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LANÇAMENTOS DA IMAGO EDITORA 
Dicionário Crítico de Psicanálise, de Charles Rycroft 
Introdução à Obra de Melanie Klein, de Hanna Segal 
O Brincar e a Realidade, de D. W. Winnicott 
Conferências Brasileiras 1- São Paulo 1973, de W. R. Bion 
Autismo e Psicose Infantil, de Frances Tustin 
A Possessão da Mente, de William Sargant 
Sexualidade e Agressividade na Maturação: Novas Direções, 
de H. Sydney Klein ( org) 
Narrativa da Análise de Uma Criança, de Mela�ie Klein 
T@íbhoteta jf reullíana 
INTRODUÇÃO À EPISUMOlOCIA DA PSICOlOCI4 
Com a presente lnt1·odução à Epis­
temologia da Psicologia, o autor, pro­
fessor de epistemologia e de filosofia 
das ciências na PU C do Ri.1J de J a­
neiro, recém-doutorado na França 
com uma tese sobt·e A Epistemologia 
das Relações lntm·disciplinares nas 
Ciências do Homem, faz uma análise 
histórico-crítica do "fundo de saber", 
isto é do "solo" ou "horizonte'' epis­
temolÓgicos sobre o qual se constitui 
a psicologia, enquanto essa disciplina 
sempre reivindicou o estatuto de cien­
tificidade. Assim, o que pretende o 
autor é mostrar as dorninâncias histó­
ricas que levaram a psicologia a ace­
der ao estatuto de saber objetivo. Ao 
mesmo tempo, porém, faz uma crítica 
aos critérios de cientificidade adota­
dos por essa disciplina. A psicobgia 
tentou encontrar numa eficácia d-is­
cutível a justificação de seu earáter 
objetivo. Eficácia discutível, porque 
mal fundada, seu estatuto estando ba­
seado mais num "empirismo comp5-
sito para fins de ensino". 
Portanto, trata-se, de fato, de uma 
epistemologia histórica da psk·olo­
gia: sem referência à crítica episte­
mológica, o discurso psicológico seria 
uma meditação sobre o vazio; e sem 
relação à história, a epistemologia 
seria uma réplica inútil da psicologia. 
A análise do conceito de psicologia, 
coloca em questão a existência do 
psicólogo: se este não sabe quem ele 
é, não saberá o que está fazendo; E 
aquilo que o psicólogo procura fazer, 
é uma ciência. Mas ciência de quê? 
Ao converter-se em ciência, a psico­
logia se esquece do homem. E ao se 
tornar humana, corre o risco de não 
ser aceita corno ciência. Talvez sua 
"desgraça" consista em ter que es­
tudar um "objeto" que é um "sujeito", 
e um sujf�ito que fala! 
O autor mostra que a psicologia 
científica e experimental do séc.ulo 
XIX, com suas fabulosas conquistas 
técnicas, está em vias de nos brindar, 
como "modelo humano", com um sim­
ples robô mais ou menos aperfeiçoa­
do. Não nega em absoluto o valor e 
a utilidade social da psicologia. Ten­
ta apenas questioná-la. Ela corre o 
risco de ser absorvida por aqueles 
que dela se utilizam e explorant: é 
utilizada muitas vezes, não mais em 
função de suas ex1gencias próprias, 
mas das necessidades sociais ideolo­
gicamente condicionadas. Talvez seja 
por isso que, "de muitos trabalhos 
psicológicos, podemos ter a impres­
são de que misturam, a uma filoso­
fia sem rigor, uma ética sem exi­
gência e uma medicina sem con­
trole" ( Canguilhem). 
O que as instituições esperam da 
psicologia, é que ela adapte e integre 
cada vez mais o indivíduo à socie­
dade: adaptação ao trabalho, esti­
mulante da produção e da venda, da 
publicidade; adaptação e integração 
física, psicológica e espiritual do in­
divíduo ao seu meio, do louco ao 
hospital, do mutilado em vista da re­
educação, da criança ao programa. 
etc. E na medida em que planifica o 
meio humano, corre o risco de se tor­
nar um anexo ou um apêndice das 
ciências do meio ambiente, um capí­
tulo da ecologia. 01·a, nessa perspec­
tiva ecológica, seu êxito é inegável, 
pois dispõe de recursos técnicos para 
readaptar o indivíduo às estruturas 
tecnológicas, científicas, econômicas e 
culturais de nossa sociedade. 
Não se aplicariam aos psicólogos 
essas palavras de Nietzsche: "Vocês 
são seres frios, que se sentem tão en­
couraçados contra a paixão e a qui­
mera; bem que gostariam que sua 
doutrina se tornasse um adorno e um 
objeto de orgulho! . Vocês se rotulam 
de realistas e dão a entender que o 
mundo é verdadeiramente feito tal co­
mo ele lhes aparece"? Talvez não fos­
se exagero dizel·, com Althusser, que 
certas evidências que servem de fun­
damlmtos a numerosas disciplinas das 
técnicas humanas de adaptação, nada 
mais são do que "oomodidades teóri­
cas para seus autores e comodidades 
práticas pa�·a sua clientela". É por 
isso que o filósofo tem o direito de 
colocar à psicologia a seguinte ques­
tão: diga-me para onde você tende, 
para que eu saiba o que você é. E 
Canguilhem diz que o filósofo pode 
ainda dirigir-se ao psicólogo sob a 
forma de um conselho de orientação: 
"quando deixamos a Sorbonne peia 
rua Saint-Jacques, podemos subir ou 
descer; se subimos, aproximamo-nos 
do Panthéon, que é o conservatório 
de alguns homens ilustres, mas, se 
descemos, dirigimo-nos certamente 
para o Quartel de Policia". 
JAYME SAL,OM1.0 
SUMÁRIO 
Introdução 7 
I. CONSTITUIÇÃO DAS CI:f:NCIAS HUMANAS 13 
1. O Problema da Cientificidade 15 
2. Impacto d a Ciência Moderna 20 
3. A Emergência das Ciências Humanas 26 
li. A EMERGÊNCIA DA PSICOLOGIA CIENT1FICA 37 
1 . Especialidade da Psicologia Experimental · 39 
2. O Clima Positivista de seu Nascimento 45 
3 . O Estatuto Científico 54 
UI. BEHA VIORISMO E INTROSPECÇÃO 63 
1. A Psicologia Introspectiva 65 
2. Reflexologia e Behaviorismo 68 
3 . De Comte ao Behaviorismo 76 
IV. BEHAVIORISMO EM QUESTÃO 9 1 
1 . A Psicologia Fenomenológica 96 
2. A Psicologia Psicanalítica 101 
3 . A Objetividade Psicológica 114 
V. A "PSICOLOGIA DOS PSICóLOGOS" 1 35 
1. A "Tecnologid' Psicológica 1 37 
2. "Tecnologia" sem o Homem 152 
Conclusão 1 65 
Bibliografia Sumária 171 
INTRODUÇÃO A EPISTF;MOLOGIA DA PSlCOLOGIA 
Copirraite (c) 1975 de Hilton Japiassu 
Editoração 
Coordenador: PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA 
Revisão: FRANCISCO DE ASSIS PEREIRA 
Capa: LEON ALGAMIS 
1975 
Direitos adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA., 
Av. N. Sra. de Copacabana, 330, 109 andar, 
tel.: 255-2715, Rio de Janeiro. 
Impresso no Brasil 
Printed in Brazil 
Composto e impresso nas oficinas da Empresa Grá11ca O CRUZEIRO S. A. 
Rua do Livramento, 189/203-ZC-14 - FRRI 104.823j01 - CGC 33.529.124 - RJ. 
HILTON JAPIASSÜ 
IntrodUção à 
Epistemologia 
da Psicologia .. · 
Série Logoteca 
Direção de 
JAYME SALOMÃO 
·Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de 
Janeiro. Membro da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro. 
Membro da Sociedade de Psicoterapia Analitica de Grupo do Rio 
de Janeiro. 
lMAGO EDITORA LTDA. 
Rio de Janeiro 
INTRODUÇÃO 
Falar, hoje em dia, de "ciências humanas" e, conseqüen­
temente, da psicologia, senão enquanto é uma ciência humana, 
pelo menos enquanto estuda certos fenômenos humanos, já é 
engajar-se num espaço polêmico. Porque, sob o título de "ciên..: 
cias hutmanas", podem alinhar-se disciplinas que freqüente­
mente nada têm de comum, quando não se excluem explícita 
ou implicitamente. Por outro lado, não são poucos os cientistas 
que ainda contestam a essas disciplinas a "honra" e o estatuto 
de "ciência". Evidentemente, em nome de uma concepção pre­
estabelecida daquilo que deve ser considerado como propria­
mente científico. Melhor ainda, em nome de uma "crença" DJ\­
quilo que parece já ter sido prefixado aprioristicamente como 
devendo ser "ciência". Nosso esforço, ao estudar as vias de 
acesso da psicologia ao estatuto de cientificidade, dentro do 
quadro geral . das ciências humanas, não é o de conciliar ou 
de reconciliar. Pelo contrário, trata-se de, na medida do possível, 
colocar em ordem e justificar. Na verdade, um "discurso" so­
bre as ciências humanas é um discurso em que a teoria se faz . 
estrãtégia. Não resta dúvida que tal discurso implica que se 
faça, previamente, uma demarcação nítida entre as técnicas 
(políticas, econômicas, comerciais, ideológicas, etc.) ampla­
mente utilizadas sob o rótulo de ciências empíricas do homem, 
e os trabalhos propriamente teóricos que, contrariamente ao que 
comumente se pensa, ainda hesitam emreconhecer uma vali­
dade epistemológica e, conseqüentemente, científica, ao que se 
convencionou chamar de "ciências humanas". O mínimo que 
se pode dizer é que essa expressão se presta a discussões. Se 
ela se impôs, foi por uma simples questão de oportunidade: 
recebeu a consagração das instituições universitárias. 
7 
É claro que a _expressão "ciências humanas" não tem uma 
significação lógica. Designamos, com ela, o conjunto de todas 
as disciplinas comumente agrupadas sob esse nome: economia, 
sociologia, psicologia, antropologia, geografia, etnologta, lin­
güística, história, pedagogia, etc. A esta enumeração, poderia 
ser acrescentada uma definição descritiva, sem atribuir-lhe qual­
quer validade epistemológica. Neste caso, as ciências humanas 
seriam as disciplinas que têm por objeto de investigação as 
diversas atividades humanas, enquanto estas implicam relações 
dos.homens entre si e com as coisas, bem como as obras, as 
instituições e as relações que daí resultam. Uma definição mais 
rigorosa suporia toda uma sistematização, o que nos levaria a 
uma teoria idas ciências humanas, semelhante ou distinta das 
teorias atualmente elaboradas. 
Para boa parte dos trabalhos teóricos sobre essas discipli­
nas, a expressão "ciências humanas" significa, não um domínio 
qualquer (o homem) apresentando-se à investigação científi­
ca, mas algo bastante distinto daquilo que se apresenta sob o 
rótulo de "ciência". Através daquilo que tais trabalhos podem 
ensinar sobre o inconsciente, sobre a linguagem ou sobre a his­
tória, podemos facilmente notar que eles subtraem à ciência 
a extraterritorialidade e a intemporalidade nas quais ela viveu 
durante séculos. Assim, muito mais do que "o homem", ou 
mesmo, do que "o Sujeito", é o próprio conceito de "ciência" 
que está em crise. Na verdade, as ciências humanas elaboram 
uma crítica da ciência. E elas o fazem, na medida em que não 
são propriamente empíricas nem tampouco dogmáticas, mas 
históricas. Se elas não correspondem ao que se convencionou 
chamar de "ciência", nem por isso podem ser relegadas ao 
domínio da literatura ou da poesia. Uma ciência se define, 
antes de tudo, por uma problemática própria e por um campo 
específico de investigação, sobre os quais se aplica um mé­
todo rigoroso. Mas isto não quer dizer que não passe por cri­
ses ou que não tenha necessidade de passar por reorganizações 
mais ou menos profundas. Aliás, a reflexão epistemológica nas­
ce sempre a propósito das crises ou impasses desta ou daquela 
ciência. E essas crises resultam de uma lacuna dos métodos 
anteriores, que deverão ser ultrapassados graças à· invenção 
de novos métodos. 
8 
A epistemologia atual, ao constatar uma pluralidade de 
discursos científicos, coloca em questão o ideal de "a ciência". 
Por outro lado, constata a falência do arquétipo matemático 
como modelo exclusivo. Uma síntese das ciências, do tipo da 
síntese newtoniana, não somente é hoje impossível, como não 
deve ser lamentada. O objeto que a expressão "a ciência" de­
signava, não existe mais. O ideal de "a ciência" (no sentido em 
que se fala de um ideal do ego) parece ter-nos levado a um lu­
gar de verdade que o nome "Deus" servia para des�gnar: não 
havia ciência e verdade senão nele e para ele. Não é por acaso 
que, sob diversas capas humanísticas, o irrompimento da ciência 
moderna foi o sintoma de uma mutação ideológica que, entre 
seus aspectos essenciais, comportou a crítica da religião. Assim, 
na anedota do processo de Galileu, podemos constatar que, 
por detrás da oposição ciência-religião, é preciso ler o momen­
to em que a çiência se desliga deste "Ideal" que a colocava 
sop a tutela religiosa. 
Uma vez liberado da exclusão de Deus, colocado fora 
das referências científicas, o homem, por um dup:o desloca­
mento, vai tentar definir-se: . de um lado, enquanto objeto de 
ciência (homem se opondo a natureza), do outro, enquanto 
sujeito da ciência (homem se substituindo a Deus). Daí uma 
oscilação, constitutiva das ciências humanas; entre uma teoria 
do sujeito da ciência e uma tentativa de construção do objeto 
antropológico. O resultado foi o surgimento de alguns proble­
mas de definição: se toda ciência funciona dentro de um se­
tor, cuja definição garante a pertinência de suas proposições, 
quais as fronteiras das ciências humanas? Três proposições en­
tram em jogo: a) a primeira, considerando o progresso técni­
co como uma afirmação do homem e uma "humanização" da 
natureza, reduz o objeto das ciências humanas à natureza hu­
manizada: dissolução do natural no homem; b) a segunda, con­
siderando o progresso científico em si mesmo, dissolve o hu­
mano no natural; c) a terceira, enfim, considerando menos o 
objeto dà ciência do que o fato científico em si mesmo, cons­
tata que ele é um produto da história humana. 
Tudo parece indicar que, ainda hoje, é a rivalidade des­
sas três atitudes que melhor define o campo de investigação 
das ciências humanas. Estas, na verdade, agrupam pesquisas 
9 
bastante heterogêneas: o que é que nos permite incluir num 
mesmo conjunto disciplinas tão estranhas e distantes quanto 
a geografia e a lingüística? Ou, então, disciplinas exclusivas 
uma da outra, como a psicologia e a psicanálise? Em contra­
partida, pode-se constatar, nessas disciplinas, certas "concor­
rências" ou recobrim�ntos indefinidos: há uma geografia das 
línguas e uma língua da geografia; há uma psicanálise da psi­
cologia e uma psicologia do psicanalista. É por isso que Mi­
chel Foucault diz 'que todas as ciências humanas se entrela­
çam e podem ser estudadas umas pelas outras; suas fronteiras 
desaparecem; disciplinas intermediárias e mistas multiplicam­
se todo dia, a ponto de o objeto próprio das ciências humanas 
ter-se praticamente dissolvido (Les mots et les choses). De 
sorte que poderíamos fazer dessa "confusão", dessa indecisão, 
o traço característico das ciências humanas em nossos dias. 
É levando em conta esta problemática, e dentro desta 
perspectiva, que iremos analisar a Psicologia, enquanto disci­
plina "humana" com pretensões científicas. Trata-se de um tra­
balho que pode ser incluído no domínio mais vasto da epis­
temologia das ciências humanas. Num setor mais estrito, dize­
mos que se trata da epistemologia da psicologia. Com efeito, 
aquilo pelo que se interessa a epistemologia da psicologia, 
aquilo de que ela se ocupa, em conformidade com aquilo a que 
ela visa, consiste em procurar saber como se formam, como 
se desenvolvem, como se articulam ou funcionam os conheci­
mentos: a) tais como eles são elaborados pelos "especialistas" 
(psicólogos), enquanto estes são ao mesmo tempo sujeitos e 
objetos de conhecimento, inseridos num determinado contex­
to sócio-cultural; b) e na medida em que a psicologia deve dis­
tinguir-se das ciências naturais por um modo próprio de atin­
gir a objetividade científica. 
Cabe, aqui, uma pergunta: em nome de que, alguém que 
não é psicólogo, pode interrogar-se sobre a psicologia? Em 
outras palavras, em nome de que, posso eu interessar-me pela 
psicologia, não tendo a competência do psicólogo? Evidente­
mente, jamais conseguimos justificar inteiramente o partis pris 
de um livro. No entanto, aquele que se dedica à filosofia ou 
a esta sua vertente, que é a epistemologia, não pode deixar 
de fornecer suas razões. Em primeiro lugar, creio que a epis-
10 
temologia está estreitamente ligada à história das ciências. E 
que ela se confunde em grande parte, no caso da psicologia, 
com a história dos conceitos e das teorias dessa disciplina. 
E no dizer de G. Canguilhem (fitudes d'histoire et de philo­
sophie des sciences, 1970), há três razões para se fazer a his­
tória de uma disciplina: a) uma histórica, extrínseca à ciência; 
b) outra científica, realizada pelos cientistas enquanto são pes­
quisadores; c) a terceira, enfim, propriamente filosófica. Esta 
se justifica da seguinte forma: "sem referência a uma episte­
mologia, uma teoria do conhecimento seria uma meditação so­
bre o vazio". 
E ao interrogar-sesobre "o que é a psicologia?", Cangui­
lhem reconhece que se trata de uma questão embaraçosa para 
a psicologia, pois a "questão de sua essência ou, mais modes­
tamente, de seu conceito, coloca em questão a própria existên­
cia do psicólogo", na medida em que, não sabendo responder 
exatamente quem ele é, torna-se-lhe extremamente difícil jus­
tificar aquilo que faz. É por isso que vai buscar, numa "eficá­
cia sempre discutível, a justificação de sua importância de es­
pecia1ista". E esta "eficácia" continuará sendo "discutível" en­
quanto o psicólogo, na busca de um estatuto de cientificidade 
para sua disciplina, não ultrapassar certo "empirismo compó­
sito, literalmente codificado para fins de ensino". A conclusão 
de CanguiJhem é a de que compete ao filósofo colocar à psi­
cologia a seguinte questão: "diga-me para onde tendes, para 
que eu saiba o que tu és. Mas o filósofo pode ainda dirigir-se 
ao psicólogo sob a forma - uma só vez não cria hábito - de 
um conselho de orientação: quando deixamos a Sorbonne pela 
rua Saint-Jacques, podemos subir ou descer;. se subimos, apro­
ximamo-nos do Panthéon, que é o Conservatório de alguns ho­
mens iJustres; se descemos, porém, dirigimo-nos seguramente 
para o Quartel de Polícia". 
É neste sentido que irão siruar-se nossas interrogações so­
bre a psicologia, sobre seu processo histórico de ascensão ao 
estatuto de cientificidade. Evidentemente, como já frisei, só 
posso questionar a psicologia graças a certa incompetência 
nessa matéria. Contudo, ao questioná-la, através da epistemo­
logia histórica, não o farei na qualidade de especialista que se 
interroga sobre sua própria prática. Isto pode comportar certo 
11 
risco de desqualificação de nossa interrogação. Mas estou cons­
ciente desse risco. E estou convencido de que preciso corrê-lo, 
em nome exatamente daquilo que pretendo compreender e ques­
tionar. Em primeiro lugar, tentarei mostrar o processo de cons­
tituição das ciências humanas em geral. Em seguida, mostra­
rei a emergência da psicologia científica. Numa terceira parte, 
tentarei explicitar as condições de autodeterminação científica 
por parte da psicologia. O quarto capítulo será dedicado a al­
guns questionamentos ao behaviorismo psicológico. Finalmente, 
farei alguns questionamentos à psicologia behaviorista ainda 
vigente, cujas bases teóriéas me parecem bastante frágeis, mas 
que é chamada, pela cultura atual, a desempenhar um papel 
relevante e a dar sistematicamente sua contribuição para re­
solver tecnicamente muitos dos conflitos gerados pela acelera­
ção brutal das mutações sociais. Assistimos hoje a uma espé­
cie de "psicologização galopante" de nossa cultura. Sem che­
garmos ao extremo de dizer, como L. Althusser, que a psico­
logia· atual é uma dessas disciplinas que se constituem em téc­
nicas humanas de adaptação, "meras comodidades teóricas para 
seus autores, e comodidades práticas para sua cliente!a", não 
podemos deixar de reconhecer que ela nasceu, se desenvolveu 
e ainda opera sob a influência das transformações científicas, 
técnicas, econômicas e políticas da sociedade industrial. Fou­
cault diz que ela é "ema prática generalizada da perícia". 
12 
I 
CONSTITUIÇÃO DAS CIÊNCIAS 
HUMANAS 
''··· 
1. 0 PROBLEMA DA CIENTIFICIDADE 
Não são poucos os epistemólogos que, ainda hoje, contes­
tam às ciências humanas seu título de ciência. Michel Foucault 
(Les mots et les choses, capítulo X) , por exemplo, articula 
essa contestação de modo bastante argumentado. Ele acha in­
teiramente desnecessário considerar as "ciências humanas" 
como sendo falsas ciências. Elas não são, em absoluto, ciên­
cias. Nada têm a ver com aquilo que pode ser denominado 
"ciência". A configuração que define a positividade daquilo 
que hoje chamamos de "ciências humanas", e que as enraíza 
na episteme moderna ( episteme é esse campo onde, num tem­
po preciso, determinam-se os a prioris históricos: as condi­
ções de possibilidade do saber e os princípios de sua ordenação), 
coloca-as fora do estatuto de cientificidade. Se quisermos sa­
ber a razão pela qual as ciências humanas receberam histori­
camente esse título, basta estarmos atentos a este simples fato: 
"compete à definição arqueológica de seu enraizamento fazer 
apelo e acolher a transferência de modelos tomados de emprés­
timo às ciências". 
Evidentemente, esta posição de Foucault é função da teo­
ria que sua "arqueologia do saber" o conduziu a formular sobre 
as ciências humanas. Trata-se de uma teoria que pode ser con­
dens8lda em sua descrição do "triedro dos saberes" e na distin­
ção que ela estabelece entre as ciências da Vida (especial­
mente humana), do Trabalho e da Linguagem (essas seriam 
as únicas ciências verdadeiramente científicas) e as assim 
chamadas "ciências humanas". Estas, por sua vez, desenvol­
vem-se em estreita relação com as três ciências propriamente 
15 
ditas, numa percepção epistemológica bastante düerente, pois 
está sempre marcada pela intervenção da componente filosó­
fica. 
Para compreendermos por que as ciências humanas não 
são ciências, precisamos entender o que Foucau1t quer dizer 
por "existência" ou "inexistência" do homem. Trata-se apenas' 
do conceito de homem? Ou da multidão dos homens concretos 
que encontramos diariamente vivendo, agindo, criando e exis­
tindo? Em sua significação moderna, o "existir" aparece como 
uma "palavra". É assim que Rousseau, traduzindo o "penso, 
logo existo" de Descartes, afirma que "o mais útil e menos 
avançado de todos os conhecimentos humanos" é o conheci­
mento do homem. E a razão é que os livros científicos só nos 
ensinam a ver os homens tais como eles se fizeram. Ora, tais 
como eles se fizeram, pela cultura, não "existem" mais, apenas 
aparecem". Assim, o homem estudado pela ciência não passa de 
um fenômeno humano, fenômeno este que se tornou presa de 
uma linguagem. Como poderia o homem voltar a existir no inte­
rior da cultura? Foi de certa desconfiança em relação ao desen­
volvimento da cultura que nasceu o problema da "existência" 
do homem. Nietzche foi o primeiro filósofo que, ao atacar vio­
lentamente a ciência, a moral e a metafísica de seu tempo, 
chegou à conclusão de que o homem estava morrendo. E hoje, 
é Foucault quem afirma: "O homem é uma invenção cuja data 
recente a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. 
E talvez o fim próximo". 
No entanto, sempre se falou do homem, muito embora 
Foucault ache que uma coisa é certa: "o homem não é o mais 
antigo dos problemas nem o mais constante que se colocou ao 
saber humano". Nem tampouco pode ser o acesso à objetivi­
dade daquilo que, durante muito tempo, esteve entregue ao 
domínio das crenças e das filosofias. Talvez fosse mais correto 
dizer que o homem é a onipotência do saber, e que compete 
à arqueologia determinar suas disposições fundamentais. Este 
saber do homem está contido no círculo do saber religioso, 
filosófico, científico e arqueológico. É neste sentido que se 
pode comprender o êxito de Foucault: Q� homens atuais estão 
esmagados pela cultura e por seus resultados. Ea _ciência, de 
que tanto nos orgulhamos hoje em dia, mais parece um acervo 
16 
de conhecimentos acumulados nos livros do que çonhecimen­
to.s. que, de fato, possuímos em nós e que possamos compreen­
der. A lingüística e a etnografia nos ensinam que estamos sub­
metidos a leis que nos escapam. A psicanálise, por sua vez, 
mostra-nos que somos aquilo que ignoramos ser. Presos entre 
a superlinguagem da ciência e a sublinguagem da comunicação 
de massas, não sabemos mais o que significa verdadeiramente 
falar. Aqueles que pretendem saber utilizam um poder anôni­
mo para conduzir-nos, contra nossa vontade, a um lugar que 
nos foi como que preestabelecido por um destino inelutável. 
Tudo indica que é a civilização técnico-científica que elabora, 
sob medida, as condições "ideais" de nossa existência. O es­
forço do homem reduz-se a uma tentativa de adaptar-se a essas 
condições. Neste sentido, o termo "humanismo'] passa a sig­
nificar ainstauração de um reino de felicidades anunciado e 
programado pelos tecnocratas. Neste reino, o homem estaria 
desembaraçado deste enfadonho trabalho de pensar. No dizer 
de G. Bachelard, esse reino corresponde a um tipo de socie­
dade em que somos livres para fazer tudo, mas onde não há 
nada para se fazer; em que somos livres para pensar, mas onde 
não há nada sobre o que pensar. Ela saberá em nosso lugar. 
Estamos dormindo, em estado de sono antropológico. E este 
sono antropológico, de que Foucault pretende libertar-:-nos, são 
o psicologismo e o sociologismo atuais. 
Entretanto, do ponto de vista em que nos situamos aqui, 
toma-se bastante prematuro e difícil querermos instaurar uma 
teoria epistemológica das ciências humanas, concluindo que 
elas são ou não ciências. Por outro lado, ainda é cedo para 
discutirmos outras teorias a esse respeito. Talvez seja mais 
interessante dirigirmo-nos a essas disciplinas que se conside­
ram a si mesmas como ciências, a fim de lhes perguntar, em 
nome de que, ou de que critérios elas podem afirmar-se como 
ciências; em que elas se baseiam para se proporem a funciona­
rem como disciplinas científicas; o que elas entetlidem por 
ciência; como se. aproximam ou se distanciam de um conceito 
de ciência. E é neste sentido que iremos perguntar à psicologia 
que nos diga seus critérios de cientificidade,· que nos mostre 
seu funcionamento e nos revele a maneira como se identifica 
com a concepção 
_
de ciência ou como dela se afasta. 
17 
A este respeito, podemos começar por coisas simples, mas 
que têm a vantagem de serem razoavelmente evidentes. Não 
negligençiaremos, no entanto, as idéias provenientes da recon­
sideração prévia da relação cultural do conjunto das ciências 
humanas� ou daquilo que as anuncia em determinado momento 
histórico, com a totalidade mais ou menos comum do saber 
de nossa época. :e claro que, na época moderna clássica, fo­
ram as matemáticas e a física que forneceram à inteligência os 
modelos de cientificidade. Também foram elas que, ao mesmo 
tempo, forneceram o solo epistemológico relativamente ao qual 
se julgava o caráter mais ou menos científico das diversas prá­
ticas do conhecimento. 
Por outro lado, podemos facilmente constatar que, pelo 
menos no início, todos os estudos chamados a se constituírem 
progressivamente em "ciências humanas", foram estudos que 
tomaram por objeto, de modo mais ou menos espontâneo ou 
"ingênuo", determinada ordem de realidades ou de fatos hu­
manos: a percepção das cores ou das intensidades luminosas; 
ou, ainda, as taxas de mortalidade em determinada popula­
ção. E tentava-se introduzir, de modo mais ou menos eficaz, 
nessa ordem de realidades, conforme os casos, "algo de cientí­
fico". Ora, neste nível de espontaneidade, os estudos empreen­
didos, concernentes ao ser e aos fatos humanos, preocuparam­
se muito pouco em estabelecer a diferença que encontramos, 
por exemplo, no "triedro dos saberes"· de Foucault: entre as 
ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem. (que se encon­
tram dispostas no segundo eixo do triedro) e as disciplinas 
que seriam as ciências humanas propriamente ditas. · Por isso, 
comecemos nossa análise tentando esclarecer a relação exis­
tente, no pensamento responsável pela elaboração das ciên­
cias humanas, entre a percepção de certo modelo metodológico 
e a prática característica daquilo que pode ser chamado de 
ciência, e a prática efetiva do conhecimento considerado . como. 
"ciência humana", ou, pelo menos; reivindicando esse título. 
Trata-se de descobrirmos a fisionomia científica das ciên­
cias humanas e de elucidarmos seu desejo de referência empí­
rica e positiva. Em primeiro lugar, falaremos sucintamente. 
das ciências humanas em seu conjunto. Em seguida, tentare­
mos mostrar como a psicologia passou de um estado de saber, 
18 
pré-científico a ·um estado de saber propriamente científico, 
isto é, como ela acedeu a� estatuto de cientificidade que sem­
pre almejou conquistar e que parece defender com certa :vee­
mência. Em outros termos, trata-se de esboçarmos uma epis­
temologia da "observação" nas ciências humanas em geral, 
para em seguida. aplicarnios tal epistemologia ao caso espe­
cífico da psicologia. No entanto, convém situarmos, antes, os 
temas gerais da cientificidade das ciências humanas. Posterior­
mente, veremos quais são as categorias de objetividade da psi­
cologia. O primeiro tema consiste na preocupação sempre cons­
tante de uma referência empírica na base de toda a elaboração 
do conhecimento; o segundo diz respeito ao esforço intelectual 
para extrair as formas ordenadoras do conhecimento e de cons­
tituição dos objetos do pensamento: esquematismo, formalis­
mo, etc.; o terceiro conceme à busca de modelos explicativos, 
operatórios e preditivos permitindo ao pensamento não so­
mente a leitura inteligente dos dados, mas também uma mani­
pulação da realidade que ela aborda; o quarto,. enfim, refere­
se ao uso do cálculo e da quantificação. 
Bem entendido, não analisaremos ess�s quatro temas ou 
critérios de cientificidade, senão a propósito da psicologia. O 
que vai nos interessar, no tocante às ciências humanas, é mos­
trar o solo epistemológico ou o fundo de saber sobre o qual 
elas se constituíram e acederam, por isso mesmo, à era da po­
sitividade. Aliás, não podemos negar que a cultura contempo­
rânea esteja profundamente marcada pelo fato do estabeleci­
mento das ciências humanas num estatuto de cientificidade 
mais ou menos próprio. Elas · tentam como podem garantir 
este estatuto e 'vigiar para que ele seja reconhecido e respei­
tado. Algo já foi conquistado nesse domínio. Algo permanece 
ainda apenas reivindicado; Sua originalidade parece consistir 
numa ambigüidade: de uni lado, há uma exigência de inteligi­
bilidade, de "transcendência" ou de um a priori inconfessá­
veis; do· outro, situa-se a exigência de positividade, que nem 
sempre consegue atingir o "ideal" de cientificidade estabeleci­
do pelos. '!controles intersubjetivos"; Neste processo de cons­
tituição das ciências humanas, analisaremos, ein primeiro lugar, 
o impacto da emergência da ciência modema sobre a filosofia; 
em seguida, · as repercussões da constituição das ciências hu-
19 
manas e seus efeitos próprios; enfim, o acesso das ciências 
humanas à era da . positividade. 
2. IMPACTO DA CIÊNCIA MODERNA 
Qual o impacto que a maturação e tomada de conscien­
cia das ciências humanas tiveram sobre a filosofia? Um pri­
meiro exemplo importante da repercussão do advento e emer­
gência das ciências humanas sobre o pensamento filosófico foi 
"a deposição do sujeito pensante", bem como uma primeira 
instauração científica do estudo do homem e dos fatos huma­
nos. As coisas, porém, foram mais difíceis do que pode mos­
trar este exemplo. Porque tratou-se, não somente de descrever 
formalmente a emergência de um acontecimento epistemológi­
co e seu efeito questionador, mas de ressituar determinado 
número de conteúdos essenciais e de ver concretamente como 
eles reagiram uns sobre os outros. Fazer isso diretamente, a 
propósito das ciências humanas, e referindo-se ao estado con­
temporâneo daquilo que ainda podemos chamar de filosofia, é 
algo muito arriscado, dadas as dificuldades que a inteligência 
encontra de tomar um recuo relativamente às situações imedia­
tas nas quais ainda se acha imersa. 
Por isso, tentaremos apenas reconsiderar sucintamente 
uma situação passada, mas capaz de fornecer certo pano de 
fundo à análise e ao exame da situação presente. O que real­
mente acontece quando, passando à frente de um sistema mais 
ou menos estabelecido do saber, especialmente dos ensinamen­
tos recebidos do pensamento filosófico, um conjunto de disci­
plinas do conhecimento, até então sem estatuto científico sa­
tisfatório e poderoso, põe-se a emergir com grande força re­
novadora, apresentando novos conteúdos de saber e provocan­
do importantes mutações na atitude intelectual vigente? Dis­
pomos de um caso em que esta experiência epistemológica rea­
lizou-secom grande êxito. Trata-se da experiência levada a 
efeito entre 1550 e 1 650, com a criação da "ciência nova" ou 
"ciência moderna": retomada da matemática, avanço acelera­
do da física, provocando a renovação da astronomia e a con­
quista das primeiras bases da mecânica. E tudo isso sendo 
20 
acompanhado desta idéia clàrificadora da associação científica 
entre o pensamento teórico e a prática experimental em vista 
do conhecimento. � por uma volta a esta experiência, e pen­
sando em seu valor de analogia histórica e cultural relativa­
mente à nossa própria situação, que devemos iniciar. 
Não se pode negar que a .emergência da "_ciência moderna" 
provocou profundas repercussões sobre o sistema anterior. .. .do 
saber filosófico. Na verdade, em seu estado nascente, a física 
científica provocou uma dupla sacudidela epistemológica. A 
primeira diz respeito aos efeitos da conquista da mecânica cien­
tífica. Quanto a esses efeitos, remetemos o leitor à obra de A. 
Koyré, sobretudo ao seu Du monde clós à l'univers infini ( 1962). 
Por sua vez, a segunda sacudidela se refere aos efeitos da "re­
volução copérnica". 
Não se pode ignorar que o pensamento do Ocidente tenha 
conhecido um longo período no decorrer do qual as ciências da 
natureza física e da vida ainda estavam num estado de infân­
cia. Eram objetivamente pouco desenvolvidas. Praticamente, 
não estavam engajadas nos circuitos da eficácia humana. Este 
período só terminou nos meados do século XVII. Foi ainda 
necessário século e meio para que a ciência moderna da natu­
reza começasse a desenvolver um primeiro conjunto de reper­
cussões no seio da massa humana. Um primeiro conjunto de 
efeitos, primordialmente sobre a filosofia, foi a "revolução co­
pérnica", inaugurada em 1543 com o De revolutionibus orbium 
coelestium de N. Copérnico e que, após longa trajetória, tor­
nou-se reconhecida pelos homens cultos, já na época da con­
denação de Galileu ( 1 633 ) . Do ponto de vista da representa­
ção do mundo, é antes de tudo o fim do geocentrismo: des­
centração e relativização do lugar terrestre e, ao mesmo tempo, 
abandono da imagem de um munido fechado em proveito _ da 
representação de um espaço cósmico infinito. Não há mais em 
torno da terra sistema de esferas celestes. O olhar humano pe-­
netra doravante na exten_s_ão do céu, não encontrando mais os 
limites do universo. Muito mais ainda, é o fim do dualismo da 
representação do mundo, opondo à natureza terrestre corruptí­
vel, o sistema quase�divino da natureza celeste, materializàção 
de uma espécie de sobrenatureza visível e gloriosa acima da na-
tureza celeste. 
· 
21 
Em toda parte, no seio do universo visível, é o mesmo es­
paço indiferente, a mesma materialidade, o mesmo estatuto 
de base da existência. Um intermediário quase-empírico, entre 
a terra e o Deus "primeiro-motor" do universo, desvanece por 
completo. Estamos diante do que podemos chamar de a pri­
meira "desconstrução" de toda cosmologia. Ao mesmo tempo, 
porém, temos diante de nós esta terrível desilusão quanto a 
tudo aquilo que diz respeito ao antigo saber filosófico. A física 
deste saber, a filosofia natural, reduz-se a uma física quimé­
rica. A analítica escolástica do devir e de seus princípios, bem 
como os conceitos aristotélicos de . natureza e de sistema aas 
causas, passam doravante. a ser desacreditados pelo novo modo 
de apreender a realidade. Ademais, passam a ser considerados 
como produtos de uma pura verbalização ingênua e duvidosa 
de uma experiência sumária das coisas. Também neste domí­
nio, a filosofia natural revela-se menos um saber verdadeiro 
do que pretendia ser. Ao mesmo tempo, no plano do saber que 
procura extrair dos livros sagrados as fontes do conhecimento, 
a autoridade ·da Escritura revela-se invalidada em matéria de 
ffi>ica. Deve-se aprender a discernir nela os ensinamentos em 
matéria religiosa ou moral das representações mais ou menos 
arcaicas do mundo e do� fenômenos naturais. De ambos os 
lados, instaura.,.se uma crise bastante .. séria e de grande al­
cance. 
Portanto, as repercussões da "ciência moderna" sobre a 
filosofia foram de duas ordens: a) o fim da cosmologia esco­
lástica e a impossibilidade de restabelecer uma filosofia da 
Natureza; b) o nascimento da antropologia das "Luzes" (Ilu­
minismo). 
a) Ao término dessas duas sacudidelas epistemológicas 
de que falamos, o resultado mais evidente do advento e da 
emergência da "ciência moderna" da natureza foi o de pro­
vocar a desintegração daquilo que se acreditava "saber" do 
mundo físico. · Até então, o saber era a cosmologia ensinada 
nas escolas, cosmologia de origem greco-latina, impregnada de 
aristotelismo, conseguindo congregar e exprimir uma espécie 
de familiaridade concreta intelectual, estética, moral e religio­
sa do homem com o universo. A essa cosmologia, que se ex­
punha principalmente na língua usual, remetendo aos especia-
22 
listas o recurso às formas matemáticas (astronomia descritiva) , 
a física científica vai substituir um jogo de representações "cla­
ras e distintas", como dirá o cartesianismo, representações ele­
mentares e quantitativas, e que serão manipuladas matematica­
mente. A regra fundamental de sua constituição consistia pre­
cisamente neste manejo matemático: espaço, figura, movimen­
to, tempo. Passa-se a desconfiar da qualidade antiga, dora­
vante acusada de ser uma "qualidade oculta", simples determi­
nação "subjetiva" do psiquismo. Também os antigos ''princí­
pios" são recusados: a matéria é compreendida de forma: intei­
ramente diversa, e a idéia de "forma substancial" é simples­
mente proscrita. A figuração de conjunto do universo é revo­
lucionada, e dilacera-se o pacto de familiaridade do homem com 
a natureza. Tudo é suplantado por um novo empirismo intelec­
tualmente mais adulto, praticamente mais eficaz e, pelo menos 
para começar, · mais bárbaro, mais agressivo em relação ao 
mundo das coisas do que o antigo empirismo. 
Aquilo que, até o século XVI, chamou-se de "filosofia na­
tural", e que tentou, com maior ou menos êxito, sobreviver 
atràvés dos manuais de cosmologia, recebe um golpe de morte. 
A nova "filosofia natural" (emprega-se esta expressão no sé­
culo XVII, e seu uso se prolonga nos meios anglo-saxões até 
bem recentemente) é pura e simplesmente a ciência física, 
a mecânica de Galileu, depois, de Descartes e de Newton, com­
pletada pelo estudo experimental e matemático da qtica, do 
calor, da eletricidade, etc. Toma-se consciência de que o co­
nhecimento científico não é, propriamente falando, filosófico. 
·A partir de então, ele não é mais uma filosofia coerente da 
natureza. Foi todo um tipo de saber filÓsófico que se desinte­
grou e que sucumbiu na cultura ocidental, em conseqüência do 
advento e da expansão das ciências modernas da natureza. 
Da filosofia natural, só restaram lembranças históricas e tenta­
tivas parciais, inconsistentes e impotentes para reconstruir uma 
totalidade. É bem verdade que, no século XX, com as teorias 
da Relatividade, certo empreendimento intelectual de cosmolo­
gia global reaparece, mas, desta vez, no interior do próprio 
pensamento científico. 
b) Para um estudo mais detalhado do nascimento da 
antropologia das "Luzes", remeto o leitor ao .desenvolvimento 
23 
que faz G. Gusdorf em La science de l' homme au siecle des 
Lumieres ( 1 974) e em Introduction aux sciences humaines· 
( 1974 ) . Quero ressaltar apenas que, com o advento da ciên­
cia moderna da natureza, tem início uma nova antropologia. 
Sua constituição é complexa, até mesmo quase contraditória, 
pois faz a associação de uma visão objetiva do homem como 
ser deste mundo terrestre, ser de natureza material e física, e 
de uma visão subjetiva da relação do homem com o conjunto 
da natureza e consigo mesmo. 
Do ponto de vista da visão objetiva do homem, é _ a que­
bra da unidade ambígua concreta entre o organismo material 
do indivíduo humano e seu psiquismo espiritual : "hilemorfis­
mo" do "corpo" humano e da "alma" humana. Enquanto or­
ganismomaterial, o corpo é reduzido � uma máquina, com a 
mesma constituição dos sistemas materiais não-vivos e das má­
quinas construídas: máquinas que não exigem, para explicar o 
funcionamento biológico e vegetativo do corpo, senão aquilo 
que serve para fornecer uma explicação do comportamento 
físico-mecânico do universo. Assim, o homem é apenas um 
fragmento do mecanismo universal. Ele está submetido às ne­
cessidades do determinismo universal, conceitualmente fechado 
sobre si mesmo e deixando fora desta "fechadura" epistemoló­
gica toda a atualidade de seu fato psíquico-mental: sensibili­
dade, afetividade, consciência. Por sua vez, enquanto unidade 
personalizada de vida mental, a "alma" aparece pura e sim­
plesmente como uma atualidade não-física, inexplicavelmente 
associada à máquina corporal, em contato com qual ela se de­
senvolve, de acordo com os funcionamentos materiais dessa 
máquina. Assim, deixando de lado as questões das implica­
ções mútuas do corporal e do psíquico, a antropologia vai 
oscilar entre um conhecimento organicista e materialista do ser 
corporal e biológico do homem, e um saber espiritualista da 
vida psíquica, intelectual e moral da "alma" humana, ligando os 
dois de modo mais ou menos bastardo no plano da objeti­
vidade. 
Contudo, do ponto de vista do sentimento subjetivo que 
o homem tem de si mesmo e de suas relações com a realidade, 
vamos encontrar a grande crise espiritual ocorrida no século 
XVI: o ser humano não somente passa a conquistar como tam-
24 
bém a tomar uma nova consciência de sua própria liberdade. 
Surge a consciência libertária moderna. O ser humano se de­
sinveste de muitas passividades que, até então, ainda não ha­
viam sido postas em questão: passividade diante da autoridad_e 
religiosa e da crença bruta num ensinamento exterior; passi­
vidade diante do dado da natureza; passividade diante das 
próprias situações humanas, "vividas" (ou "sofridas") como 
um dos aspectos inevitáveis da força das coisas. Por sua vez, 
a conquista científica aparece ao mesmo tempo como o pe­
nhor, a justificação e o instrumento dessa consciência libertá­
ria. Ela postula a libertação intelectual em relação à p.utorida­
de exterior em matéria de conhecimento. Ao mesmo tempo, 
liberta o homem de sua sujeição à natureza, permitindo-lhe 
colocá-la a seu serviço (dominação da natureza) . Em primeiro 
lugar, indiretamente, em seguida, de frente, a ciência torna pos­
sível a transformação das situações humanas, fazendo progre­
dir a educação do homem, dos indivíduos e da sociedade, à 
liberdade do entendimento e à autonomia da razão. 
Do · ponto de vista daquilo que constitui o objeto próprio 
da ciência física, é a relação teórica e prática do homem com 
a Natureza que muda, por assim dizer, de espécie e de regime, 
pois situa-se na órbita dessa consciência libertária do homem. 
Processa-se também uma transformação da relação teórica. e 
ética do homem consigo mesmo. E como conseqüência dessa 
transformação, houve ulteriormente uma mudança da relação 
tanto social e política quanto cultural do homem com os outros 
homens. Uma nova relação começa a surgir e a ganhar o do­
mínio prático. Também a relação do homem com o religioso 
se altera em profundidade. Um princípio inédito da limitação 
da autoridade religiosa em matéria de pensamento e de uso 
da razão começa a impor-se. Como diz simbolicamente Gali­
leu: "a Escritura nos ensina, não como o céu vai em seu curso, 
mas como o homem vai até ele". f: então que se define esta 
concepção tornada clássica do Homem, com a antropologia das 
Luzes, depois, do Progresso, própria sobretudo ao século XVIII: 
essa antropologia hoje considera4a caduca, sobretudo por aque­
les que falam da morte do homem, como conseqüência da 
morte de Deus. 
25 
3. A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS 
Podemos dizer que a segunda grande repercussão ou im­
pacto epistemológico, sofrido pelo pensamento filosófico, de­
veu-se ao efeito próprio da constituição das ciências humanas. 
Analisaremos tal efeito a partir do exame sumário de dois 
temas fundamentais. O primeiro é o fato de que as ciências 
humanas, ao despontarem como ramo autônomo do saber, fa­
zem o homem ingressar numa nova era que podemos caracte­
rizar como sendo a da perda da ingenuidade em relação a si 
mesmo, como sujeito, e em relação às suas próprias obras, en­
quanto estas comportam todo um conjunto de investimentos da 
subjetividade humana e de pressuposições inconscientes dessa 
subjetividade. Trata-se de uma época de desencantamento, de 
crítica, de "dúvida" e de "desmistificação". M�s também, em 
contrapartida, época de reativação de uma série · de domínios 
humanos relegados ao esquecimento ou deixados na sombra; 
época em que ressurgem várias questões deixadas em suspen- . 
so; época de múltiplas iniciativas que permaneciam inibidas ou 
haviam sido abandonadas. O segundo tema é o da entrada do 
conhecimento, não somente do . mundo exterior e da natureza 
física, mas também do próprio homem, na era da positividade, 
por oposição à era da "representação": o homem "positivo" 
não é mais o homem da "representação", nem objetiva nem 
subjetivamente : ele passa a ser visto de modo inteiramente di­
verso. 
a) As ciências humanas e a perda da ingenuidade da cons­
ci€ncia clássica. 
A filosofia da Idade Moderna clássica, surgida a partir do 
século XVII, e ensinada até quase nossos dias, pode ser desig­
nada, sem correrm0s o risco de sermos imprecisos, de "filoso­
fia da consciência". A partir do Cogito cartesiano, a consciên­
cia se torna, para a filosofia e para a cultura que lhe é soli­
dária, o próprio fundamento da Razão : ela é tomada por todos 
<:orno a regra, tanto para a inteligibilidade das coisas quanto 
para a direção do espírito num momento de grandes crises in,. 
telectuais. Relativamente à filosofia clássica, a "filosofia da 
consciência" adotou duas atitudes fundamentais: de um lado, 
26 
liquidou um universo de falsas imaginações que entravavíilll o 
fl()rescimento da ciênCia, e conseguiu definir-se uma atitude 
livre de preconceitos ou de a prioris injustificáveis; do outro, 
abriu de modo decidido e desinteressado os caminhos novos 
e seguros do progresso, tanto na vida prática quanto no campo·' 
da aquisição dos conhecimentos "puros". Deste ponto de vista, 
o Discurso do Método, de Descartes, inscreveu-se no inconsci­
ente coletivo da filosofia clássica, pois não visava outra coisa 
senão a possibilitar ao homem "conduzir bem sua razão e pro­
curar a verdade nas ciências". 
Podemos ver sob dois ângulos essa situação de perda da 
ingenuidade da filosofia clássica: 
a. O primeiro é o impacto crítico e "desconstrutivo" de 
uma sistemática filosófica, mais ou menos tradicional e oficial­
mente ensinada. Esta sistemática é muito menos um · ensino 
dogmático e autoritário de escola do que uma plataforma co­
mum de atitudes, de categorias, de domínios no interior dos 
quais a reflexão, o pensamento e a discussão se mantêm ativos 
e atuantes. A universidade era um dos grandes instrumentos 
de sobrevivência da filosofia clássica. Ensinava-se uma meta­
física reflexiva e espiritualista. A epistemologia (teoria do co­
nhecimento) era anaHtica e intelectualista, só se interessando 
pelo estatuto da objetividade científica. A moral tentava equi­
librar o sentido da autonomia individualista da liberdade com 
o respeito tradicionalista a um sistema social do dever. A filo­
sofia reduzia sua própria história a uma espécie de ruminação 
de seu próprio passado. 
Esta "desconstrução" pode ser caracterizada por dois tra­
-ços essenciais: em primeiro lugar, pelo fim da metafísica es­
pirÜualista, estabelecida sobre as bases de uma filosofia refle­
xiva da consciência; em segundo lugar, pela crise que se ins­
tala na moral do consentimento livre e autônomo. Com efeito, 
a metafísica espiritualista. queria dar prosseguimento à antiga 
metafísica dogmática, herdada ao mesmo tempo da escolástica 
e do cartesianismo, mas já invalidada pela "Crítica" kantiana, 
muito emboraKant mantenha uma metafísica ( afirmação de 
Deus, imortalidade da alma) fundada numa convicção moral. 
Todavia, a crítica kantiana da metafísica clássica, que se im-
27 
põe como metafísica idealista e espiritualista, não passa de um 
produto de camuflagem de uma evidência que se impunha pela 
entrada em cena das ciências humanas: ciência e história das 
religiões, ciência e história da civilização, análises sociológicas e 
psicológicas (Introdução à crítica da filosofia do Direito de 
Hegel, de Marx, e O Futuro de umâ ilusão, de Freud) , sem 
falarmos da etnologia e das ciências da linguagem. Nessas con­
dições, o espaço intelectual se abre como que natural e irresis­
tivelmente marcado pelo ateísmo e pelo senso da "finitude" hu­
mana : total dissolução da individualidade pessoal, com a mor­
te física, e consciência dessa condição determinada do homem 
sem Deus e sem outro futuro pessoal senão o do espaço de 
sua vida - morte de Deus e morte da alma. A metafísica só­
se impõe como a negação dessas dimensões do sonho metafí­
sico e como investimento pensante do mundo nos limites dessa 
negação. 
b. O segundo ângulo sob cujo prisma encaramos a per­
da da ingenuidade da consciência clássica (deixaremos de ladO> 
a análise da crise da ética! ) refere-se à história da filosofia 
e à epistemologia clássicas. Da história da filosofia, a cons­
ciência moderna não retira senão um desencorajamento diante 
do imenso empreendimento morto do pensamento, impossível' 
de ser recapitulado numa cabeça individual, apesar de Hegel' 
ter pensado o contrário. Quanto à epistemologia, o argumento, 
de Y. Belaval, numa comunicação à Sociedade Francesa de· 
Filosofia, parece resumir bem a situação : "Se Deus morreu, 
e se a alma também morreu, só nos resta o mundo. As filoso­
fias ontológicas da salvação pessoal tendem a dar lugar às: 
filosofias epistemológicas da salvação impessoal. Numa época 
em que o tempo dos computadores torna-se o tempo histórico, 
é a filosofia epistemológica que, · em escala planetária, leva a:. 
melhor. Todavia, não estaria também ela ameaçada? Se só nos 
resta o mundo, mesmo assim seria necessário, para pensá-lo, que· 
o epistemólogo fosse capaz de acompanhar a ciência em pro-· 
gresso. Ora, no que diz respeito às ciências avançadas, ele já 
perdeu o pé, e não se encontra mais à altura das ciências hu­
manas, retóricas : ele ingressa na política". A este respeito, 
são pertinentes as análises que faz M. Foulcault da episte/1'IC 
clássica da "Representação" em Les mots et les choses. 
28 
b) O acesso à era da "positividade" 
Para esta transição que se operou, no início do século 
XIX, da era da "Representação" à era da "Positividade", su­
gerimos ainda ao leitor as obras de Alexandre Koyré, Studes 
Galiléennes e Études Newtonniennes; o livro- de· G. Gusdorf, 
Introduction aux sciences humaines (1974 ), e o de W. Dilthey, 
Introduction à l'étude des sciences humaines (tradução fran­
cesa, 1942). 
As ciências humanas ingressaram na "era da positividade" 
a partir, sobretudo, de Dilthey. Este autor reconheceu que A. 
Comte e Stuart Mill haviam feito uma notável tentativa de 
colocar o problema da metodologia das ciências humanas se­
gundo os critérios e os métodos das ciências da natureza. E foi 
exatamente em nome do "positivismo" que Dilthey quis mostrar 
a heterogeneidade entre os métodos dos dois tipos de ciências. 
Esta diferença tinha por fonte o dualismo epistemológico que 
se baseia na particularidade da história. Assim, a "crítica da 
razão histórica" tem por objetivo romper com o naturalismo 
cujo mérito foi o de ter contribuído para a desagregação (sob 
as formas do Direito natural, da Religião natural) da metafísi­
ca medieval. O que se pode perguntar, é se tal naturalismo já 
não estaria superado, em razão do próprio desenvolvimento 
das ciências. Não se trata de excluir sistematicamente, das ci­
ências naturais, sobretudo quando eles se revelam fecundos. 
Contudo, a redução das ciências humanas às da natureza, longe 
de favorecer sua eclosão, pode entravar seu desenvolvim.e_nto, 
pois elas se fundam em outro tipo de inteligibilidade. Pergun­
ta-se: não seriam elas ciências autônomas? Segundo a concep­
ção naturalista, tratava-se de constituir as ciências humanas 
como se elas não existissem em absoluto. A Goncepção natu­
ralista se faz uma idéia a priori e dogmática daquilo que deve 
ser entendido por ciência em geral, e tenta conceder ou re­
cusar o título de ciência às diversas disciplinas segundo elas 
estejam ou não em conformidade com este parti pris inicial. 
Diferentemente dos partidários do naturalismo, Dilthey 
se interessa pouco pelo problema dos métodos, que ele consi­
dera como bastante escolar e abstrato. Ele se preocupa sobre­
tudo em extrair as condições de inteligibilidade próprias às 
29 
ciências humanas (que ele chama de "ciências do espírito" -
Geiste_swissenchaften) . Conseqüentemente, ele quer descobrir 
nelas sua contribuição positiva para uma melhor compreensão 
e um melhor conhecimento dos homens e das coisas. Sob a in­
fluência das primeiras obras de E. Husserl, Dilthey manteve 
fif91e sua posição : a partir do momento em que as ciências 
humanas existem como ciências, é completamente inútil per­
der tempo em discutir sobre seu caráter de cientificidade, em 
nome de uma teoria preconcebida da ciência. Porque o epis­
temólogo não deve ser o arquiteto ·. das ciências . humanas, mas 
s.eu historiador. E a partir das informações que elas podem for­
necer e dos métodos efetivamente praticados pelos especialis­
tas dessas disciplinas, o epistemólogo deve elaborar uma teoria 
das ciências humanas. 
'Ora, diz Dilthey, a história nos ensina que essas discipli­
nas nasceram e cresceram no meio da prática da vida, isto é, 
seu objeto não é uma natureza que permanece idêntica a si 
mesma, porque obedeceria a leis constantes, mas um conjunto 
de obras e de convenções que o homem criou antes de fazer 
delas objeto de uma ciência. O homem não criou a natureza, 
mas o mundo sociaL Donde esta proposição fundamental de 
Dilthey: "As ciências humanas (do espírito) não formam um 
todo constituído segundo a lógica, um todo cuja estrutura seria 
análoga à de nosso conhecimento da natureza; seu conjunto se 
desenvolveu de modo inteiramente diferente, e devemos con­
siderá-lo tal como ele se desenvolveu historicamente. Em outros 
term�s, há uma originalidade nas ciências humanas : e�as .. sªo 
irredutíveis às ciências naturais. Para uma síntese histórica des­
sa originalidade e do processo de construção das principais teo­
rias específicas às ciências humanas., sugiro a leitura do livro 
de Julien Freund, Les théories des sciences humaines ( 1973 ) . 
Por conseguinte, creio que o processo de constituição 
(acesso ao estatuto de cientificidade) das ciências humanas só 
poderá ser plenamente entendido se o analisarmos de dois pon­
tos de vista complementares : o primeiro, histórico, o segundo, 
metodológico. Daremos aqui apenas algumas indicações quanto 
ao ponto de vista histórico. Deixaremos a análise do ponto de 
vista metodológico para o caso da Psicologia. 
30 
A evolução histórica das c1encias do homem, em nossa 
cultura, divide-se essencialmente em três fases distintas: a da 
concepção clássica do homem (ciência grega) , a da concepção 
cristã (teologia patrística e medieval) e a da concepção mo­
derna. Em cada uma dessas fases, a medida do mundo se re­
flete na medida do homem. Cada relação com o mundo engaja 
certo sentido da verdade, de uma .verdade que freqüentem�!lte 
o homem domina, mas que intervém na experiência garantin­
do-lhe a comunicação entre ele e o mundo, ou consigo mesmo. 
E cada atitude humana em relação ao mundo, tornando-se ob­
jeto de reflexão, é geradora de uma filosofia. Como há várias 
relações com o mundo, cada uma com sua verdade própria, 
resulta o aparecimento de várias filosofias, nenhuma delas pos­
suindo a verdade total. O conhecimento do objeto também .é .o 
conhecimento do sujeito cognoscente. O homem persegue,atra­
vés de seu saber, uma lenta descoberta daquilo que ele é em 
relaç�o ao mundo. Assim, só progressivamente ele consegue 
tomar posição face ao mundo e, por conseguinte, tomar posse 
de si mesmo. 
Donde se conclui que, para a concepção clássica, a es­
sência do homem se define principalmente como razão. O pro­
blema que se coloca é o de determinar as relações do princípio 
essencial deste ser dotado de razão com seu próprio corpo e 
com o mundo. O centro de interesse do pensamento antigo é, 
pois, o cosmo' ( ordem, beleza, harmonia) : a ordem do mundo 
que encontra sua mais alta expressão no curso regular dos 
astros e em sua harmonia. Nesta época, os homens e os deuses 
devem obediência a esta lei suprema do devir em sua totali­
dade. O homem, porém, se separa . desta situação global qne 
o aprisiona: ele tenta ordenar o devir impondo aos aconteci­
mentos um princípio inteligível, dando-lhes uma interpretação 
discursiva e racional. Todavia, a inteligência humana não está 
ainda segura de si. Ela não pode ainda estar certa da validade 
de suas interpretações. Encontra-se ainda numa situação infe• 
rior e considera-se como uma instância subordinada que recebe 
do "alto" os princípios de sua atividade. A razão se exerce 
do "alto" para "baixo", dos deuses aos homens. Eis a con­
cepção que vem de Platão até a Idade Média. 
31 
Quando a concepção cristã vem tomar o lugar do paga­
nismo helênico, seu grande esforço vai conduzi-la à harmoni­
zação da concepção clássica com as exigências soteriológicas 
(salvíficas) que impregnam a antropologia bíblico-cristã (uni­
dade do homem e destino pessoal transcendente) : a inspiração 
cristã quer reagrupar o saber e a espiritualidade em torno da 
exigência do Deus judaico-cristão. O pensamento antigo era 
uma cosmovisão ( W eltanschauung) cosmológica - era a 
idéia de cosmo que presidia toda a compreensão que o homem 
tinha do mundo e d� si mesmo - e, ao mesmo tempo, cosmo­
cêntrica - o cosmo sendo o centro a partir do qual o homem 
se compreendia como uma parte cujo papel de conl:lecimento 
não ia além de uma atitude de contemplação passiva. Sem dei­
xar, porém, de ser uma cosmovisão cosmológica, o pensamento 
medieval torna-se teocêntrico, a fonte explicativa de tudo, in­
clusive do conhecimento, situando-se fora do homem, não mais 
nas leis cósmicas, mas num Deus criador face ao qual o ho­
mem se situa como criatura dependente. Ora, esta mudança de 
perspectiva - de uma concepção cosmocêntrica a uma con­
cepção teocêntrica - modifica profundamente os elementos 
tomados de empréstimo aos gregos pelos autores escolásticos. 
Com a concepção moderna - cujo nascimento podemos 
ligar ao movimento científico que encontrou sua mais alta ex­
pressão na obra de Galileu - uma crise se estabelece a partir 
do século XVIII pela ruptura da síntese entre as duas concep­
ções e pela multiplicação das ciências humanas que colocam em 
questão a possibilidade mesma de uma ciência unitária do ho­
mem. Tudo se passa como se, a partir do momento em qut: 
foram reconhecidas a originalidade e a especificidade das di­
ferentes relações com o mundo, geradas pelas novas discipli­
nas, a procura da verdade implicasse ou mesmo exigisse uma 
filosofia visando doravante à complementariedade dessas rela­
ções. A partir do Renascimento, a harmoniosa unidade da es­
piritualidade medieval se decompõe cada vez mais sob a pres·· 
são da força das novas disciplinas científicas. Com o primado 
conferido à individualidade do hom_em, este se torna cada vez 
mais o centro dos valores e do conhecimento. O novo mundo 
se dá uma leitura antropológica e ao mesmo tempo ,antropo-
32 
cêntrica. Doravante, a verdade aparece como uma obra huma­
na. cujas estruturas devem ser examinadas em sua referência 
ao ser que é ao mesmo tempo seu inventor e seu suporte. 
Enfim liberado de toda tutela, o homem torna-se, senão o 
criador, pelo menos o mestre das significações do universo. 
É a descoberta, iniciada por Descartes com o Cogito, do su­
jeito cognoscente autônomo, hoje chamado de sujeito epistê­
mico. 
Assistimos, pois, de idade em idade, a um deslocamento 
progressivo dos sistemas de inteligibilidade cujas· questões e res­
postas, bem como todas as modalidades de explicação, não ces­
sam de mudar e de renovar-se: há uma relativização dos mode­
los epistemológicos. Todo o saber medieval tinha por base o 
compromisso estabelecido entre o intelectualismo helênico e a 
revelação judaico-cristã. A Renascença desenvolve temas hu­
manistas. O século XVII assiste com entusiasmo ao advento 
epistemológico do conceito de atração. Depois vem o tempo do 
p-restígio da bioquímica com Lavoisier, Bichat e Claude Ber­
nard. Em seguida, a, influência da Naturphilosophie romântica 
que dá crédito a uma inteligência biológica, orientada em fun­
ção das idéias de desenvolvimento orgânico, até o surgimento 
do conceito de evolu-ção a partir de Darwin. 
Até o século XIX, o destino das ciências humanas estava 
vinculado ao destino da filosofia. Elas eram conhecidas como 
ramos da antropologia filosófica. Esta tinha a pretensão de es­
tudar o homem em sua totalidade, pois visava a analisar o pró­
prio sujeito que edificava as ciências. A razão era que não podia 
haver uma ciência do homem. Ora, se designamos por antro­
pologia o conjunto das ciências humanas, constatamos que ela 
tinha, nessa época, uma dupla missão: ser uma ciência e visar 
à totalidade do humano. Contudo, o século XIX entende por 
antropologia o estudo do homem. em sua totalidade e em suas 
relações com o resto da natureza. Ela situa o homem no en­
cadeamento dos seres vivos onde ele toma seu lugar como um 
ser que emerge de sua série evolutiva, com características de 
ser de natureza e de ser de cultura. Enquanto ser vivo, ele 
pe:çtence a um mundo que é regido por leis biológicas; mas en-
33 
quanto ser que fala e que institui uma civilização, ele introduz 
um elemento radicalmente original: a cultura. 
É assim que, no início das ciências antropológicas, enfa­
tizava-se o elo do homem com a natureza. Elas estavam mar­
cadas por uma mentalidade naturalista, pois as pesquisas sobre 
o homem centravam-se nas leis que comandavam a transição 
entre a natureza e a cultura, as condições materiais da vida 
e suas propriedades fisiológiças sendo utilizadas para explicar 
esta passagem. Em seguida, a antropologia tornou-se o estudo 
das propriedades gerais e das leis da vida social e da cultura, 
na medida em que por elas o homem transforma o mundo e se 
transforma a si mesmo neste mesmo movimento. Ela tende a 
considerar o homem ao mesmo tempo do ponto de vista da na­
tureza que o precede, o cerca e o subentende, e do ponto de 
vista da ruptura que ele introduz ultrapassallldo-a. 
Trabalhos antropológicos recentes constatam que, de um 
lado, a antropologia influenciou e modificou profundamente 
nossa visão do mundo e do homem, do outro, contribuiu po­
derosamente para que a filosofia passasse do estudo da cons­
ciência humana ao estudo do intercâmbio entre a consciência e 
o mundo. Descartes havia centrado a interrogação filosófica 
sobre o homem considerado segundo a ordem da consciência, 
sendo esta a medida e a forma do ser. De Descartes a Hegel, 
passando por Kant, e apesar de todas as discordâncias de de­
talhe entre os autores, o ser da consciência aparece . sempre 
como a norma e a verdade do ser, de tal sorte que podemos en­
globar todas as visões do homem e do universo sob a denomina­
ção comum de "filosofia da consciência". Com a antropologia 
contemporânea, nascida com o evolucionismo, o marxismo e a 
psic;análise, o sujeito cognoscente foi descentrado de si mes­
mo e sua verdade tende a ser procurada na consciência atra­
vessada e trabalhada pela natureza, isto . é, na consciência não 
tend(J) mais seu centro nela mesma, mas como que aquém dela. 
A partir do século XIX, a antropologia filosófica vai en­
contrar-se, devido sobretudo à predominância do positivismo, 
numa situação análoga à da filosofia da natureza no século · 
XVII: seuobjeto é progressivamente anexado pelas ciências 
34 
experimentais. Por isso, não se pode evitar a seguinte interro­
gação: quem é este "homem" que constitui realmente o objeto 
de uma filosofia do homem? O "homem" das ciências bioló­
gicas, sociológicas, psicológicas, históricas? Não sendo capaz 
de compor todas as fisionomias do homem esboçadas por cada 
uma dessas disciplinas, a filosofia encontra-se diante do segt!in­
te dilema: ou ela deverá falar de um homem ideal, que não é 
objeto de ciência, ou deverá desaparecer por falta de um 
objeto. 
ss 
li 
A EMERGÊNCIA DA PSICOLOGIA 
CIENTíFICA 
1 . ESPECIFICIDADE DA PSICOLOGIA EXPERIMENTAL 
Em nossos dias, a Psicologia é uma das mais influentes 
ciências humanas. Mas ela se apresenta numa gama bastante 
diversificada de ramos ou tendências particulares, para não di­
zermos de "escolas". Seria uma tarefa árdua e praticamente 
impossível querermos estabelecer um elenco completo e deta­
lhado de todas as correntes psicológicas atualmente existentes. 
Ao analisar as tendências atuais da Psicologia Científica, e dei­
xando de lado as "não-científicas", Jean Piaget estuda, por 
exemplo, a psicologia calcada num empirismo sem estruturalis­
mo, a psicologia organicista, com suas teorias sobre a percep­
ção, as psicologias psicossociológicas, estabelecendo relações 
de interação entre o geral e o social, as psicologias psicanalíti­
cas da especificidade mental, a psicologia behaviorista, a psi­
cologia de inspiração fenomenológica, a psicologia que se baseia 
num estruturalismo psicogenético (animal e criança) visando à 
elaboração de uma teoria da inteligência, etc. Por outro lado, 
no que diz respeito aos domínios e aos métodos de investigação 
da psicologia, podemos constatar a multiplicidade das pesquisas 
nas seguintes direções : a psicologia baseada nos testes, a psi­
cofisiologia, a psicologia animal, a reflexologia, o behaviorismo, 
a psicologia da forma (ou Gestalttheorie) , a psicologia genéti­
ca, a caracterologia, etc. Ademais, ao lado da chamada psico­
logia "das profundezas", coin a Psicanálise de Freud, com a 
"Psicologia do Indivíduo" de Alfred Adler, e com a "Psicologia 
Analítica" de Jung, apresentam-se ainda numerosas teorias re­
lntlvas à Psicologia social, sem falarmos nas psicologias intros­
pocclonistas ou fenomenológicas. 
39 
}\ssim, será que ainda podemos falar de "a psicologia"? 
Ou não seria preferível reconhecermos uma pluralidade de psi­
cologias, não somente pela rivalidade de seus representantes 
mais eminentes ou pela paixão sentida por cada um relativa­
mente à sua doutrina, mas também pela diversidade dos méto­
dos utilizados? Num momento de aceleradas mutações, como 
o nosso, somos levados a crer que a psicologia parece situar-se 
no imenso domínio das ciências exatas, biológicas, naturais e 
humanas. Há até mesmo quem pense que ela se situa como 
um domínio conexo das ciências biofisiológicas. Contudo, a 
psicologia se apresenta numa diversidade por vezes espantosa 
de domínios. Esta diversidade, ao que tudo indica, deve-se à 
variação das práticas psicológicas, muito embora, por vezes, 
e1as venham a entrelaçar-se. Uma pergunta, porém, merece ser 
colocada desde o início : será que a diversidade dos métodos uti­
lizados pela psicologia não viria comprometer seu rigor cientí­
fico? Outra questão, que será parcialmente respondida no final, 
parece dever ser colocada desde o início : se a psicologia, não 
somente pelas normas de cientificidade que ela aceita, mas 
ta!11bém pelas normas de comportamento que ela hoje cada vez 
mais procura impor, não seria esta "ciência" extremamente útil 
para que a sociedade atual salvaguarde o assim chamado "pen­
samento domesticado"? 
Uma coisa parece certa: se queremos avaliar a situação 
real da psicologia contemporânea, não podemos ignorar a exis­
tência de uma fragmentação de seu domínio de investigação. 
Isto, porém, não impede que haja várias convergências nos 
diversos campos de pesquisa. Entretanto, quer do ponto de vista 
de seus métodos, quer do ponto de vista de seu objeto, a psi­
cologia não pode ser considerada como uma disciplina una, 
nem tampouco unificada. A multiplicidade das psicologias, so­
bretudo no domínio prático (psicologia educacional, psicologia 
do trabalho, psicologia industrial, etc.) , coloca em questão sua 
própria unidade. Esta unidade parece muito mais uma expres­
são cômoda, emanação de um pacifismo enganador e prático, 
do que uma realidade que se possa constatar. Como conciliar 
p_sicologias naturalistas e psicologias humanistas? Por detrás 
dessas duas tendências maiores, j á estão implícitas duas atitu­
des psicológicas que correspondem a duas maneiras qe se fazer 
40 
psicologia: experimental e clínica. A psicologia experimental e 
comparativa pretende ser rigorosa e científica: seu método 
é ao mesmo tempo teórico-experimental e geral. Embora tenha 
a pretensão de unidade, dificilmente essa psicologia pode apli­
car-se com êxito às condutas humanas. A psicologia clínica, por 
sua vez, está muito mais preQ_cupada com a investigação sistemá­
tica, o mais possível completa, dos casos individuais. Sem con­
fundir-se com a psicologia patológica, ela procura congregar, 
num único objeto de estudo, a conduta e suas desordens. Quan­
to à rpsicanálise, trata-se de uma forma de psicologia clínica. 
Seu objeto de investigação está restrito à conduta humana con­
creta. Não há dúvida de que a psicologia experimental e a psi­
cologia clínica se completam. Entre elas há certamente diver­
gências. Contudo, ambas pretendem ser a ciência da conduta, 
ou seja, das respostas significativas através das quais o ser vivo, 
em situação, integra as tensões que ameaçam a unidade e o 
equilíbrio do organismo. Mas o que vai nos interessar, aqui, 
é uma análise da psicologia experimental, ou seja, da psicolo­
gia com pretensões científicas. 
Em seu esforço de autenticidade, quer dizer, em seu pro­
cesso de constituição como ciência, a psicologia, enquanto ci­
ência humana, teve que romper com duas perspectivas que a 
levaram a certa "viseira", e que manifestaram sua inaptidão a 
revelar o objeto específico dessa disciplina: o homet.n. A pri­
meira perspectiva, de ordem histórica, foi o fato de a psicologia 
ter ligado seu destino, desde a origem, à filosofia.. Com efeito, 
ela era conhecida como um ramo da filosofia ou, pelo menos, 
da antropologia filosófica. Seu solo epistemológico era o da 
metafísica e da ontologia, onde se tratava de dçscrever os com­
portamentos do homem em termos de "substância" e de "facul­
dades inatas transcendentes": a vontade, o conhecimento, o 
instinto, a percepção, eram alguns desses "em si" remetendo a 
uma concepção normativa e transcendente do homem como 
"subsistente". Assim, tratava-se de descrever, de classificar, a 
partir de um saber sistemático no qual a psicologia era conce­
bida como sendo a explicação racional dos comportamentos de 
consciência. Este tipo de psicologia pode ser ilustrado por Des­
cartes, Kant, Bergson, Ribot, etc. Por não ter ainda rompido 
com seu cordão umbilical que a ligava à filosofia, a psicologia 
41 
era considerada como uma ciência menor, deixando escapar a 
autenticidade do homem para dedicar-se a uma tarefa de conhe­
cimento abstrato e puramente reflexivo. 
A segunda perspectiva, tão falaciosa quanto a primeira, foi 
fornecida à psicologia pelas ciências da natureza. Querendo li­
bertar-se a todo custo da filosofia, ela se viu forçada a aliar-se, 
no século XIX, a uma ·perspectiva dita "científica", cujo cam­
po epistemológico lhe era fornecido pelas ciências experimen­
tais de ondem psicoquímica ou biológica, bem mais sólidas e 
com um estatuto de cientificidade reconhecido por todos. O 
�m tornou-se, então, um "objeto de experiência". E os fa­
tos humanos tornaram-se decompostos, inventariados, descritos 
como sendo rigorosamente exatos e experimentais. Foi o perío­
do da redução dos fenômenos psíquicos aos fenômenos orgâ­
nicos e cerebrais. A psicologia, assim,escudava-se nas certezas 
matemáticas e êxperimentais, talvez para melhor defender-se 
do "imperialismo" filosófico. O homem passou a ser estudado 
em laboratórios. Tratava-se de provar a origem orgânica de 
seus comportamentos. E a psicologia enveredou-'se pelos ca­
minhos traçados pelo organicismo e pelo mecanicismo clás­
sicos. 
Portanto, foi de sua vizinhança com a filos.oiia, que de­
correu a direção na qual a psicologia concebe sua emancipação 
e seu acesso a um estatuto científico independente: uma li­
bertação relativamente à filosofia, por conformação ao modelo 
das ciências da natureza já constituídas. Por isso, a psicologia 
ainda hoje oscila entre duas grandes correntes : uma, mais filo­
sófica, utilizando os modelos explicativos hermenêuticas ou in, 
terpretativos; outra, propriamente científica, tomando de em­
préstimo às ciências naturais seus modelos explicativos (por 
exemplo, o behaviorismo) . Por outro lado, convém lembrar 
que, pelo fato de ter nascido do seio da filosofia, a psicologia 
parece ter herdado também certo desejo de imperialismo: con­
cebe suas relações com as demais disciplinas humanas sob o 
modo da absorção, e não da articulação. 
Historicamente, em todo o seu esforço para conhecer cien­
tificamente o homem, a psicologia parece ter sempre trabalha­
do para derrubar o privilégio do "objeto humano", para "des­
sacralizá-lo" e deslocá-lo, do plano meramente subjetivo, ao 
42 
plano decididamente objetivo. Com isso, ela não conseguiu evi­
tar que o homem, objeto de conhecimentos das ciências huma­
nas, se tornasse um mero objeto entre os demais objetos de in­
vestigação científica. Talvez ela se tenha esquecido do ques­
tionamento que j á fizera Heráclito : "Como o homem poderia 
ocultar-se daquilo que jamais desaparece"?; ou da admoestação 
de Spinoza: "o homem não é um império num império"; ou 
então, dessa invectiva de Nietzsche que, relativamente ao conhe­
cimento do humano, tem valor de imperativo metodológico: 
"O homem é algo que deve ser superado". 
Não é exagero dizer que o conhecimento científico se cons­
trói ao preço de uma renúncia a todos os apelos feitos, a pro­
pósito do objeto humano, pela idéia que gostaríamos de ter 
dele ou de afirmar a seu respeito. Assim, ao escapar à ordem 
dos valores, o homem pertenceria por completo à ordem .dos 
"fatos". Contudo, como veremos, essa mutação não foi tão 
simples assim, nem tampouco linear, como se poderia pensar. 
:B o que podemos notar quando a psicologia, estudando os seus 
objetos, nunca deixa de fazer apelo a vários métodos distintos. 
· Evidentemente, não analisaremos aqui esses métodos. Enume­
raremos apenas as quatro direções metodológicas principais da 
psicologia: a psicologia experimental, o behaviorismo, o ges­
taltismo e a psicologia existencial de inspiração fenomenoló­
gica. 
No entanto, façamos algumas considerações a respeito 
da psicologia experimental, pois ela foi o ponto de partida para 
a teoria behaviorista que estudaremos melhor posteriormente. 
Com_ efeito, o primeiro método psicológico com pretensões cien­
tíficas foi o que utilizou a psicolog!a experimental. Esta se cons­
tituiu antes de tudo contra a atitude introspeccioni�ta. Portanto, 
seu objeto não é um conteúdo de consciência acessível à in­
trospecção · (como ainda era a sensação estudada por Fechner 
em seus Elementos de psicologia de 1 860) , mas a "atividade 
dos organismos" . . O fato psicológico era concebido como a 
rec_epção de um estímulo seguido de uma resposta. E o método 
consistia em aprimorar certos dispositivos permitindo que este 
circuito funcionasse em condições controláveis e mensuráveis 
pelo experimentador. Em tais condições, o animal não podia 
deixar de ser tomado como um objeto privilegiado, pois, na 
43 
impossibilidade de comunicar ao pesquisador suas impressões, 
condenou o psicólogo a ater-se estritamente à observação dos 
comportamentos exteriores. As mesmas razões justificam o pri­
vilégio conferido ao estudo das reações infantis e
-
aos compor­
tamentos pré-verbais do adulto : percepção, aprendizagem, mo­
tivações, etc. 
Ainda em meados do século XX, em sua Psicologia expe­
rimental, o renomado psicólogo experimental Paul Fraisse faz 
repousar a solidez desse método na prudência daqueles que o 
praticam, prudência esta que os impede de aderirem a toda con­
clusão que não seja corroborada por longas e minuciosas verifi­
cações experimentais. Ao se perguntar como definir a psicolo .. 
gia, ele responde pura e simplesmente como esta disciplina que, 
ao estudar as condutas humanas, se elabora graças ao método 
experimental, método que já demonstrou, segundo ele, sua efi­
cácia no domínio das ciências da natureza física, química e bio­
lógica. O termo "experimental" tem, para ele, o sentido de 
uma experimentação científica, isto é, de uma experiência pro­
priamente organizada. Por outro lado, não se deve assimilar 
psicologia experimental e psicologia de laboratório. O labora­
tório é necessário, diz P. Fraisse, mas não de necessidade ab­
soluta. Ele é indispensável, por vezes, à experimentação, mas 
única e exclusivamente como um meio cujo alcance deverá 
sempre estar subordinado ao objetivo propriamente científico, 
que é de ordem teórica. Enfim, a psicologia experimental não 
se caracteriza pelo emprego dos testes nem tampouco das téc­
nicas próprias à psicologia aplicada. A conclusão do autor me­
rece ser citada : 
44 
As démarches do método experimental, aplicado ao 
ser vivo e, em particular, ao homem, foram magistral­
mente analisadas por Claude Bemard em 1 860. A pri­
meira etapa consiste em observar cuidadosamente a rea­
lidade. Esta fase pode ser bastante demorada, mas é sem­
pre indispensável, mesmo no decurso da experimentação 
que deve ser realizada sob um olhar vigilante. Quer se 
trate de uma observação fortuita . . . , quer de uma obser­
vação sistemática . . . ou organizada, o observador é le­
vado a formular uma hip6tese sobre as relações que po-
dem existir entre os fatos que seu olhar reuniu . . . Mas 
a psicologia experimental dá um passo à frente, e que é 
capital : ela procura demonstrar o "bem-fundado" da hi­
pótese. E isto, não de qualquer maneira: a relação su­
posta entre os fatos observados só é considerada como 
sendo verificada a partir do momento em que o experi­
mentador for capaz de reproduzi-la. :e_artanto, o método 
experimental mede o abismo que separa o especulativo 
do científico. Ele desconfia das coincidências, das cons­
truções do espírito e dos preconceitos. E sabe que o 
número dos aspectos de um fato, isto é, as variáveis, é 
tal, que uma sólida afirmação sobre sua gênese ou suas 
concomitâncias só é possível ao cabo de longas e sérias 
verificações (La psychologie expérimentale, 1966) . 
2. 0 CLIMA POSITMSTA DE SEU NASCIMENTO 
Não podemos negar que o nascimento da psicologia cien­
tífica se deu num clima intelectual banhado pelo positivismo 
comtiano que, por sua vez, veio revigorar e conferir direitos 
de cidadania ao velho empirismo inglês. Não podemos enten­
der a situação atual da psicologia, sem compreendermos como 
ela surgiu e tentou se afirmar no decorrer de sua já longa ca­
minhada para o estatuto de cientificidade que hoje em dia pre­
tende possuir com certo orgulho. Portanto, vejamos como a 
psicologia experimental surgiu e desenvolveu-se em seus pri­
meiros passos rumo à cientificidade. Evidentemente, não fare­
mos um histórico exaustivo das teorias e dos conceitos psico­
lógicos através dos tempos. Interessar-nos-emas simplesmente 
por este _enfoque epistemológico acompanhando sua passagem 
de um estado ainda pré-científico ao estado propriamente cien­
tífico. 
Sabemos que, depois da morte do filósofo Hegel ( 1 83 1 ) , 
o s sistemas racionais começaram a demonstrar evidentes sinais 
de cansaço. O sucesso crescente das ciências positivas contri­
buiu de modo decisivo para o descrédito progressivo e iqyxo­
rável da metafísica clássica, pelo menos entre os cientistas. Ao 
mesmo tempo, porém, as ciências positivasvieram revelar o ca­
ráter bastante arbitrário dos esquemas dialéticos forjados pelas 
filosofias pós-kantianas da natureza. Por sua vez, na segunda 
45 
metade do século XIX, a reação marxista contra o idealismo 
hegeliano veio por assim dizer solapar pela base o terreno sobre 
o qual se apoiava a realidade social e política de então. De 
modo geral, as ciências se apresentavam armadas com toda uma 
aparelhagem metodológica segura, rigorosa e poderosa, a ponto 
de crerem poder controlar, doravante, todo o domínio do saber, 
tanto do saber sobre a natureza quanto do saber a respeito do 
próprio homem. Desta forma, elas relegavam a um passado 
remoto ou aos museus as filosofias e as metafísicas. 
A este respeito, conhecemos a enorme influência exercida 
sobre as inteligências da época pelas teorias de Lamarck ( 17 44-
1 829 ) e, sobretudo, as de Darwin ( 1 809-1882) . Segundo uma 
expressão de Nietzsche, "Darwin é o maior benfeitor da huma­
nidade contemporânea", pois foi ele quem difundiu a idéia 
segundo a qual a diferença entre o homem e o animal é apenas 
uma questão de grau. Por sua vez, são célebres essas palavras 
de Com te : "Dor avante, o espírito humano renuncia às pesqui­
sas absolutas (metafísicas e teológicas) que só convinham à 
sua infância; ele circunscreve seus esforços ·ao domínio exclu­
sivo da verdadeira observação, a única base possível dos conhe­
cimentos verdadeiramente · acessíveis, sabiamente adaptados às 
nossas necessidades reais . . . Numa palavra, a revolução fun­
damental que caracteriza a virilidade de nossa inteligência con­
siste essencialmente em substituir, em todos os domínios, a ina­
cessível determinação das causas propriamente ditas, pela sim­
ples procura das leis, isto é, das relações constantes que exis­
tem entre os fenômenos observados" (Discours sur l'esprit 
positif, 1 898 ) . 
Assim, através das teorias transformistas e positivistas, 
ganharam corpo as refutações científicas às doutrinas tradicio­
nais segundo as quais o homem gozava do privilégio de possuir 
uma alma-substância. Doravante, é a previsão que deve cons­
tituir o verdadeiro objeto das ciências: O verdadeiro espírito 
positivo, ainda segundo Comte, consiste sobretudo em "v_t?r 
para prever", em estudar aquilo que é para se concluir sobre 
aquilo que será; e isto, segundo o dogma geral da invariabili­
dade das leis naturais. Por toda a parte, na Europa do século 
XIX (segunda metade) , as exigências espiritualistas se expri­
miam através de um ecletismo desprovido de consistência. Tan-
46 
to o evolucionismo agnóstico de Spencer, quanto o transfor­
mismo de Darwin e a sociologia de Comte, impunham-se de­
cididamente a todos os domínios da vida intelectual. A cultura 
parecia dominada, de ponta a ponta, pela idéia do determinis­
mo universal. Os cientistas passam a celebrar entusiasticamente 
a matéria e a repudiar as especulações racionais. Seu objetivo 
essencial e único é a análise dos "fatos" e de suas regularidades. 
O que pretendem é que o saber seja feito através' da experiência 
positiva. 
Ora, este clima de submissão da inteligência aos "fatos" e 
aos imperativos do conhecimento experimental, foi bastante pro­
pício à emergência de uma psicologia, reivindicando, em boa 
consciência, seus direitos de cidadania no mundo científico, ao 
mesmo título que a física, a química e a biologia. Os cientistas 
da época estavam muito preocupados com o problema da me­
dida, ligado a certas experiências, sobretudo no domínio da 
ótica e da astronomia. Seme1hante problema conduziu natural­
mente à questão, em psicologia, da percepção. O nascimento 
da psicofísica ilustra bem a transferência dessas preocupações 
para o plano da psicologia como ciência. As difiéuldades a se­
rem superadas eram enormes, pois tratava-se de submeter à 
experimentação, não mais somente a matéria ou a vida, mas 
o próprio espírito do homem, o espirito deste sujeito criador 
de ciências. Por isso, não é de estranhar que, desde as primeiras 
tentativas feitas pela psicologia para tornar-se ciência, ela te­
nha sofrido as mais veementes críticas por parte dos filósofos, 
que opunham, a essa pretensão, uma psicologia sintética, de 
ordem racional ou intuitiva;- Quanto àqueles que, pelo contrá­
rio, pretendiam preservar-se de toda "contaminação" relativa­
mente à especulação filosÓfica, tiveram que correr o risco de 
cair pura e simplesmente na fisiologia, pcis, ao eliminarem a 
subjetividade, excluíram ao mesmo tempo da psicologia aquilo 
que era seu objeto específico. Este risco ainda não existia na 
corrente empirista posterior a Hume e anterior a Comte. Se­
gundo o empirismo clássico, com efeito, os métodos subjetivos 
e objetivos deviam, na prática, acomodar-se. A psicologia em­
pirista clássica ainda tinha por pano de fundo uma metafísica 
latente e inconfessada: a de Fechner e a de Wundt, por exem­
plo. Mas deixemos de lado este positivismo avant la lettre para 
47 
ver como surgi,u a psicologia experimental, origem do positi­
vismo psicológico ulterior. 
No século XVIII, época em que a psicologia se constitui 
a partir da crítica do conhecimento instituída pelos empiristas 
ingleses, a antropologia se propunha ser a ciência do homem 
físico e social. A psicologia reservou-se o domínio da existência 
individual. Seu postulado inicial era o da inteligibilidade intrín­
seca do domínio pessoal. Cada pensamento deveria ser consi­
derado como um domínio autônomo. Seus diversos momentos 
deveriam encadear-se em virtude de uma necessidade ordena­
da por normas racionais. Wolf afirma a possibilidade, em psi­
cologia, de uma psicometria utilizando a linguagem da mate­
mática. Mas a nova disciplina padece, desde o início, de um 
vício, de constituição : de um lado, ela mal se distingue de uma 
lógica do entendimento, do outro, os progressos da fisiologia 
ressaltam a submissão da consciência às suas condições neuro­
lógicas e biológicas. Assim, a especificidade da psicologia se 
vê duplamente colocada em questão: l:!c psicologia hesita entre 
a alienação de uma filosofia do espírito e a alienação de um 
materialismo psicofisioJógic.o. Como poderia ela ser ciência? 
Kant não acreditava que isso pudesse ser possível, pois, segun­
do ele, só há ciência quando se puder ap1icar a matemática. E a 
linguagem cifrada só pode ser aplicada, diz ele, aos fenômenos 
espácio-temporais da realidade material. O sentido interno, por 
sua estrutura, escapa a este tipo de inteligibilidade. Assim, não 
pode haver uma ciência psicológica como há uma ciência físi­
ca. Comte, como veremos, retoma esta negação de princípio. 
A seus olhos, o indivíduo isolado não pode reivindicar uma 
existência independente. Engajado no contexto social, seu pen­
samento responde a influências que o ultrapassam. Ademais, a 
pretensa observação de si mesmo não pode fornecer nenhum 
conhecimento verdadeiro. 
Todavia, a psicologia científica e experimental conseguiu 
afirmar-se na Alemanha, já na primeira metade do século pas­
sado. O pensamento inglês estava ainda preso a uma psicologia 
do senso comum fundada sobre a observação empírica da rea­
lidade que se oferece à consciência. Os alemães tentaram fazer 
algo de novo em matétia de psicologia. Assim, J. F. Herbart 
( 1 776-1 841 ) , com sua Psicologia científica, tentou aplicar a 
48 
matemática ao estudo da vida psíquica. Ele compreende a vida 
psíquica em termos de representações num estilo intelectualis­
ta. Para ele, · a matéria da psicologia é a percepção interqa, o co­
mércio com os outros homeris, as observações do educador e dos 
homens de Estado, os relatos dos viajantes, dos historia!Clores, 
dos poetas e dos moralistas, as experiências fornecida� pelos lou­
cos, pelos doentes e pelos animais. Trata-se de racionalizar e de 
quantificar esses dados, a exemplo do que fizetam Galileu e 
Newton para a realidade física. Herbart tenta realizar tal pro­
jeto tratando cada representação como uma quantidade inten-, 
siva, · cujo grau pode ser expresso matematicamente. · Uma vez 
matematizadosos elementos da vida do espírito, o conjunto .PQ:­
derá ser facilmente submetido ao cálculo. Assim como Bichat 
havia tentado reconstruir a vida orgânica a partir dos tecidos 
isolados, Herbart tenta constituir uma psicologia a partir das 
representações. Para tanto, apóia-se na "psicofísica" que, para 
ele, deveria· ter por tarefa essencial determinar a relação entre 
o fenômeno físico, considerado como simples excitação causal, 
.e/ o fenômeno psíquico que dele resultava. Seu objetivo claro 
era a obtenção, em psicologia, de leis científicas. Todavia, Her­
bart não conseguiu realizar experiências . psicológicas sistemá­
ticas em laboratório: teve que contentar-se com experiências 
em pensamento. 
Foi o fisiólogo e anatomista E. H. Weber ( 1 79 5-1 8 78) 
quem, por seus estudos sobre as sensações táteis e visuais, 
conseguiu, pela primeira vez, passar do . domínio da fisiologia 
ao da psicologia. Ele estava convencido de que a quantidade 
de excitação necessária para discernir uma primeira sensação 
de uma segunda, deveria estar em relação constante e deter­
minável com a sensação inicial: Se esta quantidade é aumen­
tada pouco a pouco, a sensação primeira permanece inaltera­
da. Para que o sujeito perceba o crescimento dessa sensação, 
ou experimente uma sensação diferente, mostrando a transpo­
sição de um limiar de consciência, é necessário que haja um 
aumento de certa importância, .proporcional à quantidade da 
primeira sensação. Domde a "lei" de Weber: a excitação cresce 
ou decresce .de modo contínuo, a sensação de modo descon­
tínuo, e a quantidade de excitação, correspondendo a um limiar 
diferenci'al, encontra-se numa re1a_Ção fixa com a excitação ini-
49 
cial. Apesar, contudo, da mistura feita por Fechner de realismo 
e de irrealismo em psicologia, isso não o impediu de ser o 
primeiro "psicólogo" a empreender a exploração metódica do 
domínio tátil e do domínio visual. Essas pesquisas positivas 
foram sistematicamente desenvolvidas ulteriormente pelos fi­
siologistas, que fundaram a neurologia moderna. Assim, a ana­
tomia e a histologia, aproveitando-se , das novas possibilidades 
abertas pelo microscópio acromático, abriram os caminhos para 
o estudo psicológico da percepção. E os pressupostos da aná­
lise ideológica são substituídos pelos pressupostos de um co­
nhecimento exato do sistema nervoso. 
Seguindo as pistas abertas por Weber, Johannes Müller 
( 1 801-1 858 ) , um dos fundadores da medicina positiva, formu­
la, em sua obra fundamental Manual de psicologia humana, 
a teoria da energia específica dos nervos. Segundo essa teoria, 
os receptores sensoriais impõem seu caráter próprio à percep­
ção dos objetos: uma mesma excitação produz, sobre sentidos 
diferentes, impressões diferentes, ao passo que excitações . dife­
rentes de um mesmo sentido produzem impressões análogas. 
Donde uma teoria "nativista" da percepção, conferindo aos re­
ceptores sensório-motrizes um valor constitutivo na represen­
tação do real. 
Todas essas aquisições novas de Weber, Fechner e Müller 
tiveram por conseqüência a passagem da psicologia para. o 
domínio da fisiologia, sobretudo, tal como ela foi inicialmente 
formula.da por Hermann Lotze ( 1 8 17-1881 ) . A contribuição 
essencial de Lotze, em sua Psicologia médica ou fisiologia da 
alma ( 1 852) , consiste na doutrina dos "sinais locais", oposta 
às concepções neurológicas de Müller. Segundo ele, a represen­
tação perceptiva é qualitativamente afetada por uma iniciativa 
dos centros nervosos que situa cada impressão na totalidade 
do percebido. A idéia de uma regulação de conjunto contradiz 
o "nativismo" segundo o qual a influência das terminações ner­
vosas seria predominante. 
Entretanto, coube a W. Wundt' ( 1 832-1920) desempenhar 
um papel decisivo para a constituição da psicologia experimen­
tal. Podemos dizer que lhe cabe o mérito de ter sido o pri­
meiro psic6logo na história da psicologia. Ele é o primeiro em 
data a ser considerado propriamente psicólogo. Antes dele. 
50 
havia muitas psicologias, mas não existiam psicólogps. Os pre­
cursores de Wundt são médicos, fisiologistas e físicos, só . se 
interessando pela psicologia . secundariamente. Wundt, porém, 
fez da psicologia seu centro de interesse principal. Ele a · ane­
xou tanto à fisiologia quanto à anatomia. Seu objetivo consistiu 
em elaborar uma psicologia que só admitisse "fatos". Para. tan­
to, fez apelo, na medida do possível, à experimentação e à me­
dida. O laboratório de psicologia experimental, que ele criou 
em Leipzig em 1 878, equipado com todo o instrumental cien-: 
tífico da ciência de seu tempo, foi muito freqüentado por estu­
dantes de várias nacionalidades que, de volta a seus países de 
origem, tentaram imitar Wundt. 
Segundo Wundt, a experimentação permite o '·controle , dos 
dados passivos fornecidos pela introspecção. Contudo, ele não 
se limita a vincular a vida psíquica às . suas condições anatômi­
cas e fisiológicas. Para ele, o domínio da psicologia depende 
de uma inteligibilidade autônoma, muito embora esta inteligi­
bilidade deva estar submissa a uma causalidade tão rigorosa 
quanto a das ciências naturais. Assim compreendida, apoiada 
sobre uma metodologia experimental, a psicologia deve estudar 
os problemas da sensação, da percepção, do raciocínio, do 
sentimento, etc. Ela constitui uma verdadeira "ciência do es­
pírito". Aliás, uma ciência privilegiada entre as outras, pois 
ocupa um lugar central, de que as demais ciências do espírito 
(humanas) são tributárias. 
Wundt exerceu grande influência, sobretudo nos psicólo-:­
gos americanos, Em primeiro lugar, estudou a fisiologia. Neste 
particular, sob a influência de Helmholtz, deu muita impor­
t!ncia às pesquisas sobre as percepções visuais e auditivas, bem 
oomo ao estudo da condução nervo�a. Preocupado com o pro­
blema colocado pela "equação pessoal dos astrônomos" (cada 
mn parecia possuir seu próprio tipo de erro) , Wundt dedicou-se, 
inicialmente, ao estudo da percepção sensorial, especialmente 
da visão. Posteriormente, passou a estudar a memória, a inteli­
gência, o desenvolvimento estético, moral e social; e, através de 
-.ma psicologia comparada, estudou também a linguagem no ho­
JJlem e nos animais. Estava convencido de que as manifestações 
wperiores da atividade espiritual escapam às pesquisas de la­
boratório. Outros recursos de investigação deveriam ser encon-
51, 
trados: crianças, doentes, filologia, história e etnografia. Foi 
neste sentido que escreveu volumosas obras sobre a "psicologià 
dos povos". O que tinha em mente, era descobrir e determinar 
a relação dos fenômenos psíquicos com seu substrato orgânico, 
especialmente cerebral, pois acreditava que nada se passava em 
nossa consciência que não encontrasse seu fundamento em de­
terminados processos físicos. Por isso, tentou demonstrar que 
a sensação e a imagem são o produto das passagens do influxo 
nervoso nos neurônios cerebrais. Todavia, atribuiu às pesquisas 
experimentais apenas um campo bastante limitado, reconhecen­
do dois tipos de leis do conhecimento : leis associativas e leis 
perceptivas. Estas últimas eram as que exprimiam a atividade 
livre do pensamento. 
Numa perspectiva semelhante à de Wundt, Théodule Ribot 
( 1 839-1916) foi, antes de tudo, um teórico da nova disciplina. 
Suas duas obras principais, Psicologia inglesa contemportinea 
( 1 870) e Psicologia alemã contempordnea ( 1 879 ) , podem ser 
consideradas como um mànifesto da nova psicologia experi­
mental . �ibot foi sobretudo um professor de "psicologia ex­
perimental e comparada". Recomendava insistentemente aos 
seus alunos que adquirissem uma sólida formação científica e 
uma rigorosa especialização em determinado setor do vasto 
domínio psicológico. Atualmente, dizia, o número dos que estão 
preparados para tal empreendimento é muito pequeno. A maior 
parte dos fisiologistas não tem muito de psicólogos. E a maior 
parte dos psicólogos conhece mu�to mal a fisiologia. Seria pre­
ciso, para se empreender com êxito as pesquisasem psicologia, 
"conhecer as matemáticas, a física, a fisiologia, a patologia, ter 
uma matéria a manipular, instrumentos ao alcance da mão e, 
sobretudo, o hábito das ciências experimentais". Tudo isso, 
constatava Ribot, ainda nos falta. 
Evidentemente, Ribot revelava por vezes um entusiasmo de 
neófito · em relação à psicologia. Contudo, fez algumas consi­
derações bem pertinentes a respeito dessa disciplina. Por exem­
plo, considerava que a nova psicologia diferia da antiga: pri:.. 
meiramente, por seu espírito - não era metafísica -; em se.­
gundo lugar, por seu objeto - estudava apenas os fenôme:;. 
nos -; enfim,· por seus · procedimentos - ela os tomava de 
empréstimo, na medida do possível, às ciências bio16gicas. Isto, 
52 
porém, não impediu Ribot de cair num certo exclusivismo : 
achava que a psicologia, até então, cometera o erro de estar nas 
mãos dos metafísicos. Ora, dizia ele, "nenhuma reforma é efi­
caz contra aquilo que . é radicalmente falso, e a antiga psicolo­
gia é uma concepção bastarda que deve perecer pelas contra­
dições que ela encerra". 
A evolução de Ribot reflete bem as vicissitudes da nova 
psicologia, aspirando a um estatuto de cientificidade ( desco­
berta de leis) no domínio científico, especialmente em suas re­
lações com seus dois incômodos vizinhos : o filósofo e o fisió­
logo. De modo geral, Ribot tenta privilegiar a fisiologia, tal 
como pode testemunhar sua tentativa de reduzir a memória a 
um hábito fundado ein processos puramente orgânicos. Contu­
do, sua sólida formação filosófica mantinha nele a consciência 
das dificuldades metodológicas. Até sua morte, dirigiu a céle­
bre Revue Philosophique, fundada por ele em 1 876. Assim, foi 
obrigado a reconhecer que as experiências de laboratório têm 
seus limites, que a certeza das pesquisas objetivas não é abso­
luta, e que o método subjetivo condiciona, de fato, todos os 
demais métodos. 
, Portanto, após vencer vários e sérios obstáculos, a psi­
cologia científica consegue, enfim, constituir-se como ciência 
do homem concreto, deixando completamente de lado o pensa­
mento e as intenções do. sujeito. No entanto, as posições dessa 
ciência objetiva se vêem seriamente ameaçadas deside o início. 
Em 1 874, Franz Brentano, com sua Psicologia de um ponto de 
vista empirista, rompe com a psicologia analítica e os associa­
cionismos existentes, proclamando a prioridade de um estudo 
do ato mental e da noção de Intenção. Vários psicólogos pas­
saram a estudar as funções da vida mental e a reconhecer a 
especificidade da vida do espírito. A psicologia de Brentano 
será o ponto de partida dos trabalhos de E. Husserl ( 1 859-
1938) que, a partir da idéia de intêncionalidade, empreende 
uma recuperação da psicologia pela filosofia. As Investigações 
lógicas aparecem em 1900, e a primeira parte de suas Idéias 
diretrizes para uma fenomenologia surge em 1913 . A consciên­
cia, desprezada e relegada, retoma seus direitos de cidadania. 
E na mesma época surge a psicologia da forma, cujas origens 
remontam ao artigo de von Ehrenfels Sobre as qualidades da 
53 
estrutura ( 1 890) . A partir de 1910, o grupo constituído por 
Wertheimer ( 1 880-1943) , Kõhler (nascido em 1 887) e Kof­
fka ( 1 886-1941 ) multiplica as investigações em todos os setores 
da psicologia, partindo de um reagrupamento dos elementos da 
vida �ental, cuja inteligibilidade deve proceder por conjuntos 
e , não através dos detalhes. Essas concepções vão se transferir 
para os Estados Unidos da América, onde encontrarão grande 
desenvolvimento. . · 
· 3. 0 ESTATuro CIENTÍFICO 
Hoje em dia, quase todo mundo reconhece que a psicolo­
gia é realmente uma disciplina científica. Ela já teria alcançado 
o estatuto de cientificidáde que a tomaria completamente in­
dependente da filosofia. Mas foi somente em data relativamen­
te recente que a psicologia conseguiu descobrir o objeto espe­
cifico de suas investigações. :e o que reconhece, por exemplo, 
Pierre Gréco, em recente trabalho epistemológico . sobre a psi­
cologia. Com efeito, na obrn co!etiva dirigida por Piaget, Logi­
que et connaissance scientifique ( 1967) , após relembrar certas 
discussões de caráter metodológico, ele reconhece que os de­
bates evocados poderão parecer bastante vãos "a quem sabe 
que, pelo menos há meio século, se desenvolveu uma psico�ogia 
com as garantias do método experimental; portanto, ela não 
deve constituir sua objetividade por um desvio epistemológico 
sutil". Assim, relativamente a este assunto da objetividade em 
psicologia, parece não haver mais dúvida de que a maioria dos 
autores reconhece que já se chegou a um razoável consenso. 
Tal consenso parece justificar amplamente a maneira como se 
apresentou a maioria dos estudos e trabalhos de psicologia pu­
b1icados nos últimos tempos, a menos que eles não reivindiquem 
expressamente um enfoque de natureza filosófica. Por isso, per­
manece um problema a ser ainda resolvido. Trata-se de um 
problema de fronteiras entre a psicologia científica e a psicolo­
gia filosófica. Tal problema parece ser claramente discernido 
através daquilo que dele diz Piaget em sua :Spistémologie deJ 
sciences de rhomme (1972). 
Com efeito, a epistemologia que Piaget faz de sua própria 
prática de psicólogo, leva-o a dizer que os 40.000 membros da 
Unilo Internacional de Psicologia Científica jamais quiseram 
54 
... 
aderir ao Conselho Internacional de Filosofia e de Ciências Hu­
manas. Quer dizer: todos esses psicólogos, não somente reco­
nhecem a autonomia de sua disciplina, como também não se 
consideram ainda bastante seguros para relacionar-se com a 
filosofia. Qual a razão dessa recusa? N�o é porque a psicolo­
gia se desinteresse pela filosofia, mas porque pretende manter 
suas distâncias relativamente a toda especulação de ordem filo­
sófica. Esta constitui ainda uma "ameaça" à psicologia cientí­
fica em sua busca incessante de cientificidade. Ela ainda se 
sente "ameaçada" pelo "perigo" da especulação filosófica. Esta 
em nada ameaça a lingüística ou a demografia. Em segundo 
lugar, é verdade que houve no passado e ainda há no presente, 
muitos autores que tiveram ou têm a pretensão de tratar filo­
sofi<;amente a psicologia. Para eles, a psicologia científica seria 
insuficiente e impotente para fornecer um conhecimento ade­
quado do homem. Por isso, deveria ser completada por uma 
"psicologia filosófica", também chamada de "antropologia fi­
losófica". Num passado remoto, o Tratado da Alma de Aris­
tóteles apresentou-se como ilustração clássica de semelhante ten­
tativa filosófica. Mais próximo de nós, no século XVIII, Chris­
tian Wolf justapunha pura e simplesmente uma Psychologia 
rationalis, considerada por ele como uma das três "metafísicas 
especiais", coordenadas pela "metafísica geral" ou ontologia, 
a uma Psychologia empírica, muito mais próxima do saber pro­
priamente empirico do que a "ciência" puramente especulativa. 
Bem mais recentemente, Hegel pretendeu construir toda uma 
"filosofia do Espírito", comportando um bom segmento de 
"psicologia especulativa". E não se pode dizer com absoluta 
certeza que a . posteridade de semelhantes tentativas tenha de­
saparecido por completo. 
O problema consiste em compreendermos como, mesmo em 
nossos dias, pode ocorrer a persistência de tais empreendimen­
tos de absorção, pela filosofia, de todos os tipos de psicologia 
empirica. Se levarmos em conta o pensamento e a argumenta­
ção de Piaget, veremos que ele estabelece, em primeiro lugar, 
a seguinte diferença : a psicologia, como qualquer outra ciência, 
visa única e exclusivamente a fazer uma análise sobre os "fatos 
observáveis", ao passo que a filosofia procura sempre atingir a 
natureza das coisas ou suas "essências". Ora, diz Piaget, não 
55 
aio os problemas nem tampouco os domínios de estudo que 
deverão separar psicólogos e filósofos, pois ambos se ocupam 
legitimamente do comportamento, do desenvolvimento ou das 
estroturas. Considerar a diferença entre os dois domínios de 
estudo pela natureza dos problemasanalisados, seria bastante 
simplista. E a razão é a seguinte : entre o conjunto dos pro­
blemas considerados filosóficos e aqueles que não o são, há um 
gradativo deslocamento de fronteira, de época em época, em 
benefício daquilo que parece poder ser tratado cientificamente. 
A pergunta que Piaget coloca é a seguinte: por que, em 
determinado momento da história, certos problemas são consi­
derados como dependendo da psicologia científica, e outros, por 
exemplo, o da liberdade, como não dependendo dessa disci­
plina, devendo ser relegado à filosofia? Sua resposta é clara: 
pura e simplesmente porque há questões que podem ser sufi­
cientemente delimitadas para darem lugar a uma solução por 
meio da experiência e do cálculo; além disso, porque as solu­
ções assim obtidas são susceptíveis de estabe1ecer o acordo geral 
dos pesquisadores ou, em caso de desacordo momentâneo, de 
dar lugar a controles intersubjetivos ou a verificações experi­
mentais, até que seja possível um acordo posterior. 
Por outro lado, insiste Piaget, se o problema da liberdade 
não interessa, pelo menos por enquanto, à ciência, evidente­
mente não é por causa de sua natureza (fenômeno ou "essên­
cia") , mas porque os cientistas ainda não conseguiram desco­
brir um meio de colocá-lo em termos de verificação experimen­
tal ou algorítmica; ou, então, porque, pelo menos no estado 
atual das coisas, as soluções que nos foram propostas ainda de­
pendem de juízos de valor, de crenças e de ideologias. Ora, 
muito embora devamos respeitar os juízos de valor, as crenças 
e as ideologias, não podemos negar que eles são irredutíveis 
uns aos outros. Isto pode constituir uma situação aceitável em 
filosofia, jamais, porém, nas disciplinas propriamente cientí­
ficas. Enfim, prossegue Piaget, ninguém está em condições de di­
zer que o prob!ema da liberdade não interessa à ciência. Tudo o 
que se pode afirmar é que a ciência, atualmente, não se ocupa 
desse problema. Mas já existem certos sintomas que nos mos­
tram uma possível mudança de perspectiva. E ele faz alusão 
explícita ao famoso teorema de Gõdel, recentemente aplicado 
56 
r I 
t 
às máquinas que simulam o trabalho do pensamento, mostran­
do a analogia existente entre os problemas lógico-matemáticos 
e os problemas da contingência e do determinismo. 
Numa segunda aproximação, poderíamos dizer que a fron­
teira entre a psicologia científica e a psicologia filosófica é um 
problema puramente de método : de um lado, teríamos métodos 
objetivos, do outro, métodos reflexivos, intuitivos ou especula­
tivos. Se é assim, chegamos ao cerne da dificuldade própria à 
psicologia que pretende atingir o estatuto de cientificidade me­
diante a reivindicação do modelo de objetividade característico 
do tipo de conhecimento fornecido pelos métodos das ciências 
naturais. Piaget formula a dificuldade da seguinte maneira: num 
domínio como o do estudo dos fatos mentais, onde deve situar­
se o limite entre a objetividade e a subjetividade? Qual a fron­
teira entre o método objetivo, científico, e o método intuitivo, 
subjetivo e especulativo? E, apesar de reconhecer e de evocar 
não somente o alcance mas também a pertinência da questão, 
Piaget propõe a seguinte solução : somos freqüentemente ten­
tados a crer que esta linha divisória seja devida à introspecção. 
De fato, houve uma escola psicológica, o behaviorismo, que se 
propôs como objetivo essencial proscrever toda e qualquer re­
ferência à consciência, para ater-se única e exclusivamente ao 
comportamento exterior observável. Assim, o pomo de discór­
dia da psicologia científica, sobretudo no momento de seu aces­
so à cientificidade, situava-se no confronto, por vezes confli­
tante, entre o introspeccionismo e o behaviorismo. Ora, nem 
todos os psicólogos quiseram eliminar de modo absoluto e ra­
dical a introspecção. Piaget acredita ser inteiramente falsa a 
crença segundo a qual a psicologia científica pretenda negar 
absolutamente a consciência. Ele chega até mesmo a admitir, 
em psicologia científica, certa prática controlada da introspec- . 
ção. Neste sentido, tende a considerar como ultrapassado e, 
por conseguinte, como já resolvido, numa espécie de síntese 
satisfatória, o célebre debate entre a "psicologia introspeccio­
nista" e a "psicologia do comportamento". A este respeito, sua 
argumentação é clara: 
Se a diferença entre a psicologia científica e a psi­
cologia filosófica não se encontra nem na introspecção 
57 
nem na consideração do sujeito, é preciso, pois, procurá­
la num ponto mais restrito, que é ainda uma questão de . 
método, mas que diz respeito unicamente ao papel do 
"eu" do próprio investigador. A objetividade, tal como a 
entende a psicologia científica em suas tendências atuais, 
não é, de forma alguma, a negligência ou a abstração da 
consciência ou do sujeito, mas, isto sim, a descent�ação 
relativà ao "eu" do observador. 
Portanto, segundo Piaget, a única diferença entre a psico­
logia científica e a filosofia reside na de:;centração do eu: onde 
o ,psicólogo pretende apenas apresentar hipóteses verificáveis 
por cada um, fornecendo com suas diferentes técnicas os ins­
trumentos de controle intersubjetivo, o filósofo admite ser pos­
sível conhecer-se a si mesmo através de um conjunto de intui­
ções consideradas como primitivas e anteriores a todo e qual­
quer conhecimento psicológico. Assim, a libertação da psico­
logia é uma realidade. E sua independência está confirmada, 
embora ainda possamos ter dúvidas quanto à sua total autono­
mia para com as pressuposições filosóficas. A persistência de 
diferentes escolas psicol6gicas não se explica senão por certas 
opções filos6ficas prévias. 
Na perspectiva de Piaget, por "descentração" deve ser en­
tendida a conquista progressiva, feita pelo psicólogo; de uma 
atitude intelectual que o desprende da atenção dada exclusiva­
mente ou de modo primordial à vida psíquica e à psicologia do 
seu próprio eu, chamado de "sujeito egocêntrico" ou "psicoló­
gico", em oposição ao sujeito propriamente científico, o "su­
jeito epistêmico". Trata-se, pelo menos, do sujeito desse homem 
adulto e culto, mais ou menos idêntico ao eu do psicólogo, 
imaginado ingenuamente como constituindo o eu universal­
mente humano. Por conseguinte, a "descentração" outra coisa 
não é senão esta libertação da atitude científica relativamente 
a esta referência única e ingênua do estudo psicológico. Como 
observa Piaget, a psicologia filosófica, sob a influêncilt de preo­
cupações normativas, estava centrada sobre o eu enquanto ex­
pressão imediata da alma. E o método que lhe parecia satisfa­
tório era, naquele então, o da introspecção. Contudo, através 
de longo itinerário, em que intervieram as comparações sis-
58 
r temáticas entre o normal e o patológico, entre o adulto e a criança, bem como entre o homem e o animal, o ponto de vista 
que terminou por prevalecer, na psicologia científica, foi aque­
le segundo o quâl a consciência só pode realmente ser com­
preendida em sua inserção no conjunto da conduta. E isto só 
poderá ser levado a efeito com a utilização dos métodos de 
observação e de experimentação. Desta forma, os métodos 
comparativos (psicologia normal/psicologia patológica; psicolo­
gia do adulto/psicologia da criança; psicologia animal/psico­
logia humana) constituem um dos agentes fundamentais para 
a realização efetiva da passagem de uma psicologia mais ou 
menos dogmatizante e pretensamente filosófica, a uma psicolo­
gia mais verdadeiramente científica. 
Ora, o que podemos notar é · que Piaget parece ignorar 
que, no domínio -das ciências humanas, a fragmentação dessas 
disciplin_as corresponde a uma fragmentação do próprio méto­
do. Evidentemente, o projeto científico é o de um saber. Toda­
via, a instauração do saber não é o simples reconhecimento 
de um dado. Ela supõe uma iniciativa e uma decisão. Esta 
decisão diz respeito ao método a ser empregado. Uma decisão 
de ordem metodológica é fundamental, porque a idéia do saber 
científico inclui o reconhecimentodo caráter ilusório da ex­
periência imediata. Ora, o imediato não é o verdadeiro. A ciên­
cia só se toma possível quando se vai além da experiência 
imediata. E o caminho que nos leva além do imediato, é o mé­
todo. Este comporta quatro elementos fundamentais: a) certo 
corte da re�tlidade, através de uma abstração conveniente, o 
que implica numa "redução" da realidade a um esquema ideal 
mais ou menos simplificado; b) procedimentos de investigação 
adaptados à realidade assim "reduzida"; c ) procedimentos re­
presentativos, isto é, uma linguagem empírica permitindo ex­
pressar com precisão as investigações e seus resultados; d) en­
fim, procedimentos explicativos, isto é, uma linguagem teórica 
permitindo reencontrar, por via dedutiva, os dados empíricos 
e, assim, explicá-los. 
Importa ressaltar que o objeto a ser estudado é que deve co­
mandar a escolluJ do método. Nas ciências naturais, há um 
amplo consenso quanto aos métodos. O mesmo não ocorre 
nas ciências humanas, onde a situação metodológica parece 
59 
bastante confusa. Por exemplo, na psicologia, devemos empre· 
gar os métodos "redutores", inspirados nos métodos das ciên· 
cias da natureza, isto é, na constituição de modelos ideais? Ou 
devemos utilizar os métodos de tipo puramente matemático? Não 
poderiam ser usados os métodos "compreensivos"? Par�nos 
que, no caso da psicologia, seu objeto não é de natureza a re­
comendar, de modo unívoco, a utilização deste ou daquele mé­
todo. Métodos diferentes podem justificar-se. Ela poderá recor­
rer ora à construção de "modelos", o que acarreta o emprego 
de métodos matemáticos, ora à "compreensão" dos fenômenos, 
isto é, a um método hermenêutico. 
No entanto, Piaget afirma que a psicologia deve recorrer 
apenas aos métodos de observação e de experimentação. E foi 
por ter seguido esta linha de conduta, que se pôde encontrar 
os três pontos que, juntos, constituem a característica essencial 
das grandes tendências da psicologia contemporânea, ao pre­
tender im�r-se como uma das ciências do homem: 
60 
"a) O ponto de vista da conduta, isto é, do com­
portamento, incluindo a consciência ou a tomada de 
consciência. A introspecção, por si só, não basta, pois é 
ao mesmo tempo incompleta . . . e deformante . . . To­
davia, a consciência permanece um fenômeno funda­
mental, caso a situemos no conjunto da conduta; e é 
deste ponto de vista que estudaremos a tomada de cons­
ciência . . . 
"b) O ponto de vista genético, isto é, no sentido 
do desenvolvimento ontogenético (do indivíduo embrio­
nário ao adulto) , pois, se considerarmos o adulto, só 
perceberemos os mecanismos já constituídos, enquanto 
que, se seguirmos o desenvolvimento, atingiremos sua 
formação, que já é, por si mesma, explicativa; 
"c) O ponto de vista estruturalista, ainda não ad­
mitido por todos . . . , busca a investigação das estrutu­
ras de comportamento ou das estruturas de pensamento 
resultantes da interiorização progressiva das ações; mas 
de estruturas cujos efeitos podemos estabelecer experi­
mentalmente, enquanto que o sujeito, em si mesmo, ape· 
sar de tê-Ias construído por sua própria atividade, não 
toma consciência de sua existência enquanto estrutu­
ras." 
Como podemos notar, Piaget, em sua epistemologia da 
psicologia, parece tomar o problema do estatuto científico da 
observação e da experimentação oomo questão praticamente 
resolvida. Neste sentido, a seu ver, o behaviorismo de estrita 
observância é uma psicologia, senão anacrônica, pelo menos 
em franca regressão. Porque não se pode negar a importância 
e a legitimidade de uma utilização racional da introspecção, até 
mesmo por psicólogos ciosos da cientificidade de sua disciplina. 
Sem dúvida, isto é bastante correto enquanto descrição daqui­
lo que se passava, na prática, em psicologia, especialmente nes­
sas formas de psicologia que utilizam os métodos genéticos 
ou histórico-críticos para explicar o objeto de suas investiga­
ções. 
Todavia, uma pergunta parece-nos pertinente: será que 
este modo bastante pragmático e descritivo de se fazer psico­
logia não conduziria a um aspecto essencial do debate episte­
mológico ainda não resolvido satisfatoriamente? Trata-se do 
seguinte problema: há toda uma disputa opondo radicalmente 
aqueles que admitem a observação introspectiva àqueles que, 
em psicologia, professam um behaviorismo estrito e proscre­
vem absolutamente toda e qualquer introspecção. Esta disputa 
não data de ontem. Ela coloca em questão a própria existên­
et:> da psicologia como ciência. E faz apelo a ;decisões episte­
mológicas de princípio que não se limitam à práticâ mais ou 
menos vigilante de uma espécie de combinação dos métodos 
de estudo do comportamento com o método da introspecção. 
Portanto, seguiremos agora as seguintes etapas: 1 ) o behavio­
rismo e o questionamento da introspecção; 2) o questiona­
mento do behaviorismo. 
61 
l i I 
BEHA VIORISMO E 
INTROSPECÇÃO 
O que se deve entender por "introspecção" e por método 
introspectivo? Nem todos os psicólogos entendem da mesma 
forma o que vem a ser a introspecção. Limitemo-nos, por en­
quanto, a dizer que a introspecção consiste numa observação 
feita pelo psicólogo sobre os fatos de sua própria vida mental, 
quer dizer, sobre aquilo que se passa ou se produz no interior 
de sua própria consciência. Em contrapartida, vamos caracteri­
zar o bchaviorismo estrito, mostrando apenas suas idéias essen­
ciais. Começaremos por uma rápida apresentação da teoria in­
trospectiva, tal como ela fol sistematizada por Henri Bergson. 
Em seguida, daremos algumas indicações sobre a teoria refle­
xológica, pois ela está na base do behaviorismo em psicologia. 
Finalmente, veremos como a doutrina psicológica de Comte 
influenciou o behaviorismo posterior. 
1 . A PSICOLOGIA INTROSPECTIVA 
O desenvolvimento da psicologia experimental e científica 
teve que enfrentar sérias oposições, enquanto pretendia rom­
per com a especulação filosófica, de que foi, no decurso dos 
séculos, uma fiel companheira. No momento mesmo em que 
a psicologia se constituía como ciência, teve que enfrentar a 
oposição virulenta de Bergson. Este, com efeito, entregou-se 
a uma crítica severa das tentativas que visavam a estudar o 
psiquismo humano através dos métodos objetivantes. A esses 
métodos, Bergson opôs uma introspecção de caráter bem par­
ticular. O que ele pretendia era demonstrar que a psicologia 
não pode ser constituída no nível da experiência, entendida 
num sentido positivista e materialista. Ademais, procurou mos-
65 
trar que tal experiência mutilava a realidade que se pretendia 
estudar. 
A reivindicação de Bergson foi logo tachada de reação 
sentimental, pois pretendia substituir as pesquisas cujo desen­
volvimento só poderia ser assegurado pela "observação" obje­
tiva e pela experimentação, por intuições inverificáveis e subje­
tivas. Semelhante oposição de princípio confirma o condiciona­
mento das pesquisas por pressupostos de ordem filosófica. en­
gajandQ uma concepção geral do homem. Sem entrarmos aqui 
nos detalhes do debate, observemos que a introspecção, enten­
dida como fonte de revelação pela consciência, é capaz de for­
necer vários elementos. No entanto, para Bergson, o elemento 
fundamental é aquilo que ele chama de duração pura. Esta 
duração (durée) se revela ao investigador dos "dados imedia­
tos da consciência" como a realidade por excelência. 
Em seu Ensaio sobre os dados imediatos da consciência 
( 1 889 ) , Bergson visa a denunciar a ilusão que funda, a seus 
olhos, o determinismo psicológico: considerar os estados de 
consciência como unidades distintas, como espécies de átomos 
psíquicos regidos por leis associativas. E aquilo· que revelam 
os "dados imediatos da consciência", é a realidade móvel da 
"duração pura" ou o tempo vivido, fusão daquilo que se pode 
chamar de estados de consciência. Não se trata de elementos 
quantitativos, mas de uma continuidade cuja aparente multi­
plicidade é inteiramente qualitativa. Trata-se de momentos he­
terogêneosque se penetram, se misturam e se organizam, de 
tal forma que não se pode dizer se são um ou vários : quando 
apreendidos quantitativamente, são desnaturados. Semelhante 
descoberta leva Bergson a opor romanticamente ao eu exterior 
e social, um eu profundo, cujas manifestações atestariam a 
l iberdade humana. 
O ponto central do pensamento de Bergson é a radical 
distinção que ele estabelece entre duração e espacialidade. O 
corolário desta distinção é a que ele estabelece entre a inteli­
gência, que só consegue representar o descontínuo, e o instinto. 
:e. a oposição entre inteligência e instinto que funda seu intuiti­
vismo. O instinto, para ele, apreende o real "de dentro", por 
um conhecimento vivido, e não representado. O instinto se tor­
na, no homem, fonte de conhecimento. E ao tornar-se cons-
66 
•• 
' 
.: ' . • 
ciente de si mesmo, ele se transforma em intuição. O instinto, 
faculdade de utilizar e de construir instrumentos organizados, 
permanece prisioneiro da pré-adaptação que o constitui. A in­
teligencia, por sua vez, faculdade de fabricar e de empregar 
instrumentos não organizados, abre o caminho a uma auto­
adaptação indefinida. O instinto está em continuidade com a 
vida. Ele seria capaz de compreender, caso fosse capaz de co­
nhecimento reflexivo. A inteligência é apta a tal conhecimento, 
mas é naturalmente orientada para a matéria, para a fabrica­
ção técnica, para a análise científica que é como que uma 
manipulação mental dos objetos. 
Não cabe aqui uma análise mais profunda do introspeccio­
nismo de Bergson. Salientemos, contudo, que a "revolução" 
metodológica por ele promovida apareceu, há muito, como 
um bandeira libertária dentro do clima positivista reinante na 
psicologia da época. A influência de Bergson foi grande em 
vários domínios: artístico, literário, científico e político. Pierre 
Janet, num congresso de psicologia realizado em Paris, em 
1937, declarava: 
Um programa importante foi pouco a pouco adqui­
rido na concepção da psicologia científica: o essencial 
desta ciência, se ela quer ser objetiva e tomar-se útil, 
deve ser o estudo da ação humana; e todos os fatos psi­
cológicos devem ser expressos em termos de ação. Eis 
uma idéia que, desde o início, nos foi inspirada pela psi­
cologia de Bergson e que, sob diferentes formas, predo­
mina hoje em dia na maior parte dos estudos de psicologia 
científica. 
Por outro lado, certa psicologia do comportamento pode­
ria muito bem reclamar-se de Bergson, no sentido em que, 
para ele, o cérebro tem, além de suas funções sensoriais; o 
papel de "imitar" a vida mental : ele imprime no corpo os mo­
vimentos e as atitudes que representam aquilo que o espírito 
pensa. :e através dessa "imitação" que nos inserimos na reali­
dade, que nos adaptamos a ela, que respondemos às solicita­
ções das circunstâncias por ações apropriadas. 
67 
2. REFLBXOLOGIA E BEHAVIORISMO 
A descoberta dos reflexos condicionados surgiu, em pri­
meiro lugar, no domínio da psicologia animal. Levando em 
conta a importância que o behaviorismo de Watson deu a essa 
descoberta nos Estados Unidos da América, podemos dizer que 
ela representa uma contribuição capital à nova psicologia, sob 
seu aspecto mais radicalmente objetivista. Esta descoberta é 
inseparável do nome do fisiólogo e neurologista Pavlov ( 1 849-
1939 ) , prêmio Nobel em 1 904, com um trabalho sobre a di­
gestão. A doutrina de Pavlov nasceu da experimentação que 
ele empreendeu sobre os cães. Ela consiste essencialmente em 
substituir um excitante ou stimulus (S) primitivo, gerando um 
reflexo absoluto e incondicionado, por um novo excitante ou 
"estímulo condicionado" (também chamado por Pavlov de sig­
nal) , que provocará, por sua vez, uma resposta reflexa adqui­
rida. Assim, o cão que saliva, quando recebe um pedaço de 
carne (reflexo incondicionado ) , voltará a salivar quando ouvir 
um som ou perceber uma luz, desde que tais estímulos sejam 
acompanhados de um número x de vezes da apresentação do 
pedaço de carne. Quer dizer: uma nova associação reflexa sur­
ge entre o centro auditivo ou ,;sual e o centro salivar: o reflexo 
"condicionado" ou associado. E Pavlov acredita que todo fenô­
meno natural pode tornar-se signal: um som, uma cor, um odor, 
uma estimulação da pele, etc. A experimentação veio demons­
trar que esses reflexos condicionados colocam em jogo pro­
cessos não somente de excitação como também de inibição. 
Porque um cão pode ser condicionado de tal forma, que o 
reflexo espontâneo de dor cesse diante de um reflexo de satis­
fação, sob certas condições. Constatou-se que esses condicio­
namentos podem atingir grande especificidade; que um cão pode 
tomar-se apto a reagir apenas a certos estímulos, com exclu­
são de outros. Pavlov chegou mesmo, colocando em conflito 
processos de inibição e de excitação, a provocar verdadeiras 
neuroses caninas. Donde certos autores crerem que a gênese da 
neurose aparece, em Freud, a partir do momento em que se 
reprime ou se inibe um fator emocional. 
Todavia, os estímulos externos que criam os condiciona­
mentos são mecanismos frágeis, podendo desaparecer quando 
68 
· .. 
não continuam a ser mantidos por uma reintrodução passagei­
ra do estímulo natural (a carne ) . Na ausência desse estímulo, 
aumenta o tempo de reação, e diminui progressivamente a se­
creção salivar. Produz-se, então, aquilo que Pavlov chama de 
''inibição interna": tendência do reflexo condicionado a desa­
parecer. Entretanto, para que tais experiênéias possam ter bom 
resultado, é preciso que se criem condições particulares de iso­
lamento. Pavlov constatou que, se ó animal fosse bruscamente 
"perturbado" pela chegada repentina de um estranho, uma "ini­
bição externa" viria comprometer o bo� andamento da expe­
riência. Ademais, surpresas imprevisíveis também podem inter­
vir. :S o caso da náusea provocada no cão pelo simples fato de 
ele ver o experimentador. Também é o caso do "reflexo de 
defesa" que pode produzir-se quando um cão, estimulado por 
uma corrente elétrica demasiado violenta, late ou tenta morder. 
Por outro lado, da constatação de que a completa ablação do 
córtex do cão implicava no desaparecimento dos reflexos con­
dicionados, Pavlov conclui que seu mecanismo depende intei­
ramente da função cortical. A experimentação era feita unica­
mente nos animais. Em matéria de condicionamento, ela é muito 
mais limitada nos. seres humanos. No entanto, é possível de ser 
feita. E foi o que tentou fazer J. B. Watson, o primeiro repre­
sentante americano do behaviorismo propriamente dito. 
A doutrina behaviorista consolidou-se sobretudo a partir 
do famoso artigo de Watson ( 1849-1936) intitulado Psycho­
logy as the Behaviorist views it ( 1913) . Este artigo apresen­
tou-se, antes de tudo, como tomada de posição radical contra 
toda e qualquer psicologia que pensasse poder utilizar a in..: 
trospecção e pressupusesse a existência da consciência como 
sendo o objeto de estudo da psicologia. Segundo Watson, E. B. 
Titchener e W. James foram os dois mais ilustres representan­
tes da psicoiogia introspeccionista no início do século XX. 
Ambos acreditavam ser "a consciincia o domínio da psicolo­
gia". O behaviorismo, ao contrário, pretende que o domínio tia 
psicologia seja única e exclusivamente o comportamento huma­
no. Ademais, estima que a consciência não é um conceito nem 
definido nem� tampouco, inteligível. E é por isso que o beha­
viorismo, que se propõe estudar experimentalmente � compor-
69 
tamento humano, considera que a crença na existência da cons­
ciência nos remete aos velhos tempos da superstição e da ma­
gia. 
Qual o conteúdo do termo "consciência"? O que ele sig­
nifica? Para um psicólogo behaviorista, "comportamento" é 
tudo aquilo que um organismo vivo, animal ou humano, faz e 
diz em determinada situação; e que se toma, assim, susceptível 
de ser observado a partir do exterior. Desta forma, há uma pro­
funda semelhança entre a idéia ce observação do comporta­
mento e a idéia de observação na ciência física.A observação 
do comportamento é objetiva da mesma forma e no mesmo 
sentido como é objetiva a observação, na física, daquilo que 
se passa num sistema material qualquer. 
Foi levando isso em conta que Paul Guillaume achou por 
bem instaurar, para a psicologia, um "método objetivo puro" 
visando ao estudo behaviorista do comportamento. Para ele, 
os métodos objetivos devem estudar o comportamento, mas o 
comportamento relacionado com a situação em que ele é pro­
duzidv. Os termos dessa definição devem ser tomados em sen­
tido puramente objetivo. Trata-se de fatos físicos. O observa­
dor se situa, aqui, do ponto de vista do físico. Naturalmente, 
o fato psicológico deve ser definido de modo novo. Não é mais 
o estado de consciência pessoal, mas a relação do comportamen­
to com a situação que o engendra. Esta relação pode ser estu­
dada tanto nos ·outros quanto em nós mesmos. P. Guillaume 
não se pergunta sobre a possibilidade desse método. Está con­
vencido de que não somente podemos, como também devemos 
estudar as leis do comportamento humano e animal dá mesma 
forma como estudamos as leis do comportamento físico-quími­
co de um corpo qualquer (lntroduction à la Psychologie, 1942) . 
Por conseguinte, conferir à psicologia o comportamento 
(animal ou humano) como domínio de investigação próprio, é 
o mesmo que tentar "fisicalizar" ao máximo o objeto dessa dis­
ciplina. Mas esta fisicalização também pode significar, no caso 
da psicologia, a decisão epistemológica de limitar absoluta­
mente o observável, autorizado pela ciência do exterior, por 
observadores distintos daquele que pratica o ato a ser observa­
do. Segundo a regra behaviorista, podemos estudar o compor­
tamento de outrem ou o nosso. O estado de consciência, en-
70 
quanto tal, permanece um domínio "privado" : somente aquele . 
que o vive pode observá-lo; ele só é acessív�l à pessoa singu­
lar, cuja observação permanece "subjetiva". O comportamento, 
pelo contrário, pertence ao domínio "público": qualquer um 
pode, em princípio, observá-lo. E é por isso que ele se torna 
objeto de ciência. Não é observado por um sujeito "egocêntri­
co" ou "psicológico", mas , por um sujeito "epistêmico". A ob­
servação direta do comportamento é algo comum a vários ob­
servadores. Desta forma, podemos chegar diretamente a esta "in­
tersubjetividade" ou a este "controle intersubjetivo" que é a 
condição natural, fundamental e sine qua non de toda objetivi­
dade científica em psicologia. Assim, ao reduzir o objeto da psi­
co!ogia ae comportamento humano externo, o behaviorismo 
não tem em mira outra coisa senão alcançar esta forma indis­
cutida da objetividade científica que já demonstrou sua validez 
e sua eficácia no domínio das ciências físicas, biológicas e quí­
micas. 
Segundo esta perspectiva, podemos perguntar: como é que 
a psicologia behaviorista pensa o comportamento? A resposta 
a esta questão não parece difícil. Para o behaviorismo, o com­
portamento é pura e simplesmente uma reação ou resposta do 
"sujeito" observado (homem ou animal) à situação na qual 
ele se encontra. Em outros termos, o behaviorismo pensa o 
comportamento como uma resposta do sujeito observado a� 
estímulo que age sobre ele. Neste sentido, o fato psicológico 
pode ser reduzido a este tipo de relação funcional entre o estf­
mulo agindo sobre o sujeito, cujo comportamento é observado, 
� a resposta dada por este sujeito. :e exatamente o que �xprime 
o clássico esquema fundamental S +- R da psicologia beha­
viorista. ..t\ caracterização objetiva da situação na qual se en­
contra o sujeito observado permite que se defina o estímulo 
S; a descrição objetiva do comportamento observado é, por sua 
vez, a definição da resposta R. O estudo do comportamento 
consistirá, pois, em fazer variar o estímulo S e em observar, a 
cada vez, qual a resposta R dadà ao estímulo S. Cai-se, assim, 
no clássico méto.do das "variações concomitantes". O sujei•o, 
cujo comportamento é observado, constitui, por assim dizer, o 
"operador" desta ligação funcional entre o estímulo e a respos­
ta. Ele pode :ser considerado como uma espécie de "aparelho", 
71 
cujo papel é o de transformar um dado de entrada (o estímu­
lo) em um dado de saída (a resposta) . Figurativamente, o es­
quema é o seguinte: 
DADO DE ENTRADA 
(IN PUT) 
--------+ 
= ESTIMULO 
APARELHO 
= SUJEITO 
(BLACK BOX) 
DADO DE SAlDA 
(OUT PUT) 
-------+ 
= RESPOSTA 
Convém ressaltar, no entanto, que a psicologia do com­
portamento não explicita esta similitude entre o Sujeito, cujo 
comportamento ela observa, e o Aparelho que transforma um 
dlulo de entrada em um d«do de saída, a não ser para preci­
sar que ela não leva em conta, no início, nenhuma idéia já 
pronta concernente à constituição interna deste Sujeito-Apare­
lho e à natureza particular do dispositivo que opera a trans­
formação do estímulo em resposta. Tudo o que a observação 
do comportamento fornece de modo imediato, é o elo funciQ­
nal susceptível de existir entre o estímulo e a resposta: o modo 
como a resposta do sujeito varia em função da variação do 
estímulo que o afeta. No dizer de B. F. Skinner, um dos mais 
ilustres representantes do behaviorismo contemporâneo em 
psicologia, o sujeito cujo comportamento é observado só pode 
ser considerado pelo observador como uma "caixa negra" 
(block bo.x) , isto é, como um aparelho cujo interior é inteira­
mente desconhecido. Não se pode saber como este aparelho é 
fabricado, nem tampouco como, em seu interior, o dado de 
entrada (in put) se transforma em um dado de saída (out 
put) . Tudo o que se pode saber é que o aparelho está aí para 
efetuar a transformação. E o estudo de seu comportamento con­
siste em ver como ele reage, através de diversas respostas, aos 
diversos dados de entrada que lhe são aplicados. A lei de cone­
xão entre o estímulo e a resposta, na medida em que se conse­
guir determiná-la graças à observação do comportamento, re­
duz-se a uma simples lei de fato. Assim, permanecemos dentro 
da perspectiva "legalista" própria ao positivismo de estrita obser­
vância. 
72 
' • 
.B bem verdade que o positivismo de Skinner perdeu a in­
genuidade do positivismo clássico. Este consistia essencialmen­
te em lidar única e exclusivamente com os fatos observáveis, a 
fim de estabelecer entre eles relações repetiveis. O positivismo 
contemporâneo, em psicologia, não tem mais receio de ultra­
passar o nível dos fatos observáveis ou das "leis" através de 
uma investigação das explicações ou da elaboração de teorias 
interpretativas. Aliás, a psicologia científica contemporânea re­
conhece vários tipos de leis e diversas maneiras de enunciá-las, 
de tal forma que o trabalho científico, em psicologia, pode ser 
considerado como uma passagem contínua da procura das leis 
às hipóteses explicativas. Os psicólogos que reivindicam para 
sua disciplina um estatuto puramente descritivo, e que excluem 
sistematicamente a explicação propriamente dita, são positivis­
tas estritos que temem que, sob o pretexto explicativo, seja rein­
troduzido em psicologia o "homem interior". .B o caso de 
Skinner. Este autor, por exemplo, coloca problemas precisos 
de aprendizagem em psicologia animal e humana. Todavia, ao 
pretender enunciar apenas os dados certos, ele limita metodo­
logicamente suas análises apenas a dois tipos de fatos obser­
váveis: de um lado, aos in puts ou estímulos apresentados ao 
sujeito, do outro, aos out puts ou respostas verificáveis e men­
suráveis que se lhes seguem. Entre os dois, situa-se o organismo 
(ou aparelho) , com to.das as suas variáveis intermediárias psico­
lógicas ou mentais. Contudo, Skinner ignora peremptoriamente 
essas variáveis. E compara este organismo a uma "caixa negra" 
onde é possível apenas o estabelecimento de relações entre os 
in puts e os out puts, sem que nada se possa saber quanto àqui­
lo que se passa no Ín:terior do organismo. 
Bem entendido, uma das primeiras interdições desta ati­
tude do psicólogo, faée ao sujeito cujo comportamento ele estu­
da, consiste emeliminar do sujeito tudo o que se assemelha à 
consciência. Do ponto de vista da psicologia do comportamen­
to, a atitude do psicólogo introspeccionista, de interpretar o 
comportamento como uma manipulação exterior da vida psíqui­
ca, de uma consciência · presente a ele e para ele, não passa 
de um resquício da velha superstição "mentalista", que deve­
rá ser radicalmente abandonada. A ciência psicológica tem 
por obrigação eliminar absolutamente essas aderências mea-
73 
talistas, pois nada tem a ver com eles. Para se tornar verda­
deiramente ciência, a psicologia deve abster-se por completo 
de todo e qualquer ato mental. Trata-se, para ela, de operar, 
desde o início, esta ascese radical. Mas isto não quer absolu­
tamente dizer que a psicologia do comportamento fique pri­
vada dos meios de desenvolver-se e de organizar-se. Mais ou 
menos no instante em que sua idéia toma corpo e começa a 
impor-se como atitude sistemática, a psicologia do comporta­
mento vai descobrir na teoria de Pavlov, como já vimos, um 
poderoso auxiliar. Ela passa, então, a apoiar-se no estudo do 
reflexo animal, bem como no estudo da possibilidade de pas..: 
sar do reflexo espontâneo aos reflexos condicionados no tér­
mino daquilo que se apresenta, então, como uma espécie de 
educação do comportamento. 
Ora, a idéia de reflexo condicionado é bastante geral. 
Ela foi elaborada, inicialmente, para se aplicar ao estudo dos 
funcionamentos fisiológicos elementares do organismo animal. 
Por exemplo, podemos estudar, até mesmo em animais dece­
rebralizados ou em músculos convenientemente preparados, 
as contrações musculares que constituem respostas do músculo 
a diversos estímulos : picadas, contato elétrico, etc., aplicados 
ao órgão receptor. Donde o esquema do arco reflexo em psi­
cologia nervosa: 
óRGÃO 
RECEPTOR 
ESTIMULO 
74 
, 
óRGÃO 
CENTRAL 
óRGÃO 
EFETUADOR :4 
RESPOSTA 
Este esquema é análogo ao esquema do APARELHO que 
transforma um dado de entrada (in put) em um dado de saída 
( out put) . Em outros termos, há modelos fisiológicos do com­
portamento. E são eles que possibilitam a identificação daqui­
lo que chamamos de psicologia do comportamento com um 
ramo mais especializado e diferenciado de uma ciência geral 
�o comportamento animal. A psicologia intervém especial­
mente no momento em que tomamos o organismo como um 
todo e sua relação com as situações criadas para ele por um 
meio ambiente, e no momento em que estudamos os compor­
tamentos que se mostram susceptíveis de aprendizagem (o per­
curso de um labirinto efetuado corretamente por um rato, no 
momento em que apresenta o comportamento "busca de co­
mida") e de substituições do estímulo inicial por outros estí­
mulos. 
A partir de Watson, que estabeleceu as primeiras bases 
conceituais da psicologia do comportamento, esta disciplina 
desenvolveu-se considerave'mente. E é verdade que tal desen­
volvimento se empenhou bastante para reforçar a convicção 
segundo a qual a psicologia era ou poderia ser uma disciplina 
verdadeiramente científica. Neste processo de aceder à cienti­
ficidade, a psicologia observava, desde o início, os cânones 
metodológicos que forneciam seu caráter científico inconteste 
às outras ciências, tais como a física, a fisiologia e a biologia 
dt' século XIX. Assim, a psicologia nasceu e se desenvolveu 
sob a proteção do método experimental adotado pelas ciên­
cias naturais. Este método era, para ela, a garantia mais segu­
ra da objetividade de seu conhecimento. Todavia, de fato -
e como podem revelar-nos as epistemologias da psicologia que 
tentam dar certo lugar à consciência e ao fato psíquico -, o 
problema da psicologia está- longe de ter sido inteiramente re­
solvido pela decisão behaviorista e, menos ainda, por um sim­
ples propósito de estrita observância à sua regra inicial de 
método. 
Para termos uma idéia mais clara sobre a situação real 
da psicologia diante da decisão behaviorista, talvez seja ins­
trutivo remontarmos à doutrina de Comte sobre a psicologia. 
Este retomo a Comte é importante, pois a psicologia se viu 
às voltas, na primeira metade do século passado, com o "veto 
75 
positivista" a toda tentativa de constituição de uma psicologia 
científica. O programa positivista de 1 826-1830 exclui ra.di· 
calmente a psicologia da ordem das ciências. Comte não esbo­
ça projeto algum, nem propõe método algum para assegurar 
aos "fatos psíquicos" um estatuto positivo comparável ao es­
tatuto que pretende atribuir aos fatos sociais, irredutíveis aos 
fatos. biológicos. 
3 . DE COMTE AO BEHA VIORJSMO 
Qual a doutrina de Comte relativamente à psicologia? 
Sabemos que o programa positivista de 1 826-1 830 intitula-se 
Curso de filosofia positiva. Trata-se de um vasto programa de 
educação filosófica em marcha para a era da positividade. O 
duplo objetivo a que se propôs Comte era o seguinte: de um 
lado, delimitar as fronteiras das ciências contra toda e qual­
quer incursão possível da metafísica; do outro, fixar de uma 
vez por todas os princípios e os métodos dessas ciências. Para 
ele, entre a filosofia metafísica e as ciências há uma fronteira 
estável, devido à natureza de seus respectivos problemas. E, 
até hoje, o positivismo continua a crer que existem problemas 
que são, por natureza, científicos, comportando certos méto­
dos próprios para solucioná-los; e problemas que são, por na­
tureza, filosóficos, devendo ser considerados como simplesmen­
te insolúveis (opinião de Com te) , ou, então, como desprovi­
dos de toda significação (empirismo lógico) . Mas, como carac­
terizar essa fronteira? A resposta de Comte é a seguinte: em 
primeiro lugar, a ciência só se ocupa de fenômenos, e de for­
ma alguma da "natureza das coisas"; em segundo lugar, o obje­
tivo da ciência é atingir leis, devendo ignorar o "modo de pro­
dução dos fenômenos", isto é, a causalidade. 
Ora, neste contexto, foi bastante sintomático que a era 
da "representaç.jo", que contrastava com a da "positividade", 
tenha admitido a existência de uma psicologia e, até mesmo, 
de duas : uma psychologia rationalis, constituindo uma parte 
da metafísica, e uma psychologia empirica, pretendendo ser 
pelo menos um esboço de psicologia científica. Comte, porém, 
instaura a era da "positividade". E ele o faz pronunciando-se 
resolutamente em favor da liquidação radical de toda e qual-
76 
.. 
quer psicologia enquanto disciplina intelectual específica e in­
dependente. E não se pode negar que este fato já constitui 
elemento bastante sério para revelar a existência de um pro­
blema epistemológico profundo. E este elemento é tanto mais 
significativo quanto, relativamente à sociologia, por exemplo, 
todo o empenho de Comte foi o de constituí-Ia como verdp.,.. 
deira ciência, realmente positiva, e coroando todo o edifício 
do saber positivo desenvolvido segundo uma série linear de 
etapas: os níveis da complexidade crescente do objeto cientí­
fico, da idealidade matemática ao fato social humano, passan­
do pelas ciências da natureza física e biológica. No entanto, o 
que levou Comte a proscrever por completo a psicologia? Não 
teria ele eliminado apenas a introspecção, fazendo com que 
esta desse lugar às funções mentais, cujo estudo participa ao 
mesmo tempo da biologia e da sociologia? 
À primeira vista, o problema da proscrição da psicologia 
parece simples. Por "psicologia", Com te entende esta discipli­
na herdeira, a seu modo, a psychologia rationalis. Em outras 
palavras, uma "filosofia do espírito" à maneira de Hegel. :e 
esta psicologia, considerada como metafísica, que deve ser 
eliminada como vestígio do estado metafísico do pensamento 
humano. Ela não tem mais o direito à existência, de uma vez 
que o pensamento humano se estabeleceu no estado positivo. 
Por outro lado, mais do que a sobrevivência do estado metafí­
sico, a psicologia é mantenedora do estado teológico do pensa­
mento. Por isso, aos olhos de Comte, ela não passa de uma 
teologia que não ousa dizer seu nome. Assim, na primeira 
lição do Curso de filosofiapositiva, Comte afirma categorica­
mente que, de forma alguma, "há lugar para esta psicologia 
ilusória, última transformação da teologia - que se tenta de 
modo absolutamente vão reanimar hoje em dia - e que, sem 
se preocupar com o estudo fisiológico de nossos órgãos intelec­
tuais, nem com a observação dos procedimentos racionais que 
dirigem efetivamente nossas diversas pesquisas científicas, pre­
tende chegar à descoberta das leis fundamentais do espírito hu­
mano, contemplando-o em si mesmo". 
Por sua vez, a quadragésima quinta lição do Curso é de­
dicada a eliminar a pretensão da psico�ogia de constituir-se 
como disciplina específica e autônoma. Comte vê nessa pre-
77 
tensão uma conseqüência direta da iniciativa cartesiana e de 
seu sistema dual!sta, distinguipdo ainda a ordem geral, da 
Natureza material, e o universo dos corpos, do fato exclusiva­
mente humano da alma, o psiquismo e a faculdade racional sen­
do características exclusivas do homem. Ora, segundo Comte, 
a solução cartesiana, recusando toda continuidade e assimila­
ção do animal ao homem, é insustentável, pois os fisiologistas 
e os naturalistas já destruíram a vã separação estabe1ecida por 
Descartes entre o estudo do homem e o estudo dos animais. E, 
com isto, ficou eliminada toda filosofia teológica ou metafísi­
ca, pelo menos entre os homens mais inteligentes e cultos. 
Portanto, para Comte, a eliminação da psicologia repre­
senta o fim da era teológica e de suas sobrevivências metafí­
sicas, sobretudo num momento em que se trata de instaurar o 
sistema positivo das ciências. Depois de Descartes, a psicolo­
gia tornara-se o principal conhecimento humano, constituindo 
objeto de litígio entre o espírito científico e a pretensão teoló­
gico-metafísica dos filósofos. Agora, porém, parece que este 
grande processo filosófico já foi irrevogavelmente julgado, e 
os metafísicos passaram do estado de dominação de que des­
frutavam, ao simples estado de protesto, pelo menos no in­
terior do mundo científico. 
No fundo, ao reduzir a psicologia empírica de seu tempo 
a uma simples fisiologia animal, Comte tinha em vista recusar 
·a pretensa observação interna ou introspecção. Na verdade, sua 
tese fundamental, a esse respeito, consiste: de um lado, em 
eliminar radicalmente toda psico!ogia "metafísica"; do outro, 
em repatriar a: psico!ogia "empírica" para o seio da psicologia 
animal. Mas o que justifica esta posição? A razão parece con­
sistir no desconhecimento, por parte de Comte, do substrato 
orgânico ;daquilo que a psicologia metafísica pretende conhecer 
por seus métodos próprios. Melhor ainda, trata-se de uma crí­
tica· impiedosa ao método de observação interna, isto é, ao mé­
todo introspectivo. De há muito, diz Comte, os metafísicos, en­
tregues ao estudo de nossa inteligência, só conseguiram suavi­
zar a decadência de sua pretensa ciência, tentando apresentar 
sua doutrina como sendo fundada sobre a observação dos fa­
tos. Para atingirem tal objetivo, imaginaram a distinção entre 
dois tipos de observação de igual importância: um exterior, 
78 
I · : 
outro interior. A observação interior estudaria os fenômenos 
intelectuais. Ora, constata Comte, esta pretensa contemplação 
direta do espírito, por ele mesmo, não passa de pura ilusão: 
O espírito do homem, considerado em si mesmo, não 
pode ser um sujeito de observação, porque ninguém pode 
observá-lo em outrem, nem tampouco pode observá-lo em 
si mesmo. :e. verdade que observamos os fenômenos com 
o espírito. Mas com que observaríamos nosso espírito? . . . 
O homem não poderá observar diretamente suas opera­
ções intelectuais; o que delas pode observar, são os órgãos 
e os resultados. No primeiro caso, entramos no domínio 
da fisiologia; no segundo, sendo os grandes resultados da 
inteligência humana as ciências, entramos no domínio da 
filosofia das diversas ciências, que é inseparável das pró­
prias ciências. Em hipótese alguma, há lugar para a psi­
cologia, ou estudo direto da alma independentemente de 
toda consideração exterior (Systeme de Politique positive, 
1 854) . 
Como podemos facilmente notar, ao proscrever radical­
mente a introspecção e a psicologia fundada no método intros­
pectivo, Comte tomou uma posição tão radical quanto a dos be­
havioristas de mais estrita observância. Ademais, é este veto 
positivista que a epistemologia da psicologia atual pode consi­
derar como havendo sido entendido pela psicologia behavio­
rista. E isso, levando-se em conta que a psicologia caminhou 
bastante para assegurar-se um estatuto de cientificidade. Para 
ser ciência, a psicologia behaviorista teve que aceitar pelo me­
nos o princípio do veto positivista à introspecção, a fim de, em 
seguida, poder defmir um campo de aplicação legítimo para os 
métodos científicos comprovados. 
Todavia, apesar da doutrina de Comte, a psicologia do 
comportamento teve que esperar uns oitenta anos para se 
constituir em estatuto de cientificidade "publicamente" reco­
nhecido. Por que este atraso no surgimento do behaviorismo? 
A razão parece consistir na ambigüidade e na aparente incon­
seqüência da posição de Comte. Na realidade, sua posição, 
tanto por ser recusada por psicólogos introspeccionistas e "me-
79 
tafisicos", quanto pode ser tachada de ambígüa e inconseqüen­
te pelos psicólogos "empiristas". O behaviorismo, ao contrá­
rio, pelo menos aparentemente, apresenta-se como uma dou­
trina clara e conseqüente consigo mesma. Em relação à intros­
pecção, toma uma posição bem mais radical do que a do pró­
prio Comte, como veremos. 
No decorrer do século XIX, muitos psicólogos pensavam 
espontaneamente como Comte. Assim, deixando às "psicolo­
gias metafísicas" a reivindicação de uma observação interna, 
introspectiva, do ser "espiritual", das ações e faculdades da 
inteligência ou da vontade propriamente ditas, aceitaram a 
observação interna dos fenômenos da sensibilidade: sensações 
externas, emoções, etc. Em contrapartida, o que retiveram de 
Comte foi sobretudo o anátema lançado contra as psicologias 
"metafísicas" travestidas, graças à introspecção, em psicologias 
pseudo-empíricas. Escudando-se em Comte, tais psicólogos 
mantinham uma "boa consciência" ao praticarem o estudo po­
sitivo do sensível, tal como o concebia a tradição da psicolo­
gia dita empírica. O que tinham em vista era a elaboração de 
uma "teoria positiva das emoções", à maneira de Comte. Foi 
nesta perspectiva que se desenvolveram, sobretudo a partir de 
1 850, os estudos de psicologia experimental. Tais estudos ad­
vinham daquilo que hoje chamamos de psicofísica. Por volta 
de 1 850, eles chegam à explicitação das leis de Weber e de 
Fechner. Em seguida, são sistematizados por Helmholtz no 
domínio da visão e da audição. E culminam, com Wundt, na 
constituição da psicologia experimental como disciplina real­
mente independente. 
A partir de 1860, a psicologia organiza sua aparelhagem 
e, durante alguns decênios, não cessa de progredir, até a épo­
ca do behaviorismo. Este associa a prática da observação inte­
rior daquilo que podia ser observado por introspecção, à ma­
nipulação das aparelhagens de laboratório e ao estudo bioló­
gico do sistema nervoso. A psicofísica, a psicofisiologia e to­
dos os seus prolongamentos mais ou menos espontâneos per­
manecem ainda fiéis à perspectiva de um programa de estudo 
positivo e científico do fato mental : obediência mais ou 
menos estrita às regras da ortodoxia positivista. Mas não 
80 
compreendiam muito bem a significação do "veto positivista" 
interditando categoricamente a constituição de uma psicolo­
gia fundada sobre a observação interna. Dois autores ilustram 
bem esse período da psicologia pós-comtiana e anterior ao sur­
gimento do behaviorismo propriamente dito: Ribot e Binet. 
Em 1 870, Ribot publica sua Psicologia inglesa contempo­
rdnea, tentando justificar a constituição da psicologia como 
ciência independente e categoricamente diferenciada da filoso­
fia. Ele distinguia, na psicologia, fatos de natureza especial, di­
fíceisde serem observados e clarificados, mas que constituíam 
a parte mais sólida e indiscutível da nova ciência. Segundo Ri­
bot, uma ciência independente só se constitui quando passa 
a estudar esses fatos. E a psicologia se reduz a esse tipo de 
estudo. Tudo o mais pertence ao domínio da filosofia, enten­
dida como disciplina extracientífica. Assim, a psicologia será 
constituída dos fatos psicológicos ou fenômenos psíquicos em 
geral. 
Quanto ao método a ser empregado pela psicologia, Ri­
bot diz que ele consiste na reflexão e na observação interior. 
A observação interior é o ponto de partida, pois é a condição 
indispensável para todo e qualquer tipo de psicologia. Con­
trariamente, pois, a Comte e aos fisiologistas, Ribot acredita 
que, em psicologia, nada pode substituir o testemunho da 
consciência. Todavia, admitindo que o princípio epistemológi­
co da psicologia é a observação interior e o testemunho da cons­
ciência, ele reconhece a insuficiência da observação interna, 
pois a reflexão, por si só, é absolutamente incapaz de nos fa­
zer penetrar no espírito de outrem. Donde a necessidade de 
se fazer apelo à observação exterior, à percepção de sinais e 
de gestos, à interpretação desses sinais, à indução dos efeitos 
às causa�, à inferência e ao raciocínio por analogia. Por isso, 
o método da psicologia deverá ser ao mesmo tempo subjetivo 
e objetivo. Trata-:>e de dois aspectos complementares de um 
mesmo método: o subjetivo procede por análise, o objetivo, 
por síntese; o interior é mais necessário, pois, sem ele, não po­
demos saber de que estamos falando; o exterior é mais fecun­
do, pois seu campo de investigação é quase ilimitado. 
Finalmente, o método concreto da psicologia científica, 
tal como Ribot o concebe, é uma psicologia da observação do 
81 
comportamento exterior do homem ou do animal, mas inter­
pretada à luz da observação interna e introspectiva do fato men­
tal, que fornece ao psicólogo o princípio e os meios de sua 
interpretação. Assim, Ribot se apresenta como o psicólogo por 
excelência ;do comportamento interpretado como manifestação 
do fato mental e das disposições psíquicas, remontando dos efei­
tos materialmente observados às causas propriamente psíqui­
cas. O psicólogo elabora um discurso dessas causas, não enquanto 
metafísico, mas enquanto naturalista do espírito. Contudo, per­
manece ainda não resolvido o problema epistemológico da psi­
cologia. Binet tenta resolvê-lo através da mediação da lingua­
gem e de seu papel em psicologia. 
Binet se situa neste período intermediário entre o pro­
grama positivista de Comte e o manifesto behaviorista de Wat­
son. Err.. 1 894, ele publica uma Introdução d psicologia t!xpe­
rimental. Nesta obra, ele dá grande destaque aos problemas 
metodoiógicos da psicologia. Reconhece o quanto é difícil de­
marcar a psicologia propriamente dita da fisiologia do siste­
ma nervoso. No entanto, ele tenta desfazer essa çonfusão. 
Define a introspecção como o ato pelo qual percebemos direta­
mente aquilo que se passa em nós: nossos pensamentos, nossas 
emoções, etc. A introspecção está na base da psicologia. Esta 
se distingue da fisiologia do sistema nervoso pelo uso que faz 
da introspecção. 
A posição metodológica de Binet coincide com a de Ribot. 
O que ele acrescenta é a idéia segundo. a qual o estudo psico­
lógico deve ser feito através de questionários metodicamente 
elaborados. Trata-se de uma primeira amostragem de estudo 
psicológico mais ou menos experimental, através de testes apli­
cados a uma determinada população de indivíduos. Ao tratar 
dos questionários, Binet faz uma distinção entre a introspecção 
pessoal (introspecção do psicólogo, tomando a si mesmo como 
único ponto de referência, no momento de passar à teoria) e a 
introspecção comparada, consistindo em esclarecer, uns pelos 
outros, os relatórios de introspecção feitos por outros indiví­
duos, em resposta a questionários metodicamente elaborados: 
pesquisas, por exemplo, sobre a memória visual ou musical. 
Em seguida, Binet reconhece três modos de observação em 
psicologia : 
82 
a) a observação enquanto ação pessoal de introspecção, 
visando ao vivido mental próprio: introspecção pessoal; 
b) a observação exterior dos comportamentos ou con­
dutas de técnicas interpretadas por referência aos conhecimen­
tos adquiridos em dependência de atos pessoais de auto-obser� 
vação: uso interpretativo da introspecção pessoal; 
c) a observação consistindo em tomar conhecimento de 
relatórios feitos por terceiros de suas observações introspecti­
vas espontâneas ou programadas por questionários: introspec­
ção comparada. 
Segundo Binet, é com esta última introspecção, também cha­
mada de coletiva, que intervém, na epistemologia da psicologia, 
graças à linguagem, um elemento específico: a expressão huma­
na. A linguagem, enquanto expressão dos estados mentais, sem­
pre desempenhou um papel importante ao se tratar de fornecer 
ao estudo feito pelo psic61ogo um material de informação e de 
conhecimentos de base. Na medida em que observa os seres 
humanos, o psicólogo observa seres que, não somente executam 
gestos ou tomam atitudes, mas seres . que falam e escrevem. 
Assim, ao refletir sobre seu método de observação, a psicolo­
gia com pretensões científicas precisa explicitar, como uma cir­
cunstância importante de seu método, a atenção conferida de 
modo metódico aos dizeres do sujeito: palavras ou coisas es­
critas. 
Foi somente depois de Binet que tal circunstância do mé­
todo psicológico conseguiu aceder a um certo estatuto cien­
tífico, com a prátiOfl dos relatórios comparados de introspec­
ções individuais ou das respostas aos questionários sistemati­
camente organizados. Ele tabula, assim, não som�nte aquilo 
que o sujeito humano exprime servindo-se de sua linguagem 
falada ou escrita, mas também o conjunto das tarefas inteligen­
tes que ele executa com maior ou menor êxito. Ao retomar ao 
psicólogo inglês Catell a idéia do mental test (provas impostas 
a um sujeito para a compreensão desta ou daquela aptidão 
mais ou menos elementar) , Binet começa a organizar sistemati­
camente a prática desse teste em escolares, a fim de estudar 
os conjuntos complexos de suas aptidões mentais : seu grau de 
desenvolvimento, sua "idade mental", etc. 
83 
O sistema de testes, chamado de Binet-Simon, destinado 
à avaliação do grau da inteligência e da idade mental dos esco­
lares, continua ainda, até hoje, a ser praticado. Binet divulgou 
o primeiro conjunto de resultados da prática de seu método 
em 1 903, em sua obra intitulada O Estudo experimental da 
inteligência. Com este estudo, ele contraria frontalmente as in­
terdições comtianas e devolve à psicologia a possibilidade de 
observar as funções intelectuais. Recoloca-se, assim, de modo 
novo, o problema epistemológico da psicolQgia, pois o que está 
em jogo é a aplicação dos métodos experimentais ao estudo das 
funções superiores do espírito humano. 
Como vimos, Binet não limita seu estudo ao problema da 
introspecção. Ele também se interessa pela questão da media­
ção expressiva do próprio fato mental, quer dizer, pela questão 
da linguagem. Aliás, como veremos, a psicologia do comporta­
mento não escapa por completo a essa questão da linguagem 
e do papel que ela desempenha no sistema da observação psi­
cológica. E isto, mesmo que tal psicologia tente definir-se ex­
cluindo todo apelo à introspecção e toda referência à cons­
ciência. Porque, ao definir o comportamento (resposta de um 
sujeito animal ou humano a um estímulo exterior) , ela inclui 
nele tudo o que é objetivamente observável: aquilo que o su­
jeito observado faz, mas também aquilo que ele diz numa si­
tuação em que a função-estímulo pode comportar a interven­
ção de coisas ditas ou o dado de certas "informações" através 
de um sistema qualquer de sinais. De sorte que a psicologia 
do comportamento também encerra uma ambigüidade episte· 
mológica. Ela se deve à intervenção da linguagem na observa· 
ção ou na experimentação psico!ógicas. A análisedessa ambi­
güidade nos levaria longe demais, e estaria fora de nosso pro­
pósito. Limitemo-nos a afirmar que tal ambigüidiide recoloca, 
como não resolvida, a questão epistemológica da psicologia. 
Neste ponto de nossa análise, retomemos ao behavioris­
mo, mas para compreendermos mais profundamente sua inten­
ção metodológica central. Aliás, trata-se de uma dupla inten· 
ção. Em primeiro lugar, o behaviorismo visa à proscrição ab­
soluta, radical, sem ambigüidade nem compromisso, de todo 
uso da observação interna e de todo apelo direto ou indireto 
84 
ao conhecimento fornecido por ela. No nível da psicologia be­
haviorista, a observação interna simplesmente não existe: é 
puramente uma atitude pré-científica, vinculada aos desvarios 
mentais da consciência mágica. Em segundo lugar, o behavio­
rismo condena todas as psicologias pseudocientíficas que vão 
de Comte a Watson: as de Wundt, Ribot, Binet, etc. 
Evidentemente, como já dissemos, o behaviorismo evoluiu 
muito depois de Watson. O sociólogo americano Paul Lazan­
feld, num artigo publicado em 1966 e intitulado "Observações 
históricas sobre a formação e a medida dos conceitos nas ciên­
cias do comportamento" (incluído na obra La philosophie des 
sciences sociales, tradução francesa, 1970), mostra que, ao 
mesmo tempo que a psicologia behaviorista pretendia ser a 
ciência do comportamento individual do animal ou do homem, 
a sociologia pretendia ser a ciência do comportamento cole­
tivo. "A partir de 1925, diz ele, os bebavioristas puseram-se 
a negar que a introspecção ocupasse qualquer lugar em psico­
logia. O estudo da natureza humana s6 poderia ser científico 
na medida em que eliminasse a noção de subjetividade e ado­
tasse os métodos da psicologia animal . . • No entanto, o beba­
viorismo reconhece agora a utilidade da introspecção: ela fa­
cilita os progressos da psicologia animal . . . Com o tempo, po­
rém, surgiu uma noção muito útil, a de variável intermediária, 
revelando uma idéia muito fecunda". 
Aliás, como também reconhece Paul Fraisse (numa co­
municação à Sociedade Francesa de Psicologia, em Antholo­
gie des psychologues jrançais, 1962), a psicologia, para tomar­
se científica, teve que recorrer, no início, ao método experi­
mental dos fiSicos e dos biólogos: fazer variar situações e estu­
dar as reações a esta situação. Todavia, a aplicação desse mé­
todo sofreu mudanças, devido à insuficiência de elaboração 
epistemológica do objeto da psicologia. Foi necessário o fra­
casso da psicologia dos estados mentais e o êxito simultânea 
da psicologia animal, para que se produzisse a grande revolu­
ção em psicologia, que é o bebaviorismo: o objeto do psicó­
logo não é mais o conjunto dos conteúdos de consciências, mas o 
conjunto dos comportamentos, isto é, as reações observáveis 
que são colocadas em relação com as situações corresponden-
85 
tes. Doravante, a ciência psicológica terá por objeto de estudo 
as leis ligando situações e respostas. Por uma questão de eco­
nomia, esta psicologia foi chamada de em S -+ R. No entanto, 
somente os behavioristas americanos adotaram rigidamente o 
esquema de Watson. Pavlov e Piéron tentaram compreender os 
mecanismos fisiológicos religando a situação à resposta. Assim, 
a pesquisa experimental deixou de ser do tipo S -+ R, para 
adotar o esquema : Situação-Organismo-Resposta (S -+ O -+ R) . 
E hoje, todos os behavioristas, exceto talvez Skinner, admitem 
como insatisfatório o esquema S -+ R. Não basta constatarmos 
as relações entre estímulos e respostas. Por outro lado, não 
podemos mais ignorar aquilo que se passa no sistema de recep­
ção e de elaboração da resposta, que é o homem. Apesar de a 
ciência só poder atingir relações entre fatos observáveis, a psi­
cologia científica não pode mais ignorar que, neste feixe de 
fatos observáveis, devem intervir, não somente situações e res­
postas, mas também ''variáveis" características da personalida­
de do sujeito. Assim, segundo P. Fraisse, o esquema do com­
portamento que deve estar por debaixo dos trabalhos da psi­
cologia, é o seguinte: (S -+ P) --t R. Ao introduzir a per­
sonalidade (P), ele pretende considerá-la em todos os mveis, 
desde o psicológico à integração de n6s mesmos num eu. A 
reação observável é função não somente de uma situação e de 
uma personalidade, como também de sua interação. 
Como se pode notar, o que se propõe atualmente à ciên­
cia psicológica é uma démarche intelectual ao mesmo tempo 
natural e epistemologicamente mista de aliança entre aquilo que 
é imediata e efetivamente observável e aquilo que, conhecido 
de outra forma (os fatores de "personalidade") , vem situar-se 
como princípio · intermediário, tanto da explicação quanto do 
encadeamento da conexão entre estímulo e resposta. Devido 
a esta combinação epistemológica, o psicólogo poderá, na prá­
tica, locomover-se no elemento experimental de um "observá­
vel-explicável"; em outros termos, de um observável que todo 
um complex
·
o de infra-estruturas orgânicas e de atualidades 
mentais concomitantes pode tornar explicável, compreensível 
ou "provido de sentido". A diferença está em que o pen-
86 
, \ 
samento do psicólogo de hoje surge depois da análise episte­
mológica que o behaviorismo foi obrigado a aceitar. 
Não cabe aqui uma análise de toda a evolução do beha­
viorismo, sobretudo de sua passagem de sua atitude meramen­
te descritiva dos "fatos observáveis" à admissão das "explica­
ções". O que importa ressaltarmos é que a tentativa behavio­
rista pretendeu proscrever radicalmente a entidade "consciên­
cia". Tudo deveria se passar, epistemologicamente, como se o 
psicólogo observador não devesse ter nenhuma consciência de 
si, mas somente um conhecimento de objetos exteriores, apre­
sentando-se no espaço "público" da observação física. Quanto 
ao sujeito observado pelo psicólogo observador, nada poderia 
ser afirmado a seu respeito, no nível da observação, por inter­
pretação psicológica daquilo que ele fornece materialmente à 
observação: nem consciência e vida mental, nem, tampouco, 
conhecimento do mundo exterior dos ·objetos físicos. Neste sen­
tido, o psicólogo, tomado em todo o seu rigor behaviorista, 
estaria num ato solipsista e sem consciência de si, de um conhe­
cimento inteiramente voltado para o mundo exterior dos objetqs 
físicos e das máquinas. Isto implica, de modo mais ou menos 
implícito, uma tese sobre a linguagem. 
Com efeito, na perspectiva própria ao psicólogo observa­
dor, suas ações de linguagem exprimem os conhecimentos que 
ele pode ter das diversas determinações de sua atividade cog­
nitiva. Todavia, relativamente aos sujeitos que a observam, a 
linguagem não passa da materialidade de excitantes físicos ou 
de comportamentos materiais. Ela não deve ser tomada como 
expressão de uma atualidade psíquica, permitindo a outros in­
divíduos representá-la de modo interpretativo. Aplicada ao su­
jeito observado, a linguagem é um estímulo material; prove­
niente dele, ela é uma resposta material ao estímulo que lhe foi 
aplicado. Em outros termos, no nível epistemológico em que 
procura estabelecer-se, o behaviorismo recusa radicalmente o 
princípio cartesiano do conhecimento, através da palavra hu­
mana, de qualquer tipo de "alma racional" no indivíduo hu­
mano observado. :e bem verdade que, na prática cotidiana, nem 
todos os behavioristas vêem as coisas de modo tão óbvio e sim­
ples assim. Em suma, para o behaviorismo, é impossível a 
87 
existência, tanto de uma psicologia da introspecção, quanto 
de uma psicologia da observação exterior imediatamente in­
terpretada. O esquema positivo estímulo-resposta (S -+ R) da 
observação-experimentação, em que pesem os desacordos de 
certos psicólogos de tendência mais explicativa e interpretati­
va, deve ser tomado em seu sentido estritamente positivo entre 
dados materialmente observáveis: toda interpretação "psicoló­
gica" das condutas e dos atos de palavra deve ser excluída de 
modo sistemático. 
Ora, relativamente à intervenção da linguagem (sistema 
deexpressão) , a posição behaviorista parece tão radical e tão 
paradoxal quanto insustentável. No entanto, ela está de acordo 
com aquilo que as ciências da linguagem evidenciam na mes­
ma época: a possibilidade geral de se distinguir na palavra, de 
um lado, a construção material da entidade material, a coisa 
sonora, audível, escrita e visível : o significante com sua cons­
tituição material e sua ''sintaxe" bruta; do outro, a determi­
nação de vida mental tendo por veículo e como expressão, de 
modo mais ou menos regular, o significado, que fornece senti­
do à palavra e ao seu princípio, a língua. 
Mais ou menos na mesma época em que começa a se afir­
mar o behaviorismo, Ferdinand de Saussure já havia ministra­
do um curso de lingüística. "Mentalista" em psicologia, Saus­
sure procurava na introspecção pelo menos uma parte da jus­
tificação de suas concepções em matéria de lingüística. Por 
outro lado, também foi ele quem ensinou a necessidade de se 
estabelecer, a propósito da linguagem, a seguinte distribuição 
epistemológica: de um lado, o significante, sua materialidade 
objetiva e sua construção sintática; do outro, o significado, 
determinação da atualidade mental percebida como expressa 
ou expressando-se na linguagem, e conferindo sentido e valor 
semântico à materialidade bruta da expressão. Depois de Saus­
sure, a distinção significante-significado, ou sintaxe-semântica, 
passou a desempenhar um papel fundamental na teoria da lin­
guagem. Ela preparou, assim, o surgimento dessa corrente de 
pensamento hoje denominada "estruturalismo". Trata-se de uma 
atitude determinada pe!o princípio da observação objetiva do 
dado lingüístico material, com uma "colocação entre parênte-
88 
ses" de sua dimensão semântica, a fim de só considerar as 
estruturas sintáticas deste dado lingüístico e das relações obje­
tivamente definíveis entre as estruturas sintáticas presentes aqui 
e ali por estes ou aqueles dados lingüísticos materiais. 
Torna-se, assim, patente que esta posição se coaduna na� 
turalmente com a doutrina behaviorista. O behaviorismo, com 
efeito, reduz a própria linguagem a não ser outra coisa, do 
ponto de \ista epistemológico, senão um simples comporta­
mento entre outros. Ele coloca entre parênteses a referência, 
espontaneamente admitida pelo senso comum, do significante 
lingüístico ao seu significado mental ; e só conserva dessa re­
ferência a materialidade e o modo material de construção. E é 
por causa da especificidade própria desse modo material de 
construção que as palavras podem ser consideradas como estí­
mulos a sujeitos reduzidos ao papel de receptores desses estí­
mulos, isto é, capazes de reagir à especificidade da constituição 
sintática do estímulo. Quanto à resposta do sujeito, se ela con­
siste em palavras emitidas, pode ser considerada como a sim­
ples a';ãO de construir a imaterialidade deste objeto lingüístico, 
segundo certas regras sintáticas, isto é, de construção material. 
Da palavra-estímulo à palavra-resposta, é colocado fora de 
circuito epistemológico tudo aquilo que se refere ao significado, 
ao sentido, à vida mental constituindo-se como princípio de 
significação e de sentido. E é precisamente esta colocação fora 
de circuito que o behaviorismo declara como epistemologica­
mente necessária para a constituição da psicologia como ciên­
cia verdadeira e independente. Sem isto, ela continuaria sendo 
essa prática bastarda, como o foi a psicologia pseudocientüica, 
des.de Comte até Watson, fazendo apelo à observação interna 
e à interpretação das condutas expressivas. 
Todavia, apesar de seu caráter aparentemente revolucio­
nário e devastador das psicologias anteriores, o behaviorismo 
não conseguiu fazer tantos estragos assim à psicologia anterior. 
Muitos de seus resultados permaneceram. Também seus mé­
todos não foram inteiramente demolidos. O que realmente mu­
dou foi o modo de pensá-los e de falar epistemologicamente 
sobre eles. Isto pode ser ilustrado por dois casos privilegiados 
de estudos psico!ógicos: de um lado, o estudo da sensação; do 
89 
outro, o dos processos racionais da vida mental humana. Em 
suma, nem o trabalho do psicólogo, na perspectiva do labo­
ratório de psicologia experimental (tal como Wundt o conce­
bia), nem, tampouco, o trabalho do psicólogo, na perspectiva 
do estudo experimental da inteligência (tal como Binet o pra­
ticou) , foram materialmente anulados pelas tomadas de posi­
ção behaviorista relativamente à introspecção, ao mentalismo e 
à consciência. :e o que tentaremos mostrar agora, apresentan­
do, em suas grandes linhas, o questionamento ao behaviorismo 
psicológico feito pela fenomenologia, pela Gestalttheorie, e pela 
psicanálise de Freud. 
90 
J 
I V 
BEHA VIORISMO EM 
QUESTÃO 
Gostaríamos de situar o questionamento do behaviorismo 
psicológico dentro da perspectiva de uma possível recuperação 
da observação interna e de um estudo metódico do imaginário. 
Outros questionamentos, mais globais, serão feitos no último 
capítulo, a propósito do papel desempenhado hoje em dia, so­
bretudo nas sociedades mais avançadas, por esta psicologia dos 
psicólogos, fundada numa filosofia positivista-mecanicista-in­
dustrial. O que nos parece importante, por enquanto, é mos­
trar que há todo um domínio de investigação epistemológica, 
em psicologia, que o behaviorismo não tem condições, devido 
às suas deficiências teóricas, de estudar a fundo: a imaginação, 
o afeto, e tudo o que se liga, na vida mental, a essas funções 
do imaginário e do afetivo. Ora, normalmente, a psicologia não 
deveria ignorar este domínio de investigação. Contudo, não é 
absolutamente evidente que ele possa dar margem a uma epis­
temologia semelhante àquela que pode ser construída a propó­
sito da sensação e do funcionamento intelectual, de modo a 
permitir o acesso a uma verdadeira "positividade" neste cam­
po de estudo. 
Comecemos nosso questionamento afirmando que, com 
Edmund Husserl ( 1 859-1938) e com Sigmund Freud ( 1 856-
1939), entraram em cena, no domínio da psicologia, tanto o 
estudo metódico da "observação interior" quanto a análise sis­
temática do "imaginário". Assim, abordaremos a questão da 
psicologia na medida em que ela se vê às voltas com os nume­
rosos e variados problemas de estudo dessas funções internas 
e, por assim dizer, "intermediárias" da vida mental : cenestesia, 
,emoções, vida afetiva, sentimentos, imaginação, etc. 
93 
Façamos, de início, uma observação um tanto exterior, 
mas significativa. Trata-se ainda de Comte. A doutrina comtia­
na considerou duas coisas : de um lado, o fato psicológico ele­
mentar da sensação; do outro, as funções intelectuais e morais 
superiores. Mas nada disse sobre a imaginação. Ignorou-a por 
completo. Quando a mencionou, foi para denunciar seu papel 
perturbador no funcionamento correto do pensamento. Por sua 
vez, o behaviorismo estrito nada diz de relevante sobre a imagi­
nação . Por uma questão de método e de coerência doutrinária, 
a psicologia behaviorista viu-se obrigada a desconsiderar o pa­
pel do imaginário na vida dos indivíduos. Tentou ignorar o 
quanto pôde as "imagens", procurando reduzir o pensamento 
única e exclusivamente aos fenômenos sensório-motrizes ob­
serváveis exteriormente. Para a psicologia behaviorista, a "ima­
gem" não passa de um dos últimos bastiões da teoria introspec­
cionista da consciência. Aliás, os historiadores da psicologia 
sempre reconheceram que a psicologia da imaginação jamais 
conseguiu direitos de cidadania: ela sempre foi a "prima pobre'' 
da psicologia, em busca "desesperada" de um estatuto "públi­
co" de cientificidade. Isto se deve, sem dúvida, ao fato de que, 
no nível do conhecimento pré-científico, o dado da imagem e do 
jogo do imaginário é um dado irrecnável. Todavia, é extre­
mamente difícil submeter este dado a um estudo que satisfaça 
inteiramente à idéia que a psicologia se faz de um estudo cien­
tífico. 
Assim, as considerações feitas a respeito da imaginação e 
das imagens permanecem quase sempreno nível da reflexão 
filosófica, no nível da crítica literária ou da análise estética. 
Um dos sinais dessa dificuldade parece residir num simples 
fato: os próprios psicólogos ainda não conseguiram colocar-se 
C:e acordo sobre a natureza e sobre as funções daquilo que 
pode ser chamado de "imagem". Em 1936, Sartre, na pers­
pectiva de uma primeira assimilação do método fenomenológi­
co de Husserl, entregou-se a uma crítica sistemática de toda 
psicologia da imaginação, de Descartes a Bergson. Alguns anos 
depois, em 1940, propunha seu famoso estudo sobre O Ima­
ginário, psicologia fenomenológica da imaginação, onde reto­
mava as idéias centrais de seu primeiro livro sobre A Imagi-
94 
nação. Nessas obras, Sartre criticava também os psicólogos que 
só se punham de acordo quanto à necessidade de partirem dos 
fatos. Em sua Teoria das emoções ( 1 948) , declara: 
Aguardar o fato é, por definição, esperar o isolado; 
é preferir, por positivismo, o acidente ao essencial, o con­
tingente ao necessário, a desordem à ordem; é rejeitar, 
por princípio, o essencial no futuro . . . Os psicólog,os não 
se dão conta de que é tão impossível atingir a essência, 
acumulando acidentes, quanto chegar à unidade, acres­
centando indefinidamente cifras à direita de 0,99. Se eles 
têm por objetivo apenas acumular conhecimentos de de­
talhe, nada há para se dizer; simplesmente, não se pode 
ver o interesse deste trabalho de colecionadores. Mas se 
eles estão animados, em sua modéstia, pela esperança 
louvável de que será realizada mais tarde, calcada em suas 
monografias, uma síntese antropológica, estão em plena 
contradição consigo mesmos. 
O resultado das análises de Sartre decepcionou muita gen­
te. Contudo, não parece evidente que, sobre a imaginação, pos­
samos ir muito além dos estudos descritivos da função mental 
ou dos inventários mais ou menos extensos da simbólica hu­
mana: mitos e arquétipos. O que convém enfatizar é que, mais 
ou menos no momento em que o behaviorismo pretende puri­
ficar absolutamente a psicologia científica de todo recurso à 
observação interna dos fatos de consciência, bem como de toda 
contaminação filosófica, suriiram dois fatos novos, de ordem 
epistemológica, exercendo profunda repercussão na história da 
psicologia ulterior. O primeiro foi a iniciação filosófica de Hus­
serl, procurando instituir a fenomenologia (tomada de posse do 
fato da consciência pela própria consciência) como uma dis­
ciplina autenticamente científica. O segundo foi a instauração 
da psicanálise freudiana. As investigações de Husserl e a Inter­
pretação de Sonhos de Freud apareceram no ano de 1900. E 
as Idéias diretrizes para uma fenomenologia, de Husserl, pu­
blicadas em 1913, são contemporâneas dos famosos artigos de 
Watson. 
95 
1 . A PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA 
E: preciso que se diga, desde o início, que a fenomenologia 
de Husserl, enquanto tal, não é uma psicologia. Aliás, nunca 
pretendeu ser uma psicologia, apesar de ter tomado de em­
préstimo a psicólogos filósofos (Brentano ) esta ou aquela 
idéia: por exemplo, a de "intencionalidade" da consciência. Por 
outro lado, o que pretende ser a fenomenologia, é apenas uma 
técnica, comportando uma doutrina, permitindo a apreensão 
segura da atualidade consciente por si mesma, enquanto é uma 
atualidade consciente, em todo o seu ser de atualidade cons­
ciente e em todas as suas dimensões : da intuição e da per­
cepção, da imaginação e do desenvolvimento da representação, 
do pensamento e de todas as modalidades da vida afetiva e 
voluntária. 
Discípulo de Brentano, Husserl se propôs por objetivo re­
pensar os fundamentos do saber. Sua preocupação central con­
sistia em redescobrir uma certeza que permitisse ao pensa­
mento superar o estado de crise em que se encontrava a cul­
tura de seu tempo. Para ele, esta crise se caracterizava pela 
perda da intencionalidade filosófica e pelo transbordamento 
do método matemático para fora dos limites que deveriam 
ser os seus. Por isso, a fenomenologia surgiu, no início deste 
século, com a pretensão de ser um recomeço radical na ordem 
do saber. Podemos dizer que ela apareceu numa época que, 
do ponto de vista filosófico, pode ser caracterizada como vazia. 
O mundo universitário, pelo menos na Alemanha, era domi­
nado pelos epígonos de um kantismo que se havia degenerado 
em pura metodologia da ciência positiva. A metafísica não 
ocupava nenhum lugar de importância no sistema do saber 
universitário. 
Não nos cabe aqui expor as teses centrais da fenomenolo­
gia husserliana. O que nos interessa é mostrar sua orientação 
fundamental e sua influência sobre ·a psicologia científica. Por 
sua tomada de posição contra a psicologia científica em vigor, 
a teoria fenomenológica se inscreve na mesma linha de pensa­
mento adotada por Bergson : pretendia fazer uma crítica à pre­
tensão de só se admitir como válida uma psicologia positiva, 
objetiva e experimental. O que Husserl critica, nessa psicolo-
96 
gia, é o fato de ela fazer apelo, para se fundar, ao postulado 
realista do senso comum, que ele achava bastante insatisfató­
rio para um pensamento que deveria estar . preocupado com o 
essencial. Se é verdade que o sujeito empírico faz parte do 
mundo, também é verdade que o mundo não passa de um objeto 
"intencional" para o sujeito que o pensa. Assim, não se pode 
tratar o homem como se ele fosse uma coisa entre as coisas. 
E a razão é simples : porque o homem não é o produto de 
influências físicas, fisiológicas ou sociológicas que o determi­
nariam de fora. A própria psicologia, qualquer que seja seu 
método, deve ser considerada, antes de tudo, como um projeto, 
isto é, como uma intenção de compreender melhor o homem 
e seus comportamentos. 
Muito embora Piaget insista em dizer que · a fenomenolo­
gia de Husserl seja "paracientífica de intenção e de princípio, 
explícita e proclamada, pois não somente tenta ultrapassar a 
ciência, mas duplicá-la, completando a psicologia científica 
por uma psicologia 'fenomenológica' e uma gênese real por 
uma gênese ideal" (em Logique) , cremos ser um dever de jus­
tiça reconhecer que a pretensão de Husserl é muito menos .a 
de opor à psicologia científica um outro tipo de psicologia, do 
que enfatizar os limites da primeira. O que Husserl quer mos­
trar, ressaltando os limites e deficiências da psicologia positiva, 
pelo menos · tomo ela se apresentava em sua época, é que o 
desenvolvimento da psicologia objetiva e experimental 1láo re­
solve o problema da exigência antropológica de redução, a um 
denominador comum, desse duplo aspecto da psicologia: de um 
lado, o da interioridade racional; do outro, o da objetividade. 
O psicólogo não pode perder de vista a intuição das "essên­
cias", mas estas são inseparáveis dos fenômenos ou dos "fatos't. 
Assim, a originalidade desta posição· está em ligar os f�n6me­
nos às essincias e, sobretudo, em postular uma interação fun­
damental entre o sujeito (o "eu puro") e o objeto (as "essên­
cias") de conhecimento. · 
. a bem verdade que alguns psicólogos . tentaram assilnilar 
o projeto husserliano a uma tentativa de se restaurar a intros­
pecção. Todavia, esta interpretação pode ser ao mesmo tempo 
justa e falsa. Ela é falsa na . medida em que a fenomenologia 
tenta opor-se, tanto ao intel�tualismo idealista quanto ao em-
97 
pirismo naturalista. Ela visa a descrever o psiquismo human(t 
como não podendo deixar de ser, de imediato, uma "relação 
com o mundo". E repudia, pelo menos em suas intenções ex­
plícitas, toda universalidade abstrata. As démarches da filoso­
fia espt:culativa devem ser substituídas pelo "retorno às coisas 
mesmas". No entanto, podemos duvidar que a análise intencio­
nal possa vir a substituir, sem equívoco, a metafísica especula­
tiva. Contudo, Husserl não pretende de forma alguma restaurar 
a introspecção no sentido de um conhecimento puramente in­
terior. O que ele pretende estabelecer é que a psicologia cien­
tífica, para ser verdadeiramente fundada, não pode deixar de 
ser intencionale intersubjetiva. 
Contrariamente, pois, à interpretação de Piaget, segundo 
a qual a fenomenologia visaria, através das "reduções", a liber­
tar o sujeito de suas limitações "naturais", devemos dizer que 
o objetivo da fenomenologia não é o de transcender o domínio 
das experiências, mas o de :t:evelar ou desvelar seu sentido. 
A orientação da consciência sobre certos objetos "intencionais" 
possibilita o que Husserl chama de "análise eidética". A este 
respeito, ele distingue claramente uma consciência explícita do 
objeto, própria do eu atual, e uma consciência implícita ou 
potencial. Não se deve, pois, confundir a "análise eidética" 
com uma dialética de tipo platônico. 
Ao insistir sobre o problema do sentido, Husserl se opõe, 
não somente ao naturalismo psicológico, que tende a encerrar 
o comportamento humano num feixe de causas e de efeitos 
exprimíveis em terceira pessoa, mas também ao idealismo, na 
medida em que este reduz o homem a um conjunto conceitual 
organizado. Ao colocar-se no ponto de intercecção dessas duas 
tendências, a fenomenologia dá origem, pelo menos em parte, 
ao "existencialismo" moderno. Evidentemente, a existência (no 
sentido de "homem-ser-no-mundo" ) não é um conceito hus­
serliano. Mas não se pode negar que ele foi "deduzido" do 
conceito de Lebenswelt ou de "mundo vivido" : a presença ao 
mundo antes da reflexão, ou seja, o nível do vivido imediato na 
origem de toda consciência. Quer dizer : "a coisa em si mesma" 
é concebida como um dado, como um intuicionado. Todas as 
ciências pressupõem este "mundo da vida" como seu solo ori­
ginário, muito embora dele se afastem, em seguida, para cons-
98 
truir o mundo "depurado" do conhecimento científico. Ora, 
esta vinculação ao mundo, que está na origem de todas as con­
dutas humanas e dos sentidos que elas manifestam, não pode 
ser expressa em termos tomados de empréstimo às ciências da 
natureza, pois também estes derivam de uma ligação com o 
mundo; tampouco pode ser expressa pelos termos utilizados 
pelo idealismo para exprimir a construção do objeto pelo su­
jeito. 
Assim, a tarefa da fenomenologia consiste numa investi­
gação "científica", não dos fatos, mas das formas da conscren­
cia dos objetos, sendo esses objetos definidos por um ato de 
consciência. E é por isso que Husserl tenta situar a exploração 
intelec�al do fato da consciência no nível da psicologia. Neste 
particular, a influência da fenomenologia foi marcante, quer 
sobre a psicologia gestaltista, quer sobre a psicologia mais di­
retamente psicopatológica. Indiquemos, brevemente, em que 
linha essa influência se exerceu. 
A. A influência da fenomenologia sobre o desenvolvi­
mento da Gestalttheorie ou psicologia "da forma", sobretudo 
como a elaboraram Koffka e Kõhler, não pode ser contestada. 
Com efeito, muito preocupada em responder às exigências, que 
caracterizam a psicologia como ciência, a psicologia da forma 
marca uma original reação a toda psicologia associacionista: 
estudo da vida psíquica sob o aspecto de uma combinação de 
elementos pretensamente simples (sensações e imagens) que a 
constituiriam. Ora, à fragmentação da vida psíquica, c;leve opor­
se a consideração de formas, de estruturas e de conjuntos, ad­
mitidos como realidades primitivas. A percepção é a de uma 
figura sobre um fundo. Trata-se de descrever perceptivas glo­
bais, a fim de reduzir a leis seus aparecimentos e suas trans­
formações. Ademais, trata-se de mostrar como a organização 
interna que condiciona tais estruturas perceptivas modifica os 
elementos que a compõem. Enfim, trata-se de mostrar como 
basta modificar um único desses elementos para que toda a 
estrutura global se altere. 
A psicologia "da forma", por outro lado, suscitou a ten­
tativa sartriana de constituir uma psicologia fenomenológica do 
99 
imaginário, bem como a tentativa de Mer�eau-Ponty de elabo­
rar uma Fenomenologia da percepção, tentativas bem mais filo­
sóficas ("ontologia fenomenológica") do que propriamente psi­
cológicas . . E como a fenomenologia utiliza uma técnica do co­
nhecimento da atualidade da vida mental por si mesma (en­
quanto consciência, e levando em conta as "reduções" exigidas 
para entrar na atitude específica da fenomenologia) , toma-se 
patente que ela adinite algo da atitude introspectiva, da auto­
observação do sujeito dotado de vida mental. Sartre, por exein­
p!o, que critica o método clássico da introspecção, nem por 
isso deixa de fazer apelo à experiência íntima. Ele se propõe, 
inclusive, descrever a imagem em sua plena concretude, tal 
como ela aparece à reflexão. O que ele pretende é adquirir uma 
visão autêntica da estrutura intencional da imagem. 
Kõhler, por sua vez, em sua Psicologia da forma, apesar 
de criticar severamente a introspecção, mantém com energia, 
contra o behaviorismo, a legitimidade do recurso à "experiência 
direta" em psicologia, isto é, à visão intuitiva que o. sujeito 
dotado de vida mental pode ter .da atualidade e do fato ime­
diato desta vida mental. Assim, na atitude da fenomenologia, 
bem como em tudo o que dela deriva, no nível da psicologia, 
há uma transgressão, por princípio, de praticamente todos os 
interditos da psicologia do comportamento em sentido estrito. 
O mesmo pode ser dito da psicopatologia e da psicanálise de 
Freud. 
B. Não foi pequena a influência da fenomenologia sobre 
a filosofia "existentieUe'' de Karl Jaspers e sobre a filosofia 
"existentiale" de Martin Heidegger. Foi através desses dois 
filósofos que a fenomenologia repercutiu sobre as ciências psi­
cológicas, especialmente sobre a psicoterapia. Por exemplo, em 
sua Psicopatologia geral ( 1913), Jaspers insiste sobre á rela­
ção pessoal que o médico deve estabelecer com o doente, sobre 
a necessidade de levar em conta todos os elementos que este 
contato direto pode revelar e sobre a neceSsidade de não se 
tomar o conceito de doença como uma entidade. Insiste ainda 
sobre a responsabilidade primordial do psiquiatra e de seu en­
gajamento pessoal: 
100 
Como todos os empreendimentos humanos, a psicO" 
terapia também tem seus perigos próprios. Ao invés de 
mostrar o caminho àqueles que estão na desolação, ela 
pode tomar-se uma espécie de religião, análoga às seitas 
gn6sticas de há quinze séculos. Ela pode oferecer suce­
dâneos da metafísica e do amor, da fé e da vontade de 
poder, dar livre curso aos seus impulsos sem escrúpulos. 
Com a aparência de nobres exigências, ela pode rebaixar 
a alma e corrompê-Ia. 
Falar da influência da fenomenologia sobre as teorias psi­
quiátricas de Ludwig Binswanger e de outros, nos levaria longe· 
demais, e ultrapassaria, de longe, nossa competência. Citemos. 
· apenas, para terminar, uma passagem do Presidente da Socie­
dade Francesa de Psicanálise, A. Hesnard, em sua Contribuiçiio 
'da fenomenologia tl psiquiatria contemport2nea ( 1959 ) : 
Pela primeira vez, n a história da Cultura, u m mO" 
'Vimento filosófico, acessível ao psiquiatra, afirma que a 
consciência, vida .intencional, é ao mesmo tempo fonte 
de significação, de valor e meio de universo; que todo 
ser humano pensa e existe, não no, mas por seu meio hu­
mano. Doutrina existencialmente humanista, à qual a Psi­
quiatria, ciência do homem, não poderá permanecer in­
diferente. 
2. A PSICOLoGIA PSICANALÍTICA 
Como já dissemos, foi em 1900 que apareceu a primeira 
obra decisiva de Freud: A Interpretação de Sonhos, no mesmo 
ano em que Husserl inaugurou sua "análise intencional". No 
sentido freudiano do termo, psicanálise designa: em primeiro 
lugar, um método de exploração do psiquismo húmano, con­
siderado como o teatro de processos inconscientes desconheci­
dos pela psicologia clássica; em segundo lugar, e sobretudo, 
uma terapêutica para o . tratamento de certas neuroses e psicO" 
neuroses; finalmente, por uma ampliação indefinida, a psicaná­
lise invadiu todos os domínios da atividade e da cultura hu­
manas: pedagogia, caracterologia, estética, sociologia, história 
101 
artística e literária, mitologia, história das religiões,das civili­
zações, etc. 
Freud, antes mesmo de descobrir o inconsciente como tal, 
já havia revelado o papel do psiquismo inconsciente. Os filóso­
fos que o antecederam, no século XIX (Schopenhauer, por 
exemplo) , já haviam afirmado o primado da vida instintiva 
e manifestado, à sua maneira, algumas das ilusões próprias à 
concepção intelectualista do comportamento humano. Por outro 
lado, na segunda metade do século passado, numerosos fisiolo­
gistas, neurologistas, psicólógos e médicos já se interessavam 
pela histeria, pela hipnose e pelos fenômenos da sugestão, e 
mostravam que a vida psíquica ultrapassava de modo singular 
o campo da consciência clara e reflexiva. Nesta época, o grande 
público era atraído por estranhas manifestações que determina­
ram o surgimento do movimento espírita, depois, das socie­
dades de estudos psíquicos (o ocultismo) . Os cientistas come­
çaram, então, a estudar os fenômenos considerados como su­
perstição e charlatanismo, chamando-os de fenômenos "meta­
psíquicos". Também antes de Freud, Pierre Janet já reconhe­
cera a existência do psiquismo inconsciente. Janet já havia 
demonstrado que "personalidades" segundas, oriundas das re­
giões inferiores do ego, podiam surgir no indivíduo consciente, 
levá-lo a executar certos atos (escrever, por exemplo) sem ter 
consciência de ser ele sua caúsa. 
Com sua análise sistemática do "Inconsciente", Freud tor­
nou-se um dos maiores protagonistas da "mentira" da "Cons­
ciência". Toda a sua obra é ama clara revelação de que o 
problema da consciência é tão obscuro quanto o problema do 
mconsciente. A certeza imediata da consciência parecia inex­
pugnável desde Descartes, que dizia: "por pensamento, entendo 
tudo aquilo que se faz em nós, de tal modo que o percebemos 
imediatamente por nós mesmos". Freud veio mostrar que a 
certeza da consciência é duvidosa enquanto verdade, porque 
nossa vida intencional poderá ter outros "sentidos" que não o 
imediato. Entre a certeza da consciência e o verdadeiro saber, 
instala-se o inconsciente, revelando-nos um saber que não nos 
é dado, mas que deve ser procurado para ser encontrado. A 
consciência de si, ou esta adequação "de si a si", não se situa 
no início, mas no fim. Donde a impossibilidade, segundo Freud. 
102 
de uma "filosofia da consciência". Também a fenomenologia 
criticou ·a consciência reflexiva, introduzindo o tema do irrefle­
xivo e do irrefletido: as pesquisas de "constituição" remetem a 
um pré-dado ou "pré-constituído". Mas a fenomenologia não 
levou até o fim a crítica à consciência, permanecendo no cír­
culo das correlações entre noese e noema. 
Não se trata, porém, aqui, de fazermos uma análise ·da 
crise do conceito de consciência. Nosso problema é o da relação 
da psicanálise com a psicologia científica. Neste sentido, de­
vemos notar que, tanto o fim do século passado quanto o iní­
cio de nosso século foram marcados pelo impacto das teorias 
evolucionistas, pelo progresso considerável das ciências bioló­
gicas e físicas, e pela instauração da chamada psicologia cien-. 
tífica: experimental, em seus métodos; comportamentalista, em 
seus objetivos. Isto, porém, em nada diminuiu o mérito de 
Freud: ele se aproveitou de todos os fatos e fenômenos que 
interessavam aos cientistas e apaixonavam a opinião pública, 
tentando compreendê-los como um meio extraordinário para 
o tratamento das neuroses, e para mostrar que o histérico é 
um ser que sofre por estar acometido de reminiscências. Etp 
Minha vida e a psicanálise, ele escreve: "Lançando o olhar 
para trás, sobre a parte de trabalho que me foi dado empreen­
der em minha vida, posso dizer que abri muitos caminhos e dei 
muitos impulsos que poderão dar "resultado" no futuro. Eu 
mesmo não posso dizer se e.ste "resultado" será grande ou pe­
queno". Ora, foi este "resultado", que Freud chama simples­
mente de "algo', este indeterminado cujo futuro é difícil de 
ser previsto, que se tomou o campo privilegiado da psicanáli­
se. Em extensão, a psicanálise ganhou terreno, ultrapassando de 
longe os domínios já vastos traçados por seu fundador. E isto, 
a tal · ponto que, por uma espécie de verdadeira inflação cultu­
ral, e!a corre o risco de perder em compreensão e, inclusive, 
de ser incompreendida. Aliás, as incompreensões se manifesta­
ram desde o início da psicanálise. Por exemplo, ao regressar 
a Viena, depois de trabalhar com Charcot, em Paris, sobre os 
fenômenos de histeria, Freud relata suas experiências aos psi­
quiatras : "Os médicos dos hospitais, em cujos serviços encon­
trei tais casos, recusaram-se a deixar que eu me ocupasse deles 
e que os observasse. Um deles, um velho cirurgião, gritou: 
103 
mas, meu colega, como você pode dizer tais absurdos! Hysteron 
(sic) quer dizer útero. Como, então, um homem pode ser 
histérico?" 
Todavia, como dissemos, o que nos vai interessar na psi­
canálise freudiana é sua relação com a psicologia científica, 
sobretudo com a psicologia de inspiração behaviorista. Por­
que, no nível da psicologia, a psicanálise se apresenta como 
uma transgressão aos interditos behavioristas. Com efeito, o 
postulado inicial do programa behaviorista consiste na elimina­
ção sistemática da con.sçiência: a consciência não é um ser; o 
corpo e suas diversas manifestações ou funções são mais do 
que suficientes para explicar cientificamente todos os níveis do 
comportamento (behavior) de um ser vivo. Trata-se, pois, de 
um monismo materialista .. "Dai-me um nervo e um músculo", 
exclamava H. Piéron, "e eu vos farei um espírito". Em contra­
partida, a psicanálise de Freud vem demonstrar que os proces­
sos mentais não são em absoluto redutíveis à vida simples­
mente orgânica nem, tampouco, à vida meramente social. Ao 
estudar diretamente o conteúdo das representações e dos afe­
tos, .a psicanálise visa a explicar o presente do indivíduo hu­
mano �or seu passado, bem como explicar o adulto pela crian­
ça. Por isso, Freud não podia admitir que se pudesse reduzir 
.o mental ao orgânico ou ao social. O que ele fez foi uma redu­
ção qás formas psíquicas superiores às suas formas elementa­
res, subsistindo no inconsciente dos indivíduos. 
Assim, em relação à psicologia behaviorista, podemos di­
zer que Freud não fez nenhuma objeção à utilização dos mé­
todos da observação íntima, da auto-observação da vida mental 
pelo sujeito. Em A Interpretação de Sonhos ele fala aberta­
mente dessa prática sem nenhuma idéia pré-concebida e sem 
reservas críticas particulares. Isto se toma bastante compreen­
sível no caso do sonho, porque não se pode ver como nenhum 
estudo específico desta formação da vida mental (que é o so­
nho) poderia ser feito sem que se pressupusesse, de início, 
certo assumir do sonho pelo próprio sonhador. Aliás, foi ba­
seando-se na análise de seus próprios sonhos que Freud escre­
veu a Interpretação. A auto-observação, privada e "subjetiva" 
(intr6specção no sentido lato) permanece a via de ac,t�sso obri­
gatória àquilo que a psicologia deve levar em consideração. 
104 
O caso do sonho e do método freudiano de seu estudo é um 
bom exemplo epistemológico desta relação que a psicologia 
pode ter com este dado da vida mental que só pode ser atin­
gido através do recurso à observação interna, radicalmente 
proscrita pelo behaviorismo estrito. 
No que diz respeito ao sonho, o método interpretativo freu­
diano é bastante complexo. Antes de tudo, é preciso que se 
faça um relato do sonho, de preferência por escrito. Por sua 
vez, o relato se deixa decompor em vários segmentos que deve­
rão ser tomados um a um. E, ao retomar os diferentes termos 
e representações propostos, deve-se pedir ao autor do relato 
que diga, uma vez eliminada todas as inibições usuais tanto 
do "pensamento" quanto de sua expressão, tudo o que lhe vem 
à cabeçà. Freud chama esta etapa fundamental de seu método, 
de prática da "associação livre". Todas as produções da vida 
mental consciente constituem um material precioso destinado 
a guiar a inteligência na interpretação que ela faz do sonho. 
No início,tudo isso encontra-se inserido num processo tera­
pêutico que coloca em cena o paciente (aquele cujo sonho é 
estudado e interpretado) e o analista (que coopera com o pa­
ciente para a interpretação do sonho) . Quando bem sucedida, 
a interpretação se apresenta ao paciente como o desvelamento 
de certa verdade dizendo-lhe respeito, em sua individualidade 
mórbida ou neurótica. Este desvelamento tem um valor emi­
nentemente emocional. Em certa medida, este efeito curativo 
desempenha o papel de uma verificação experimental relativa­
mente a toda a '(lémarche do estudo do sonho. 
Cabe, aqui, uma pergunta, tanto mais relevante quanto, de 
sua resposta, depende a possibilidade de a psicanálise poder 
transgredir o conceito de "objetividade" científica a que tanto 
se apegam os psicólogos behavioristas: quais seriam os cons­
tituintes epistemológicos implicados na prática freudiana da 
análise interpretativa do sonho? É claro que, epistemologica­
mente falando, não podemos negar que estamos diante de uma 
prática extremamente complexa e que, do ponto de vista da 
exigência de cientificidade ou de saber propriamente objetivo, 
coloca sérios problemas. Por enquanto, ressaltemos apenas 
dois: 
105 
a) Em primeiro lugar, o sonho certamente é vivido pelo 
sonhador. Mas ele é vivido numa circunstância que impede o 
sonhador de tomar, relativamente a este vivido, uma atitude 
de consciência de si, lucidamente presente à sua atualidade 
mental, capaz de ter uma atenção discriminadora a seu respei­
to. O sonhador relata o sonho, e só depois do sonho pode re­
latá-lo, quando dele se lembra em estado de vigília. Neste mo­
mento, aquilo que realmente o sujeito relata, é o conteúdo 
de sua lembrança do sonho, de forma alguma o conteúdo ime­
diato do sonho. Ora, entre a lembrança presente e o próprio 
sonho, há uma distância ou um intervalo. Em geral, as pes­
soas lembram-se mal de seus sonhos. Muitos detalhes, por 
vezes importantes, são esquecidos e se perdem. Por sua vez, o 
esforço para se lembrar do sonho pode deformá-lo. 
· 
b) Em segundo lugar, a própria passagem do sonho ao 
relato, já comporta riscos sérios de trair a objetividade apreen­
dida no nível da observação íntima: a descrição dos conteú­
dos do sonho - conteúdos psicológicos, vagos, reunidos de 
modo insólito - corre o risco de ser uma traição. Por outro 
lado, a passagem do sonho ao relato também corre o risco 
de impor a esses conteúdos as formas do pensamento em esta­
do de vigília ou de consciência, articulando-se em frases mais 
ou menos lógicas e coerentes. Enfim, o primeiro elemento de 
objetividade naturalmente estabelecido e seguro, de que pode 
dispor o estudo psicanalítico, consiste no próprio relato do so­
nho. 
Entretanto, a psicologia (analítica) admite estudar este 
relato porque ele tem uma conexão com o fato mental vivido 
por seu autor: é uma expressão dele. Relativamente ao sistema 
da psicologia behaviorista, que admite a consideração das coi­
sas ditas ou relatadas por um sujeito, como sendo apenas um 
dos elementos possíveis de seu comportamento, a diferença 
epistemológica é fundamental. Com efeito, na perspectiva be­
haviorista, o comportamento da palavra outra coisa não é se­
não a produção de uma entidade objetiva. Trata-se de uma 
entidade que é cortada de sua referência a atualidade da vida 
mental, e cuja positividade deve ser tomada como liberada 
relativamente a essa atualidade da vida mental que ela pode 
106 
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suscitar. No caso presente, o relato do sonho não pode ser 
corta,do de sua referência à atualidade psíquica do sonho. 2 
por isso que, ao invés do termo comportamento de relato, tal­
vez fosse preferível e mais correto falarmos de conduta de re­
lato, porque o termo conduta tem a vantagem de realçar a co­
nexão mais ou menos específica com o fatQ mental. 
Neste particular, podemos dizer que, num certo sentido, 
chegamos a uma atitude metodológica análoga à atitude da 
psicologia pr6-behaviorista. Todavia, convém explicarmos um 
ponto epistemológico já presente na metodologia usual da psi­
cologia empírica não-behaviorista. Portanto, podemos dizer que 
o estudo psicológico de uma conduta de relato faz a conjunção 
de duas perspectivas epistemológicas distintas : a) a primeira 
perspectiva é a da "objetividade" exterior, em princípio aces­
sível a todos (como a objetividade do físico) : o relato, como 
porção de linguagem e como texto, está presente; e cada um, 
não somente seu autor, pode tomar conhecimento dele; b) a 
segunda é a da "intersubjetividade", isto é, a de uma comuni­
cação realizada entre sujeitos dotados de vida mental e capa­
zes de evocar, no outro, algo de seus conteúdos mentais. O 
relato apresenta-se, pois, como o mediador dessa intersubjeti­
vidade. E é como í!tl que ele é tomado pelo estudo psicológico. 
Aliás, é preciso que se reconheça que a linguagem natural é, 
ao mesmo tempo, realidade material e mediadora de intersub­
jetividade. A novidade do relato está no fato de ele ser feito 
de modo distinto, refletido e aberto à exploração metódica. 
Em outros termos, podemos dizer que o relato é ao mesmo 
tempo como que o objeto objetivamente estudável e aquilo que, 
para seu autor e para aquele que o estuda, remete à atualidade 
mesma da vida mental. E é neste sentido que ele se toma me­
diador de intersubjetividade. Não se pode negar, porém, que a 
conduta de relato implica apenas uma intersubjetividade bas­
tante modesta. Trata-se. de fato, de uma intersubjetividade in­
terpessoal, somente a dois, entre duas pessoas: o paciente e o 
analista. Contudo, levando-se em conta a natureza da relação 
bilateral entre o paciente e seu analista, é possível · que esta 
intersubjetividade a dois venha a definir, pelo menos para a 
prática efetiva da psicanálise, determinado horizonte de vali­
dade epistemológica. 
107 
Neste particular, há um ponto que precisa ser resolvido 
para que sejam evitados certos equívocos bastante freqüentes 
em psicologias que defendem com ardor a objetividade e o 
caráter científico de seus estudos. A objetividade científica con­
siste, do ponto de vista dos sujeitos humanos que fazem a ciên­
cia, nessa intersubjetividade, em princípio, universal (admitida 
e controlada por todos) . :e justamente a necessidade da inter­
subjetividade universal que se faz sentir com o esforço de esta­
belecimento · e de constituição de um conhecimento científico. 
E é quando conseguimos definir uma identidade de relação in­
telectual entre todos os sujeitos humanos e o mesmo objeto, 
que podemos falar de objetividade científica. Por conseguinte, 
essa objetividade coincide necessariamente com a intersubjetivi­
dade universal da relação dos sujeitos com o objeto. E é por 
ser universal, que não podemos deixar de levar em considera­
ção esta intersubjetividade para nos atermos somente ao dado 
ou ao conteúdo efetivo do objeto. A universalidade da inter­
subjetividade libera o dado (o conteúdo) de sua "subjetivida­
de" para estabelecê-lo em sua positividade científica, pela ex­
periência direta de todos. :e o que ocorre com a observação de 
um gesto ou de um comportamento, no sentido behaviorista. 
Todavia, este não é o único tipo possível de intersubjeti­
vidade. A psicanálise veio mostrar que há outro tipo de inter­
subjetividade podendo subsistir aquém ou instaurar-se distin­
tamente além desse estatuto universal de interstibjetividade. O 
problema consiste em determinar sua validade epistemológica. 
Em todo caso, é preciso que se reconheça que, a partir do 
momento em que determinado paciente relata seus sonhos ao 
seu analista, a intersubjetividade que entre ambos se estabe!ece 
não é idêntica àquela oriunda da observação feita pelos dois 
sobre o sonho. Na verdade, somente o paciente vivenciou o 
sonho que ele relata. Não obstante, o relato que o analista 
ouve, pode evocar em seu espírito, de modo simplesmente re­
presentativo, os conteúdos vivenciados por seu paciente. E é 
neste nível da reprodução induzida pelo relato, e não mais no 
da observaçãocomum, que surge esse novo tipo de intersub­
jetividade. Quando isso se realiza, graças à mediação racional 
da linguagem, podemos dizer que se estabeleceu entre os su­
jeitos que assim se comunicam, uma intersubjetividade de outra 
108 
-11 
ordem. Trata-se, no caso presente, de uma intersubjetividade 
particular, e não mais universal. E é este tipo de intersubjeti­
vidade que a epistemologia leva em conta para estudar psico-
. logicamente as condutas de relato. 
Dito isto, cremos poder chegar a uma primeira conclu­
são: não se pode mais negar que, com Freud, tenha surgido 
um novo tipo de objetividade psicológica. E é preciso que se 
acrescente . que esta objetividade não pode mais prescindir do 
valor, da significação íntima ou interpretativa. No início de 
nosso século, quando a psicologia ainda lutava para fazer-se 
reconhecer como disciplina científica, viu-se obrigada a reco­
nhecer certas determinações da . vida mental, dadas, como tais, 
à observação íntima e "subjetiva" do indivíduo. Freud se dá 
conta disso desde que começa a explicar os sonhos. A este 
respeito, a parte metodológica de sua Interpretação de Sonhos 
é fundamental. No primeiro capítulo, por exemplo, ele faz uma 
história dos sonhos. E descobre, para surpresa de muitos, que 
o sonho· é uma formação da vida mental, já muitas vezes des­
crita e estudada, em sua "materialidade"' pela psicologia empí­
rica. Por outro lado, Freud constata que as crenças populares 
ligaram espontaneamente a essa formação da vida mental (o 
sonho) todo um alcance simbólico e premonitório figurado, 
por exemplo, nas "chaves dos sonhos", desprezadas pelo espí­
rito que pretende atingir a cientificidade em psicologia. Seu 
texto é claro: 
O método simbólico é de aplicação limitada; não se 
pode fazer dele um sistema geral. O método de decifração 
depende inteiramente da chave, "chave dos sonhos", e 
nada pode assegurá-la. Estaríamos tentados a dar razão 
aos filósofos e aos psiquiatras, e a afastar o problema da 
interpretação dos sonhos como sendo um falso problema. 
Contudo, pude dar um passo à frente. Fui levado a 
constatar que se tratava, uma vez mais, de um desses ca­
sos, bastante freqüentes, em que a velha e tenaz crença 
popular chegava muito mais perto da verdade do que 
nossas doutrinas atuais. Pretendo que o sonho tenha uma 
significação e que exista um mltodo cientifico para in­
terpretá-lo. 
109 
O que nos parece fundamental, nesse texto, é a convicção 
anunciada explicitamente por Freud de ter dado um passo à 
frente no processo de conquista da cientificidade em psicologia: 
o sonho tem uma significação, e pode ser explicado cientificer 
mente. Em certo sentido, não somente é anunciada, mas tam­
bém registra-se a certidão de nascimento de outra modalidade 
de objeto cientifico: a significação do sonho. Para se ter acesso, 
cientificamente, ao sonho, não se pode prescindir da interpre­
tação. A interpretação é correlativa a um método a ser segui­
do. Aliás. no caso do sonho, é o único método possível, pois 
trata-se de "decifrar" os sentidos ocultos que se manifestam 
nos sentidos aparentes do sonho. Portanto, não há como negar 
a fundação, por Freud, no domínio da vida mental, de uma 
nova ordem epistemológica. 
Explicitemos um pouco melhor esta questão. Através de 
sua atualidade e de sua conduta de relato, o sonho apresenta 
certo "objeto" ao saber inteligente. Todavia, este objeto não 
pode ser confundido com uma "coisa" da vida mental, incomu­
nicável em sua "coisidade" individual, porque, por natureza, 
ele é uma significação, um sentido. Evidentemente, longe de 
Freud pensar que o sonho (formação do imaginário que o re:­
lato do sonho notifica a terceiros) seja portador de uma signi­
ficação usual, assim como a representação de uma árvore é o 
referente da coisa "árvore em geral". O que ele pretende afir­
mar é que, no interior mesmo da vida mental, o sonho remete. 
da atualidade que ele é, a outras disposições individuais do 
sonhador; disposições essas que encontram, no sonho, uma es­
pécie de exteriorização sem revelar aquilo que elas são, de tal 
sorte que o sonho permanece um dado a ser decifrado. 
A significação do sonho é justamente aquilo que perma­
nece no lugar dessas "disposições individuais" do sonhador: 
causalidades obscuras, incidentes de uma história pessoal re­
mota, traços mnêmicos e hábitos profundamente enraizados 
naquilo que o homem consciente esquece, etc. Como diríamos 
hoje, a significação do sonho é de ordem existencial, escapando 
à ordem objetiva, de uma vez que ela não é diretamente cons­
tituída pelas coisas representadas por determinações e conteú­
dos psicomentais do sonho. Ora, colocar o prob!ema do sen­
tido, é reconhecer explicitamente que nenhuma compreensão 
110 
psicológica pode ser direta. Porque compreender um compor­
tamento ou uma observação, não consiste simplesmente · em re­
gistrar expressões de outrem, mas, sobretudo, em perceber um 
sentido, através do qual o outro se revela e existe. 
Ora, toda percepção visa a um sentido e tem uma relação 
com a subjetividade do sujeito que a exprime. E o sentido é, 
antes de tudo, uma expressão que tem valor de posição do su­
jeito por ele mesmo na busca de outrem. Só exprimimos um 
sentido na medida em que convocamos o outro, não nesta ime­
diatidade em que o outro se confundiria com a percepção que 
temos dele (atitude da criança em sua fase pré-objetai) , mas 
numa posição do outro como referente de nosso discurso. E é 
por isso que o sentido, em psicologia, só poderá ser desvelado 
e comunicado num ato de distanciamento e de latência pos­
sibilitando a relação intersubjetiva. O psicólogo não entra em 
contato direto com a expressão de outrem, pois não pode re­
duzir o outro a tornar-se apenas o somatório de suas expres­
sões ou de seus sintomas. Enfim, a subjetividade do outro só 
poderá ser preservada, no ato psicológico, quando não for re­
duzida à soma de seus comportamentos e de suas atitudes. 
Assim, a psicologia psicanalítica do sonho pode ser con­
siderada como o estudo objetivo e científico - pelo menos 
em princípio, porq,uanto seguindo certas normas de objetivi­
dade - da significação dos sonhos. No entanto, é preciso que 
se diga que, se nesse nível algo de científico pode ser conse­
guido, trata-se da emergência epistemológica desse novo tipo 
de objetividade de que falamos, inteiramente distinto dessa ob­
jetividade científica reivindicada pelos positivistas clássicos e 
pelos behavioristas modernos. O problema consiste em · com­
preendermos o eventual estatuto desse tipo de objetividade. Como 
já dissemos, trata-se de uma objetividade que pressupõe a in­
tersubjetividade particular, estabelecida graças à conduta do 
relato do sonho, como relato de um episódio da vida mental 
do sonhador. Contudo, apesar de permitir a intersubjetividade, 
o relato não transfere, de um sujeito para outro, o sonho em 
sua materialidade : o destinatário do relato nem vive, nem vi­
veu o sonho. Seu papel consiste simplesmente em representá­
lo. O máximo que pode conseguir é revivê-lo graças a uma 
descrição "viva" fortemente sentida. 
1 1 1 
Por sua vez, o trabalho comum do paciente e de seu ana­
lista também não consegue transferir de um sujeito para 
outro, a existência mesma ou a fatuidade das disposições pes­
soais do sonhador, do autor do relato, daquele que fornece 
o material produzido pelas "associações livres". O outro só 
poderá perceber tudo isso de modo representativo. Assim, en­
tre os dois sujeitos, há uma defasagem notória: de um lado, 
situa-se o vivido; do outro, o representado. Mas a significação 
do sonho, relação de um vivido com outro vivido (o do so­
nhador), poderá ser transferida do espírito do sonhador para o 
espírito do analista ou psicólogo. E isto, como relação hom6-
loga entre as representações do vivido. Em si mesmo, o vivido 
não se transfere de um sujeito para outro. Não obstante, é 
possível que a significação existencial de um vivido psicomen­
tal de um sonho seja possuída conjuntamentepor dois ou mais 
sujeitos, comunicando-se através da linguagem e trabalhando 
em comum a partir de uma Gonduta de relato. 
Ora, na perspectiva em que aqui nos situamos, não vemos 
como a função primordial do psicólogo possa ser outra senão a 
de revelar o sentido da palavra do homem. Ele se interroga e 
tenta compreender a relação que, através da linguagem, o ho­
mem mantém com o mundo. Não se trata, evidentemente, da 
linguagem como simples meio técnico a serviço da palavra (a 
língua) , mas da linguagem enquanto estrutura essencial da pre­
sença do homem ao mundo por seu dizer. E é por isso que a 
psicologia, ciência dessa relação, não pode ser pensada fora 
dessa linguagem. Por conseguinte, não pode pura e simples­
mente ser reduzida a uma ciência da causalidade psíquica, 
pois deve colocar-se o problema da compreensão, e da com­
preensão que ela pode ter de si mesma. Neste sentido, o psi­
cólogo pode ser considerado um "especialista" da linguagem, 
na medida em que lhe cabe revelar aquilo que não se mani­
festa, aquilo que está oculto ou que se recusa _à consciência. 
Em última análise, a tarefa essencial de Freud não tem 
outro objetivo senão fazer com que o sujeito redescubra sua 
palavra, a palavra que lhe foi alienada e que lhe escapa, a fim 
de que possa reestruturar sua objetividade. Em todo ato, o 
homem faz intervir, consciente ou inconscientemente, direções 
de sentido. :e por isso que o ato psicológico essencial não pode 
1 12 
consistir tanto em ver (atitude objetivante) quanto em ouvir 
(atitude compreensiva) , para que se torne possível a apreen­
são do sentido. E é por isso que a psicologia procura colocar 
o prob!ema da compreensão dos fenômenos psíquicos a fim de 
revelar sua dimensão expressiva e significante. A relação do 
paciente com o psicólogo não se reduz, pois, ao estudo de um 
caso, de uma objetivação ou de uma classificação dos compor­
tamentos : o que importa, nessa relação, é a descoberta da 
verdade do paciente. O psicólogo vai a seu encontro através da 
linguagem. Esta não é um simples meio de comunicação, pois 
engaja o problema da verdade do paciente e de sua história 
pessoal. :f: por isso que o sentido não pode ser objetivável, veri­
ficável ou simplesmente pondel'ável ( teste de classificação) . 
O campo do psicólogo é o campo do discurso, pois é somente 
no discurso que o real se apresenta sob a forma simbólica do 
sentido, isto é, do possível. 
Sendo assim, chegamos a essa "objetividade" de segundo 
nível, por oposição à objetividade exterior, física, sobre a qual 
normalmente se pautam as ciências empíricas, inclusive a psi­
cologia. Ora, não temos pretensão alguma de provar que a psi­
canálise freudiana tenha conseguido conquistar a entidade in­
tersubjetiva científica, entidade intelectualmente objetiva, cons­
tituída pela significação que um acontecimento ou um episódio 
da vida mental podem comportar, do interior mesmo dessa vida 
mental, para seu sujeito e para outrem. O importante é que 
não se pode mais contestar que a psicologia psicanalítica tenha 
tido a idéia, já epistemologicamente distinta, desse novo tipo 
de objetividade científica, relacionando-se com um objeto que 
não é mais uma coisa, mas um sentido. Este sentido se inscre­
ve no interior de uma vida mental, realizando-a quer na norma­
lidade, quer na existência patológica. 
O que podemos concluir dessas observações é que o es­
tabelecimento de outro critério para chegar à objetividade cien­
tífica, em psicologia, coloca em questão o behaviorismo. O 
"passo à frente" dado por Freud poderá ser reconhecido na 
descoberta deste outro objeto psicológico que vai constituir-se 
com a significação (conteúdo latente) de um vivido mental en­
quanto sintoma interpretável e decifrável pela utilização de um 
método seguro e eficaz, e pela introdução de um outro mo-
113 
mento do ser psicomental : outros vividos anteriores, hábitos, 
o inconsciente, complexos, etc. Evidentemente, os fatos exterio­
res observáveis : comportamentos, relatos, produtos do trabalho 
de associações livres efetuado pelo "sujeito", não são mais, 
propriamente falando, constituintes do objeto psicológico "sig­
nificação", mas os mediadores indispensáveis de sua constitui­
ção. Graças a esses mediadores, o psicólogo pode representar­
se o vivido significante de seu "sujeito" ( o sonho, por exemplo) 
através de seu relato. Tudo isso pode ser incluído nesta cate­
goria epistemológica chamada de sintoma. Todavia, o psicólo­
go também pode, com esse "sintoma", representar-se o ser psi­
comental : por exemplo, fazendo apelo à produção de "associa­
ções livres". E é quando dispõe das duas representações da­
quilo que se passa em seu 'sujeito", que ele descobre a "sig­
nificação", quer dizer, chega à interpretação do "sintoma". 
3 . A OBJETMDADE PSICOLÓGICA 
No ponto a que chegou nossa análise, convém sistematizar 
melhor os diferentes tipos de objetividade psicológica. Em se­
guida, tentaremos situar esses modelos de objetividade com os 
das demais ciências humanas, a partir, principalmente, da sig­
nificação do sujeito da ciência. 
Podemos distinguir quatro tipos distintos de objetividade 
psicológica, correspondendo a quatro maneiras de encarar o 
estudo da psicologia: estudo do comportamento, da conduta, 
da "intenção" e da "significação". Dois desses tipos de objeti­
vidade. o que estuda o comportamento e o que estuda a "sig­
nificação", poderiam ser considerados "puros". Com efeito, o 
comportamento pode ser encarado como um fato observável 
"puro", no mesmo senti.do em que são "puros" os fatos obser­
váveis físicos. A observação do comportamento fornece, em 
princípio, num material dado, um sistema de identidade e de 
diferenças, pois, sobre ele, podem ser construídas relações fun­
cionais (esquema S --+ R) assegurando a cientificidllde da ob­
servação. Quanto à "significação", parece evidente que ela não 
é um observável. Formalmente, nada da "significação" pode 
ser dado à observação exterior ou objetiva, pois ela se situa 
única e exclusivamente no nível do inteligível. E não seria exa-
l l4 
gerado dizer que todo . o empenho do método psicanalítico de 
Freud consiste em tornar possível, de um modo que merece a 
denominação de científico, a descoberta intelectu.al do inteli-
gível a partir do observável. . 
Entre essas modalidades de objetividade em psicologia, si­
tuam-se dois outros tipos: o que é resultado de um estudo da 
conduta e o que é fruto de uma análise da "intenção". Ambos 
associam, na constituição de sua objetividade, um observável 
no sentido mencionado acima: comportamento, palavras de re­
lato ou de descrição, e um vivido representável, peftencendo 
à esfera da observação íntima. Bem entendido, sem um recurso 
a esses dois tipos híbridos de objetividade psicológica, seria 
praticamente impossível, à inteligência científica do psicólogo. 
passar do estado do "observável" à descoberta da "significa­
ção". Sistematizando os quatro tipos de objetividade psicológi­
ca, temos o seguinte quadro: 
2 
O EXPRESSIVO 
a conduta 
4 
O INTELIG1VEL 
a "significação" 
1 
O OBSERVÁVEL 
o comportamento 
3 
O IMPRESSIVO 
e a pàrtir desse quadro que faremos algumas considera­
ções de ordem epistemológica sobre o problema da objetivi­
dade em psicologia e nas ciências humanas gerais : 
115 
1 . Aquilo que está mais próximo da atitude da psico­
logia "pré-científica" ou simplesmente "filosófico-introspecti­
va", mesmo que por vezes e!a tenha rel\·indicado o título de 
"científica", parece ser a atitude da psicologia fenomenológica. 
Sem dúvida, esta psicologia está voltada para esse tipo de ob­
jetividade que, em nosso quadro, chamamos de o "impressivo". 
Trata-se de uma objetividade centrada na auto-observação do 
"sujeito" e identificando-se com o próprio psicólogo. Por outro 
lado, a atitude da psicologia fenomenológica parece suspeita à 
psicologia que pretende afirmar-se na cientificidade, por estar 
comprometida com tomadas de posição e engajamentos valora­
tivos ou de ordem filosófica: as vinculações mais ou menos 
genealógicas com a filosofia fenomeno'ógica são uma compro­
vação de que trata de uma atitude estranha àquela que tem 
a ambição de ser apenas científica. Por sua vez, no plano cien­
tífico, parece que a psicologia fenomenológica não correspon­
deu às esperanças nela depositadas. Por exemp�o. isso foi clara­
mente notado a propósito da psicologia fenomenológica de Sar­
tre sobre a imaginação. Sartre não conseguiu mostrar a cienti­
ficidade de sua psicologia. Nem tampouco foi demonstrada a 
objetividade da fenomenologia husserliana. Evidentemente, Hus­
serl entreviu certa idéia de cientificidade para a fenomenologia, 
muito embora ela só tenha atingido um nível bastante incom­
pleto e confuso de realização. Neste sentido, o estatuto de 
objetividade, reconhecido ao estudo psicológico do comporta­
mento, é bem superior ao do estudo fenomenológico da "inten­
ção" e do "intencional". 
2. Algo de semelhante pode ser dito a respeito da psi­
cologia psicanalítica e do estatuto de objetividade a ser reco­
nhecido ao estudo da "significação". A psicanálise, tal como 
ela se apresenta concretamente, e não enquanto método de es­
tudo e interpretação do sonho ou vivido mental, é extrema­
mente complexa: 
a) em primeiro lugar, aquilo que nela há de "científico", 
permanece confinado na prática efetiva da relação paciente­
analista. Em seu ser concreto, a relação analítica depende de 
uma técnica terapêutica, havendo momentos de "transferência" 
entre paciente e analista. O saber surge à medida que se reali-
116 
[ za a expcnencia singularmente vivida. É este saber que leva os analistas a não admitirem que falem da psicanál ise senão 
aqueles que se submeteram ao processo técnico da análise, a 
título de pacientes, ou aqueles que são psicanalistas (o que 
pressupõe a "análise didática" ) ; 
b ) em segundo !ugar, apesar do grande "passo à frente" 
dado por Freud, capaz de revolucionar nossa cultura, sobre­
tudo pela elucidação da significação profunda da sexualidade 
na vida humana - a história da sexualidade no interior de 
cada indivíduo, seus ocu:tamentos existenciais e suas ressurgên- � 
cias larvares -, a interpretação, ou descoberta intelectual da 
significação, ainda não pode dizer que esteja ancorada em cri­
térios satisfatórios de cientificidade. As coisas permanecem na 
dependência da eficácia da relação paciente-analista. Bem en­
tendido, esta eficácia já pode ser considerada como um ele­
mento importante de validação científica: "há a'go aí de ver­
dadeiro, pois funciona", poderíamos dizer. Contudo, a verdade 
realmente "verdadeira", certa e convincente, para todos quan­
tos a conheçam de modo competente, ainda está por ser deter­
minada, muito embora deva ser estabelecida para além da 
plataforma .de objetividade apregoada pela psicologia behavio­
rista; 
c) enfim, para além das teorias freudianas, solidárias a 
uma prática psicanalítica, podemos perguntar: será que todo 
esse conjunto de teorizações já não chegou, hoje, a um ponto 
em que pode tornar-se (para a inteligência e sua necess:dade 
de conhecimento objetivo) mais num incômodo do que num 
apoio realmente útil? É por vezes intrigante que uma idéia 
justa, fecunda e profunda só possa impor-se ao pensamento que 
se esforça por atingir o nível científico, exprimindo-se através 
da produção e da fermentação de discursos "ideo!ógicos"; ou 
então, mediante "teorias" mais ou menos "científicas", por se­
rem inspiradas por um desejo de objetividade, na rea!Ídade, 
"pré-científicas", destinadas a uma revisão ulterior! O que de­
vemos perguntar é o seguinte : será que as teorias freudianas 
não constituem, já em larga escala, este tipo de "contribu,ição 
ideo!ógica' indispensável para que uma cientificidade mais 
117 
"pura" e mais radical possa vir a estabelecer-se em outros moi­
des e segundo novos critérios? 
3. f: por todas essas razões que, do ponto de vista cien­
tífico, o estatuto de objetividade da psicanálise ainda perma­
nece incerto. Pelo menos, ele é bem mais inseguro do que o 
estudo psicológico do comportamento ou da conduta, embora 
bem mais firme do que o estudo da psicologia fenomeno�ógica. 
Em suma, a psicanálise é uma disciplina que, por seu método, 
está bem mais próxima da ciência do que da filosofia, pois ela 
faz uso da observação, da explicação, da previsão, da ação 
técnica, etc. Entretanto, pelo fato de levar em consideração 
os problemas do sentido, do "porquê" e da interpretação, ela 
se distingue sensivelmente da ciência positiva no sentido estri­
to. f: por isso que, levando em conta a observação precedente, 
traçamos uma linha diagonal separando, no quadro, as objeti.,. 
vidades 1 e 2 das objetividades 3 e 4. As duas primeiras já 
conquistaram, na prática, seu estatuto de objetividade cientí­
fica. As duas ·outras ainda estão em processo de aquisição de 
um estatuto de cientificidade menos incerto: ainda precisam 
elucidar, de um lado, a estrutura da relação de intencionali­
dade da consciência com o fato mental ; do outro, a estrutura 
da relação de significância .daquilo que Freud chama de "o 
inconsciente" com o fato mental. Para conseguirem tal intento, 
duas correntes psicológicas se apresentam : uma se inclina para 
os métodos de certo "estruturalismo", a outra tenta aprovei­
tar-se da metodologia das ciências da linguagem. 
4. Não podemos esquecer que, hoje em dia, a psicologia 
se apresenta como o estudo de um aspecto do ser animal ou 
humano. Enquanto tal, ela guarda o estatuto geral de uma 
prática concreta, fazendo todo o possível, e da melhor manei­
ra que pode, para investigar o campo de estudo que considera 
como sendo o seu. Em outros termos, quer estude as funções 
da memória, os processos de aprendizagem ou a gênese das 
estruturas mentais da criança, quer a psicologia diferencial dos 
sexos, etc., o psicólogo é alguém que de forma alguma deve 
ser considerado como um obsecado pela análise espectral epis­
temológica, a ponto de se perguntar com inquietude e escrúpu­
lo pelo tipo de objetividade que o preocupa no momento em 
1 18 
que leva a efeito, na prática, este rtn aquele tipo de pesquisa; 
ou então, quando ensina a "psicologia" ou escreve sobre este 
ou aquele assunto psicológico.' 
Na prática, podemos dizer que os quatro tipos de objeti­
vidade psicológica se imbricam e se combi11� mas não resol­
vem suas associações mais ou menos confusD. deixam em si­
lêncio suas diferenças e heterogeneidades. E§sas diferenças se 
fundam na "boa consciência" metodológica do psicólogo "qua­
lificado" cientificamente. Cabe ao epistemólogo, que poderá 
ser o próprio psicólogo, desempenhar o papel, por assim dizer, 
de "consciência infeliz" (crítica) da prática epistemológica. :S 
ele quem tenta fazer, com dificuldades, uma reflexão crítica 
sobre tudo o que precede; numa palavra, sobre a cientificidade 
da psicologia, enquanto ela é (ou deveria ser) uma ciência do 
homem. 
5. Evidentemente; não tivemos a pretensão de analisar 
todos os problemas epistemo!ógicos implicados no conceito de" 
objetividade psicológica. Estudamos sucintamente apenas aque­
les que nos pareceram epistemologicamente mais relevantes e 
susceptíveis de levantar os mais diversos e fecundos questiona­
mentos à psicologia do comportamento. Assim, o que nos in­
teressou de modo especial, na psicologia, foi uma reflexão so­
bre seu desejo da referência empírica e positiva, quer dizer, 
sobre sua vontade de chegar ao estatuto de cientificidade, se­
não como uma ciência do homem, pelo menos à maneira das 
ciências naturais. Muitos outros problemas epistemológicos da 
psicologia foram conscientemente deixados de lado, não por 
serem menos importantes, mas porque decorrentes da tomada 
de posição relativamente à análise do problema central : o da 
cientificidade ou não da psicologia. Os demais problemas di­
zem respeito às outras funções da elaboração do conhecimento 
psicológico: explicações, hipóteses, teorias, modelos, apelo aos 
recursos da matematização dos observáveis (medida) , etc. Estevasto domínio mereceria, sem dúvida, um estudo bem mais 
aprofundado. Aliás, é sobre ele que já se escreveu a maior parte 
dos trabalhos epistemológicos concernentes à psicologia, razão 
a mais para não lhe darmos a preferência e para remetermos 
o leitor à já extensa bibliografia tentando resolver a questão 
·da passagem do dado ao explicado em psicologia. 
119 
6. No contexto em que nos situamos, cremos ser im­
portante ressaltar as relações da objetividade psicológica com 
a das demais ciências humanas. Neste sentido, cabe esta per­
gunta inicial : qual o sujeito da ciência? Já vimos que a cie!lti­
ficidade das ciências do homem não pode ser definida de modo 
unívoco. Eis uma constatação já antiga, e que está na origem 
da tentativa de Foucault : traçar uma genealogia dos modelos 
científicos que engendram a idéia ou o conceito de homem, 
quer dizer, desse corpo de conhecimentos que toma o homem 
.·orno objeto, naquilo que ele tem de empírico. No interior desse 
corpo de conhecimentos, Foucault descobre, para descrevê-lo, 
um conjunto de "taxinomias". Mencionemos apenas duas : as 
que apresentam o traço comum de não situar a psicanálise 
como domínio autônomo, mas como uma espécie de exigência 
interna a um sistema de que ela seria o princípio norteador. 
Não seria possível associar a psicanálise a um conjunto de 
disciplinas já"' constituídas. Todavia, sua presença provoca uma 
reformulação total dessas disciplinas. No entanto, Foucault d�s­
cobre um esquema comum à psicanálise e à etnologia, permi­
tindo-lhe · uma redefinição do campo do homem : "Forma-se, 
então, o tema de uma teoria da linguagem que daria à etnologia 
e à psicanálise assim concebidas seu modelo formal" (Les mots 
et les choses) . A l inguagem e suas múltiplas teorizações cons­
tituiriam a "contraciência" capaz de unificar tudo, contestando 
a heterogeneidade dos componentes do campo pseudocientífico 
das ciências humanas. No entanto, Foucault não pode negar 
que a própria linguagem deva ser estudada em função de sua 
relação com o "inconsciente", pois é ele que determina suas 
formas e sua emergência. Donde a questão : quem fala? seria 
o homem? o inconsciente? o sujeito? um "algo" (on) qual­
quer? 
Segundo Lacan, que só aparentemente se separa de Freud, 
neste particular, é preciso que se distinga psicologia, enquanto 
uma teoria do indivíduo, e psicanálise, enquanto esta introduz 
um.� teoria do sujeito. Por "psicologia", deve ser entendido um 
conjunto de técnicas tomando possível reintegrar o indivíduo 
( ( r 'e �e situa numa coletividade graças a um conjunto de nor­
ma.· ) , quando ele se desvia da sociedade; excluí-lo da socie­
.;L .c, quando ele se toma "anormal"; selecioná-lo, quando é 
r · · 
\ 
considerado "apto". Ao definir assim uma "teoria geral da con­
duta", G. Canguilhem mostra o perigo de toda psicologia sub­
metida à ideologia dominante: ao tomar por objeto o homem ou 
o indivíduo, a psicologia o toma no seio de uma sociedade 
"regulamentada". E é por isso que Lacan se insurge contra as 
psicanálises e contra os métodos psicoterapêuticos pretensamen­
te não-diretivos, pois terminaram por reduzir a contribuição 
original de Freud a uma pura técnica de reintegração ou de 
pseudocrítica sociais, amputando-a de sua dimensão científica. 
Em seus Écrits, ele diz que "não há ciência do homem. 
porque o homem da ciência não existe, mas somente seu su­
jeitC'". O "sujeito" é aquele que fala, o lugar de toda enuncia­
ção. Não pode ser concebido como uma entidade única, dota­
da de uma essência, mas como o objeto de uma divisão que o 
constitui: entre o inconsciente que o determina antes de todo 
discurso, e as produções conscientes, de cuja idéia faz parte o 
homem. Assim sendo. a única ciência possível é a do sujeito 
que se ccupa com a produção da linguagem. Quanto à noção 
de homem, em oposição à de sujeito, ela é relativa a determi­
nada cultura e a determinado reétodo: depende, em suma, da 
generalidade, e não da universalidade. Só o sujeito, como termo 
lógico, é universal e universalizável. Por isso, Lacan se per­
gunta: que necessidade tenho de dizer que, na ciência, o saber 
se comunica? A comunicabilidade do saber do sujeito sobre o 
sujeito depende, diz ele, de uma lógica que o pensa como es­
tando separado da causa de seu discurso; esta lógica é a mesma 
que implica a psicanálise, ciência "das miragens" do sujeito e 
ciência do inconsciente; portanto, ela inclui os efeitos e a cau­
sa. E é em função dessa especificidade que ela não pode si­
tuar-se no domínio das ciências humanas, a não ser para cri­
ticá-las radicalmente. 
E o que se pode diier da cientificidade da psicologia? Se 
considerarmos a psicologia concretamente, em seu estado pre-
• 
sente, podemos constatar que ela s� apresenta como um vasto 
território, com vários departamentos, em cujo interior o conhe­
cimento está longe de ter atingido, em toda parte, o grau de 
desenvolvimento e estatuto de cientificidade que poderia se 
esperar. Isto pode nos causar a impressão de uma grande massa 
ainda movediça, onde aparecem formações mais coerentes do 
121 
conhecimento, terrenos mais sólidos, sobre os quais a démar­
che psicológica pode se construir com segurança mais metódi­
ca. Na medida em que se torna científica, a psicologia, como 
toda ciência, faz-se científica a partir de um estado bruto e 
prévio do conhecimento, que ainda não é científico. · Antes da 
psicologia de hoje, houve a de ontem, a de anteontem. Cada 
vez que se evoca uma das etapas da psicologia, evoca-se aqui­
lo que já é uma tentativa de organização coerente de conheci­
mentos que se ligam à experiência que cada um pode ter das 
coisas da vida mental e àquilo que, de uma forma ou de outra, 
se encontra expresso culturalmente. Atualmente, por exemplo, 
a psicologia só é o que é permanecendo mais ou menos soli­
dária dessa massa confusamente pré-científica, de aquisições 
empíricas ou, como diz Durkheim, de "pré-noções" por uma 
definição científica de seu objeto. Mas este "corte epistemoló­
gico" de princípio não impede a persistência das continuidades 
reais. Aliás, de vez em quando a psicologia sente a necessidade 
de retornar àquilo de que se libertou para constituir-se come 
saber objetivo. Assim, ela irá à forma científica o tanto quanto 
pode, e naquilo em que realmente consegue. Quando não con­
-segue, contenta-se com estados mais modestos de conhecimen­
to, talvez aquém do limiar da cientificidade propriamente dita. 
Por outro lado, e ao mesmo tempo, a psicologia mantém, 
por vezes conscientemente, n·a maioria dos casos contra sua 
vontade, conexões mais ou menos estreitas com visões filosófi­
.cas do mundo e do homem. A ideologia filosófica que a impreg­
na não é simplesmente a ideologia pessoal do pesquisador 
<>u do autor de um obra filosófica (uma ideologia "discrimina­
·da" daquilo que o cientista sabe ser científico) , mas uma ideo­
logia mais ou menos "presidindo" aquilo que se diz ser a pró­
pria ciência. E é isto que justifica, pelo menos em alguns casos, 
o surgimento das diversas "escolas científicas", em desacordo 
entre elas. E não é raro que elas se engagem na discussão não 
somente daquilo que pode constituir o objeto de discussões 
científicas (relativas a resultados determinados ou a hipóteses 
·explicativas propriamente ditas, susceptíveis de verificação) , 
mas das doutrinas e das atitudes que dificilmente se pode dizer 
que sejam científicas. 
122 
' 
Um bom exemplo do que acabamos de falar é o da psico­
pedagogia. Esta discip�ina comporta toda uma base de estudo 
objetivo, desinteressado, da psicologia da criança, do adoles­
cente, etc. Ademais, comporta técnicas de ensino e de forma­
ção do indivíduo. Nem por isso ela deixa de combinar-se com di­
versas visões do mundo, com variadas concepções do destino 
do indivíduo humano, do seu meio social ou dos critérios de 
"finalidades" n serem impostos à educação. Assim, quase ine­
vitavelmente, 11 doutrina psicopedagógica encontra-se sob múl­
tiplos determinantes ou condicionantesda convicção humana 
em seu conjunto: ideologias1 filosofias, crenças religiosas, etc. 
E isto até parece normal. Deste ponto de vista, não é por acaso 
que, diferentemente de organizações que se ocupam com as 
outras ciências humanas, a União Internacional de Psicologia 
Científica preferiu não aderir ao Conselho Internacional de 
Filosofia e das Ciências Humanas. O que se pretendeu, ao que 
parece, foi muito mais enfatizar um desejo de guardar suas dis­
tâncias. Ora, este simples fato já revela a possibilidade de uma 
dependência mais estreita das doutrinas do psicólogo relativa­
mente às perspectivas ideológicas próprias ao filósofo. 
Dito isto, constatemos também a presença, no seio das 
disciplinas e práticas atuais oriundas da psicologia, de um com­
ponente epistemológico de natureza crítica e, por assim dizer, 
denunciadora da cientificidade que, espontaneamente, a psico­
logia procura cultivar. Assim, ao lado desta corrente aparente­
mente natural de marcha em direção a um estatuto "científico", 
há uma espécie de "contra-corrente" recusando-se a admitir 
que a psicologia seja uma "ciência". Já citamos o julgamento 
de Foucault sobre as ciências humanas : "não são, em absoluto, 
ciências. A configuração que define sua positividade e as enraí­
za na episteme moderna, coloca-as ao mesmo tempo fora do 
estado de serem ciências. E se nos perguntarmos por que elas 
receberam esse título, bastará lembrar que pertence à defini­
ção arqueológica de seu enraizamento fazer apelo e acolher a 
transferência de modelos tomados de empréstimo às ciências" 
( Les mots et les choses) . 
Foucault vai mais longe ainda, a propósito da etnologia, 
da psicanálise e da ciência da linguagem : ele chega mesmo a 
d izer que elas são discip�inas que, relativamente às "ciências 
123 
humanas" e ao seu projeto, se afirmam como "contra-ciências". 
Assim, com o surgimento da psicanálise, a psicologia conteria 
em si uma prática que, por método, viria contradizer sua in­
tenção, seu esforço e até mesmo seu pretenso estatuto de cien­
tificidade. E não são poucos os psicanalistas a pensarem que 
a psicanálise se apresenta como uma espécie de condenação 
mais ou menos radical da reivindicação "científica" da psico­
logia. Lacan, por exemplo, diz isso várias vezes : "estamos de 
acordo para dizer que as condições de uma ciência não poderão 
ser o empirismo". Em seguida, ele diz que não reconhece a ci­
entificidade "daquilo que já se constituiu, com .a etiqueta cien­
tífica, sob o nome de psicologia". E a razão que e'e apresenta 
é a seguinte : "a função do sujeito, tal como a instaura a ex­
periência freudiana, desqua�ifica, p�·a raiz, aquilo que se faz 
sob o título de psicologia científica : por mais que reabilitemos 
suas premissas, isto só faz perpetuar um quadro acadêmico
,
. 
(Ecrits) . 
7. Não se trata, aqui, de aceitar ou de simplesmente re­
futar as idéias de Foucault e de Lacan. O que importa é o 
reconhecimento de que a psicologia jamais pode ser considera­
da como uma ciência acabada, abstrata e fechada. Ao preten­
der sempre ancorar-se na certeza de um saber sólido e seguro 
(científico) , ela está constantemente sendo colocada em ques­
tão por seu objeto que, aliás, não é um objeto, mas um su­
jeito: o homem. Por outro lado, pe�o fato de não ser dogmá­
tica nem de estar fundada definitivamente, ela deve colocar­
se em questão, porque seu próprio sujeito é fundamentalmente 
questionado em sua história e em seu devir. E toda tentativa, 
sob pretexto de ctentificidade ou de rigor, que qu�sesse instalar 
a psicologia (em seu trabalho de elaboração e de fundamento) 
em certezas absolutas e definitivas, colocá-la-ia, ipso facto, 
na impossibilidade de encontrar os meios para apreender o 
homem como existente, isto é, para desvelá-lo ao mesmo tem­
po em seu aparecer e em sua historicidade. Porque a interro­
gação própria da psico�ogia se dirige às estruturas, ao sentido 
e ao fundamento da presença do homem, tal como ela se ma­
nifesta em cada um de seus atos, de suas situações e de seus 
comportamentos. O homem não é um ser-substância cujas ati­
tudes poderíamos descrever e coisificar. Também não é um 
124 
ser estático cujo comportamento consistiria em assemelhar-se 
mais à sua essência, isto é, a uma definição de seu ser inscrita 
na "natureza humana". O homem não é um ente, mas um exis­
tente que se toma e!e mesmo fora de si, em sua presença : é 
um ser histórico, em devir, de superação. Razão pela qual a 
psicologia não pode estabelecer sobre ele um sabet: científico 
dogmático. 
Nesta perspectiva, devemos observar que, uma verdadeira 
psicologia, através da diversidade dos seus pontos de vista so­
bre o homem, talvez devesse dar-se por tarefa essencial elu­
cidar a relação do homem com o mundo e consigo mesmo. 
Porque a presença surge de uma comunicação e de um en­
contro homem-mundo. Talvez lhe competisse estudar essa re­
lação, sua gênese, seus modos de realização, sua finitude, a fim 
de que fosse desvendado, para o homem, aquilo que pode sig­
nificar "o seu existir". Talvez fosse nessa interrogação sobre 
a existência do homem que devesse fundar-se uma psicologia 
fiel a seu "objeto". Ela não pode colocar entre parênteses o 
fato de o homem ser um ser-no-mundo, numa relação perma­
nente de compreensão do mundo para construí-!o e se recons­
truir. Assim, enquanto ciência da compreensão, da comunica­
ção e do encontro do homem e do mundo, ela se funda como 
ciência do real subjetivo. Não sendo ciência do corpo nem es­
peculação sobre a "alma", a psico!ogia deve tomar, por hori­
zonte de sua significabilidade, o homem que se compreende no 
mundo, compreendendo-se a si mesmo. E é justamente contra 
as psicologias que não levam em consideração esses aspectos, 
que dedicaremos nosso último capítulo. Para sermos mais pre­
cisos, trata-se dessa psicologia que Ludwig von Bertalanffy cha­
ma de "filosofia positivista-mecanicista-comportamentalista" re­
duzindo o homem a um "automata" infra-humano (Robots, 
men and minds, 1967; utilizaremos de perto a edição espanhola 
Robots, hombres y mentes, 1971 ) . 
8. Antes, porém, façamos uma rápida síntese de a1guns 
resultados epistemológicos já obtidos. Até agora, reconhecemos 
dois domínios da vida mental em que o estudo empreendido 
pela psicologia, conformando-se praticamente com a metodolo­
gia da observação exterior a que se submetem as ciências físi­
co-biológicas - metodologia que a doutrina behaviorista eri-
125 
giu como regra quase absoluta para o estudo da psico1ogia -, 
vai descobrir uma positividade objetiva, liberada de toda e 
qualquer conexão com a atualidade subjetiva da vida mental . 
Esses dois domínios são, de um lado, a sensação produzida pela 
ação de excitantes exteriores e físicos (estímulos ) ; do outro, 
o funcionamento racional da inteligência. Em ambos os casos, 
a positividade objetiva aparece como aquilo que, em última 
análise, pode ser construído a partir de um sistema de identi­
dades e de diferenças, cada um incorporado a um suporte ma­
terial, qualitativo e operatório sui generis. Por exemplo, o sis­
tema de identidades e de diferenças incorporado à variedade 
dos estímulos sensoriais físicos para cada sentido (luz, som, 
etc. ) ; ou, então, o sistema de identidades e de difer�nças in­
corporado à variedade de comportamentos a serem observa­
dos. 
Deste ponto de vista, há uma semelhança com aquilo que 
se produz, para a lingüística, com a análise do signo no par 
significante-significado. O significante, que é natura'mcntc o 
veículo do significado para uma consciência, também é uma 
positividade objetiva "liberada" de sua conexão ao significado. 
Em ambos os casos, da psico!ogia e da linguística, o que cons­
titui a "positividade" da coisa que cai sob as malhas do estudo 
positivo, capaz de atingir o resultado positivamente científico, 
é o fato de se apresentar como uma entidade construída ou 
representável a partir de um sistema de identidades e de dife­
renças incorporado a um substrato material e qualitativosui 
generis: a substância fônica, no caso da linguagem ; a extensão 
das ondas sonoras, no caso da excitação visual ; etc. 
Assim, relativamente a uma positividade bem formada de 
um estímulo, de uma resposta, de um suporte afetivo de infor­
mação, a atualidade correspondente, na vida mental, é uma si­
tuação epistemológica semelhante à do significado relativamen­
te a seu significante. Esta atualidade aí se encontra arbitraria:- . 
mente ligada, razão pela qual pode ser . deixada de lado no 
momento em que se toma em consideração a positividade ob­
jetiva a que se acha !atualmente vinculada. Há, portanto, uma 
analogia com a separação que se estabelece, no estudo da lfn­
guagem, entre o· estudo da constituição e da sintaxe do signi­
ficante, e o estudo das funções semânticas: a sintaxe é o estudo 
126 
l 
da positividade objetiva da linguagem enquanto ela é epistemo­
logicamcntc "liberada" da atualidade de sua função semân­
tica. 
Na medida em que a psicologia atingir esse nível, o estudo 
pm>itivo das positividades objetivas torna-se indiferente à in­
terpretação psicológica natura! (existência de sensação, de pen­
samento, etc., no animal ou no homem ) . A linguagem psico­
lógica natural, a propósito das coisas submetidas ao estudo 
positivo, nem é indispensável, nem, tampouco, um incômodo 
para o estudo positivo, baseado numa metodologia precisa e 
bem equi/ada. Mas isto só se torna de todo verdade na medi­
da em que a atualidade da vida mental aparecer imediatamente 
vinculada à efetividade de uma positividade objetiva. Dois 
exemplos: de um lado, a atualidade da vida mental ligada ao 
excitante sensorial ; do outro, a atualidade da vida mental liga­
da à materialidade de uma linguagem racional. 
9. Este rápido sumário já mostra que, dentro do esforço 
da psicologia para alcançar a objetividade, nos interessamos so­
bretudo pela epistemologia da "observação" e, conseqüentemen­
te, por sua contrapartida, a "introsp::cção". A crítica à intros­
pecção é feita sobretudo pela própria psicologia behaviorista, 
desde seus primórdios positivistas. Para a crítica propriamente 
pós-behaviorista à introspecção, remetemos o leitor a três au­
tores : Kohler, Politzer e Sartrc. Retomemos sucintamente a crí­
tica dos dois primeiros em Psicologia da Forma e em Crítica 
dos fundamentos da psicologia, respectivamente. 
O que pretende Kohler é evidenciar todo o conjunto de 
fatores mentais de organização coerente e "significante" da 
percepção e da vida mental . Critica a introspecção tal como ela 
é praticada nos laboratórios de psicologia experimental. Cri­
tica sobretudo o estudo introspectivo da sensação que, à força 
de pretender isolar as sensações em sua especificidade própria, 
cortando-as artificialmente do conjunto da vida mental, as ma­
terializa c as transforma em coisas elementares da vida mental, 
elas próprias associadas a processos orgânicos estudados um 
a um. do ponto de vista psicológico. Neste particular, há- uma 
confluência entre esta psicologia e o behaviorismo. Todavia, 
apesar de limitada quanto a seu campo de aplicação, a crítica 
127 
feita por Kohler é bastante sintomática de um novo tipo de 
crítica: trata-se de "desmaterializar" a introspecção e de "des­
coisificar" o que e!a pretende fornecer ao estudo psicológico. 
A atualidade da vida mental e os fatos de consciência são algo 
completamente distinto de uma espécie particular de "coisa" 
oferecida à atenção intuitiva da reflexão consciente. � uma 
atualidade ativa onde, de certa forma, tudo está em tudo, cons­
tantemente perpassada de perspectivas que a habitam e de 
"co1ocações em forma" que a organizam. E é por uma atenção 
infinitamente mais livre, mais global, que se deve apreender 
essa atualidade ativa, d:scernindo seus traços e especificidades 
essenciais, quer dizer, suas estruturas e suas relações de inten­
cionalidade interna de momento a momento da vida psico­
mental . 
A crítica à introspecção será mais contundente na obra de 
Politzer, que se exprime em nome da lição psicológica extraí­
da dos ensinamentos da psicanálise freudiana. O que ele cri­
tica é a atitude intelectualista e o sistema de procedimentos 
que fazem do dado mental algo quase imaterial, decomponÍ·· 
vel em elementos e associável a outros dados mentais, mais ou 
menos como fazem os átomos para formar as moléculas. Esta 
introspecção materializante e, aliás, can.didamente repressiva 
daquilo que o funcionamento vigilante da consciência .tende a 
"censurar", deve ser substituída pela apreensão de um fato 
mental inteiramente distinto: o fato mental da auto-observa­
ção não-crítica, reconstituindo um estado psíquico que apre­
sente certa analogia com o estado intermediário entre vigília 
e sono. Segundo Politzer, Freud substitui a introspecção pelo 
relato, e é isto que o leva a empreender um estudo mais obje­
tivo. O relato é estudado pelo psicanalista sem supor que aque­
le que faz o relato do sonho, praticando a introspecção me­
tódica, seja ele próprio um outro psicólogo. O psicólogo in­
trospectivo espera de seu sujeito um estudo já psicológico: ele 
sempre supõe, em st:u sujeito, um psicólogo. � isto que torna a 
psicologia inteiramente distinta das demais ciências: um mate­
mático jamais irá pedir a uma função que se torne "matemá­
tica", mas que seja sempre uma "função". 
Nessas condições, o método freudiano do estudo da inter­
pretação do sonho, graças a seu relato e ao material fornecido 
128 
I 
) ::. 
l'f 
pelo trabalho ulterior das "associações livres", não se opõe 
apenas ao caráter abstrato e subjetivo da introspecção, mas 
representa a antítese do realismo da introspecção. Esta, por for­
necer apenas a forma e o conteúdo de um ato psicológico, só 
tem sentido na hipótese realista: a psicologia dássica consi­
dera a introspecção como uma forma de percepção. Portanto, 
faz corresponder a seus dados uma realidade sui generis: a rea­
lidade espiritual ou a vida interi'". E é a introspecção que ii:á 
fazer-nos penetrar nesta "segunda natureza" e informar-nos 
sobre seus estados. Esses dados da introspecção, que são os 
de uma realidade, sugerem, depois, hipóteses sobre a estrutura 
dessa realidade. Também essas hipóteses são "realistas". Assim, 
através da introspecção, sabemos o que é o mundo espiritual e 
o que nele se passa. 
Politzer acha que a vida psicológica de um indivíduo só · 
poderá ser dada através de um "relato" ou de uma "visão" 
(percepção visual, de fora, dos gestos e ações do outro) . Ora, 
tanto o "relato" quanto a "visão", são funções da prática so­
cial. Por isso, sua estrutura não pode deixar de ser "finalista": 
em mim, a linguagem corresponde a uma "intenção significati­
va"; por sua vez, as ações correspondem a uma "intenção ati­
va". E é sob essa forma "intencional" que o "re)ato" e a 
"visão" se inserem na vida cotidiana. Quanto à intenção sig­
nificativa, em mim, ela corresponde, nos outros, a uma "inten­
ção compreensiva". No que diz respeito à "visão", a vida cor­
rente respeita seu plano. Eu falo, e a vida corrente vê apenas 
a intenção significativa. Estendo a mão para pegar um objeto, 
e alguém me passa o objeto. No primeiro caso, sou compreen­
dido; no segundo, uma "ação social" responde à minha "ação". 
1 O. Todavia, além da introspecção, Politzer critica se­
veramente o que ele chama de "o ciclo infernal do experimen­
talismo" em psicologia científica. O que ele diz, em síntese? 
Os psicó�ogos, diz ele, têm laboratórios e publicam numerosas 
monografias. Nada de disputas verbais, dizem eles, calcule­
mos! Eles empregam logarítimos. Calculam o número das cé­
lulas cerebrais para ver se elas contêm todas as idéias. A psi­
cólogia científica nasceu! Mas que miséria! f: logo dominada 
por um formalismo insípido. Recebe o ap!auso de todos aque-
129 
les que, de ciência, só conhecem . os lugares comuns da meto­
dologia. Evidentemente, os psicólogos prestar!m graude serviço 
à psicologia ao libertarem-na da velha psychologia rationalis. 
No entanto, o que conseguiram fazer, foi construirpara ela 
um refúgio ao abrigo da crítica. Com o tempo, os psicólogos 
como que se sentiram cansados. Sua fé foi logo reanimada pelo 
advento do.s "reflexos condicionados". Grande descoberta! Não 
tardou muito, e a "psicorreflexologia" também parece ter ador­
mecido. Então, as esperanças frustradas renascem com a teo­
ria fisiológica das emoções ou das glândulas de secreção inter­
na. E após cada período de agitação "objetivista", reaparece 
sempre o "monstro vingador" da introspecção. Assim, apresen­
tando-se como um novo triunfo do espírito científico, a psico­
logia experimental nada mais fez do que humilhá-lo. Porque, ao 
in�és de deixar-se fenovar pelo espírito científico e prestar-lhe 
serviço, ela simplesmente aproveitou-se de sua vitalidade para 
encobrir velhas tradições. E é isto que explica o fato de as 
psicologias "científicas" posteriores a Wundt não passarem de 
um despistamento da psicologia clássica. A diversidade das ten­
dências em psicologia científica representa apenas "renascimen­
tos sucessivos desta ilusão que consiste em crer que a ciência 
pode salvar a escolástica". E é isto que explica a impotência 
do método científico nas mãos dos psicólogos. Aliás, a este 
respeito, Bertalanffy lembra que a psicologia é algo muito sério 
para ser deixada apenas nas mãos dos psicólogos! 
Segundo Politzer, os cientistas formam uma verdadeira 
hierarquia. O mundo da quantidade é o mundo próprio dos 
matemáticos. Estes nele se movem com relativa facilidade, e 
são os únicos a não transformar seu rigor em parada. O em­
prego feito pelos físicos da matemática já se ressente do fato 
seguinte: ela é, para eles, uma "veste alugada". A envergadu­
ra da matemática escapa_ aos físicos. Os fisiologistas, por sua 
vez, entregam-se à "magia das cifras", ao entusiasmo pela for­
ma quantitativa das leis, como à "adoração de um fetiche". 
Quanto aos psicólogos, é de terceira mão que fazem uso da 
matemática: eles a recebem dos fisiologistas que, por sua vez, 
a recebem dos físicos, os únicos a receberem-na diretamente 
dos matemáticos. 
130 
Ora, a cada etapa, cai o espírito científico. E quando a 
matemática chega aos psicólogos, é um pouco de "cobre e de 
vidro" que eles tomam por "ouro ou diamante". O mesmo 
ocorre com o método experimental. É o físico que tem dele 
a visão séria. É entre suas mãos que ele é uma técnica racio­
nal que não se degenera em magia. O fisiologista já tem certa 
tendência à magia, pois, em suas mãos, o método experimental se 
degenera em pompa experimental. O que dizer, então, do psi­
cólogo? "Nele tudo é pompa. Apesar de todos os seus protes­
tos contra a filosofia, ele só vê a ciência através dos lugares 
comuns que a filosofia lhe ensinou a seu respeito. E como lhe 
foi dito que a ciência é feita de paciência; que foi sobre pes­
quisas de detalhe que se construíram as grandes hipóteses, ele 
crê que a paciência seja um método em si mesmo; e que basta 
procurar detalhes cegamente para descobrir o Messias sinté­
tico. Então, ele chafurda no meio dos aparelhos e se lança, ora 
na fisiologia, ora na química ou na biologia; manipula médias 
estatísticas, e está convencido de que, para adquirir a ciência, 
como para obter a fé, seja necessário imbecilizar-se. É preciso 
que se compreenda: os psic6logos são cientistas como os selva­
gens evangelizados são cristãos" (Critique des fondements de 
la psychologie, 1967) . 
A o combater ao mesmo tempo a introspecção e o expe­
rimentalismo psicológicos, Poli:.Zer propõe que a psicologia re­
tire sua máscara pseudocientífica e retome ao homem concre­
to. Para se atingir a objetividade científica desse homem con­
creto, a análise de Freud é um elemento importante: "Deve-se 
abordar o sonho como um texto a ser decifrado (e não como 
uma seqüência incoerente de representação) . A estrutura da 
significação íntima é, na medida em que é significação, exata­
mente a mesma que a significação convencional ; e quando que­
remos encontrar a primeira, não devemos proceder diferente­
mente da maneira como procedemos para estabelecer uma sig­
nificação qualquer. Portanto, temos necessidade de elementos 
e de pontos de referência; numa palavra, de um contexto. 
Por outro lado, se há significações íntimas, é porque o indiví­
duo possui, por assim dizer, uma experiência concreta. É pre­
ciso, pois, que possamos penetrar nessa experiência concreta, 
e só penetramos nela na medida em que o sujeito nos fornece 
131 
os materiais de que ela é constituída. Donde a necessidade da 
démarche fundamental do método de Freud: as associações 
livres" ( ibid.) . 
Assim, para Politzer, a psicologia, interessando-se pelo ho­
mem concreto, pelo homem vivendo um drama humano, deve 
ter por . objeto o comportamento humano. Mas o comporta­
mento enquanto ele se relaciona com os acontecimentos no inte­
rior dos quais se desenrola a vida humana, e com o indivíduo 
enquanto é o sujeito dessa vida. Em suma, o objeto da psico­
logia é o comportamento que tem um sentido humano. Sua es­
pecificidade é conferida pela existência do p:ano propriamente 
humano e da vida dramática do indivíduo que aí se desenro!a. 
Esta vida se manifesta nos fatos acessíveis e verificáveis. Tais 
são as condições, segundo Politzer, para a psicologia tomar-se 
ciência positiva. 
Evidentemente, em sua crítica, Politzer utiliza uma lin­
guagem bastante inadequada que, por vezes, parece até injusta. 
na medida em que é muito severa e radical e na ,medida em 
que critica um tipo de psicologia experimental já bastante su­
perado. Não é certo que este autor tenha visto exatamente a 
natureza dessa "significação íntima" de que fala. Freud vê que 
ela vai desta porção da vida mental dita "consciente", desem­
t>enhando o papel de significante (no sentido saussuriano) , a 
esta porção de vida mental dita "inconsciente" ou "pré-cons­
ciente', desempenhando o papel de significado. Contudo, Po­
Jitzer percebe claramente a possibilidade de uma nova objeti­
vidade científica em psicologia. De certa forma, ela supera 
este tipo de psewio-objetividade "subjetiva" a que a introspec­
ção tentou dar consistência, bem como a "objetividade" pro­
posta pela psicologia experimentalista, pelo menos a de seu 
tempo. Politzer ataca não somente os resultados da psicologia, 
mas as próprias démarches que os engendram. A mistificação 
não se encontra apenas nas respostas, mas já estão presentes 
nas questões. E por isso que o behaviorismo, qualquer que tenha 
sido a importância das tentativas -.de Watson e de seus seguido­
res, representa uma crítica que não desloca os problemas. Para 
se obter métodos novos, é preciso que se possa dispor de con­
ceitos novos. Donde a importância da crítica à própna psico­
logia behaviorista que, por não dispor de conceitos novos para 
132 
expressar seu objeto, parece ainda estar presa aos velhos mé­
todos. Este será o objeto de nossa conc!usão. Evidentemente, 
não iremos fazer uma crítica ao behaviorismo psicológico des­
de sua origem até nossos dias, mas apenas nos interrogar sobre 
a imagem do homem que a psicologia atual, tal ' como ela se 
apresenta, cria ou persiste em nos propor. Numa palavra, ten­
taremos nos perguntar qual a significação da "psicologia dos 
psicólogos", não somente enquanto ela cria uma imagem do 
homem, mas enquanto e!a desempenha ao mesmo tempo .fun­
ções culturais, ideológicas, terapêuticas, de regulação, de adap-
tação, de se!eção, etc. 
· 
133 
v 
A "PSICOLOGIA DOS 
PSICóLOGOS" 
, 
Por "psicologia dos psicólogos", entendemos, não tanto 
o estatuto ainda incerto do psicólogo ou o estatuto epistemo­
lógico de cientificidade da psicologia, quanto a prática da psi­
cologia em ·nossos dias. Analisaremos esta prática em duas di­
reções distintas mas complementares : 1 ) a "tecnologização" 
progressiva da psicologia; 2) as funções da psicologia enquan­
to prática social. No primeiro item, mostraremos alguns dos 
efeitos da "tecnologia" psicológica sobre o homem moderno. 
No segundo, tentaremos mostrar que, apesar de suas funçõescultural, terapêutica, adaptativa e reguladora, a psicologia não 
tem o direito de ignorar o homem em nome de uma preocupa­
ção excessiva de rigor científico. 
1 . A "TECNOLOGIA" PSICOLÓGICA 
Desde sua origem, a psicologia experimental ou científica 
tentou transpor para o domínio dos fatos psíquicos as técnicas 
de medir e de experimentar já utilizadas com sucesso pela fí­
sica e pela biologia. Houve uma generalização dessas técnicas 
a objetos para os quais elas não haviam sido feitas. Evidente­
mente, essa transferência das técnicas psicoquímicas ao estudo 
do homem não se deveu exclusivamente a uma preocupação 
epistemológica de assegurar, em. psicologia, a mesma forma 
de inteligibilidade científica utilizada nas ciências naturais. 
Pelo contrário, essas técnicas foram inventadas, sobretudo, ten­
do em vista responder a uma série de necessidades e de inte­
resses de ordem prática. Foi em resposta às necessidades do 
rendimento econômico que surgiu, por volta de 1900, a psi­
eotécnica, tendo por objetivo central regular cientificamente o 
137 
tràbalho humano. Todavia, não é à psicotécnica, nem muito 
menos à psicologia aplicada, que se refere nosso termo "tec­
nologia". Por tecnologia queremos significar a aplicação da 
ciência psicológica ao processo social, em resposta à necessi­
dade de se "maximalizar" · a exploração e o controle do traba­
lho humano, bem como de . "racionalizar" sua produtividade. 
Em outras palavras, a "tecnologia" psicológica é um conjunto 
de técnicas fornecidas pelo desenvolvimento de estruturas es­
pecializadas na elaboração e na utilização de um saber psico­
lógico científico. Essas estruturas especializadas dizem respei­
to, antes de tudo, aos conhecimentos necessários à descoberta 
e ao aperfeiçoamento dos procedimentos materiais da indústria, 
dos procedimentos "espirituais" da adaptação social, da adap­
tação mental, da aprendizagem escolar, etc. 
Portanto, ésta parte de nosso trabalho visa a uma crítica 
da "tecnologia" psicológica, tal como ela se apresenta hoje em 
dia, como a continuadora e a herdeira legítima do antigo beha­
viorismo psicológico, cuja metodologia científica levou a um ol­
vidamento progressivo daquilo que há de humano no homem. 
Em boa parte, nossa cr.ítica se apoiará nos questionamentos 
que L. von Bertalanffy faz da psicologia científica atual, pelo 
menos como ela é praticada nos Estados Unidos da América. 
Este autor, biólogo de renome, e criador da "teoria geral dos 
sistemas", interessa-se muito menos pela crítica especializada 
a teorias concretas da psicologia, do que pela crítica a seus 
pontos ,de vista fundamentais: os efeitos da ''tecnologia" psico­
lógica sobre o homem, os problemas subjacentes à "natureza 
humana" e a seus valores modernos que alteram nossa visão do 
mundo e nossa imagem do homem. 
Com efeito, em sua obra Robots, men and minds, Berta­
lanffy chama nossa atenção para o seguinte fato : tudo parece 
indicar que o mundo técnico-científico em que vivemos esteja 
caminhando e criando, para um futuro não muito distante, 
"uma sociedade cibernética do ócio, que não saberá o que fazer 
consigo mesma". Assim, torna-se cada vez mais problemática, 
em nossos dias, uma ciência do homem e para o homem . . Todas 
as pessoas cultas . poderão facilmente dar-se conta desta ilusão 
cientificista, produto da mitológia científica do passado: a de 
nos proporcionar um "Porto Seguro" social, humano e psico-
138 
lógico, mediante o uso da ciência e de seus produtos tecnoló­
gicos. Diante de tantas frustrações, · as pessoas intelectualmente 
advertidas não podem deixar de exclamar: que desilusão! a ci­
ência não é o caminho seguro que nos leva ao paraíso! Ao 
apresentar-se como a manifestação da hybris humªna, a ousa­
dia científico-tecnológica parece ter desafiado não somente as 
leis divinás ou humanas, mas também a própria natureza do 
homem. Tudo nos leva a crer que esta "natureza" se nos apre­
senta, hoje em dia, como que "esquizofrenizada" em "animal" 
e em "algo" que transcende a animalidade. Duas partes dico­
tomizadas de uma única e mesma realidade! 
Diante disso, quer dizer, dessa "esquizofrenia" do homem 
moderno, a psicologia não pode mais permanecer nesta atitude 
de "inocência" científica, de crença na "imortalidade científi­
ca" de seus fatos descentrados da condição real do homem. 
Talvez a psicologia ainda não se tenha dado conta de que 
sua desgraça epistemológica reside no fato de tratar de um 
objeto (um fato) que fala. Por isso, é de grande importância 
a seguinte pergunta: qual o lugar ocupado pela "psicologia no 
mundo atual? Não teria ela embarcado nessa grande torrente 
técnico-científica que sempre mais conquista e domina o mun­
do e o homem, mas também sempre mais esquecendo-se do 
fenômeno humano? Ao abandonar o estudo da "natureza hu­
mana", para estudar, no homem, apenas seus comportamen­
tos exteriores, até parece que a psicologia a recalcou. O filó­
sofo Martin Heidegger constata que "nenhuma época acumu­
lou, sobre o homem, conhecimentos tão numerosos e tão di­
versos quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar 
seu saber do homem sob uma forma tão pronta e tão facil­
mente acessível. Mas também, nenhuma época soube menos o 
que é o homem". E o psiquiatra L. Biswanger reconhece o 
mesmo fato, ao ce>nstatar que "nós, os homens, quem somos 
e o que somos? Nenhuma época, e muito menos a nossa, pôde 
fornecer resposta, e hoje em dia encontramo-nos diante do 
primeiro balbuciar de uma nova busca desse Nós" (Le rêve et 
l'existence, tradução francesa, 1954 ) . 
A o analisar este problema, Bertalanffy chega à conclusão 
de que as ciências, sobretudo, bem entendido, as ciências hu­
manas, fizeram do homem um verdadeiro autômata. Aliás, 
139 
também Jacques Monod, tanto em O Acaso e a necessidade 
quanto numa recente entrevista, chega à conclusão de que a 
ciência, hoje, aliena o homem. A ciência é extremamente difí­
cil, diz ele; ela se desenvolve com uma força explosiVa; e o 
homem moderno encontra-se cotidianamente em face de técni­
cas oriundas dela que, fundamentalmente, ele não compreen­
de, e que são para ele causa de profunda humilhação. No fun­
do, o homem médio nada sabe do que se passa no reino da 
ciência. :É por causa dessa humilhação diante do poder. da ciên­
cia, que ele se entrega a todo tipo de compensação pseudo­
científica ou aos diversos tipos de magia, de feitiçarias mais ou 
menos rotuladas de científicas. Por outro lado, a ciência obje­
tivrz retira o lugar do homem no universo. Ela faz dele um 
,estrangeiro, quase um acidente no universo. Até parece que, 
de fato, o homem é um absurdo. As teorias científicas provam 
que o homem ocupa apenas um lugar infinitesimal no mundo, 
e que este lugar nem mesmo é necessário, que ele é por acaso, 
que o homem poderia muito bem não estar aí. 
Evidentemente, não podemos responsabilizar a psicologia 
científica por este estado de coisas. No entanto, Bertalanffy 
não hesita em responsabilizar, por esta situação, pelo menos 
em grande parte, aquilo que e!e chama de filosofia "positivista­
mecanicista-comportamentalista", predominante, senão em toda 
a psicologia, pelo menos em boa parte da psicologia científica 
atual, tal como ela é praticada, por exemplo, nos Estados Uni­
dos da América. O autor reconhece um fato que não deixa 
de ser surpreendente: "grande parte da psicologia moderna é 
um escolasticismo estéril e prosopopéico que, provido das vi­
seiras de conceitos preconcebidos ou supersticiosos, não . vê aqui­
lo que é evidente; é um escolasticismo que encobre a triviali­
dade de seus resultados e idéias com uma linguagem absurda 
que em nada se assemelha à habitual, nem recorda as teorias 
científicas normais, e que facilita à sociedade moderna técnicas 
adequadas para ir confundindo a humanidade". 
Assim, parece que não há dúvidas de que a psicologia ci­
entífico-comportamentalista coloca-nos, de fato, diante do se­
guinte dilema: tanto a filosofia quanto a psicologia positivistas 
conseguiram esta insólita façanha,reconhece Bertalanffy, de 
"serem ao mesmo tempo profundamente frívolas e tediosas, 
140 
por causa de sua indiferença relativamente às questões huma­
nas. Os famosos batalhões de ratos, que se movem dentro das 
caixas-problemas de Skinner, têm muito pouco a nos dizer 
acerca da condição humana, de nossas atribulações e dos pro­
blemas de- nosso tempo". Por isso, a questão fundamental,, para 
a psicologia, parece ser a seguinte : poderá ela ser ao mesmo 
tempo humana e científica? Aliás, ao elaborar sua epistemolo­
gia da psicologia, Pierre Gréco também reconhece que o dra­
ma da psicologia atual consiste numa ambigüidade : ao pre­
tender tornar-se ciência, ela praticamente deixa de ser uma dis­
ciplina humana; e ao fazer-se humana, ela deixa de ser cien­
tífica (em Logique et connaissance scientifique) . 
Não resisto, aqui, à tentação de citar uma página de Mi­
. chel Bernard (em A Filosofia das ciências sociais, tradução 
brasileira, Zahar Editores, 1974 ) , sintetizando a obra de D. 
Deleule, La psychologie, mythe scientifique ( 1969 ) . Para De­
leule, a verdadeira questão é: "De onde vem a necessidade que 
tem a psicologia de pretender-se científica?" 
Para responder a tal pergunta e, em primeiro lugar, 
para justificá-Ia, basta-lhe provar e ilustrar esta proposi­
ção : "Toda ciência é antes de tudo ciência da ideologia 
que a precedeu", o que equivale a dizer que toda desco­
berta científica implica, paradoxalmente, ao mesmo tempo 
o uso de temas ou idéias próprio à ideologi� dominante 
da época, e a ruptura com esses temas e idéias, através 
da exigência de uma nova linguagem, pelo advento de 
outro discurso ideologicamente determinado mas que se 
revela adequado ao objeto considerado . . . Ora, não foi 
isso o que ocorreu com "a psicologia, que, longe de rom­
per com a ideologia dominante, traz, ao contrário, a esta 
última, o concurso de seu aparelho técnico e de sua ar­
madura teórica". Melhor ainda, este concurso consiste . . . 
na utilização de técnicas que extraem sua armadura teó­
rica das técnicas de outras ciências (física, química, fi­
siologia) ; transposiçãq ou empréstimo que deixa suspei­
tar sua determinação ideológica que não somente funda 
a psicologia, mas confunde-se com ela. Em resumo, a 
psicologia moderna não passa de uma pseudociência, de 
141 
um mito, de um "discurso vazio", cujo modelo teórico 
é sem dúvida o behaviorismo, mas que se exprime mais 
claramente nos trabalhos psicotécnicos sobre as aptidões 
e a motivação; ou psicossociológicos sobre a sociometria, 
o psicodrama, o sociograma, o training grupo, as técni­
cas de entrevista . . . ; ou psicoterapêuticos sobre a rela­
ção não-diretiva de Rogers. Em _suma, a psicologia é 
uma "ideologia de reserva" que é "reforço sutil da ideo­
logia dominante", na medida em que ela contribui . . . 
para "uma absorção metódica e estofada do negativo até 
sua eliminação sistemática" . . . Em outras palavras, a 
psicologia é solidária de um conservadorismo vigoroso· 
que, no máximo, tolera um reformismo ingênuo : "Mu­
dar o indivíduo para não mudar a ordem social - :mudar 
· o indivíduo na esperança de mudar a ordem social : é en­
tre esses dois pólos que se de�enrola o trabalho do psi­
cólogo". Por mais bem intencionado que pareça ser, o 
psicólogo permanece o servidor e o instrumento de um 
mito, "atualização presente de certa astúcia da razão". 
Por isso, estamos em condições de responder à questão 
colocada no início : a necessidade <:la psicologia de pre­
tender-se científica resulta da exigência ideológica do sis­
tema social que a enquadra e que, por sua vez, ela con­
solida. "A psicologia é necessária porque ela é útil ao 
sistema". 
Por conseguinte, enquanto disciplina científica, a psicolo­
gia encontra-se numa encruzilhada. Há quase cinqüenta anos 
que ela se encontra nessa situação, aliás embaraçosa. Mais de 
quarenta anos de crise é muito tempo para a psicologia ficar 
ainda vascilando entre tantas teorias conflitantes ou mesmo an­
tagônicas, que vão desde a neuroquímica até o existencialismo 
fenomenológico. Com isto se explica? Não seria porque du­
rante todo esse tempo a psicologia se tenha docilmente deixado 
dominar pela influência do empirismo mecanicista-reducionis­
ta? Segundo Bertalanffy, foi essa filosofia positivista, que ele 
chama também de "ideologia", que forjou "a imagem do ho­
mem autômata" que atualmente possuímos. O método utiliza­
do foi o mesmo, embora mais aperfeiçoado, utilizado pelo be-
142. 
haviorismo psicológico dos primeiros tempos. Assim, para a 
interpretação do comportamento humano ou animal (behavior), 
teve um papel decisivo e . fundamental a utilização do esquema 
estímulo-resposta (S � R) , também denominado "doutrina da 
reação primária do organismo psicofisiológico". É claro que 
este · princípio da reação pressupõe o princípio da influência 
ambiental ou do ambientalismo. Por não ser conatural ou ins­
tintivo, o comportamento humano obedece a influxos que são 
exteriores àqueles que determinam o simples organismo vivo. 
Esses influxos externos desempenharam um grande papel 
no desenvolvimento da psicologia científica. Quem primeiro os 
estudou de modo sistemático e metódico foi ' Pavlov, que os 
chamou de "condicionamentos". Skinner, por sua vez, chama-os 
de "condicionamentos instrumentais". Na terminologia freu­
diana, eles recebem o nome de "êxitos vividos" na infância pri­
mitiva. Segundo teorias psicológicas mais recentes, os influxos. 
externos não passam -de "reforços secundários". E foi basean­
do-se nessas concepções que os psicólogos contemporâneos de 
inspiração behaviorista chegaram à conclusão de que tanto a 
aprendizagem elementar, quanto o ensino e a própria vida hu­
mana em geral, podem ser reduzidos a meras reações a con­
dicionamentos. Tais psicólogos não encontram dificuldade em 
mostrar que tais reações ou resposta<S têm sua origem na in­
fância primitiva, com a imposição das normas elementares de 
higiene, pelos pais da criança, determinando aquilo que con­
vém ao convívio social. Todavia, as reações prosseguem no de­
correr do sistema educacional, quer dizer, durante todo o pro­
cesso educativo (ensino) . Um exemplo típico das reações a 
condicionamentos poderá ser encontrado neste método de en­
sino calcado no modelo skinneriano de reforço das reações cor­
retas e de utilização de máquinas de ensinar ou de programar 
o ensiná. Finalmente, numa etapa bem posterior, as reações 
a condicionamentos encontram seu termo no homem adulto, 
já plenamente incorporado ao sistema sociaL Situa-se, aqui, se­
gundo Bertalanffy, o papel fundamental ;desse tipo de psicologia 
que ele critica : condicionar o homem. O homem adulto e in­
tegrado à sociedade, "é condicionado de forma rigorosamente 
científica pelos meios de informação pública de massas, para 
fazer dele um consumidor perfeito, ou seja, um autômata que· 
143' 
responde adequadamente raciocinando de acordo com aquilo 
que foi preceituado pelo complexo industrial-militar-político 
predominante". 
Em termos "intra-específicos" (dentro da mesma espécie) , 
a tendência do "ambientalismo" é reduzir-se a u m igualitaris­
mo; em ter-mos "interespecíficos" (entre espécies distintas) , sua 
tendência natural é confundir-se com uni zoomorfismo do com­
portamento humano. Ora, o problema crucial que se coloca é o 
seguinte : se o comportamento humano é necessariamente "de­
terminado" pelos condicionamentos exteriores, não vemos como 
os seres humanos possam distinguir-se uns dos outros, nem 
muito menos qual a diferença essencial entre o homem e os 
animais. Os defensores deste "igualitarismo-zoomórfico" sus­
tentam que os mesmos princípios devem ser aplicados a todos 
os seres, animais e humanos. O homem não tem nenhum pri.,. 
vilégio neste setor. Participa do mesmo "jogo democrático", 
como se "democracia", neste sentido, fosse um nivelamento 
por baixo. Ademais, segundo ainda os propugnadores desse tipo 
de "democracia" que podemos chamar de "zooantropomorfis­
mo", o princípio dereação a condicionamentos deve pressupor, 
em sua base, toda uma teoria do equilíbrio do comportamento. 
Para eles, o estado natural do organismo é o estado de quie­
tude. Todo estímulo ou excitação exteriores é um elemento 
perturbador do equilíbrio. A reação comportamentalista viria 
restabelecer o equilíbrio perdido (homeostasis = satisfação das 
necessidades ou re1axamento das tensões) . As necessidades se­
riam puramente biológicas. Por isso, o comportamento, quer 
animal quer humano, deveria ser o ponto de apoio para a in­
terpretação e para a orientação do ser humano. Aquilo que é 
peculiar ao homem, é secundário, e acaba por reduzir-se a 
impulsos biológicos e a necessidades primárias. 
A nosso ver, os conceitos elaborados por Piaget de assi­
milação e de acomodação vêm reforçar essa teoria do equilíbrio 
do comportamento. Com efeito, em sua Introduction à l' épisté­
mologie génétique ( 1950) , ele mostra que toda conduta huma­
na é uma adaptação; e que toda adaptação é o restabelecimen­
to de um equilíbrio entre o organismo e o meio. Toda ativi­
dade implica um desequilíbrio momentâneo, e o retorno ao equi­
líbrio se faz por um sentimento provisório de satisfação. Neste 
144 
esquema, Piaget vê na "assimilação" e na "acomodaÇão" os 
dois pólos da adaptação, num sentido ao mesmo tempo bioló­
gico e mental. Todo ser vivo tende a "assimilar" o mundo am­
biente a seu organismo e a seus esquemas de ação e de pensa­
mento. Se a assimilação tende a conservar a forma do organis­
mo, a acomodação intervém relativamente às condições exte­
riores, em função das quais o organismo se modifica. Do ponto 
de vista cognitivo, a assimilação é perceptiva ·e sensório-mo­
triz, o objeto sendo percebido relativamente aos esquemas an­
teriores, isto é, ao conjunto das operações mentais de que o 
sujeito dispõe. Haverá "acomodação", quando os esqu;emas 
anteriores forem transformados para adaptar-se às proprieda­
des de um objeto novo que resiste. Sob seu aspecto afetivo, 
porém, a assimilação confunde-se com o interesse, ao passo 
que a acomodação se confunde com o interesse pelo objeto 
návo. Assim, a adaptação é sempre um equilíbrio. E este é 
atingido quando um objeto, sem resistir demais para ser assi>­
milável, resiste o suficiente para ser "acomodado". Evidente­
mente, esta tendência à assimilação, que se manifesta em dife­
rentes níveis (fisiológico, prático, intelectual) , é ao mesmo 
tempo um fenômeno dinâmico (o sujeito tende a estender sua 
esfera de ação a uma parte sempre mais vasta do meio ambien­
te) e conservador (o sujeito tende a conservar sua estrutura 
interior e tenta impô-la às condições exteriores) . 
Assim, dentro do esquema dirigido pelo princípio da rea­
ção comportamentalista, não vemos como o comportamento 
possa deixar de ser governado por princípios utilitários. Por­
que, em última instância, a razão de ser de todo comporta­
mento não seria outra senão a de conservação do indivíduo 
e a de preservação da sociedade. Deste ponto de vista, o com­
portamento �eria detf!rminado por um princípio meramente eco­
nômico : atingir o alvo preceituado com o mínimo gasto pos­
sível, quer dizer, alcançar um optimum equilíbrio psicossocial 
capaz de responder às exigências externas com reações refor­
çadas. Ademais, neste sentido, é bastante natural que os �o­
delas do comportamento humano sejam buscados nas máqui� 
nas, nos animais, nos indivíduos enfermos e nas crianças de 
tenra idade. Nas máquinas, diz Bertalanffy, "porque a condu­
ta acaba por ser explicada em termos da estrutura aparentemen-
145 
te mecânica do sistema nervoso"; nos animais, devido "à igual­
dade dos princípios do comportamento animal e humano e 
porque podem mais facilmente ser 'manipulados"; enfim, nas 
crianças de tenra idade, "porque, nelas, como nos casos patoló­
gicos, é mais fácil do que nos adultos normais o discernimento 
dos fatores. primários". 
Não se pode negar, no mundo atual, o prestígio de que 
goza a psicologia baseada no princípio das reações reforçadas. 
Neste particular, ninguém duvida de que as teorias psicológicas 
tenham imensas aplicações na vida social, sobretudo através 
das inúmeras "manipulações" possíveis e de fato do comporta­
mento humano. Por outro lado, ninguém pode contestar a efi­
cácia desse sistema "manipulatório" montado sobre bases da 
ciência psicológica. Se não fosse assim, como se explicaria o 
interesse crescente, não somente demonstrado pelos anuncian­
tes publicitários, mas pelos partidos políticos e pelos gover­
nantes, em relação às técnicas psicológicas? O objetivo não 
declarado de tais empreendimentos, utilizando-se do esquema 
estímulo-reação ou do princípio da reação reforçada, consiste, 
de fato, em restringir as possibilidades que o homem possui 
de fazer uma opção livre. Na realidade, esses empreendimentos 
limitam tudo aquilo que, no comportamento humano, não seja 
a expressão de uma atividade "autômata', quer dizer, reflexa, 
condicionada e automatizada: o comportamento explorador e 
criativo, por exemplo. O que importa, no comportamento hu­
mano, é a manutenção do princípio do equilíbrio ou da atenua-:­
ção das tensões. Evidentemente, nada disso é capaz de condu­
zir a um estado beatífico de nirvana. Pelo contrário, trata-se 
de uma atitude capaz de provocar no indivíduo uma série de 
perturbações mentais ou, como diz Bertalanffy, capaz de levá­
lo "a estados psicopáticos ou a uma abulia de interesse que 
acaba, algumas vezes, em neurose existencial e em suicídio. 
Os delinqüentes juvenis que cometem crimes para divertir-se, 
a nova psicopatologia provocada pelo ócio, os cinqüenta por 
cento dos enfermos de nossos manicômios, tudo isso demonstra 
que o esquema do homem autômata não é válido". 
O que pode ser contestado a esse tipo de interpretação, 
é o fato de a maioria esmagadora dos psicólogos atuais ter 
abandonado, conío insatisfatório, o esquema behaviorista do 
146 
estímulo-reação. Vimos, por exemplo, como Paul Fraisse mos­
trou a insuficiência, tanto do esquema S � R quanto do 
esquema S � O � R, para propor à ciência psicológica 
uma démarche intelectual ao mesmo tempo natural e episte­
mologicamente mista de aliança entre aquilo que é imediata e 
efetivamente observável e aquilo que, conhecido de outra for­
ma (fatores de "personalidade") , vem situar-se como princípio 
intermediário, tanto de explicação quanto de encadeamento da 
conexão entre estímulo e resposta. Evidentemente, a psicolo­
gia científica atual não aceita mais os dogmas do behavioris­
mo nascente. Tampouco admite que Watson, Hull ou mesmo 
Skinner tenham descob�rto a grande "fórmula laplaceana da 
conduta". Até mesmo o reduto da psicologia científica, a teo­
ria da aprendizagem, passa hoje pelo crivo da crítica, pois os 
condicionamentos instrumentais de Skinner revelaram sua fra­
queza para constituir um ensino verdadeiramente "significati­
vo" num homem dotado de funções simbólicas. O grande lin­
güista N. Chomsky, por exemplo, demonstrou categoricamente 
que a aprendizagem espontânea da linguagem é manifestamente 
irredutível aos modelos skinnerianos de ensino programado às 
línguas (Language, 35, 1959 ) . ,, 
Não obstante, não se pode negar que a psicologia que 
predomina atualmente, esta psicologia utilizada pelos psicólo­
gos para fins determinados por não-psicólogos, ainda segue em 
larga escala o esquema behaviorista do estímu[o .. reação. Se­
gundo Bertalanffy, é esta psicologia que se impõe, não enquan­
to "ciência do homem", mas enquanto "filosofia-comportamen­
talista-comercialista". O que ela procura fazer, na verdade, é 
tirar conclusõ� acerca do comportamento humano "normal" 
a partir dos comportamentos de "ratos torturados" ou de gatos 
submetidos ao "universo surrealista" das caixas de Thomdike. 
E isto é possível porque, s�gundo o testemunho do próprio 
Skinner ( Theories in Contgmporary Psychology, 1963 ) , não 
há nenhuma diferença essencial (sic) entre gatos, ratos, pom­
bos, macacos e o homem, senão no fato de o homem ainda não 
ter sido bemestudado, devido aos preconceitos oriundos da 
psicologia introspeccionista. Bertalanffy não compreende como 
Skinner possa ter afirmado tamanha tolice, ignorando o que é 
evidente: os seres vivos são biologicamente diferentes como 
147 
indivíduos, raças e espécies; inclusive, o comportamento no 
interior de uma espécie é também distinto. Só não percebe 
isso quem está preso a preconceitos injustificáveis, a idéias 
preconcebidas baseadas numa teoria ingênua sobre o igualita­
rismo dos seres vivos. Ora, esta atitude revela um profundo 
falseamento q.a realidade, devido, sobretudo, à carência de 
uma teoria consistente em psico!ogia. Não se pode mais argu­
mentar que a psicologia seja uma ciência "nova". Tampouco 
se pode invocar que os psicólogos behavioristas tenham inven­
tado um novo "método científico". Tudo. isso é falso. :E: preci­
so que se reconheça que o defeito fundamental dessa psicologia 
provém da "penúria de noções e do efeito assustador das idéias 
preconcebidas, que não pode ser compensado através da in­
vestigação acerca da cadeia de montagem". 
Portanto, quaisquer que sejam as alterações "metodológi­
cas" ou simplesmente "técnicas" introduzidas no esquema be­
haviorista estímulo-reação, o fato é que ele ainda predomina, 
em larga escala, pelo menos no ensino da psicologia acadêmi­
ca atual. Para nos convencermos disso, basta darmos uma 
olhada na bibliografia mais recente. Evidentemente, como já 
frisamos, muitos psicólogos dizem que foram intercalados, en­
tre o estímulo e a reação, vários mecanismos hipotéticos, va­
riantes intermediárias e fatores auxiliares. Todavia, tais meca­
nismos não introduziram nenhuma mudança substancial nos 
conceitos básicos. Na verdade, o que está faltando à psicologia 
acadêmica? No dizer de Bertalanffy, aquilo de que necessita­
mos, não somente na psicologia, tal como ela é ainda ensinada 
hoje em dia, mas sobretudo na vida moderna, "manipulada 
pelos psicólogos propulsores do automatismo nos meios de in­
formação, nos anúncios e na política, não são novos mecanis­
mos hipotéticos que expliquem melhor as peculiaridades do 
comportamento do rato de laboratório; o que precisamos é de 
um novo conceito do homem". 
Portanto, para a psicologia, muito mais importante do que 
suas sutilezas acadêmicas, é o fato de ela constituir hoje uma 
força social de primeira ordem. Enquanto tal, a psicologia 
modela para o homem sua própria imagem e "governa" a so­
ciedade. E a imagem que ela modela é a do homem-autômato, 
dQ bom em como máquina que pode ser programada, assim des-
148 
crita por Bertalanffy : "todas essas máquinas, idênticas aos au­
tomóveis saídos da cadeia de montagem; o equilíbrio ou a co­
modidade como desideratum; o comportamento como uma o�­
ração comercial de gasto mínimo e lucro máximo : eis a ex­
press�o perfeita da filosofia da sociedade comercial. Estímulo­
reação, ingressos-saídas, produtor-consumidor, tudo isso cor­
responde ao mesmo conceito expresso em termos distintos. As 
idéias fundamentais da psicologia convencional são idênticas 
às da "filosofia pecuniária" do mercantilismo. Na filosofia do 
anunciante existe um "receptáculo cerebral" - a caixa-negra 
dos psicólogos - que deve receber fras�s publicitárias com 
exclusãó das demais; na "lógica pecuniária", -a realidade e a 
verdade são substitujdas pelos desejos sonhados e pelo condi­
cionamento conseguido pela arte do anunciante; e as pessoas 
são manipuladas como os gigantescos ratos de Skinner". 
Nesta lógica pecuniária, vamos deparar-nos com um "ho­
mem pav!oviano". Com efeito, a publicidade e a propaganda 
apóiam-se nas pulsões mais fundamentais do ser humano, não 
para liberá-las, mas para utilizá-las e desviá-las para seus pró­
prios fins. Trata-se de tornar o homem vítima de suas próprias 
pulsões inconscientes. Assim, pela publicidade e pela propagan­
da, o homem é condicionado, como um animal de laboratório, 
a reagir a situações con;dicionad:as , cujas condições lhe 
são ocultadas. Como para o animal, emprega-se certa "lin­
guagem" podendo agir sobre o indivíduo: utilização de um 
sistema de signos de tal forma que possam ser imediata­
mente compreendidos e desencadeiem a açã() desejada. Em 
suma, trata-se de transferir, para a ordem humana, aquilo que 
o experimentaçior realiza em . seu laboratório q1Jando_ çondkiQna 
um animal. 
O desenvolvimento atual oda psicologia deve-se, sobretudo, 
além de seu aspecto 'terapêutico, ' às possibilidades práticas qlie 
ela coloca à disposição de atividades diversas. A publicidade 
e a propaganda são casos privilegiados. Mas não são os únicos. 
Sem falarmos de sua importância para a . orientação educacio­
nal ou profissional, a psicologia encontra outros terrenos de 
aplicação, onde sua eficácia é incontestável : a organização das 
empresas, dos Jazeres, de programas de televisão, as comuni­
caçpes, o comércio em geral, etc. E esta ampliação de seu cam-
149 
po de aplicação deve-se à descoberta da eficácia de seus mé­
todos. Evidentemente, este princípio da eficácia, embora não 
possa ser contestado, levou à negligência das condições de 
rigor científico. Se Freud afirmava a necessidade de um cons­
tante "ir e vir" entre a teoria e a prática, parece que a psi­
cologia se esqueceu bastante da teoria em proveito da prática. 
Os conceitos utilizados, na maioria das vezes tomados de em­
préstimo, são geralmente aproximativos e não criticados. A isto 
se acrescenta uma ausência de crítica concernente ao sentido 
da prática psicológica. Sem falarmos da recusa de considerar 
as conseqüências sociais e econômicas dessa prática. 
:É certo que a psicologia se equipou dos meios técnicos 
necessários para abrir-se a domínios novos e mais amplos. O 
abandono da querela entre psicologia e sociologia permitiu­
lhes uma colaboração frutuosa. As técnicas de entrevista, de 
análise, de depoimento permitiram à psicologia cobrir domí­
nios que até então lhe eram vedados. A essas técnicas, deve-se 
acrescentar a utilização sistemática de enquetes, das estatísticas 
e dos métodos experimentais. Bem entendido, não se pode es­
quecer todos os instrumentos de medida ou de observação que 
a tecnologia moderna colocou à disposição da psicologia. Todos 
esses meios permitiram-lhe dispor de uma enorme massa de 
informações. Uma das conseqüências desta abundância de ma­
terial informativo é a diversificação cada vez mais acentuada 
das pesquisas e das práticas psicológicas e, correlativamente, 
de corpos de especialistas. :É claro que este estado de coisas 
não apresenta inconvenientes sérios. Contudo, pelo fato de estar 
ligado ao imperativo de uma eficácia da prática psicológica, 
coloca dois problemas: a) em primeiro lugar, parece parado­
xal que uma ciência cujos conceitos são discutíveis, seja, in­
contestavelmente, de uma eficácia real : como se explica a in­
tervenção eficaz aliando-se a uma fraqueza teórica?; b) em se­
gundo lugar, mesmo supondo-se este problema resolvido, po­
demos perguntar se a prática concreta da psicologia, apesar da 
incerteza de seus fundamentos científicos, não constitui o fato 
mais favorável ao reconhecimento de seu valor e de sua au­
tenticidade. Este segundo aspecto, na medida em que ele enga­
ja o futuro da psicologia, deve permanecer, pelo menos por 
150 
enquanto, no nível da problematização. Daremos aqui algumas 
indicações, mas apenas sobre o primeiro problema. 
Como a psicologia, tendo fundamentos conceituais defi­
cientes, pode ser _tão eficaz?. Todo o estudo das atitudes e das 
motivações leva-nos a perceber que a psicologia se funda, antes 
de tudo, sobre a observação dos comportamentos, das condutas 
dos indivíduos. Desta observação dos comportamentos e das 
condutas, ela extrai certos elementos, julgados semelhantes em 
todos os indivíduos. Somente depois, a pesqui�a das motivações 
extrai de •SUa observação que, numa situação dada ( sociológi-
. ca, econômica, cultural), os indivíduos compram ou não este 
ou aquele produto. Então, ela falará de um comportamento 
de compra ou de um comportamentode recusa do produto por 
determinada população. Tal comportamento deve ter uma razão 
ou uma causa. É esta causa que se trata de determinar, de 
modo a tornar possível uma intervenção capaz de modificar 
o fenômeno. 
O que se pode notar é que, se esta análise, que deliberada­
mente esqueceu o indivíduo enquanto tal, é eficaz, é porque 
ela visa a manipular· aquilo que, nos indivíduos, é menos as­
sumido. A psicologiá permite uma intervenção real sobre os 
indivíduos, porque ela se contenta em procurar saber como uma 
coação dissimulada pode agir de modo máximo. É neste sen­
tido que podemos dizer que ela não engaja a descoberta e o 
encontro de um real: ela é intervencionista. Não se trata de 
negar que a pesquisa das motivações, por exemplo, seja capaz 
de utilizar dados teóricos coerentes: é o caso da psicologia 
psicanalítica. O problema consiste em dizer que tais pesquisas 
procedem sempre por generalização, quer dizer, por abstração, 
fazendo apelo à sua eficácia. Houve um tempo em que se con­
siderava as pauladas e as chicotadas como meios eficazes para 
curar os loucos e outros "marginais". Este método só era eficaz, 
evidentemente, para aqueles sobre os quais ele era aplicado. 
Talvez a. eficácia da psicologia das atitudes e das motivações 
�eja da mesma ordem! 
··Esta rápida análise de alguns dos efeitos de uma psicolo­
gia comandada por uma "lógica pecuniária" já pode indicar a 
necessidade que temos de tomar consciência da força e dos 
limites da psicologia manipuladora e da "engenharia" comporta-
151 
mentalista. Se manipularmos certos animais, segundo os proce­
dimentos de Pavlov, de Thorndike ou de Skinner, obteremos 
os resultados descritos por esses autores. Quer dizer: se esco­
lhe�os, na relação comportamentalista, as reações que podem 
ser dominadas com um castigo ou uma recompensa, reduzimos 
os animais a máquinas que reagem a estímulos autômatas. O 
mesmo pode ser dito · do ser humano, sobretudo, so� o efeito 
de uma campanha publicitária cientificamente bem dirigida. A 
psicologia atual dispõe de poderosos recursos para converter os 
seres humanos em autômatas infra-humanos. Tudo depende de 
uma questão de técnica psicológica! Contudo, ao se fazer isso, 
o mínimo que se pode dizer é que se desumaniza o ser huma­
no, da mesma forma como se "desratiza" o rato. O rato é inse­
rido num "universo surrealista", onde é eliminado tudo o que 
lhe possa interessar em seu meio natural. Não se sabe o que se 
passa com o rato nas caixas de Skinner. Ele é escolhido para 
o laboratório por ser um animal "estupidamente dócil". Quanto 
ao ser humano, também levado a um mundo surrealista pela 
arte de persuadir, ele é "docilizado" pelos mecanismos e téc­
nicas psicológicos que o tornam, por exemplo, um "compra­
dor" autômata de quase tudo. O paralelismo entre os consumi­
dores condicionados e os cães condicionados de Pavlov é bas­
tante conhecido dos homens de negócio. 
2. "TECNOLOGIA" SEM O HOMEM 
Talvez se apliquem à psicologia científica e experimental 
de hoje, verdadeira "engenharia" comportamentalista, no dizer 
de Bertalanffy, essas palavras proferidas por Nietzsche contra 
os "cientificistas" de sua época: "Vocês são seres frios, que se 
sentem tão encouraçados contra a paixão � a quimera; bem que 
vocês gostariam que sua doutrina se tornasse um adorno e um 
Qbjeto de orgulho! Vocês se rotulam de realistas e dão a en­
tender que o mundo é verdadeiramente feito tal como ele lhes 
aparece" (Le gai savoir) . Por sua vez, Michel Foucault parece 
questionar os psicó!ogos quando, diante da pretensão de se 
tornarem científicas, certas disciplinas se perdem no "discur­
so", esquecendo-se de "trabalhar" : "Diante de tantas ignorân­
cias e de tantas interrogações que permanecem em suspenso, 
152 
talvez fosse necessário parar : está fixado aí o fim do discurso! 
e talyez o reinício do trabalho!" (Les mots et les choses) . 
Não se trata, aqui, de negar o valor nem muito menos a 
utilidade social da psicologia. Trata-se simplesmente de ques­
tioná-la. En_quanto "ciência" do subjetivo, ela nasceu com 
Freud. E parece que tenha morrido ao mesmo tempo que ele, 
pois visa a dar a seu objeto a função das coisas, esquecendo­
se do homem. Enquanto prática social, a significação real da 
psicologia dyve ser procurada nas funções que ela exerce. Não 
se pode negar sua crescente manipulação econômica e políti­
ca, seu sentido repressivo no nível das instituições psiquiátri­
cas ou de reeducação, sua absorção pelas ciências médico­
biológicas e seu papel de simples "figurante" no nível do en­
sino e da aprendizagem. Parece que ela padece de um vício 
de origem e de crescimento desordenado. E isto, apesar da abun­
dância de publicações, de pesquisas, do "papel" que desempe­
nha nas estruturas sociais e do prestígio ambíguo de que goza 
no mundo atual. São incontestáveis as realizações dessa disci­
plina ainda não centenária. Nascida da marginalidade, isto é, 
da pesquisa clínica, a psicologia, enquanto ciência do subjeti­
vo, teve um desenvolvimento surpreendente e conquistou novos 
meios. Podemos até dizer que nenhum problema concernente ao 
homem foi deixado por ela na sombra, mesmo que alguns pro­
blemas tenham sido mal explorados. De ciência oculta, a psico­
logia passou ao estado de ciência reconhecida, conquistando seu 
direito de cidadania. No entanto, ela corre o risco de ser ab­
sorvida ou "recuperada" por aqueles que dela se utilizam. Neste 
sentido, ela já revela sinais de "cansaço", pois é utilizada, não 
tanto em função de suas exigências próprias, mas a partir das 
necessidades que tem a sociedade atual de resolver alguns de 
set:Ls conflitos e contradições. Por exemplo, ao restituir a pa­
lavra ao indivíduo "alienado", ela corre o risco de perder a 
palavra, de tornar-se muda e de receber suas formas e determi­
nações de exigências nada psicológicas. É o caso de nos per­
guntarmos se ela não se teria esquecido . de que s�a palavra é li­
bertadora. Talvez ela corra o risco de deixar-se afogar, em 
sua prática atual, pela facilidade de seus resultados. 
Se olharmos objetivamente para as realizações da psico­
logia atual, talvez possamos constatar facilmente que sua pri-
153 
meira preocupação, tal como a determinam a sociedade .e suas 
instituições, seja a de adaptar e integrar sempre mais o ho- , 
mem à sociedade : adaptação ao trabalho ( estimulante da pro­
dução, da venda e da publicidade) ; a.daptação e integração fí­
sica, psicológica, espiritual do homem ao seu meio (do louco 
ao hospital, do mutilado em vista da reeducação, da criança ao 
programa e à instituição escolares) , etc. E na medida em que 
planifica humanamente o meio, a psicologia está em vias de 
tornar-se um anexo ou um apêndice das ciências do meio am­
biente, um capítulo da ecologia. Nesta perspectiva ecológica, 
seu êxito é inegável, pois dispõe de meios técnicos para seu 
trabalho de integração e de adaptação. Se ela tem necessidade 
de adaptar o homem ao meio e o meio ao homem, é porque 
este está desadaptado relativamente às estruturas tecnológicas, 
científicas, econômicas e culturais da sociedade atual. Ela viria 
preencher este vazio entre o homem e seu meio, praticamente 
desempenhando o papel da moral clássica. Talvez seja por isso 
que Canguilhem reconheça que, de fato, "muitos trabalhos de 
psicologia nos dão a impressão de que misturam a uma filosofia 
sem rigor uma ética sem exigência e uma medicina sem con­
trnle. Filosofia sem rigor, porque eclética, sob pretexto de ob­
jetividade; ética sem exigência, porque associa experiências eto­
lógicas sem crítica : a do educador, a do confessor, a do chefe, 
a do juiz, etc. ; medicina sem controle, pois dos três tipos de 
doenças mais ininteligíveis e menos curáveis (doenças da pele, 
doenças dos nervos e doenças mentais) o estudo e o tratamento 
dessas duas últimas sempre forneceram à psicologia observa­
ções e hipóteses" (Études d'histoire et de philosophie des sci­
ences) . 
Outra função muito importante da psicologia pode· . ser de­nominada de cultural ou ideológica. Trata-se de uma função de 
explicação. Seu objetivo é apresentar uma imagem do homem 
e do conhecimento que se desenvolve graças às pesquisas reais, 
mas, sobretudo, graças à ' vulgarização ,dessas pesquisas. Assim 
como o indivíduo da Idade Média tinha certa compreensão de 
si mesmo, graças ao "modelo" explicativo que lhe propunha 
a Igreja, da mesma forma o indivíduo de hoje tem uma imagem 
de si mesmo à qual a psicologia não é estranha. E assim como 
hoje o homem comum não é cientificamente iniciado na psico-
154 
logia, também o homem comum não era, na Idade Média, ini­
ciado .nas sutilezas teológicas. Em ambos os casos, a imagem 
do homem e das possibilidades de seu conhecimento responde 
a uma necessidade de adaptação. do comportamento dos indi­
víduos às necessidades de um sistema sócio-cultural determi­
nado. 
Certamente, a psicologia desempenha outras funções so­
ciais no mundo de hoje, tais como a função terapêutica, a 
função reguladora e redutora de conflitos, etc. Mas voltemos a 
seu papel de substituto da "moral" clássica. Como sabemos, 
esta aprisionava o homem. No entanto, apesar de "aliená-lo", 
a moral dava-lhe a ilusão de ser espiritualmente livre, pois ele 
podia interiorizar sua condição e acreditava piamente na pos­
sibilidade de melhorá-Ia. Todavia, o declínio do humanismo 
clássico e da moral tradicional não possibilita ao homem de 
hoje considerar-se como "pura" liberdade. Tudo indica que as 
estruturas sociais, econômicas e técnicas conduziram a liber­
dade à condição de uma palavra vazia de sentido. Sobretudo 
se levarmos em conta nosso mundo, às voltas com a "modela­
gem" e com· a "manipulação" do homem. As estruturas da sub­
jetividade humana foram profundamente atingidas. O homem 
não pode mais refugiar-se em sua subjetividade, baluarte. __ de 
sua liberdade, como nesta "bela interioridade" de que falaya 
Hegel. Esta função, outrora desempenhada pela moral e pela 
crença_ na liberdade, parece em vias de ser assumida pelas_dên-
�cias humanas, também chamadas de "praxeológicas", especial­
mente pela psicologia. Com efeito, a psicologia está mais _perto 
dessa crença no homem e na liberdade do que as demais ciên­
cias. O refluxo das religiões e das filosofias liberaram um es­
paço epistemológico e cultural no qual veio refugiar-se a psi­
cologia, como guardiã do homem nas estruturas sociais. Não 
somente como guardiã, mas. como salvaguarda do humano, lá 
onde ele se encontra ameaçado: na fábrica, pelo trabalho; no 
hospital, pela doença mental; na escola, pela pedagogia; no co­
mércio, pela venda; nas grisões soviéticas, peia salvaguarda da 
pureza ideológica. Daí _ a psicologia poder apresentar-se como 
o último baluarte do humano no homem. 
Ora, ao participar desse .Qumanismo legado pelo mundo 
greco-romano, a psicologia pretende realizar uma "vocação 
155 
humanitária", tratando de restituir ao homem os meios de ele 
recuperar sua dignidade, seu desabrochamento e sua liberdade. 
Sem dúvida, esta intenção seria sumamente louvável se os re­
sultados não fossem inversos àqueles que são obtidos na práti­
ca. Porque, ao que nos parece, adaptar o homem à sociedade, 
não é uma exigência fundamental da psicologia. Enquanto ciên­
cia do subjetivo, e não do homem em geral, produto da cultu­
ra; enquanto ciência da libertação humana, e não da integração 
social do homem; enquanto ciência da palavra redescoberta, e 
não adaptada e modelada pelas estruturas sócio-econômicas; 
enquanto ciência do inconsciente, e não da racionalidade técni­
ca_ e tecnocrática; enfim, enquanto ciência da criatividade, e não 
das mentalidades etiquetadas, planificadas e estereotipadas, a 
psicologia não pode reduzir-se a um conjunto bem orquestrado 
e "cientificizado" de r{!ceitas e de práticas que adaptem o ho­
mem, impedindo-o de falar autenticamente nas estruturas sócio­
político-econômico-culturais. Ao invés de ser esta "ciência" que 
possibilite ao homem redescobrir o sentido de sua palavra, não 
raras vezes a psicologia atual contribui para aliená-lo num dis­
curso que não emana dele, mas de seu meio ambiente. 
Ora, se a psicologia atual, em sua prática, não consegue 
libertar a palavra do homem, de uma vez que ela é "recupera­
da" pelos imperativos econômicos e sociais, talvez tenhamos 
sérias razões para reconhecer, neste simples fato, os limites de 
seu campo de investigação. Sem falarmos de seu modo de rea­
lização. Todos sabemos quanto a maneira de a psicologia ser 
praticada, em nossos dias, perdeu sua autodeterminação : seu 
modo de realização é determinado por condições extrapsicoló­
gicas, conseqüentemente extracientíficas. Assim, ela recebe seu 
estatuto, seus objetivos, sua razão de ser, não mais dos inte­
resses internos ao domínio psicológico, mas das necessidades 
que tem a sociedade de fazer apelo aos métodos e . técnicas 
psicológicos para resolver, pelo menos em parte, alguns de 
seus conflitos e de suas contradições. Portantó, a psicologia 
cada vez mais recebe de fora suas normas, seus meios, sua efi­
cácia e praticamente tudo o que constitui sua realidade de 
ciência. Freud já havia tentado utilizar a psicanálise para a 
compreensão dos fenômenos culturais. Posteriormente, os psi­
cólogos sociais - (K. Lewin, Moreno) tentaram fornecer à psi-
156 
cologia métodos e técnicas para a análise e a compreensão des­
ses fenômenos. No entanto, diferentemente da economia ou da 
sociologia, a psicologia permanece incapaz de compreender 
esses fenômenos. Talvez porque não tenha conseguido encon­
trar os meios adequados de· investigar tudo o que se afasta da 
subjetividade e da linguagem; ou, então, porque não tenha 
conseguido tomar o necessário recuo teórico para fundar sua 
démarche como ciência social; ou, ainda, porque o subjetivo 
interfere muito pouco no plano das modificações sociais; en­
fim, porque seus conceitos fundamentais e seus instrumentos 
de análise são por demais "impotentes" para permitir-lhe a 
apreensão do real social. 
:E: possível que todas essas razões expliquem o fracasso 
da psicologia para analisar o homem em sociedade. Muito 
mais voltada para as formas de ação típicas do século XIX, 
parece que a psicologia se sente incapaz de integrar e de pro­
mover, por si mesma, o extraordinário desenvolvimento ex­
perimentado por outras ciências (economia, informática, as 
diversas formas de tecnologia) que atuam de modo decisivo so­
bre o homem em sociedade. Aquilo que se pede à psicologia 
párece relevar, quer da utopia, quer de uma prática social lem­
brando certos "serviços sociais . e caritativos" para remendar as 
falhas do sistema. Dizer que a psicologia presta serviço social, 
é reconhecer que ela se situa politicamente, que ela aparece 
como o prolongamento direto de uma política social, mesmo 
que suas formas de ação se revistam das mais modernas formas 
de linguagem e de técnicas psicológicas. Quando um psicólogo, 
por exemplo, avalia os quocientes intelectuais ( Q.I. ) , quando 
ele testa o pessoal de uma empresa, quando consulta crianças 
para descobrir seu "retrato" psicológico, quando se põe a ser­
viço de uma agência de publicidade ou de sondagem de opinião, 
o que é qm�, de fato, ele está fazendo? Não estaria na depen­
dência do :Poder econômico e de seus interesses, para determi­
nar o lugar do homem na sociedade? 
Ao colaborar eficazmente para integrar e adaptar o indi­
víduo à sociedade, não aparece a psicologia como um álibi 
ou a boa consciência dos conflitos e contradições sociais? Não 
é raro o psicólogo viver numa ambigüidade cheia de conse­
qüências. Ele pode refugiar-se por detrás de sua ciência e de 
157 
seus aparelhos técnicos, ou ancorar-se em seu saber especiali­
zado, a fim de recusar-se a perceber o papel real que lhe é 
atribuído atualmente pela sociedade. O que esta lhe pede, antes 
de .tudo, é que faça seleção profissional, mantenha contatos 
clínicos, realize testes, faça sondagens de opinião, faça reci­
clagem de pessoal, analise as estruturas de comunicação nas 
empresas,etc. Teria ele consciência desse papel? Por ser re­
presentante do humano no seio das estruturas, ele pode ser 
levado a ter a boa consciência de ser o homem que aprimora 
a condição de seus semelhantes. Contudo, não seria o humano 
apenas um refúgio? Nem sempre o psicólogo está consciente, 
ou finge ignorar o lugar e o papel reais . que desempenha. na 
sociedade. Aliás, trata-se de papel e de lugar, pois quase sem· 
pre suas reivindicações dizem respeito a salários, a estatutos 
profissionais e a melhor integração nas instituições. Esta preq­
cupação profissional, evidentemente, é legítima, de uma vez que 
as faculdades universitárias "formam" mais psicólogos do que 
realmente é necessário em função dos empregos existentes. 
Aliás, podemos até duvidar se os psicólogos recém-formados 
estejam plenamente conscientes das exigências fundamentais de 
sua ciência. E não raro acusam de "idealistas" ou de "inte­
lectuais" aqueles que pensam que o exercício do metiê de psi­
cólogo está em contradição com a prática atual. Uma vez que 
se tornam empíricos ("cientistas" ) e estão sobrecarregados 
com problemas financeiros e com seu estatuto profissional, mui­
tos psicólogos pensam que o ideal da profissão é atualmente 
realizado nos Estados Unidos da América. E quanto mais ti­
verem seu estatuto profissional reconhecido, menos capazes se­
rão de questionar sua prática, pois recebem seu estatuto de 
uma sociedade que espera deles que adaptem e integrem cada 
vez mais os indivíduos a seu meio; que espera deles, ainda, que 
reduzam os conflitos existentes. Sobre este particular, façamos 
algumas observações. 
a) O papel'!regulador do psicólogo é duplo : de um lado, 
trata-se de uma regulação econômica ou pública: por exem­
plo, a que se exerce através da publicidade e da p�opaganda; 
do outro, trata-se de uma regulação de ordem social ou cultu­
ral : por exemplo, a que se exerce sob o nome de "recupera-
158 
ção", por um sistema social ou determinada cultura, dos ele­
mentos que deles se afastam, se desviam ou tentam denunciá­
los. Assim, o papel social do psicólogo é, antes de tudo, o de 
reduzir toda forma de conflito podendo intervir entre uma es­
trutura e os elementos que nela se inserem. E qualquer que 
seja a estrutura na qual se insere a prática psicológica ( estru­
turas de informação, hospital, escola, etc. ) , podem surgir entre 
uma norma social (econômica, cultural ou outra) e o compor­
tamento dos indivíduos pertencendo ao sistema que a norma 
protege. O exemplo menos favorável é o da publicidade: o 
papel do psicólogo é o de reduzir, em proveito da publicidade, 
um conflito existente entre um comportamento de compra e 
uma norma . de consumo. Até parece que a psicologia, como 
redutora de conflitos, tende sempre a se exercer em beneficio 
da norma que impõe um comportamento : o desvio da norma 
não tem razão de ser, motivo pelo qual a psicologia aparece 
para "reajustar" os "desviados". Neste sentido, ela é uma prá­
tica humanística, mas no sentido em que oculta aos outros e 
a si mesma a função de "amortecedor social" que ela é cha­
mada a desempenhar. 
b) A segunda observação diz respeito à "imagem social" 
do psicólogo, bem como ao problema de seu recrutamento e de 
sua seleção. Com efeito, à questão que coloca o problema de 
sua identidade, será que o psicólogo poderá responder por um 
"Eu" sujeito? O que o levou a ser psicólogo? Consegue ele 
realizar seu desejo inicial de ser psicólogo? O que ele faz de 
sua "angústia" fundadora? Será que ele não a oculta, da mesma 
forma que faz a criança, quando se sente desamparada por 
sua mãe? Ora, é durante o complexo de Édipo que a criança 
se separa dessa atitude "fusional" com sua mãe para chegar 
a uma relação trinitária onde o pai e a linguagem vêm media­
tizar seu desejo de se tomar autônoma. O psicólogo não cor­
reria o risco de negar sua angústia por uma identificação fu­
sional à instituição? 'Concretamente, a identidade do psicólogo, 
descoberta na identificação à instituição . ou administração, é 
uma identidade social que o impede quase sempre de manifes­
tar sua palavra: ao retomar o discurso do social, ele impede 
o surgimento, na pessoa que encontra, de toda palavra que 
viria questionar esse discurso. Sua ação será definida por um 
159 
ato de adaptação a uma realidade securizante para o próprio 
psicólogo. Ele tenta afastar toda palavra provocadora e diver­
gente da norma. A história da psicanálise pode ilustrar o caso 
da psicologia. 
Desde sua origem, o movimento psicanalítico esbarrou com 
séri·as dificuldades : entre elas, a da formação de seus psicana­
listas. Os critérios utilizados para o recrutamento e a seleção 
revelam-nos a imagem que os membros das sociedades psica­
nalíticas se fazem de sua prática. Com efeito, antes de exerce­
rem a psicanálise, devem submeter-se a uma "psicanálise di­
dática". Através desta, eles recebem uma certa concepção do 
homem e da psicanálise. Trata-se de uma seleção que não exis­
tia no tempo de Freud, mas que hoje exige ainda cartas de 
recomendação, a realização de alguns testes ou entrevistas. De 
fato, a psicanálise não obedece a critérios rigorosamente cien­
tíficos para o recrutamento de seus candidatos chamados de 
"normais" : não muito neuróticos, apresentando úm "ego for­
te", etc. Ainda aqui, há uma adaptação às normas daqueles 
que detêm o poder. A psicanálise como procura de um ser 
sobre si mesmo, como busca de sua própria verdade, é substi.,. 
tuíd� por uma psicanálise que permanece nas camadas super­
fiçiais da personalidade : a psicanálise do "ego" como instância 
a_daptadora ao real. Neste sentido, pelo menos nos Estados Uni­
dos da América, ela é uma etapa necessária para um status so­
cial, como constata M. Mannoni (Le psychiatre, son "fou" et 
la psychanalyse) . Em outros termos, ela é recuperada ao nível 
do funcionamento do sistema social, pois permite aos indiví­
duos adaptarem-se aos diferentes meios de vida: "Nesta situa­
ção, a psicanálise autêntica é chamada a desaparecer. Ela só 
deverá sobreviver ao preço de uma não-integração ao aparelho 
administrativo do Estado. E é vivendo à margem de todo reco­
nhecimento, num lugar onde ela será maldita como á peste, 
que conseguirá redeséobrir o verdor inicial da era freudiana 
e escapar à era da menopausa a que foi arrastada atualmente". 
Ao deixar-se metabolizar pelas instituições e administrações, ' 
não perdeu ela sua inspiração e seu sentido originais? Em 
nossos dias, autores como Lacan tentam restituir à "psicanáli­
se pervertida" sua inspiração freudiana original. Esta atitude 
provoca reações por vezes apaixonadas. Aliás, o próprio Fr,eud 
160 
sofreu muitas resistências : ao propor uma psicanálise capaz de 
perrilitir aó sujeito saber quem ele é, em sua verdade pessoal, 
independentemente das respostas já dadas pela mentalidade de 
determinada sociedade, Freud foi censurado pela maioria dos 
médicos, psiquiatras e psicólogos de sua época. Ele foi um 
"psicanalista marginal". 
c) Em sua prática efetiva, não estaria a psicologia de­
sempenhando um papel semelhante ao da psicanálise? Ela se 
coloca a serviço de instituições, às quais traz sua caução. Esta­
belece regras de normalidade ou de anormalidade para deter­
minada instituição. Serve para classificar retardados e para sua 
avaliação quantitativa. A procura de um estatuto, por parte do 
psicólogo, corre o risco de oficializar o encontro fecundo entre 
instituição e psicologia normativo-criadora. No dizer de M. 
Mannoni, "está em curso de fabricação uma categoria de psi­
coterapeutas de apoio em certas faculdades . . . Promove-se, aí, 
os "terapeutas" de apoio . . . Trata-se de criar quadros dóceis, 
que se absterão de questionar as estruturas atuais das insti­
tuições". Aqueles que tentam questionar as estruturas implan­
tadas, são vitimas de sanções. E a psicologia não quer mais 
correr o risco de "incomodar" ninguém: ela prefere adaptar, 
normalizar e realizar um consenso de grupo; aquele que quiser 
se expressar ou exprimir sua "alienação",será convencido de 
sua falta de adaptação ao real. Mas será que é o psicólogo que 
possui o senso do real? Ou será que a dificuldade do mercado 
de trabalho já não é suficiente para justificar o compromisso? 
O sistema de contratação parece impedir o psicólogo de ques­
tionar seu estatuto de testador. :f: por isso que, como observa 
ainda Mannoni, "ele prega sua própria resignação e a de seu 
cansulente . . . Os psicólogos estão bastante consCientes do con­
dicionamento de que são o objeto e do escândàlo que constitui 
o caráter superado de sua formação universitária . . . Os raros 
assistentes de, faculdades que se distinguem por sua · competên­
cia real (competência que ultrapassa, de longe, a . deste ou da-: 
quele titular) , vêem-se acusados de demagogia e estão ameaça­
dos de serem barrados em seu progresso". Evidentemente, os 
psicólogos recebem, em sua formação, ensinamentos técniCos 
bem avançados. O que se pergunta .é se .. eles aprendem a pensar 
e a refletir sobre sua prática e sobre suas técnicas; se estão 
161 
em condições de ouvir o outro e de possibilitar a libertação de 
sua palavra. Assim, o problema não está em adquirir uma prá­
tica que se acrescente a uma teoria. A formação do psicólogo 
deveria levá-lo a se perguntar pelas razões que o levaram a ser 
psicólogo e pelo seu desejo de que o outro venha a aceder à 
sua verdade, para não continuar sendo, o que em boa parte 
já é, um pequeno tecnocrata, colocando entre parênteses o 
fato de o homem ser um indivíduo presente ao mundo, uma 
subjetividade em conquista permanente de seu mundo e de sua 
personalidade. 
d) Toda psicologia que não leve em conta o homem 
como presença ao mundo, como subjetividade, como um exis­
tente cujo sentido precisa ser manifestado, só pode ignorar o 
homem. Evidentemente, este projeto está sempre ameaçado pela 
multiplicidade e pela diversidade das formas de presença hu­
mana. Não é certo que caiba à psicologia unificar e totalizar a 
imagem do homem. Há tantas psicologias quantas são as pers­
pectivas sobre o homem: se ele é doente, temos uma psicologia 
psicopatológica; se é criança, uma psicologia genética; se é 
um sujeito de relações, uma psicologia social; se é uma vida 
inconsciente, a psicanálise, etc. Como se pode unificar a psi­
cologia a partir de pontos de vista tão múltiplos e tão dife­
rentes sobre o homem? Não se pode unificar arbitrária e abs­
tratamente os diferentes pontos de vista, como pretendeu certa 
psicologia geral que tentou sistematizar, ordenando-os numa 
série, os diferentes comportamentos humanos. Trata-se muito 
mais de aprofundar e de apreender aqqilo que, nesses diferen­
tes pontos de vista, manifesta-se como o sentido do ato pelo 
qual o homem se convoca a si mesmo e o mundo em seu pro­
jeto . .E: por isso que a unidade da psicologia só poderá ser com­
preendida a partir desse lugar existencial em que todos os atos 
do homem possam comunicar-se entre si para afirmarem-se 
como presença ao mundo. Também é por isso que os diversos 
pontos de vista sobre o homem, apesar de permanecerem di­
ferentes em sua estrutura e em seu modo de aparecer, são, de 
fato, pontos de vista em comunicação constante, pois todos eles 
surgem da presença do homem ao mundo. Donde a psicologl.a 
não poder ignorar esta relação do homem com o mundo e con-
162 
sigo mesmo. Porque a presença surge de uma comunicação e 
de um encontro homem-mundo. Estudar esta relação, sua gê­
nese, seus modos de realização e sua finitude, é uma das ta­
refas essenciais da psicologia: revelar, para o homem, o que 
significa "existir'. Esta tarefa de compreender o homem vai 
exigir, ao mesmo tempo, a posse e a destruição de um saber: 
eis uma modalidade do discurso psicológico. Ora, só há dis­
curso a partir do momento em que aquilo que é dito é negado 
para ser ultrapassado, para visar a algo que ainda não foi 
di1Q.. Donde a necessidade, para a psicologia, de renunciar 
àquilo que ela é ou àquilo que está sendo feito dela, para 
criar a possibilidade de renascer e de novamente poder falar 
do homem. Talvez pudesse ser dito da psícologia atual o que 
Rabelais já dizia da ciência em geral : "Ciência sem consciência 
não passa de uma ruína da alma". 
163 
CONCLUSÃO 
Chegamos ao fim de nosso estudo. Mas este "fim" não 
significa "conclusão", pois não pretende dar uma resposta clara 
e definitiva à questão epistemológica inicial : como a psicologia 
pôde aceder ao estatuto de cientificidade? É sempre difícil e 
perigoso propor conclusões para um estudo que não quis ser 
mais do que uma introdução. Porque toda pretensão de con­
cluir, de determinar uma posição ou de prever o futuro, escapa 
à competência da interrogação epistemológica. Quisemos ape­
nas compreender a situação presente da psicologia através de 
uma análise de sua situação passada, isto é, de algumas das 
condições que a levaram a afirmar-se na autodeterminação cie� 
tífica. Nosso intuito foi o de reunir alguns elementos possibili­
tando o acesso da psicologia à era da cientificidade, para indi­
car as tarefas que se nos oferecem no momento. É neste sen­
tido que precisamos saber parar, ou ter a coragem de confes­
sar nossos limites, ou então, perguntar: o que resta ao fim desse 
estudo? A que pretendemos introduzir a pesquisa? Se é verdade 
que o difícil não é resolver um problema, mas saber colocá­
lo bem, nosso estudo terá atingido parte de seu objetivo se 
tiver conseguido colocar o problema da "cientificidade" da 
psicologia e de suas conseqüências para a interrogação episte­
mológica. 
Portanto, à questão: o que resta no fim do presente · estu­
do?, daremos apenas algumas indicações. Primeiramente, es­
peramos ter introduzido um novo estudo sobre a epistemologia 
da psicologia. Em segundo lugar, talvez tenhamos colaborado 
para desvincular a prática psicológica de certas imagens de­
formadoras que tanto filósofos quanto cientistas de formação 
empirista fizeram ou ainda fazem dela. Em terceiro lugar, es-
167 
peramos · ter mostrado que o estatuto epistemológico de cien­
tificidade da psicologia ainda permanece bastante incerto, jus­
tamente porque ela ainda se encontra dividida entre seus vín­
culos filosóficos e seu comércio direto com as ciências. Ela 
não pode subtrair-se a toda contaminação filosófica ou ideo­
lógicã enquanto os psicólogos cientistas permanecerem em de­
sacordo sobre os problemas de ordem extracientífica nos quais 
suas pesquisas os engajam. Ademais, contra essa mentalidade 
segundo a qual a psicologia, para ser ciência, deve fundar-se 
única e exclusivamente sobre o espírito de objetividade calcado 
sobre os métodos das ciências naturais, tentamos também mos­
trar que a epistemologia nos obriga a adotar uma atitude de 
vigilância que nos permite submeter a prática psicológica (suas 
operações e seus conceitos) a uma retificação metódica. Eis 
porque a diversidade dos métodos graças aos quais os psicólo­
gos acedem ao conhecimento do homem contrasta com a uni­
dade da realidade humana que esses métodos se vêem obii­
g�dos a fragmentar. Na medida em que os pontos de vista ado­
tados eliminam as fronteiras com os campos vizinhos de pes­
quisa, os métodos se revelam mais fecundos e a pesquisa mais 
legítima. Houve, portanto, de nossa parte, certa audácia em 
confrontar os métodos psicológicos de conhecimento do fato 
humano com uma abordagem até certo ponto filosófica. To­
mando este partido, não ignoramos que · nosso esforço devia 
ser justificável de um ponto de vista novo. Este ponto de vista 
engendra novamente um método que torna caduca a vontade 
de respeitar as regras metodológicas que sempre se impuseram 
às disciplln�s com pretensões à cientificidade. Donde a neces­
sid�e não somente de rever os métodos de fazer psicologia 
científica ou de ensiná-la, mas também de preparar inova­
dores nas pesquisas psicológicas, mais do que espíritos con­
formistas e submissos à inércia das situações adquiridas. 
Não vemos como a ciência psicológica possa constituir-se 
excluindo de seu campo de investigaçãoa subjetividade do 
homem, a não ser que se construa como ciência, mas sem nada 
poder dizer sobre a realidade humana. Se a ciência psicológi­
ca, para se afirmar, vê-se obrigada a recorrer a um saber cien­
tífico que se desenrola num domínio onde a verdade só pode 
falar do lado das coisas, não é de estranhar que, par� obter a 
168 
verdade do sujeito que interroga as coisas, seja necessário, antes� 
transformá-lo numa coisa que responde. G. Canguilhem critica 
a pretensão da psicologia de atribuir a seu objeto a função 
das coisas, como se o homem fosse um instrumento ou um 
lugar fixo num feixe de relações com o meio biológico e com 
seus semelhantes. Com todo o seu equipamento experimental e 
técnico, a psicologia está em condições de fornecer um sujeito 
a uma "política racional". E esta política se torna "racional"� 
ao garantir à psicologia os meios técnicos de seu progresso. 
Donde a eficácia de suas práticas. Estas são devidas à apa­
relhagem técnica e metodológica capaz de assegurar o caráter 
de "utensílio" de seu objeto. Assim, o sujeito da ciência psico­
lógica poderá ser manipulado pela própria ciência. Neste par­
ticular, o advento da psicanálise freudiana veio marcar um 
modo diferente de situar esse sujeito, esse "ego" como função 
de desconhecimento e de miragem, parte do imaginário que, 
ao voltar-se sobre o seu objeto (subjectum) , não o proscreve 
do domínio da ciência. Freud foi o primeiro psicólogo a sentir 
claramente a necessidade de se introduzir na psicologia a di­
mensão de um silêncio: silêncio da psicologia científico-experi­
mental quanto aos enunciados que a fundamentam; silêncio· 
também da psicologia social que, ao dissimular uma filosofia, 
cala-se sem nada nos dizer sobre os laços que as unem. E é 
neste silêncio, ignorado enquanto silêncio, que a psicologia cien­
tífica se situa como discurso. Talvez uma das tarefas da psico­
logia fosse a de descobrir ou redescobrir, não tanto os con­
teúdos manifestos de seu discurso, mas seus conteúdos silen­
ciados e as razões que engendraram esse silêncio. E esta tarefa 
revela-se tanto mais necessária, quanto mais imperioso se tor­
na, para o psicólogo, converter-se ou reconverter-se em alguém 
capaz de desvelar o sentido da palavra do homem. 
169 
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FRRI 104.823/01 - CGC 33.529.124 - Rio RJ

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