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PÓS-GRADUAÇÃO CiênCiAS PenAiS Tutela Penal dos Bens Jurídicos Supraindividuais PÓS-GRADUAÇÃO 2 Curso Ciências Penais Disciplina Tutela Penal dos Bens Jurídicos Supraindividuais Autoria Yuri Felix, Leonardo Schmitt de Bem, Vicente Cardoso de Figueiredo, Filipe Fialdini, Caroline Valverde de Camargo, Bruno Silveira Rigon Índice ínDiCe Tema 01: As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 05 Tema 02: Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente 31 Tema 03: Uma Brevíssima Introdução ao Direito Penal Eleitoral 49 Tema 04: Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Nº 8.069/1990 77 Tema 05: Introdução Crítica à Política Criminal de Drogas no Brasil: o Governo Através da Guerra às Drogas 107 © 2015 Kroton Educacional Proibida a reprodução final ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada em língua portuguesa ou qualquer outro idioma. 3 Como citar este material: FELIX, Yuri; BEM, Leonardo Schmitt de; FIGUEIREDO, Vicente Cardoso de; FIALDINI, Filipe; CAMARGO, Caroline Valverde de; RIGON, Bruno Silveira. Tutela Penal dos Bens Jurídicos Supraindividuais. Valinhos: 2015. 4 TeMA 01 As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro LEGENDA DE ÍCONES seções 5 início Referências Gabarito Verificação de leitura Pontuando Vamos pensar Glossário Aula 6 01 As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro Leonardo Schmitt de Bem Professor Adjunto de Direito Penal na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Doutor em Direito Penal Italiano, Comparado e Internacional pela Università degli Studi di Milano, Itália. Doutor em Direitos e Garantias Fundamentais pela Universidad de Castilla-La Mancha, Espanha. Mestre em Ciências Criminais pela Universidade de Coimbra, Portugal. Autor do livro: Direito Penal de Trânsito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. Coautor do livro (com Luiz Flávio Gomes): Nova Lei Seca. São Paulo: Saraiva, 2013. Objetivos Prezado aluno da Pós-Graduação em Ciências Penais LFG, este texto, bem como a respectiva aula, tem como objetivo debater os intrincados pontos relacionados ao direito penal do trânsito e todas suas características, principalmente no que tange às controvérsias que envolvem a complexidade do tema. Resumo da Aula Esta aula aborda a problemática que envolve as reformas da legislação de trânsito, apontando questões como a (im)possibilidade de retroatividade de lei, bem como realizando uma reflexão crítica principalmente dos artigos 306 e 308 da legislação de trânsito e veículo automotores. 1. nota introdutória Não tenho dúvida de que a relevância de alguns setores sociais é uma receita para novas propostas legislativas no âmbito criminal. A circulação viária, por exemplo, representa um excelente âmbito para examinar algumas questões relacionadas à criminalização, porque, desde a promulgação da Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997, sucederam várias 7 Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro leis simbólicas e impregnadas de oportunismo, regulando contextos específicos como a embriaguez ao volante e a participação em racha. O compromisso deste texto é apresentar as controvérsias que decorreram da falta de reflexão e de discussão político-criminal nos referidos contextos, seja no concernente ao objeto de proteção e sua legitimidade, seja no relativo à necessidade de intervenção penal. Destaco que a eleição do art. 306 e do art. 308 não é aleatória, senão decorre das últimas alterações do Código de Trânsito Brasileiro.1 2. A Infração de Embriaguez ao Volante (Art. 306) O delito do art. 306 é o que suscita maiores discussões na doutrina penal, especialmente pelas inúmeras alterações legais verificadas nos últimos anos. Após a promulgação do Código de Trânsito pela Lei n. 9.503/1997, seguiu-se a primeira revisão com a Lei n. 11.705/2008 e um novo preceito foi proposto com a Lei n. 12.760/2012.2 É interessante frisar que em nenhuma das alterações o legislador incrementou a resposta penal. Seu objetivo maior foi alcançar um maior número de punições. Esse intento foi frustrado quando da primeira reforma, porque a redação do preceito primário do art. 306 carecia de técnica legislativa. Ao mesmo tempo em que transmudou a natureza do perigo para fins de punição do condutor pela infração, ou seja, de perigo concreto da redação original para perigo abstrato com a proposta dada pela Lei n. 11.705/2008, o legislador exigia que uma concentração mínima de álcool no sangue ou por ar alveolar fosse comprovada. Tratando-se de índice técnico, apenas a prova pericial poderia dar certeza necessária sobre a materialidade delitiva. Assim se posicionou o STJ (Resp. n. 1.111.566/DF, rel. Adilson Vieira Macabu, DJ 04/09/2012), razão pela qual o fim punitivo apenas seria alcançado quando os próprios condutores submetiam-se voluntariamente ao exame pericial. 1 Essa redução não encobre outras impropriedades técnicas do legislador, alguns equívocos de parte da doutrina e as decisões desacertadas do judiciário relacionadas aos outros crimes da Lei n. 9.503/1997. Recomendo, portanto, visando complementar os estudos, a leitura da obra de nossa autoria Direito Penal de Trânsito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 2 A Lei n. 11.275/2006, embora com reflexos no âmbito penal, foi promulgada para regular a infração administrativa de embriaguez ao volante (art. 165, CTB). A Lei n. 12.971/2014 alterou a redação dos §§ 2° e 3° do art. 306 do CTB no que diz respeito à previsão da verificação da embriaguez também mediante testes toxicológicos. 8 Verificando-se que a colaboração pessoal esbarrava na não autoincriminação, considerando que o motorista não produzia prova contra si mesmo, e sendo inviável a comprovação da materialidade pela prova testemunhal, nova proposta de redação foi sancionada no final de 20123. O novo preceito parece apresentar mais problemas do que soluções, razão pela qual é dever destrinchar sua aplicação. Neste sentido, algumas questões merecerão atenção: (1) Qual é o bem jurídico protegido? (2) Como se define a estrutura jurídica do delito? (3) Como comprovar a alteração da capacidade psicomotora do condutor do veículo automotor? (4) Como a substância psicoativa deve influenciar nessa condução? (5) O novo delito pode retroagir para alcançar fatos praticados anteriormente à sua vigência? (1) Na interpretação dos tipos penais, os magistrados têm a tarefa de analisar sobre qual bem jurídico – individual ou coletivo – é estendida a proteção penal definida legalmente. Infelizmente, nessa tarefa muitos preterem os melhores trabalhos e acabam por seguir, sem muito refletir, o entendimento de que o delito do art. 306 do CTB contempla um bem jurídico coletivo representado pela incolumidade pública no aspecto da segurança no trânsito ou, em síntese, o que é denominado segurança viária.4 Isso também pode ser comprovado em vários precedentes jurisprudenciais.5 Tratar-se-ia, portanto, de um bem jurídico supraindividual de titularidade coletiva. No entanto, sendo objetivo central do Código de Trânsito a segurança das pessoas no trânsito, e, para isso, seu fim instrumental é reduzir o número e os efeitos dos acidentes nas vias terrestres, a atuação dos órgãos e das entidades de trânsito deve visar, com prioridade, as ações de defesa à disponibilidade da vida, da integridade física e do patrimônio de um 3 Eis a redação do preceito primário do art. 306 do CTB: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alte- rada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que cause dependência”. 4 Neste sentido, entre outros, veja-se: JESUS, Damásio de. Crimes de Trânsito.São Paulo: Saraiva, 2000, p. 166. CA- PEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 308. MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 306. GÓMEZ PAVÓN, Pilar. El Delito de conducción bajo la influencia de bebidas alcohólicas, drogas tóxicas o estupefacientes. Barcelona: Bosch, 1998, p. 104. 5 TJES, Ap. n. 24080260987; TJGO, Ap. n. 36377-27.2010.8.09; TJRO, Ap. n. 0004491-67.2010.8.22.0501; TJDFT, Ap. n. 2008.041.007.851-6; TJBA, Rec. Crim. n. 0157343-2/2009; TJRJ, Rec. Crim. n. 09.2010.8.19.0002, etc. Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro Saiba Mais MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 2009. 9 número indeterminado de pessoas, pois são estes os verdadeiros bens jurídico-penais que devem ser protegidos.6 E por que seria necessária uma maior reflexão pelos juízes? Porque de “expressões sonoras e vazias de conteúdo”, para seguir com a feliz menção do Defensor Público Gustavo Quandt,7 utilizada em debate virtual, apenas se homenageia uma postura ideal de bem jurídico, com o fim de legitimar o que o legislador entendeu desejável. No entanto, esse processo de idealização de bens jurídicos representa um retrocesso e, assim, não deve prevalecer, seja por problemas relacionados à essência de sua definição,8 seja por problemas relacionados à excessiva pena cominada às infrações.9 A incolumidade pública nada mais é do que um bem jurídico fictício, devendo a proteção penal recair sobre o sujeito individual ou seu patrimônio, contudo sobre um número indeterminado deles. O bem jurídico protegido, ademais, deve ser uma realidade distinta da finalidade legislativa, da intenção de alcançar o trânsito em condições seguras. Quanto mais é desrespeitado o princípio da segurança do trânsito, menos protegidos estão os bens jurídicos. Eis porque, segundo Paolo Veneziani, o trânsito em condições seguras é apenas um “princípio geral claramente funcional”.10 6 VICENTE MARTÍNEZ, Rosario. Derecho Penal de la Circulación. Barcelona: Bosch, 2006, p. 183, por sua vez, afirma que “não se protege a segurança viária como um fim em si mesmo, senão com caráter instrumental, como meio para a tutela de bens jurídicos individuais, como a vida, a saúde e o patrimônio”. 7 MORENO ALCÁZAR, Miguel Ángel. Los Delitos de Conducción Temeraria. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, p. 51, des- creve que “a segurança do tráfico é um conceito carente de um conteúdo próprio que vá mais além de uma pura referên- cia formal à normativa administrativa que regula o âmbito de circulação rodoviária”. 8 GRECO, Luís. Princípio da Ofensividade e Crimes de Perigo Abstrato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, n. 49, p. 89, 2004. 9 HIRSCH, Hans Joachim. Acerca del estado actual de la discusión sobre el concepto de bien jurídico. in Modernas Ten- dencias en la Ciencia del Derecho Penal y en la Criminología. Madrid, 2006, p. 380. 10 VENEZIANI, Paolo. “I delitti contro la vita e l’incolumità individuale”, in Trattado di Diritto Penale. I Delitti Colposi. Milano: Antonio Milani, 2009, p. 587. Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 10 O Supremo Tribunal Federal, inclusive, delimitou corretamente a objetividade jurídica do delito.11 Textualmente: Habeas corpus. Penal. Delito de embriaguez ao volante. Art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Alegação de inconstitucionalidade do referido tipo penal por tratar-se de crime de perigo abstrato. Improcedência. Ordem denegada. […] Na espécie, a proibição da conduta pela qual o paciente foi condenado objetiva, especialmente, combater e prevenir a ocorrência de delitos de trânsito que possam colocar em risco a incolumidade física ou até mesmo a vida dos indivíduos da coletividade ou provocar danos patrimoniais […] (2ª Turma, HC n. 109.269/MG, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 27/09/2011). A legitimidade da punição tem por pressuposto a afetação de um bem jurídico. Significa que o elemento fundamental do crime, sem embargo da ausência de previsão expressa ou exterior nos tipos penais, é a ofensa ao bem jurídico. Definido o bem jurídico protegido penalmente no atinente ao delito do art. 306 do Código de Trânsito, resta saber como protegê- lo. Para tanto, é fundamental a análise das condutas ofensivas com respaldo do postulado da ofensividade, pois este é a diretriz de política-criminal que se revela mais intrinsecamente ligada à interpretação penal. Os magistrados, com efeito, devem exercer uma função seletiva das ações humanas para reduzir a incidência da norma penal apenas àquelas realmente ofensivas ao objeto jurídico, isto é, “se o Direito penal deve ser chamado a preservar bens valiosos e essenciais de determinadas condutas que a eles sejam ofensivas, deve-se examinar de qual maneira e em que medida elas se apresentam, aferindo-se, portanto, a potencialidade lesiva”.12 Na esteira de Luís Greco, “essa questão não deve ser discutida à luz de considerações sobre o bem jurídico, e sim sobre outro tópico, chamado por alguns de estrutura do delito”.13 Não mais deve questionar qual bem jurídico está relacionado com o presente delito, mas, sim, como se deve realizar a proteção deste bem jurídico. No âmbito do art. 306 do CTB, houve variação da estrutura jurídica do delito. Quanto à redação original – “conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou 11 Mesmo delimitando corretamente o objeto jurídico, insistiu o Ministro em justificá-lo mencionando precedente jurispru- dencial e parecer ministerial que se valeram da expressão sonora “incolumidade pública”. 12 SILVA, Ângelo Roberto. Dos Crimes de Perigo Abstrato em Face da Constituição. São Paulo: RT, 2006, p. 95. 13 GRECO, Luís. Princípio da Ofensividade e Crimes de Perigo Abstrato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, n. 49, p. 117 e ss., 2004. Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 11 de substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem” –, as mais diversas Instâncias de Controle indicavam se tratar de crime de perigo concreto, carecendo, portanto, de certificação judicial, caso a caso, da exposição dos bens jurídicos a uma situação de perigo efetivo. Por sua vez, com a edição da Lei n. 11.705/2008, atualmente revogada, o delito passou a ser classificado como perigo abstrato, inclusive com inúmeros precedentes jurisprudenciais neste sentido.14 Não obstante a resistência por parte de alguns magistrados estaduais destacando que os crimes de perigo abstrato ofendem o postulado da ofensividade – e por isso seriam inconstitucionais –, porque nenhum bem jurídico foi ofendido ou, no mínimo, correu o risco efetivo de agressão,15 o Supremo Tribunal Federal decidiu que esse não era o caminho a ser seguido, pois a lesividade é utilizada apenas como meio de interpretação da lei penal, e não como forma de proscrever a legitimidade de criação de um tipo de delito (HC n. 81.057-8/SP, relª Minª Ellen Gracie, j. 25/05/2004). Em termos simples, deve o juiz, caso a caso, realizar uma interpretação restritiva da ratio de proteção do bem jurídico penal que não necessariamente será fiel à vontade objetiva do legislador. Isso não significa, porém, que a infração do art. 306 do Código de Trânsito se converta em um delito de perigo concreto. Em outras palavras, deverá o magistrado interpretar evolutivamente o delito proposto pelo legislador, isto é, deverá proceder a uma interpretação constitucionalmente orientada para legitimar o direito de punir, porque não pode punir uma conduta que nem sequer gera um potencial perigo para o bem jurídico tutelado penalmente.16 14 TJSP, Ap. n. 0004702-58.2009.8.26.0168; TJRS, Ap. n. 700.452.908-22; TJPB, Ap. n. 00.2010.004.396.500-1; TJAL,Ap. n. 2011.008422-0; TJDFT, Ap. n. 2009.031032103-7; TJRJ, HC n. 0028680-44.2010.8.19.0000; etc. 15 Por exemplo: TJBA, Rec. crim. n. 0154343-2/2009; TJRJ, Rec. crim. n. 0010627-09.2010.8.19.0002; TJRJ, Rec. crim. n. 0049376-55.2008.8.19.0038. Parte da doutrina penal adota esse entendimento e especificamente sobre os delitos de trânsito: JESUS, Damásio. Crimes de Trânsito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 2 e ss. 16 Neste sentido: BOTTINI, Pierpaolo. Crimes de perigo abstrato não são de mera conduta. Revista Consultor Jurídico, 29 maio 2012, esclarece: “[…] ainda que os crimes de perigo abstrato sejam constitucionais, devem ser interpretados sistematicamente, levando-se em consideração a orientação teleológica do Direito penal. Por isso, ainda que o tipo pe- nal descreva a mera conduta, cabe ao intérprete – ao juiz, em especial – a constatação de que o comportamento não é inócuo para afetar o bem jurídico tutelado pela norma. Em outras palavras, não basta a mera ação descrita na lei, faz-se necessária a verificação da periculosidade da conduta – mesmo que em abstrato – de colocar em perigo bens jurídicos”. Links Para mais informações e dados atua- lizados, acesse: <http://www.ibccrim. org.br>. Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 12 Assim, por exemplo, de nada adianta o motorista estar alcoolizado se conduz o veículo de modo anormal em rua deserta ou completamente inabitada. Mas não é porque conduz anormalmente em rua deserta ou inabitada que a norma penal será inconstitucional, pois pode dirigir alcoolizado e anormalmente em local com grande número de pessoas. Por isso ressalto a posição de Pulitanò de que “não é qualquer conduta que é albergada pela proibição penal”.17 A propósito, o STF declarou a constitucionalidade do delito de embriaguez ao volante, quando vigia a Lei n. 11.705/2008 (2ª Turma, HC n. 109.269/MG, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJE 11-10-2011). Com a nova redação do art. 306 do CTB proposta pela Lei n. 12.760/2012, o delito de embriaguez ao volante continua de perigo abstrato, mas com uma especificidade maior, isto é, trata-se de um delito de perigo abstrato como delito de potencial perigo18 ou, para outros, delito de perigo abstrato como delito de perigosidade real.19 Para não punir pela simples desobediência ao comando normativo requer-se, primeiramente, que o agente crie um risco proibido (superando o risco-base relacionado à norma de segurança no trânsito, ou seja, dirigindo sob a influência de álcool ou drogas), e, em segundo lugar, que haja bens jurídicos contra os quais as condutas arriscadas (condução em zigue-zague) possam estar direcionadas. Neste sentido, requer-se uma análise restritiva por parte dos juízes, pois, se não há ninguém na rua ou nas imediações do veículo anormalmente conduzido pelo agente sob a influência de substâncias psicoativas (álcool ou drogas), não há porque puni-lo, embora comprovada a alteração de sua capacidade psicomotora. Além disso, existindo pessoas ou carros no raio de ação do automotor conduzido por agente sob influência de álcool ou de drogas, a análise deverá ser teleológica, porque a aferição da tipicidade penal não deverá ocorrer unicamente pela descrição legislativa, sendo necessário precisar o potencial perigo ou a perigosidade da ação preposta e oposta à proteção dos bens jurídicos. Deve-se orientar, portanto, o magistrado na análise do novo art. 306 do Código de Trânsito. 17 PULITANÒ, Domenico. Sull’interpretazione e gli interpreti della legge penale. In: Studi in Onore di Giorgio Marinucci. Milano: Giuffrè, 2006, p. 683. 18 BEM, Leonardo Schmitt de. Direito Penal de Trânsito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 345. 19 GOMES, Luiz Flávio. A Nova Lei Seca. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 51. Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 13 (3) Tratando-se de requisito expresso no tipo penal, em cada caso concreto impõe-se comprovar e não presumir a alteração da capacidade psicomotora, ou seja, “a afetação das faculdades psicofísicas de percepção, autocontrole e reação, basicamente, originada pelo consumo de bebidas alcoólicas, drogas tóxicas, estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”.20 Exige-se, embora sem a definição legal de um grau, que o consumo das substâncias psicoativas que causam dependência altere a capacidade psicomotora do condutor e, com efeito, diminua suas faculdades para a condução do veículo. A problemática que se apresenta na sequência, portanto, é delimitar os meios para constatação da influência do álcool ou das demais substâncias psicoativas na condução do veículo. Neste contexto, entendo pertinentes três critérios. Em primeiro lugar, é dispensável a superação da concentração de álcool disciplinada no art. 306, § 1°, I, do CTB para fins de responsabilização penal. Em segundo lugar, como o tipo penal proíbe conduzir anormalmente em razão da influência de álcool, e não simplesmente conduzir com certo nível de álcool no sangue ou seu equivalente por litro de ar alveolar, a prova de alcoolemia, por si só, não será suficiente para confirmar a presença da influência e gerar a automática responsabilidade penal do condutor. Em último lugar, o decisivo para fins de verificação do delito será a convicção racional do juiz a partir de todos os elementos destacados, da alteração real da capacidade psicomotora do condutor para fins de realizar uma condução segura com o veículo automotor. Como reiteradamente venho destacando, não basta que se alcance o grau de concentração etílica proibido, senão que é necessária a constatação da influência do álcool na condução anormal pelo motorista. Essa constatação pode realizar-se ou por teste de alcoolemia com a concentração de álcool igual ou superior a 6 decigramas por litro de sangue ou por teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro ou bafômetro) que resulte em concentração de álcool igual ou superior a 0,3 miligramas por litro de ar expelido dos pulmões (art. 306, § 1°, I, do CTB). Na sua realização, como se trata de um direito de defesa, todas as garantias processuais devem ser observadas. É notório que a prova de alcoolemia realizada pelo bafômetro constitui um meio idôneo para aferição da concentração etílica no condutor do veículo automotor. Inclusive o Poder Executivo 20 VICENTE MARTÍNEZ, Rosario. Derecho Penal de la Circulación. Barcelona: Bosch, 2006, p. 185. Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 14 prevê que nos procedimentos de fiscalização se deva priorizar a utilização do bafômetro.21 É igualmente notório, porém, que a grande maioria dos condutores não se submete ao exame, invocando o direito de não produzir prova contra si mesmo. No entanto, a prova técnica de alcoolemia tornou-se prescindível com a promulgação da Lei n. 12.760/2012, pois o legislador previu, no segundo inciso do § 1° do art. 306 do CTB, acudindo a disciplina regulada pelo CONTRAN, a possibilidade de outros critérios (sinais) indicarem a alteração da capacidade psicomotora do agente. Entendo, em especial porque o exame não é feito com laudo conclusivo e firmado por médico perito, que um conjunto de sinais que comprove a situação do condutor deverá ser considerado (ao menos um relacionado a cada critério proposto).22 Mas o mais importante é que esses sinais próprios de quem ingeriu álcool ou fez uso de drogas deverão influenciar a condução do veículo, caracterizando conduta com potencial perigo aos bens jurídicos tutelados. (4) É muitíssimo relevante precisar o alcance da expressão “em razão da influência” constante no preceito primário do art. 306 do CTB. Como elemento normativo do tipo penal, exige valoração pelo magistrado consistente na análise, caso a caso, da influênciado álcool ou das drogas na condução do veículo automotor. Além da alteração da capacidade psicofísica da pessoa do condutor, é necessário que se estabeleça o efeito que o álcool ou as substâncias psicoativas causam na própria condução realizada pelo agente infrator. É decisivo avaliar, portanto, a forma de condução do veículo automotor (por exemplo: deve- se verificar a inconstância no modo de dirigir, o desrespeito às faixas de sinalização na pista, o ziguezague, a aceleração demasiada, a lentidão injustificada, a mudança brusca de faixa sem sinalizar, o avanço de sinais fechados, o ato de dirigir pelo acostamento, de conduzir à noite com os faróis apagados, entre tantas outras possibilidades de condução anormal), porque todo aquele que consegue controlar o perigo do consumo prévio de álcool ou das drogas não deve responder pelo delito, de sorte que não criou contexto de risco potencial aos bens jurídicos penalmente tutelados ou sua conduta não apresentou perigosidade real. 21 Art. 3°, § 1°, da Resolução n. 432/2013. 22 Anexo II da Resolução n. 432/2013 apresenta os requisitos necessários para constatação do consumo de álcool. Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 15 Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro Não é suficiente certo nível de álcool ou de drogas no sangue para a configuração do tipo penal, senão é preciso que o álcool ou as drogas influenciem realmente na condução do veículo pelo agente. Em uma perspectiva teleológica, portanto, deve-se acrescentar outro elemento na descrição da conduta proibida e consistente na criação de um potencial perigo ao bem jurídico. Trata-se de “um critério material-individual, segundo o qual haverá que determinar se certo nível de ingestão de álcool ou de drogas, influenciou realmente sobre a condução do sujeito no caso concreto que se examine”.23 Essa circunstância é essencial, inclusive, para delimitar a distinção qualitativa entre a infração administrativa (art. 165) e a penal (art. 306). Assim, segundo Vicente Martínez, “para fins de tipicidade delitiva requer-se um perigo abstrato com um mínimo de perigosidade real da conduta para os bens jurídicos”.24 Por conseguinte, conduzir o veículo automotor com elevada concentração etílica no sangue pode não constituir delito, apenas infração administrativa, se nenhum bem jurídico entrar no raio de ação da condução perigosa. É apenas neste sentido que o delito do art. 306 do Código de Trânsito poderá ser interpretado em sua completude. (5) Como visto, o art. 306 do Código de Trânsito ganhou nova redação com a Lei n. 12.760/2012. O preceito primário foi modificado, e, com efeito, nasceu a discussão se a nova lei – em comparação à anterior previsão – é ou não mais prejudicial. Alguns Tribunais de Justiça adotaram a irretroatividade da lei, isto é, consideraram a nova lei mais gravosa especialmente quanto ao sistema de aferição da dosagem etílica para condutas praticadas antes de sua vigência, pois o legislador ampliou as formas de constatação da materialidade delitiva, admitindo todos os meios probatórios lícitos, como o exame clínico, a prova de vídeo, testemunhas etc. Seguem os precedentes.25 Vê-se que a ausência da prova técnica – imprescindível para a caracterização do tipo penal do art. 306 com redação dada pela Lei n. 11.705/2008 – não pode ser suprida por outras provas admitidas em direito e que foram consagradas, para esse âmbito social, somente com a promulgação da Lei n. 12.760/2012. 23 SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Consideraciones sobre el delito del art. 340 bis a). 1° del Código penal. Revista Jurídica de Cataluña, v. 92, n. 1, p. 31, 1993. 24 VICENTE MARTÍNEZ, Rosario. El delito de conducción bajo la influencia de drogas tóxicas, estupefacientes, sustan- cias psicotrópicas o bebidas alcohólicas y su propuesta de reforma. La cuestionable necesidad de modificar el artículo 379 del Código penal. Revista Jurídica Española La Ley, p. 6, 2007. 25 TJRJ, Ap. Crim., n. 2009.8.19.0066; TJSC, Rec. Crim., n. 2012.088330-8, TJSC, Ap. Crim., n. 2012.070945-9. 16 Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro Entendo, porém, que o juiz apenas poderá atestar a (ir)retroatividade da Lei n. 12.760/2012 se realizar uma análise comparativa entre os preceitos primários dos tipos penais, e não entre as possíveis formas de aferição da materialidade delitiva, como resta evidente nos julgados citados. No sentido aqui destacado, por exemplo, a Corte Catarinense entendeu pela irretroatividade da lei sob o argumento de que o legislador – em comparação com o tipo penal do art. 306 da Lei n. 11.705/2008 – afastou a quantificação da dosagem alcoólica à constatação típica, bem como suprimiu a expressão “via pública” constante do antigo art. 306 da Lei de Trânsito. Assim, a nova lei teria aumentado significativamente a abrangência do tipo penal. Textualmente: “A nova redação dada ao art. 306 da Lei 9.503/1997 pela Lei 12.760/2012, por se tratar de norma penal mais severa que a anterior, não se aplica aos casos anteriores à sua vigência em razão da irretroatividade da lei penal mais gravosa” (TJSC 1ª C. Crim., Apelação n. 2013.076034-0, rel. Des. Carlos Alberto Civinski, j. 18/02/2014). É necessário destacar que não houve na novel lei a eliminação do limite de concentração de álcool por litro de sangue, senão apenas sua conversão em simples elemento probatório do delito. A ausência do limite de tolerância à ingestão do álcool na redação do tipo penal não tornou a lei mais severa, pois o que houve foi a inclusão de uma diferente hipótese na qual resta caracterizada a infração do art. 306 do CTB. Em outras palavras, o legislador abandonou a dosagem alcoólica como critério à realização do tipo, para dar lugar ao parâmetro da efetiva afetação da capacidade psicomotora. Neste sentido, perfilhou a Corte do Rio Grande do Sul: Apelação. Embriaguez ao volante. Alteração da capacidade psicomotora. Lei n. 12.760/12. Retroatividade. Com a alteração do artigo 306 da Lei 9503/97 pela Lei 12.760/12, foi inserida no tipo penal uma nova elementar normativa: a alteração da capacidade psicomotora. Assim, a adequação típica da conduta, agora, depende não apenas da constatação da embriaguez (seis dg de álcool por litro de sangue), mas, também, da comprovação da alteração da capacidade psicomotora pelos meios de prova admitidos em direito. Aplicação retroativa da Lei 12.760/12 ao caso concreto, pois mais benéfica ao réu. Ausência de provas da alteração da capacidade psicomotora, notadamente em razão do depoimento do policial responsável pela abordagem, que afirmou que o réu conduzia a motocicleta normalmente. Absolvição decretada (TJRS, 3ª C Crim., rel. Des. Nereu Giacomolli). Esclarecendo de forma objetiva: com base na lei anterior, era possível o condutor do veículo automotor se apresentar com capacidade psicomotora alterada, porém não se submeter a exame pericial. Nesse sentido, a lei anterior não poderia ser aplicada porque não foi provada 17 Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro a materialidade delitiva, ou seja, a mínima concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue, tampouco a nova lei penal o seria, pois, não obstante o agente estivesse com sua capacidade psicomotora alterada, a prova desse elemento dependeria dos recursos admitidos com a promulgação da Lei n. 12.760/2012. É nessa linha que a lei penal mais recente é prejudicial. Mas, em um paralelo apenas entre os preceitos primários dos tipos penais, por certo a novel legislação é mais benéfica, visto que exige mais elementos para punição do condutor infrator. O segundo argumento para justificar a irretroatividade da nova lei penal éfalacioso. A omissão da expressão constante do tipo penal – “via pública” – em nada prejudica o condutor, porque, se o fato ocorreu em via particular antes da vigência da nova lei, nem ao menos teria sido oferecida a denúncia em respeito ao princípio da legalidade. Posto isto, reiteramos que a nova lei é mais benéfica ao agente. Com a nova redação dada pela Lei n. 12.760/2012, independentemente da substância previamente ingerida pelo condutor, dever-se-á provar sua influência sobre a condução anormal do veículo. Esse elemento não constava do tipo legal com redação dada pela Lei n. 11.705/2008 e deve ser levado em consideração, pois, conforme destaquei, é essencial para distinguir a infração criminal de embriaguez ao volante de sua correspondente infração administrativa. Realizando uma análise evolutiva do art. 306 do CTB no que diz respeito ao consumo preliminar de álcool, quando foi publicada a Lei n. 11.705/2008, exigiu-se um requisito adicional em comparação com a Lei n. 9.503/1997 (concentração etílica no sangue). Disso decorreu a retroatividade penal! Com a Lei n. 12.760/2012 outro requisito adicional foi exigido em um paralelo com a Lei n. 11.705/2008 (influência do álcool na condução). Quanto mais o legislador exige para punir, melhor é a situação do condutor. Sendo uma lei posterior, e, nesse particular, favorecendo aos agentes, deve ser aplicada aos fatos anteriores, embora já decididos em sentença condenatória transitada em julgado, a teor do art. 2°, parágrafo único, do Código Penal. A nova lei penal deve retroagir para favorecer os agentes, em especial nos casos de investigações criminais em curso – relacionadas com a Lei n. 11.705/2008 – nas quais não se fez prova da influência do álcool/drogas na condução 18 Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro anormal do veículo por agente com capacidade psicomotora alterada. Muitas denúncias estarão fadadas ao insucesso, e esse é o preço a pagar por outra alteração legislativa desastrosa. 3. A Infração de Participação em Racha (Art. 308) A nova redação do caput do art. 308 do CTB, determinada pela Lei n. 12.971/2014, não alterou a estrutura jurídica do delito, pois o elemento normativo consignado na expressão “gerando situação de risco” revela idêntica estrutura jurídica em comparação com a expressão revogada “desde que resulte perigo concreto”, ou seja, continua sendo um delito de perigo concreto. Com efeito, deve-se comprovar que o comportamento do condutor gerou, efetivamente, risco aos bens jurídicos protegidos. Trata-se de crime de concurso necessário, pois participar de corrida, disputa ou de competição pressupõe a presença de mais de um sujeito, sendo que qualquer pessoa, desde que imputável, pode ser o agente delitivo.26 Trata-se de crime simples.27 Eventuais organizadores da competição irregular responderão como partícipes do delito (art. 29 do Código Penal). Logo, é possível o concurso de agentes. Eles também podem ser sancionados administrativamente.28 Em relação à vítima do delito, aduz Renato Marcão que “a lei não retira da esfera de proteção à incolumidade dos participantes, de forma que basta a exposição de perigo concreto de qualquer deles para que se tenha por verificado o crime”.29 Tenho por imprecisa sua afirmação. Em primeiro lugar, considerando apenas o outro participante, estar-se-ia diante de um delito de perigo individual, sendo a punição restrita ao art. 132 do Código Penal. Em segundo lugar, todos aqueles que participam de uma competição sabem suficientemente os riscos que estão voluntariamente assumindo. Estão dispondo de suas vidas e/ou integridades físicas de forma consciente. Há um abandono da proteção penal ou um retrocesso na tutela penal em razão de uma própria conduta dos competidores. 26 Classificando como crime unissubjetivo em relação à modalidade corrida, vide: NUCCI, Guilherme de Souza. Leis pe- nais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 853. 27 Contrariamente, classificando como crime próprio, vide: ARAÚJO, Marcelo Cunha; Calhau, Lélio Braga. Crimes de trânsito. 2. ed. Niterói: Impetus, 2011, p. 95. 28 Art. 174, § 1° do Código de Trânsito, com redação dada pela Lei n. 12.791/2014, de 9 de maio. 29 MARCÃO, Renato. Crimes de trânsito. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 188. 19 Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro Exige-se, como condição inicial para existência do delito, que o acusado conduza um veículo automotor. Conduzir, para fins do dispositivo, significa dirigir, colocar em movimento, embora pequeno o espaço percorrido, mediante acionamento dos mecanismos do veículo. A definição e os exemplos de veículo automotor constam do Anexo I do Código de Trânsito. O teor do preceito restringe o local da prática delitiva às vias públicas. Considerando a inexistência de definição do conceito de via pública no Código de Trânsito, entendo que a conceituação deve considerar dois aspectos alternativos: a abertura à circulação ou a utilização comum da via de tráfego. Assim, ocorrendo em área privada que não esteja franqueada ao uso público, não há a caracterização do delito do art. 308 da Lei n. 9.503/1997. As práticas proibidas apresentam-se em contextos semelhantes. O popular “racha” ou “pega” é uma competição entre dois ou mais condutores envolvendo uma disputa. Também a corrida é considerada uma competição, com a diferença de que se realiza em um trajeto predefinido. A interpretação da expressão “competição automobilística” contida no preceito deve ser extensiva, pois a linguagem da lei afirma menos do que diz, devendo o juiz ampliar a vontade do legislador para albergar a prática da competição por qualquer veículo automotor, especialmente as motocicletas. Neste sentido, há harmonia com a própria redação do dispositivo, uma vez que o agente deve estar na direção de veículo automotor. Quando a lei posterior agravar, de qualquer modo, a conduta criminosa praticada sob a égide da lei anterior, aplicar-se-á o princípio da ultra-atividade, pelo qual a lei anterior postergará seus efeitos para o futuro, por ser mais benigna, e a posterior, por ser mais severa, será irretroativa por força constitucional (art. 5°, XL). E, de fato, a Lei n. 12.971/2014 modificou a pena máxima de dois para três anos. Uma vez mais se vislumbra que o legislador ignorou o princípio da proporcionalidade, visto que um delito de perigo (art. 308) novamente foi sancionado mais gravemente que um delito de dano (art. 303). Impõem-se cumulativamente as penas de multa e a pena acessória consistente na suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor, cujo prazo varia entre dois meses e cinco anos. Essa sanção, segundo entendo, não poderá ser aplicada aos motoristas que já possuem a habilitação definitiva. A reforma legislativa também alterou a natureza jurídica do delito, pois deixou de ser menor 20 potencial ofensivo em razão de a pena máxima cominada superar dois anos. Não obstante, ainda é possível aplicar o benefício da suspensão condicional do processo. Outra novidade decorrente da Lei n. 12.971/2014 foi a inserção de qualificadoras ao crime do art. 308 do Código de Trânsito Brasileiro. A primeira delas diz respeito à ocorrência de lesão corporal grave como resultado da prática de racha. Para evitar as controvérsias doutrinárias ou os embates de julgados, deveria o legislador ter seguido uma melhor técnica de tipificação para dar efetividade ao princípio da legalidade, porém, ao contrário, afastou- se da invocação casuística para enaltecer a opção por uma cláusula genérica delineada na expressão “lesão corporal de natureza grave”. Como o legislador se preocupouapenas com o resultado objetivo, pensamos, assim, que se deva fazer uso, por analogia, de situações enumeradas nos parágrafos do art. 129 do Código Penal. Há neste, igualmente, a previsão de exemplos de crime preterdoloso, pois o agente pratica a ação dolosa, menos grave, porém obtém um resultado danoso mais grave do que o pretendido na forma culposa. Resultando lesão corporal leve, por exclusão, o participante do racha deverá responder pela lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (art. 303), não obstante seja punido de maneira mais branda em razão da patente ofensa à proporcionalidade. Verificando-se o resultado qualificador nesse contexto, o participante da corrida, disputa ou competição será punido com pena de três a seis anos de reclusão. A segunda qualificadora se refere à ocorrência de morte como resultado da prática do racha ou pega. A maior polêmica reside na circunstância de o seu conteúdo ser quase idêntico à redação do art. 302, § 2° introduzido no Código de Trânsito por meio da Lei n. 12.971/2014. Eis as duas redações: Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas – detenção, de dois a quatro anos [...]. § 2° Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente: Penas - reclusão, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, de disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada: Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 21 Penas - detenção, de seis meses a três anos [...]. § 2° Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi- lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 5 a 10 anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo. A princípio, a mesma conduta está retratada nos dois preceitos, sendo que, como na matemática, a ordem dos fatores não altera o produto, ou seja, estar-se-ia diante do mesmo crime qualificado, mas com duplicidade de previsão. Esta conclusão foi alcançada em relatório da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania30 e por Luiz Flávio Gomes, que, solucionando aquilo que adjetivou de excrescência legis, optou por respeitar a norma mais favorável ao réu em razão do princípio in dubio pro libertate,31 isto é, o art. 302, § 2° do Código de Trânsito Brasileiro. Por sua vez, preservando ambas as infrações, o juiz Márcio Cavalcanti – cuja tese foi aplaudida por Greco32 – entendeu que a antevisão do resultado morte pelo condutor que participa em racha configura o crime do art. 308, § 2° do Código de Trânsito, pois incidiria em culpa consciente, modalidade mais grave, ao passo que no contexto de morte por culpa inconsciente o condutor do veículo automotor responderia pelo crime do art. 302, § 2° do CTB.33 Prevalecendo essa vertente, nos três contextos do § 2° do art. 302 com a redação dada pela Lei n. 12.971/2014 (embriaguez ao volante e participação em manobras arriscadas), deverá o agente agir com culpa inconsciente, de sorte que não seria crível que o mesmo parágrafo, mas em âmbitos diversos, apresente-se com espécies distintas de culpa. Sendo correta esta 30 “Vislumbramos que no Projeto original encontra-se uma incongruência de natureza redacional. Ora a parte final do § 2° do art. 302 e o disposto no art. 308, ambos alterados pelo Projeto de Lei n. 2592-A/07, aprovado na Câmara dos Deputados em 24/04/2013, existe duplicidade de condutas típicas, pois, em acatando emenda do Plenário, esqueceu o Relator de verificar que o fato já estava tipificado em outro dispositivo. Há, assim, conflito de penalidades nos dispositivos aprovados pela Casa, uma emenda de técnica legislativa deve ser aprovada nesta ocasião para que não subsista qual- quer dúvida futura na jurisprudência”, conforme a Deputada Sandra Rosado no Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei n. 2592/2007 analisado na Comissão de Constituição e Justiça. 31 GOMES, Luiz Flávio. Nova Lei de Trânsito: barbeiragem e derrapagem do legislador? Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, v. 15, n. 89, p. 27-28. 32 Disponível em: <http://www.rogeriogreco.com.br/?p=2568>. Acesso em: jun. 2015. 33 CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.971/2014. O texto estava disponível em 13 de maio de 2014 no seguinte link: <http://www.dizerodireito.com.br/2014/05/comentarios-lei-129712014-que-alterou-o.html>. Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 22 advertência, por exemplo, nunca haveria culpa consciente no crime de homicídio de trânsito quando o agente conduzisse o veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool. Uma forma de contestar a tese de Luiz Flávio Gomes de que existe ofensa ao princípio do bis in idem e, assim, preservar ambos os preceitos, como sugeriu Márcio Cavalcanti, mas com fundamento diverso, é defender – não querendo ser mais realista que o rei – que o § 2° do art. 308 constitui uma norma penal especial em relação ao § 2° do art. 302, visto que naquela há uma restrição espacial, pois a ação apenas se pode verificar em “via pública”. Deve-se admitir a existência de um concurso aparente de tipos legais que é resolvido pela especialidade, embora Eduardo Cabette não tenha observado a singela diferença e refutado a aplicação do princípio por entender que a especialidade não seria hábil a resolver satisfatoriamente a situação.34 Admitindo-se essa forma de interpretação,35 o tipo legal que deve ceder passo é o art. 302, § 2° – por evidente, no contexto da participação do agente em racha – até porque, salvo raríssimas exceções, a conduta ocorre em locais abertos ao público ou de utilização comum, como as pistas de circulação e seu entorno (calçadas, canteiros, acostamentos). Essa tese pode ser corroborada e está em harmonia com o crime de participação em racha previsto no caput do art. 308 do Código de Trânsito, uma vez que, para sua configuração, exige-se a geração de risco à incolumidade pública ou privada. Por evidente, nas vias públicas, há a circulação de muitas pessoas e outros veículos, de sorte que a possibilidade de ofensa ao bem jurídico é bem maior, razão pela qual a reprovação também pode ser mais elevada. Saliento, inclusive, que essa interpretação impede a violação do princípio da proporcionalidade quando se compara o § 2° do art. 302 – preservado por Luiz Flávio Gomes36 e por Rogério 34 CABETTE, Eduardo Santos. Lei n. 12.971/2014 e suas alterações na Parte Geral do Código de Trânsito Brasileiro: o ápice da insanidade na Legislação Pátria. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, v. 15, n. 89, p. 38. 35 Foi também a sugestão da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania no Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei n. 2592/2007, de relatoria da Deputada Sandra Rosado. In verbis: “O crime de ‘racha’ no trânsito, já está contemplado de forma detalhada nos parágrafos 1º e 2º do art. 308 modificado pelo referido projeto, razão pela qual emenda deve ser apresentada”, sendo a emenda sugerida no Projeto de Lei n. 2592-B/2007: “Suprima-se a expressão ‘ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, nãoautorizada pela autoridade competente’ do §2º do art. 302”. 36 GOMES, Luiz Flávio. Nova Lei de Trânsito: barbeiragem e derrapagem do legislador? Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, v. 15, n. 89, p. 27-28. Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 23 Greco37 – com o § 1° do art. 308, que qualifica o crime de participação em racha com resultado de lesão corporal grave, mas de natureza culposa, pois se está diante de crime preterdoloso. Basta verificar que a pena cominada para esta forma qualificada de crime de lesão corporal (reclusão, de três a seis anos) é superior àquela (reclusão, de dois a quatro anos), ainda que o resultado lesivo seja menor. Defender outra posição é não respeitar o princípio da proporcionalidade que deve imperar quanto à tutela dos bens jurídicos. Verificando-se o resultado qualificador no contexto indicado pelo legislador, o participante da corrida, disputa ou competição será punido com pena de cinco a dez anos de reclusão. Notam- se, assim, mudanças de ordem quantitativa e qualitativa em um paralelo com a conduta do art. 308, caput, do CTB. Essa modificação pode ensejar, respeitados certos requisitos, um possível início de cumprimento da privação de liberdade no regime fechado (art. 33, CP). Resultando a pena final no quantum mínimo cominado, não será possível a substituição por outras espécies de pena (art. 44, I, CP). Neste contexto, o crime também não é de menor potencial ofensivo. 4. Conclusão Com milhões de quilômetros de malha rodoviária, o Brasil enfrenta inúmeras questões que se relacionam aos crimes ocorridos no tráfego viário. O texto convidou o leitor a refletir sobre as recentes leis promulgadas no âmbito dos crimes de embriaguez ao volante e participação em racha. Essa escolha, por certo, não desejou encobrir outras polêmicas operadas em mais de quinze anos de CTB. Pense-se só na celeuma para distinguir o dolo eventual da culpa consciente no âmbito do homicídio. Mais do que apontar as incongruências legais, meu objetivo foi afastar a velha máxima de que “em temas de Direito Penal vale o argumento da autoridade e não a autoridade do argumento”. 37 GRECO, Rogério. Os absurdos da Lei n. 12. 971, de 9 de maio de 2014. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, v. 15, n. 89, p. 50. Aula 01 | As Controvérsias Criminais no Código de Trânsito Brasileiro 24 Vamos pensar Elabore um breve texto a respeito das alterações promovidas pelo legislador referentes aos crimes de trânsito. Zigue-zague: “linha quebrada em ângulos salientes e reentrantes alternados. Traçado que lembra essa forma”. Fonte: Dicionário Houaiss Conciso (2011, p. 978). • Introdução. • A Infração de Embriaguez ao Volante (Art. 306). • A Infração de Participação em Racha (Art. 308). • Conclusão. Pontuando Glossário 25 inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 1 A infração de embriaguez ao volante de veí- culo automotor é tratada em qual artigo? a) Art. 121 do CP. b) Art. 308 da Lei n. 9.503/1997. c) Art. 22 da Lei n. 7.492/1986. d) Art. 306 da Lei n. 9.503/1997. e) Art. 129 do CP. inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 2 Qual foi a última alteração legislativa propos- ta na Lei n. 9.503/1997 (Lei de Trânsito)? a) Lei n. 12.654/2013. b) Lei n. 11.343/2006. c) Lei n. 8.072/1990. d) Não ocorreu nenhuma alteração legislativa. e) Lei n. 12.760/2012. inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 3 O bem jurídico tutelado no crime de trânsito é: a) Supraindividual de titularidade coletiva. b) Individual de titularidade coletiva. c) Supraindividual de titularidade individual. d) Individual de titularidade pessoal. e) Não possui bem jurídico tutelado. inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 4 A infração de participação em racha é trata- da em qual artigo? a) Art. 129 do CP. b) Art. 308 do CP. c) Art. 308 do CTB, determinada pela Lei n. 12.971/2014. d) Art. 306 da Lei n. 9.503/1997. e) Art. 149 do CP. inDique A ALTeRnATiVA CORReTAquestão 5 A infração de participação em racha é um cri- me de: a) Concurso desnecessário. b) Concurso necessário. c) Concurso simples. d) Concurso autônomo. e) Não exige concurso. Verificação de leitura 26 ARAÚJO, Marcelo Cunha; CALHAU, Lélio Braga. Crimes de trânsito. 2. ed. Niterói: Impetus, 2011. BEM, Leonardo Schmitt de. Direito Penal de Trânsito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. BEM, Leonardo Schmitt de; GOMES, Luiz Flávio. Nova Lei Seca. São Paulo: Saraiva, 2013. BOTTINI, Pierpaolo. Crimes de perigo abstrato não são de mera conduta. Revista Consultor Jurídico, 29 de maio de 2012. CABETTE, Eduardo Santos. Lei n. 12.971/2014 e suas alterações na Parte Geral do Código de Trânsito Brasileiro: o ápice da insanidade na Legislação Pátria. Revista Síntese Direito Penal e Pro- cessual Penal, v. 15, n. 89. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008. CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.971/2014. Disponível em: <http://www.di- zerodireito.com.br/2014/05/comentarios-lei-129712014-que-alterou-o.html>. Acesso em: 13 de maio de 2015. GOMES, Luiz Flávio. Nova Lei de Trânsito: barbeiragem e derrapagem do legislador? Revista Sínte- se Direito Penal e Processual Penal, v. 15, n. 89. GÓMEZ PAVÓN, Pilar. El Delito de conducción bajo la influencia de bebidas alcohólicas, drogas tó- xicas o estupefacientes. Barcelona: Bosch, 1998. GRECO, Luís. Princípio da Ofensividade e Crimes de Perigo Abstrato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 49. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. GRECO, Rogério. Os absurdos da Lei n. 12. 971, de 9 de Maio de 2014. Revista Síntese Direito Pe- nal e Processual Penal, v. 15, n. 89. HIRSCH, Hans Joachim. Acerca del estado actual de la discusión sobre el concepto de bien jurídico. In: Modernas Tendencias en la Ciencia del Derecho Penal y en la Criminología. Madrid, 2006. JESUS, Damásio de. Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 2000. MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 2009. MORENO ALCÁZAR, Miguel Ángel. Los Delitos de Conducción Temeraria. Valencia: Tirant lo Blan- ch, 2003. Referências 27 Questão 1 Resposta: Alternativa D. Resolução: Vide redação do artigo 306 da Lei n. 9.503/1997. Questão 2 Resposta: Alternativa E. Resolução: Vide redação da Lei n. 12.760/2012. Gabarito Referências NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. PULITANÒ, Domenico. Sull’interpretazione e gli interpreti della legge penale. In: Studi in Onore di Giorgio Marinucci. Milano: Giuffrè, 2006. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Consideraciones sobre el delito del art. 340 bis a). 1° del Código penal. Revista Jurídica de Cataluña, v. 92, n. 1, 1993. SILVA, Ângelo Roberto. Dos Crimes de Perigo Abstrato em Face da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. VENEZIANI, Paolo. I delitti contro la vita e l’incolumità individuale. In: Trattado di Diritto Penale. I Del- itti Colposi. Milano: Antonio Milani, 2009. VICENTE MARTÍNEZ, Rosario. 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Resolução:Trata-se de crime de concurso necessário, pois participar de corrida, disputa ou de competição pressupõe a presença de mais de um sujeito, sendo que qualquer pessoa, desde que imputável, pode ser o agente delitivo. 29 30 TeMA 02 Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente LEGENDA DE ÍCONES seções 31 início Referências Gabarito Verificação de leitura Pontuando Vamos pensar Glossário Aula 32 02 Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente Vicente Cardoso de Figueiredo Advogado. Mestre em Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Yuri Felix Doutorando e Mestre do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ‒ PUCRS. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCrim. Pós- graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera – UniderpLFG. Presidente da Comissão de Direito Penal e Direito Processual Penal da 40ª Subseção da OAB/SP. Professor e palestrante, autor de artigos publicados em revistas especializadas. Advogado criminal. Objetivos Esta aula tem como objetivo problematizar a questão ambiental e analisar a necessidade de tutela do meio ambiente por meio de um direito penal democrático no Estado de Direito. Resumo da Aula Esta aula visa abordar de forma clara e precisa as questões que envolvem o direito penal ambiental na sociedade do risco, problematizando os pontos relacionados ao bem jurídico tutelado e ao desenvolvimento legislativo da tutela ambiental no mundo contemporâneo. 33 Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente Introdução Pretende-se analisar, nesta aula, os processos que conduziram a humanidade ao atual estágio de preocupação com a problemática ambiental, a partir do recrudescimento da agressividade da ação humana sobre o meio ambiente e os efeitos reflexivos dessas agressões sobre a própria civilização humana. Partindo do reconhecimento do incremento dos riscos no atual modelo de produção capitalista, eminente e representativo da modernidade contemporânea, busca-se verificar como ocorre sua distribuição em detrimento da riqueza produzida na sociedade. Com o desenvolvimento da técnica nos campos científicos e tecnológicos, os riscos produzidos pelo homem passam a ameaçar a humanidade em nível global, na medida em que alteram drasticamente as condições do meio e do ecossistema terreno. Também é analisada a iniciativa internacional de mobilização das nações para que o tratamento da problemática ambiental receba a devida atenção e tutela por parte dos Estados, com a criação de dispositivos legais que possibilitem a efetividade desta tarefa. No caso específico do Brasil, expõe-se o assento constitucional dado à questão ambiental, erigida ao status de princípio fundamental pelo Constituinte de 1988, percebendo tratamento legal a partir da Lei n. 9.605/1998, que define os Crimes contra o Meio Ambiente. 1. A Questão Ambiental Sem receio de quedar-se em equívoco, pode-se conceber que a forma de relacionamento do homem com o meio ambiente definiu os rumos da civilização humana desde seus primórdios. A partir dos primeiros grupos sociais coletores, que sobreviviam dos recursos naturais disponíveis, até a atual sociedade pós-industrial, em que técnicas de produção dos recursos necessários são dominadas pela humanidade, o meio impõe desafios ao homem, que busca compreendê-lo e dominá-lo em um embate inglório sem maiores perspectivas de êxito. A busca do controle da natureza parte do incremento do conhecimento de seus processos e peculiaridades. Reconhecendo a impossibilidade de plena cognição de qualquer objeto do 34 saber, mais ainda do exercício de plena dominação do meio pelo homem, buscou-se identificar os riscos inerentes aos fenômenos naturais, como forma de reduzir os efeitos indesejados da imprevisibilidade destes para a sociedade. Entretanto, no modelo social capitalista, inerente à pós-modernidade, em que a escassez é traço determinante, o processo de produção social da riqueza é concomitante à produção social de riscos. Aos problemas e conflitos distributivos da sociedade marcada pela escassez sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos produzidos científico-tecnologicamente.1 Porém, a divisão desigual da riqueza social legitimada pelo formato econômico assumido não se espelha no que se refere aos riscos, que são socializados e globalizados. As mudanças observadas atualmente no sistema da Terra não encontram precedentes na história da humanidade, mostrando que os esforços para reduzir o ritmo ou tamanho destas modificações não lograram o êxito esperado. Pelo contrário, ao passo que a ação humana acelera, estamos próximos de alcançar diversos limiares críticos globais, regionais e locais, sendo que é provável que alguns pontos de irreversibilidade tenham sido ultrapassados, podendo ocasionar mudanças abruptas e potencialmente irreversíveis às funções que sustentam a vida do planeta, com implicações adversas significativas para o bem-estar humano.2 Vislumbrando mudanças na vida humana face à Terra nos últimos anos, fica claro que não passaram desapercebidas, tendo havido uma inegável conscientização acerca destas alterações e da crise ecológica, sendo crescente a preocupação da humanidade com a questão ambiental.3 Em 1972, a ONU promulgou a Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente como resultado da Conferência realizada em Estocolmo, criando um programa específico (PNUMA) para tratar de questões ambientais e elencando critérios e princípios comuns para 1 BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 27. 2 ONU. Relatório Panorama Global Ambiental – Geo5. Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente. 2012. Dis- ponível em: <http://www.pnuma.org.br/admin/publicacoes/texto/GEO5_RESUMO_FORMULADORES_POLITICAS.pdf>. Acesso em: 16 maio 2015. 3 RIEGER, Renata Jardim da Cunha. A posição de garantia no Direito Penal Ambiental – O dever de tutela do Meio- Ambiente na criminalidade de empresa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 25. Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente 35 a preservação do meio ambiente. Este documento serviu de paradigma e referencial ético para a comunidade internacional, a partir da recomendação da inclusão da problemática ambiental nos ordenamentos jurídicos como direito humano fundamental.4 Em 1992, realizou-se novo encontro, desta vez no Rio de Janeiro, conhecido como “Eco-92”, em que os princípios do encontro realizado na Suécia foram reafirmados e complementados, com vistas a “estabelecer uma nova e justa parceria global mediante a criação de novos níveis de cooperação entre os Estados, os setores-chaves da sociedade e os indivíduos”.5 O grande êxito do encontro recaiu sobre o reconhecimento da assimetria entre países desenvolvidos e poluentes e aqueles em estágio de desenvolvimento, no que tange à responsabilidade destes no plano internacional. Na contemporaneidade, a tutela jurídica do am- biente é uma exigência globalmente reconhecida, desenvolvendo-se a evolução normativa a partir de um imperativo elementar de sobrevivência e solida- riedade de responsabilidade histórica das nações pela preservação da natureza para o presente e para o futuro.6 O Direito Ambiental apresenta-se com traços de elevada complexidade, por causa de sua dependência científica e interdisciplinar, além da considerável incidência de conflitos de interesses, motivações econômicas epolíticas na sua formulação e aplicação. Situa-se em uma área de confluência de decisões políticas que refletem na escolha de valores éticos, jurídicos, culturais, econômicos e sociais novos, ainda em fase de afirmação.7 4 KRELL, Andreas Joachim. Do meio ambiente. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lênio Luis; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang (Orgs.) Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2079. 5 ONU. Declaração do Rio sobre meio-ambiente e desenvolvimento, 1992. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/ img/2012/01/rio92.pdf>. Acesso em: 16 maio 2015. 6 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 12. 7 KRELL, Andreas Joachim. Do meio ambiente. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lênio Luis; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang (Orgs.) Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2078. Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente Saiba Mais FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 11. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. 36 Neste cenário, o recurso ao Direito Penal decorre de uma opção político-criminal do legislador brasileiro, que segue a tendência global de instrumentalização jurídico-criminal do aparato repressivo do Estado, percebida nos movimentos de expansionismo penal. 2. O expansionismo Penal As mais recentes mudanças nos meios de controle do crime foram conduzidas não apenas por considerações criminológicas, mas também por forças históricas que transforma- ram a vida social e econômica da segunda metade do século XX.8 Jesús-Maria Silva Sánchez afirma: “a existência de uma tendência claramente dominante em todas as legislações no sentido da introdução de novos tipos penais, com um agravamento dos já existentes”.9 Desde a década de 1970, a evolução do Direito Penal material e processual se caracteriza, sobretudo, por sua notável expansão. Tal ampliação da pretensão de controle penal pode perceber-se facilmente em uma série de subsistemas sociais (por exemplo, meio ambiente, economia, comunicação, política etc.). Assim, o Direito Penal simbólico substitui nestes âmbitos a antiga forma de intervenção de caráter político-social; o controle penal deve conseguir o que aos outros meios (políticos) não parece alcançável: a prevenção e a evitação de condutas socialmente lesivas.10 Atualmente, a realidade afasta o pensamento penal de sua forma classicamente concebida,11 mostrando-se inconcebível o estudo das relações jurídico-penais “deste cenário complexo por um viés moderno, baseado em aparatos legais ultrapassados, datados de quando apenas a 8 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução de André Nasci- mento. Rio de Janeiro:.Revan, 2008, p. 181. 9 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 28. 10 BESTE, Hubert; VOB, Michael. Las deformaciones del derecho penal por los servicios privados de seguridád. In: CA- SABONA, Carlos Maria Romeo (Coord.). La insostenible situación del derecho penal. Albolote: Comares, 1999, p. 347. 11 CAPELLARI, Álisson dos Santos. Controle penal das movimentações financeiras: dever de informar versus direito à privacidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013, p. 117. Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente Links Para mais informações e dados atua- lizados, veja: <http://www.ibccrim.org. br>. 37 criminalidade clássica apresentava uma real ameaça à dinâmica social”.12 A expansão do Direito Penal é analisada por Löic Wacquant como fruto da aplicação do modelo neoliberal13 – que sustenta o “Estado Social Mínimo” em favor de um “Estado Penal Máximo”, apontando este como o grande paradoxo dessa ideologia, ao tempo em que a penalidade neoliberal intenta sanar com uma maior intervenção estatal policialesca e penitenciária, “o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países [...]”.14 Jesús-Maria Silva Sánchez contrapõe-se a essa perspectiva, aludindo que a expansão do Direito Penal deve-se à limitada capacidade do Direito Penal Clássico de combater delitos diversos originados da constatação deste novo contexto paradigmático da complexidade na sociedade pós-moderna: [...] Criação de novos ‘bens jurídico-penais’, ampliação dos espaços de risco jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios políticos-criminais de garantia não seriam mais que aspectos dessa tendência geral, à qual cabe referir-se com o termo ‘expansão’. [...]15 Silva Sánchez refere-se, ainda, ao fato de que o fenômeno da expansão do direito penal manifesta-se como resultante de “uma espécie de perversidade do aparato estatal, que buscaria no permanente recurso à legislação penal uma (aparente) solução fácil aos problemas sociais [...]”,16 ao mesmo tempo em que deslocaria tal resolução do plano da proteção efetiva (instrumentalidade) para um plano simbólico.17 12 CAPELLARI, Álisson dos Santos. Controle penal das movimentações financeiras: dever de informar versus direito à privacidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013, p. 118. 13 Norberto Bobbio define o neoliberalismo como a doutrina econômica consequente da qual o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre necessário, ou, em outros termos, uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário (BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1997, p. 87). 14 WACQUANT, Löic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001, p. 7. 15 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 28. 16 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29. 17 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29. Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente 38 A tensão percebida entre a ideia de uma maior ou menor intervenção penal do Estado é referida por Luigi Ferrajoli sob a perspectiva da tendenciosidade de determinado Estado a um “Direito Penal Mínimo” e “Direito Penal Máximo”, referindo-se a maiores ou menores “vínculos garantistas estruturalmente internos ao sistema quanto à quantidade e qualidade das proibições e das penas nele estabelecidas”.18 Entre os extremos, Ferrajoli aponta “sistemas intermediários, até o ponto de que se deverá falar mais apropriadamente, a propósito das instituições e dos ordenamentos concretos, de uma tendência ao direito penal máximo [...]”.19 Como Sérgio Salomão Shecaira leciona: O modelo padrão de comportamento social dos países globalizados sugere a existência de novos paradigmas normativos de análise jurídica. Surgem novos patamares punitivos com o incremento da repressão penal. Manifesta-se, sobremaneira, em determinadas esferas, com a criação de novos tipos penais e com o aumento da severidade das penas.20 Analisada polêmica acerca das justificações para o expansionismo penal, constata-se que esse incremento dos espaços daresposta jurídico-criminal forjou-se por meio de “arsenal punitivo construído sob categorias escassamente garantistas”,21 “a partir de uma ideia de ‘expansão’ do Direito Penal sem qualquer consideração com a busca de uma resposta racional”.22 No que tange à ideia de racionalidade na resposta jurídico-penal, “existe um nexo profundo entre garantismo e racionalismo”,23 referindo-se ao modelo do direito penal mínimo, sustentando acerca do Direito Penal que o mesmo apenas pode ser considerado racional e 18 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 101. 19 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 103. 20 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Ainda a expansão do direito penal: o papel do dolo eventual. Revista Brasileira de Ciên- cias Criminais, São Paulo, v. 15, n. 64, p. 234, jan./fev. 2007. 21 FAYET JUNIOR, Ney. Criminalidade Econômica e Princípio da Racionalidade. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.) Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 173-196. 22 Ibidem, p. 173-196. 23 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribuinais, 2010, p. 102. Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente 39 correto “à medida em que suas intervenções são previsíveis; apenas aquelas motivadas por argumentos cognitivos de que resultem como determinável a ‘verdade formal’”.24 De outra banda, há de se assumir que o modelo do direito penal máximo apresenta-se como “incondicionado e ilimitado”, caracterizado por uma severidade excessiva, bem como pela incerteza e pela imprevisibilidade nas condenações e nas penas, que se configura “como um sistema de poder não controlável racionalmente em face da ausência de parâmetros certos e racionais de convalidação e anulação”.25 Partindo dos apontamentos suscitados anteriormente, há de se focar os fundamentos constitucionais de proteção do meio ambiente, bem como os principais dispositivos criminais presentes na legislação criminal brasileira. 3. Fundamentos Constitucionais da Tutela Jurídico-Penal do Meio Ambiente O reconhecimento do meio ambiente como interesse da humanidade, na medida do incremento da necessidade de enfrentamento dos problemas decorrentes das questões ambientais, levou o constituinte brasileiro a estabelecer um direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, conforme disposto no artigo 225 da Constituição Brasileira de 1988, que estende e reforça o significado dos direitos à vida e à saúde, além da dignidade da pessoa humana, para garantir uma vida saudável e digna que propicie o desenvolvimento humano,26 resguardando inclusive o direito de futuras gerações (“solidariedade geracional”). Como objeto de proteção constitucional, o conceito de meio ambiente não abarca somente elementos naturais (como água, ar, solo etc.), mas também seus aspectos artificiais e culturais, no que se inclui a estética da paisagem natural e o ambiente construído pelo próprio homem, como o patrimônio histórico e cultural. 24 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribuinais, 2010, p. 102. 25 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribuinais, 2010, p. 102. 26 KRELL, Andreas Joachim. Do meio ambiente. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lênio Luis; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang (Orgs.) Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 2078. Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente 40 Desta forma, o ambiente apresenta-se como um bem jurídico de natureza metaindividual, de cunho difuso, dirigido ao coletivo ou ao social, de representação informal em certos setores da sociedade, com sujeitos indeterminados e cuja lesão tem natureza extensiva ou disseminada.27 Trata-se de bem jurídico peculiar à própria natureza do Estado democrático e social de direito (estado-coletividade), materialmente considerado.28 A partir da inclusão de um mandado expresso de criminalização que prevê a cominação de sanções penais e administrativas para pessoas físicas e jurídicas que causem lesão ao bem jurídico, o constituinte originário determinou a intervenção, reduzindo a discricionariedade do legislador infraconstitucional e estabelecendo a imposição de medidas coercitivas a transgressores do bem jurídico meio ambiente.29 Outro aspecto relevante refere-se à responsabilização penal da pessoa jurídica, consoante disposição do artigo 173, § 5º da Constituição Federal,30 na hipótese do artigo 225, §3º,31 de ocorrência de condutas lesivas ao meio ambiente, que não encontra similar no ordenamento jurídico brasileiro. A temática ainda é polêmica na doutrina brasileira, coexistindo opiniões contrárias32 acerca da adequação dogmática do instituto perante o modelo brasileiro de imputação da responsabilidade penal.33 27 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 78. 28 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 78. 29 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 79. 30 Art. 173 [...] § 5º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e finan- ceira e contra a economia popular. 31 Art. 225 [...] § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídi- cas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. 32 “Logo a criminalização da pessoa jurídica, como forma de responsabilidade penal impessoal, é inconstitucional: as normas do art. 173, § 5º e do art. 225, §5º, da Constituição, não instituíram – nem autorizaram o legislador ordinário a instituir a exceção da responsabilidade penal da pessoa jurídica”. Conforme DOS SANTOS, Juarez Cirino. Responsabili- dade Penal da Pessoa Jurídica. In: PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (Coord.). Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica – em defesa do princípio da pessoa jurídica - em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 279. 33 Dá-se o nome de “Sistema de dupla imputação” ao mecanismo de imputação de responsabilidade penal às pessoas jurídicas, sem prejuízo da responsabilidade pessoal das pessoas físicas que contribuíram para a consecução do ato. (SHECAIRA, Sérgio Salomão. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 137. Aula 02 | Breves Apontamentos sobre a Tutela Penal do Meio Ambiente 41 Passa-se, assim, a analisar os principais dispositivos jurídico-penais constantes em nosso ordenamento, que, reconhecendo o meio ambiente como bem jurídico digno da tutela penal, pretendem perfazer sua tutela. 4. A Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente A Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente (Lei n. 9.605, de 12 fev. 1998) apresenta natureza híbrida, constituída de conteúdo penal, administrativo e internacional.34
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