreitadas destrutivas. Historica- mente, sunitas e xiitas circunscreveram a questão iconoclasta aos atos de criar e adorar. Os objetos e as imagens em si foram percebidos, ao longo dos diversos sultanatos, como meros “tesouros antigos” ou coisas de outros povos – “certa- mente ignorantes” – que valia mais não provocar em demasia... Afirma o autor: As teologias muçulmanas muito raramente mostraram interesse nas imagens como tais durante o seu desenvolvimento. Em contraparti- da, comentaram extensivamente sobre a situação daqueles que são enfrentados a imagens. Ao longo de sua história, eles questionaram o observador e não o objeto em si. (Clément, 2002) Recapitulando alguns argumentos levantados até aqui, percebemos que, ao tratar da demolição de estátuas, tanto o “pedestal” quanto o “lugar pre- ciso” e “contexto social” em que uma estátua se encontra são fatores indis- pensáveis a levar em consideração. A ação de demolir não deve, pois, ser re- duzida apenas a um mero “destruir”. Trata-se recorrentemente de uma nova disposição, em outro pedestal, de outro modo. Aprofundar-se na gramática da demolição e salientar suas nuanças e complexidades é compreender que, mais que destruir, demolir pode e deve ser entendido como um ato de “de- moção”, deslocamento ou recontextualização em dado espaço regrado. 32 Alberto Goyena O gesto iconoclasta supõe assim uma série de conhecimentos sobre os objetos – mediados por regras e práticas sociais – que vão de seu valor de troca a seu valor de uso e, poderíamos agregar, de seu valor estratégico bélico a seu valor expositivo. Como “objeto-refém”, “objeto neutralizado”, “objeto do passado” ou “objeto pisoteado” (ruh ou linga), as recontextualizações são também formas de destruição. Com essas considerações em mente, volte- mos para o mês de março de 2001. Estratégias teológicas e narrativas políticas A presença das estátuas no Afeganistão era vista pelos talibãs como uma impureza. Mas não só isso, era uma impureza da qual o regime deveria se livrar. Desse modo, passados mais de oito séculos desde a primeira ocupação islâmica, e após uma guerra civil que resultou na tomada do poder pelo regi- me talibã, seu líder, o mulá Mohammed Omar, assinou, em 26 de fevereiro de 2001, um decreto ordenando a eliminação de toda iconografia e arquitetura não islâmica em solo afegão, evento noticiado em manchete do jornal francês Le Monde no início de março daquele ano. Observemos o texto do decreto: Em virtude da fatwa de estudiosos afegãos proeminentes e do veredic- to da Suprema Corte Afegã, foi decidido destruir todas as estátuas/ ídolos presentes nas diferentes partes do país. Isso porque esses ído- los foram deuses dos infiéis, que os adoraram, e esses são respeitados até hoje e talvez possam se tornar deuses novamente. O verdadeiro Deus é somente Alá, e todos os outros falsos deuses devem ser removidos. (Flood, 2002, grifos nossos) Fazendo eco ao conceito cunhado por Bruno Latour de iconoclash, Jean- -François Clément e Pierre Centlivres comentam o documento sinalizando um paradoxo. Ao postular a ameaça de que os “deuses poderão voltar”, os talibãs estariam fazendo prova de fé, como se acreditassem, eles também, em algum “poder” proveniente dessas estátuas. Se, como declarou Qudra- tullah Jamal para justificar o gesto, as estátuas “não são grande coisa: são apenas objetos feitos de barro e pedra” (Bearak, 2001), perguntam-se os pesquisadores, por que “temê-las?” Quem é, no fim das contas, o “verdadei- ro” iconoclasta? Aquele que “destrói”, aquele que “negocia” ou aquele que “nega”, logo de início, o pressuposto segundo o qual os objetos podem estar “animados”? Talvez, ao se empenhar em destruir os budas, os talibãs se co- locam, ainda que o neguem, do lado daqueles que creem na possibilidade de 33A Alma das Coisas que os objetos sejam coisas vivas. E isso não parece estar em sintonia com os sagrados preceitos. Menos de dez dias depois da divulgação do decreto do mulá Omar, a Unesco enviou uma delegação de diplomatas para o Afeganistão.11 Um dos documentos centrais no conjunto de escritos sobre o caso das estátuas de Bamiyan é o relatório do embaixador francês Pierre Lafrance, publicado na revista Critique Internationale (2001). Diplomado nas línguas árabe e persa, o embaixador atuou em importantes negociações na região e serviu em vários países muçulmanos, incluindo o Paquistão, o Irã e o próprio Afeganistão, no período de 1973 a 1975. Seu papelna querela sobre os budas foi de fato destacado. Em março de 2001, ele foi o emissário escolhido pela Unesco para a missão diplomática que tentaria salvar as estátuas. Nas oito páginas do documento, Lafrance narra os bastidores de uma complexa teia de argumentações e personagens que resultou no fracasso da missão. De alguma maneira, o relatório é um pedido de desculpas. Mas a quem? Quem era o “proprietário” das estátuas? O diplomata abre o texto declarando que a decisão do regime fora recebi- da com grande surpresa. Embora houvesse comentários de que Cabul estaria enrijecendo suas interpretações do Corão, o regime “parecia saber que as estátuas já não eram, há quase um milênio, mais do que vestígios arqueoló- gicos” (Lafrance, 2001). O embaixador explica também que o regime havia, até pouco antes de iniciar o processo de demolição, “anunciado seu interesse pelo patrimônio histórico de seu país e dado prova disso” (Lafrance, 2001), já que os museus de Cabul permaneceram abertos ao longo dos anos de 1999 e 2000. Motivos ligados à política das relações internacionais, afirma o diplomata, teriam disparado a engrenagem que resultou no que chamou de “une catastrophe!”. Em outras palavras, o embaixador acredita que as razões centrais devam ser extraídas – e esse é justamente seu “campo” – das rela- 11 O Embaixador francês da Unesco não foi o único diplomata a sentar com líderes talibãs para tratar das estátuas. Também autoridades chinesas, japonesas, indianas, tailandesas e cingalesas se empenharam na sua preservação. Considerando que os budas eram “seus”, propuseram ainda algumas soluções que mencionaremos rapidamente. Uma delegação de parlamentares japoneses, por exemplo, ofereceu ajuda humanitária e compensações financeiras. Representantes da Tailândia e do Sri Lanka propuseram que os budas fossem cobertos com cimento e areia. O material e a mão de obra seriam, até, enviados por esses países. Os budas ficariam assim cobertos por um “véu de cimento” na esperança de que, passada a soberania do regime talibã no Afeganistão, se pudesse retirar o emplastro. Da China, teriam vindo ainda ofertas de compra e translado das estátuas, com a retirada de “pedra por pedra”, que seriam posteriormente reencaixadas em lugar a ser definido. Falharam também essas missões. Talvez o mulá Omar não quisesse mesmo ser associado a um “negociador” de imagens. 34 Alberto Goyena ções do Afeganistão com a Organização das Nações Unidas (ONU) e com a Organização das Conferências Islâmicas (OCI).12 No dia primeiro de março de 2001, Lafrance foi enviado primeiramen- te ao Paquistão no intuito de tentar conversar com pessoas que pudessem exercer influência sobre os autores do decreto talibã. O Paquistão alberga uma das sedes do Conselho de ulemás (teólogos muçulmanos especializados em leis e religião), instância hierarquicamente superior ao título de mulá. Segundo Lafrance, os ulemás teriam dado seu inteiro apoio à causa do diplo- mata, justificando a postura talibã sob um prisma teológico: acreditavam que toda a questão girava em torno da interpretação que o regime talibã fazia da Charia,13 especificamente no mandamento que regula a proibição da adora- ção. Apontavam então para uma antiga divergência entre sultanatos mais ou menos ligados aos preceitos do anteriormente citado sultão Mahmud al- -Ghazni. Por outro lado, mostraram-se preocupados com as retaliações que a demolição dos budas poderia instigar nos países orientais de minorias islâmi- cas. Há séculos, de fato, budistas – e sobretudo hinduístas – se veem em uma histórica vendetta com muçulmanos, em que mesquitas são destruídas para vingar saques feitos em templos, que por sua vez teriam sido impulsionados por depredações em mesquitas... (Flood, 2002). Percebido assim, em maior extensão histórica, o “episódio” de Bamiyan começa a ganhar contornos que o tornam menos arbitrário do que se poderia imaginar. Seria pois a demo- lição conduzida pelos Talibãs uma resposta a alguma mesquita vandalizada na Índia? Casos não faltariam, ao menos para justificar uma empreitada tal. Por outra parte, segundos os ulemás do Paquistão, o poder político e reli- gioso do regime talibã sobre o Afeganistão começava a escapar de seu con- 12 Em dezembro daquele ano de 2000, ele relembra, o Conselho de Segurança da ONU negou plenos direitos ao regime talibã e não lhe permitiu que ocupasse a cadeira do Afeganistão na Assembleia Geral da ONU. Embora o regime controlasse mais de 90% do território nacional afegão, quem estava naquele lugar, na cadeira do Conselho de Segurança, ainda era o presidente deposto pelos talibãs, Burhanuddin Rabbani. Com o intuito de reverter a opinião internacional a seu respeito, semanas antes da efetiva demolição, o regime talibã havia mandado um emissário a Paris para tratar da questão. Relata Lafrance: “O ministro da Saúde Afegão veio a Paris pedir para que a condição do talibã fosse normalizada. Eu mesmo o recebi. Ele afirmou que o regime tinha interesses pacíficos e sublinhou a importância da ajuda às populações nos campos de refugiados. Falou também dos interesses do regime pela proteção do patrimônio afegão e insistiu em que a extradição de Osama Bin Laden fosse tratada como questão sui generis, devendo ser discutida independentemente das outras. [...] Como imaginar que eles tomariam uma iniciativa que iria declaradamente tão de encontro à opinião pública, já que, aparentemente, esforçavam-se bastante para saná-la? (Lafrance, 2001) 13 O código de leis do islamismo. 35A Alma das Coisas trole e os talibãs estariam supondo que uma afronta dessas dimensões traria a força necessária para renovar-lhes a legitimidade política. Dito de outro modo, um tanto jocosamente, é como se os ulemás estivessem acusando o líder talibã de querer ser mais muçulmano que os muçulmanos. Como podemos supor, o embaixador foi mandado para essa missão porque a demolição em questão era, da perspectiva da Unesco, uma agressão a “seu” patrimônio da humanidade e não, ou não apenas, uma afronta à legitimidade político-religiosa dos ulemás paquistaneses. Ainda assim, Lafrance preferiu, talvez para que não houvesse mal-entendidos entre ele e o regime talibã, ar- quitetar uma estratégia política de negociação que recorresse aos argumentos teológicos. A Unesco e o Embaixador apostaram então no poder de influência desse corpo de sábios muçulmanos sobre o mulá Omar. Logo após o encontro de Islamabad com os líderes religiosos paquistaneses, Lafrance declarou estar convencido da estratégia diplomática que empregaria na escala seguinte da- quela viagem, Candaar. Era preciso chegar ao Afeganistão, escreveu, com bons argumentos teológicos para impedir o “massacre” das estátuas. Quando chegou a Candaar, cidade afegã situada a mais de quatrocentos quilômetros de Bamiyan, para o esperado encontro com o mulá Mohammed Omar, Lafrance fora informado de que o mulá não estava mais recebendo delegações de não muçulmanos e que só excepcionalmente se reuniria com muçulmanos de nacionalidade outra que não a afegã. Assim sendo, a nego- ciação teve de ser travada com o ministro de Relações Exteriores do regime, que transmitiria o ponto de vista de Mohamed Omar e colheria, do diploma- ta, as proposições da Unesco. Como planejado, os representantes versaram argumentos teológicos, ou melhor, debateram a respeito da procedência, ou não, da demolição das estátuas segundo os sagrados preceitos islâmicos. Eis aqui, segundo relatado pelo próprio embaixador, uma síntese dos argumen- tos apresentados por ele na recepção de Candaar: 1. O budismo é, justamente, o contrário de uma idolatria. As estátuas, em si mesmas, não são objetos de culto, mas apenas uma recordação da virtude de um ensinamento, de uma lei, de um saber; qualificá-las como ídolos seria insultar o budismo; 2. Os vestígios do Afeganistão antigo se tornaram puros objetos de pesquisa científica. É contrário aos preceitos islâmicos entravar o tra- balho dos sábios de todas as disciplinas;3. Os dirigentes mais consagrados do mundo muçulmano respeita- ram, desde a fundação do Islã, esses vestígios; 36 Alberto Goyena 4. Os vestígios foram sempre considerados uma Ibra – em árabe, uma lição de fé para os fiéis. O papel das Ibras é benéfico para a tradição islâmica. (Lafrance, 2001) “Meu interlocutor”, escreveu ainda o diplomata, “esforçou-se para res- ponder a essas considerações, ponto por ponto”. Contudo, diz ele, o minis- tro talibã se evadia as discussões teológicas e buscava enfatizar argumentos “humanitários”, insistindo, pois, em que já não havia mais budistas no país e que, do contrário, as estátuas seriam preservadas, posto que “há que se per- mitir o exercício da fé de outrem... e quanto à leitura da Charia, o Afeganis- tão tem seu próprio corpo de sábios e o assunto será tratado internamente” (Lafrance, 2001). Enquanto o embaixador buscava levar o tom da discussão para argumentos teológicos, o ministro talibã insistia em uma justificativa que passava pela sua visão sobre o que seriam valores “democráticos e de representação”. Dois dias depois desse encontro, para “alívio” da Unesco, o xeique egíp- cio Youssouf Al Qardhaoui, membro e líder do Conselho de Ulemás, anun- ciou a esperada posição final da Organização da Conferência Islâmica sobre o assunto: contrária à demolição. Se a missão diplomática parecia dar sinais de grande êxito, uma inesperada reviravolta ainda estava por vir. Colocando-se no lugar de mais sábio e mais piedoso do que os com- panheiros do profeta, e dos califas bem dirigidos que haviam respeita- do os vestígios históricos, os talibãs estão manifestando orgulho ím- par [...] Essa vontade destrutiva é contrária aos princípios da Charia. (Lafrance, 2001, grifos nossos) Da perspectiva local: os hazara Na leitura do etnólogo Pierre Centlivres (2002), os emissários da Unesco trataram com o regime talibã a partir de uma perspectiva demasiadamente clerical. Nesse sentido, é como se tivessem embarcado em uma duvidosa necessidade de fazer compreender aos talibãs as distinções, tanto práticas quanto teóricas, entre “idolatria” e “exemplaridade”, “ídolo” e “ícone”, “ad- miração” e “culto”. Por outra parte, o etnólogo sublinha a importância de considerar a opi- nião dos habitantes do vale, os hazara. O autor relata que, entre os habitantes locais, não se sabia ao certo o que ou quem, no fim das contas, as estátuas 37A Alma das Coisas representavam. Pensava-se, adianta Centlivres, que eram as figuras de um homem e de uma mulher, provindas de antigas lendas muçulmanas. A ideia segundo a qual os budas são diferenciados sexualmente existe há muito na tradição afegã. Os viajantes europeus do século XIX já havia notado que, para a população local, uma das duas estátuas apresentava atributos femininos. Os habitantes de Bamiyan de fato afirmaram que os budas formavam um casal; o mais alto sendo um homem e o outro uma mulher, chamados por vezes de Lât e Manât. (Centlivres, 2008) Convivendo há séculos com esses objetos, existem certamente entre os povos hazara importantes vozes a incluir ao debate. Em artigo que dedicou à querela sobre os budas de Bamiyan, o arqueólogo William Rathje nos traz outro dado sobre a maneira como esses povos se apropriaram, historica- mente, das estátuas. Segundo afirma, expedições arqueológicas conduzidas na região, já em meados do século XIX, tinham identificado a presença de pedras extraídas das estátuas do Buda nas habitações locais. Estreitamente relacionados com suas casas, Lât e Manât – e não os budas Vairocana e Sidarta – eram importantes símbolos da identidade hazara. Além do mais, acrescenta o arqueólogo, não se pode esquecer que, na época, Bamiyan era uma base de oposição ao regime talibã. O presidente deposto do Afeganistão, Burhanu- ddin Rabbani, era justamente considerado o principal líder hazara. É mesmo razoável supor que, após tantos anos de convívio com essas estátuas colossais às portas de suas casas, os hazara tenham incorporado, de um modo ou de outro, tais imagens à iconografia local, atribuindo-lhes novos sentidos e significados. Como pude comprovar, ao ler os documentos e registros da Unesco sobre o tombamento das estátuas,14 há reproduções do Buda em selos e cartões-postais afegãos desde antes dos anos 1950. As estátuas estavam mesmo presentes no imaginário local como símbolos polí- ticos do país – não só regionais, mas também nacionais. Selos comemorati- vos atestam igualmente a importância internacional que as estátuas ocupa- vam nos roteiros oficiais veiculados pela Organização Mundial do Turismo (OMT). Assim posicionado no mapa dos grandes sítios históricos mundiais a se visitar, o vale de Bamiyan gerava mais do que importantes recursos co- merciais para os hazara. 14 Informação e documentação oficial a respeito da destruição das estátuas de Buda em Bamyan podem ser encontradas no artigo Cultural Landscape and Archaeological Remains of the Bamiyan Valley publicado no site da Convenção do Patrimônio Mundial, Unesco (Disponível em http://whc.unesco.org/ en/list/208/). 38 Alberto Goyena Nesse sentido podemos entender a demolição de outro modo, como for- ma de humilhar – não os budistas, não os ulemás, não a Unesco, mas os povos hazara, para quem as estátuas eram símbolos de identidade reivindicados por forças rebeldes para o estabelecimento de um sonhado Hazaristão. A impor- tância de objetos tidos como símbolos de identidade é, de fato, questão mui- to presente em estudos sobre o estabelecimento da ideia de nação a partir de objetos tornados “patrimônios”. As narrativas nacionais sobre o patrimônio cultural estão estrutu- ralmente articuladas por essa oposição entre transitoriedade e per- manência, sendo que as práticas de resgate, restauração e preserva- ção incidem sobre objetos que podem ser pensados como análogos a ruínas, quando não se constituem literalmente em ruínas. Como tais, esses objetos estão sempre em processo de desaparecimento, ao mesmo tempo que provocando uma permanente reconstrução. Esse interminável jogo entre desaparecimento e construção é que move as narrativas nacionais sobre patrimônio cultural em sua busca por autenticidade e redenção. (Gonçalves, 2002, p. 28) Percebemos então que, dinamitando as estátuas, os talibãs cortavam im- portantes receitas para o Hazaristão vindas da indústria do turismo, mas que também mostravam sua força simbólica e presença na região, e ainda, quase colateralmente, obrigavam a ONU – que por mais de um ano negara os pe- didos de ajuda aos refugiados no país – a rever suas posições humanitárias na região. Não me parece razoável que o Japão tenha enviado uma delegação de parlamentares para oferecer ajuda humanitária em troca do translado das estátuas para outro país. Como bem escreveu o jornalista He- bah Abdalla no dia 2 de março: “Não houve espanto internacional ou acusações de ultraje quando oficiais das Nações Unidas anunciaram que mais de 260 pessoas haviam morrido em campos de refugiados no norte do Afeganistão, onde mais de 110 mil pessoas vivem em condições de miséria. Talvez o único consolo em tudo isso é que esses refugiados nunca saberão o quanto o mundo se preocupou por duas estátuas e o quão pouco se interessou por eles. (Rathje, 2004) Se é verdade que havia hazaras em campos de refugiados, também havia aqueles que, exilados na Europa, apoiaram as iniciativas de instituições mu- seológicas suíças para a criação de um Museu do Afeganistão no Exílio, na cidade de Bubendorf. Em tramitação desde muito antes do decreto do mulá 39A Alma das Coisas Omar, essa proposta se desmanchou por obra de mais uma ironia desse caso. A proposta para um museu no exílio colidia, justamente, contra a Convenção de 1970 da Unesco que versa sobre a importância de manter o objeto patri- monial em seu “contexto original”. Como explica Derek Gillman, inúmeras disputas – como as que envolveram organizações patrimoniais da Grécia e o Museu Britânico no caso dos mármores do Parthenon – teriam
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