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Pedro Santos PANCREATITE AGUDA Etiologia Conceitualmente, pancreatite aguda é a inflamação aguda do parênquima pancreático de natureza química, resultante da autodigestão enzimática pela ativação intraglandular de suas próprias enzimas. Podemos classificá-la, de acordo com a gravidade, em leve ou grave (formas denominadas antes como edematosa/intersticial ou necrosante/necro-hemorrágica). A principal causa de pancreatite está associada à litíase biliar. Cerca de 70 a 80% dos casos são devidos a colelitíase e álcool. Não é possível determinar a etiologia em 10 a 15%, sendo classificados como pancreatite idiopática. A fisiopatologia da pancreatite na litíase biliar não é completamente entendida. A obstrução do ducto levaria o refluxo biliar para dentro do ducto pancreático, ocasionando lesão das células acinosas por meio da ativação das enzimas pancreáticas e da liberação de fatores inflamatórios que geram a resposta inflamatória e a lesão pancreática. O álcool pode ocasionar a pancreatite aguda por basicamente 3 motivos: disfunção do esfíncter de Oddi, formação de “rolhas proteicas” e efeito tóxico direto do álcool. O uso de drogas talvez seja a 3ª causa (0,3 a 1,4%), porém o mecanismo que causa a inflamação pancreática não é bem conhecido. A hipertrigliceridemia é responsável pela pancreatite aguda em 1 a 4% dos casos, quando níveis >1.000mg/dL. Outras causas são hipercalcemia, colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) e mutações genéticas (PRSS1 – pancreatite hereditária autossômica dominante –, SPNK1 e CTRF – fibrose cística). Diagnóstico O quadro clássico é de dor de forte intensidade, em faixa, no abdome superior e no dorso (irradiação para o dorso em 50% dos casos), associada a vômitos incoercíveis (presentes em 90% dos casos) e hiperamilasemia. Os casos mais graves vêm acompanhados de sinais de choque e de insuficiência orgânica, como desidratação, taquicardia, hipotensão e taquidispneia (inflamação do diafragma pela pancreatite, derrame pleural ou síndrome da angústia respiratória do adulto), resultantes de processo inflamatório sistêmico (pancreatite aguda grave). Podem ser encontrados sinais de hemorragia retroperitoneal, como os de Grey-Turner (equimoses nos flancos), de Cullen (equimose periumbilical) e de Frey (equimose no ligamento inguinal). Os melhores exames subsidiários para o diagnóstico são a amilase e a lipase. A amilase elevase de 6 a 12 horas após o início da dor, possui meia-vida de 10 horas e normaliza-se em 3 a 5 dias. Aumentos acima de 3 vezes têm sensibilidade de 67 a 83% e especificidade de 85 a 98% para o diagnóstico de pancreatite aguda. A lipase aumenta após 4 a 8 horas do início do quadro, com pico em 24 horas e volta a normalizar-se em 8 a 14 dias (sensibilidade e especificidade de 82 a 100%). Pedro Santos Outros exames: Hemograma: a avaliação do hematócrito é importante, pois a sua elevação é sinal de mau prognóstico, já que reflete sequestro de líquido para o 3º espaço; TGO (Transaminase Glutâmico-Oxalacética) e TGP (Transaminase Glutâmico-Pirúvica); uma meta- análise evidenciou que concentração de TGP ≥150UI/L possui valor preditivo positivo de 9% para o diagnóstico de pancreatite biliar; PCR (Proteína C Reativa – níveis >150mg/dL nas 48 horas, em associação a pancreatite severa). A Tomografia Computadorizada (TC) de abdome não tem valor para diagnóstico na fase aguda, mas é o principal exame para a avaliação do pâncreas, principalmente com contraste. O exame deve ser solicitado preferencialmente após 48 a 72 horas, em todos os indivíduos com pancreatite aguda grave, para identificação de áreas mal perfundidas sugestivas de necrose e confirmação da suspeita de pancreatite necrosante. A ultrassonografia e a ecoendoscopia auxiliam no diagnóstico etiológico, ou seja, avaliam a presença de cálculos ou microcálculos na via biliar. Outro exame que pode ser solicitado é a CPRE, que permite o diagnóstico etiológico, assim como em casos específicos a terapêutica por meio da papilotomia e/ou extração de cálculos. Complicações Pulmonar Podem ocorrer atelectasia, derrame pleural e síndrome da angústia respiratória na fase aguda da pancreatite, devido ao quadro de síndrome da resposta inflamatória sistêmica. Renal O sequestro de fluidos que ocorre na fase aguda da pancreatite leva a depleção do volume intravascular, podendo cursar com insuficiência renal aguda pré-renal. Cardíaca Observa-se falência aguda do miocárdio em decorrência do processo inflamatório agudo Metabólica Observa-se hiperglicemia devido a falência pancreática endócrina, acidose metabólica, hipocalcemia e hipomagnesemia na fase aguda. Sistêmica Coagulação intravascular disseminada, disfunção de múltiplos órgãos e sistemas e choque hipovolêmico, todas na fase aguda. Trombose venosa portoesplenomesentérica (PSMVT) desenvolve-se em aproximadamente 50% dos pacientes com pancreatite aguda necrosante e é rara na ausência de necros Local Na fase aguda, podem ocorrer hemorragia e necrose nos processos mais intensos. Com o passar dos dias, por volta da 2ª semana de evolução, a necrose pode infectar-se, dando origem a infecção ou abscesso pancreático, ou o processo inflamatório pode comprometer estruturas vizinhas, como o mesocólon transverso, levando a isquemia e perfuração. O efeito de massa gerado por coleções pancreáticas pode levar a quadros obstrutivos gastroduodenais. Em longo prazo, as coleções pancreáticas podem se organizar e desenvolver uma pseudocápsula, formando pseudocisto. Outras Dentre elas, estão gastrite hemorrágica, úlcera de estresse, necrose gordurosa metastática etc. Fatores de Prognóstico Podemos utilizar critérios para avaliação prognóstica dos casos de pancreatite. Dentre eles, os mais utilizados na prática clínica são os de Ranson (Tabela a seguir), o qual deve ser avaliado na admissão e após 48 horas do início dos sintomas, e o de APACHE (Acute Physiology And Chronic Health Evaluation). A presença de 3 ou mais parâmetros nos critérios de Ranson é fortemente indicativa de pancreatite aguda Pedro Santos grave. Atualmente, o APACHE II é o mais usado em trabalhos científicos e UTIs. Considera-se pancreatite grave quando o índice é superior ou igual a 8. Admissão Idade >55 anos; Leucócitos >16.000/mm3; Glicemia >200mg/100mL; Desidrogenase láctica >350UI/L; TGO >250U/100mL. Durante as 48 horas iniciais Queda no hematócrito >10%; Nitrogênio ureico >5mg/100mL; Cálcio sérico; pO2 arterial <60mmHg; Déficit de base >4mEq/L Sequestro de líquidos >6L. A avaliação da gravidade da pancreatite aguda pela tomografia de abdome segue o trabalho clássico de Balthazar, que avalia o aspecto do parênquima hepático, a presença de coleções e a porcentagem de necrose, conferindo uma pontuação a cada item. A partir dessa pontuação, é possível prever a possibilidade de morbidade e mortalidade, sendo considerada doença severa se pontuação ≥6. Por exemplo, pacientes entre zero e 1 ponto têm 0% de morbidade e mortalidade; já pacientes entre 7 e 10 pontos apresentam 17% de mortalidade e 92% de morbidade. Tratamento Os itens obrigatórios no tratamento da pancreatite aguda leve são jejum, hidratação e analgesia intravenosa. Os analgésicos de escolha são dipirona associada a hioscina e/ou meperidina, evitando-se a morfina por aumentar a pressão do esfíncter de Oddi (músculo circular na junção do colédoco com o duodeno). O uso de inibidores da bomba de prótons é rotineiro. Entre os pacientes com quadro leve, a dieta deve ser reintroduzida quando não há dor, ausência de íleo paralítico e fome, devendo ser realizada de forma gradual, hipogordurosa e rica em triglicerídeos de cadeia média (absorvidos na “borda em escova” por osmose, sem necessidade de ação enzimática). Nos casos de impossibilidade de reintrodução de dieta oral em 5 a 7 dias, a opção preferencial é a sondanasoenteral locada pós-ligamento de Treitz por endoscopia digestiva alta ou radiologia. Nutrição enteral precoce (24 a 48 horas) deve ser iniciada. Os pacientes graves devem ser tratados na UTI com hidratação agressiva (5 a 10mL/kg de solução cristaloide por hora). Naqueles casos severos, rápida reposição com 20mL/kg de fluido em 30 minutos seguida por 3mL/kg/h por 8 a 12 horas. Pedro Santos A causa mais comum de óbitos na pancreatite aguda é a infecção do tecido pancreático ou peripancreático. Os organismos que geralmente infectam a necrose são os derivados do intestino, incluindo Escherichia coli, Pseudomonas, Klebsiella e Enterococcus; 75% das infecções são monomicrobianas. O uso profilático de antibióticos é controverso, podendo ser iniciado com imipeném/meropeném e continuado por 7 a 10 dias, se houver pancreatite necrosante envolvendo mais do que 30% da glândula. Estudos recentes não recomendam o uso de antibiótico profilático nos pacientes com pancreatite aguda, independente do tipo (intersticial ou necrosante) ou da severidade da doença. CPRE com papilotomia ou cirurgia precoce podem diminuir a severidade da pancreatite biliar. Em geral, deve ser realizada em 72 horas naqueles com alta suspeita de coledocolitíase (cálculo visível nos exames de imagem, dilatação persistente do colédoco, icterícia ou aumento da bioquímica hepática). CPRE em 24 a 48 horas é sugerida em caso de colangite concomitante e testes hepáticos persistentemente anormais ou aumentados (persistência da coledocolitíase). Após a recuperação, colecistectomia deve ser realizada em todos os pacientes com pancreatite biliar; a não realização acarreta de 25 a 30% de recorrência de pancreatite aguda, colecistite ou colangite em 6 a 18 semanas. Naqueles com pancreatite leve, deve-se realizá-la 7 dias após recuperação. E, entre os pacientes com pancreatite necrosante, deve-se atrasar o procedimento por 3 semanas.