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LANÇAMENTOS DA IMAGO EDITORA Dicionário Crítico de Psicanálise, de Charles Rycroft Introdução à Obra de Melanie Klein, de Hanna Segal O Brincar e a Realidade, de D. W. Winnicott Conferências Brasileiras 1- São Paulo 1973, de W. R. Bion Autismo e Psicose Infantil, de Frances Tustin A Possessão da Mente, de William Sargant Sexualidade e Agressividade na Maturação: Novas Direções, de H. Sydney Klein ( org) Narrativa da Análise de Uma Criança, de Mela�ie Klein T@íbhoteta jf reullíana INTRODUÇÃO À EPISUMOlOCIA DA PSICOlOCI4 Com a presente lnt1·odução à Epis temologia da Psicologia, o autor, pro fessor de epistemologia e de filosofia das ciências na PU C do Ri.1J de J a neiro, recém-doutorado na França com uma tese sobt·e A Epistemologia das Relações lntm·disciplinares nas Ciências do Homem, faz uma análise histórico-crítica do "fundo de saber", isto é do "solo" ou "horizonte'' epis temolÓgicos sobre o qual se constitui a psicologia, enquanto essa disciplina sempre reivindicou o estatuto de cien tificidade. Assim, o que pretende o autor é mostrar as dorninâncias histó ricas que levaram a psicologia a ace der ao estatuto de saber objetivo. Ao mesmo tempo, porém, faz uma crítica aos critérios de cientificidade adota dos por essa disciplina. A psicobgia tentou encontrar numa eficácia d-is cutível a justificação de seu earáter objetivo. Eficácia discutível, porque mal fundada, seu estatuto estando ba seado mais num "empirismo comp5- sito para fins de ensino". Portanto, trata-se, de fato, de uma epistemologia histórica da psk·olo gia: sem referência à crítica episte mológica, o discurso psicológico seria uma meditação sobre o vazio; e sem relação à história, a epistemologia seria uma réplica inútil da psicologia. A análise do conceito de psicologia, coloca em questão a existência do psicólogo: se este não sabe quem ele é, não saberá o que está fazendo; E aquilo que o psicólogo procura fazer, é uma ciência. Mas ciência de quê? Ao converter-se em ciência, a psico logia se esquece do homem. E ao se tornar humana, corre o risco de não ser aceita corno ciência. Talvez sua "desgraça" consista em ter que es tudar um "objeto" que é um "sujeito", e um sujf�ito que fala! O autor mostra que a psicologia científica e experimental do séc.ulo XIX, com suas fabulosas conquistas técnicas, está em vias de nos brindar, como "modelo humano", com um sim ples robô mais ou menos aperfeiçoa do. Não nega em absoluto o valor e a utilidade social da psicologia. Ten ta apenas questioná-la. Ela corre o risco de ser absorvida por aqueles que dela se utilizam e explorant: é utilizada muitas vezes, não mais em função de suas ex1gencias próprias, mas das necessidades sociais ideolo gicamente condicionadas. Talvez seja por isso que, "de muitos trabalhos psicológicos, podemos ter a impres são de que misturam, a uma filoso fia sem rigor, uma ética sem exi gência e uma medicina sem con trole" ( Canguilhem). O que as instituições esperam da psicologia, é que ela adapte e integre cada vez mais o indivíduo à socie dade: adaptação ao trabalho, esti mulante da produção e da venda, da publicidade; adaptação e integração física, psicológica e espiritual do in divíduo ao seu meio, do louco ao hospital, do mutilado em vista da re educação, da criança ao programa. etc. E na medida em que planifica o meio humano, corre o risco de se tor nar um anexo ou um apêndice das ciências do meio ambiente, um capí tulo da ecologia. 01·a, nessa perspec tiva ecológica, seu êxito é inegável, pois dispõe de recursos técnicos para readaptar o indivíduo às estruturas tecnológicas, científicas, econômicas e culturais de nossa sociedade. Não se aplicariam aos psicólogos essas palavras de Nietzsche: "Vocês são seres frios, que se sentem tão en couraçados contra a paixão e a qui mera; bem que gostariam que sua doutrina se tornasse um adorno e um objeto de orgulho! . Vocês se rotulam de realistas e dão a entender que o mundo é verdadeiramente feito tal co mo ele lhes aparece"? Talvez não fos se exagero dizel·, com Althusser, que certas evidências que servem de fun damlmtos a numerosas disciplinas das técnicas humanas de adaptação, nada mais são do que "oomodidades teóri cas para seus autores e comodidades práticas pa�·a sua clientela". É por isso que o filósofo tem o direito de colocar à psicologia a seguinte ques tão: diga-me para onde você tende, para que eu saiba o que você é. E Canguilhem diz que o filósofo pode ainda dirigir-se ao psicólogo sob a forma de um conselho de orientação: "quando deixamos a Sorbonne peia rua Saint-Jacques, podemos subir ou descer; se subimos, aproximamo-nos do Panthéon, que é o conservatório de alguns homens ilustres, mas, se descemos, dirigimo-nos certamente para o Quartel de Policia". JAYME SAL,OM1.0 SUMÁRIO Introdução 7 I. CONSTITUIÇÃO DAS CI:f:NCIAS HUMANAS 13 1. O Problema da Cientificidade 15 2. Impacto d a Ciência Moderna 20 3. A Emergência das Ciências Humanas 26 li. A EMERGÊNCIA DA PSICOLOGIA CIENT1FICA 37 1 . Especialidade da Psicologia Experimental · 39 2. O Clima Positivista de seu Nascimento 45 3 . O Estatuto Científico 54 UI. BEHA VIORISMO E INTROSPECÇÃO 63 1. A Psicologia Introspectiva 65 2. Reflexologia e Behaviorismo 68 3 . De Comte ao Behaviorismo 76 IV. BEHAVIORISMO EM QUESTÃO 9 1 1 . A Psicologia Fenomenológica 96 2. A Psicologia Psicanalítica 101 3 . A Objetividade Psicológica 114 V. A "PSICOLOGIA DOS PSICóLOGOS" 1 35 1. A "Tecnologid' Psicológica 1 37 2. "Tecnologia" sem o Homem 152 Conclusão 1 65 Bibliografia Sumária 171 INTRODUÇÃO A EPISTF;MOLOGIA DA PSlCOLOGIA Copirraite (c) 1975 de Hilton Japiassu Editoração Coordenador: PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA Revisão: FRANCISCO DE ASSIS PEREIRA Capa: LEON ALGAMIS 1975 Direitos adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA., Av. N. Sra. de Copacabana, 330, 109 andar, tel.: 255-2715, Rio de Janeiro. Impresso no Brasil Printed in Brazil Composto e impresso nas oficinas da Empresa Grá11ca O CRUZEIRO S. A. Rua do Livramento, 189/203-ZC-14 - FRRI 104.823j01 - CGC 33.529.124 - RJ. HILTON JAPIASSÜ IntrodUção à Epistemologia da Psicologia .. · Série Logoteca Direção de JAYME SALOMÃO ·Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Membro da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro. Membro da Sociedade de Psicoterapia Analitica de Grupo do Rio de Janeiro. lMAGO EDITORA LTDA. Rio de Janeiro INTRODUÇÃO Falar, hoje em dia, de "ciências humanas" e, conseqüen temente, da psicologia, senão enquanto é uma ciência humana, pelo menos enquanto estuda certos fenômenos humanos, já é engajar-se num espaço polêmico. Porque, sob o título de "ciên..: cias hutmanas", podem alinhar-se disciplinas que freqüente mente nada têm de comum, quando não se excluem explícita ou implicitamente. Por outro lado, não são poucos os cientistas que ainda contestam a essas disciplinas a "honra" e o estatuto de "ciência". Evidentemente, em nome de uma concepção pre estabelecida daquilo que deve ser considerado como propria mente científico. Melhor ainda, em nome de uma "crença" DJ\ quilo que parece já ter sido prefixado aprioristicamente como devendo ser "ciência". Nosso esforço, ao estudar as vias de acesso da psicologia ao estatuto de cientificidade, dentro do quadro geral . das ciências humanas, não é o de conciliar ou de reconciliar. Pelo contrário, trata-se de, na medida do possível, colocar em ordem e justificar. Na verdade, um "discurso" so bre as ciências humanas é um discurso em que a teoria se faz . estrãtégia. Não resta dúvida que tal discurso implica que se faça, previamente, uma demarcação nítida entre as técnicas (políticas, econômicas, comerciais, ideológicas, etc.) ampla mente utilizadas sob o rótulo de ciências empíricas do homem, e os trabalhos propriamente teóricos que, contrariamente ao que comumente se pensa, ainda hesitam emreconhecer uma vali dade epistemológica e, conseqüentemente, científica, ao que se convencionou chamar de "ciências humanas". O mínimo que se pode dizer é que essa expressão se presta a discussões. Se ela se impôs, foi por uma simples questão de oportunidade: recebeu a consagração das instituições universitárias. 7 É claro que a _expressão "ciências humanas" não tem uma significação lógica. Designamos, com ela, o conjunto de todas as disciplinas comumente agrupadas sob esse nome: economia, sociologia, psicologia, antropologia, geografia, etnologta, lin güística, história, pedagogia, etc. A esta enumeração, poderia ser acrescentada uma definição descritiva, sem atribuir-lhe qual quer validade epistemológica. Neste caso, as ciências humanas seriam as disciplinas que têm por objeto de investigação as diversas atividades humanas, enquanto estas implicam relações dos.homens entre si e com as coisas, bem como as obras, as instituições e as relações que daí resultam. Uma definição mais rigorosa suporia toda uma sistematização, o que nos levaria a uma teoria idas ciências humanas, semelhante ou distinta das teorias atualmente elaboradas. Para boa parte dos trabalhos teóricos sobre essas discipli nas, a expressão "ciências humanas" significa, não um domínio qualquer (o homem) apresentando-se à investigação científi ca, mas algo bastante distinto daquilo que se apresenta sob o rótulo de "ciência". Através daquilo que tais trabalhos podem ensinar sobre o inconsciente, sobre a linguagem ou sobre a his tória, podemos facilmente notar que eles subtraem à ciência a extraterritorialidade e a intemporalidade nas quais ela viveu durante séculos. Assim, muito mais do que "o homem", ou mesmo, do que "o Sujeito", é o próprio conceito de "ciência" que está em crise. Na verdade, as ciências humanas elaboram uma crítica da ciência. E elas o fazem, na medida em que não são propriamente empíricas nem tampouco dogmáticas, mas históricas. Se elas não correspondem ao que se convencionou chamar de "ciência", nem por isso podem ser relegadas ao domínio da literatura ou da poesia. Uma ciência se define, antes de tudo, por uma problemática própria e por um campo específico de investigação, sobre os quais se aplica um mé todo rigoroso. Mas isto não quer dizer que não passe por cri ses ou que não tenha necessidade de passar por reorganizações mais ou menos profundas. Aliás, a reflexão epistemológica nas ce sempre a propósito das crises ou impasses desta ou daquela ciência. E essas crises resultam de uma lacuna dos métodos anteriores, que deverão ser ultrapassados graças à· invenção de novos métodos. 8 A epistemologia atual, ao constatar uma pluralidade de discursos científicos, coloca em questão o ideal de "a ciência". Por outro lado, constata a falência do arquétipo matemático como modelo exclusivo. Uma síntese das ciências, do tipo da síntese newtoniana, não somente é hoje impossível, como não deve ser lamentada. O objeto que a expressão "a ciência" de signava, não existe mais. O ideal de "a ciência" (no sentido em que se fala de um ideal do ego) parece ter-nos levado a um lu gar de verdade que o nome "Deus" servia para des�gnar: não havia ciência e verdade senão nele e para ele. Não é por acaso que, sob diversas capas humanísticas, o irrompimento da ciência moderna foi o sintoma de uma mutação ideológica que, entre seus aspectos essenciais, comportou a crítica da religião. Assim, na anedota do processo de Galileu, podemos constatar que, por detrás da oposição ciência-religião, é preciso ler o momen to em que a çiência se desliga deste "Ideal" que a colocava sop a tutela religiosa. Uma vez liberado da exclusão de Deus, colocado fora das referências científicas, o homem, por um dup:o desloca mento, vai tentar definir-se: . de um lado, enquanto objeto de ciência (homem se opondo a natureza), do outro, enquanto sujeito da ciência (homem se substituindo a Deus). Daí uma oscilação, constitutiva das ciências humanas; entre uma teoria do sujeito da ciência e uma tentativa de construção do objeto antropológico. O resultado foi o surgimento de alguns proble mas de definição: se toda ciência funciona dentro de um se tor, cuja definição garante a pertinência de suas proposições, quais as fronteiras das ciências humanas? Três proposições en tram em jogo: a) a primeira, considerando o progresso técni co como uma afirmação do homem e uma "humanização" da natureza, reduz o objeto das ciências humanas à natureza hu manizada: dissolução do natural no homem; b) a segunda, con siderando o progresso científico em si mesmo, dissolve o hu mano no natural; c) a terceira, enfim, considerando menos o objeto dà ciência do que o fato científico em si mesmo, cons tata que ele é um produto da história humana. Tudo parece indicar que, ainda hoje, é a rivalidade des sas três atitudes que melhor define o campo de investigação das ciências humanas. Estas, na verdade, agrupam pesquisas 9 bastante heterogêneas: o que é que nos permite incluir num mesmo conjunto disciplinas tão estranhas e distantes quanto a geografia e a lingüística? Ou, então, disciplinas exclusivas uma da outra, como a psicologia e a psicanálise? Em contra partida, pode-se constatar, nessas disciplinas, certas "concor rências" ou recobrim�ntos indefinidos: há uma geografia das línguas e uma língua da geografia; há uma psicanálise da psi cologia e uma psicologia do psicanalista. É por isso que Mi chel Foucault diz 'que todas as ciências humanas se entrela çam e podem ser estudadas umas pelas outras; suas fronteiras desaparecem; disciplinas intermediárias e mistas multiplicam se todo dia, a ponto de o objeto próprio das ciências humanas ter-se praticamente dissolvido (Les mots et les choses). De sorte que poderíamos fazer dessa "confusão", dessa indecisão, o traço característico das ciências humanas em nossos dias. É levando em conta esta problemática, e dentro desta perspectiva, que iremos analisar a Psicologia, enquanto disci plina "humana" com pretensões científicas. Trata-se de um tra balho que pode ser incluído no domínio mais vasto da epis temologia das ciências humanas. Num setor mais estrito, dize mos que se trata da epistemologia da psicologia. Com efeito, aquilo pelo que se interessa a epistemologia da psicologia, aquilo de que ela se ocupa, em conformidade com aquilo a que ela visa, consiste em procurar saber como se formam, como se desenvolvem, como se articulam ou funcionam os conheci mentos: a) tais como eles são elaborados pelos "especialistas" (psicólogos), enquanto estes são ao mesmo tempo sujeitos e objetos de conhecimento, inseridos num determinado contex to sócio-cultural; b) e na medida em que a psicologia deve dis tinguir-se das ciências naturais por um modo próprio de atin gir a objetividade científica. Cabe, aqui, uma pergunta: em nome de que, alguém que não é psicólogo, pode interrogar-se sobre a psicologia? Em outras palavras, em nome de que, posso eu interessar-me pela psicologia, não tendo a competência do psicólogo? Evidente mente, jamais conseguimos justificar inteiramente o partis pris de um livro. No entanto, aquele que se dedica à filosofia ou a esta sua vertente, que é a epistemologia, não pode deixar de fornecer suas razões. Em primeiro lugar, creio que a epis- 10 temologia está estreitamente ligada à história das ciências. E que ela se confunde em grande parte, no caso da psicologia, com a história dos conceitos e das teorias dessa disciplina. E no dizer de G. Canguilhem (fitudes d'histoire et de philo sophie des sciences, 1970), há três razões para se fazer a his tória de uma disciplina: a) uma histórica, extrínseca à ciência; b) outra científica, realizada pelos cientistas enquanto são pes quisadores; c) a terceira, enfim, propriamente filosófica. Esta se justifica da seguinte forma: "sem referência a uma episte mologia, uma teoria do conhecimento seria uma meditação so bre o vazio". E ao interrogar-sesobre "o que é a psicologia?", Cangui lhem reconhece que se trata de uma questão embaraçosa para a psicologia, pois a "questão de sua essência ou, mais modes tamente, de seu conceito, coloca em questão a própria existên cia do psicólogo", na medida em que, não sabendo responder exatamente quem ele é, torna-se-lhe extremamente difícil jus tificar aquilo que faz. É por isso que vai buscar, numa "eficá cia sempre discutível, a justificação de sua importância de es pecia1ista". E esta "eficácia" continuará sendo "discutível" en quanto o psicólogo, na busca de um estatuto de cientificidade para sua disciplina, não ultrapassar certo "empirismo compó sito, literalmente codificado para fins de ensino". A conclusão de CanguiJhem é a de que compete ao filósofo colocar à psi cologia a seguinte questão: "diga-me para onde tendes, para que eu saiba o que tu és. Mas o filósofo pode ainda dirigir-se ao psicólogo sob a forma - uma só vez não cria hábito - de um conselho de orientação: quando deixamos a Sorbonne pela rua Saint-Jacques, podemos subir ou descer;. se subimos, apro ximamo-nos do Panthéon, que é o Conservatório de alguns ho mens iJustres; se descemos, porém, dirigimo-nos seguramente para o Quartel de Polícia". É neste sentido que irão siruar-se nossas interrogações so bre a psicologia, sobre seu processo histórico de ascensão ao estatuto de cientificidade. Evidentemente, como já frisei, só posso questionar a psicologia graças a certa incompetência nessa matéria. Contudo, ao questioná-la, através da epistemo logia histórica, não o farei na qualidade de especialista que se interroga sobre sua própria prática. Isto pode comportar certo 11 risco de desqualificação de nossa interrogação. Mas estou cons ciente desse risco. E estou convencido de que preciso corrê-lo, em nome exatamente daquilo que pretendo compreender e ques tionar. Em primeiro lugar, tentarei mostrar o processo de cons tituição das ciências humanas em geral. Em seguida, mostra rei a emergência da psicologia científica. Numa terceira parte, tentarei explicitar as condições de autodeterminação científica por parte da psicologia. O quarto capítulo será dedicado a al guns questionamentos ao behaviorismo psicológico. Finalmente, farei alguns questionamentos à psicologia behaviorista ainda vigente, cujas bases teóriéas me parecem bastante frágeis, mas que é chamada, pela cultura atual, a desempenhar um papel relevante e a dar sistematicamente sua contribuição para re solver tecnicamente muitos dos conflitos gerados pela acelera ção brutal das mutações sociais. Assistimos hoje a uma espé cie de "psicologização galopante" de nossa cultura. Sem che garmos ao extremo de dizer, como L. Althusser, que a psico logia· atual é uma dessas disciplinas que se constituem em téc nicas humanas de adaptação, "meras comodidades teóricas para seus autores, e comodidades práticas para sua cliente!a", não podemos deixar de reconhecer que ela nasceu, se desenvolveu e ainda opera sob a influência das transformações científicas, técnicas, econômicas e políticas da sociedade industrial. Fou cault diz que ela é "ema prática generalizada da perícia". 12 I CONSTITUIÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS ''··· 1. 0 PROBLEMA DA CIENTIFICIDADE Não são poucos os epistemólogos que, ainda hoje, contes tam às ciências humanas seu título de ciência. Michel Foucault (Les mots et les choses, capítulo X) , por exemplo, articula essa contestação de modo bastante argumentado. Ele acha in teiramente desnecessário considerar as "ciências humanas" como sendo falsas ciências. Elas não são, em absoluto, ciên cias. Nada têm a ver com aquilo que pode ser denominado "ciência". A configuração que define a positividade daquilo que hoje chamamos de "ciências humanas", e que as enraíza na episteme moderna ( episteme é esse campo onde, num tem po preciso, determinam-se os a prioris históricos: as condi ções de possibilidade do saber e os princípios de sua ordenação), coloca-as fora do estatuto de cientificidade. Se quisermos sa ber a razão pela qual as ciências humanas receberam histori camente esse título, basta estarmos atentos a este simples fato: "compete à definição arqueológica de seu enraizamento fazer apelo e acolher a transferência de modelos tomados de emprés timo às ciências". Evidentemente, esta posição de Foucault é função da teo ria que sua "arqueologia do saber" o conduziu a formular sobre as ciências humanas. Trata-se de uma teoria que pode ser con dens8lda em sua descrição do "triedro dos saberes" e na distin ção que ela estabelece entre as ciências da Vida (especial mente humana), do Trabalho e da Linguagem (essas seriam as únicas ciências verdadeiramente científicas) e as assim chamadas "ciências humanas". Estas, por sua vez, desenvol vem-se em estreita relação com as três ciências propriamente 15 ditas, numa percepção epistemológica bastante düerente, pois está sempre marcada pela intervenção da componente filosó fica. Para compreendermos por que as ciências humanas não são ciências, precisamos entender o que Foucau1t quer dizer por "existência" ou "inexistência" do homem. Trata-se apenas' do conceito de homem? Ou da multidão dos homens concretos que encontramos diariamente vivendo, agindo, criando e exis tindo? Em sua significação moderna, o "existir" aparece como uma "palavra". É assim que Rousseau, traduzindo o "penso, logo existo" de Descartes, afirma que "o mais útil e menos avançado de todos os conhecimentos humanos" é o conheci mento do homem. E a razão é que os livros científicos só nos ensinam a ver os homens tais como eles se fizeram. Ora, tais como eles se fizeram, pela cultura, não "existem" mais, apenas aparecem". Assim, o homem estudado pela ciência não passa de um fenômeno humano, fenômeno este que se tornou presa de uma linguagem. Como poderia o homem voltar a existir no inte rior da cultura? Foi de certa desconfiança em relação ao desen volvimento da cultura que nasceu o problema da "existência" do homem. Nietzche foi o primeiro filósofo que, ao atacar vio lentamente a ciência, a moral e a metafísica de seu tempo, chegou à conclusão de que o homem estava morrendo. E hoje, é Foucault quem afirma: "O homem é uma invenção cuja data recente a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo". No entanto, sempre se falou do homem, muito embora Foucault ache que uma coisa é certa: "o homem não é o mais antigo dos problemas nem o mais constante que se colocou ao saber humano". Nem tampouco pode ser o acesso à objetivi dade daquilo que, durante muito tempo, esteve entregue ao domínio das crenças e das filosofias. Talvez fosse mais correto dizer que o homem é a onipotência do saber, e que compete à arqueologia determinar suas disposições fundamentais. Este saber do homem está contido no círculo do saber religioso, filosófico, científico e arqueológico. É neste sentido que se pode comprender o êxito de Foucault: Q� homens atuais estão esmagados pela cultura e por seus resultados. Ea _ciência, de que tanto nos orgulhamos hoje em dia, mais parece um acervo 16 de conhecimentos acumulados nos livros do que çonhecimen to.s. que, de fato, possuímos em nós e que possamos compreen der. A lingüística e a etnografia nos ensinam que estamos sub metidos a leis que nos escapam. A psicanálise, por sua vez, mostra-nos que somos aquilo que ignoramos ser. Presos entre a superlinguagem da ciência e a sublinguagem da comunicação de massas, não sabemos mais o que significa verdadeiramente falar. Aqueles que pretendem saber utilizam um poder anôni mo para conduzir-nos, contra nossa vontade, a um lugar que nos foi como que preestabelecido por um destino inelutável. Tudo indica que é a civilização técnico-científica que elabora, sob medida, as condições "ideais" de nossa existência. O es forço do homem reduz-se a uma tentativa de adaptar-se a essas condições. Neste sentido, o termo "humanismo'] passa a sig nificar ainstauração de um reino de felicidades anunciado e programado pelos tecnocratas. Neste reino, o homem estaria desembaraçado deste enfadonho trabalho de pensar. No dizer de G. Bachelard, esse reino corresponde a um tipo de socie dade em que somos livres para fazer tudo, mas onde não há nada para se fazer; em que somos livres para pensar, mas onde não há nada sobre o que pensar. Ela saberá em nosso lugar. Estamos dormindo, em estado de sono antropológico. E este sono antropológico, de que Foucault pretende libertar-:-nos, são o psicologismo e o sociologismo atuais. Entretanto, do ponto de vista em que nos situamos aqui, toma-se bastante prematuro e difícil querermos instaurar uma teoria epistemológica das ciências humanas, concluindo que elas são ou não ciências. Por outro lado, ainda é cedo para discutirmos outras teorias a esse respeito. Talvez seja mais interessante dirigirmo-nos a essas disciplinas que se conside ram a si mesmas como ciências, a fim de lhes perguntar, em nome de que, ou de que critérios elas podem afirmar-se como ciências; em que elas se baseiam para se proporem a funciona rem como disciplinas científicas; o que elas entetlidem por ciência; como se. aproximam ou se distanciam de um conceito de ciência. E é neste sentido que iremos perguntar à psicologia que nos diga seus critérios de cientificidade,· que nos mostre seu funcionamento e nos revele a maneira como se identifica com a concepção _ de ciência ou como dela se afasta. 17 A este respeito, podemos começar por coisas simples, mas que têm a vantagem de serem razoavelmente evidentes. Não negligençiaremos, no entanto, as idéias provenientes da recon sideração prévia da relação cultural do conjunto das ciências humanas� ou daquilo que as anuncia em determinado momento histórico, com a totalidade mais ou menos comum do saber de nossa época. :e claro que, na época moderna clássica, fo ram as matemáticas e a física que forneceram à inteligência os modelos de cientificidade. Também foram elas que, ao mesmo tempo, forneceram o solo epistemológico relativamente ao qual se julgava o caráter mais ou menos científico das diversas prá ticas do conhecimento. Por outro lado, podemos facilmente constatar que, pelo menos no início, todos os estudos chamados a se constituírem progressivamente em "ciências humanas", foram estudos que tomaram por objeto, de modo mais ou menos espontâneo ou "ingênuo", determinada ordem de realidades ou de fatos hu manos: a percepção das cores ou das intensidades luminosas; ou, ainda, as taxas de mortalidade em determinada popula ção. E tentava-se introduzir, de modo mais ou menos eficaz, nessa ordem de realidades, conforme os casos, "algo de cientí fico". Ora, neste nível de espontaneidade, os estudos empreen didos, concernentes ao ser e aos fatos humanos, preocuparam se muito pouco em estabelecer a diferença que encontramos, por exemplo, no "triedro dos saberes"· de Foucault: entre as ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem. (que se encon tram dispostas no segundo eixo do triedro) e as disciplinas que seriam as ciências humanas propriamente ditas. · Por isso, comecemos nossa análise tentando esclarecer a relação exis tente, no pensamento responsável pela elaboração das ciên cias humanas, entre a percepção de certo modelo metodológico e a prática característica daquilo que pode ser chamado de ciência, e a prática efetiva do conhecimento considerado . como. "ciência humana", ou, pelo menos; reivindicando esse título. Trata-se de descobrirmos a fisionomia científica das ciên cias humanas e de elucidarmos seu desejo de referência empí rica e positiva. Em primeiro lugar, falaremos sucintamente. das ciências humanas em seu conjunto. Em seguida, tentare mos mostrar como a psicologia passou de um estado de saber, 18 pré-científico a ·um estado de saber propriamente científico, isto é, como ela acedeu a� estatuto de cientificidade que sem pre almejou conquistar e que parece defender com certa :vee mência. Em outros termos, trata-se de esboçarmos uma epis temologia da "observação" nas ciências humanas em geral, para em seguida. aplicarnios tal epistemologia ao caso espe cífico da psicologia. No entanto, convém situarmos, antes, os temas gerais da cientificidade das ciências humanas. Posterior mente, veremos quais são as categorias de objetividade da psi cologia. O primeiro tema consiste na preocupação sempre cons tante de uma referência empírica na base de toda a elaboração do conhecimento; o segundo diz respeito ao esforço intelectual para extrair as formas ordenadoras do conhecimento e de cons tituição dos objetos do pensamento: esquematismo, formalis mo, etc.; o terceiro conceme à busca de modelos explicativos, operatórios e preditivos permitindo ao pensamento não so mente a leitura inteligente dos dados, mas também uma mani pulação da realidade que ela aborda; o quarto,. enfim, refere se ao uso do cálculo e da quantificação. Bem entendido, não analisaremos ess�s quatro temas ou critérios de cientificidade, senão a propósito da psicologia. O que vai nos interessar, no tocante às ciências humanas, é mos trar o solo epistemológico ou o fundo de saber sobre o qual elas se constituíram e acederam, por isso mesmo, à era da po sitividade. Aliás, não podemos negar que a cultura contempo rânea esteja profundamente marcada pelo fato do estabeleci mento das ciências humanas num estatuto de cientificidade mais ou menos próprio. Elas · tentam como podem garantir este estatuto e 'vigiar para que ele seja reconhecido e respei tado. Algo já foi conquistado nesse domínio. Algo permanece ainda apenas reivindicado; Sua originalidade parece consistir numa ambigüidade: de uni lado, há uma exigência de inteligi bilidade, de "transcendência" ou de um a priori inconfessá veis; do· outro, situa-se a exigência de positividade, que nem sempre consegue atingir o "ideal" de cientificidade estabeleci do pelos. '!controles intersubjetivos"; Neste processo de cons tituição das ciências humanas, analisaremos, ein primeiro lugar, o impacto da emergência da ciência modema sobre a filosofia; em seguida, · as repercussões da constituição das ciências hu- 19 manas e seus efeitos próprios; enfim, o acesso das ciências humanas à era da . positividade. 2. IMPACTO DA CIÊNCIA MODERNA Qual o impacto que a maturação e tomada de conscien cia das ciências humanas tiveram sobre a filosofia? Um pri meiro exemplo importante da repercussão do advento e emer gência das ciências humanas sobre o pensamento filosófico foi "a deposição do sujeito pensante", bem como uma primeira instauração científica do estudo do homem e dos fatos huma nos. As coisas, porém, foram mais difíceis do que pode mos trar este exemplo. Porque tratou-se, não somente de descrever formalmente a emergência de um acontecimento epistemológi co e seu efeito questionador, mas de ressituar determinado número de conteúdos essenciais e de ver concretamente como eles reagiram uns sobre os outros. Fazer isso diretamente, a propósito das ciências humanas, e referindo-se ao estado con temporâneo daquilo que ainda podemos chamar de filosofia, é algo muito arriscado, dadas as dificuldades que a inteligência encontra de tomar um recuo relativamente às situações imedia tas nas quais ainda se acha imersa. Por isso, tentaremos apenas reconsiderar sucintamente uma situação passada, mas capaz de fornecer certo pano de fundo à análise e ao exame da situação presente. O que real mente acontece quando, passando à frente de um sistema mais ou menos estabelecido do saber, especialmente dos ensinamen tos recebidos do pensamento filosófico, um conjunto de disci plinas do conhecimento, até então sem estatuto científico sa tisfatório e poderoso, põe-se a emergir com grande força re novadora, apresentando novos conteúdos de saber e provocan do importantes mutações na atitude intelectual vigente? Dis pomos de um caso em que esta experiência epistemológica rea lizou-secom grande êxito. Trata-se da experiência levada a efeito entre 1550 e 1 650, com a criação da "ciência nova" ou "ciência moderna": retomada da matemática, avanço acelera do da física, provocando a renovação da astronomia e a con quista das primeiras bases da mecânica. E tudo isso sendo 20 acompanhado desta idéia clàrificadora da associação científica entre o pensamento teórico e a prática experimental em vista do conhecimento. � por uma volta a esta experiência, e pen sando em seu valor de analogia histórica e cultural relativa mente à nossa própria situação, que devemos iniciar. Não se pode negar que a .emergência da "_ciência moderna" provocou profundas repercussões sobre o sistema anterior. .. .do saber filosófico. Na verdade, em seu estado nascente, a física científica provocou uma dupla sacudidela epistemológica. A primeira diz respeito aos efeitos da conquista da mecânica cien tífica. Quanto a esses efeitos, remetemos o leitor à obra de A. Koyré, sobretudo ao seu Du monde clós à l'univers infini ( 1962). Por sua vez, a segunda sacudidela se refere aos efeitos da "re volução copérnica". Não se pode ignorar que o pensamento do Ocidente tenha conhecido um longo período no decorrer do qual as ciências da natureza física e da vida ainda estavam num estado de infân cia. Eram objetivamente pouco desenvolvidas. Praticamente, não estavam engajadas nos circuitos da eficácia humana. Este período só terminou nos meados do século XVII. Foi ainda necessário século e meio para que a ciência moderna da natu reza começasse a desenvolver um primeiro conjunto de reper cussões no seio da massa humana. Um primeiro conjunto de efeitos, primordialmente sobre a filosofia, foi a "revolução co pérnica", inaugurada em 1543 com o De revolutionibus orbium coelestium de N. Copérnico e que, após longa trajetória, tor nou-se reconhecida pelos homens cultos, já na época da con denação de Galileu ( 1 633 ) . Do ponto de vista da representa ção do mundo, é antes de tudo o fim do geocentrismo: des centração e relativização do lugar terrestre e, ao mesmo tempo, abandono da imagem de um munido fechado em proveito _ da representação de um espaço cósmico infinito. Não há mais em torno da terra sistema de esferas celestes. O olhar humano pe- netra doravante na exten_s_ão do céu, não encontrando mais os limites do universo. Muito mais ainda, é o fim do dualismo da representação do mundo, opondo à natureza terrestre corruptí vel, o sistema quase�divino da natureza celeste, materializàção de uma espécie de sobrenatureza visível e gloriosa acima da na- tureza celeste. · 21 Em toda parte, no seio do universo visível, é o mesmo es paço indiferente, a mesma materialidade, o mesmo estatuto de base da existência. Um intermediário quase-empírico, entre a terra e o Deus "primeiro-motor" do universo, desvanece por completo. Estamos diante do que podemos chamar de a pri meira "desconstrução" de toda cosmologia. Ao mesmo tempo, porém, temos diante de nós esta terrível desilusão quanto a tudo aquilo que diz respeito ao antigo saber filosófico. A física deste saber, a filosofia natural, reduz-se a uma física quimé rica. A analítica escolástica do devir e de seus princípios, bem como os conceitos aristotélicos de . natureza e de sistema aas causas, passam doravante. a ser desacreditados pelo novo modo de apreender a realidade. Ademais, passam a ser considerados como produtos de uma pura verbalização ingênua e duvidosa de uma experiência sumária das coisas. Também neste domí nio, a filosofia natural revela-se menos um saber verdadeiro do que pretendia ser. Ao mesmo tempo, no plano do saber que procura extrair dos livros sagrados as fontes do conhecimento, a autoridade ·da Escritura revela-se invalidada em matéria de ffi>ica. Deve-se aprender a discernir nela os ensinamentos em matéria religiosa ou moral das representações mais ou menos arcaicas do mundo e do� fenômenos naturais. De ambos os lados, instaura.,.se uma crise bastante .. séria e de grande al cance. Portanto, as repercussões da "ciência moderna" sobre a filosofia foram de duas ordens: a) o fim da cosmologia esco lástica e a impossibilidade de restabelecer uma filosofia da Natureza; b) o nascimento da antropologia das "Luzes" (Ilu minismo). a) Ao término dessas duas sacudidelas epistemológicas de que falamos, o resultado mais evidente do advento e da emergência da "ciência moderna" da natureza foi o de pro vocar a desintegração daquilo que se acreditava "saber" do mundo físico. · Até então, o saber era a cosmologia ensinada nas escolas, cosmologia de origem greco-latina, impregnada de aristotelismo, conseguindo congregar e exprimir uma espécie de familiaridade concreta intelectual, estética, moral e religio sa do homem com o universo. A essa cosmologia, que se ex punha principalmente na língua usual, remetendo aos especia- 22 listas o recurso às formas matemáticas (astronomia descritiva) , a física científica vai substituir um jogo de representações "cla ras e distintas", como dirá o cartesianismo, representações ele mentares e quantitativas, e que serão manipuladas matematica mente. A regra fundamental de sua constituição consistia pre cisamente neste manejo matemático: espaço, figura, movimen to, tempo. Passa-se a desconfiar da qualidade antiga, dora vante acusada de ser uma "qualidade oculta", simples determi nação "subjetiva" do psiquismo. Também os antigos ''princí pios" são recusados: a matéria é compreendida de forma: intei ramente diversa, e a idéia de "forma substancial" é simples mente proscrita. A figuração de conjunto do universo é revo lucionada, e dilacera-se o pacto de familiaridade do homem com a natureza. Tudo é suplantado por um novo empirismo intelec tualmente mais adulto, praticamente mais eficaz e, pelo menos para começar, · mais bárbaro, mais agressivo em relação ao mundo das coisas do que o antigo empirismo. Aquilo que, até o século XVI, chamou-se de "filosofia na tural", e que tentou, com maior ou menos êxito, sobreviver atràvés dos manuais de cosmologia, recebe um golpe de morte. A nova "filosofia natural" (emprega-se esta expressão no sé culo XVII, e seu uso se prolonga nos meios anglo-saxões até bem recentemente) é pura e simplesmente a ciência física, a mecânica de Galileu, depois, de Descartes e de Newton, com pletada pelo estudo experimental e matemático da qtica, do calor, da eletricidade, etc. Toma-se consciência de que o co nhecimento científico não é, propriamente falando, filosófico. ·A partir de então, ele não é mais uma filosofia coerente da natureza. Foi todo um tipo de saber filÓsófico que se desinte grou e que sucumbiu na cultura ocidental, em conseqüência do advento e da expansão das ciências modernas da natureza. Da filosofia natural, só restaram lembranças históricas e tenta tivas parciais, inconsistentes e impotentes para reconstruir uma totalidade. É bem verdade que, no século XX, com as teorias da Relatividade, certo empreendimento intelectual de cosmolo gia global reaparece, mas, desta vez, no interior do próprio pensamento científico. b) Para um estudo mais detalhado do nascimento da antropologia das "Luzes", remeto o leitor ao .desenvolvimento 23 que faz G. Gusdorf em La science de l' homme au siecle des Lumieres ( 1 974) e em Introduction aux sciences humaines· ( 1974 ) . Quero ressaltar apenas que, com o advento da ciên cia moderna da natureza, tem início uma nova antropologia. Sua constituição é complexa, até mesmo quase contraditória, pois faz a associação de uma visão objetiva do homem como ser deste mundo terrestre, ser de natureza material e física, e de uma visão subjetiva da relação do homem com o conjunto da natureza e consigo mesmo. Do ponto de vista da visão objetiva do homem, é _ a que bra da unidade ambígua concreta entre o organismo material do indivíduo humano e seu psiquismo espiritual : "hilemorfis mo" do "corpo" humano e da "alma" humana. Enquanto or ganismomaterial, o corpo é reduzido � uma máquina, com a mesma constituição dos sistemas materiais não-vivos e das má quinas construídas: máquinas que não exigem, para explicar o funcionamento biológico e vegetativo do corpo, senão aquilo que serve para fornecer uma explicação do comportamento físico-mecânico do universo. Assim, o homem é apenas um fragmento do mecanismo universal. Ele está submetido às ne cessidades do determinismo universal, conceitualmente fechado sobre si mesmo e deixando fora desta "fechadura" epistemoló gica toda a atualidade de seu fato psíquico-mental: sensibili dade, afetividade, consciência. Por sua vez, enquanto unidade personalizada de vida mental, a "alma" aparece pura e sim plesmente como uma atualidade não-física, inexplicavelmente associada à máquina corporal, em contato com qual ela se de senvolve, de acordo com os funcionamentos materiais dessa máquina. Assim, deixando de lado as questões das implica ções mútuas do corporal e do psíquico, a antropologia vai oscilar entre um conhecimento organicista e materialista do ser corporal e biológico do homem, e um saber espiritualista da vida psíquica, intelectual e moral da "alma" humana, ligando os dois de modo mais ou menos bastardo no plano da objeti vidade. Contudo, do ponto de vista do sentimento subjetivo que o homem tem de si mesmo e de suas relações com a realidade, vamos encontrar a grande crise espiritual ocorrida no século XVI: o ser humano não somente passa a conquistar como tam- 24 bém a tomar uma nova consciência de sua própria liberdade. Surge a consciência libertária moderna. O ser humano se de sinveste de muitas passividades que, até então, ainda não ha viam sido postas em questão: passividade diante da autoridad_e religiosa e da crença bruta num ensinamento exterior; passi vidade diante do dado da natureza; passividade diante das próprias situações humanas, "vividas" (ou "sofridas") como um dos aspectos inevitáveis da força das coisas. Por sua vez, a conquista científica aparece ao mesmo tempo como o pe nhor, a justificação e o instrumento dessa consciência libertá ria. Ela postula a libertação intelectual em relação à p.utorida de exterior em matéria de conhecimento. Ao mesmo tempo, liberta o homem de sua sujeição à natureza, permitindo-lhe colocá-la a seu serviço (dominação da natureza) . Em primeiro lugar, indiretamente, em seguida, de frente, a ciência torna pos sível a transformação das situações humanas, fazendo progre dir a educação do homem, dos indivíduos e da sociedade, à liberdade do entendimento e à autonomia da razão. Do · ponto de vista daquilo que constitui o objeto próprio da ciência física, é a relação teórica e prática do homem com a Natureza que muda, por assim dizer, de espécie e de regime, pois situa-se na órbita dessa consciência libertária do homem. Processa-se também uma transformação da relação teórica. e ética do homem consigo mesmo. E como conseqüência dessa transformação, houve ulteriormente uma mudança da relação tanto social e política quanto cultural do homem com os outros homens. Uma nova relação começa a surgir e a ganhar o do mínio prático. Também a relação do homem com o religioso se altera em profundidade. Um princípio inédito da limitação da autoridade religiosa em matéria de pensamento e de uso da razão começa a impor-se. Como diz simbolicamente Gali leu: "a Escritura nos ensina, não como o céu vai em seu curso, mas como o homem vai até ele". f: então que se define esta concepção tornada clássica do Homem, com a antropologia das Luzes, depois, do Progresso, própria sobretudo ao século XVIII: essa antropologia hoje considera4a caduca, sobretudo por aque les que falam da morte do homem, como conseqüência da morte de Deus. 25 3. A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS Podemos dizer que a segunda grande repercussão ou im pacto epistemológico, sofrido pelo pensamento filosófico, de veu-se ao efeito próprio da constituição das ciências humanas. Analisaremos tal efeito a partir do exame sumário de dois temas fundamentais. O primeiro é o fato de que as ciências humanas, ao despontarem como ramo autônomo do saber, fa zem o homem ingressar numa nova era que podemos caracte rizar como sendo a da perda da ingenuidade em relação a si mesmo, como sujeito, e em relação às suas próprias obras, en quanto estas comportam todo um conjunto de investimentos da subjetividade humana e de pressuposições inconscientes dessa subjetividade. Trata-se de uma época de desencantamento, de crítica, de "dúvida" e de "desmistificação". M�s também, em contrapartida, época de reativação de uma série · de domínios humanos relegados ao esquecimento ou deixados na sombra; época em que ressurgem várias questões deixadas em suspen- . so; época de múltiplas iniciativas que permaneciam inibidas ou haviam sido abandonadas. O segundo tema é o da entrada do conhecimento, não somente do . mundo exterior e da natureza física, mas também do próprio homem, na era da positividade, por oposição à era da "representação": o homem "positivo" não é mais o homem da "representação", nem objetiva nem subjetivamente : ele passa a ser visto de modo inteiramente di verso. a) As ciências humanas e a perda da ingenuidade da cons ci€ncia clássica. A filosofia da Idade Moderna clássica, surgida a partir do século XVII, e ensinada até quase nossos dias, pode ser desig nada, sem correrm0s o risco de sermos imprecisos, de "filoso fia da consciência". A partir do Cogito cartesiano, a consciên cia se torna, para a filosofia e para a cultura que lhe é soli dária, o próprio fundamento da Razão : ela é tomada por todos <:orno a regra, tanto para a inteligibilidade das coisas quanto para a direção do espírito num momento de grandes crises in,. telectuais. Relativamente à filosofia clássica, a "filosofia da consciência" adotou duas atitudes fundamentais: de um lado, 26 liquidou um universo de falsas imaginações que entravavíilll o fl()rescimento da ciênCia, e conseguiu definir-se uma atitude livre de preconceitos ou de a prioris injustificáveis; do outro, abriu de modo decidido e desinteressado os caminhos novos e seguros do progresso, tanto na vida prática quanto no campo·' da aquisição dos conhecimentos "puros". Deste ponto de vista, o Discurso do Método, de Descartes, inscreveu-se no inconsci ente coletivo da filosofia clássica, pois não visava outra coisa senão a possibilitar ao homem "conduzir bem sua razão e pro curar a verdade nas ciências". Podemos ver sob dois ângulos essa situação de perda da ingenuidade da filosofia clássica: a. O primeiro é o impacto crítico e "desconstrutivo" de uma sistemática filosófica, mais ou menos tradicional e oficial mente ensinada. Esta sistemática é muito menos um · ensino dogmático e autoritário de escola do que uma plataforma co mum de atitudes, de categorias, de domínios no interior dos quais a reflexão, o pensamento e a discussão se mantêm ativos e atuantes. A universidade era um dos grandes instrumentos de sobrevivência da filosofia clássica. Ensinava-se uma meta física reflexiva e espiritualista. A epistemologia (teoria do co nhecimento) era anaHtica e intelectualista, só se interessando pelo estatuto da objetividade científica. A moral tentava equi librar o sentido da autonomia individualista da liberdade com o respeito tradicionalista a um sistema social do dever. A filo sofia reduzia sua própria história a uma espécie de ruminação de seu próprio passado. Esta "desconstrução" pode ser caracterizada por dois tra -ços essenciais: em primeiro lugar, pelo fim da metafísica es pirÜualista, estabelecida sobre as bases de uma filosofia refle xiva da consciência; em segundo lugar, pela crise que se ins tala na moral do consentimento livre e autônomo. Com efeito, a metafísica espiritualista. queria dar prosseguimento à antiga metafísica dogmática, herdada ao mesmo tempo da escolástica e do cartesianismo, mas já invalidada pela "Crítica" kantiana, muito emboraKant mantenha uma metafísica ( afirmação de Deus, imortalidade da alma) fundada numa convicção moral. Todavia, a crítica kantiana da metafísica clássica, que se im- 27 põe como metafísica idealista e espiritualista, não passa de um produto de camuflagem de uma evidência que se impunha pela entrada em cena das ciências humanas: ciência e história das religiões, ciência e história da civilização, análises sociológicas e psicológicas (Introdução à crítica da filosofia do Direito de Hegel, de Marx, e O Futuro de umâ ilusão, de Freud) , sem falarmos da etnologia e das ciências da linguagem. Nessas con dições, o espaço intelectual se abre como que natural e irresis tivelmente marcado pelo ateísmo e pelo senso da "finitude" hu mana : total dissolução da individualidade pessoal, com a mor te física, e consciência dessa condição determinada do homem sem Deus e sem outro futuro pessoal senão o do espaço de sua vida - morte de Deus e morte da alma. A metafísica só se impõe como a negação dessas dimensões do sonho metafí sico e como investimento pensante do mundo nos limites dessa negação. b. O segundo ângulo sob cujo prisma encaramos a per da da ingenuidade da consciência clássica (deixaremos de ladO> a análise da crise da ética! ) refere-se à história da filosofia e à epistemologia clássicas. Da história da filosofia, a cons ciência moderna não retira senão um desencorajamento diante do imenso empreendimento morto do pensamento, impossível' de ser recapitulado numa cabeça individual, apesar de Hegel' ter pensado o contrário. Quanto à epistemologia, o argumento, de Y. Belaval, numa comunicação à Sociedade Francesa de· Filosofia, parece resumir bem a situação : "Se Deus morreu, e se a alma também morreu, só nos resta o mundo. As filoso fias ontológicas da salvação pessoal tendem a dar lugar às: filosofias epistemológicas da salvação impessoal. Numa época em que o tempo dos computadores torna-se o tempo histórico, é a filosofia epistemológica que, · em escala planetária, leva a:. melhor. Todavia, não estaria também ela ameaçada? Se só nos resta o mundo, mesmo assim seria necessário, para pensá-lo, que· o epistemólogo fosse capaz de acompanhar a ciência em pro-· gresso. Ora, no que diz respeito às ciências avançadas, ele já perdeu o pé, e não se encontra mais à altura das ciências hu manas, retóricas : ele ingressa na política". A este respeito, são pertinentes as análises que faz M. Foulcault da episte/1'IC clássica da "Representação" em Les mots et les choses. 28 b) O acesso à era da "positividade" Para esta transição que se operou, no início do século XIX, da era da "Representação" à era da "Positividade", su gerimos ainda ao leitor as obras de Alexandre Koyré, Studes Galiléennes e Études Newtonniennes; o livro- de· G. Gusdorf, Introduction aux sciences humaines (1974 ), e o de W. Dilthey, Introduction à l'étude des sciences humaines (tradução fran cesa, 1942). As ciências humanas ingressaram na "era da positividade" a partir, sobretudo, de Dilthey. Este autor reconheceu que A. Comte e Stuart Mill haviam feito uma notável tentativa de colocar o problema da metodologia das ciências humanas se gundo os critérios e os métodos das ciências da natureza. E foi exatamente em nome do "positivismo" que Dilthey quis mostrar a heterogeneidade entre os métodos dos dois tipos de ciências. Esta diferença tinha por fonte o dualismo epistemológico que se baseia na particularidade da história. Assim, a "crítica da razão histórica" tem por objetivo romper com o naturalismo cujo mérito foi o de ter contribuído para a desagregação (sob as formas do Direito natural, da Religião natural) da metafísi ca medieval. O que se pode perguntar, é se tal naturalismo já não estaria superado, em razão do próprio desenvolvimento das ciências. Não se trata de excluir sistematicamente, das ci ências naturais, sobretudo quando eles se revelam fecundos. Contudo, a redução das ciências humanas às da natureza, longe de favorecer sua eclosão, pode entravar seu desenvolvim.e_nto, pois elas se fundam em outro tipo de inteligibilidade. Pergun ta-se: não seriam elas ciências autônomas? Segundo a concep ção naturalista, tratava-se de constituir as ciências humanas como se elas não existissem em absoluto. A Goncepção natu ralista se faz uma idéia a priori e dogmática daquilo que deve ser entendido por ciência em geral, e tenta conceder ou re cusar o título de ciência às diversas disciplinas segundo elas estejam ou não em conformidade com este parti pris inicial. Diferentemente dos partidários do naturalismo, Dilthey se interessa pouco pelo problema dos métodos, que ele consi dera como bastante escolar e abstrato. Ele se preocupa sobre tudo em extrair as condições de inteligibilidade próprias às 29 ciências humanas (que ele chama de "ciências do espírito" - Geiste_swissenchaften) . Conseqüentemente, ele quer descobrir nelas sua contribuição positiva para uma melhor compreensão e um melhor conhecimento dos homens e das coisas. Sob a in fluência das primeiras obras de E. Husserl, Dilthey manteve fif91e sua posição : a partir do momento em que as ciências humanas existem como ciências, é completamente inútil per der tempo em discutir sobre seu caráter de cientificidade, em nome de uma teoria preconcebida da ciência. Porque o epis temólogo não deve ser o arquiteto ·. das ciências . humanas, mas s.eu historiador. E a partir das informações que elas podem for necer e dos métodos efetivamente praticados pelos especialis tas dessas disciplinas, o epistemólogo deve elaborar uma teoria das ciências humanas. 'Ora, diz Dilthey, a história nos ensina que essas discipli nas nasceram e cresceram no meio da prática da vida, isto é, seu objeto não é uma natureza que permanece idêntica a si mesma, porque obedeceria a leis constantes, mas um conjunto de obras e de convenções que o homem criou antes de fazer delas objeto de uma ciência. O homem não criou a natureza, mas o mundo sociaL Donde esta proposição fundamental de Dilthey: "As ciências humanas (do espírito) não formam um todo constituído segundo a lógica, um todo cuja estrutura seria análoga à de nosso conhecimento da natureza; seu conjunto se desenvolveu de modo inteiramente diferente, e devemos con siderá-lo tal como ele se desenvolveu historicamente. Em outros term�s, há uma originalidade nas ciências humanas : e�as .. sªo irredutíveis às ciências naturais. Para uma síntese histórica des sa originalidade e do processo de construção das principais teo rias específicas às ciências humanas., sugiro a leitura do livro de Julien Freund, Les théories des sciences humaines ( 1973 ) . Por conseguinte, creio que o processo de constituição (acesso ao estatuto de cientificidade) das ciências humanas só poderá ser plenamente entendido se o analisarmos de dois pon tos de vista complementares : o primeiro, histórico, o segundo, metodológico. Daremos aqui apenas algumas indicações quanto ao ponto de vista histórico. Deixaremos a análise do ponto de vista metodológico para o caso da Psicologia. 30 A evolução histórica das c1encias do homem, em nossa cultura, divide-se essencialmente em três fases distintas: a da concepção clássica do homem (ciência grega) , a da concepção cristã (teologia patrística e medieval) e a da concepção mo derna. Em cada uma dessas fases, a medida do mundo se re flete na medida do homem. Cada relação com o mundo engaja certo sentido da verdade, de uma .verdade que freqüentem�!lte o homem domina, mas que intervém na experiência garantin do-lhe a comunicação entre ele e o mundo, ou consigo mesmo. E cada atitude humana em relação ao mundo, tornando-se ob jeto de reflexão, é geradora de uma filosofia. Como há várias relações com o mundo, cada uma com sua verdade própria, resulta o aparecimento de várias filosofias, nenhuma delas pos suindo a verdade total. O conhecimento do objeto também .é .o conhecimento do sujeito cognoscente. O homem persegue,atra vés de seu saber, uma lenta descoberta daquilo que ele é em relaç�o ao mundo. Assim, só progressivamente ele consegue tomar posição face ao mundo e, por conseguinte, tomar posse de si mesmo. Donde se conclui que, para a concepção clássica, a es sência do homem se define principalmente como razão. O pro blema que se coloca é o de determinar as relações do princípio essencial deste ser dotado de razão com seu próprio corpo e com o mundo. O centro de interesse do pensamento antigo é, pois, o cosmo' ( ordem, beleza, harmonia) : a ordem do mundo que encontra sua mais alta expressão no curso regular dos astros e em sua harmonia. Nesta época, os homens e os deuses devem obediência a esta lei suprema do devir em sua totali dade. O homem, porém, se separa . desta situação global qne o aprisiona: ele tenta ordenar o devir impondo aos aconteci mentos um princípio inteligível, dando-lhes uma interpretação discursiva e racional. Todavia, a inteligência humana não está ainda segura de si. Ela não pode ainda estar certa da validade de suas interpretações. Encontra-se ainda numa situação infe• rior e considera-se como uma instância subordinada que recebe do "alto" os princípios de sua atividade. A razão se exerce do "alto" para "baixo", dos deuses aos homens. Eis a con cepção que vem de Platão até a Idade Média. 31 Quando a concepção cristã vem tomar o lugar do paga nismo helênico, seu grande esforço vai conduzi-la à harmoni zação da concepção clássica com as exigências soteriológicas (salvíficas) que impregnam a antropologia bíblico-cristã (uni dade do homem e destino pessoal transcendente) : a inspiração cristã quer reagrupar o saber e a espiritualidade em torno da exigência do Deus judaico-cristão. O pensamento antigo era uma cosmovisão ( W eltanschauung) cosmológica - era a idéia de cosmo que presidia toda a compreensão que o homem tinha do mundo e d� si mesmo - e, ao mesmo tempo, cosmo cêntrica - o cosmo sendo o centro a partir do qual o homem se compreendia como uma parte cujo papel de conl:lecimento não ia além de uma atitude de contemplação passiva. Sem dei xar, porém, de ser uma cosmovisão cosmológica, o pensamento medieval torna-se teocêntrico, a fonte explicativa de tudo, in clusive do conhecimento, situando-se fora do homem, não mais nas leis cósmicas, mas num Deus criador face ao qual o ho mem se situa como criatura dependente. Ora, esta mudança de perspectiva - de uma concepção cosmocêntrica a uma con cepção teocêntrica - modifica profundamente os elementos tomados de empréstimo aos gregos pelos autores escolásticos. Com a concepção moderna - cujo nascimento podemos ligar ao movimento científico que encontrou sua mais alta ex pressão na obra de Galileu - uma crise se estabelece a partir do século XVIII pela ruptura da síntese entre as duas concep ções e pela multiplicação das ciências humanas que colocam em questão a possibilidade mesma de uma ciência unitária do ho mem. Tudo se passa como se, a partir do momento em qut: foram reconhecidas a originalidade e a especificidade das di ferentes relações com o mundo, geradas pelas novas discipli nas, a procura da verdade implicasse ou mesmo exigisse uma filosofia visando doravante à complementariedade dessas rela ções. A partir do Renascimento, a harmoniosa unidade da es piritualidade medieval se decompõe cada vez mais sob a pres·· são da força das novas disciplinas científicas. Com o primado conferido à individualidade do hom_em, este se torna cada vez mais o centro dos valores e do conhecimento. O novo mundo se dá uma leitura antropológica e ao mesmo tempo ,antropo- 32 cêntrica. Doravante, a verdade aparece como uma obra huma na. cujas estruturas devem ser examinadas em sua referência ao ser que é ao mesmo tempo seu inventor e seu suporte. Enfim liberado de toda tutela, o homem torna-se, senão o criador, pelo menos o mestre das significações do universo. É a descoberta, iniciada por Descartes com o Cogito, do su jeito cognoscente autônomo, hoje chamado de sujeito epistê mico. Assistimos, pois, de idade em idade, a um deslocamento progressivo dos sistemas de inteligibilidade cujas· questões e res postas, bem como todas as modalidades de explicação, não ces sam de mudar e de renovar-se: há uma relativização dos mode los epistemológicos. Todo o saber medieval tinha por base o compromisso estabelecido entre o intelectualismo helênico e a revelação judaico-cristã. A Renascença desenvolve temas hu manistas. O século XVII assiste com entusiasmo ao advento epistemológico do conceito de atração. Depois vem o tempo do p-restígio da bioquímica com Lavoisier, Bichat e Claude Ber nard. Em seguida, a, influência da Naturphilosophie romântica que dá crédito a uma inteligência biológica, orientada em fun ção das idéias de desenvolvimento orgânico, até o surgimento do conceito de evolu-ção a partir de Darwin. Até o século XIX, o destino das ciências humanas estava vinculado ao destino da filosofia. Elas eram conhecidas como ramos da antropologia filosófica. Esta tinha a pretensão de es tudar o homem em sua totalidade, pois visava a analisar o pró prio sujeito que edificava as ciências. A razão era que não podia haver uma ciência do homem. Ora, se designamos por antro pologia o conjunto das ciências humanas, constatamos que ela tinha, nessa época, uma dupla missão: ser uma ciência e visar à totalidade do humano. Contudo, o século XIX entende por antropologia o estudo do homem. em sua totalidade e em suas relações com o resto da natureza. Ela situa o homem no en cadeamento dos seres vivos onde ele toma seu lugar como um ser que emerge de sua série evolutiva, com características de ser de natureza e de ser de cultura. Enquanto ser vivo, ele pe:çtence a um mundo que é regido por leis biológicas; mas en- 33 quanto ser que fala e que institui uma civilização, ele introduz um elemento radicalmente original: a cultura. É assim que, no início das ciências antropológicas, enfa tizava-se o elo do homem com a natureza. Elas estavam mar cadas por uma mentalidade naturalista, pois as pesquisas sobre o homem centravam-se nas leis que comandavam a transição entre a natureza e a cultura, as condições materiais da vida e suas propriedades fisiológiças sendo utilizadas para explicar esta passagem. Em seguida, a antropologia tornou-se o estudo das propriedades gerais e das leis da vida social e da cultura, na medida em que por elas o homem transforma o mundo e se transforma a si mesmo neste mesmo movimento. Ela tende a considerar o homem ao mesmo tempo do ponto de vista da na tureza que o precede, o cerca e o subentende, e do ponto de vista da ruptura que ele introduz ultrapassallldo-a. Trabalhos antropológicos recentes constatam que, de um lado, a antropologia influenciou e modificou profundamente nossa visão do mundo e do homem, do outro, contribuiu po derosamente para que a filosofia passasse do estudo da cons ciência humana ao estudo do intercâmbio entre a consciência e o mundo. Descartes havia centrado a interrogação filosófica sobre o homem considerado segundo a ordem da consciência, sendo esta a medida e a forma do ser. De Descartes a Hegel, passando por Kant, e apesar de todas as discordâncias de de talhe entre os autores, o ser da consciência aparece . sempre como a norma e a verdade do ser, de tal sorte que podemos en globar todas as visões do homem e do universo sob a denomina ção comum de "filosofia da consciência". Com a antropologia contemporânea, nascida com o evolucionismo, o marxismo e a psic;análise, o sujeito cognoscente foi descentrado de si mes mo e sua verdade tende a ser procurada na consciência atra vessada e trabalhada pela natureza, isto . é, na consciência não tend(J) mais seu centro nela mesma, mas como que aquém dela. A partir do século XIX, a antropologia filosófica vai en contrar-se, devido sobretudo à predominância do positivismo, numa situação análoga à da filosofia da natureza no século · XVII: seuobjeto é progressivamente anexado pelas ciências 34 experimentais. Por isso, não se pode evitar a seguinte interro gação: quem é este "homem" que constitui realmente o objeto de uma filosofia do homem? O "homem" das ciências bioló gicas, sociológicas, psicológicas, históricas? Não sendo capaz de compor todas as fisionomias do homem esboçadas por cada uma dessas disciplinas, a filosofia encontra-se diante do segt!in te dilema: ou ela deverá falar de um homem ideal, que não é objeto de ciência, ou deverá desaparecer por falta de um objeto. ss li A EMERGÊNCIA DA PSICOLOGIA CIENTíFICA 1 . ESPECIFICIDADE DA PSICOLOGIA EXPERIMENTAL Em nossos dias, a Psicologia é uma das mais influentes ciências humanas. Mas ela se apresenta numa gama bastante diversificada de ramos ou tendências particulares, para não di zermos de "escolas". Seria uma tarefa árdua e praticamente impossível querermos estabelecer um elenco completo e deta lhado de todas as correntes psicológicas atualmente existentes. Ao analisar as tendências atuais da Psicologia Científica, e dei xando de lado as "não-científicas", Jean Piaget estuda, por exemplo, a psicologia calcada num empirismo sem estruturalis mo, a psicologia organicista, com suas teorias sobre a percep ção, as psicologias psicossociológicas, estabelecendo relações de interação entre o geral e o social, as psicologias psicanalíti cas da especificidade mental, a psicologia behaviorista, a psi cologia de inspiração fenomenológica, a psicologia que se baseia num estruturalismo psicogenético (animal e criança) visando à elaboração de uma teoria da inteligência, etc. Por outro lado, no que diz respeito aos domínios e aos métodos de investigação da psicologia, podemos constatar a multiplicidade das pesquisas nas seguintes direções : a psicologia baseada nos testes, a psi cofisiologia, a psicologia animal, a reflexologia, o behaviorismo, a psicologia da forma (ou Gestalttheorie) , a psicologia genéti ca, a caracterologia, etc. Ademais, ao lado da chamada psico logia "das profundezas", coin a Psicanálise de Freud, com a "Psicologia do Indivíduo" de Alfred Adler, e com a "Psicologia Analítica" de Jung, apresentam-se ainda numerosas teorias re lntlvas à Psicologia social, sem falarmos nas psicologias intros pocclonistas ou fenomenológicas. 39 }\ssim, será que ainda podemos falar de "a psicologia"? Ou não seria preferível reconhecermos uma pluralidade de psi cologias, não somente pela rivalidade de seus representantes mais eminentes ou pela paixão sentida por cada um relativa mente à sua doutrina, mas também pela diversidade dos méto dos utilizados? Num momento de aceleradas mutações, como o nosso, somos levados a crer que a psicologia parece situar-se no imenso domínio das ciências exatas, biológicas, naturais e humanas. Há até mesmo quem pense que ela se situa como um domínio conexo das ciências biofisiológicas. Contudo, a psicologia se apresenta numa diversidade por vezes espantosa de domínios. Esta diversidade, ao que tudo indica, deve-se à variação das práticas psicológicas, muito embora, por vezes, e1as venham a entrelaçar-se. Uma pergunta, porém, merece ser colocada desde o início : será que a diversidade dos métodos uti lizados pela psicologia não viria comprometer seu rigor cientí fico? Outra questão, que será parcialmente respondida no final, parece dever ser colocada desde o início : se a psicologia, não somente pelas normas de cientificidade que ela aceita, mas ta!11bém pelas normas de comportamento que ela hoje cada vez mais procura impor, não seria esta "ciência" extremamente útil para que a sociedade atual salvaguarde o assim chamado "pen samento domesticado"? Uma coisa parece certa: se queremos avaliar a situação real da psicologia contemporânea, não podemos ignorar a exis tência de uma fragmentação de seu domínio de investigação. Isto, porém, não impede que haja várias convergências nos diversos campos de pesquisa. Entretanto, quer do ponto de vista de seus métodos, quer do ponto de vista de seu objeto, a psi cologia não pode ser considerada como uma disciplina una, nem tampouco unificada. A multiplicidade das psicologias, so bretudo no domínio prático (psicologia educacional, psicologia do trabalho, psicologia industrial, etc.) , coloca em questão sua própria unidade. Esta unidade parece muito mais uma expres são cômoda, emanação de um pacifismo enganador e prático, do que uma realidade que se possa constatar. Como conciliar p_sicologias naturalistas e psicologias humanistas? Por detrás dessas duas tendências maiores, j á estão implícitas duas atitu des psicológicas que correspondem a duas maneiras qe se fazer 40 psicologia: experimental e clínica. A psicologia experimental e comparativa pretende ser rigorosa e científica: seu método é ao mesmo tempo teórico-experimental e geral. Embora tenha a pretensão de unidade, dificilmente essa psicologia pode apli car-se com êxito às condutas humanas. A psicologia clínica, por sua vez, está muito mais preQ_cupada com a investigação sistemá tica, o mais possível completa, dos casos individuais. Sem con fundir-se com a psicologia patológica, ela procura congregar, num único objeto de estudo, a conduta e suas desordens. Quan to à rpsicanálise, trata-se de uma forma de psicologia clínica. Seu objeto de investigação está restrito à conduta humana con creta. Não há dúvida de que a psicologia experimental e a psi cologia clínica se completam. Entre elas há certamente diver gências. Contudo, ambas pretendem ser a ciência da conduta, ou seja, das respostas significativas através das quais o ser vivo, em situação, integra as tensões que ameaçam a unidade e o equilíbrio do organismo. Mas o que vai nos interessar, aqui, é uma análise da psicologia experimental, ou seja, da psicolo gia com pretensões científicas. Em seu esforço de autenticidade, quer dizer, em seu pro cesso de constituição como ciência, a psicologia, enquanto ci ência humana, teve que romper com duas perspectivas que a levaram a certa "viseira", e que manifestaram sua inaptidão a revelar o objeto específico dessa disciplina: o homet.n. A pri meira perspectiva, de ordem histórica, foi o fato de a psicologia ter ligado seu destino, desde a origem, à filosofia.. Com efeito, ela era conhecida como um ramo da filosofia ou, pelo menos, da antropologia filosófica. Seu solo epistemológico era o da metafísica e da ontologia, onde se tratava de dçscrever os com portamentos do homem em termos de "substância" e de "facul dades inatas transcendentes": a vontade, o conhecimento, o instinto, a percepção, eram alguns desses "em si" remetendo a uma concepção normativa e transcendente do homem como "subsistente". Assim, tratava-se de descrever, de classificar, a partir de um saber sistemático no qual a psicologia era conce bida como sendo a explicação racional dos comportamentos de consciência. Este tipo de psicologia pode ser ilustrado por Des cartes, Kant, Bergson, Ribot, etc. Por não ter ainda rompido com seu cordão umbilical que a ligava à filosofia, a psicologia 41 era considerada como uma ciência menor, deixando escapar a autenticidade do homem para dedicar-se a uma tarefa de conhe cimento abstrato e puramente reflexivo. A segunda perspectiva, tão falaciosa quanto a primeira, foi fornecida à psicologia pelas ciências da natureza. Querendo li bertar-se a todo custo da filosofia, ela se viu forçada a aliar-se, no século XIX, a uma ·perspectiva dita "científica", cujo cam po epistemológico lhe era fornecido pelas ciências experimen tais de ondem psicoquímica ou biológica, bem mais sólidas e com um estatuto de cientificidade reconhecido por todos. O �m tornou-se, então, um "objeto de experiência". E os fa tos humanos tornaram-se decompostos, inventariados, descritos como sendo rigorosamente exatos e experimentais. Foi o perío do da redução dos fenômenos psíquicos aos fenômenos orgâ nicos e cerebrais. A psicologia, assim,escudava-se nas certezas matemáticas e êxperimentais, talvez para melhor defender-se do "imperialismo" filosófico. O homem passou a ser estudado em laboratórios. Tratava-se de provar a origem orgânica de seus comportamentos. E a psicologia enveredou-'se pelos ca minhos traçados pelo organicismo e pelo mecanicismo clás sicos. Portanto, foi de sua vizinhança com a filos.oiia, que de correu a direção na qual a psicologia concebe sua emancipação e seu acesso a um estatuto científico independente: uma li bertação relativamente à filosofia, por conformação ao modelo das ciências da natureza já constituídas. Por isso, a psicologia ainda hoje oscila entre duas grandes correntes : uma, mais filo sófica, utilizando os modelos explicativos hermenêuticas ou in, terpretativos; outra, propriamente científica, tomando de em préstimo às ciências naturais seus modelos explicativos (por exemplo, o behaviorismo) . Por outro lado, convém lembrar que, pelo fato de ter nascido do seio da filosofia, a psicologia parece ter herdado também certo desejo de imperialismo: con cebe suas relações com as demais disciplinas humanas sob o modo da absorção, e não da articulação. Historicamente, em todo o seu esforço para conhecer cien tificamente o homem, a psicologia parece ter sempre trabalha do para derrubar o privilégio do "objeto humano", para "des sacralizá-lo" e deslocá-lo, do plano meramente subjetivo, ao 42 plano decididamente objetivo. Com isso, ela não conseguiu evi tar que o homem, objeto de conhecimentos das ciências huma nas, se tornasse um mero objeto entre os demais objetos de in vestigação científica. Talvez ela se tenha esquecido do ques tionamento que j á fizera Heráclito : "Como o homem poderia ocultar-se daquilo que jamais desaparece"?; ou da admoestação de Spinoza: "o homem não é um império num império"; ou então, dessa invectiva de Nietzsche que, relativamente ao conhe cimento do humano, tem valor de imperativo metodológico: "O homem é algo que deve ser superado". Não é exagero dizer que o conhecimento científico se cons trói ao preço de uma renúncia a todos os apelos feitos, a pro pósito do objeto humano, pela idéia que gostaríamos de ter dele ou de afirmar a seu respeito. Assim, ao escapar à ordem dos valores, o homem pertenceria por completo à ordem .dos "fatos". Contudo, como veremos, essa mutação não foi tão simples assim, nem tampouco linear, como se poderia pensar. :B o que podemos notar quando a psicologia, estudando os seus objetos, nunca deixa de fazer apelo a vários métodos distintos. · Evidentemente, não analisaremos aqui esses métodos. Enume raremos apenas as quatro direções metodológicas principais da psicologia: a psicologia experimental, o behaviorismo, o ges taltismo e a psicologia existencial de inspiração fenomenoló gica. No entanto, façamos algumas considerações a respeito da psicologia experimental, pois ela foi o ponto de partida para a teoria behaviorista que estudaremos melhor posteriormente. Com_ efeito, o primeiro método psicológico com pretensões cien tíficas foi o que utilizou a psicolog!a experimental. Esta se cons tituiu antes de tudo contra a atitude introspeccioni�ta. Portanto, seu objeto não é um conteúdo de consciência acessível à in trospecção · (como ainda era a sensação estudada por Fechner em seus Elementos de psicologia de 1 860) , mas a "atividade dos organismos" . . O fato psicológico era concebido como a rec_epção de um estímulo seguido de uma resposta. E o método consistia em aprimorar certos dispositivos permitindo que este circuito funcionasse em condições controláveis e mensuráveis pelo experimentador. Em tais condições, o animal não podia deixar de ser tomado como um objeto privilegiado, pois, na 43 impossibilidade de comunicar ao pesquisador suas impressões, condenou o psicólogo a ater-se estritamente à observação dos comportamentos exteriores. As mesmas razões justificam o pri vilégio conferido ao estudo das reações infantis e - aos compor tamentos pré-verbais do adulto : percepção, aprendizagem, mo tivações, etc. Ainda em meados do século XX, em sua Psicologia expe rimental, o renomado psicólogo experimental Paul Fraisse faz repousar a solidez desse método na prudência daqueles que o praticam, prudência esta que os impede de aderirem a toda con clusão que não seja corroborada por longas e minuciosas verifi cações experimentais. Ao se perguntar como definir a psicolo .. gia, ele responde pura e simplesmente como esta disciplina que, ao estudar as condutas humanas, se elabora graças ao método experimental, método que já demonstrou, segundo ele, sua efi cácia no domínio das ciências da natureza física, química e bio lógica. O termo "experimental" tem, para ele, o sentido de uma experimentação científica, isto é, de uma experiência pro priamente organizada. Por outro lado, não se deve assimilar psicologia experimental e psicologia de laboratório. O labora tório é necessário, diz P. Fraisse, mas não de necessidade ab soluta. Ele é indispensável, por vezes, à experimentação, mas única e exclusivamente como um meio cujo alcance deverá sempre estar subordinado ao objetivo propriamente científico, que é de ordem teórica. Enfim, a psicologia experimental não se caracteriza pelo emprego dos testes nem tampouco das téc nicas próprias à psicologia aplicada. A conclusão do autor me rece ser citada : 44 As démarches do método experimental, aplicado ao ser vivo e, em particular, ao homem, foram magistral mente analisadas por Claude Bemard em 1 860. A pri meira etapa consiste em observar cuidadosamente a rea lidade. Esta fase pode ser bastante demorada, mas é sem pre indispensável, mesmo no decurso da experimentação que deve ser realizada sob um olhar vigilante. Quer se trate de uma observação fortuita . . . , quer de uma obser vação sistemática . . . ou organizada, o observador é le vado a formular uma hip6tese sobre as relações que po- dem existir entre os fatos que seu olhar reuniu . . . Mas a psicologia experimental dá um passo à frente, e que é capital : ela procura demonstrar o "bem-fundado" da hi pótese. E isto, não de qualquer maneira: a relação su posta entre os fatos observados só é considerada como sendo verificada a partir do momento em que o experi mentador for capaz de reproduzi-la. :e_artanto, o método experimental mede o abismo que separa o especulativo do científico. Ele desconfia das coincidências, das cons truções do espírito e dos preconceitos. E sabe que o número dos aspectos de um fato, isto é, as variáveis, é tal, que uma sólida afirmação sobre sua gênese ou suas concomitâncias só é possível ao cabo de longas e sérias verificações (La psychologie expérimentale, 1966) . 2. 0 CLIMA POSITMSTA DE SEU NASCIMENTO Não podemos negar que o nascimento da psicologia cien tífica se deu num clima intelectual banhado pelo positivismo comtiano que, por sua vez, veio revigorar e conferir direitos de cidadania ao velho empirismo inglês. Não podemos enten der a situação atual da psicologia, sem compreendermos como ela surgiu e tentou se afirmar no decorrer de sua já longa ca minhada para o estatuto de cientificidade que hoje em dia pre tende possuir com certo orgulho. Portanto, vejamos como a psicologia experimental surgiu e desenvolveu-se em seus pri meiros passos rumo à cientificidade. Evidentemente, não fare mos um histórico exaustivo das teorias e dos conceitos psico lógicos através dos tempos. Interessar-nos-emas simplesmente por este _enfoque epistemológico acompanhando sua passagem de um estado ainda pré-científico ao estado propriamente cien tífico. Sabemos que, depois da morte do filósofo Hegel ( 1 83 1 ) , o s sistemas racionais começaram a demonstrar evidentes sinais de cansaço. O sucesso crescente das ciências positivas contri buiu de modo decisivo para o descrédito progressivo e iqyxo rável da metafísica clássica, pelo menos entre os cientistas. Ao mesmo tempo, porém, as ciências positivasvieram revelar o ca ráter bastante arbitrário dos esquemas dialéticos forjados pelas filosofias pós-kantianas da natureza. Por sua vez, na segunda 45 metade do século XIX, a reação marxista contra o idealismo hegeliano veio por assim dizer solapar pela base o terreno sobre o qual se apoiava a realidade social e política de então. De modo geral, as ciências se apresentavam armadas com toda uma aparelhagem metodológica segura, rigorosa e poderosa, a ponto de crerem poder controlar, doravante, todo o domínio do saber, tanto do saber sobre a natureza quanto do saber a respeito do próprio homem. Desta forma, elas relegavam a um passado remoto ou aos museus as filosofias e as metafísicas. A este respeito, conhecemos a enorme influência exercida sobre as inteligências da época pelas teorias de Lamarck ( 17 44- 1 829 ) e, sobretudo, as de Darwin ( 1 809-1882) . Segundo uma expressão de Nietzsche, "Darwin é o maior benfeitor da huma nidade contemporânea", pois foi ele quem difundiu a idéia segundo a qual a diferença entre o homem e o animal é apenas uma questão de grau. Por sua vez, são célebres essas palavras de Com te : "Dor avante, o espírito humano renuncia às pesqui sas absolutas (metafísicas e teológicas) que só convinham à sua infância; ele circunscreve seus esforços ·ao domínio exclu sivo da verdadeira observação, a única base possível dos conhe cimentos verdadeiramente · acessíveis, sabiamente adaptados às nossas necessidades reais . . . Numa palavra, a revolução fun damental que caracteriza a virilidade de nossa inteligência con siste essencialmente em substituir, em todos os domínios, a ina cessível determinação das causas propriamente ditas, pela sim ples procura das leis, isto é, das relações constantes que exis tem entre os fenômenos observados" (Discours sur l'esprit positif, 1 898 ) . Assim, através das teorias transformistas e positivistas, ganharam corpo as refutações científicas às doutrinas tradicio nais segundo as quais o homem gozava do privilégio de possuir uma alma-substância. Doravante, é a previsão que deve cons tituir o verdadeiro objeto das ciências: O verdadeiro espírito positivo, ainda segundo Comte, consiste sobretudo em "v_t?r para prever", em estudar aquilo que é para se concluir sobre aquilo que será; e isto, segundo o dogma geral da invariabili dade das leis naturais. Por toda a parte, na Europa do século XIX (segunda metade) , as exigências espiritualistas se expri miam através de um ecletismo desprovido de consistência. Tan- 46 to o evolucionismo agnóstico de Spencer, quanto o transfor mismo de Darwin e a sociologia de Comte, impunham-se de cididamente a todos os domínios da vida intelectual. A cultura parecia dominada, de ponta a ponta, pela idéia do determinis mo universal. Os cientistas passam a celebrar entusiasticamente a matéria e a repudiar as especulações racionais. Seu objetivo essencial e único é a análise dos "fatos" e de suas regularidades. O que pretendem é que o saber seja feito através' da experiência positiva. Ora, este clima de submissão da inteligência aos "fatos" e aos imperativos do conhecimento experimental, foi bastante pro pício à emergência de uma psicologia, reivindicando, em boa consciência, seus direitos de cidadania no mundo científico, ao mesmo título que a física, a química e a biologia. Os cientistas da época estavam muito preocupados com o problema da me dida, ligado a certas experiências, sobretudo no domínio da ótica e da astronomia. Seme1hante problema conduziu natural mente à questão, em psicologia, da percepção. O nascimento da psicofísica ilustra bem a transferência dessas preocupações para o plano da psicologia como ciência. As difiéuldades a se rem superadas eram enormes, pois tratava-se de submeter à experimentação, não mais somente a matéria ou a vida, mas o próprio espírito do homem, o espirito deste sujeito criador de ciências. Por isso, não é de estranhar que, desde as primeiras tentativas feitas pela psicologia para tornar-se ciência, ela te nha sofrido as mais veementes críticas por parte dos filósofos, que opunham, a essa pretensão, uma psicologia sintética, de ordem racional ou intuitiva;- Quanto àqueles que, pelo contrá rio, pretendiam preservar-se de toda "contaminação" relativa mente à especulação filosÓfica, tiveram que correr o risco de cair pura e simplesmente na fisiologia, pcis, ao eliminarem a subjetividade, excluíram ao mesmo tempo da psicologia aquilo que era seu objeto específico. Este risco ainda não existia na corrente empirista posterior a Hume e anterior a Comte. Se gundo o empirismo clássico, com efeito, os métodos subjetivos e objetivos deviam, na prática, acomodar-se. A psicologia em pirista clássica ainda tinha por pano de fundo uma metafísica latente e inconfessada: a de Fechner e a de Wundt, por exem plo. Mas deixemos de lado este positivismo avant la lettre para 47 ver como surgi,u a psicologia experimental, origem do positi vismo psicológico ulterior. No século XVIII, época em que a psicologia se constitui a partir da crítica do conhecimento instituída pelos empiristas ingleses, a antropologia se propunha ser a ciência do homem físico e social. A psicologia reservou-se o domínio da existência individual. Seu postulado inicial era o da inteligibilidade intrín seca do domínio pessoal. Cada pensamento deveria ser consi derado como um domínio autônomo. Seus diversos momentos deveriam encadear-se em virtude de uma necessidade ordena da por normas racionais. Wolf afirma a possibilidade, em psi cologia, de uma psicometria utilizando a linguagem da mate mática. Mas a nova disciplina padece, desde o início, de um vício, de constituição : de um lado, ela mal se distingue de uma lógica do entendimento, do outro, os progressos da fisiologia ressaltam a submissão da consciência às suas condições neuro lógicas e biológicas. Assim, a especificidade da psicologia se vê duplamente colocada em questão: l:!c psicologia hesita entre a alienação de uma filosofia do espírito e a alienação de um materialismo psicofisioJógic.o. Como poderia ela ser ciência? Kant não acreditava que isso pudesse ser possível, pois, segun do ele, só há ciência quando se puder ap1icar a matemática. E a linguagem cifrada só pode ser aplicada, diz ele, aos fenômenos espácio-temporais da realidade material. O sentido interno, por sua estrutura, escapa a este tipo de inteligibilidade. Assim, não pode haver uma ciência psicológica como há uma ciência físi ca. Comte, como veremos, retoma esta negação de princípio. A seus olhos, o indivíduo isolado não pode reivindicar uma existência independente. Engajado no contexto social, seu pen samento responde a influências que o ultrapassam. Ademais, a pretensa observação de si mesmo não pode fornecer nenhum conhecimento verdadeiro. Todavia, a psicologia científica e experimental conseguiu afirmar-se na Alemanha, já na primeira metade do século pas sado. O pensamento inglês estava ainda preso a uma psicologia do senso comum fundada sobre a observação empírica da rea lidade que se oferece à consciência. Os alemães tentaram fazer algo de novo em matétia de psicologia. Assim, J. F. Herbart ( 1 776-1 841 ) , com sua Psicologia científica, tentou aplicar a 48 matemática ao estudo da vida psíquica. Ele compreende a vida psíquica em termos de representações num estilo intelectualis ta. Para ele, · a matéria da psicologia é a percepção interqa, o co mércio com os outros homeris, as observações do educador e dos homens de Estado, os relatos dos viajantes, dos historia!Clores, dos poetas e dos moralistas, as experiências fornecida� pelos lou cos, pelos doentes e pelos animais. Trata-se de racionalizar e de quantificar esses dados, a exemplo do que fizetam Galileu e Newton para a realidade física. Herbart tenta realizar tal pro jeto tratando cada representação como uma quantidade inten-, siva, · cujo grau pode ser expresso matematicamente. · Uma vez matematizadosos elementos da vida do espírito, o conjunto .PQ: derá ser facilmente submetido ao cálculo. Assim como Bichat havia tentado reconstruir a vida orgânica a partir dos tecidos isolados, Herbart tenta constituir uma psicologia a partir das representações. Para tanto, apóia-se na "psicofísica" que, para ele, deveria· ter por tarefa essencial determinar a relação entre o fenômeno físico, considerado como simples excitação causal, .e/ o fenômeno psíquico que dele resultava. Seu objetivo claro era a obtenção, em psicologia, de leis científicas. Todavia, Her bart não conseguiu realizar experiências . psicológicas sistemá ticas em laboratório: teve que contentar-se com experiências em pensamento. Foi o fisiólogo e anatomista E. H. Weber ( 1 79 5-1 8 78) quem, por seus estudos sobre as sensações táteis e visuais, conseguiu, pela primeira vez, passar do . domínio da fisiologia ao da psicologia. Ele estava convencido de que a quantidade de excitação necessária para discernir uma primeira sensação de uma segunda, deveria estar em relação constante e deter minável com a sensação inicial: Se esta quantidade é aumen tada pouco a pouco, a sensação primeira permanece inaltera da. Para que o sujeito perceba o crescimento dessa sensação, ou experimente uma sensação diferente, mostrando a transpo sição de um limiar de consciência, é necessário que haja um aumento de certa importância, .proporcional à quantidade da primeira sensação. Domde a "lei" de Weber: a excitação cresce ou decresce .de modo contínuo, a sensação de modo descon tínuo, e a quantidade de excitação, correspondendo a um limiar diferenci'al, encontra-se numa re1a_Ção fixa com a excitação ini- 49 cial. Apesar, contudo, da mistura feita por Fechner de realismo e de irrealismo em psicologia, isso não o impediu de ser o primeiro "psicólogo" a empreender a exploração metódica do domínio tátil e do domínio visual. Essas pesquisas positivas foram sistematicamente desenvolvidas ulteriormente pelos fi siologistas, que fundaram a neurologia moderna. Assim, a ana tomia e a histologia, aproveitando-se , das novas possibilidades abertas pelo microscópio acromático, abriram os caminhos para o estudo psicológico da percepção. E os pressupostos da aná lise ideológica são substituídos pelos pressupostos de um co nhecimento exato do sistema nervoso. Seguindo as pistas abertas por Weber, Johannes Müller ( 1 801-1 858 ) , um dos fundadores da medicina positiva, formu la, em sua obra fundamental Manual de psicologia humana, a teoria da energia específica dos nervos. Segundo essa teoria, os receptores sensoriais impõem seu caráter próprio à percep ção dos objetos: uma mesma excitação produz, sobre sentidos diferentes, impressões diferentes, ao passo que excitações . dife rentes de um mesmo sentido produzem impressões análogas. Donde uma teoria "nativista" da percepção, conferindo aos re ceptores sensório-motrizes um valor constitutivo na represen tação do real. Todas essas aquisições novas de Weber, Fechner e Müller tiveram por conseqüência a passagem da psicologia para. o domínio da fisiologia, sobretudo, tal como ela foi inicialmente formula.da por Hermann Lotze ( 1 8 17-1881 ) . A contribuição essencial de Lotze, em sua Psicologia médica ou fisiologia da alma ( 1 852) , consiste na doutrina dos "sinais locais", oposta às concepções neurológicas de Müller. Segundo ele, a represen tação perceptiva é qualitativamente afetada por uma iniciativa dos centros nervosos que situa cada impressão na totalidade do percebido. A idéia de uma regulação de conjunto contradiz o "nativismo" segundo o qual a influência das terminações ner vosas seria predominante. Entretanto, coube a W. Wundt' ( 1 832-1920) desempenhar um papel decisivo para a constituição da psicologia experimen tal. Podemos dizer que lhe cabe o mérito de ter sido o pri meiro psic6logo na história da psicologia. Ele é o primeiro em data a ser considerado propriamente psicólogo. Antes dele. 50 havia muitas psicologias, mas não existiam psicólogps. Os pre cursores de Wundt são médicos, fisiologistas e físicos, só . se interessando pela psicologia . secundariamente. Wundt, porém, fez da psicologia seu centro de interesse principal. Ele a · ane xou tanto à fisiologia quanto à anatomia. Seu objetivo consistiu em elaborar uma psicologia que só admitisse "fatos". Para. tan to, fez apelo, na medida do possível, à experimentação e à me dida. O laboratório de psicologia experimental, que ele criou em Leipzig em 1 878, equipado com todo o instrumental cien-: tífico da ciência de seu tempo, foi muito freqüentado por estu dantes de várias nacionalidades que, de volta a seus países de origem, tentaram imitar Wundt. Segundo Wundt, a experimentação permite o '·controle , dos dados passivos fornecidos pela introspecção. Contudo, ele não se limita a vincular a vida psíquica às . suas condições anatômi cas e fisiológicas. Para ele, o domínio da psicologia depende de uma inteligibilidade autônoma, muito embora esta inteligi bilidade deva estar submissa a uma causalidade tão rigorosa quanto a das ciências naturais. Assim compreendida, apoiada sobre uma metodologia experimental, a psicologia deve estudar os problemas da sensação, da percepção, do raciocínio, do sentimento, etc. Ela constitui uma verdadeira "ciência do es pírito". Aliás, uma ciência privilegiada entre as outras, pois ocupa um lugar central, de que as demais ciências do espírito (humanas) são tributárias. Wundt exerceu grande influência, sobretudo nos psicólo-: gos americanos, Em primeiro lugar, estudou a fisiologia. Neste particular, sob a influência de Helmholtz, deu muita impor t!ncia às pesquisas sobre as percepções visuais e auditivas, bem oomo ao estudo da condução nervo�a. Preocupado com o pro blema colocado pela "equação pessoal dos astrônomos" (cada mn parecia possuir seu próprio tipo de erro) , Wundt dedicou-se, inicialmente, ao estudo da percepção sensorial, especialmente da visão. Posteriormente, passou a estudar a memória, a inteli gência, o desenvolvimento estético, moral e social; e, através de -.ma psicologia comparada, estudou também a linguagem no ho JJlem e nos animais. Estava convencido de que as manifestações wperiores da atividade espiritual escapam às pesquisas de la boratório. Outros recursos de investigação deveriam ser encon- 51, trados: crianças, doentes, filologia, história e etnografia. Foi neste sentido que escreveu volumosas obras sobre a "psicologià dos povos". O que tinha em mente, era descobrir e determinar a relação dos fenômenos psíquicos com seu substrato orgânico, especialmente cerebral, pois acreditava que nada se passava em nossa consciência que não encontrasse seu fundamento em de terminados processos físicos. Por isso, tentou demonstrar que a sensação e a imagem são o produto das passagens do influxo nervoso nos neurônios cerebrais. Todavia, atribuiu às pesquisas experimentais apenas um campo bastante limitado, reconhecen do dois tipos de leis do conhecimento : leis associativas e leis perceptivas. Estas últimas eram as que exprimiam a atividade livre do pensamento. Numa perspectiva semelhante à de Wundt, Théodule Ribot ( 1 839-1916) foi, antes de tudo, um teórico da nova disciplina. Suas duas obras principais, Psicologia inglesa contemportinea ( 1 870) e Psicologia alemã contempordnea ( 1 879 ) , podem ser consideradas como um mànifesto da nova psicologia experi mental . �ibot foi sobretudo um professor de "psicologia ex perimental e comparada". Recomendava insistentemente aos seus alunos que adquirissem uma sólida formação científica e uma rigorosa especialização em determinado setor do vasto domínio psicológico. Atualmente, dizia, o número dos que estão preparados para tal empreendimento é muito pequeno. A maior parte dos fisiologistas não tem muito de psicólogos. E a maior parte dos psicólogos conhece mu�to mal a fisiologia. Seria pre ciso, para se empreender com êxito as pesquisasem psicologia, "conhecer as matemáticas, a física, a fisiologia, a patologia, ter uma matéria a manipular, instrumentos ao alcance da mão e, sobretudo, o hábito das ciências experimentais". Tudo isso, constatava Ribot, ainda nos falta. Evidentemente, Ribot revelava por vezes um entusiasmo de neófito · em relação à psicologia. Contudo, fez algumas consi derações bem pertinentes a respeito dessa disciplina. Por exem plo, considerava que a nova psicologia diferia da antiga: pri:.. meiramente, por seu espírito - não era metafísica -; em se. gundo lugar, por seu objeto - estudava apenas os fenôme:;. nos -; enfim,· por seus · procedimentos - ela os tomava de empréstimo, na medida do possível, às ciências bio16gicas. Isto, 52 porém, não impediu Ribot de cair num certo exclusivismo : achava que a psicologia, até então, cometera o erro de estar nas mãos dos metafísicos. Ora, dizia ele, "nenhuma reforma é efi caz contra aquilo que . é radicalmente falso, e a antiga psicolo gia é uma concepção bastarda que deve perecer pelas contra dições que ela encerra". A evolução de Ribot reflete bem as vicissitudes da nova psicologia, aspirando a um estatuto de cientificidade ( desco berta de leis) no domínio científico, especialmente em suas re lações com seus dois incômodos vizinhos : o filósofo e o fisió logo. De modo geral, Ribot tenta privilegiar a fisiologia, tal como pode testemunhar sua tentativa de reduzir a memória a um hábito fundado ein processos puramente orgânicos. Contu do, sua sólida formação filosófica mantinha nele a consciência das dificuldades metodológicas. Até sua morte, dirigiu a céle bre Revue Philosophique, fundada por ele em 1 876. Assim, foi obrigado a reconhecer que as experiências de laboratório têm seus limites, que a certeza das pesquisas objetivas não é abso luta, e que o método subjetivo condiciona, de fato, todos os demais métodos. , Portanto, após vencer vários e sérios obstáculos, a psi cologia científica consegue, enfim, constituir-se como ciência do homem concreto, deixando completamente de lado o pensa mento e as intenções do. sujeito. No entanto, as posições dessa ciência objetiva se vêem seriamente ameaçadas deside o início. Em 1 874, Franz Brentano, com sua Psicologia de um ponto de vista empirista, rompe com a psicologia analítica e os associa cionismos existentes, proclamando a prioridade de um estudo do ato mental e da noção de Intenção. Vários psicólogos pas saram a estudar as funções da vida mental e a reconhecer a especificidade da vida do espírito. A psicologia de Brentano será o ponto de partida dos trabalhos de E. Husserl ( 1 859- 1938) que, a partir da idéia de intêncionalidade, empreende uma recuperação da psicologia pela filosofia. As Investigações lógicas aparecem em 1900, e a primeira parte de suas Idéias diretrizes para uma fenomenologia surge em 1913 . A consciên cia, desprezada e relegada, retoma seus direitos de cidadania. E na mesma época surge a psicologia da forma, cujas origens remontam ao artigo de von Ehrenfels Sobre as qualidades da 53 estrutura ( 1 890) . A partir de 1910, o grupo constituído por Wertheimer ( 1 880-1943) , Kõhler (nascido em 1 887) e Kof fka ( 1 886-1941 ) multiplica as investigações em todos os setores da psicologia, partindo de um reagrupamento dos elementos da vida �ental, cuja inteligibilidade deve proceder por conjuntos e , não através dos detalhes. Essas concepções vão se transferir para os Estados Unidos da América, onde encontrarão grande desenvolvimento. . · · 3. 0 ESTATuro CIENTÍFICO Hoje em dia, quase todo mundo reconhece que a psicolo gia é realmente uma disciplina científica. Ela já teria alcançado o estatuto de cientificidáde que a tomaria completamente in dependente da filosofia. Mas foi somente em data relativamen te recente que a psicologia conseguiu descobrir o objeto espe cifico de suas investigações. :e o que reconhece, por exemplo, Pierre Gréco, em recente trabalho epistemológico . sobre a psi cologia. Com efeito, na obrn co!etiva dirigida por Piaget, Logi que et connaissance scientifique ( 1967) , após relembrar certas discussões de caráter metodológico, ele reconhece que os de bates evocados poderão parecer bastante vãos "a quem sabe que, pelo menos há meio século, se desenvolveu uma psico�ogia com as garantias do método experimental; portanto, ela não deve constituir sua objetividade por um desvio epistemológico sutil". Assim, relativamente a este assunto da objetividade em psicologia, parece não haver mais dúvida de que a maioria dos autores reconhece que já se chegou a um razoável consenso. Tal consenso parece justificar amplamente a maneira como se apresentou a maioria dos estudos e trabalhos de psicologia pu b1icados nos últimos tempos, a menos que eles não reivindiquem expressamente um enfoque de natureza filosófica. Por isso, per manece um problema a ser ainda resolvido. Trata-se de um problema de fronteiras entre a psicologia científica e a psicolo gia filosófica. Tal problema parece ser claramente discernido através daquilo que dele diz Piaget em sua :Spistémologie deJ sciences de rhomme (1972). Com efeito, a epistemologia que Piaget faz de sua própria prática de psicólogo, leva-o a dizer que os 40.000 membros da Unilo Internacional de Psicologia Científica jamais quiseram 54 ... aderir ao Conselho Internacional de Filosofia e de Ciências Hu manas. Quer dizer: todos esses psicólogos, não somente reco nhecem a autonomia de sua disciplina, como também não se consideram ainda bastante seguros para relacionar-se com a filosofia. Qual a razão dessa recusa? N�o é porque a psicolo gia se desinteresse pela filosofia, mas porque pretende manter suas distâncias relativamente a toda especulação de ordem filo sófica. Esta constitui ainda uma "ameaça" à psicologia cientí fica em sua busca incessante de cientificidade. Ela ainda se sente "ameaçada" pelo "perigo" da especulação filosófica. Esta em nada ameaça a lingüística ou a demografia. Em segundo lugar, é verdade que houve no passado e ainda há no presente, muitos autores que tiveram ou têm a pretensão de tratar filo sofi<;amente a psicologia. Para eles, a psicologia científica seria insuficiente e impotente para fornecer um conhecimento ade quado do homem. Por isso, deveria ser completada por uma "psicologia filosófica", também chamada de "antropologia fi losófica". Num passado remoto, o Tratado da Alma de Aris tóteles apresentou-se como ilustração clássica de semelhante ten tativa filosófica. Mais próximo de nós, no século XVIII, Chris tian Wolf justapunha pura e simplesmente uma Psychologia rationalis, considerada por ele como uma das três "metafísicas especiais", coordenadas pela "metafísica geral" ou ontologia, a uma Psychologia empírica, muito mais próxima do saber pro priamente empirico do que a "ciência" puramente especulativa. Bem mais recentemente, Hegel pretendeu construir toda uma "filosofia do Espírito", comportando um bom segmento de "psicologia especulativa". E não se pode dizer com absoluta certeza que a . posteridade de semelhantes tentativas tenha de saparecido por completo. O problema consiste em compreendermos como, mesmo em nossos dias, pode ocorrer a persistência de tais empreendimen tos de absorção, pela filosofia, de todos os tipos de psicologia empirica. Se levarmos em conta o pensamento e a argumenta ção de Piaget, veremos que ele estabelece, em primeiro lugar, a seguinte diferença : a psicologia, como qualquer outra ciência, visa única e exclusivamente a fazer uma análise sobre os "fatos observáveis", ao passo que a filosofia procura sempre atingir a natureza das coisas ou suas "essências". Ora, diz Piaget, não 55 aio os problemas nem tampouco os domínios de estudo que deverão separar psicólogos e filósofos, pois ambos se ocupam legitimamente do comportamento, do desenvolvimento ou das estroturas. Considerar a diferença entre os dois domínios de estudo pela natureza dos problemasanalisados, seria bastante simplista. E a razão é a seguinte : entre o conjunto dos pro blemas considerados filosóficos e aqueles que não o são, há um gradativo deslocamento de fronteira, de época em época, em benefício daquilo que parece poder ser tratado cientificamente. A pergunta que Piaget coloca é a seguinte: por que, em determinado momento da história, certos problemas são consi derados como dependendo da psicologia científica, e outros, por exemplo, o da liberdade, como não dependendo dessa disci plina, devendo ser relegado à filosofia? Sua resposta é clara: pura e simplesmente porque há questões que podem ser sufi cientemente delimitadas para darem lugar a uma solução por meio da experiência e do cálculo; além disso, porque as solu ções assim obtidas são susceptíveis de estabe1ecer o acordo geral dos pesquisadores ou, em caso de desacordo momentâneo, de dar lugar a controles intersubjetivos ou a verificações experi mentais, até que seja possível um acordo posterior. Por outro lado, insiste Piaget, se o problema da liberdade não interessa, pelo menos por enquanto, à ciência, evidente mente não é por causa de sua natureza (fenômeno ou "essên cia") , mas porque os cientistas ainda não conseguiram desco brir um meio de colocá-lo em termos de verificação experimen tal ou algorítmica; ou, então, porque, pelo menos no estado atual das coisas, as soluções que nos foram propostas ainda de pendem de juízos de valor, de crenças e de ideologias. Ora, muito embora devamos respeitar os juízos de valor, as crenças e as ideologias, não podemos negar que eles são irredutíveis uns aos outros. Isto pode constituir uma situação aceitável em filosofia, jamais, porém, nas disciplinas propriamente cientí ficas. Enfim, prossegue Piaget, ninguém está em condições de di zer que o prob!ema da liberdade não interessa à ciência. Tudo o que se pode afirmar é que a ciência, atualmente, não se ocupa desse problema. Mas já existem certos sintomas que nos mos tram uma possível mudança de perspectiva. E ele faz alusão explícita ao famoso teorema de Gõdel, recentemente aplicado 56 r I t às máquinas que simulam o trabalho do pensamento, mostran do a analogia existente entre os problemas lógico-matemáticos e os problemas da contingência e do determinismo. Numa segunda aproximação, poderíamos dizer que a fron teira entre a psicologia científica e a psicologia filosófica é um problema puramente de método : de um lado, teríamos métodos objetivos, do outro, métodos reflexivos, intuitivos ou especula tivos. Se é assim, chegamos ao cerne da dificuldade própria à psicologia que pretende atingir o estatuto de cientificidade me diante a reivindicação do modelo de objetividade característico do tipo de conhecimento fornecido pelos métodos das ciências naturais. Piaget formula a dificuldade da seguinte maneira: num domínio como o do estudo dos fatos mentais, onde deve situar se o limite entre a objetividade e a subjetividade? Qual a fron teira entre o método objetivo, científico, e o método intuitivo, subjetivo e especulativo? E, apesar de reconhecer e de evocar não somente o alcance mas também a pertinência da questão, Piaget propõe a seguinte solução : somos freqüentemente ten tados a crer que esta linha divisória seja devida à introspecção. De fato, houve uma escola psicológica, o behaviorismo, que se propôs como objetivo essencial proscrever toda e qualquer re ferência à consciência, para ater-se única e exclusivamente ao comportamento exterior observável. Assim, o pomo de discór dia da psicologia científica, sobretudo no momento de seu aces so à cientificidade, situava-se no confronto, por vezes confli tante, entre o introspeccionismo e o behaviorismo. Ora, nem todos os psicólogos quiseram eliminar de modo absoluto e ra dical a introspecção. Piaget acredita ser inteiramente falsa a crença segundo a qual a psicologia científica pretenda negar absolutamente a consciência. Ele chega até mesmo a admitir, em psicologia científica, certa prática controlada da introspec- . ção. Neste sentido, tende a considerar como ultrapassado e, por conseguinte, como já resolvido, numa espécie de síntese satisfatória, o célebre debate entre a "psicologia introspeccio nista" e a "psicologia do comportamento". A este respeito, sua argumentação é clara: Se a diferença entre a psicologia científica e a psi cologia filosófica não se encontra nem na introspecção 57 nem na consideração do sujeito, é preciso, pois, procurá la num ponto mais restrito, que é ainda uma questão de . método, mas que diz respeito unicamente ao papel do "eu" do próprio investigador. A objetividade, tal como a entende a psicologia científica em suas tendências atuais, não é, de forma alguma, a negligência ou a abstração da consciência ou do sujeito, mas, isto sim, a descent�ação relativà ao "eu" do observador. Portanto, segundo Piaget, a única diferença entre a psico logia científica e a filosofia reside na de:;centração do eu: onde o ,psicólogo pretende apenas apresentar hipóteses verificáveis por cada um, fornecendo com suas diferentes técnicas os ins trumentos de controle intersubjetivo, o filósofo admite ser pos sível conhecer-se a si mesmo através de um conjunto de intui ções consideradas como primitivas e anteriores a todo e qual quer conhecimento psicológico. Assim, a libertação da psico logia é uma realidade. E sua independência está confirmada, embora ainda possamos ter dúvidas quanto à sua total autono mia para com as pressuposições filosóficas. A persistência de diferentes escolas psicol6gicas não se explica senão por certas opções filos6ficas prévias. Na perspectiva de Piaget, por "descentração" deve ser en tendida a conquista progressiva, feita pelo psicólogo; de uma atitude intelectual que o desprende da atenção dada exclusiva mente ou de modo primordial à vida psíquica e à psicologia do seu próprio eu, chamado de "sujeito egocêntrico" ou "psicoló gico", em oposição ao sujeito propriamente científico, o "su jeito epistêmico". Trata-se, pelo menos, do sujeito desse homem adulto e culto, mais ou menos idêntico ao eu do psicólogo, imaginado ingenuamente como constituindo o eu universal mente humano. Por conseguinte, a "descentração" outra coisa não é senão esta libertação da atitude científica relativamente a esta referência única e ingênua do estudo psicológico. Como observa Piaget, a psicologia filosófica, sob a influêncilt de preo cupações normativas, estava centrada sobre o eu enquanto ex pressão imediata da alma. E o método que lhe parecia satisfa tório era, naquele então, o da introspecção. Contudo, através de longo itinerário, em que intervieram as comparações sis- 58 r temáticas entre o normal e o patológico, entre o adulto e a criança, bem como entre o homem e o animal, o ponto de vista que terminou por prevalecer, na psicologia científica, foi aque le segundo o quâl a consciência só pode realmente ser com preendida em sua inserção no conjunto da conduta. E isto só poderá ser levado a efeito com a utilização dos métodos de observação e de experimentação. Desta forma, os métodos comparativos (psicologia normal/psicologia patológica; psicolo gia do adulto/psicologia da criança; psicologia animal/psico logia humana) constituem um dos agentes fundamentais para a realização efetiva da passagem de uma psicologia mais ou menos dogmatizante e pretensamente filosófica, a uma psicolo gia mais verdadeiramente científica. Ora, o que podemos notar é · que Piaget parece ignorar que, no domínio -das ciências humanas, a fragmentação dessas disciplin_as corresponde a uma fragmentação do próprio méto do. Evidentemente, o projeto científico é o de um saber. Toda via, a instauração do saber não é o simples reconhecimento de um dado. Ela supõe uma iniciativa e uma decisão. Esta decisão diz respeito ao método a ser empregado. Uma decisão de ordem metodológica é fundamental, porque a idéia do saber científico inclui o reconhecimentodo caráter ilusório da ex periência imediata. Ora, o imediato não é o verdadeiro. A ciên cia só se toma possível quando se vai além da experiência imediata. E o caminho que nos leva além do imediato, é o mé todo. Este comporta quatro elementos fundamentais: a) certo corte da re�tlidade, através de uma abstração conveniente, o que implica numa "redução" da realidade a um esquema ideal mais ou menos simplificado; b) procedimentos de investigação adaptados à realidade assim "reduzida"; c ) procedimentos re presentativos, isto é, uma linguagem empírica permitindo ex pressar com precisão as investigações e seus resultados; d) en fim, procedimentos explicativos, isto é, uma linguagem teórica permitindo reencontrar, por via dedutiva, os dados empíricos e, assim, explicá-los. Importa ressaltar que o objeto a ser estudado é que deve co mandar a escolluJ do método. Nas ciências naturais, há um amplo consenso quanto aos métodos. O mesmo não ocorre nas ciências humanas, onde a situação metodológica parece 59 bastante confusa. Por exemplo, na psicologia, devemos empre· gar os métodos "redutores", inspirados nos métodos das ciên· cias da natureza, isto é, na constituição de modelos ideais? Ou devemos utilizar os métodos de tipo puramente matemático? Não poderiam ser usados os métodos "compreensivos"? Par�nos que, no caso da psicologia, seu objeto não é de natureza a re comendar, de modo unívoco, a utilização deste ou daquele mé todo. Métodos diferentes podem justificar-se. Ela poderá recor rer ora à construção de "modelos", o que acarreta o emprego de métodos matemáticos, ora à "compreensão" dos fenômenos, isto é, a um método hermenêutico. No entanto, Piaget afirma que a psicologia deve recorrer apenas aos métodos de observação e de experimentação. E foi por ter seguido esta linha de conduta, que se pôde encontrar os três pontos que, juntos, constituem a característica essencial das grandes tendências da psicologia contemporânea, ao pre tender im�r-se como uma das ciências do homem: 60 "a) O ponto de vista da conduta, isto é, do com portamento, incluindo a consciência ou a tomada de consciência. A introspecção, por si só, não basta, pois é ao mesmo tempo incompleta . . . e deformante . . . To davia, a consciência permanece um fenômeno funda mental, caso a situemos no conjunto da conduta; e é deste ponto de vista que estudaremos a tomada de cons ciência . . . "b) O ponto de vista genético, isto é, no sentido do desenvolvimento ontogenético (do indivíduo embrio nário ao adulto) , pois, se considerarmos o adulto, só perceberemos os mecanismos já constituídos, enquanto que, se seguirmos o desenvolvimento, atingiremos sua formação, que já é, por si mesma, explicativa; "c) O ponto de vista estruturalista, ainda não ad mitido por todos . . . , busca a investigação das estrutu ras de comportamento ou das estruturas de pensamento resultantes da interiorização progressiva das ações; mas de estruturas cujos efeitos podemos estabelecer experi mentalmente, enquanto que o sujeito, em si mesmo, ape· sar de tê-Ias construído por sua própria atividade, não toma consciência de sua existência enquanto estrutu ras." Como podemos notar, Piaget, em sua epistemologia da psicologia, parece tomar o problema do estatuto científico da observação e da experimentação oomo questão praticamente resolvida. Neste sentido, a seu ver, o behaviorismo de estrita observância é uma psicologia, senão anacrônica, pelo menos em franca regressão. Porque não se pode negar a importância e a legitimidade de uma utilização racional da introspecção, até mesmo por psicólogos ciosos da cientificidade de sua disciplina. Sem dúvida, isto é bastante correto enquanto descrição daqui lo que se passava, na prática, em psicologia, especialmente nes sas formas de psicologia que utilizam os métodos genéticos ou histórico-críticos para explicar o objeto de suas investiga ções. Todavia, uma pergunta parece-nos pertinente: será que este modo bastante pragmático e descritivo de se fazer psico logia não conduziria a um aspecto essencial do debate episte mológico ainda não resolvido satisfatoriamente? Trata-se do seguinte problema: há toda uma disputa opondo radicalmente aqueles que admitem a observação introspectiva àqueles que, em psicologia, professam um behaviorismo estrito e proscre vem absolutamente toda e qualquer introspecção. Esta disputa não data de ontem. Ela coloca em questão a própria existên et:> da psicologia como ciência. E faz apelo a ;decisões episte mológicas de princípio que não se limitam à práticâ mais ou menos vigilante de uma espécie de combinação dos métodos de estudo do comportamento com o método da introspecção. Portanto, seguiremos agora as seguintes etapas: 1 ) o behavio rismo e o questionamento da introspecção; 2) o questiona mento do behaviorismo. 61 l i I BEHA VIORISMO E INTROSPECÇÃO O que se deve entender por "introspecção" e por método introspectivo? Nem todos os psicólogos entendem da mesma forma o que vem a ser a introspecção. Limitemo-nos, por en quanto, a dizer que a introspecção consiste numa observação feita pelo psicólogo sobre os fatos de sua própria vida mental, quer dizer, sobre aquilo que se passa ou se produz no interior de sua própria consciência. Em contrapartida, vamos caracteri zar o bchaviorismo estrito, mostrando apenas suas idéias essen ciais. Começaremos por uma rápida apresentação da teoria in trospectiva, tal como ela fol sistematizada por Henri Bergson. Em seguida, daremos algumas indicações sobre a teoria refle xológica, pois ela está na base do behaviorismo em psicologia. Finalmente, veremos como a doutrina psicológica de Comte influenciou o behaviorismo posterior. 1 . A PSICOLOGIA INTROSPECTIVA O desenvolvimento da psicologia experimental e científica teve que enfrentar sérias oposições, enquanto pretendia rom per com a especulação filosófica, de que foi, no decurso dos séculos, uma fiel companheira. No momento mesmo em que a psicologia se constituía como ciência, teve que enfrentar a oposição virulenta de Bergson. Este, com efeito, entregou-se a uma crítica severa das tentativas que visavam a estudar o psiquismo humano através dos métodos objetivantes. A esses métodos, Bergson opôs uma introspecção de caráter bem par ticular. O que ele pretendia era demonstrar que a psicologia não pode ser constituída no nível da experiência, entendida num sentido positivista e materialista. Ademais, procurou mos- 65 trar que tal experiência mutilava a realidade que se pretendia estudar. A reivindicação de Bergson foi logo tachada de reação sentimental, pois pretendia substituir as pesquisas cujo desen volvimento só poderia ser assegurado pela "observação" obje tiva e pela experimentação, por intuições inverificáveis e subje tivas. Semelhante oposição de princípio confirma o condiciona mento das pesquisas por pressupostos de ordem filosófica. en gajandQ uma concepção geral do homem. Sem entrarmos aqui nos detalhes do debate, observemos que a introspecção, enten dida como fonte de revelação pela consciência, é capaz de for necer vários elementos. No entanto, para Bergson, o elemento fundamental é aquilo que ele chama de duração pura. Esta duração (durée) se revela ao investigador dos "dados imedia tos da consciência" como a realidade por excelência. Em seu Ensaio sobre os dados imediatos da consciência ( 1 889 ) , Bergson visa a denunciar a ilusão que funda, a seus olhos, o determinismo psicológico: considerar os estados de consciência como unidades distintas, como espécies de átomos psíquicos regidos por leis associativas. E aquilo· que revelam os "dados imediatos da consciência", é a realidade móvel da "duração pura" ou o tempo vivido, fusão daquilo que se pode chamar de estados de consciência. Não se trata de elementos quantitativos, mas de uma continuidade cuja aparente multi plicidade é inteiramente qualitativa. Trata-se de momentos he terogêneosque se penetram, se misturam e se organizam, de tal forma que não se pode dizer se são um ou vários : quando apreendidos quantitativamente, são desnaturados. Semelhante descoberta leva Bergson a opor romanticamente ao eu exterior e social, um eu profundo, cujas manifestações atestariam a l iberdade humana. O ponto central do pensamento de Bergson é a radical distinção que ele estabelece entre duração e espacialidade. O corolário desta distinção é a que ele estabelece entre a inteli gência, que só consegue representar o descontínuo, e o instinto. :e. a oposição entre inteligência e instinto que funda seu intuiti vismo. O instinto, para ele, apreende o real "de dentro", por um conhecimento vivido, e não representado. O instinto se tor na, no homem, fonte de conhecimento. E ao tornar-se cons- 66 •• ' .: ' . • ciente de si mesmo, ele se transforma em intuição. O instinto, faculdade de utilizar e de construir instrumentos organizados, permanece prisioneiro da pré-adaptação que o constitui. A in teligencia, por sua vez, faculdade de fabricar e de empregar instrumentos não organizados, abre o caminho a uma auto adaptação indefinida. O instinto está em continuidade com a vida. Ele seria capaz de compreender, caso fosse capaz de co nhecimento reflexivo. A inteligência é apta a tal conhecimento, mas é naturalmente orientada para a matéria, para a fabrica ção técnica, para a análise científica que é como que uma manipulação mental dos objetos. Não cabe aqui uma análise mais profunda do introspeccio nismo de Bergson. Salientemos, contudo, que a "revolução" metodológica por ele promovida apareceu, há muito, como um bandeira libertária dentro do clima positivista reinante na psicologia da época. A influência de Bergson foi grande em vários domínios: artístico, literário, científico e político. Pierre Janet, num congresso de psicologia realizado em Paris, em 1937, declarava: Um programa importante foi pouco a pouco adqui rido na concepção da psicologia científica: o essencial desta ciência, se ela quer ser objetiva e tomar-se útil, deve ser o estudo da ação humana; e todos os fatos psi cológicos devem ser expressos em termos de ação. Eis uma idéia que, desde o início, nos foi inspirada pela psi cologia de Bergson e que, sob diferentes formas, predo mina hoje em dia na maior parte dos estudos de psicologia científica. Por outro lado, certa psicologia do comportamento pode ria muito bem reclamar-se de Bergson, no sentido em que, para ele, o cérebro tem, além de suas funções sensoriais; o papel de "imitar" a vida mental : ele imprime no corpo os mo vimentos e as atitudes que representam aquilo que o espírito pensa. :e através dessa "imitação" que nos inserimos na reali dade, que nos adaptamos a ela, que respondemos às solicita ções das circunstâncias por ações apropriadas. 67 2. REFLBXOLOGIA E BEHAVIORISMO A descoberta dos reflexos condicionados surgiu, em pri meiro lugar, no domínio da psicologia animal. Levando em conta a importância que o behaviorismo de Watson deu a essa descoberta nos Estados Unidos da América, podemos dizer que ela representa uma contribuição capital à nova psicologia, sob seu aspecto mais radicalmente objetivista. Esta descoberta é inseparável do nome do fisiólogo e neurologista Pavlov ( 1 849- 1939 ) , prêmio Nobel em 1 904, com um trabalho sobre a di gestão. A doutrina de Pavlov nasceu da experimentação que ele empreendeu sobre os cães. Ela consiste essencialmente em substituir um excitante ou stimulus (S) primitivo, gerando um reflexo absoluto e incondicionado, por um novo excitante ou "estímulo condicionado" (também chamado por Pavlov de sig nal) , que provocará, por sua vez, uma resposta reflexa adqui rida. Assim, o cão que saliva, quando recebe um pedaço de carne (reflexo incondicionado ) , voltará a salivar quando ouvir um som ou perceber uma luz, desde que tais estímulos sejam acompanhados de um número x de vezes da apresentação do pedaço de carne. Quer dizer: uma nova associação reflexa sur ge entre o centro auditivo ou ,;sual e o centro salivar: o reflexo "condicionado" ou associado. E Pavlov acredita que todo fenô meno natural pode tornar-se signal: um som, uma cor, um odor, uma estimulação da pele, etc. A experimentação veio demons trar que esses reflexos condicionados colocam em jogo pro cessos não somente de excitação como também de inibição. Porque um cão pode ser condicionado de tal forma, que o reflexo espontâneo de dor cesse diante de um reflexo de satis fação, sob certas condições. Constatou-se que esses condicio namentos podem atingir grande especificidade; que um cão pode tomar-se apto a reagir apenas a certos estímulos, com exclu são de outros. Pavlov chegou mesmo, colocando em conflito processos de inibição e de excitação, a provocar verdadeiras neuroses caninas. Donde certos autores crerem que a gênese da neurose aparece, em Freud, a partir do momento em que se reprime ou se inibe um fator emocional. Todavia, os estímulos externos que criam os condiciona mentos são mecanismos frágeis, podendo desaparecer quando 68 · .. não continuam a ser mantidos por uma reintrodução passagei ra do estímulo natural (a carne ) . Na ausência desse estímulo, aumenta o tempo de reação, e diminui progressivamente a se creção salivar. Produz-se, então, aquilo que Pavlov chama de ''inibição interna": tendência do reflexo condicionado a desa parecer. Entretanto, para que tais experiênéias possam ter bom resultado, é preciso que se criem condições particulares de iso lamento. Pavlov constatou que, se ó animal fosse bruscamente "perturbado" pela chegada repentina de um estranho, uma "ini bição externa" viria comprometer o bo� andamento da expe riência. Ademais, surpresas imprevisíveis também podem inter vir. :S o caso da náusea provocada no cão pelo simples fato de ele ver o experimentador. Também é o caso do "reflexo de defesa" que pode produzir-se quando um cão, estimulado por uma corrente elétrica demasiado violenta, late ou tenta morder. Por outro lado, da constatação de que a completa ablação do córtex do cão implicava no desaparecimento dos reflexos con dicionados, Pavlov conclui que seu mecanismo depende intei ramente da função cortical. A experimentação era feita unica mente nos animais. Em matéria de condicionamento, ela é muito mais limitada nos. seres humanos. No entanto, é possível de ser feita. E foi o que tentou fazer J. B. Watson, o primeiro repre sentante americano do behaviorismo propriamente dito. A doutrina behaviorista consolidou-se sobretudo a partir do famoso artigo de Watson ( 1849-1936) intitulado Psycho logy as the Behaviorist views it ( 1913) . Este artigo apresen tou-se, antes de tudo, como tomada de posição radical contra toda e qualquer psicologia que pensasse poder utilizar a in..: trospecção e pressupusesse a existência da consciência como sendo o objeto de estudo da psicologia. Segundo Watson, E. B. Titchener e W. James foram os dois mais ilustres representan tes da psicoiogia introspeccionista no início do século XX. Ambos acreditavam ser "a consciincia o domínio da psicolo gia". O behaviorismo, ao contrário, pretende que o domínio tia psicologia seja única e exclusivamente o comportamento huma no. Ademais, estima que a consciência não é um conceito nem definido nem� tampouco, inteligível. E é por isso que o beha viorismo, que se propõe estudar experimentalmente � compor- 69 tamento humano, considera que a crença na existência da cons ciência nos remete aos velhos tempos da superstição e da ma gia. Qual o conteúdo do termo "consciência"? O que ele sig nifica? Para um psicólogo behaviorista, "comportamento" é tudo aquilo que um organismo vivo, animal ou humano, faz e diz em determinada situação; e que se toma, assim, susceptível de ser observado a partir do exterior. Desta forma, há uma pro funda semelhança entre a idéia ce observação do comporta mento e a idéia de observação na ciência física.A observação do comportamento é objetiva da mesma forma e no mesmo sentido como é objetiva a observação, na física, daquilo que se passa num sistema material qualquer. Foi levando isso em conta que Paul Guillaume achou por bem instaurar, para a psicologia, um "método objetivo puro" visando ao estudo behaviorista do comportamento. Para ele, os métodos objetivos devem estudar o comportamento, mas o comportamento relacionado com a situação em que ele é pro duzidv. Os termos dessa definição devem ser tomados em sen tido puramente objetivo. Trata-se de fatos físicos. O observa dor se situa, aqui, do ponto de vista do físico. Naturalmente, o fato psicológico deve ser definido de modo novo. Não é mais o estado de consciência pessoal, mas a relação do comportamen to com a situação que o engendra. Esta relação pode ser estu dada tanto nos ·outros quanto em nós mesmos. P. Guillaume não se pergunta sobre a possibilidade desse método. Está con vencido de que não somente podemos, como também devemos estudar as leis do comportamento humano e animal dá mesma forma como estudamos as leis do comportamento físico-quími co de um corpo qualquer (lntroduction à la Psychologie, 1942) . Por conseguinte, conferir à psicologia o comportamento (animal ou humano) como domínio de investigação próprio, é o mesmo que tentar "fisicalizar" ao máximo o objeto dessa dis ciplina. Mas esta fisicalização também pode significar, no caso da psicologia, a decisão epistemológica de limitar absoluta mente o observável, autorizado pela ciência do exterior, por observadores distintos daquele que pratica o ato a ser observa do. Segundo a regra behaviorista, podemos estudar o compor tamento de outrem ou o nosso. O estado de consciência, en- 70 quanto tal, permanece um domínio "privado" : somente aquele . que o vive pode observá-lo; ele só é acessív�l à pessoa singu lar, cuja observação permanece "subjetiva". O comportamento, pelo contrário, pertence ao domínio "público": qualquer um pode, em princípio, observá-lo. E é por isso que ele se torna objeto de ciência. Não é observado por um sujeito "egocêntri co" ou "psicológico", mas , por um sujeito "epistêmico". A ob servação direta do comportamento é algo comum a vários ob servadores. Desta forma, podemos chegar diretamente a esta "in tersubjetividade" ou a este "controle intersubjetivo" que é a condição natural, fundamental e sine qua non de toda objetivi dade científica em psicologia. Assim, ao reduzir o objeto da psi co!ogia ae comportamento humano externo, o behaviorismo não tem em mira outra coisa senão alcançar esta forma indis cutida da objetividade científica que já demonstrou sua validez e sua eficácia no domínio das ciências físicas, biológicas e quí micas. Segundo esta perspectiva, podemos perguntar: como é que a psicologia behaviorista pensa o comportamento? A resposta a esta questão não parece difícil. Para o behaviorismo, o com portamento é pura e simplesmente uma reação ou resposta do "sujeito" observado (homem ou animal) à situação na qual ele se encontra. Em outros termos, o behaviorismo pensa o comportamento como uma resposta do sujeito observado a� estímulo que age sobre ele. Neste sentido, o fato psicológico pode ser reduzido a este tipo de relação funcional entre o estf mulo agindo sobre o sujeito, cujo comportamento é observado, � a resposta dada por este sujeito. :e exatamente o que �xprime o clássico esquema fundamental S +- R da psicologia beha viorista. ..t\ caracterização objetiva da situação na qual se en contra o sujeito observado permite que se defina o estímulo S; a descrição objetiva do comportamento observado é, por sua vez, a definição da resposta R. O estudo do comportamento consistirá, pois, em fazer variar o estímulo S e em observar, a cada vez, qual a resposta R dadà ao estímulo S. Cai-se, assim, no clássico méto.do das "variações concomitantes". O sujei•o, cujo comportamento é observado, constitui, por assim dizer, o "operador" desta ligação funcional entre o estímulo e a respos ta. Ele pode :ser considerado como uma espécie de "aparelho", 71 cujo papel é o de transformar um dado de entrada (o estímu lo) em um dado de saída (a resposta) . Figurativamente, o es quema é o seguinte: DADO DE ENTRADA (IN PUT) --------+ = ESTIMULO APARELHO = SUJEITO (BLACK BOX) DADO DE SAlDA (OUT PUT) -------+ = RESPOSTA Convém ressaltar, no entanto, que a psicologia do com portamento não explicita esta similitude entre o Sujeito, cujo comportamento ela observa, e o Aparelho que transforma um dlulo de entrada em um d«do de saída, a não ser para preci sar que ela não leva em conta, no início, nenhuma idéia já pronta concernente à constituição interna deste Sujeito-Apare lho e à natureza particular do dispositivo que opera a trans formação do estímulo em resposta. Tudo o que a observação do comportamento fornece de modo imediato, é o elo funciQ nal susceptível de existir entre o estímulo e a resposta: o modo como a resposta do sujeito varia em função da variação do estímulo que o afeta. No dizer de B. F. Skinner, um dos mais ilustres representantes do behaviorismo contemporâneo em psicologia, o sujeito cujo comportamento é observado só pode ser considerado pelo observador como uma "caixa negra" (block bo.x) , isto é, como um aparelho cujo interior é inteira mente desconhecido. Não se pode saber como este aparelho é fabricado, nem tampouco como, em seu interior, o dado de entrada (in put) se transforma em um dado de saída (out put) . Tudo o que se pode saber é que o aparelho está aí para efetuar a transformação. E o estudo de seu comportamento con siste em ver como ele reage, através de diversas respostas, aos diversos dados de entrada que lhe são aplicados. A lei de cone xão entre o estímulo e a resposta, na medida em que se conse guir determiná-la graças à observação do comportamento, re duz-se a uma simples lei de fato. Assim, permanecemos dentro da perspectiva "legalista" própria ao positivismo de estrita obser vância. 72 ' • .B bem verdade que o positivismo de Skinner perdeu a in genuidade do positivismo clássico. Este consistia essencialmen te em lidar única e exclusivamente com os fatos observáveis, a fim de estabelecer entre eles relações repetiveis. O positivismo contemporâneo, em psicologia, não tem mais receio de ultra passar o nível dos fatos observáveis ou das "leis" através de uma investigação das explicações ou da elaboração de teorias interpretativas. Aliás, a psicologia científica contemporânea re conhece vários tipos de leis e diversas maneiras de enunciá-las, de tal forma que o trabalho científico, em psicologia, pode ser considerado como uma passagem contínua da procura das leis às hipóteses explicativas. Os psicólogos que reivindicam para sua disciplina um estatuto puramente descritivo, e que excluem sistematicamente a explicação propriamente dita, são positivis tas estritos que temem que, sob o pretexto explicativo, seja rein troduzido em psicologia o "homem interior". .B o caso de Skinner. Este autor, por exemplo, coloca problemas precisos de aprendizagem em psicologia animal e humana. Todavia, ao pretender enunciar apenas os dados certos, ele limita metodo logicamente suas análises apenas a dois tipos de fatos obser váveis: de um lado, aos in puts ou estímulos apresentados ao sujeito, do outro, aos out puts ou respostas verificáveis e men suráveis que se lhes seguem. Entre os dois, situa-se o organismo (ou aparelho) , com to.das as suas variáveis intermediárias psico lógicas ou mentais. Contudo, Skinner ignora peremptoriamente essas variáveis. E compara este organismo a uma "caixa negra" onde é possível apenas o estabelecimento de relações entre os in puts e os out puts, sem que nada se possa saber quanto àqui lo que se passa no Ín:terior do organismo. Bem entendido, uma das primeiras interdições desta ati tude do psicólogo, faée ao sujeito cujo comportamento ele estu da, consiste emeliminar do sujeito tudo o que se assemelha à consciência. Do ponto de vista da psicologia do comportamen to, a atitude do psicólogo introspeccionista, de interpretar o comportamento como uma manipulação exterior da vida psíqui ca, de uma consciência · presente a ele e para ele, não passa de um resquício da velha superstição "mentalista", que deve rá ser radicalmente abandonada. A ciência psicológica tem por obrigação eliminar absolutamente essas aderências mea- 73 talistas, pois nada tem a ver com eles. Para se tornar verda deiramente ciência, a psicologia deve abster-se por completo de todo e qualquer ato mental. Trata-se, para ela, de operar, desde o início, esta ascese radical. Mas isto não quer absolu tamente dizer que a psicologia do comportamento fique pri vada dos meios de desenvolver-se e de organizar-se. Mais ou menos no instante em que sua idéia toma corpo e começa a impor-se como atitude sistemática, a psicologia do comporta mento vai descobrir na teoria de Pavlov, como já vimos, um poderoso auxiliar. Ela passa, então, a apoiar-se no estudo do reflexo animal, bem como no estudo da possibilidade de pas..: sar do reflexo espontâneo aos reflexos condicionados no tér mino daquilo que se apresenta, então, como uma espécie de educação do comportamento. Ora, a idéia de reflexo condicionado é bastante geral. Ela foi elaborada, inicialmente, para se aplicar ao estudo dos funcionamentos fisiológicos elementares do organismo animal. Por exemplo, podemos estudar, até mesmo em animais dece rebralizados ou em músculos convenientemente preparados, as contrações musculares que constituem respostas do músculo a diversos estímulos : picadas, contato elétrico, etc., aplicados ao órgão receptor. Donde o esquema do arco reflexo em psi cologia nervosa: óRGÃO RECEPTOR ESTIMULO 74 , óRGÃO CENTRAL óRGÃO EFETUADOR :4 RESPOSTA Este esquema é análogo ao esquema do APARELHO que transforma um dado de entrada (in put) em um dado de saída ( out put) . Em outros termos, há modelos fisiológicos do com portamento. E são eles que possibilitam a identificação daqui lo que chamamos de psicologia do comportamento com um ramo mais especializado e diferenciado de uma ciência geral �o comportamento animal. A psicologia intervém especial mente no momento em que tomamos o organismo como um todo e sua relação com as situações criadas para ele por um meio ambiente, e no momento em que estudamos os compor tamentos que se mostram susceptíveis de aprendizagem (o per curso de um labirinto efetuado corretamente por um rato, no momento em que apresenta o comportamento "busca de co mida") e de substituições do estímulo inicial por outros estí mulos. A partir de Watson, que estabeleceu as primeiras bases conceituais da psicologia do comportamento, esta disciplina desenvolveu-se considerave'mente. E é verdade que tal desen volvimento se empenhou bastante para reforçar a convicção segundo a qual a psicologia era ou poderia ser uma disciplina verdadeiramente científica. Neste processo de aceder à cienti ficidade, a psicologia observava, desde o início, os cânones metodológicos que forneciam seu caráter científico inconteste às outras ciências, tais como a física, a fisiologia e a biologia dt' século XIX. Assim, a psicologia nasceu e se desenvolveu sob a proteção do método experimental adotado pelas ciên cias naturais. Este método era, para ela, a garantia mais segu ra da objetividade de seu conhecimento. Todavia, de fato - e como podem revelar-nos as epistemologias da psicologia que tentam dar certo lugar à consciência e ao fato psíquico -, o problema da psicologia está- longe de ter sido inteiramente re solvido pela decisão behaviorista e, menos ainda, por um sim ples propósito de estrita observância à sua regra inicial de método. Para termos uma idéia mais clara sobre a situação real da psicologia diante da decisão behaviorista, talvez seja ins trutivo remontarmos à doutrina de Comte sobre a psicologia. Este retomo a Comte é importante, pois a psicologia se viu às voltas, na primeira metade do século passado, com o "veto 75 positivista" a toda tentativa de constituição de uma psicologia científica. O programa positivista de 1 826-1830 exclui ra.di· calmente a psicologia da ordem das ciências. Comte não esbo ça projeto algum, nem propõe método algum para assegurar aos "fatos psíquicos" um estatuto positivo comparável ao es tatuto que pretende atribuir aos fatos sociais, irredutíveis aos fatos. biológicos. 3 . DE COMTE AO BEHA VIORJSMO Qual a doutrina de Comte relativamente à psicologia? Sabemos que o programa positivista de 1 826-1 830 intitula-se Curso de filosofia positiva. Trata-se de um vasto programa de educação filosófica em marcha para a era da positividade. O duplo objetivo a que se propôs Comte era o seguinte: de um lado, delimitar as fronteiras das ciências contra toda e qual quer incursão possível da metafísica; do outro, fixar de uma vez por todas os princípios e os métodos dessas ciências. Para ele, entre a filosofia metafísica e as ciências há uma fronteira estável, devido à natureza de seus respectivos problemas. E, até hoje, o positivismo continua a crer que existem problemas que são, por natureza, científicos, comportando certos méto dos próprios para solucioná-los; e problemas que são, por na tureza, filosóficos, devendo ser considerados como simplesmen te insolúveis (opinião de Com te) , ou, então, como desprovi dos de toda significação (empirismo lógico) . Mas, como carac terizar essa fronteira? A resposta de Comte é a seguinte: em primeiro lugar, a ciência só se ocupa de fenômenos, e de for ma alguma da "natureza das coisas"; em segundo lugar, o obje tivo da ciência é atingir leis, devendo ignorar o "modo de pro dução dos fenômenos", isto é, a causalidade. Ora, neste contexto, foi bastante sintomático que a era da "representaç.jo", que contrastava com a da "positividade", tenha admitido a existência de uma psicologia e, até mesmo, de duas : uma psychologia rationalis, constituindo uma parte da metafísica, e uma psychologia empirica, pretendendo ser pelo menos um esboço de psicologia científica. Comte, porém, instaura a era da "positividade". E ele o faz pronunciando-se resolutamente em favor da liquidação radical de toda e qual- 76 .. quer psicologia enquanto disciplina intelectual específica e in dependente. E não se pode negar que este fato já constitui elemento bastante sério para revelar a existência de um pro blema epistemológico profundo. E este elemento é tanto mais significativo quanto, relativamente à sociologia, por exemplo, todo o empenho de Comte foi o de constituí-Ia como verdp.,.. deira ciência, realmente positiva, e coroando todo o edifício do saber positivo desenvolvido segundo uma série linear de etapas: os níveis da complexidade crescente do objeto cientí fico, da idealidade matemática ao fato social humano, passan do pelas ciências da natureza física e biológica. No entanto, o que levou Comte a proscrever por completo a psicologia? Não teria ele eliminado apenas a introspecção, fazendo com que esta desse lugar às funções mentais, cujo estudo participa ao mesmo tempo da biologia e da sociologia? À primeira vista, o problema da proscrição da psicologia parece simples. Por "psicologia", Com te entende esta discipli na herdeira, a seu modo, a psychologia rationalis. Em outras palavras, uma "filosofia do espírito" à maneira de Hegel. :e esta psicologia, considerada como metafísica, que deve ser eliminada como vestígio do estado metafísico do pensamento humano. Ela não tem mais o direito à existência, de uma vez que o pensamento humano se estabeleceu no estado positivo. Por outro lado, mais do que a sobrevivência do estado metafí sico, a psicologia é mantenedora do estado teológico do pensa mento. Por isso, aos olhos de Comte, ela não passa de uma teologia que não ousa dizer seu nome. Assim, na primeira lição do Curso de filosofiapositiva, Comte afirma categorica mente que, de forma alguma, "há lugar para esta psicologia ilusória, última transformação da teologia - que se tenta de modo absolutamente vão reanimar hoje em dia - e que, sem se preocupar com o estudo fisiológico de nossos órgãos intelec tuais, nem com a observação dos procedimentos racionais que dirigem efetivamente nossas diversas pesquisas científicas, pre tende chegar à descoberta das leis fundamentais do espírito hu mano, contemplando-o em si mesmo". Por sua vez, a quadragésima quinta lição do Curso é de dicada a eliminar a pretensão da psico�ogia de constituir-se como disciplina específica e autônoma. Comte vê nessa pre- 77 tensão uma conseqüência direta da iniciativa cartesiana e de seu sistema dual!sta, distinguipdo ainda a ordem geral, da Natureza material, e o universo dos corpos, do fato exclusiva mente humano da alma, o psiquismo e a faculdade racional sen do características exclusivas do homem. Ora, segundo Comte, a solução cartesiana, recusando toda continuidade e assimila ção do animal ao homem, é insustentável, pois os fisiologistas e os naturalistas já destruíram a vã separação estabe1ecida por Descartes entre o estudo do homem e o estudo dos animais. E, com isto, ficou eliminada toda filosofia teológica ou metafísi ca, pelo menos entre os homens mais inteligentes e cultos. Portanto, para Comte, a eliminação da psicologia repre senta o fim da era teológica e de suas sobrevivências metafí sicas, sobretudo num momento em que se trata de instaurar o sistema positivo das ciências. Depois de Descartes, a psicolo gia tornara-se o principal conhecimento humano, constituindo objeto de litígio entre o espírito científico e a pretensão teoló gico-metafísica dos filósofos. Agora, porém, parece que este grande processo filosófico já foi irrevogavelmente julgado, e os metafísicos passaram do estado de dominação de que des frutavam, ao simples estado de protesto, pelo menos no in terior do mundo científico. No fundo, ao reduzir a psicologia empírica de seu tempo a uma simples fisiologia animal, Comte tinha em vista recusar ·a pretensa observação interna ou introspecção. Na verdade, sua tese fundamental, a esse respeito, consiste: de um lado, em eliminar radicalmente toda psico!ogia "metafísica"; do outro, em repatriar a: psico!ogia "empírica" para o seio da psicologia animal. Mas o que justifica esta posição? A razão parece con sistir no desconhecimento, por parte de Comte, do substrato orgânico ;daquilo que a psicologia metafísica pretende conhecer por seus métodos próprios. Melhor ainda, trata-se de uma crí tica· impiedosa ao método de observação interna, isto é, ao mé todo introspectivo. De há muito, diz Comte, os metafísicos, en tregues ao estudo de nossa inteligência, só conseguiram suavi zar a decadência de sua pretensa ciência, tentando apresentar sua doutrina como sendo fundada sobre a observação dos fa tos. Para atingirem tal objetivo, imaginaram a distinção entre dois tipos de observação de igual importância: um exterior, 78 I · : outro interior. A observação interior estudaria os fenômenos intelectuais. Ora, constata Comte, esta pretensa contemplação direta do espírito, por ele mesmo, não passa de pura ilusão: O espírito do homem, considerado em si mesmo, não pode ser um sujeito de observação, porque ninguém pode observá-lo em outrem, nem tampouco pode observá-lo em si mesmo. :e. verdade que observamos os fenômenos com o espírito. Mas com que observaríamos nosso espírito? . . . O homem não poderá observar diretamente suas opera ções intelectuais; o que delas pode observar, são os órgãos e os resultados. No primeiro caso, entramos no domínio da fisiologia; no segundo, sendo os grandes resultados da inteligência humana as ciências, entramos no domínio da filosofia das diversas ciências, que é inseparável das pró prias ciências. Em hipótese alguma, há lugar para a psi cologia, ou estudo direto da alma independentemente de toda consideração exterior (Systeme de Politique positive, 1 854) . Como podemos facilmente notar, ao proscrever radical mente a introspecção e a psicologia fundada no método intros pectivo, Comte tomou uma posição tão radical quanto a dos be havioristas de mais estrita observância. Ademais, é este veto positivista que a epistemologia da psicologia atual pode consi derar como havendo sido entendido pela psicologia behavio rista. E isso, levando-se em conta que a psicologia caminhou bastante para assegurar-se um estatuto de cientificidade. Para ser ciência, a psicologia behaviorista teve que aceitar pelo me nos o princípio do veto positivista à introspecção, a fim de, em seguida, poder defmir um campo de aplicação legítimo para os métodos científicos comprovados. Todavia, apesar da doutrina de Comte, a psicologia do comportamento teve que esperar uns oitenta anos para se constituir em estatuto de cientificidade "publicamente" reco nhecido. Por que este atraso no surgimento do behaviorismo? A razão parece consistir na ambigüidade e na aparente incon seqüência da posição de Comte. Na realidade, sua posição, tanto por ser recusada por psicólogos introspeccionistas e "me- 79 tafisicos", quanto pode ser tachada de ambígüa e inconseqüen te pelos psicólogos "empiristas". O behaviorismo, ao contrá rio, pelo menos aparentemente, apresenta-se como uma dou trina clara e conseqüente consigo mesma. Em relação à intros pecção, toma uma posição bem mais radical do que a do pró prio Comte, como veremos. No decorrer do século XIX, muitos psicólogos pensavam espontaneamente como Comte. Assim, deixando às "psicolo gias metafísicas" a reivindicação de uma observação interna, introspectiva, do ser "espiritual", das ações e faculdades da inteligência ou da vontade propriamente ditas, aceitaram a observação interna dos fenômenos da sensibilidade: sensações externas, emoções, etc. Em contrapartida, o que retiveram de Comte foi sobretudo o anátema lançado contra as psicologias "metafísicas" travestidas, graças à introspecção, em psicologias pseudo-empíricas. Escudando-se em Comte, tais psicólogos mantinham uma "boa consciência" ao praticarem o estudo po sitivo do sensível, tal como o concebia a tradição da psicolo gia dita empírica. O que tinham em vista era a elaboração de uma "teoria positiva das emoções", à maneira de Comte. Foi nesta perspectiva que se desenvolveram, sobretudo a partir de 1 850, os estudos de psicologia experimental. Tais estudos ad vinham daquilo que hoje chamamos de psicofísica. Por volta de 1 850, eles chegam à explicitação das leis de Weber e de Fechner. Em seguida, são sistematizados por Helmholtz no domínio da visão e da audição. E culminam, com Wundt, na constituição da psicologia experimental como disciplina real mente independente. A partir de 1860, a psicologia organiza sua aparelhagem e, durante alguns decênios, não cessa de progredir, até a épo ca do behaviorismo. Este associa a prática da observação inte rior daquilo que podia ser observado por introspecção, à ma nipulação das aparelhagens de laboratório e ao estudo bioló gico do sistema nervoso. A psicofísica, a psicofisiologia e to dos os seus prolongamentos mais ou menos espontâneos per manecem ainda fiéis à perspectiva de um programa de estudo positivo e científico do fato mental : obediência mais ou menos estrita às regras da ortodoxia positivista. Mas não 80 compreendiam muito bem a significação do "veto positivista" interditando categoricamente a constituição de uma psicolo gia fundada sobre a observação interna. Dois autores ilustram bem esse período da psicologia pós-comtiana e anterior ao sur gimento do behaviorismo propriamente dito: Ribot e Binet. Em 1 870, Ribot publica sua Psicologia inglesa contempo rdnea, tentando justificar a constituição da psicologia como ciência independente e categoricamente diferenciada da filoso fia. Ele distinguia, na psicologia, fatos de natureza especial, di fíceisde serem observados e clarificados, mas que constituíam a parte mais sólida e indiscutível da nova ciência. Segundo Ri bot, uma ciência independente só se constitui quando passa a estudar esses fatos. E a psicologia se reduz a esse tipo de estudo. Tudo o mais pertence ao domínio da filosofia, enten dida como disciplina extracientífica. Assim, a psicologia será constituída dos fatos psicológicos ou fenômenos psíquicos em geral. Quanto ao método a ser empregado pela psicologia, Ri bot diz que ele consiste na reflexão e na observação interior. A observação interior é o ponto de partida, pois é a condição indispensável para todo e qualquer tipo de psicologia. Con trariamente, pois, a Comte e aos fisiologistas, Ribot acredita que, em psicologia, nada pode substituir o testemunho da consciência. Todavia, admitindo que o princípio epistemológi co da psicologia é a observação interior e o testemunho da cons ciência, ele reconhece a insuficiência da observação interna, pois a reflexão, por si só, é absolutamente incapaz de nos fa zer penetrar no espírito de outrem. Donde a necessidade de se fazer apelo à observação exterior, à percepção de sinais e de gestos, à interpretação desses sinais, à indução dos efeitos às causa�, à inferência e ao raciocínio por analogia. Por isso, o método da psicologia deverá ser ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. Trata-:>e de dois aspectos complementares de um mesmo método: o subjetivo procede por análise, o objetivo, por síntese; o interior é mais necessário, pois, sem ele, não po demos saber de que estamos falando; o exterior é mais fecun do, pois seu campo de investigação é quase ilimitado. Finalmente, o método concreto da psicologia científica, tal como Ribot o concebe, é uma psicologia da observação do 81 comportamento exterior do homem ou do animal, mas inter pretada à luz da observação interna e introspectiva do fato men tal, que fornece ao psicólogo o princípio e os meios de sua interpretação. Assim, Ribot se apresenta como o psicólogo por excelência ;do comportamento interpretado como manifestação do fato mental e das disposições psíquicas, remontando dos efei tos materialmente observados às causas propriamente psíqui cas. O psicólogo elabora um discurso dessas causas, não enquanto metafísico, mas enquanto naturalista do espírito. Contudo, per manece ainda não resolvido o problema epistemológico da psi cologia. Binet tenta resolvê-lo através da mediação da lingua gem e de seu papel em psicologia. Binet se situa neste período intermediário entre o pro grama positivista de Comte e o manifesto behaviorista de Wat son. Err.. 1 894, ele publica uma Introdução d psicologia t!xpe rimental. Nesta obra, ele dá grande destaque aos problemas metodoiógicos da psicologia. Reconhece o quanto é difícil de marcar a psicologia propriamente dita da fisiologia do siste ma nervoso. No entanto, ele tenta desfazer essa çonfusão. Define a introspecção como o ato pelo qual percebemos direta mente aquilo que se passa em nós: nossos pensamentos, nossas emoções, etc. A introspecção está na base da psicologia. Esta se distingue da fisiologia do sistema nervoso pelo uso que faz da introspecção. A posição metodológica de Binet coincide com a de Ribot. O que ele acrescenta é a idéia segundo. a qual o estudo psico lógico deve ser feito através de questionários metodicamente elaborados. Trata-se de uma primeira amostragem de estudo psicológico mais ou menos experimental, através de testes apli cados a uma determinada população de indivíduos. Ao tratar dos questionários, Binet faz uma distinção entre a introspecção pessoal (introspecção do psicólogo, tomando a si mesmo como único ponto de referência, no momento de passar à teoria) e a introspecção comparada, consistindo em esclarecer, uns pelos outros, os relatórios de introspecção feitos por outros indiví duos, em resposta a questionários metodicamente elaborados: pesquisas, por exemplo, sobre a memória visual ou musical. Em seguida, Binet reconhece três modos de observação em psicologia : 82 a) a observação enquanto ação pessoal de introspecção, visando ao vivido mental próprio: introspecção pessoal; b) a observação exterior dos comportamentos ou con dutas de técnicas interpretadas por referência aos conhecimen tos adquiridos em dependência de atos pessoais de auto-obser� vação: uso interpretativo da introspecção pessoal; c) a observação consistindo em tomar conhecimento de relatórios feitos por terceiros de suas observações introspecti vas espontâneas ou programadas por questionários: introspec ção comparada. Segundo Binet, é com esta última introspecção, também cha mada de coletiva, que intervém, na epistemologia da psicologia, graças à linguagem, um elemento específico: a expressão huma na. A linguagem, enquanto expressão dos estados mentais, sem pre desempenhou um papel importante ao se tratar de fornecer ao estudo feito pelo psic61ogo um material de informação e de conhecimentos de base. Na medida em que observa os seres humanos, o psicólogo observa seres que, não somente executam gestos ou tomam atitudes, mas seres . que falam e escrevem. Assim, ao refletir sobre seu método de observação, a psicolo gia com pretensões científicas precisa explicitar, como uma cir cunstância importante de seu método, a atenção conferida de modo metódico aos dizeres do sujeito: palavras ou coisas es critas. Foi somente depois de Binet que tal circunstância do mé todo psicológico conseguiu aceder a um certo estatuto cien tífico, com a prátiOfl dos relatórios comparados de introspec ções individuais ou das respostas aos questionários sistemati camente organizados. Ele tabula, assim, não som�nte aquilo que o sujeito humano exprime servindo-se de sua linguagem falada ou escrita, mas também o conjunto das tarefas inteligen tes que ele executa com maior ou menor êxito. Ao retomar ao psicólogo inglês Catell a idéia do mental test (provas impostas a um sujeito para a compreensão desta ou daquela aptidão mais ou menos elementar) , Binet começa a organizar sistemati camente a prática desse teste em escolares, a fim de estudar os conjuntos complexos de suas aptidões mentais : seu grau de desenvolvimento, sua "idade mental", etc. 83 O sistema de testes, chamado de Binet-Simon, destinado à avaliação do grau da inteligência e da idade mental dos esco lares, continua ainda, até hoje, a ser praticado. Binet divulgou o primeiro conjunto de resultados da prática de seu método em 1 903, em sua obra intitulada O Estudo experimental da inteligência. Com este estudo, ele contraria frontalmente as in terdições comtianas e devolve à psicologia a possibilidade de observar as funções intelectuais. Recoloca-se, assim, de modo novo, o problema epistemológico da psicolQgia, pois o que está em jogo é a aplicação dos métodos experimentais ao estudo das funções superiores do espírito humano. Como vimos, Binet não limita seu estudo ao problema da introspecção. Ele também se interessa pela questão da media ção expressiva do próprio fato mental, quer dizer, pela questão da linguagem. Aliás, como veremos, a psicologia do comporta mento não escapa por completo a essa questão da linguagem e do papel que ela desempenha no sistema da observação psi cológica. E isto, mesmo que tal psicologia tente definir-se ex cluindo todo apelo à introspecção e toda referência à cons ciência. Porque, ao definir o comportamento (resposta de um sujeito animal ou humano a um estímulo exterior) , ela inclui nele tudo o que é objetivamente observável: aquilo que o su jeito observado faz, mas também aquilo que ele diz numa si tuação em que a função-estímulo pode comportar a interven ção de coisas ditas ou o dado de certas "informações" através de um sistema qualquer de sinais. De sorte que a psicologia do comportamento também encerra uma ambigüidade episte· mológica. Ela se deve à intervenção da linguagem na observa· ção ou na experimentação psico!ógicas. A análisedessa ambi güidade nos levaria longe demais, e estaria fora de nosso pro pósito. Limitemo-nos a afirmar que tal ambigüidiide recoloca, como não resolvida, a questão epistemológica da psicologia. Neste ponto de nossa análise, retomemos ao behavioris mo, mas para compreendermos mais profundamente sua inten ção metodológica central. Aliás, trata-se de uma dupla inten· ção. Em primeiro lugar, o behaviorismo visa à proscrição ab soluta, radical, sem ambigüidade nem compromisso, de todo uso da observação interna e de todo apelo direto ou indireto 84 ao conhecimento fornecido por ela. No nível da psicologia be haviorista, a observação interna simplesmente não existe: é puramente uma atitude pré-científica, vinculada aos desvarios mentais da consciência mágica. Em segundo lugar, o behavio rismo condena todas as psicologias pseudocientíficas que vão de Comte a Watson: as de Wundt, Ribot, Binet, etc. Evidentemente, como já dissemos, o behaviorismo evoluiu muito depois de Watson. O sociólogo americano Paul Lazan feld, num artigo publicado em 1966 e intitulado "Observações históricas sobre a formação e a medida dos conceitos nas ciên cias do comportamento" (incluído na obra La philosophie des sciences sociales, tradução francesa, 1970), mostra que, ao mesmo tempo que a psicologia behaviorista pretendia ser a ciência do comportamento individual do animal ou do homem, a sociologia pretendia ser a ciência do comportamento cole tivo. "A partir de 1925, diz ele, os bebavioristas puseram-se a negar que a introspecção ocupasse qualquer lugar em psico logia. O estudo da natureza humana s6 poderia ser científico na medida em que eliminasse a noção de subjetividade e ado tasse os métodos da psicologia animal . . • No entanto, o beba viorismo reconhece agora a utilidade da introspecção: ela fa cilita os progressos da psicologia animal . . . Com o tempo, po rém, surgiu uma noção muito útil, a de variável intermediária, revelando uma idéia muito fecunda". Aliás, como também reconhece Paul Fraisse (numa co municação à Sociedade Francesa de Psicologia, em Antholo gie des psychologues jrançais, 1962), a psicologia, para tomar se científica, teve que recorrer, no início, ao método experi mental dos fiSicos e dos biólogos: fazer variar situações e estu dar as reações a esta situação. Todavia, a aplicação desse mé todo sofreu mudanças, devido à insuficiência de elaboração epistemológica do objeto da psicologia. Foi necessário o fra casso da psicologia dos estados mentais e o êxito simultânea da psicologia animal, para que se produzisse a grande revolu ção em psicologia, que é o bebaviorismo: o objeto do psicó logo não é mais o conjunto dos conteúdos de consciências, mas o conjunto dos comportamentos, isto é, as reações observáveis que são colocadas em relação com as situações corresponden- 85 tes. Doravante, a ciência psicológica terá por objeto de estudo as leis ligando situações e respostas. Por uma questão de eco nomia, esta psicologia foi chamada de em S -+ R. No entanto, somente os behavioristas americanos adotaram rigidamente o esquema de Watson. Pavlov e Piéron tentaram compreender os mecanismos fisiológicos religando a situação à resposta. Assim, a pesquisa experimental deixou de ser do tipo S -+ R, para adotar o esquema : Situação-Organismo-Resposta (S -+ O -+ R) . E hoje, todos os behavioristas, exceto talvez Skinner, admitem como insatisfatório o esquema S -+ R. Não basta constatarmos as relações entre estímulos e respostas. Por outro lado, não podemos mais ignorar aquilo que se passa no sistema de recep ção e de elaboração da resposta, que é o homem. Apesar de a ciência só poder atingir relações entre fatos observáveis, a psi cologia científica não pode mais ignorar que, neste feixe de fatos observáveis, devem intervir, não somente situações e res postas, mas também ''variáveis" características da personalida de do sujeito. Assim, segundo P. Fraisse, o esquema do com portamento que deve estar por debaixo dos trabalhos da psi cologia, é o seguinte: (S -+ P) --t R. Ao introduzir a per sonalidade (P), ele pretende considerá-la em todos os mveis, desde o psicológico à integração de n6s mesmos num eu. A reação observável é função não somente de uma situação e de uma personalidade, como também de sua interação. Como se pode notar, o que se propõe atualmente à ciên cia psicológica é uma démarche intelectual ao mesmo tempo natural e epistemologicamente mista de aliança entre aquilo que é imediata e efetivamente observável e aquilo que, conhecido de outra forma (os fatores de "personalidade") , vem situar-se como princípio · intermediário, tanto da explicação quanto do encadeamento da conexão entre estímulo e resposta. Devido a esta combinação epistemológica, o psicólogo poderá, na prá tica, locomover-se no elemento experimental de um "observá vel-explicável"; em outros termos, de um observável que todo um complex · o de infra-estruturas orgânicas e de atualidades mentais concomitantes pode tornar explicável, compreensível ou "provido de sentido". A diferença está em que o pen- 86 , \ samento do psicólogo de hoje surge depois da análise episte mológica que o behaviorismo foi obrigado a aceitar. Não cabe aqui uma análise de toda a evolução do beha viorismo, sobretudo de sua passagem de sua atitude meramen te descritiva dos "fatos observáveis" à admissão das "explica ções". O que importa ressaltarmos é que a tentativa behavio rista pretendeu proscrever radicalmente a entidade "consciên cia". Tudo deveria se passar, epistemologicamente, como se o psicólogo observador não devesse ter nenhuma consciência de si, mas somente um conhecimento de objetos exteriores, apre sentando-se no espaço "público" da observação física. Quanto ao sujeito observado pelo psicólogo observador, nada poderia ser afirmado a seu respeito, no nível da observação, por inter pretação psicológica daquilo que ele fornece materialmente à observação: nem consciência e vida mental, nem, tampouco, conhecimento do mundo exterior dos ·objetos físicos. Neste sen tido, o psicólogo, tomado em todo o seu rigor behaviorista, estaria num ato solipsista e sem consciência de si, de um conhe cimento inteiramente voltado para o mundo exterior dos objetqs físicos e das máquinas. Isto implica, de modo mais ou menos implícito, uma tese sobre a linguagem. Com efeito, na perspectiva própria ao psicólogo observa dor, suas ações de linguagem exprimem os conhecimentos que ele pode ter das diversas determinações de sua atividade cog nitiva. Todavia, relativamente aos sujeitos que a observam, a linguagem não passa da materialidade de excitantes físicos ou de comportamentos materiais. Ela não deve ser tomada como expressão de uma atualidade psíquica, permitindo a outros in divíduos representá-la de modo interpretativo. Aplicada ao su jeito observado, a linguagem é um estímulo material; prove niente dele, ela é uma resposta material ao estímulo que lhe foi aplicado. Em outros termos, no nível epistemológico em que procura estabelecer-se, o behaviorismo recusa radicalmente o princípio cartesiano do conhecimento, através da palavra hu mana, de qualquer tipo de "alma racional" no indivíduo hu mano observado. :e bem verdade que, na prática cotidiana, nem todos os behavioristas vêem as coisas de modo tão óbvio e sim ples assim. Em suma, para o behaviorismo, é impossível a 87 existência, tanto de uma psicologia da introspecção, quanto de uma psicologia da observação exterior imediatamente in terpretada. O esquema positivo estímulo-resposta (S -+ R) da observação-experimentação, em que pesem os desacordos de certos psicólogos de tendência mais explicativa e interpretati va, deve ser tomado em seu sentido estritamente positivo entre dados materialmente observáveis: toda interpretação "psicoló gica" das condutas e dos atos de palavra deve ser excluída de modo sistemático. Ora, relativamente à intervenção da linguagem (sistema deexpressão) , a posição behaviorista parece tão radical e tão paradoxal quanto insustentável. No entanto, ela está de acordo com aquilo que as ciências da linguagem evidenciam na mes ma época: a possibilidade geral de se distinguir na palavra, de um lado, a construção material da entidade material, a coisa sonora, audível, escrita e visível : o significante com sua cons tituição material e sua ''sintaxe" bruta; do outro, a determi nação de vida mental tendo por veículo e como expressão, de modo mais ou menos regular, o significado, que fornece senti do à palavra e ao seu princípio, a língua. Mais ou menos na mesma época em que começa a se afir mar o behaviorismo, Ferdinand de Saussure já havia ministra do um curso de lingüística. "Mentalista" em psicologia, Saus sure procurava na introspecção pelo menos uma parte da jus tificação de suas concepções em matéria de lingüística. Por outro lado, também foi ele quem ensinou a necessidade de se estabelecer, a propósito da linguagem, a seguinte distribuição epistemológica: de um lado, o significante, sua materialidade objetiva e sua construção sintática; do outro, o significado, determinação da atualidade mental percebida como expressa ou expressando-se na linguagem, e conferindo sentido e valor semântico à materialidade bruta da expressão. Depois de Saus sure, a distinção significante-significado, ou sintaxe-semântica, passou a desempenhar um papel fundamental na teoria da lin guagem. Ela preparou, assim, o surgimento dessa corrente de pensamento hoje denominada "estruturalismo". Trata-se de uma atitude determinada pe!o princípio da observação objetiva do dado lingüístico material, com uma "colocação entre parênte- 88 ses" de sua dimensão semântica, a fim de só considerar as estruturas sintáticas deste dado lingüístico e das relações obje tivamente definíveis entre as estruturas sintáticas presentes aqui e ali por estes ou aqueles dados lingüísticos materiais. Torna-se, assim, patente que esta posição se coaduna na� turalmente com a doutrina behaviorista. O behaviorismo, com efeito, reduz a própria linguagem a não ser outra coisa, do ponto de \ista epistemológico, senão um simples comporta mento entre outros. Ele coloca entre parênteses a referência, espontaneamente admitida pelo senso comum, do significante lingüístico ao seu significado mental ; e só conserva dessa re ferência a materialidade e o modo material de construção. E é por causa da especificidade própria desse modo material de construção que as palavras podem ser consideradas como estí mulos a sujeitos reduzidos ao papel de receptores desses estí mulos, isto é, capazes de reagir à especificidade da constituição sintática do estímulo. Quanto à resposta do sujeito, se ela con siste em palavras emitidas, pode ser considerada como a sim ples a';ãO de construir a imaterialidade deste objeto lingüístico, segundo certas regras sintáticas, isto é, de construção material. Da palavra-estímulo à palavra-resposta, é colocado fora de circuito epistemológico tudo aquilo que se refere ao significado, ao sentido, à vida mental constituindo-se como princípio de significação e de sentido. E é precisamente esta colocação fora de circuito que o behaviorismo declara como epistemologica mente necessária para a constituição da psicologia como ciên cia verdadeira e independente. Sem isto, ela continuaria sendo essa prática bastarda, como o foi a psicologia pseudocientüica, des.de Comte até Watson, fazendo apelo à observação interna e à interpretação das condutas expressivas. Todavia, apesar de seu caráter aparentemente revolucio nário e devastador das psicologias anteriores, o behaviorismo não conseguiu fazer tantos estragos assim à psicologia anterior. Muitos de seus resultados permaneceram. Também seus mé todos não foram inteiramente demolidos. O que realmente mu dou foi o modo de pensá-los e de falar epistemologicamente sobre eles. Isto pode ser ilustrado por dois casos privilegiados de estudos psico!ógicos: de um lado, o estudo da sensação; do 89 outro, o dos processos racionais da vida mental humana. Em suma, nem o trabalho do psicólogo, na perspectiva do labo ratório de psicologia experimental (tal como Wundt o conce bia), nem, tampouco, o trabalho do psicólogo, na perspectiva do estudo experimental da inteligência (tal como Binet o pra ticou) , foram materialmente anulados pelas tomadas de posi ção behaviorista relativamente à introspecção, ao mentalismo e à consciência. :e o que tentaremos mostrar agora, apresentan do, em suas grandes linhas, o questionamento ao behaviorismo psicológico feito pela fenomenologia, pela Gestalttheorie, e pela psicanálise de Freud. 90 J I V BEHA VIORISMO EM QUESTÃO Gostaríamos de situar o questionamento do behaviorismo psicológico dentro da perspectiva de uma possível recuperação da observação interna e de um estudo metódico do imaginário. Outros questionamentos, mais globais, serão feitos no último capítulo, a propósito do papel desempenhado hoje em dia, so bretudo nas sociedades mais avançadas, por esta psicologia dos psicólogos, fundada numa filosofia positivista-mecanicista-in dustrial. O que nos parece importante, por enquanto, é mos trar que há todo um domínio de investigação epistemológica, em psicologia, que o behaviorismo não tem condições, devido às suas deficiências teóricas, de estudar a fundo: a imaginação, o afeto, e tudo o que se liga, na vida mental, a essas funções do imaginário e do afetivo. Ora, normalmente, a psicologia não deveria ignorar este domínio de investigação. Contudo, não é absolutamente evidente que ele possa dar margem a uma epis temologia semelhante àquela que pode ser construída a propó sito da sensação e do funcionamento intelectual, de modo a permitir o acesso a uma verdadeira "positividade" neste cam po de estudo. Comecemos nosso questionamento afirmando que, com Edmund Husserl ( 1 859-1938) e com Sigmund Freud ( 1 856- 1939), entraram em cena, no domínio da psicologia, tanto o estudo metódico da "observação interior" quanto a análise sis temática do "imaginário". Assim, abordaremos a questão da psicologia na medida em que ela se vê às voltas com os nume rosos e variados problemas de estudo dessas funções internas e, por assim dizer, "intermediárias" da vida mental : cenestesia, ,emoções, vida afetiva, sentimentos, imaginação, etc. 93 Façamos, de início, uma observação um tanto exterior, mas significativa. Trata-se ainda de Comte. A doutrina comtia na considerou duas coisas : de um lado, o fato psicológico ele mentar da sensação; do outro, as funções intelectuais e morais superiores. Mas nada disse sobre a imaginação. Ignorou-a por completo. Quando a mencionou, foi para denunciar seu papel perturbador no funcionamento correto do pensamento. Por sua vez, o behaviorismo estrito nada diz de relevante sobre a imagi nação . Por uma questão de método e de coerência doutrinária, a psicologia behaviorista viu-se obrigada a desconsiderar o pa pel do imaginário na vida dos indivíduos. Tentou ignorar o quanto pôde as "imagens", procurando reduzir o pensamento única e exclusivamente aos fenômenos sensório-motrizes ob serváveis exteriormente. Para a psicologia behaviorista, a "ima gem" não passa de um dos últimos bastiões da teoria introspec cionista da consciência. Aliás, os historiadores da psicologia sempre reconheceram que a psicologia da imaginação jamais conseguiu direitos de cidadania: ela sempre foi a "prima pobre'' da psicologia, em busca "desesperada" de um estatuto "públi co" de cientificidade. Isto se deve, sem dúvida, ao fato de que, no nível do conhecimento pré-científico, o dado da imagem e do jogo do imaginário é um dado irrecnável. Todavia, é extre mamente difícil submeter este dado a um estudo que satisfaça inteiramente à idéia que a psicologia se faz de um estudo cien tífico. Assim, as considerações feitas a respeito da imaginação e das imagens permanecem quase sempreno nível da reflexão filosófica, no nível da crítica literária ou da análise estética. Um dos sinais dessa dificuldade parece residir num simples fato: os próprios psicólogos ainda não conseguiram colocar-se C:e acordo sobre a natureza e sobre as funções daquilo que pode ser chamado de "imagem". Em 1936, Sartre, na pers pectiva de uma primeira assimilação do método fenomenológi co de Husserl, entregou-se a uma crítica sistemática de toda psicologia da imaginação, de Descartes a Bergson. Alguns anos depois, em 1940, propunha seu famoso estudo sobre O Ima ginário, psicologia fenomenológica da imaginação, onde reto mava as idéias centrais de seu primeiro livro sobre A Imagi- 94 nação. Nessas obras, Sartre criticava também os psicólogos que só se punham de acordo quanto à necessidade de partirem dos fatos. Em sua Teoria das emoções ( 1 948) , declara: Aguardar o fato é, por definição, esperar o isolado; é preferir, por positivismo, o acidente ao essencial, o con tingente ao necessário, a desordem à ordem; é rejeitar, por princípio, o essencial no futuro . . . Os psicólog,os não se dão conta de que é tão impossível atingir a essência, acumulando acidentes, quanto chegar à unidade, acres centando indefinidamente cifras à direita de 0,99. Se eles têm por objetivo apenas acumular conhecimentos de de talhe, nada há para se dizer; simplesmente, não se pode ver o interesse deste trabalho de colecionadores. Mas se eles estão animados, em sua modéstia, pela esperança louvável de que será realizada mais tarde, calcada em suas monografias, uma síntese antropológica, estão em plena contradição consigo mesmos. O resultado das análises de Sartre decepcionou muita gen te. Contudo, não parece evidente que, sobre a imaginação, pos samos ir muito além dos estudos descritivos da função mental ou dos inventários mais ou menos extensos da simbólica hu mana: mitos e arquétipos. O que convém enfatizar é que, mais ou menos no momento em que o behaviorismo pretende puri ficar absolutamente a psicologia científica de todo recurso à observação interna dos fatos de consciência, bem como de toda contaminação filosófica, suriiram dois fatos novos, de ordem epistemológica, exercendo profunda repercussão na história da psicologia ulterior. O primeiro foi a iniciação filosófica de Hus serl, procurando instituir a fenomenologia (tomada de posse do fato da consciência pela própria consciência) como uma dis ciplina autenticamente científica. O segundo foi a instauração da psicanálise freudiana. As investigações de Husserl e a Inter pretação de Sonhos de Freud apareceram no ano de 1900. E as Idéias diretrizes para uma fenomenologia, de Husserl, pu blicadas em 1913, são contemporâneas dos famosos artigos de Watson. 95 1 . A PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA E: preciso que se diga, desde o início, que a fenomenologia de Husserl, enquanto tal, não é uma psicologia. Aliás, nunca pretendeu ser uma psicologia, apesar de ter tomado de em préstimo a psicólogos filósofos (Brentano ) esta ou aquela idéia: por exemplo, a de "intencionalidade" da consciência. Por outro lado, o que pretende ser a fenomenologia, é apenas uma técnica, comportando uma doutrina, permitindo a apreensão segura da atualidade consciente por si mesma, enquanto é uma atualidade consciente, em todo o seu ser de atualidade cons ciente e em todas as suas dimensões : da intuição e da per cepção, da imaginação e do desenvolvimento da representação, do pensamento e de todas as modalidades da vida afetiva e voluntária. Discípulo de Brentano, Husserl se propôs por objetivo re pensar os fundamentos do saber. Sua preocupação central con sistia em redescobrir uma certeza que permitisse ao pensa mento superar o estado de crise em que se encontrava a cul tura de seu tempo. Para ele, esta crise se caracterizava pela perda da intencionalidade filosófica e pelo transbordamento do método matemático para fora dos limites que deveriam ser os seus. Por isso, a fenomenologia surgiu, no início deste século, com a pretensão de ser um recomeço radical na ordem do saber. Podemos dizer que ela apareceu numa época que, do ponto de vista filosófico, pode ser caracterizada como vazia. O mundo universitário, pelo menos na Alemanha, era domi nado pelos epígonos de um kantismo que se havia degenerado em pura metodologia da ciência positiva. A metafísica não ocupava nenhum lugar de importância no sistema do saber universitário. Não nos cabe aqui expor as teses centrais da fenomenolo gia husserliana. O que nos interessa é mostrar sua orientação fundamental e sua influência sobre ·a psicologia científica. Por sua tomada de posição contra a psicologia científica em vigor, a teoria fenomenológica se inscreve na mesma linha de pensa mento adotada por Bergson : pretendia fazer uma crítica à pre tensão de só se admitir como válida uma psicologia positiva, objetiva e experimental. O que Husserl critica, nessa psicolo- 96 gia, é o fato de ela fazer apelo, para se fundar, ao postulado realista do senso comum, que ele achava bastante insatisfató rio para um pensamento que deveria estar . preocupado com o essencial. Se é verdade que o sujeito empírico faz parte do mundo, também é verdade que o mundo não passa de um objeto "intencional" para o sujeito que o pensa. Assim, não se pode tratar o homem como se ele fosse uma coisa entre as coisas. E a razão é simples : porque o homem não é o produto de influências físicas, fisiológicas ou sociológicas que o determi nariam de fora. A própria psicologia, qualquer que seja seu método, deve ser considerada, antes de tudo, como um projeto, isto é, como uma intenção de compreender melhor o homem e seus comportamentos. Muito embora Piaget insista em dizer que · a fenomenolo gia de Husserl seja "paracientífica de intenção e de princípio, explícita e proclamada, pois não somente tenta ultrapassar a ciência, mas duplicá-la, completando a psicologia científica por uma psicologia 'fenomenológica' e uma gênese real por uma gênese ideal" (em Logique) , cremos ser um dever de jus tiça reconhecer que a pretensão de Husserl é muito menos .a de opor à psicologia científica um outro tipo de psicologia, do que enfatizar os limites da primeira. O que Husserl quer mos trar, ressaltando os limites e deficiências da psicologia positiva, pelo menos · tomo ela se apresentava em sua época, é que o desenvolvimento da psicologia objetiva e experimental 1láo re solve o problema da exigência antropológica de redução, a um denominador comum, desse duplo aspecto da psicologia: de um lado, o da interioridade racional; do outro, o da objetividade. O psicólogo não pode perder de vista a intuição das "essên cias", mas estas são inseparáveis dos fenômenos ou dos "fatos't. Assim, a originalidade desta posição· está em ligar os f�n6me nos às essincias e, sobretudo, em postular uma interação fun damental entre o sujeito (o "eu puro") e o objeto (as "essên cias") de conhecimento. · . a bem verdade que alguns psicólogos . tentaram assilnilar o projeto husserliano a uma tentativa de se restaurar a intros pecção. Todavia, esta interpretação pode ser ao mesmo tempo justa e falsa. Ela é falsa na . medida em que a fenomenologia tenta opor-se, tanto ao intel�tualismo idealista quanto ao em- 97 pirismo naturalista. Ela visa a descrever o psiquismo human(t como não podendo deixar de ser, de imediato, uma "relação com o mundo". E repudia, pelo menos em suas intenções ex plícitas, toda universalidade abstrata. As démarches da filoso fia espt:culativa devem ser substituídas pelo "retorno às coisas mesmas". No entanto, podemos duvidar que a análise intencio nal possa vir a substituir, sem equívoco, a metafísica especula tiva. Contudo, Husserl não pretende de forma alguma restaurar a introspecção no sentido de um conhecimento puramente in terior. O que ele pretende estabelecer é que a psicologia cien tífica, para ser verdadeiramente fundada, não pode deixar de ser intencionale intersubjetiva. Contrariamente, pois, à interpretação de Piaget, segundo a qual a fenomenologia visaria, através das "reduções", a liber tar o sujeito de suas limitações "naturais", devemos dizer que o objetivo da fenomenologia não é o de transcender o domínio das experiências, mas o de :t:evelar ou desvelar seu sentido. A orientação da consciência sobre certos objetos "intencionais" possibilita o que Husserl chama de "análise eidética". A este respeito, ele distingue claramente uma consciência explícita do objeto, própria do eu atual, e uma consciência implícita ou potencial. Não se deve, pois, confundir a "análise eidética" com uma dialética de tipo platônico. Ao insistir sobre o problema do sentido, Husserl se opõe, não somente ao naturalismo psicológico, que tende a encerrar o comportamento humano num feixe de causas e de efeitos exprimíveis em terceira pessoa, mas também ao idealismo, na medida em que este reduz o homem a um conjunto conceitual organizado. Ao colocar-se no ponto de intercecção dessas duas tendências, a fenomenologia dá origem, pelo menos em parte, ao "existencialismo" moderno. Evidentemente, a existência (no sentido de "homem-ser-no-mundo" ) não é um conceito hus serliano. Mas não se pode negar que ele foi "deduzido" do conceito de Lebenswelt ou de "mundo vivido" : a presença ao mundo antes da reflexão, ou seja, o nível do vivido imediato na origem de toda consciência. Quer dizer : "a coisa em si mesma" é concebida como um dado, como um intuicionado. Todas as ciências pressupõem este "mundo da vida" como seu solo ori ginário, muito embora dele se afastem, em seguida, para cons- 98 truir o mundo "depurado" do conhecimento científico. Ora, esta vinculação ao mundo, que está na origem de todas as con dutas humanas e dos sentidos que elas manifestam, não pode ser expressa em termos tomados de empréstimo às ciências da natureza, pois também estes derivam de uma ligação com o mundo; tampouco pode ser expressa pelos termos utilizados pelo idealismo para exprimir a construção do objeto pelo su jeito. Assim, a tarefa da fenomenologia consiste numa investi gação "científica", não dos fatos, mas das formas da conscren cia dos objetos, sendo esses objetos definidos por um ato de consciência. E é por isso que Husserl tenta situar a exploração intelec�al do fato da consciência no nível da psicologia. Neste particular, a influência da fenomenologia foi marcante, quer sobre a psicologia gestaltista, quer sobre a psicologia mais di retamente psicopatológica. Indiquemos, brevemente, em que linha essa influência se exerceu. A. A influência da fenomenologia sobre o desenvolvi mento da Gestalttheorie ou psicologia "da forma", sobretudo como a elaboraram Koffka e Kõhler, não pode ser contestada. Com efeito, muito preocupada em responder às exigências, que caracterizam a psicologia como ciência, a psicologia da forma marca uma original reação a toda psicologia associacionista: estudo da vida psíquica sob o aspecto de uma combinação de elementos pretensamente simples (sensações e imagens) que a constituiriam. Ora, à fragmentação da vida psíquica, c;leve opor se a consideração de formas, de estruturas e de conjuntos, ad mitidos como realidades primitivas. A percepção é a de uma figura sobre um fundo. Trata-se de descrever perceptivas glo bais, a fim de reduzir a leis seus aparecimentos e suas trans formações. Ademais, trata-se de mostrar como a organização interna que condiciona tais estruturas perceptivas modifica os elementos que a compõem. Enfim, trata-se de mostrar como basta modificar um único desses elementos para que toda a estrutura global se altere. A psicologia "da forma", por outro lado, suscitou a ten tativa sartriana de constituir uma psicologia fenomenológica do 99 imaginário, bem como a tentativa de Mer�eau-Ponty de elabo rar uma Fenomenologia da percepção, tentativas bem mais filo sóficas ("ontologia fenomenológica") do que propriamente psi cológicas . . E como a fenomenologia utiliza uma técnica do co nhecimento da atualidade da vida mental por si mesma (en quanto consciência, e levando em conta as "reduções" exigidas para entrar na atitude específica da fenomenologia) , toma-se patente que ela adinite algo da atitude introspectiva, da auto observação do sujeito dotado de vida mental. Sartre, por exein p!o, que critica o método clássico da introspecção, nem por isso deixa de fazer apelo à experiência íntima. Ele se propõe, inclusive, descrever a imagem em sua plena concretude, tal como ela aparece à reflexão. O que ele pretende é adquirir uma visão autêntica da estrutura intencional da imagem. Kõhler, por sua vez, em sua Psicologia da forma, apesar de criticar severamente a introspecção, mantém com energia, contra o behaviorismo, a legitimidade do recurso à "experiência direta" em psicologia, isto é, à visão intuitiva que o. sujeito dotado de vida mental pode ter .da atualidade e do fato ime diato desta vida mental. Assim, na atitude da fenomenologia, bem como em tudo o que dela deriva, no nível da psicologia, há uma transgressão, por princípio, de praticamente todos os interditos da psicologia do comportamento em sentido estrito. O mesmo pode ser dito da psicopatologia e da psicanálise de Freud. B. Não foi pequena a influência da fenomenologia sobre a filosofia "existentieUe'' de Karl Jaspers e sobre a filosofia "existentiale" de Martin Heidegger. Foi através desses dois filósofos que a fenomenologia repercutiu sobre as ciências psi cológicas, especialmente sobre a psicoterapia. Por exemplo, em sua Psicopatologia geral ( 1913), Jaspers insiste sobre á rela ção pessoal que o médico deve estabelecer com o doente, sobre a necessidade de levar em conta todos os elementos que este contato direto pode revelar e sobre a neceSsidade de não se tomar o conceito de doença como uma entidade. Insiste ainda sobre a responsabilidade primordial do psiquiatra e de seu en gajamento pessoal: 100 Como todos os empreendimentos humanos, a psicO" terapia também tem seus perigos próprios. Ao invés de mostrar o caminho àqueles que estão na desolação, ela pode tomar-se uma espécie de religião, análoga às seitas gn6sticas de há quinze séculos. Ela pode oferecer suce dâneos da metafísica e do amor, da fé e da vontade de poder, dar livre curso aos seus impulsos sem escrúpulos. Com a aparência de nobres exigências, ela pode rebaixar a alma e corrompê-Ia. Falar da influência da fenomenologia sobre as teorias psi quiátricas de Ludwig Binswanger e de outros, nos levaria longe· demais, e ultrapassaria, de longe, nossa competência. Citemos. · apenas, para terminar, uma passagem do Presidente da Socie dade Francesa de Psicanálise, A. Hesnard, em sua Contribuiçiio 'da fenomenologia tl psiquiatria contemport2nea ( 1959 ) : Pela primeira vez, n a história da Cultura, u m mO" 'Vimento filosófico, acessível ao psiquiatra, afirma que a consciência, vida .intencional, é ao mesmo tempo fonte de significação, de valor e meio de universo; que todo ser humano pensa e existe, não no, mas por seu meio hu mano. Doutrina existencialmente humanista, à qual a Psi quiatria, ciência do homem, não poderá permanecer in diferente. 2. A PSICOLoGIA PSICANALÍTICA Como já dissemos, foi em 1900 que apareceu a primeira obra decisiva de Freud: A Interpretação de Sonhos, no mesmo ano em que Husserl inaugurou sua "análise intencional". No sentido freudiano do termo, psicanálise designa: em primeiro lugar, um método de exploração do psiquismo húmano, con siderado como o teatro de processos inconscientes desconheci dos pela psicologia clássica; em segundo lugar, e sobretudo, uma terapêutica para o . tratamento de certas neuroses e psicO" neuroses; finalmente, por uma ampliação indefinida, a psicaná lise invadiu todos os domínios da atividade e da cultura hu manas: pedagogia, caracterologia, estética, sociologia, história 101 artística e literária, mitologia, história das religiões,das civili zações, etc. Freud, antes mesmo de descobrir o inconsciente como tal, já havia revelado o papel do psiquismo inconsciente. Os filóso fos que o antecederam, no século XIX (Schopenhauer, por exemplo) , já haviam afirmado o primado da vida instintiva e manifestado, à sua maneira, algumas das ilusões próprias à concepção intelectualista do comportamento humano. Por outro lado, na segunda metade do século passado, numerosos fisiolo gistas, neurologistas, psicólógos e médicos já se interessavam pela histeria, pela hipnose e pelos fenômenos da sugestão, e mostravam que a vida psíquica ultrapassava de modo singular o campo da consciência clara e reflexiva. Nesta época, o grande público era atraído por estranhas manifestações que determina ram o surgimento do movimento espírita, depois, das socie dades de estudos psíquicos (o ocultismo) . Os cientistas come çaram, então, a estudar os fenômenos considerados como su perstição e charlatanismo, chamando-os de fenômenos "meta psíquicos". Também antes de Freud, Pierre Janet já reconhe cera a existência do psiquismo inconsciente. Janet já havia demonstrado que "personalidades" segundas, oriundas das re giões inferiores do ego, podiam surgir no indivíduo consciente, levá-lo a executar certos atos (escrever, por exemplo) sem ter consciência de ser ele sua caúsa. Com sua análise sistemática do "Inconsciente", Freud tor nou-se um dos maiores protagonistas da "mentira" da "Cons ciência". Toda a sua obra é ama clara revelação de que o problema da consciência é tão obscuro quanto o problema do mconsciente. A certeza imediata da consciência parecia inex pugnável desde Descartes, que dizia: "por pensamento, entendo tudo aquilo que se faz em nós, de tal modo que o percebemos imediatamente por nós mesmos". Freud veio mostrar que a certeza da consciência é duvidosa enquanto verdade, porque nossa vida intencional poderá ter outros "sentidos" que não o imediato. Entre a certeza da consciência e o verdadeiro saber, instala-se o inconsciente, revelando-nos um saber que não nos é dado, mas que deve ser procurado para ser encontrado. A consciência de si, ou esta adequação "de si a si", não se situa no início, mas no fim. Donde a impossibilidade, segundo Freud. 102 de uma "filosofia da consciência". Também a fenomenologia criticou ·a consciência reflexiva, introduzindo o tema do irrefle xivo e do irrefletido: as pesquisas de "constituição" remetem a um pré-dado ou "pré-constituído". Mas a fenomenologia não levou até o fim a crítica à consciência, permanecendo no cír culo das correlações entre noese e noema. Não se trata, porém, aqui, de fazermos uma análise ·da crise do conceito de consciência. Nosso problema é o da relação da psicanálise com a psicologia científica. Neste sentido, de vemos notar que, tanto o fim do século passado quanto o iní cio de nosso século foram marcados pelo impacto das teorias evolucionistas, pelo progresso considerável das ciências bioló gicas e físicas, e pela instauração da chamada psicologia cien-. tífica: experimental, em seus métodos; comportamentalista, em seus objetivos. Isto, porém, em nada diminuiu o mérito de Freud: ele se aproveitou de todos os fatos e fenômenos que interessavam aos cientistas e apaixonavam a opinião pública, tentando compreendê-los como um meio extraordinário para o tratamento das neuroses, e para mostrar que o histérico é um ser que sofre por estar acometido de reminiscências. Etp Minha vida e a psicanálise, ele escreve: "Lançando o olhar para trás, sobre a parte de trabalho que me foi dado empreen der em minha vida, posso dizer que abri muitos caminhos e dei muitos impulsos que poderão dar "resultado" no futuro. Eu mesmo não posso dizer se e.ste "resultado" será grande ou pe queno". Ora, foi este "resultado", que Freud chama simples mente de "algo', este indeterminado cujo futuro é difícil de ser previsto, que se tomou o campo privilegiado da psicanáli se. Em extensão, a psicanálise ganhou terreno, ultrapassando de longe os domínios já vastos traçados por seu fundador. E isto, a tal · ponto que, por uma espécie de verdadeira inflação cultu ral, e!a corre o risco de perder em compreensão e, inclusive, de ser incompreendida. Aliás, as incompreensões se manifesta ram desde o início da psicanálise. Por exemplo, ao regressar a Viena, depois de trabalhar com Charcot, em Paris, sobre os fenômenos de histeria, Freud relata suas experiências aos psi quiatras : "Os médicos dos hospitais, em cujos serviços encon trei tais casos, recusaram-se a deixar que eu me ocupasse deles e que os observasse. Um deles, um velho cirurgião, gritou: 103 mas, meu colega, como você pode dizer tais absurdos! Hysteron (sic) quer dizer útero. Como, então, um homem pode ser histérico?" Todavia, como dissemos, o que nos vai interessar na psi canálise freudiana é sua relação com a psicologia científica, sobretudo com a psicologia de inspiração behaviorista. Por que, no nível da psicologia, a psicanálise se apresenta como uma transgressão aos interditos behavioristas. Com efeito, o postulado inicial do programa behaviorista consiste na elimina ção sistemática da con.sçiência: a consciência não é um ser; o corpo e suas diversas manifestações ou funções são mais do que suficientes para explicar cientificamente todos os níveis do comportamento (behavior) de um ser vivo. Trata-se, pois, de um monismo materialista .. "Dai-me um nervo e um músculo", exclamava H. Piéron, "e eu vos farei um espírito". Em contra partida, a psicanálise de Freud vem demonstrar que os proces sos mentais não são em absoluto redutíveis à vida simples mente orgânica nem, tampouco, à vida meramente social. Ao estudar diretamente o conteúdo das representações e dos afe tos, .a psicanálise visa a explicar o presente do indivíduo hu mano �or seu passado, bem como explicar o adulto pela crian ça. Por isso, Freud não podia admitir que se pudesse reduzir .o mental ao orgânico ou ao social. O que ele fez foi uma redu ção qás formas psíquicas superiores às suas formas elementa res, subsistindo no inconsciente dos indivíduos. Assim, em relação à psicologia behaviorista, podemos di zer que Freud não fez nenhuma objeção à utilização dos mé todos da observação íntima, da auto-observação da vida mental pelo sujeito. Em A Interpretação de Sonhos ele fala aberta mente dessa prática sem nenhuma idéia pré-concebida e sem reservas críticas particulares. Isto se toma bastante compreen sível no caso do sonho, porque não se pode ver como nenhum estudo específico desta formação da vida mental (que é o so nho) poderia ser feito sem que se pressupusesse, de início, certo assumir do sonho pelo próprio sonhador. Aliás, foi ba seando-se na análise de seus próprios sonhos que Freud escre veu a Interpretação. A auto-observação, privada e "subjetiva" (intr6specção no sentido lato) permanece a via de ac,t�sso obri gatória àquilo que a psicologia deve levar em consideração. 104 O caso do sonho e do método freudiano de seu estudo é um bom exemplo epistemológico desta relação que a psicologia pode ter com este dado da vida mental que só pode ser atin gido através do recurso à observação interna, radicalmente proscrita pelo behaviorismo estrito. No que diz respeito ao sonho, o método interpretativo freu diano é bastante complexo. Antes de tudo, é preciso que se faça um relato do sonho, de preferência por escrito. Por sua vez, o relato se deixa decompor em vários segmentos que deve rão ser tomados um a um. E, ao retomar os diferentes termos e representações propostos, deve-se pedir ao autor do relato que diga, uma vez eliminada todas as inibições usuais tanto do "pensamento" quanto de sua expressão, tudo o que lhe vem à cabeçà. Freud chama esta etapa fundamental de seu método, de prática da "associação livre". Todas as produções da vida mental consciente constituem um material precioso destinado a guiar a inteligência na interpretação que ela faz do sonho. No início,tudo isso encontra-se inserido num processo tera pêutico que coloca em cena o paciente (aquele cujo sonho é estudado e interpretado) e o analista (que coopera com o pa ciente para a interpretação do sonho) . Quando bem sucedida, a interpretação se apresenta ao paciente como o desvelamento de certa verdade dizendo-lhe respeito, em sua individualidade mórbida ou neurótica. Este desvelamento tem um valor emi nentemente emocional. Em certa medida, este efeito curativo desempenha o papel de uma verificação experimental relativa mente a toda a '(lémarche do estudo do sonho. Cabe, aqui, uma pergunta, tanto mais relevante quanto, de sua resposta, depende a possibilidade de a psicanálise poder transgredir o conceito de "objetividade" científica a que tanto se apegam os psicólogos behavioristas: quais seriam os cons tituintes epistemológicos implicados na prática freudiana da análise interpretativa do sonho? É claro que, epistemologica mente falando, não podemos negar que estamos diante de uma prática extremamente complexa e que, do ponto de vista da exigência de cientificidade ou de saber propriamente objetivo, coloca sérios problemas. Por enquanto, ressaltemos apenas dois: 105 a) Em primeiro lugar, o sonho certamente é vivido pelo sonhador. Mas ele é vivido numa circunstância que impede o sonhador de tomar, relativamente a este vivido, uma atitude de consciência de si, lucidamente presente à sua atualidade mental, capaz de ter uma atenção discriminadora a seu respei to. O sonhador relata o sonho, e só depois do sonho pode re latá-lo, quando dele se lembra em estado de vigília. Neste mo mento, aquilo que realmente o sujeito relata, é o conteúdo de sua lembrança do sonho, de forma alguma o conteúdo ime diato do sonho. Ora, entre a lembrança presente e o próprio sonho, há uma distância ou um intervalo. Em geral, as pes soas lembram-se mal de seus sonhos. Muitos detalhes, por vezes importantes, são esquecidos e se perdem. Por sua vez, o esforço para se lembrar do sonho pode deformá-lo. · b) Em segundo lugar, a própria passagem do sonho ao relato, já comporta riscos sérios de trair a objetividade apreen dida no nível da observação íntima: a descrição dos conteú dos do sonho - conteúdos psicológicos, vagos, reunidos de modo insólito - corre o risco de ser uma traição. Por outro lado, a passagem do sonho ao relato também corre o risco de impor a esses conteúdos as formas do pensamento em esta do de vigília ou de consciência, articulando-se em frases mais ou menos lógicas e coerentes. Enfim, o primeiro elemento de objetividade naturalmente estabelecido e seguro, de que pode dispor o estudo psicanalítico, consiste no próprio relato do so nho. Entretanto, a psicologia (analítica) admite estudar este relato porque ele tem uma conexão com o fato mental vivido por seu autor: é uma expressão dele. Relativamente ao sistema da psicologia behaviorista, que admite a consideração das coi sas ditas ou relatadas por um sujeito, como sendo apenas um dos elementos possíveis de seu comportamento, a diferença epistemológica é fundamental. Com efeito, na perspectiva be haviorista, o comportamento da palavra outra coisa não é se não a produção de uma entidade objetiva. Trata-se de uma entidade que é cortada de sua referência a atualidade da vida mental, e cuja positividade deve ser tomada como liberada relativamente a essa atualidade da vida mental que ela pode 106 ·� ' l �: �- suscitar. No caso presente, o relato do sonho não pode ser corta,do de sua referência à atualidade psíquica do sonho. 2 por isso que, ao invés do termo comportamento de relato, tal vez fosse preferível e mais correto falarmos de conduta de re lato, porque o termo conduta tem a vantagem de realçar a co nexão mais ou menos específica com o fatQ mental. Neste particular, podemos dizer que, num certo sentido, chegamos a uma atitude metodológica análoga à atitude da psicologia pr6-behaviorista. Todavia, convém explicarmos um ponto epistemológico já presente na metodologia usual da psi cologia empírica não-behaviorista. Portanto, podemos dizer que o estudo psicológico de uma conduta de relato faz a conjunção de duas perspectivas epistemológicas distintas : a) a primeira perspectiva é a da "objetividade" exterior, em princípio aces sível a todos (como a objetividade do físico) : o relato, como porção de linguagem e como texto, está presente; e cada um, não somente seu autor, pode tomar conhecimento dele; b) a segunda é a da "intersubjetividade", isto é, a de uma comuni cação realizada entre sujeitos dotados de vida mental e capa zes de evocar, no outro, algo de seus conteúdos mentais. O relato apresenta-se, pois, como o mediador dessa intersubjeti vidade. E é como í!tl que ele é tomado pelo estudo psicológico. Aliás, é preciso que se reconheça que a linguagem natural é, ao mesmo tempo, realidade material e mediadora de intersub jetividade. A novidade do relato está no fato de ele ser feito de modo distinto, refletido e aberto à exploração metódica. Em outros termos, podemos dizer que o relato é ao mesmo tempo como que o objeto objetivamente estudável e aquilo que, para seu autor e para aquele que o estuda, remete à atualidade mesma da vida mental. E é neste sentido que ele se toma me diador de intersubjetividade. Não se pode negar, porém, que a conduta de relato implica apenas uma intersubjetividade bas tante modesta. Trata-se. de fato, de uma intersubjetividade in terpessoal, somente a dois, entre duas pessoas: o paciente e o analista. Contudo, levando-se em conta a natureza da relação bilateral entre o paciente e seu analista, é possível · que esta intersubjetividade a dois venha a definir, pelo menos para a prática efetiva da psicanálise, determinado horizonte de vali dade epistemológica. 107 Neste particular, há um ponto que precisa ser resolvido para que sejam evitados certos equívocos bastante freqüentes em psicologias que defendem com ardor a objetividade e o caráter científico de seus estudos. A objetividade científica con siste, do ponto de vista dos sujeitos humanos que fazem a ciên cia, nessa intersubjetividade, em princípio, universal (admitida e controlada por todos) . :e justamente a necessidade da inter subjetividade universal que se faz sentir com o esforço de esta belecimento · e de constituição de um conhecimento científico. E é quando conseguimos definir uma identidade de relação in telectual entre todos os sujeitos humanos e o mesmo objeto, que podemos falar de objetividade científica. Por conseguinte, essa objetividade coincide necessariamente com a intersubjetivi dade universal da relação dos sujeitos com o objeto. E é por ser universal, que não podemos deixar de levar em considera ção esta intersubjetividade para nos atermos somente ao dado ou ao conteúdo efetivo do objeto. A universalidade da inter subjetividade libera o dado (o conteúdo) de sua "subjetivida de" para estabelecê-lo em sua positividade científica, pela ex periência direta de todos. :e o que ocorre com a observação de um gesto ou de um comportamento, no sentido behaviorista. Todavia, este não é o único tipo possível de intersubjeti vidade. A psicanálise veio mostrar que há outro tipo de inter subjetividade podendo subsistir aquém ou instaurar-se distin tamente além desse estatuto universal de interstibjetividade. O problema consiste em determinar sua validade epistemológica. Em todo caso, é preciso que se reconheça que, a partir do momento em que determinado paciente relata seus sonhos ao seu analista, a intersubjetividade que entre ambos se estabe!ece não é idêntica àquela oriunda da observação feita pelos dois sobre o sonho. Na verdade, somente o paciente vivenciou o sonho que ele relata. Não obstante, o relato que o analista ouve, pode evocar em seu espírito, de modo simplesmente re presentativo, os conteúdos vivenciados por seu paciente. E é neste nível da reprodução induzida pelo relato, e não mais no da observaçãocomum, que surge esse novo tipo de intersub jetividade. Quando isso se realiza, graças à mediação racional da linguagem, podemos dizer que se estabeleceu entre os su jeitos que assim se comunicam, uma intersubjetividade de outra 108 -11 ordem. Trata-se, no caso presente, de uma intersubjetividade particular, e não mais universal. E é este tipo de intersubjeti vidade que a epistemologia leva em conta para estudar psico- . logicamente as condutas de relato. Dito isto, cremos poder chegar a uma primeira conclu são: não se pode mais negar que, com Freud, tenha surgido um novo tipo de objetividade psicológica. E é preciso que se acrescente . que esta objetividade não pode mais prescindir do valor, da significação íntima ou interpretativa. No início de nosso século, quando a psicologia ainda lutava para fazer-se reconhecer como disciplina científica, viu-se obrigada a reco nhecer certas determinações da . vida mental, dadas, como tais, à observação íntima e "subjetiva" do indivíduo. Freud se dá conta disso desde que começa a explicar os sonhos. A este respeito, a parte metodológica de sua Interpretação de Sonhos é fundamental. No primeiro capítulo, por exemplo, ele faz uma história dos sonhos. E descobre, para surpresa de muitos, que o sonho· é uma formação da vida mental, já muitas vezes des crita e estudada, em sua "materialidade"' pela psicologia empí rica. Por outro lado, Freud constata que as crenças populares ligaram espontaneamente a essa formação da vida mental (o sonho) todo um alcance simbólico e premonitório figurado, por exemplo, nas "chaves dos sonhos", desprezadas pelo espí rito que pretende atingir a cientificidade em psicologia. Seu texto é claro: O método simbólico é de aplicação limitada; não se pode fazer dele um sistema geral. O método de decifração depende inteiramente da chave, "chave dos sonhos", e nada pode assegurá-la. Estaríamos tentados a dar razão aos filósofos e aos psiquiatras, e a afastar o problema da interpretação dos sonhos como sendo um falso problema. Contudo, pude dar um passo à frente. Fui levado a constatar que se tratava, uma vez mais, de um desses ca sos, bastante freqüentes, em que a velha e tenaz crença popular chegava muito mais perto da verdade do que nossas doutrinas atuais. Pretendo que o sonho tenha uma significação e que exista um mltodo cientifico para in terpretá-lo. 109 O que nos parece fundamental, nesse texto, é a convicção anunciada explicitamente por Freud de ter dado um passo à frente no processo de conquista da cientificidade em psicologia: o sonho tem uma significação, e pode ser explicado cientificer mente. Em certo sentido, não somente é anunciada, mas tam bém registra-se a certidão de nascimento de outra modalidade de objeto cientifico: a significação do sonho. Para se ter acesso, cientificamente, ao sonho, não se pode prescindir da interpre tação. A interpretação é correlativa a um método a ser segui do. Aliás. no caso do sonho, é o único método possível, pois trata-se de "decifrar" os sentidos ocultos que se manifestam nos sentidos aparentes do sonho. Portanto, não há como negar a fundação, por Freud, no domínio da vida mental, de uma nova ordem epistemológica. Explicitemos um pouco melhor esta questão. Através de sua atualidade e de sua conduta de relato, o sonho apresenta certo "objeto" ao saber inteligente. Todavia, este objeto não pode ser confundido com uma "coisa" da vida mental, incomu nicável em sua "coisidade" individual, porque, por natureza, ele é uma significação, um sentido. Evidentemente, longe de Freud pensar que o sonho (formação do imaginário que o re: lato do sonho notifica a terceiros) seja portador de uma signi ficação usual, assim como a representação de uma árvore é o referente da coisa "árvore em geral". O que ele pretende afir mar é que, no interior mesmo da vida mental, o sonho remete. da atualidade que ele é, a outras disposições individuais do sonhador; disposições essas que encontram, no sonho, uma es pécie de exteriorização sem revelar aquilo que elas são, de tal sorte que o sonho permanece um dado a ser decifrado. A significação do sonho é justamente aquilo que perma nece no lugar dessas "disposições individuais" do sonhador: causalidades obscuras, incidentes de uma história pessoal re mota, traços mnêmicos e hábitos profundamente enraizados naquilo que o homem consciente esquece, etc. Como diríamos hoje, a significação do sonho é de ordem existencial, escapando à ordem objetiva, de uma vez que ela não é diretamente cons tituída pelas coisas representadas por determinações e conteú dos psicomentais do sonho. Ora, colocar o prob!ema do sen tido, é reconhecer explicitamente que nenhuma compreensão 110 psicológica pode ser direta. Porque compreender um compor tamento ou uma observação, não consiste simplesmente · em re gistrar expressões de outrem, mas, sobretudo, em perceber um sentido, através do qual o outro se revela e existe. Ora, toda percepção visa a um sentido e tem uma relação com a subjetividade do sujeito que a exprime. E o sentido é, antes de tudo, uma expressão que tem valor de posição do su jeito por ele mesmo na busca de outrem. Só exprimimos um sentido na medida em que convocamos o outro, não nesta ime diatidade em que o outro se confundiria com a percepção que temos dele (atitude da criança em sua fase pré-objetai) , mas numa posição do outro como referente de nosso discurso. E é por isso que o sentido, em psicologia, só poderá ser desvelado e comunicado num ato de distanciamento e de latência pos sibilitando a relação intersubjetiva. O psicólogo não entra em contato direto com a expressão de outrem, pois não pode re duzir o outro a tornar-se apenas o somatório de suas expres sões ou de seus sintomas. Enfim, a subjetividade do outro só poderá ser preservada, no ato psicológico, quando não for re duzida à soma de seus comportamentos e de suas atitudes. Assim, a psicologia psicanalítica do sonho pode ser con siderada como o estudo objetivo e científico - pelo menos em princípio, porq,uanto seguindo certas normas de objetivi dade - da significação dos sonhos. No entanto, é preciso que se diga que, se nesse nível algo de científico pode ser conse guido, trata-se da emergência epistemológica desse novo tipo de objetividade de que falamos, inteiramente distinto dessa ob jetividade científica reivindicada pelos positivistas clássicos e pelos behavioristas modernos. O problema consiste em · com preendermos o eventual estatuto desse tipo de objetividade. Como já dissemos, trata-se de uma objetividade que pressupõe a in tersubjetividade particular, estabelecida graças à conduta do relato do sonho, como relato de um episódio da vida mental do sonhador. Contudo, apesar de permitir a intersubjetividade, o relato não transfere, de um sujeito para outro, o sonho em sua materialidade : o destinatário do relato nem vive, nem vi veu o sonho. Seu papel consiste simplesmente em representá lo. O máximo que pode conseguir é revivê-lo graças a uma descrição "viva" fortemente sentida. 1 1 1 Por sua vez, o trabalho comum do paciente e de seu ana lista também não consegue transferir de um sujeito para outro, a existência mesma ou a fatuidade das disposições pes soais do sonhador, do autor do relato, daquele que fornece o material produzido pelas "associações livres". O outro só poderá perceber tudo isso de modo representativo. Assim, en tre os dois sujeitos, há uma defasagem notória: de um lado, situa-se o vivido; do outro, o representado. Mas a significação do sonho, relação de um vivido com outro vivido (o do so nhador), poderá ser transferida do espírito do sonhador para o espírito do analista ou psicólogo. E isto, como relação hom6- loga entre as representações do vivido. Em si mesmo, o vivido não se transfere de um sujeito para outro. Não obstante, é possível que a significação existencial de um vivido psicomen tal de um sonho seja possuída conjuntamentepor dois ou mais sujeitos, comunicando-se através da linguagem e trabalhando em comum a partir de uma Gonduta de relato. Ora, na perspectiva em que aqui nos situamos, não vemos como a função primordial do psicólogo possa ser outra senão a de revelar o sentido da palavra do homem. Ele se interroga e tenta compreender a relação que, através da linguagem, o ho mem mantém com o mundo. Não se trata, evidentemente, da linguagem como simples meio técnico a serviço da palavra (a língua) , mas da linguagem enquanto estrutura essencial da pre sença do homem ao mundo por seu dizer. E é por isso que a psicologia, ciência dessa relação, não pode ser pensada fora dessa linguagem. Por conseguinte, não pode pura e simples mente ser reduzida a uma ciência da causalidade psíquica, pois deve colocar-se o problema da compreensão, e da com preensão que ela pode ter de si mesma. Neste sentido, o psi cólogo pode ser considerado um "especialista" da linguagem, na medida em que lhe cabe revelar aquilo que não se mani festa, aquilo que está oculto ou que se recusa _à consciência. Em última análise, a tarefa essencial de Freud não tem outro objetivo senão fazer com que o sujeito redescubra sua palavra, a palavra que lhe foi alienada e que lhe escapa, a fim de que possa reestruturar sua objetividade. Em todo ato, o homem faz intervir, consciente ou inconscientemente, direções de sentido. :e por isso que o ato psicológico essencial não pode 1 12 consistir tanto em ver (atitude objetivante) quanto em ouvir (atitude compreensiva) , para que se torne possível a apreen são do sentido. E é por isso que a psicologia procura colocar o prob!ema da compreensão dos fenômenos psíquicos a fim de revelar sua dimensão expressiva e significante. A relação do paciente com o psicólogo não se reduz, pois, ao estudo de um caso, de uma objetivação ou de uma classificação dos compor tamentos : o que importa, nessa relação, é a descoberta da verdade do paciente. O psicólogo vai a seu encontro através da linguagem. Esta não é um simples meio de comunicação, pois engaja o problema da verdade do paciente e de sua história pessoal. :f: por isso que o sentido não pode ser objetivável, veri ficável ou simplesmente pondel'ável ( teste de classificação) . O campo do psicólogo é o campo do discurso, pois é somente no discurso que o real se apresenta sob a forma simbólica do sentido, isto é, do possível. Sendo assim, chegamos a essa "objetividade" de segundo nível, por oposição à objetividade exterior, física, sobre a qual normalmente se pautam as ciências empíricas, inclusive a psi cologia. Ora, não temos pretensão alguma de provar que a psi canálise freudiana tenha conseguido conquistar a entidade in tersubjetiva científica, entidade intelectualmente objetiva, cons tituída pela significação que um acontecimento ou um episódio da vida mental podem comportar, do interior mesmo dessa vida mental, para seu sujeito e para outrem. O importante é que não se pode mais contestar que a psicologia psicanalítica tenha tido a idéia, já epistemologicamente distinta, desse novo tipo de objetividade científica, relacionando-se com um objeto que não é mais uma coisa, mas um sentido. Este sentido se inscre ve no interior de uma vida mental, realizando-a quer na norma lidade, quer na existência patológica. O que podemos concluir dessas observações é que o es tabelecimento de outro critério para chegar à objetividade cien tífica, em psicologia, coloca em questão o behaviorismo. O "passo à frente" dado por Freud poderá ser reconhecido na descoberta deste outro objeto psicológico que vai constituir-se com a significação (conteúdo latente) de um vivido mental en quanto sintoma interpretável e decifrável pela utilização de um método seguro e eficaz, e pela introdução de um outro mo- 113 mento do ser psicomental : outros vividos anteriores, hábitos, o inconsciente, complexos, etc. Evidentemente, os fatos exterio res observáveis : comportamentos, relatos, produtos do trabalho de associações livres efetuado pelo "sujeito", não são mais, propriamente falando, constituintes do objeto psicológico "sig nificação", mas os mediadores indispensáveis de sua constitui ção. Graças a esses mediadores, o psicólogo pode representar se o vivido significante de seu "sujeito" ( o sonho, por exemplo) através de seu relato. Tudo isso pode ser incluído nesta cate goria epistemológica chamada de sintoma. Todavia, o psicólo go também pode, com esse "sintoma", representar-se o ser psi comental : por exemplo, fazendo apelo à produção de "associa ções livres". E é quando dispõe das duas representações da quilo que se passa em seu 'sujeito", que ele descobre a "sig nificação", quer dizer, chega à interpretação do "sintoma". 3 . A OBJETMDADE PSICOLÓGICA No ponto a que chegou nossa análise, convém sistematizar melhor os diferentes tipos de objetividade psicológica. Em se guida, tentaremos situar esses modelos de objetividade com os das demais ciências humanas, a partir, principalmente, da sig nificação do sujeito da ciência. Podemos distinguir quatro tipos distintos de objetividade psicológica, correspondendo a quatro maneiras de encarar o estudo da psicologia: estudo do comportamento, da conduta, da "intenção" e da "significação". Dois desses tipos de objeti vidade. o que estuda o comportamento e o que estuda a "sig nificação", poderiam ser considerados "puros". Com efeito, o comportamento pode ser encarado como um fato observável "puro", no mesmo senti.do em que são "puros" os fatos obser váveis físicos. A observação do comportamento fornece, em princípio, num material dado, um sistema de identidade e de diferenças, pois, sobre ele, podem ser construídas relações fun cionais (esquema S --+ R) assegurando a cientificidllde da ob servação. Quanto à "significação", parece evidente que ela não é um observável. Formalmente, nada da "significação" pode ser dado à observação exterior ou objetiva, pois ela se situa única e exclusivamente no nível do inteligível. E não seria exa- l l4 gerado dizer que todo . o empenho do método psicanalítico de Freud consiste em tornar possível, de um modo que merece a denominação de científico, a descoberta intelectu.al do inteli- gível a partir do observável. . Entre essas modalidades de objetividade em psicologia, si tuam-se dois outros tipos: o que é resultado de um estudo da conduta e o que é fruto de uma análise da "intenção". Ambos associam, na constituição de sua objetividade, um observável no sentido mencionado acima: comportamento, palavras de re lato ou de descrição, e um vivido representável, peftencendo à esfera da observação íntima. Bem entendido, sem um recurso a esses dois tipos híbridos de objetividade psicológica, seria praticamente impossível, à inteligência científica do psicólogo. passar do estado do "observável" à descoberta da "significa ção". Sistematizando os quatro tipos de objetividade psicológi ca, temos o seguinte quadro: 2 O EXPRESSIVO a conduta 4 O INTELIG1VEL a "significação" 1 O OBSERVÁVEL o comportamento 3 O IMPRESSIVO e a pàrtir desse quadro que faremos algumas considera ções de ordem epistemológica sobre o problema da objetivi dade em psicologia e nas ciências humanas gerais : 115 1 . Aquilo que está mais próximo da atitude da psico logia "pré-científica" ou simplesmente "filosófico-introspecti va", mesmo que por vezes e!a tenha rel\·indicado o título de "científica", parece ser a atitude da psicologia fenomenológica. Sem dúvida, esta psicologia está voltada para esse tipo de ob jetividade que, em nosso quadro, chamamos de o "impressivo". Trata-se de uma objetividade centrada na auto-observação do "sujeito" e identificando-se com o próprio psicólogo. Por outro lado, a atitude da psicologia fenomenológica parece suspeita à psicologia que pretende afirmar-se na cientificidade, por estar comprometida com tomadas de posição e engajamentos valora tivos ou de ordem filosófica: as vinculações mais ou menos genealógicas com a filosofia fenomeno'ógica são uma compro vação de que trata de uma atitude estranha àquela que tem a ambição de ser apenas científica. Por sua vez, no plano cien tífico, parece que a psicologia fenomenológica não correspon deu às esperanças nela depositadas. Por exemp�o. isso foi clara mente notado a propósito da psicologia fenomenológica de Sar tre sobre a imaginação. Sartre não conseguiu mostrar a cienti ficidade de sua psicologia. Nem tampouco foi demonstrada a objetividade da fenomenologia husserliana. Evidentemente, Hus serl entreviu certa idéia de cientificidade para a fenomenologia, muito embora ela só tenha atingido um nível bastante incom pleto e confuso de realização. Neste sentido, o estatuto de objetividade, reconhecido ao estudo psicológico do comporta mento, é bem superior ao do estudo fenomenológico da "inten ção" e do "intencional". 2. Algo de semelhante pode ser dito a respeito da psi cologia psicanalítica e do estatuto de objetividade a ser reco nhecido ao estudo da "significação". A psicanálise, tal como ela se apresenta concretamente, e não enquanto método de es tudo e interpretação do sonho ou vivido mental, é extrema mente complexa: a) em primeiro lugar, aquilo que nela há de "científico", permanece confinado na prática efetiva da relação paciente analista. Em seu ser concreto, a relação analítica depende de uma técnica terapêutica, havendo momentos de "transferência" entre paciente e analista. O saber surge à medida que se reali- 116 [ za a expcnencia singularmente vivida. É este saber que leva os analistas a não admitirem que falem da psicanál ise senão aqueles que se submeteram ao processo técnico da análise, a título de pacientes, ou aqueles que são psicanalistas (o que pressupõe a "análise didática" ) ; b ) em segundo !ugar, apesar do grande "passo à frente" dado por Freud, capaz de revolucionar nossa cultura, sobre tudo pela elucidação da significação profunda da sexualidade na vida humana - a história da sexualidade no interior de cada indivíduo, seus ocu:tamentos existenciais e suas ressurgên- � cias larvares -, a interpretação, ou descoberta intelectual da significação, ainda não pode dizer que esteja ancorada em cri térios satisfatórios de cientificidade. As coisas permanecem na dependência da eficácia da relação paciente-analista. Bem en tendido, esta eficácia já pode ser considerada como um ele mento importante de validação científica: "há a'go aí de ver dadeiro, pois funciona", poderíamos dizer. Contudo, a verdade realmente "verdadeira", certa e convincente, para todos quan tos a conheçam de modo competente, ainda está por ser deter minada, muito embora deva ser estabelecida para além da plataforma .de objetividade apregoada pela psicologia behavio rista; c) enfim, para além das teorias freudianas, solidárias a uma prática psicanalítica, podemos perguntar: será que todo esse conjunto de teorizações já não chegou, hoje, a um ponto em que pode tornar-se (para a inteligência e sua necess:dade de conhecimento objetivo) mais num incômodo do que num apoio realmente útil? É por vezes intrigante que uma idéia justa, fecunda e profunda só possa impor-se ao pensamento que se esforça por atingir o nível científico, exprimindo-se através da produção e da fermentação de discursos "ideo!ógicos"; ou então, mediante "teorias" mais ou menos "científicas", por se rem inspiradas por um desejo de objetividade, na rea!Ídade, "pré-científicas", destinadas a uma revisão ulterior! O que de vemos perguntar é o seguinte : será que as teorias freudianas não constituem, já em larga escala, este tipo de "contribu,ição ideo!ógica' indispensável para que uma cientificidade mais 117 "pura" e mais radical possa vir a estabelecer-se em outros moi des e segundo novos critérios? 3. f: por todas essas razões que, do ponto de vista cien tífico, o estatuto de objetividade da psicanálise ainda perma nece incerto. Pelo menos, ele é bem mais inseguro do que o estudo psicológico do comportamento ou da conduta, embora bem mais firme do que o estudo da psicologia fenomeno�ógica. Em suma, a psicanálise é uma disciplina que, por seu método, está bem mais próxima da ciência do que da filosofia, pois ela faz uso da observação, da explicação, da previsão, da ação técnica, etc. Entretanto, pelo fato de levar em consideração os problemas do sentido, do "porquê" e da interpretação, ela se distingue sensivelmente da ciência positiva no sentido estri to. f: por isso que, levando em conta a observação precedente, traçamos uma linha diagonal separando, no quadro, as objeti.,. vidades 1 e 2 das objetividades 3 e 4. As duas primeiras já conquistaram, na prática, seu estatuto de objetividade cientí fica. As duas ·outras ainda estão em processo de aquisição de um estatuto de cientificidade menos incerto: ainda precisam elucidar, de um lado, a estrutura da relação de intencionali dade da consciência com o fato mental ; do outro, a estrutura da relação de significância .daquilo que Freud chama de "o inconsciente" com o fato mental. Para conseguirem tal intento, duas correntes psicológicas se apresentam : uma se inclina para os métodos de certo "estruturalismo", a outra tenta aprovei tar-se da metodologia das ciências da linguagem. 4. Não podemos esquecer que, hoje em dia, a psicologia se apresenta como o estudo de um aspecto do ser animal ou humano. Enquanto tal, ela guarda o estatuto geral de uma prática concreta, fazendo todo o possível, e da melhor manei ra que pode, para investigar o campo de estudo que considera como sendo o seu. Em outros termos, quer estude as funções da memória, os processos de aprendizagem ou a gênese das estruturas mentais da criança, quer a psicologia diferencial dos sexos, etc., o psicólogo é alguém que de forma alguma deve ser considerado como um obsecado pela análise espectral epis temológica, a ponto de se perguntar com inquietude e escrúpu lo pelo tipo de objetividade que o preocupa no momento em 1 18 que leva a efeito, na prática, este rtn aquele tipo de pesquisa; ou então, quando ensina a "psicologia" ou escreve sobre este ou aquele assunto psicológico.' Na prática, podemos dizer que os quatro tipos de objeti vidade psicológica se imbricam e se combi11� mas não resol vem suas associações mais ou menos confusD. deixam em si lêncio suas diferenças e heterogeneidades. E§sas diferenças se fundam na "boa consciência" metodológica do psicólogo "qua lificado" cientificamente. Cabe ao epistemólogo, que poderá ser o próprio psicólogo, desempenhar o papel, por assim dizer, de "consciência infeliz" (crítica) da prática epistemológica. :S ele quem tenta fazer, com dificuldades, uma reflexão crítica sobre tudo o que precede; numa palavra, sobre a cientificidade da psicologia, enquanto ela é (ou deveria ser) uma ciência do homem. 5. Evidentemente; não tivemos a pretensão de analisar todos os problemas epistemo!ógicos implicados no conceito de" objetividade psicológica. Estudamos sucintamente apenas aque les que nos pareceram epistemologicamente mais relevantes e susceptíveis de levantar os mais diversos e fecundos questiona mentos à psicologia do comportamento. Assim, o que nos in teressou de modo especial, na psicologia, foi uma reflexão so bre seu desejo da referência empírica e positiva, quer dizer, sobre sua vontade de chegar ao estatuto de cientificidade, se não como uma ciência do homem, pelo menos à maneira das ciências naturais. Muitos outros problemas epistemológicos da psicologia foram conscientemente deixados de lado, não por serem menos importantes, mas porque decorrentes da tomada de posição relativamente à análise do problema central : o da cientificidade ou não da psicologia. Os demais problemas di zem respeito às outras funções da elaboração do conhecimento psicológico: explicações, hipóteses, teorias, modelos, apelo aos recursos da matematização dos observáveis (medida) , etc. Estevasto domínio mereceria, sem dúvida, um estudo bem mais aprofundado. Aliás, é sobre ele que já se escreveu a maior parte dos trabalhos epistemológicos concernentes à psicologia, razão a mais para não lhe darmos a preferência e para remetermos o leitor à já extensa bibliografia tentando resolver a questão ·da passagem do dado ao explicado em psicologia. 119 6. No contexto em que nos situamos, cremos ser im portante ressaltar as relações da objetividade psicológica com a das demais ciências humanas. Neste sentido, cabe esta per gunta inicial : qual o sujeito da ciência? Já vimos que a cie!lti ficidade das ciências do homem não pode ser definida de modo unívoco. Eis uma constatação já antiga, e que está na origem da tentativa de Foucault : traçar uma genealogia dos modelos científicos que engendram a idéia ou o conceito de homem, quer dizer, desse corpo de conhecimentos que toma o homem .·orno objeto, naquilo que ele tem de empírico. No interior desse corpo de conhecimentos, Foucault descobre, para descrevê-lo, um conjunto de "taxinomias". Mencionemos apenas duas : as que apresentam o traço comum de não situar a psicanálise como domínio autônomo, mas como uma espécie de exigência interna a um sistema de que ela seria o princípio norteador. Não seria possível associar a psicanálise a um conjunto de disciplinas já"' constituídas. Todavia, sua presença provoca uma reformulação total dessas disciplinas. No entanto, Foucault d�s cobre um esquema comum à psicanálise e à etnologia, permi tindo-lhe · uma redefinição do campo do homem : "Forma-se, então, o tema de uma teoria da linguagem que daria à etnologia e à psicanálise assim concebidas seu modelo formal" (Les mots et les choses) . A l inguagem e suas múltiplas teorizações cons tituiriam a "contraciência" capaz de unificar tudo, contestando a heterogeneidade dos componentes do campo pseudocientífico das ciências humanas. No entanto, Foucault não pode negar que a própria linguagem deva ser estudada em função de sua relação com o "inconsciente", pois é ele que determina suas formas e sua emergência. Donde a questão : quem fala? seria o homem? o inconsciente? o sujeito? um "algo" (on) qual quer? Segundo Lacan, que só aparentemente se separa de Freud, neste particular, é preciso que se distinga psicologia, enquanto uma teoria do indivíduo, e psicanálise, enquanto esta introduz um.� teoria do sujeito. Por "psicologia", deve ser entendido um conjunto de técnicas tomando possível reintegrar o indivíduo ( ( r 'e �e situa numa coletividade graças a um conjunto de nor ma.· ) , quando ele se desvia da sociedade; excluí-lo da socie .;L .c, quando ele se toma "anormal"; selecioná-lo, quando é r · · \ considerado "apto". Ao definir assim uma "teoria geral da con duta", G. Canguilhem mostra o perigo de toda psicologia sub metida à ideologia dominante: ao tomar por objeto o homem ou o indivíduo, a psicologia o toma no seio de uma sociedade "regulamentada". E é por isso que Lacan se insurge contra as psicanálises e contra os métodos psicoterapêuticos pretensamen te não-diretivos, pois terminaram por reduzir a contribuição original de Freud a uma pura técnica de reintegração ou de pseudocrítica sociais, amputando-a de sua dimensão científica. Em seus Écrits, ele diz que "não há ciência do homem. porque o homem da ciência não existe, mas somente seu su jeitC'". O "sujeito" é aquele que fala, o lugar de toda enuncia ção. Não pode ser concebido como uma entidade única, dota da de uma essência, mas como o objeto de uma divisão que o constitui: entre o inconsciente que o determina antes de todo discurso, e as produções conscientes, de cuja idéia faz parte o homem. Assim sendo. a única ciência possível é a do sujeito que se ccupa com a produção da linguagem. Quanto à noção de homem, em oposição à de sujeito, ela é relativa a determi nada cultura e a determinado reétodo: depende, em suma, da generalidade, e não da universalidade. Só o sujeito, como termo lógico, é universal e universalizável. Por isso, Lacan se per gunta: que necessidade tenho de dizer que, na ciência, o saber se comunica? A comunicabilidade do saber do sujeito sobre o sujeito depende, diz ele, de uma lógica que o pensa como es tando separado da causa de seu discurso; esta lógica é a mesma que implica a psicanálise, ciência "das miragens" do sujeito e ciência do inconsciente; portanto, ela inclui os efeitos e a cau sa. E é em função dessa especificidade que ela não pode si tuar-se no domínio das ciências humanas, a não ser para cri ticá-las radicalmente. E o que se pode diier da cientificidade da psicologia? Se considerarmos a psicologia concretamente, em seu estado pre- • sente, podemos constatar que ela s� apresenta como um vasto território, com vários departamentos, em cujo interior o conhe cimento está longe de ter atingido, em toda parte, o grau de desenvolvimento e estatuto de cientificidade que poderia se esperar. Isto pode nos causar a impressão de uma grande massa ainda movediça, onde aparecem formações mais coerentes do 121 conhecimento, terrenos mais sólidos, sobre os quais a démar che psicológica pode se construir com segurança mais metódi ca. Na medida em que se torna científica, a psicologia, como toda ciência, faz-se científica a partir de um estado bruto e prévio do conhecimento, que ainda não é científico. · Antes da psicologia de hoje, houve a de ontem, a de anteontem. Cada vez que se evoca uma das etapas da psicologia, evoca-se aqui lo que já é uma tentativa de organização coerente de conheci mentos que se ligam à experiência que cada um pode ter das coisas da vida mental e àquilo que, de uma forma ou de outra, se encontra expresso culturalmente. Atualmente, por exemplo, a psicologia só é o que é permanecendo mais ou menos soli dária dessa massa confusamente pré-científica, de aquisições empíricas ou, como diz Durkheim, de "pré-noções" por uma definição científica de seu objeto. Mas este "corte epistemoló gico" de princípio não impede a persistência das continuidades reais. Aliás, de vez em quando a psicologia sente a necessidade de retornar àquilo de que se libertou para constituir-se come saber objetivo. Assim, ela irá à forma científica o tanto quanto pode, e naquilo em que realmente consegue. Quando não con -segue, contenta-se com estados mais modestos de conhecimen to, talvez aquém do limiar da cientificidade propriamente dita. Por outro lado, e ao mesmo tempo, a psicologia mantém, por vezes conscientemente, n·a maioria dos casos contra sua vontade, conexões mais ou menos estreitas com visões filosófi .cas do mundo e do homem. A ideologia filosófica que a impreg na não é simplesmente a ideologia pessoal do pesquisador <>u do autor de um obra filosófica (uma ideologia "discrimina ·da" daquilo que o cientista sabe ser científico) , mas uma ideo logia mais ou menos "presidindo" aquilo que se diz ser a pró pria ciência. E é isto que justifica, pelo menos em alguns casos, o surgimento das diversas "escolas científicas", em desacordo entre elas. E não é raro que elas se engagem na discussão não somente daquilo que pode constituir o objeto de discussões científicas (relativas a resultados determinados ou a hipóteses ·explicativas propriamente ditas, susceptíveis de verificação) , mas das doutrinas e das atitudes que dificilmente se pode dizer que sejam científicas. 122 ' Um bom exemplo do que acabamos de falar é o da psico pedagogia. Esta discip�ina comporta toda uma base de estudo objetivo, desinteressado, da psicologia da criança, do adoles cente, etc. Ademais, comporta técnicas de ensino e de forma ção do indivíduo. Nem por isso ela deixa de combinar-se com di versas visões do mundo, com variadas concepções do destino do indivíduo humano, do seu meio social ou dos critérios de "finalidades" n serem impostos à educação. Assim, quase ine vitavelmente, 11 doutrina psicopedagógica encontra-se sob múl tiplos determinantes ou condicionantesda convicção humana em seu conjunto: ideologias1 filosofias, crenças religiosas, etc. E isto até parece normal. Deste ponto de vista, não é por acaso que, diferentemente de organizações que se ocupam com as outras ciências humanas, a União Internacional de Psicologia Científica preferiu não aderir ao Conselho Internacional de Filosofia e das Ciências Humanas. O que se pretendeu, ao que parece, foi muito mais enfatizar um desejo de guardar suas dis tâncias. Ora, este simples fato já revela a possibilidade de uma dependência mais estreita das doutrinas do psicólogo relativa mente às perspectivas ideológicas próprias ao filósofo. Dito isto, constatemos também a presença, no seio das disciplinas e práticas atuais oriundas da psicologia, de um com ponente epistemológico de natureza crítica e, por assim dizer, denunciadora da cientificidade que, espontaneamente, a psico logia procura cultivar. Assim, ao lado desta corrente aparente mente natural de marcha em direção a um estatuto "científico", há uma espécie de "contra-corrente" recusando-se a admitir que a psicologia seja uma "ciência". Já citamos o julgamento de Foucault sobre as ciências humanas : "não são, em absoluto, ciências. A configuração que define sua positividade e as enraí za na episteme moderna, coloca-as ao mesmo tempo fora do estado de serem ciências. E se nos perguntarmos por que elas receberam esse título, bastará lembrar que pertence à defini ção arqueológica de seu enraizamento fazer apelo e acolher a transferência de modelos tomados de empréstimo às ciências" ( Les mots et les choses) . Foucault vai mais longe ainda, a propósito da etnologia, da psicanálise e da ciência da linguagem : ele chega mesmo a d izer que elas são discip�inas que, relativamente às "ciências 123 humanas" e ao seu projeto, se afirmam como "contra-ciências". Assim, com o surgimento da psicanálise, a psicologia conteria em si uma prática que, por método, viria contradizer sua in tenção, seu esforço e até mesmo seu pretenso estatuto de cien tificidade. E não são poucos os psicanalistas a pensarem que a psicanálise se apresenta como uma espécie de condenação mais ou menos radical da reivindicação "científica" da psico logia. Lacan, por exemplo, diz isso várias vezes : "estamos de acordo para dizer que as condições de uma ciência não poderão ser o empirismo". Em seguida, ele diz que não reconhece a ci entificidade "daquilo que já se constituiu, com .a etiqueta cien tífica, sob o nome de psicologia". E a razão que e'e apresenta é a seguinte : "a função do sujeito, tal como a instaura a ex periência freudiana, desqua�ifica, p�·a raiz, aquilo que se faz sob o título de psicologia científica : por mais que reabilitemos suas premissas, isto só faz perpetuar um quadro acadêmico , . (Ecrits) . 7. Não se trata, aqui, de aceitar ou de simplesmente re futar as idéias de Foucault e de Lacan. O que importa é o reconhecimento de que a psicologia jamais pode ser considera da como uma ciência acabada, abstrata e fechada. Ao preten der sempre ancorar-se na certeza de um saber sólido e seguro (científico) , ela está constantemente sendo colocada em ques tão por seu objeto que, aliás, não é um objeto, mas um su jeito: o homem. Por outro lado, pe�o fato de não ser dogmá tica nem de estar fundada definitivamente, ela deve colocar se em questão, porque seu próprio sujeito é fundamentalmente questionado em sua história e em seu devir. E toda tentativa, sob pretexto de ctentificidade ou de rigor, que qu�sesse instalar a psicologia (em seu trabalho de elaboração e de fundamento) em certezas absolutas e definitivas, colocá-la-ia, ipso facto, na impossibilidade de encontrar os meios para apreender o homem como existente, isto é, para desvelá-lo ao mesmo tem po em seu aparecer e em sua historicidade. Porque a interro gação própria da psico�ogia se dirige às estruturas, ao sentido e ao fundamento da presença do homem, tal como ela se ma nifesta em cada um de seus atos, de suas situações e de seus comportamentos. O homem não é um ser-substância cujas ati tudes poderíamos descrever e coisificar. Também não é um 124 ser estático cujo comportamento consistiria em assemelhar-se mais à sua essência, isto é, a uma definição de seu ser inscrita na "natureza humana". O homem não é um ente, mas um exis tente que se toma e!e mesmo fora de si, em sua presença : é um ser histórico, em devir, de superação. Razão pela qual a psicologia não pode estabelecer sobre ele um sabet: científico dogmático. Nesta perspectiva, devemos observar que, uma verdadeira psicologia, através da diversidade dos seus pontos de vista so bre o homem, talvez devesse dar-se por tarefa essencial elu cidar a relação do homem com o mundo e consigo mesmo. Porque a presença surge de uma comunicação e de um en contro homem-mundo. Talvez lhe competisse estudar essa re lação, sua gênese, seus modos de realização, sua finitude, a fim de que fosse desvendado, para o homem, aquilo que pode sig nificar "o seu existir". Talvez fosse nessa interrogação sobre a existência do homem que devesse fundar-se uma psicologia fiel a seu "objeto". Ela não pode colocar entre parênteses o fato de o homem ser um ser-no-mundo, numa relação perma nente de compreensão do mundo para construí-!o e se recons truir. Assim, enquanto ciência da compreensão, da comunica ção e do encontro do homem e do mundo, ela se funda como ciência do real subjetivo. Não sendo ciência do corpo nem es peculação sobre a "alma", a psico!ogia deve tomar, por hori zonte de sua significabilidade, o homem que se compreende no mundo, compreendendo-se a si mesmo. E é justamente contra as psicologias que não levam em consideração esses aspectos, que dedicaremos nosso último capítulo. Para sermos mais pre cisos, trata-se dessa psicologia que Ludwig von Bertalanffy cha ma de "filosofia positivista-mecanicista-comportamentalista" re duzindo o homem a um "automata" infra-humano (Robots, men and minds, 1967; utilizaremos de perto a edição espanhola Robots, hombres y mentes, 1971 ) . 8. Antes, porém, façamos uma rápida síntese de a1guns resultados epistemológicos já obtidos. Até agora, reconhecemos dois domínios da vida mental em que o estudo empreendido pela psicologia, conformando-se praticamente com a metodolo gia da observação exterior a que se submetem as ciências físi co-biológicas - metodologia que a doutrina behaviorista eri- 125 giu como regra quase absoluta para o estudo da psico1ogia -, vai descobrir uma positividade objetiva, liberada de toda e qualquer conexão com a atualidade subjetiva da vida mental . Esses dois domínios são, de um lado, a sensação produzida pela ação de excitantes exteriores e físicos (estímulos ) ; do outro, o funcionamento racional da inteligência. Em ambos os casos, a positividade objetiva aparece como aquilo que, em última análise, pode ser construído a partir de um sistema de identi dades e de diferenças, cada um incorporado a um suporte ma terial, qualitativo e operatório sui generis. Por exemplo, o sis tema de identidades e de diferenças incorporado à variedade dos estímulos sensoriais físicos para cada sentido (luz, som, etc. ) ; ou, então, o sistema de identidades e de difer�nças in corporado à variedade de comportamentos a serem observa dos. Deste ponto de vista, há uma semelhança com aquilo que se produz, para a lingüística, com a análise do signo no par significante-significado. O significante, que é natura'mcntc o veículo do significado para uma consciência, também é uma positividade objetiva "liberada" de sua conexão ao significado. Em ambos os casos, da psico!ogia e da linguística, o que cons titui a "positividade" da coisa que cai sob as malhas do estudo positivo, capaz de atingir o resultado positivamente científico, é o fato de se apresentar como uma entidade construída ou representável a partir de um sistema de identidades e de dife renças incorporado a um substrato material e qualitativosui generis: a substância fônica, no caso da linguagem ; a extensão das ondas sonoras, no caso da excitação visual ; etc. Assim, relativamente a uma positividade bem formada de um estímulo, de uma resposta, de um suporte afetivo de infor mação, a atualidade correspondente, na vida mental, é uma si tuação epistemológica semelhante à do significado relativamen te a seu significante. Esta atualidade aí se encontra arbitraria:- . mente ligada, razão pela qual pode ser . deixada de lado no momento em que se toma em consideração a positividade ob jetiva a que se acha !atualmente vinculada. Há, portanto, uma analogia com a separação que se estabelece, no estudo da lfn guagem, entre o· estudo da constituição e da sintaxe do signi ficante, e o estudo das funções semânticas: a sintaxe é o estudo 126 l da positividade objetiva da linguagem enquanto ela é epistemo logicamcntc "liberada" da atualidade de sua função semân tica. Na medida em que a psicologia atingir esse nível, o estudo pm>itivo das positividades objetivas torna-se indiferente à in terpretação psicológica natura! (existência de sensação, de pen samento, etc., no animal ou no homem ) . A linguagem psico lógica natural, a propósito das coisas submetidas ao estudo positivo, nem é indispensável, nem, tampouco, um incômodo para o estudo positivo, baseado numa metodologia precisa e bem equi/ada. Mas isto só se torna de todo verdade na medi da em que a atualidade da vida mental aparecer imediatamente vinculada à efetividade de uma positividade objetiva. Dois exemplos: de um lado, a atualidade da vida mental ligada ao excitante sensorial ; do outro, a atualidade da vida mental liga da à materialidade de uma linguagem racional. 9. Este rápido sumário já mostra que, dentro do esforço da psicologia para alcançar a objetividade, nos interessamos so bretudo pela epistemologia da "observação" e, conseqüentemen te, por sua contrapartida, a "introsp::cção". A crítica à intros pecção é feita sobretudo pela própria psicologia behaviorista, desde seus primórdios positivistas. Para a crítica propriamente pós-behaviorista à introspecção, remetemos o leitor a três au tores : Kohler, Politzer e Sartrc. Retomemos sucintamente a crí tica dos dois primeiros em Psicologia da Forma e em Crítica dos fundamentos da psicologia, respectivamente. O que pretende Kohler é evidenciar todo o conjunto de fatores mentais de organização coerente e "significante" da percepção e da vida mental . Critica a introspecção tal como ela é praticada nos laboratórios de psicologia experimental. Cri tica sobretudo o estudo introspectivo da sensação que, à força de pretender isolar as sensações em sua especificidade própria, cortando-as artificialmente do conjunto da vida mental, as ma terializa c as transforma em coisas elementares da vida mental, elas próprias associadas a processos orgânicos estudados um a um. do ponto de vista psicológico. Neste particular, há- uma confluência entre esta psicologia e o behaviorismo. Todavia, apesar de limitada quanto a seu campo de aplicação, a crítica 127 feita por Kohler é bastante sintomática de um novo tipo de crítica: trata-se de "desmaterializar" a introspecção e de "des coisificar" o que e!a pretende fornecer ao estudo psicológico. A atualidade da vida mental e os fatos de consciência são algo completamente distinto de uma espécie particular de "coisa" oferecida à atenção intuitiva da reflexão consciente. � uma atualidade ativa onde, de certa forma, tudo está em tudo, cons tantemente perpassada de perspectivas que a habitam e de "co1ocações em forma" que a organizam. E é por uma atenção infinitamente mais livre, mais global, que se deve apreender essa atualidade ativa, d:scernindo seus traços e especificidades essenciais, quer dizer, suas estruturas e suas relações de inten cionalidade interna de momento a momento da vida psico mental . A crítica à introspecção será mais contundente na obra de Politzer, que se exprime em nome da lição psicológica extraí da dos ensinamentos da psicanálise freudiana. O que ele cri tica é a atitude intelectualista e o sistema de procedimentos que fazem do dado mental algo quase imaterial, decomponÍ·· vel em elementos e associável a outros dados mentais, mais ou menos como fazem os átomos para formar as moléculas. Esta introspecção materializante e, aliás, can.didamente repressiva daquilo que o funcionamento vigilante da consciência .tende a "censurar", deve ser substituída pela apreensão de um fato mental inteiramente distinto: o fato mental da auto-observa ção não-crítica, reconstituindo um estado psíquico que apre sente certa analogia com o estado intermediário entre vigília e sono. Segundo Politzer, Freud substitui a introspecção pelo relato, e é isto que o leva a empreender um estudo mais obje tivo. O relato é estudado pelo psicanalista sem supor que aque le que faz o relato do sonho, praticando a introspecção me tódica, seja ele próprio um outro psicólogo. O psicólogo in trospectivo espera de seu sujeito um estudo já psicológico: ele sempre supõe, em st:u sujeito, um psicólogo. � isto que torna a psicologia inteiramente distinta das demais ciências: um mate mático jamais irá pedir a uma função que se torne "matemá tica", mas que seja sempre uma "função". Nessas condições, o método freudiano do estudo da inter pretação do sonho, graças a seu relato e ao material fornecido 128 I ) ::. l'f pelo trabalho ulterior das "associações livres", não se opõe apenas ao caráter abstrato e subjetivo da introspecção, mas representa a antítese do realismo da introspecção. Esta, por for necer apenas a forma e o conteúdo de um ato psicológico, só tem sentido na hipótese realista: a psicologia dássica consi dera a introspecção como uma forma de percepção. Portanto, faz corresponder a seus dados uma realidade sui generis: a rea lidade espiritual ou a vida interi'". E é a introspecção que ii:á fazer-nos penetrar nesta "segunda natureza" e informar-nos sobre seus estados. Esses dados da introspecção, que são os de uma realidade, sugerem, depois, hipóteses sobre a estrutura dessa realidade. Também essas hipóteses são "realistas". Assim, através da introspecção, sabemos o que é o mundo espiritual e o que nele se passa. Politzer acha que a vida psicológica de um indivíduo só · poderá ser dada através de um "relato" ou de uma "visão" (percepção visual, de fora, dos gestos e ações do outro) . Ora, tanto o "relato" quanto a "visão", são funções da prática so cial. Por isso, sua estrutura não pode deixar de ser "finalista": em mim, a linguagem corresponde a uma "intenção significati va"; por sua vez, as ações correspondem a uma "intenção ati va". E é sob essa forma "intencional" que o "re)ato" e a "visão" se inserem na vida cotidiana. Quanto à intenção sig nificativa, em mim, ela corresponde, nos outros, a uma "inten ção compreensiva". No que diz respeito à "visão", a vida cor rente respeita seu plano. Eu falo, e a vida corrente vê apenas a intenção significativa. Estendo a mão para pegar um objeto, e alguém me passa o objeto. No primeiro caso, sou compreen dido; no segundo, uma "ação social" responde à minha "ação". 1 O. Todavia, além da introspecção, Politzer critica se veramente o que ele chama de "o ciclo infernal do experimen talismo" em psicologia científica. O que ele diz, em síntese? Os psicó�ogos, diz ele, têm laboratórios e publicam numerosas monografias. Nada de disputas verbais, dizem eles, calcule mos! Eles empregam logarítimos. Calculam o número das cé lulas cerebrais para ver se elas contêm todas as idéias. A psi cólogia científica nasceu! Mas que miséria! f: logo dominada por um formalismo insípido. Recebe o ap!auso de todos aque- 129 les que, de ciência, só conhecem . os lugares comuns da meto dologia. Evidentemente, os psicólogos prestar!m graude serviço à psicologia ao libertarem-na da velha psychologia rationalis. No entanto, o que conseguiram fazer, foi construirpara ela um refúgio ao abrigo da crítica. Com o tempo, os psicólogos como que se sentiram cansados. Sua fé foi logo reanimada pelo advento do.s "reflexos condicionados". Grande descoberta! Não tardou muito, e a "psicorreflexologia" também parece ter ador mecido. Então, as esperanças frustradas renascem com a teo ria fisiológica das emoções ou das glândulas de secreção inter na. E após cada período de agitação "objetivista", reaparece sempre o "monstro vingador" da introspecção. Assim, apresen tando-se como um novo triunfo do espírito científico, a psico logia experimental nada mais fez do que humilhá-lo. Porque, ao in�és de deixar-se fenovar pelo espírito científico e prestar-lhe serviço, ela simplesmente aproveitou-se de sua vitalidade para encobrir velhas tradições. E é isto que explica o fato de as psicologias "científicas" posteriores a Wundt não passarem de um despistamento da psicologia clássica. A diversidade das ten dências em psicologia científica representa apenas "renascimen tos sucessivos desta ilusão que consiste em crer que a ciência pode salvar a escolástica". E é isto que explica a impotência do método científico nas mãos dos psicólogos. Aliás, a este respeito, Bertalanffy lembra que a psicologia é algo muito sério para ser deixada apenas nas mãos dos psicólogos! Segundo Politzer, os cientistas formam uma verdadeira hierarquia. O mundo da quantidade é o mundo próprio dos matemáticos. Estes nele se movem com relativa facilidade, e são os únicos a não transformar seu rigor em parada. O em prego feito pelos físicos da matemática já se ressente do fato seguinte: ela é, para eles, uma "veste alugada". A envergadu ra da matemática escapa_ aos físicos. Os fisiologistas, por sua vez, entregam-se à "magia das cifras", ao entusiasmo pela for ma quantitativa das leis, como à "adoração de um fetiche". Quanto aos psicólogos, é de terceira mão que fazem uso da matemática: eles a recebem dos fisiologistas que, por sua vez, a recebem dos físicos, os únicos a receberem-na diretamente dos matemáticos. 130 Ora, a cada etapa, cai o espírito científico. E quando a matemática chega aos psicólogos, é um pouco de "cobre e de vidro" que eles tomam por "ouro ou diamante". O mesmo ocorre com o método experimental. É o físico que tem dele a visão séria. É entre suas mãos que ele é uma técnica racio nal que não se degenera em magia. O fisiologista já tem certa tendência à magia, pois, em suas mãos, o método experimental se degenera em pompa experimental. O que dizer, então, do psi cólogo? "Nele tudo é pompa. Apesar de todos os seus protes tos contra a filosofia, ele só vê a ciência através dos lugares comuns que a filosofia lhe ensinou a seu respeito. E como lhe foi dito que a ciência é feita de paciência; que foi sobre pes quisas de detalhe que se construíram as grandes hipóteses, ele crê que a paciência seja um método em si mesmo; e que basta procurar detalhes cegamente para descobrir o Messias sinté tico. Então, ele chafurda no meio dos aparelhos e se lança, ora na fisiologia, ora na química ou na biologia; manipula médias estatísticas, e está convencido de que, para adquirir a ciência, como para obter a fé, seja necessário imbecilizar-se. É preciso que se compreenda: os psic6logos são cientistas como os selva gens evangelizados são cristãos" (Critique des fondements de la psychologie, 1967) . A o combater ao mesmo tempo a introspecção e o expe rimentalismo psicológicos, Poli:.Zer propõe que a psicologia re tire sua máscara pseudocientífica e retome ao homem concre to. Para se atingir a objetividade científica desse homem con creto, a análise de Freud é um elemento importante: "Deve-se abordar o sonho como um texto a ser decifrado (e não como uma seqüência incoerente de representação) . A estrutura da significação íntima é, na medida em que é significação, exata mente a mesma que a significação convencional ; e quando que remos encontrar a primeira, não devemos proceder diferente mente da maneira como procedemos para estabelecer uma sig nificação qualquer. Portanto, temos necessidade de elementos e de pontos de referência; numa palavra, de um contexto. Por outro lado, se há significações íntimas, é porque o indiví duo possui, por assim dizer, uma experiência concreta. É pre ciso, pois, que possamos penetrar nessa experiência concreta, e só penetramos nela na medida em que o sujeito nos fornece 131 os materiais de que ela é constituída. Donde a necessidade da démarche fundamental do método de Freud: as associações livres" ( ibid.) . Assim, para Politzer, a psicologia, interessando-se pelo ho mem concreto, pelo homem vivendo um drama humano, deve ter por . objeto o comportamento humano. Mas o comporta mento enquanto ele se relaciona com os acontecimentos no inte rior dos quais se desenrola a vida humana, e com o indivíduo enquanto é o sujeito dessa vida. Em suma, o objeto da psico logia é o comportamento que tem um sentido humano. Sua es pecificidade é conferida pela existência do p:ano propriamente humano e da vida dramática do indivíduo que aí se desenro!a. Esta vida se manifesta nos fatos acessíveis e verificáveis. Tais são as condições, segundo Politzer, para a psicologia tomar-se ciência positiva. Evidentemente, em sua crítica, Politzer utiliza uma lin guagem bastante inadequada que, por vezes, parece até injusta. na medida em que é muito severa e radical e na ,medida em que critica um tipo de psicologia experimental já bastante su perado. Não é certo que este autor tenha visto exatamente a natureza dessa "significação íntima" de que fala. Freud vê que ela vai desta porção da vida mental dita "consciente", desem t>enhando o papel de significante (no sentido saussuriano) , a esta porção de vida mental dita "inconsciente" ou "pré-cons ciente', desempenhando o papel de significado. Contudo, Po Jitzer percebe claramente a possibilidade de uma nova objeti vidade científica em psicologia. De certa forma, ela supera este tipo de psewio-objetividade "subjetiva" a que a introspec ção tentou dar consistência, bem como a "objetividade" pro posta pela psicologia experimentalista, pelo menos a de seu tempo. Politzer ataca não somente os resultados da psicologia, mas as próprias démarches que os engendram. A mistificação não se encontra apenas nas respostas, mas já estão presentes nas questões. E por isso que o behaviorismo, qualquer que tenha sido a importância das tentativas -.de Watson e de seus seguido res, representa uma crítica que não desloca os problemas. Para se obter métodos novos, é preciso que se possa dispor de con ceitos novos. Donde a importância da crítica à própna psico logia behaviorista que, por não dispor de conceitos novos para 132 expressar seu objeto, parece ainda estar presa aos velhos mé todos. Este será o objeto de nossa conc!usão. Evidentemente, não iremos fazer uma crítica ao behaviorismo psicológico des de sua origem até nossos dias, mas apenas nos interrogar sobre a imagem do homem que a psicologia atual, tal ' como ela se apresenta, cria ou persiste em nos propor. Numa palavra, ten taremos nos perguntar qual a significação da "psicologia dos psicólogos", não somente enquanto ela cria uma imagem do homem, mas enquanto e!a desempenha ao mesmo tempo .fun ções culturais, ideológicas, terapêuticas, de regulação, de adap- tação, de se!eção, etc. · 133 v A "PSICOLOGIA DOS PSICóLOGOS" , Por "psicologia dos psicólogos", entendemos, não tanto o estatuto ainda incerto do psicólogo ou o estatuto epistemo lógico de cientificidade da psicologia, quanto a prática da psi cologia em ·nossos dias. Analisaremos esta prática em duas di reções distintas mas complementares : 1 ) a "tecnologização" progressiva da psicologia; 2) as funções da psicologia enquan to prática social. No primeiro item, mostraremos alguns dos efeitos da "tecnologia" psicológica sobre o homem moderno. No segundo, tentaremos mostrar que, apesar de suas funçõescultural, terapêutica, adaptativa e reguladora, a psicologia não tem o direito de ignorar o homem em nome de uma preocupa ção excessiva de rigor científico. 1 . A "TECNOLOGIA" PSICOLÓGICA Desde sua origem, a psicologia experimental ou científica tentou transpor para o domínio dos fatos psíquicos as técnicas de medir e de experimentar já utilizadas com sucesso pela fí sica e pela biologia. Houve uma generalização dessas técnicas a objetos para os quais elas não haviam sido feitas. Evidente mente, essa transferência das técnicas psicoquímicas ao estudo do homem não se deveu exclusivamente a uma preocupação epistemológica de assegurar, em. psicologia, a mesma forma de inteligibilidade científica utilizada nas ciências naturais. Pelo contrário, essas técnicas foram inventadas, sobretudo, ten do em vista responder a uma série de necessidades e de inte resses de ordem prática. Foi em resposta às necessidades do rendimento econômico que surgiu, por volta de 1900, a psi eotécnica, tendo por objetivo central regular cientificamente o 137 tràbalho humano. Todavia, não é à psicotécnica, nem muito menos à psicologia aplicada, que se refere nosso termo "tec nologia". Por tecnologia queremos significar a aplicação da ciência psicológica ao processo social, em resposta à necessi dade de se "maximalizar" · a exploração e o controle do traba lho humano, bem como de . "racionalizar" sua produtividade. Em outras palavras, a "tecnologia" psicológica é um conjunto de técnicas fornecidas pelo desenvolvimento de estruturas es pecializadas na elaboração e na utilização de um saber psico lógico científico. Essas estruturas especializadas dizem respei to, antes de tudo, aos conhecimentos necessários à descoberta e ao aperfeiçoamento dos procedimentos materiais da indústria, dos procedimentos "espirituais" da adaptação social, da adap tação mental, da aprendizagem escolar, etc. Portanto, ésta parte de nosso trabalho visa a uma crítica da "tecnologia" psicológica, tal como ela se apresenta hoje em dia, como a continuadora e a herdeira legítima do antigo beha viorismo psicológico, cuja metodologia científica levou a um ol vidamento progressivo daquilo que há de humano no homem. Em boa parte, nossa cr.ítica se apoiará nos questionamentos que L. von Bertalanffy faz da psicologia científica atual, pelo menos como ela é praticada nos Estados Unidos da América. Este autor, biólogo de renome, e criador da "teoria geral dos sistemas", interessa-se muito menos pela crítica especializada a teorias concretas da psicologia, do que pela crítica a seus pontos ,de vista fundamentais: os efeitos da ''tecnologia" psico lógica sobre o homem, os problemas subjacentes à "natureza humana" e a seus valores modernos que alteram nossa visão do mundo e nossa imagem do homem. Com efeito, em sua obra Robots, men and minds, Berta lanffy chama nossa atenção para o seguinte fato : tudo parece indicar que o mundo técnico-científico em que vivemos esteja caminhando e criando, para um futuro não muito distante, "uma sociedade cibernética do ócio, que não saberá o que fazer consigo mesma". Assim, torna-se cada vez mais problemática, em nossos dias, uma ciência do homem e para o homem . . Todas as pessoas cultas . poderão facilmente dar-se conta desta ilusão cientificista, produto da mitológia científica do passado: a de nos proporcionar um "Porto Seguro" social, humano e psico- 138 lógico, mediante o uso da ciência e de seus produtos tecnoló gicos. Diante de tantas frustrações, · as pessoas intelectualmente advertidas não podem deixar de exclamar: que desilusão! a ci ência não é o caminho seguro que nos leva ao paraíso! Ao apresentar-se como a manifestação da hybris humªna, a ousa dia científico-tecnológica parece ter desafiado não somente as leis divinás ou humanas, mas também a própria natureza do homem. Tudo nos leva a crer que esta "natureza" se nos apre senta, hoje em dia, como que "esquizofrenizada" em "animal" e em "algo" que transcende a animalidade. Duas partes dico tomizadas de uma única e mesma realidade! Diante disso, quer dizer, dessa "esquizofrenia" do homem moderno, a psicologia não pode mais permanecer nesta atitude de "inocência" científica, de crença na "imortalidade científi ca" de seus fatos descentrados da condição real do homem. Talvez a psicologia ainda não se tenha dado conta de que sua desgraça epistemológica reside no fato de tratar de um objeto (um fato) que fala. Por isso, é de grande importância a seguinte pergunta: qual o lugar ocupado pela "psicologia no mundo atual? Não teria ela embarcado nessa grande torrente técnico-científica que sempre mais conquista e domina o mun do e o homem, mas também sempre mais esquecendo-se do fenômeno humano? Ao abandonar o estudo da "natureza hu mana", para estudar, no homem, apenas seus comportamen tos exteriores, até parece que a psicologia a recalcou. O filó sofo Martin Heidegger constata que "nenhuma época acumu lou, sobre o homem, conhecimentos tão numerosos e tão di versos quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber do homem sob uma forma tão pronta e tão facil mente acessível. Mas também, nenhuma época soube menos o que é o homem". E o psiquiatra L. Biswanger reconhece o mesmo fato, ao ce>nstatar que "nós, os homens, quem somos e o que somos? Nenhuma época, e muito menos a nossa, pôde fornecer resposta, e hoje em dia encontramo-nos diante do primeiro balbuciar de uma nova busca desse Nós" (Le rêve et l'existence, tradução francesa, 1954 ) . A o analisar este problema, Bertalanffy chega à conclusão de que as ciências, sobretudo, bem entendido, as ciências hu manas, fizeram do homem um verdadeiro autômata. Aliás, 139 também Jacques Monod, tanto em O Acaso e a necessidade quanto numa recente entrevista, chega à conclusão de que a ciência, hoje, aliena o homem. A ciência é extremamente difí cil, diz ele; ela se desenvolve com uma força explosiVa; e o homem moderno encontra-se cotidianamente em face de técni cas oriundas dela que, fundamentalmente, ele não compreen de, e que são para ele causa de profunda humilhação. No fun do, o homem médio nada sabe do que se passa no reino da ciência. :É por causa dessa humilhação diante do poder. da ciên cia, que ele se entrega a todo tipo de compensação pseudo científica ou aos diversos tipos de magia, de feitiçarias mais ou menos rotuladas de científicas. Por outro lado, a ciência obje tivrz retira o lugar do homem no universo. Ela faz dele um ,estrangeiro, quase um acidente no universo. Até parece que, de fato, o homem é um absurdo. As teorias científicas provam que o homem ocupa apenas um lugar infinitesimal no mundo, e que este lugar nem mesmo é necessário, que ele é por acaso, que o homem poderia muito bem não estar aí. Evidentemente, não podemos responsabilizar a psicologia científica por este estado de coisas. No entanto, Bertalanffy não hesita em responsabilizar, por esta situação, pelo menos em grande parte, aquilo que e!e chama de filosofia "positivista mecanicista-comportamentalista", predominante, senão em toda a psicologia, pelo menos em boa parte da psicologia científica atual, tal como ela é praticada, por exemplo, nos Estados Uni dos da América. O autor reconhece um fato que não deixa de ser surpreendente: "grande parte da psicologia moderna é um escolasticismo estéril e prosopopéico que, provido das vi seiras de conceitos preconcebidos ou supersticiosos, não . vê aqui lo que é evidente; é um escolasticismo que encobre a triviali dade de seus resultados e idéias com uma linguagem absurda que em nada se assemelha à habitual, nem recorda as teorias científicas normais, e que facilita à sociedade moderna técnicas adequadas para ir confundindo a humanidade". Assim, parece que não há dúvidas de que a psicologia ci entífico-comportamentalista coloca-nos, de fato, diante do se guinte dilema: tanto a filosofia quanto a psicologia positivistas conseguiram esta insólita façanha,reconhece Bertalanffy, de "serem ao mesmo tempo profundamente frívolas e tediosas, 140 por causa de sua indiferença relativamente às questões huma nas. Os famosos batalhões de ratos, que se movem dentro das caixas-problemas de Skinner, têm muito pouco a nos dizer acerca da condição humana, de nossas atribulações e dos pro blemas de- nosso tempo". Por isso, a questão fundamental,, para a psicologia, parece ser a seguinte : poderá ela ser ao mesmo tempo humana e científica? Aliás, ao elaborar sua epistemolo gia da psicologia, Pierre Gréco também reconhece que o dra ma da psicologia atual consiste numa ambigüidade : ao pre tender tornar-se ciência, ela praticamente deixa de ser uma dis ciplina humana; e ao fazer-se humana, ela deixa de ser cien tífica (em Logique et connaissance scientifique) . Não resisto, aqui, à tentação de citar uma página de Mi . chel Bernard (em A Filosofia das ciências sociais, tradução brasileira, Zahar Editores, 1974 ) , sintetizando a obra de D. Deleule, La psychologie, mythe scientifique ( 1969 ) . Para De leule, a verdadeira questão é: "De onde vem a necessidade que tem a psicologia de pretender-se científica?" Para responder a tal pergunta e, em primeiro lugar, para justificá-Ia, basta-lhe provar e ilustrar esta proposi ção : "Toda ciência é antes de tudo ciência da ideologia que a precedeu", o que equivale a dizer que toda desco berta científica implica, paradoxalmente, ao mesmo tempo o uso de temas ou idéias próprio à ideologi� dominante da época, e a ruptura com esses temas e idéias, através da exigência de uma nova linguagem, pelo advento de outro discurso ideologicamente determinado mas que se revela adequado ao objeto considerado . . . Ora, não foi isso o que ocorreu com "a psicologia, que, longe de rom per com a ideologia dominante, traz, ao contrário, a esta última, o concurso de seu aparelho técnico e de sua ar madura teórica". Melhor ainda, este concurso consiste . . . na utilização de técnicas que extraem sua armadura teó rica das técnicas de outras ciências (física, química, fi siologia) ; transposiçãq ou empréstimo que deixa suspei tar sua determinação ideológica que não somente funda a psicologia, mas confunde-se com ela. Em resumo, a psicologia moderna não passa de uma pseudociência, de 141 um mito, de um "discurso vazio", cujo modelo teórico é sem dúvida o behaviorismo, mas que se exprime mais claramente nos trabalhos psicotécnicos sobre as aptidões e a motivação; ou psicossociológicos sobre a sociometria, o psicodrama, o sociograma, o training grupo, as técni cas de entrevista . . . ; ou psicoterapêuticos sobre a rela ção não-diretiva de Rogers. Em _suma, a psicologia é uma "ideologia de reserva" que é "reforço sutil da ideo logia dominante", na medida em que ela contribui . . . para "uma absorção metódica e estofada do negativo até sua eliminação sistemática" . . . Em outras palavras, a psicologia é solidária de um conservadorismo vigoroso· que, no máximo, tolera um reformismo ingênuo : "Mu dar o indivíduo para não mudar a ordem social - :mudar · o indivíduo na esperança de mudar a ordem social : é en tre esses dois pólos que se de�enrola o trabalho do psi cólogo". Por mais bem intencionado que pareça ser, o psicólogo permanece o servidor e o instrumento de um mito, "atualização presente de certa astúcia da razão". Por isso, estamos em condições de responder à questão colocada no início : a necessidade <:la psicologia de pre tender-se científica resulta da exigência ideológica do sis tema social que a enquadra e que, por sua vez, ela con solida. "A psicologia é necessária porque ela é útil ao sistema". Por conseguinte, enquanto disciplina científica, a psicolo gia encontra-se numa encruzilhada. Há quase cinqüenta anos que ela se encontra nessa situação, aliás embaraçosa. Mais de quarenta anos de crise é muito tempo para a psicologia ficar ainda vascilando entre tantas teorias conflitantes ou mesmo an tagônicas, que vão desde a neuroquímica até o existencialismo fenomenológico. Com isto se explica? Não seria porque du rante todo esse tempo a psicologia se tenha docilmente deixado dominar pela influência do empirismo mecanicista-reducionis ta? Segundo Bertalanffy, foi essa filosofia positivista, que ele chama também de "ideologia", que forjou "a imagem do ho mem autômata" que atualmente possuímos. O método utiliza do foi o mesmo, embora mais aperfeiçoado, utilizado pelo be- 142. haviorismo psicológico dos primeiros tempos. Assim, para a interpretação do comportamento humano ou animal (behavior), teve um papel decisivo e . fundamental a utilização do esquema estímulo-resposta (S � R) , também denominado "doutrina da reação primária do organismo psicofisiológico". É claro que este · princípio da reação pressupõe o princípio da influência ambiental ou do ambientalismo. Por não ser conatural ou ins tintivo, o comportamento humano obedece a influxos que são exteriores àqueles que determinam o simples organismo vivo. Esses influxos externos desempenharam um grande papel no desenvolvimento da psicologia científica. Quem primeiro os estudou de modo sistemático e metódico foi ' Pavlov, que os chamou de "condicionamentos". Skinner, por sua vez, chama-os de "condicionamentos instrumentais". Na terminologia freu diana, eles recebem o nome de "êxitos vividos" na infância pri mitiva. Segundo teorias psicológicas mais recentes, os influxos. externos não passam -de "reforços secundários". E foi basean do-se nessas concepções que os psicólogos contemporâneos de inspiração behaviorista chegaram à conclusão de que tanto a aprendizagem elementar, quanto o ensino e a própria vida hu mana em geral, podem ser reduzidos a meras reações a con dicionamentos. Tais psicólogos não encontram dificuldade em mostrar que tais reações ou resposta<S têm sua origem na in fância primitiva, com a imposição das normas elementares de higiene, pelos pais da criança, determinando aquilo que con vém ao convívio social. Todavia, as reações prosseguem no de correr do sistema educacional, quer dizer, durante todo o pro cesso educativo (ensino) . Um exemplo típico das reações a condicionamentos poderá ser encontrado neste método de en sino calcado no modelo skinneriano de reforço das reações cor retas e de utilização de máquinas de ensinar ou de programar o ensiná. Finalmente, numa etapa bem posterior, as reações a condicionamentos encontram seu termo no homem adulto, já plenamente incorporado ao sistema sociaL Situa-se, aqui, se gundo Bertalanffy, o papel fundamental ;desse tipo de psicologia que ele critica : condicionar o homem. O homem adulto e in tegrado à sociedade, "é condicionado de forma rigorosamente científica pelos meios de informação pública de massas, para fazer dele um consumidor perfeito, ou seja, um autômata que· 143' responde adequadamente raciocinando de acordo com aquilo que foi preceituado pelo complexo industrial-militar-político predominante". Em termos "intra-específicos" (dentro da mesma espécie) , a tendência do "ambientalismo" é reduzir-se a u m igualitaris mo; em ter-mos "interespecíficos" (entre espécies distintas) , sua tendência natural é confundir-se com uni zoomorfismo do com portamento humano. Ora, o problema crucial que se coloca é o seguinte : se o comportamento humano é necessariamente "de terminado" pelos condicionamentos exteriores, não vemos como os seres humanos possam distinguir-se uns dos outros, nem muito menos qual a diferença essencial entre o homem e os animais. Os defensores deste "igualitarismo-zoomórfico" sus tentam que os mesmos princípios devem ser aplicados a todos os seres, animais e humanos. O homem não tem nenhum pri.,. vilégio neste setor. Participa do mesmo "jogo democrático", como se "democracia", neste sentido, fosse um nivelamento por baixo. Ademais, segundo ainda os propugnadores desse tipo de "democracia" que podemos chamar de "zooantropomorfis mo", o princípio dereação a condicionamentos deve pressupor, em sua base, toda uma teoria do equilíbrio do comportamento. Para eles, o estado natural do organismo é o estado de quie tude. Todo estímulo ou excitação exteriores é um elemento perturbador do equilíbrio. A reação comportamentalista viria restabelecer o equilíbrio perdido (homeostasis = satisfação das necessidades ou re1axamento das tensões) . As necessidades se riam puramente biológicas. Por isso, o comportamento, quer animal quer humano, deveria ser o ponto de apoio para a in terpretação e para a orientação do ser humano. Aquilo que é peculiar ao homem, é secundário, e acaba por reduzir-se a impulsos biológicos e a necessidades primárias. A nosso ver, os conceitos elaborados por Piaget de assi milação e de acomodação vêm reforçar essa teoria do equilíbrio do comportamento. Com efeito, em sua Introduction à l' épisté mologie génétique ( 1950) , ele mostra que toda conduta huma na é uma adaptação; e que toda adaptação é o restabelecimen to de um equilíbrio entre o organismo e o meio. Toda ativi dade implica um desequilíbrio momentâneo, e o retorno ao equi líbrio se faz por um sentimento provisório de satisfação. Neste 144 esquema, Piaget vê na "assimilação" e na "acomodaÇão" os dois pólos da adaptação, num sentido ao mesmo tempo bioló gico e mental. Todo ser vivo tende a "assimilar" o mundo am biente a seu organismo e a seus esquemas de ação e de pensa mento. Se a assimilação tende a conservar a forma do organis mo, a acomodação intervém relativamente às condições exte riores, em função das quais o organismo se modifica. Do ponto de vista cognitivo, a assimilação é perceptiva ·e sensório-mo triz, o objeto sendo percebido relativamente aos esquemas an teriores, isto é, ao conjunto das operações mentais de que o sujeito dispõe. Haverá "acomodação", quando os esqu;emas anteriores forem transformados para adaptar-se às proprieda des de um objeto novo que resiste. Sob seu aspecto afetivo, porém, a assimilação confunde-se com o interesse, ao passo que a acomodação se confunde com o interesse pelo objeto návo. Assim, a adaptação é sempre um equilíbrio. E este é atingido quando um objeto, sem resistir demais para ser assi> milável, resiste o suficiente para ser "acomodado". Evidente mente, esta tendência à assimilação, que se manifesta em dife rentes níveis (fisiológico, prático, intelectual) , é ao mesmo tempo um fenômeno dinâmico (o sujeito tende a estender sua esfera de ação a uma parte sempre mais vasta do meio ambien te) e conservador (o sujeito tende a conservar sua estrutura interior e tenta impô-la às condições exteriores) . Assim, dentro do esquema dirigido pelo princípio da rea ção comportamentalista, não vemos como o comportamento possa deixar de ser governado por princípios utilitários. Por que, em última instância, a razão de ser de todo comporta mento não seria outra senão a de conservação do indivíduo e a de preservação da sociedade. Deste ponto de vista, o com portamento �eria detf!rminado por um princípio meramente eco nômico : atingir o alvo preceituado com o mínimo gasto pos sível, quer dizer, alcançar um optimum equilíbrio psicossocial capaz de responder às exigências externas com reações refor çadas. Ademais, neste sentido, é bastante natural que os �o delas do comportamento humano sejam buscados nas máqui� nas, nos animais, nos indivíduos enfermos e nas crianças de tenra idade. Nas máquinas, diz Bertalanffy, "porque a condu ta acaba por ser explicada em termos da estrutura aparentemen- 145 te mecânica do sistema nervoso"; nos animais, devido "à igual dade dos princípios do comportamento animal e humano e porque podem mais facilmente ser 'manipulados"; enfim, nas crianças de tenra idade, "porque, nelas, como nos casos patoló gicos, é mais fácil do que nos adultos normais o discernimento dos fatores. primários". Não se pode negar, no mundo atual, o prestígio de que goza a psicologia baseada no princípio das reações reforçadas. Neste particular, ninguém duvida de que as teorias psicológicas tenham imensas aplicações na vida social, sobretudo através das inúmeras "manipulações" possíveis e de fato do comporta mento humano. Por outro lado, ninguém pode contestar a efi cácia desse sistema "manipulatório" montado sobre bases da ciência psicológica. Se não fosse assim, como se explicaria o interesse crescente, não somente demonstrado pelos anuncian tes publicitários, mas pelos partidos políticos e pelos gover nantes, em relação às técnicas psicológicas? O objetivo não declarado de tais empreendimentos, utilizando-se do esquema estímulo-reação ou do princípio da reação reforçada, consiste, de fato, em restringir as possibilidades que o homem possui de fazer uma opção livre. Na realidade, esses empreendimentos limitam tudo aquilo que, no comportamento humano, não seja a expressão de uma atividade "autômata', quer dizer, reflexa, condicionada e automatizada: o comportamento explorador e criativo, por exemplo. O que importa, no comportamento hu mano, é a manutenção do princípio do equilíbrio ou da atenua-: ção das tensões. Evidentemente, nada disso é capaz de condu zir a um estado beatífico de nirvana. Pelo contrário, trata-se de uma atitude capaz de provocar no indivíduo uma série de perturbações mentais ou, como diz Bertalanffy, capaz de levá lo "a estados psicopáticos ou a uma abulia de interesse que acaba, algumas vezes, em neurose existencial e em suicídio. Os delinqüentes juvenis que cometem crimes para divertir-se, a nova psicopatologia provocada pelo ócio, os cinqüenta por cento dos enfermos de nossos manicômios, tudo isso demonstra que o esquema do homem autômata não é válido". O que pode ser contestado a esse tipo de interpretação, é o fato de a maioria esmagadora dos psicólogos atuais ter abandonado, conío insatisfatório, o esquema behaviorista do 146 estímulo-reação. Vimos, por exemplo, como Paul Fraisse mos trou a insuficiência, tanto do esquema S � R quanto do esquema S � O � R, para propor à ciência psicológica uma démarche intelectual ao mesmo tempo natural e episte mologicamente mista de aliança entre aquilo que é imediata e efetivamente observável e aquilo que, conhecido de outra for ma (fatores de "personalidade") , vem situar-se como princípio intermediário, tanto de explicação quanto de encadeamento da conexão entre estímulo e resposta. Evidentemente, a psicolo gia científica atual não aceita mais os dogmas do behavioris mo nascente. Tampouco admite que Watson, Hull ou mesmo Skinner tenham descob�rto a grande "fórmula laplaceana da conduta". Até mesmo o reduto da psicologia científica, a teo ria da aprendizagem, passa hoje pelo crivo da crítica, pois os condicionamentos instrumentais de Skinner revelaram sua fra queza para constituir um ensino verdadeiramente "significati vo" num homem dotado de funções simbólicas. O grande lin güista N. Chomsky, por exemplo, demonstrou categoricamente que a aprendizagem espontânea da linguagem é manifestamente irredutível aos modelos skinnerianos de ensino programado às línguas (Language, 35, 1959 ) . ,, Não obstante, não se pode negar que a psicologia que predomina atualmente, esta psicologia utilizada pelos psicólo gos para fins determinados por não-psicólogos, ainda segue em larga escala o esquema behaviorista do estímu[o .. reação. Se gundo Bertalanffy, é esta psicologia que se impõe, não enquan to "ciência do homem", mas enquanto "filosofia-comportamen talista-comercialista". O que ela procura fazer, na verdade, é tirar conclusõ� acerca do comportamento humano "normal" a partir dos comportamentos de "ratos torturados" ou de gatos submetidos ao "universo surrealista" das caixas de Thomdike. E isto é possível porque, s�gundo o testemunho do próprio Skinner ( Theories in Contgmporary Psychology, 1963 ) , não há nenhuma diferença essencial (sic) entre gatos, ratos, pom bos, macacos e o homem, senão no fato de o homem ainda não ter sido bemestudado, devido aos preconceitos oriundos da psicologia introspeccionista. Bertalanffy não compreende como Skinner possa ter afirmado tamanha tolice, ignorando o que é evidente: os seres vivos são biologicamente diferentes como 147 indivíduos, raças e espécies; inclusive, o comportamento no interior de uma espécie é também distinto. Só não percebe isso quem está preso a preconceitos injustificáveis, a idéias preconcebidas baseadas numa teoria ingênua sobre o igualita rismo dos seres vivos. Ora, esta atitude revela um profundo falseamento q.a realidade, devido, sobretudo, à carência de uma teoria consistente em psico!ogia. Não se pode mais argu mentar que a psicologia seja uma ciência "nova". Tampouco se pode invocar que os psicólogos behavioristas tenham inven tado um novo "método científico". Tudo. isso é falso. :E: preci so que se reconheça que o defeito fundamental dessa psicologia provém da "penúria de noções e do efeito assustador das idéias preconcebidas, que não pode ser compensado através da in vestigação acerca da cadeia de montagem". Portanto, quaisquer que sejam as alterações "metodológi cas" ou simplesmente "técnicas" introduzidas no esquema be haviorista estímulo-reação, o fato é que ele ainda predomina, em larga escala, pelo menos no ensino da psicologia acadêmi ca atual. Para nos convencermos disso, basta darmos uma olhada na bibliografia mais recente. Evidentemente, como já frisamos, muitos psicólogos dizem que foram intercalados, en tre o estímulo e a reação, vários mecanismos hipotéticos, va riantes intermediárias e fatores auxiliares. Todavia, tais meca nismos não introduziram nenhuma mudança substancial nos conceitos básicos. Na verdade, o que está faltando à psicologia acadêmica? No dizer de Bertalanffy, aquilo de que necessita mos, não somente na psicologia, tal como ela é ainda ensinada hoje em dia, mas sobretudo na vida moderna, "manipulada pelos psicólogos propulsores do automatismo nos meios de in formação, nos anúncios e na política, não são novos mecanis mos hipotéticos que expliquem melhor as peculiaridades do comportamento do rato de laboratório; o que precisamos é de um novo conceito do homem". Portanto, para a psicologia, muito mais importante do que suas sutilezas acadêmicas, é o fato de ela constituir hoje uma força social de primeira ordem. Enquanto tal, a psicologia modela para o homem sua própria imagem e "governa" a so ciedade. E a imagem que ela modela é a do homem-autômato, dQ bom em como máquina que pode ser programada, assim des- 148 crita por Bertalanffy : "todas essas máquinas, idênticas aos au tomóveis saídos da cadeia de montagem; o equilíbrio ou a co modidade como desideratum; o comportamento como uma o� ração comercial de gasto mínimo e lucro máximo : eis a ex press�o perfeita da filosofia da sociedade comercial. Estímulo reação, ingressos-saídas, produtor-consumidor, tudo isso cor responde ao mesmo conceito expresso em termos distintos. As idéias fundamentais da psicologia convencional são idênticas às da "filosofia pecuniária" do mercantilismo. Na filosofia do anunciante existe um "receptáculo cerebral" - a caixa-negra dos psicólogos - que deve receber fras�s publicitárias com exclusãó das demais; na "lógica pecuniária", -a realidade e a verdade são substitujdas pelos desejos sonhados e pelo condi cionamento conseguido pela arte do anunciante; e as pessoas são manipuladas como os gigantescos ratos de Skinner". Nesta lógica pecuniária, vamos deparar-nos com um "ho mem pav!oviano". Com efeito, a publicidade e a propaganda apóiam-se nas pulsões mais fundamentais do ser humano, não para liberá-las, mas para utilizá-las e desviá-las para seus pró prios fins. Trata-se de tornar o homem vítima de suas próprias pulsões inconscientes. Assim, pela publicidade e pela propagan da, o homem é condicionado, como um animal de laboratório, a reagir a situações con;dicionad:as , cujas condições lhe são ocultadas. Como para o animal, emprega-se certa "lin guagem" podendo agir sobre o indivíduo: utilização de um sistema de signos de tal forma que possam ser imediata mente compreendidos e desencadeiem a açã() desejada. Em suma, trata-se de transferir, para a ordem humana, aquilo que o experimentaçior realiza em . seu laboratório q1Jando_ çondkiQna um animal. O desenvolvimento atual oda psicologia deve-se, sobretudo, além de seu aspecto 'terapêutico, ' às possibilidades práticas qlie ela coloca à disposição de atividades diversas. A publicidade e a propaganda são casos privilegiados. Mas não são os únicos. Sem falarmos de sua importância para a . orientação educacio nal ou profissional, a psicologia encontra outros terrenos de aplicação, onde sua eficácia é incontestável : a organização das empresas, dos Jazeres, de programas de televisão, as comuni caçpes, o comércio em geral, etc. E esta ampliação de seu cam- 149 po de aplicação deve-se à descoberta da eficácia de seus mé todos. Evidentemente, este princípio da eficácia, embora não possa ser contestado, levou à negligência das condições de rigor científico. Se Freud afirmava a necessidade de um cons tante "ir e vir" entre a teoria e a prática, parece que a psi cologia se esqueceu bastante da teoria em proveito da prática. Os conceitos utilizados, na maioria das vezes tomados de em préstimo, são geralmente aproximativos e não criticados. A isto se acrescenta uma ausência de crítica concernente ao sentido da prática psicológica. Sem falarmos da recusa de considerar as conseqüências sociais e econômicas dessa prática. :É certo que a psicologia se equipou dos meios técnicos necessários para abrir-se a domínios novos e mais amplos. O abandono da querela entre psicologia e sociologia permitiu lhes uma colaboração frutuosa. As técnicas de entrevista, de análise, de depoimento permitiram à psicologia cobrir domí nios que até então lhe eram vedados. A essas técnicas, deve-se acrescentar a utilização sistemática de enquetes, das estatísticas e dos métodos experimentais. Bem entendido, não se pode es quecer todos os instrumentos de medida ou de observação que a tecnologia moderna colocou à disposição da psicologia. Todos esses meios permitiram-lhe dispor de uma enorme massa de informações. Uma das conseqüências desta abundância de ma terial informativo é a diversificação cada vez mais acentuada das pesquisas e das práticas psicológicas e, correlativamente, de corpos de especialistas. :É claro que este estado de coisas não apresenta inconvenientes sérios. Contudo, pelo fato de estar ligado ao imperativo de uma eficácia da prática psicológica, coloca dois problemas: a) em primeiro lugar, parece parado xal que uma ciência cujos conceitos são discutíveis, seja, in contestavelmente, de uma eficácia real : como se explica a in tervenção eficaz aliando-se a uma fraqueza teórica?; b) em se gundo lugar, mesmo supondo-se este problema resolvido, po demos perguntar se a prática concreta da psicologia, apesar da incerteza de seus fundamentos científicos, não constitui o fato mais favorável ao reconhecimento de seu valor e de sua au tenticidade. Este segundo aspecto, na medida em que ele enga ja o futuro da psicologia, deve permanecer, pelo menos por 150 enquanto, no nível da problematização. Daremos aqui algumas indicações, mas apenas sobre o primeiro problema. Como a psicologia, tendo fundamentos conceituais defi cientes, pode ser _tão eficaz?. Todo o estudo das atitudes e das motivações leva-nos a perceber que a psicologia se funda, antes de tudo, sobre a observação dos comportamentos, das condutas dos indivíduos. Desta observação dos comportamentos e das condutas, ela extrai certos elementos, julgados semelhantes em todos os indivíduos. Somente depois, a pesqui�a das motivações extrai de •SUa observação que, numa situação dada ( sociológi- . ca, econômica, cultural), os indivíduos compram ou não este ou aquele produto. Então, ela falará de um comportamento de compra ou de um comportamentode recusa do produto por determinada população. Tal comportamento deve ter uma razão ou uma causa. É esta causa que se trata de determinar, de modo a tornar possível uma intervenção capaz de modificar o fenômeno. O que se pode notar é que, se esta análise, que deliberada mente esqueceu o indivíduo enquanto tal, é eficaz, é porque ela visa a manipular· aquilo que, nos indivíduos, é menos as sumido. A psicologiá permite uma intervenção real sobre os indivíduos, porque ela se contenta em procurar saber como uma coação dissimulada pode agir de modo máximo. É neste sen tido que podemos dizer que ela não engaja a descoberta e o encontro de um real: ela é intervencionista. Não se trata de negar que a pesquisa das motivações, por exemplo, seja capaz de utilizar dados teóricos coerentes: é o caso da psicologia psicanalítica. O problema consiste em dizer que tais pesquisas procedem sempre por generalização, quer dizer, por abstração, fazendo apelo à sua eficácia. Houve um tempo em que se con siderava as pauladas e as chicotadas como meios eficazes para curar os loucos e outros "marginais". Este método só era eficaz, evidentemente, para aqueles sobre os quais ele era aplicado. Talvez a. eficácia da psicologia das atitudes e das motivações �eja da mesma ordem! ··Esta rápida análise de alguns dos efeitos de uma psicolo gia comandada por uma "lógica pecuniária" já pode indicar a necessidade que temos de tomar consciência da força e dos limites da psicologia manipuladora e da "engenharia" comporta- 151 mentalista. Se manipularmos certos animais, segundo os proce dimentos de Pavlov, de Thorndike ou de Skinner, obteremos os resultados descritos por esses autores. Quer dizer: se esco lhe�os, na relação comportamentalista, as reações que podem ser dominadas com um castigo ou uma recompensa, reduzimos os animais a máquinas que reagem a estímulos autômatas. O mesmo pode ser dito · do ser humano, sobretudo, so� o efeito de uma campanha publicitária cientificamente bem dirigida. A psicologia atual dispõe de poderosos recursos para converter os seres humanos em autômatas infra-humanos. Tudo depende de uma questão de técnica psicológica! Contudo, ao se fazer isso, o mínimo que se pode dizer é que se desumaniza o ser huma no, da mesma forma como se "desratiza" o rato. O rato é inse rido num "universo surrealista", onde é eliminado tudo o que lhe possa interessar em seu meio natural. Não se sabe o que se passa com o rato nas caixas de Skinner. Ele é escolhido para o laboratório por ser um animal "estupidamente dócil". Quanto ao ser humano, também levado a um mundo surrealista pela arte de persuadir, ele é "docilizado" pelos mecanismos e téc nicas psicológicos que o tornam, por exemplo, um "compra dor" autômata de quase tudo. O paralelismo entre os consumi dores condicionados e os cães condicionados de Pavlov é bas tante conhecido dos homens de negócio. 2. "TECNOLOGIA" SEM O HOMEM Talvez se apliquem à psicologia científica e experimental de hoje, verdadeira "engenharia" comportamentalista, no dizer de Bertalanffy, essas palavras proferidas por Nietzsche contra os "cientificistas" de sua época: "Vocês são seres frios, que se sentem tão encouraçados contra a paixão � a quimera; bem que vocês gostariam que sua doutrina se tornasse um adorno e um Qbjeto de orgulho! Vocês se rotulam de realistas e dão a en tender que o mundo é verdadeiramente feito tal como ele lhes aparece" (Le gai savoir) . Por sua vez, Michel Foucault parece questionar os psicó!ogos quando, diante da pretensão de se tornarem científicas, certas disciplinas se perdem no "discur so", esquecendo-se de "trabalhar" : "Diante de tantas ignorân cias e de tantas interrogações que permanecem em suspenso, 152 talvez fosse necessário parar : está fixado aí o fim do discurso! e talyez o reinício do trabalho!" (Les mots et les choses) . Não se trata, aqui, de negar o valor nem muito menos a utilidade social da psicologia. Trata-se simplesmente de ques tioná-la. En_quanto "ciência" do subjetivo, ela nasceu com Freud. E parece que tenha morrido ao mesmo tempo que ele, pois visa a dar a seu objeto a função das coisas, esquecendo se do homem. Enquanto prática social, a significação real da psicologia dyve ser procurada nas funções que ela exerce. Não se pode negar sua crescente manipulação econômica e políti ca, seu sentido repressivo no nível das instituições psiquiátri cas ou de reeducação, sua absorção pelas ciências médico biológicas e seu papel de simples "figurante" no nível do en sino e da aprendizagem. Parece que ela padece de um vício de origem e de crescimento desordenado. E isto, apesar da abun dância de publicações, de pesquisas, do "papel" que desempe nha nas estruturas sociais e do prestígio ambíguo de que goza no mundo atual. São incontestáveis as realizações dessa disci plina ainda não centenária. Nascida da marginalidade, isto é, da pesquisa clínica, a psicologia, enquanto ciência do subjeti vo, teve um desenvolvimento surpreendente e conquistou novos meios. Podemos até dizer que nenhum problema concernente ao homem foi deixado por ela na sombra, mesmo que alguns pro blemas tenham sido mal explorados. De ciência oculta, a psico logia passou ao estado de ciência reconhecida, conquistando seu direito de cidadania. No entanto, ela corre o risco de ser ab sorvida ou "recuperada" por aqueles que dela se utilizam. Neste sentido, ela já revela sinais de "cansaço", pois é utilizada, não tanto em função de suas exigências próprias, mas a partir das necessidades que tem a sociedade atual de resolver alguns de set:Ls conflitos e contradições. Por exemplo, ao restituir a pa lavra ao indivíduo "alienado", ela corre o risco de perder a palavra, de tornar-se muda e de receber suas formas e determi nações de exigências nada psicológicas. É o caso de nos per guntarmos se ela não se teria esquecido . de que s�a palavra é li bertadora. Talvez ela corra o risco de deixar-se afogar, em sua prática atual, pela facilidade de seus resultados. Se olharmos objetivamente para as realizações da psico logia atual, talvez possamos constatar facilmente que sua pri- 153 meira preocupação, tal como a determinam a sociedade .e suas instituições, seja a de adaptar e integrar sempre mais o ho- , mem à sociedade : adaptação ao trabalho ( estimulante da pro dução, da venda e da publicidade) ; a.daptação e integração fí sica, psicológica, espiritual do homem ao seu meio (do louco ao hospital, do mutilado em vista da reeducação, da criança ao programa e à instituição escolares) , etc. E na medida em que planifica humanamente o meio, a psicologia está em vias de tornar-se um anexo ou um apêndice das ciências do meio am biente, um capítulo da ecologia. Nesta perspectiva ecológica, seu êxito é inegável, pois dispõe de meios técnicos para seu trabalho de integração e de adaptação. Se ela tem necessidade de adaptar o homem ao meio e o meio ao homem, é porque este está desadaptado relativamente às estruturas tecnológicas, científicas, econômicas e culturais da sociedade atual. Ela viria preencher este vazio entre o homem e seu meio, praticamente desempenhando o papel da moral clássica. Talvez seja por isso que Canguilhem reconheça que, de fato, "muitos trabalhos de psicologia nos dão a impressão de que misturam a uma filosofia sem rigor uma ética sem exigência e uma medicina sem con trnle. Filosofia sem rigor, porque eclética, sob pretexto de ob jetividade; ética sem exigência, porque associa experiências eto lógicas sem crítica : a do educador, a do confessor, a do chefe, a do juiz, etc. ; medicina sem controle, pois dos três tipos de doenças mais ininteligíveis e menos curáveis (doenças da pele, doenças dos nervos e doenças mentais) o estudo e o tratamento dessas duas últimas sempre forneceram à psicologia observa ções e hipóteses" (Études d'histoire et de philosophie des sci ences) . Outra função muito importante da psicologia pode· . ser denominada de cultural ou ideológica. Trata-se de uma função de explicação. Seu objetivo é apresentar uma imagem do homem e do conhecimento que se desenvolve graças às pesquisas reais, mas, sobretudo, graças à ' vulgarização ,dessas pesquisas. Assim como o indivíduo da Idade Média tinha certa compreensão de si mesmo, graças ao "modelo" explicativo que lhe propunha a Igreja, da mesma forma o indivíduo de hoje tem uma imagem de si mesmo à qual a psicologia não é estranha. E assim como hoje o homem comum não é cientificamente iniciado na psico- 154 logia, também o homem comum não era, na Idade Média, ini ciado .nas sutilezas teológicas. Em ambos os casos, a imagem do homem e das possibilidades de seu conhecimento responde a uma necessidade de adaptação. do comportamento dos indi víduos às necessidades de um sistema sócio-cultural determi nado. Certamente, a psicologia desempenha outras funções so ciais no mundo de hoje, tais como a função terapêutica, a função reguladora e redutora de conflitos, etc. Mas voltemos a seu papel de substituto da "moral" clássica. Como sabemos, esta aprisionava o homem. No entanto, apesar de "aliená-lo", a moral dava-lhe a ilusão de ser espiritualmente livre, pois ele podia interiorizar sua condição e acreditava piamente na pos sibilidade de melhorá-Ia. Todavia, o declínio do humanismo clássico e da moral tradicional não possibilita ao homem de hoje considerar-se como "pura" liberdade. Tudo indica que as estruturas sociais, econômicas e técnicas conduziram a liber dade à condição de uma palavra vazia de sentido. Sobretudo se levarmos em conta nosso mundo, às voltas com a "modela gem" e com· a "manipulação" do homem. As estruturas da sub jetividade humana foram profundamente atingidas. O homem não pode mais refugiar-se em sua subjetividade, baluarte. __ de sua liberdade, como nesta "bela interioridade" de que falaya Hegel. Esta função, outrora desempenhada pela moral e pela crença_ na liberdade, parece em vias de ser assumida pelas_dên- �cias humanas, também chamadas de "praxeológicas", especial mente pela psicologia. Com efeito, a psicologia está mais _perto dessa crença no homem e na liberdade do que as demais ciên cias. O refluxo das religiões e das filosofias liberaram um es paço epistemológico e cultural no qual veio refugiar-se a psi cologia, como guardiã do homem nas estruturas sociais. Não somente como guardiã, mas. como salvaguarda do humano, lá onde ele se encontra ameaçado: na fábrica, pelo trabalho; no hospital, pela doença mental; na escola, pela pedagogia; no co mércio, pela venda; nas grisões soviéticas, peia salvaguarda da pureza ideológica. Daí _ a psicologia poder apresentar-se como o último baluarte do humano no homem. Ora, ao participar desse .Qumanismo legado pelo mundo greco-romano, a psicologia pretende realizar uma "vocação 155 humanitária", tratando de restituir ao homem os meios de ele recuperar sua dignidade, seu desabrochamento e sua liberdade. Sem dúvida, esta intenção seria sumamente louvável se os re sultados não fossem inversos àqueles que são obtidos na práti ca. Porque, ao que nos parece, adaptar o homem à sociedade, não é uma exigência fundamental da psicologia. Enquanto ciên cia do subjetivo, e não do homem em geral, produto da cultu ra; enquanto ciência da libertação humana, e não da integração social do homem; enquanto ciência da palavra redescoberta, e não adaptada e modelada pelas estruturas sócio-econômicas; enquanto ciência do inconsciente, e não da racionalidade técni ca_ e tecnocrática; enfim, enquanto ciência da criatividade, e não das mentalidades etiquetadas, planificadas e estereotipadas, a psicologia não pode reduzir-se a um conjunto bem orquestrado e "cientificizado" de r{!ceitas e de práticas que adaptem o ho mem, impedindo-o de falar autenticamente nas estruturas sócio político-econômico-culturais. Ao invés de ser esta "ciência" que possibilite ao homem redescobrir o sentido de sua palavra, não raras vezes a psicologia atual contribui para aliená-lo num dis curso que não emana dele, mas de seu meio ambiente. Ora, se a psicologia atual, em sua prática, não consegue libertar a palavra do homem, de uma vez que ela é "recupera da" pelos imperativos econômicos e sociais, talvez tenhamos sérias razões para reconhecer, neste simples fato, os limites de seu campo de investigação. Sem falarmos de seu modo de rea lização. Todos sabemos quanto a maneira de a psicologia ser praticada, em nossos dias, perdeu sua autodeterminação : seu modo de realização é determinado por condições extrapsicoló gicas, conseqüentemente extracientíficas. Assim, ela recebe seu estatuto, seus objetivos, sua razão de ser, não mais dos inte resses internos ao domínio psicológico, mas das necessidades que tem a sociedade de fazer apelo aos métodos e . técnicas psicológicos para resolver, pelo menos em parte, alguns de seus conflitos e de suas contradições. Portantó, a psicologia cada vez mais recebe de fora suas normas, seus meios, sua efi cácia e praticamente tudo o que constitui sua realidade de ciência. Freud já havia tentado utilizar a psicanálise para a compreensão dos fenômenos culturais. Posteriormente, os psi cólogos sociais - (K. Lewin, Moreno) tentaram fornecer à psi- 156 cologia métodos e técnicas para a análise e a compreensão des ses fenômenos. No entanto, diferentemente da economia ou da sociologia, a psicologia permanece incapaz de compreender esses fenômenos. Talvez porque não tenha conseguido encon trar os meios adequados de· investigar tudo o que se afasta da subjetividade e da linguagem; ou, então, porque não tenha conseguido tomar o necessário recuo teórico para fundar sua démarche como ciência social; ou, ainda, porque o subjetivo interfere muito pouco no plano das modificações sociais; en fim, porque seus conceitos fundamentais e seus instrumentos de análise são por demais "impotentes" para permitir-lhe a apreensão do real social. :E: possível que todas essas razões expliquem o fracasso da psicologia para analisar o homem em sociedade. Muito mais voltada para as formas de ação típicas do século XIX, parece que a psicologia se sente incapaz de integrar e de pro mover, por si mesma, o extraordinário desenvolvimento ex perimentado por outras ciências (economia, informática, as diversas formas de tecnologia) que atuam de modo decisivo so bre o homem em sociedade. Aquilo que se pede à psicologia párece relevar, quer da utopia, quer de uma prática social lem brando certos "serviços sociais . e caritativos" para remendar as falhas do sistema. Dizer que a psicologia presta serviço social, é reconhecer que ela se situa politicamente, que ela aparece como o prolongamento direto de uma política social, mesmo que suas formas de ação se revistam das mais modernas formas de linguagem e de técnicas psicológicas. Quando um psicólogo, por exemplo, avalia os quocientes intelectuais ( Q.I. ) , quando ele testa o pessoal de uma empresa, quando consulta crianças para descobrir seu "retrato" psicológico, quando se põe a ser viço de uma agência de publicidade ou de sondagem de opinião, o que é qm�, de fato, ele está fazendo? Não estaria na depen dência do :Poder econômico e de seus interesses, para determi nar o lugar do homem na sociedade? Ao colaborar eficazmente para integrar e adaptar o indi víduo à sociedade, não aparece a psicologia como um álibi ou a boa consciência dos conflitos e contradições sociais? Não é raro o psicólogo viver numa ambigüidade cheia de conse qüências. Ele pode refugiar-se por detrás de sua ciência e de 157 seus aparelhos técnicos, ou ancorar-se em seu saber especiali zado, a fim de recusar-se a perceber o papel real que lhe é atribuído atualmente pela sociedade. O que esta lhe pede, antes de .tudo, é que faça seleção profissional, mantenha contatos clínicos, realize testes, faça sondagens de opinião, faça reci clagem de pessoal, analise as estruturas de comunicação nas empresas,etc. Teria ele consciência desse papel? Por ser re presentante do humano no seio das estruturas, ele pode ser levado a ter a boa consciência de ser o homem que aprimora a condição de seus semelhantes. Contudo, não seria o humano apenas um refúgio? Nem sempre o psicólogo está consciente, ou finge ignorar o lugar e o papel reais . que desempenha. na sociedade. Aliás, trata-se de papel e de lugar, pois quase sem· pre suas reivindicações dizem respeito a salários, a estatutos profissionais e a melhor integração nas instituições. Esta preq cupação profissional, evidentemente, é legítima, de uma vez que as faculdades universitárias "formam" mais psicólogos do que realmente é necessário em função dos empregos existentes. Aliás, podemos até duvidar se os psicólogos recém-formados estejam plenamente conscientes das exigências fundamentais de sua ciência. E não raro acusam de "idealistas" ou de "inte lectuais" aqueles que pensam que o exercício do metiê de psi cólogo está em contradição com a prática atual. Uma vez que se tornam empíricos ("cientistas" ) e estão sobrecarregados com problemas financeiros e com seu estatuto profissional, mui tos psicólogos pensam que o ideal da profissão é atualmente realizado nos Estados Unidos da América. E quanto mais ti verem seu estatuto profissional reconhecido, menos capazes se rão de questionar sua prática, pois recebem seu estatuto de uma sociedade que espera deles que adaptem e integrem cada vez mais os indivíduos a seu meio; que espera deles, ainda, que reduzam os conflitos existentes. Sobre este particular, façamos algumas observações. a) O papel'!regulador do psicólogo é duplo : de um lado, trata-se de uma regulação econômica ou pública: por exem plo, a que se exerce através da publicidade e da p�opaganda; do outro, trata-se de uma regulação de ordem social ou cultu ral : por exemplo, a que se exerce sob o nome de "recupera- 158 ção", por um sistema social ou determinada cultura, dos ele mentos que deles se afastam, se desviam ou tentam denunciá los. Assim, o papel social do psicólogo é, antes de tudo, o de reduzir toda forma de conflito podendo intervir entre uma es trutura e os elementos que nela se inserem. E qualquer que seja a estrutura na qual se insere a prática psicológica ( estru turas de informação, hospital, escola, etc. ) , podem surgir entre uma norma social (econômica, cultural ou outra) e o compor tamento dos indivíduos pertencendo ao sistema que a norma protege. O exemplo menos favorável é o da publicidade: o papel do psicólogo é o de reduzir, em proveito da publicidade, um conflito existente entre um comportamento de compra e uma norma . de consumo. Até parece que a psicologia, como redutora de conflitos, tende sempre a se exercer em beneficio da norma que impõe um comportamento : o desvio da norma não tem razão de ser, motivo pelo qual a psicologia aparece para "reajustar" os "desviados". Neste sentido, ela é uma prá tica humanística, mas no sentido em que oculta aos outros e a si mesma a função de "amortecedor social" que ela é cha mada a desempenhar. b) A segunda observação diz respeito à "imagem social" do psicólogo, bem como ao problema de seu recrutamento e de sua seleção. Com efeito, à questão que coloca o problema de sua identidade, será que o psicólogo poderá responder por um "Eu" sujeito? O que o levou a ser psicólogo? Consegue ele realizar seu desejo inicial de ser psicólogo? O que ele faz de sua "angústia" fundadora? Será que ele não a oculta, da mesma forma que faz a criança, quando se sente desamparada por sua mãe? Ora, é durante o complexo de Édipo que a criança se separa dessa atitude "fusional" com sua mãe para chegar a uma relação trinitária onde o pai e a linguagem vêm media tizar seu desejo de se tomar autônoma. O psicólogo não cor reria o risco de negar sua angústia por uma identificação fu sional à instituição? 'Concretamente, a identidade do psicólogo, descoberta na identificação à instituição . ou administração, é uma identidade social que o impede quase sempre de manifes tar sua palavra: ao retomar o discurso do social, ele impede o surgimento, na pessoa que encontra, de toda palavra que viria questionar esse discurso. Sua ação será definida por um 159 ato de adaptação a uma realidade securizante para o próprio psicólogo. Ele tenta afastar toda palavra provocadora e diver gente da norma. A história da psicanálise pode ilustrar o caso da psicologia. Desde sua origem, o movimento psicanalítico esbarrou com séri·as dificuldades : entre elas, a da formação de seus psicana listas. Os critérios utilizados para o recrutamento e a seleção revelam-nos a imagem que os membros das sociedades psica nalíticas se fazem de sua prática. Com efeito, antes de exerce rem a psicanálise, devem submeter-se a uma "psicanálise di dática". Através desta, eles recebem uma certa concepção do homem e da psicanálise. Trata-se de uma seleção que não exis tia no tempo de Freud, mas que hoje exige ainda cartas de recomendação, a realização de alguns testes ou entrevistas. De fato, a psicanálise não obedece a critérios rigorosamente cien tíficos para o recrutamento de seus candidatos chamados de "normais" : não muito neuróticos, apresentando úm "ego for te", etc. Ainda aqui, há uma adaptação às normas daqueles que detêm o poder. A psicanálise como procura de um ser sobre si mesmo, como busca de sua própria verdade, é substi.,. tuíd� por uma psicanálise que permanece nas camadas super fiçiais da personalidade : a psicanálise do "ego" como instância a_daptadora ao real. Neste sentido, pelo menos nos Estados Uni dos da América, ela é uma etapa necessária para um status so cial, como constata M. Mannoni (Le psychiatre, son "fou" et la psychanalyse) . Em outros termos, ela é recuperada ao nível do funcionamento do sistema social, pois permite aos indiví duos adaptarem-se aos diferentes meios de vida: "Nesta situa ção, a psicanálise autêntica é chamada a desaparecer. Ela só deverá sobreviver ao preço de uma não-integração ao aparelho administrativo do Estado. E é vivendo à margem de todo reco nhecimento, num lugar onde ela será maldita como á peste, que conseguirá redeséobrir o verdor inicial da era freudiana e escapar à era da menopausa a que foi arrastada atualmente". Ao deixar-se metabolizar pelas instituições e administrações, ' não perdeu ela sua inspiração e seu sentido originais? Em nossos dias, autores como Lacan tentam restituir à "psicanáli se pervertida" sua inspiração freudiana original. Esta atitude provoca reações por vezes apaixonadas. Aliás, o próprio Fr,eud 160 sofreu muitas resistências : ao propor uma psicanálise capaz de perrilitir aó sujeito saber quem ele é, em sua verdade pessoal, independentemente das respostas já dadas pela mentalidade de determinada sociedade, Freud foi censurado pela maioria dos médicos, psiquiatras e psicólogos de sua época. Ele foi um "psicanalista marginal". c) Em sua prática efetiva, não estaria a psicologia de sempenhando um papel semelhante ao da psicanálise? Ela se coloca a serviço de instituições, às quais traz sua caução. Esta belece regras de normalidade ou de anormalidade para deter minada instituição. Serve para classificar retardados e para sua avaliação quantitativa. A procura de um estatuto, por parte do psicólogo, corre o risco de oficializar o encontro fecundo entre instituição e psicologia normativo-criadora. No dizer de M. Mannoni, "está em curso de fabricação uma categoria de psi coterapeutas de apoio em certas faculdades . . . Promove-se, aí, os "terapeutas" de apoio . . . Trata-se de criar quadros dóceis, que se absterão de questionar as estruturas atuais das insti tuições". Aqueles que tentam questionar as estruturas implan tadas, são vitimas de sanções. E a psicologia não quer mais correr o risco de "incomodar" ninguém: ela prefere adaptar, normalizar e realizar um consenso de grupo; aquele que quiser se expressar ou exprimir sua "alienação",será convencido de sua falta de adaptação ao real. Mas será que é o psicólogo que possui o senso do real? Ou será que a dificuldade do mercado de trabalho já não é suficiente para justificar o compromisso? O sistema de contratação parece impedir o psicólogo de ques tionar seu estatuto de testador. :f: por isso que, como observa ainda Mannoni, "ele prega sua própria resignação e a de seu cansulente . . . Os psicólogos estão bastante consCientes do con dicionamento de que são o objeto e do escândàlo que constitui o caráter superado de sua formação universitária . . . Os raros assistentes de, faculdades que se distinguem por sua · competên cia real (competência que ultrapassa, de longe, a . deste ou da-: quele titular) , vêem-se acusados de demagogia e estão ameaça dos de serem barrados em seu progresso". Evidentemente, os psicólogos recebem, em sua formação, ensinamentos técniCos bem avançados. O que se pergunta .é se .. eles aprendem a pensar e a refletir sobre sua prática e sobre suas técnicas; se estão 161 em condições de ouvir o outro e de possibilitar a libertação de sua palavra. Assim, o problema não está em adquirir uma prá tica que se acrescente a uma teoria. A formação do psicólogo deveria levá-lo a se perguntar pelas razões que o levaram a ser psicólogo e pelo seu desejo de que o outro venha a aceder à sua verdade, para não continuar sendo, o que em boa parte já é, um pequeno tecnocrata, colocando entre parênteses o fato de o homem ser um indivíduo presente ao mundo, uma subjetividade em conquista permanente de seu mundo e de sua personalidade. d) Toda psicologia que não leve em conta o homem como presença ao mundo, como subjetividade, como um exis tente cujo sentido precisa ser manifestado, só pode ignorar o homem. Evidentemente, este projeto está sempre ameaçado pela multiplicidade e pela diversidade das formas de presença hu mana. Não é certo que caiba à psicologia unificar e totalizar a imagem do homem. Há tantas psicologias quantas são as pers pectivas sobre o homem: se ele é doente, temos uma psicologia psicopatológica; se é criança, uma psicologia genética; se é um sujeito de relações, uma psicologia social; se é uma vida inconsciente, a psicanálise, etc. Como se pode unificar a psi cologia a partir de pontos de vista tão múltiplos e tão dife rentes sobre o homem? Não se pode unificar arbitrária e abs tratamente os diferentes pontos de vista, como pretendeu certa psicologia geral que tentou sistematizar, ordenando-os numa série, os diferentes comportamentos humanos. Trata-se muito mais de aprofundar e de apreender aqqilo que, nesses diferen tes pontos de vista, manifesta-se como o sentido do ato pelo qual o homem se convoca a si mesmo e o mundo em seu pro jeto . .E: por isso que a unidade da psicologia só poderá ser com preendida a partir desse lugar existencial em que todos os atos do homem possam comunicar-se entre si para afirmarem-se como presença ao mundo. Também é por isso que os diversos pontos de vista sobre o homem, apesar de permanecerem di ferentes em sua estrutura e em seu modo de aparecer, são, de fato, pontos de vista em comunicação constante, pois todos eles surgem da presença do homem ao mundo. Donde a psicologl.a não poder ignorar esta relação do homem com o mundo e con- 162 sigo mesmo. Porque a presença surge de uma comunicação e de um encontro homem-mundo. Estudar esta relação, sua gê nese, seus modos de realização e sua finitude, é uma das ta refas essenciais da psicologia: revelar, para o homem, o que significa "existir'. Esta tarefa de compreender o homem vai exigir, ao mesmo tempo, a posse e a destruição de um saber: eis uma modalidade do discurso psicológico. Ora, só há dis curso a partir do momento em que aquilo que é dito é negado para ser ultrapassado, para visar a algo que ainda não foi di1Q.. Donde a necessidade, para a psicologia, de renunciar àquilo que ela é ou àquilo que está sendo feito dela, para criar a possibilidade de renascer e de novamente poder falar do homem. Talvez pudesse ser dito da psícologia atual o que Rabelais já dizia da ciência em geral : "Ciência sem consciência não passa de uma ruína da alma". 163 CONCLUSÃO Chegamos ao fim de nosso estudo. Mas este "fim" não significa "conclusão", pois não pretende dar uma resposta clara e definitiva à questão epistemológica inicial : como a psicologia pôde aceder ao estatuto de cientificidade? É sempre difícil e perigoso propor conclusões para um estudo que não quis ser mais do que uma introdução. Porque toda pretensão de con cluir, de determinar uma posição ou de prever o futuro, escapa à competência da interrogação epistemológica. Quisemos ape nas compreender a situação presente da psicologia através de uma análise de sua situação passada, isto é, de algumas das condições que a levaram a afirmar-se na autodeterminação cie� tífica. Nosso intuito foi o de reunir alguns elementos possibili tando o acesso da psicologia à era da cientificidade, para indi car as tarefas que se nos oferecem no momento. É neste sen tido que precisamos saber parar, ou ter a coragem de confes sar nossos limites, ou então, perguntar: o que resta ao fim desse estudo? A que pretendemos introduzir a pesquisa? Se é verdade que o difícil não é resolver um problema, mas saber colocá lo bem, nosso estudo terá atingido parte de seu objetivo se tiver conseguido colocar o problema da "cientificidade" da psicologia e de suas conseqüências para a interrogação episte mológica. Portanto, à questão: o que resta no fim do presente · estu do?, daremos apenas algumas indicações. Primeiramente, es peramos ter introduzido um novo estudo sobre a epistemologia da psicologia. Em segundo lugar, talvez tenhamos colaborado para desvincular a prática psicológica de certas imagens de formadoras que tanto filósofos quanto cientistas de formação empirista fizeram ou ainda fazem dela. Em terceiro lugar, es- 167 peramos · ter mostrado que o estatuto epistemológico de cien tificidade da psicologia ainda permanece bastante incerto, jus tamente porque ela ainda se encontra dividida entre seus vín culos filosóficos e seu comércio direto com as ciências. Ela não pode subtrair-se a toda contaminação filosófica ou ideo lógicã enquanto os psicólogos cientistas permanecerem em de sacordo sobre os problemas de ordem extracientífica nos quais suas pesquisas os engajam. Ademais, contra essa mentalidade segundo a qual a psicologia, para ser ciência, deve fundar-se única e exclusivamente sobre o espírito de objetividade calcado sobre os métodos das ciências naturais, tentamos também mos trar que a epistemologia nos obriga a adotar uma atitude de vigilância que nos permite submeter a prática psicológica (suas operações e seus conceitos) a uma retificação metódica. Eis porque a diversidade dos métodos graças aos quais os psicólo gos acedem ao conhecimento do homem contrasta com a uni dade da realidade humana que esses métodos se vêem obii g�dos a fragmentar. Na medida em que os pontos de vista ado tados eliminam as fronteiras com os campos vizinhos de pes quisa, os métodos se revelam mais fecundos e a pesquisa mais legítima. Houve, portanto, de nossa parte, certa audácia em confrontar os métodos psicológicos de conhecimento do fato humano com uma abordagem até certo ponto filosófica. To mando este partido, não ignoramos que · nosso esforço devia ser justificável de um ponto de vista novo. Este ponto de vista engendra novamente um método que torna caduca a vontade de respeitar as regras metodológicas que sempre se impuseram às disciplln�s com pretensões à cientificidade. Donde a neces sid�e não somente de rever os métodos de fazer psicologia científica ou de ensiná-la, mas também de preparar inova dores nas pesquisas psicológicas, mais do que espíritos con formistas e submissos à inércia das situações adquiridas. Não vemos como a ciência psicológica possa constituir-se excluindo de seu campo de investigaçãoa subjetividade do homem, a não ser que se construa como ciência, mas sem nada poder dizer sobre a realidade humana. Se a ciência psicológi ca, para se afirmar, vê-se obrigada a recorrer a um saber cien tífico que se desenrola num domínio onde a verdade só pode falar do lado das coisas, não é de estranhar que, par� obter a 168 verdade do sujeito que interroga as coisas, seja necessário, antes� transformá-lo numa coisa que responde. G. Canguilhem critica a pretensão da psicologia de atribuir a seu objeto a função das coisas, como se o homem fosse um instrumento ou um lugar fixo num feixe de relações com o meio biológico e com seus semelhantes. Com todo o seu equipamento experimental e técnico, a psicologia está em condições de fornecer um sujeito a uma "política racional". E esta política se torna "racional"� ao garantir à psicologia os meios técnicos de seu progresso. Donde a eficácia de suas práticas. Estas são devidas à apa relhagem técnica e metodológica capaz de assegurar o caráter de "utensílio" de seu objeto. Assim, o sujeito da ciência psico lógica poderá ser manipulado pela própria ciência. Neste par ticular, o advento da psicanálise freudiana veio marcar um modo diferente de situar esse sujeito, esse "ego" como função de desconhecimento e de miragem, parte do imaginário que, ao voltar-se sobre o seu objeto (subjectum) , não o proscreve do domínio da ciência. Freud foi o primeiro psicólogo a sentir claramente a necessidade de se introduzir na psicologia a di mensão de um silêncio: silêncio da psicologia científico-experi mental quanto aos enunciados que a fundamentam; silêncio· também da psicologia social que, ao dissimular uma filosofia, cala-se sem nada nos dizer sobre os laços que as unem. E é neste silêncio, ignorado enquanto silêncio, que a psicologia cien tífica se situa como discurso. Talvez uma das tarefas da psico logia fosse a de descobrir ou redescobrir, não tanto os con teúdos manifestos de seu discurso, mas seus conteúdos silen ciados e as razões que engendraram esse silêncio. E esta tarefa revela-se tanto mais necessária, quanto mais imperioso se tor na, para o psicólogo, converter-se ou reconverter-se em alguém capaz de desvelar o sentido da palavra do homem. 169 BIBLIOGRAFIA SUMARIA BERT ALANFFY, L. von, Robots, hombres y mentes. La psicologia en el mundo moderno, Guadarrama, Madrid, 1971. CANGUILHEM, G., " Qu'est-ce que la Psychologie ?", titudes d'histoi re et de philosophie des sciences, Vrin, Paris, 1968. COSNIER, J., Clefs pour la Psychologie, Seghers, Paris, 1970. DELEULE, D., La Psychologie, mythe scientifique, Laífont, Paris, 1969. FOUCAULT, M., Les mots et les choses, Gallima.rd, Paris, 1966. FRAISSE, P., Ma.nuel pratique de Psychologie e.xpérimentale, P. U. F., Paris, 1956. FRAISSE, P. e PIAGET, ]., Traité de psychologie e.xpérimentale, P. U. F., Paris, 1965, 9 vols . FREUD, S., A Interpretação de Sonhos, Edição Standard Brasileira, Vols. IV e V, !MAGO Editora, 1972. LACAN, ]., ficrits (I e li) , Seuil, Paris, 1966. 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