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Instalação no Brasil: um campo expandido Profª. Andréa Tavares Descrição A instalação na prática poética de artistas brasileiros a partir da década de 1960 e seus desenvolvimentos até a contemporaneidade. Propósito Atualmente, a instalação é um recurso muito utilizado na arte brasileira, uma vez que traz implicações interessantes, como a relação do espectador como participante e a desierarquização dos temas essenciais na contemporaneidade. Objetivos Módulo 1 Primeiras investigações Identificar o surgimento da prática da instalação pelos artistas contemporâneos no Brasil nos anos 1960 e 1970. Módulo 2 Instalação e poéticas conceituais Relacionar a instalação e a arte conceitual nos trabalhos de Cildo Meireles, Carlito Carvalhosa e Nuno Ramos. Módulo 3 Decolonial e instalação Associar o uso da prática da instalação pelos artistas contemporâneos e pela perspectiva histórica decolonial. A instalação como procedimento artístico começou a ser investigada nos anos 1960 no Brasil por artistas ligados ao movimento concreto, que depois fariam parte dos grupos Neoconcreto e Frente. Suas pesquisas no campo da abstração, na busca de uma essencialidade dos meios, e da arte, os levou a romper fronteiras. Suas propostas não podiam ser chamadas de pinturas e esculturas, não eram como os objetos que conhecíamos por tais nomes. O que parecia uma investigação formal sobre o suporte foi, na verdade, uma investigação sobre a natureza do problema arte, uma pesquisa ontológica. Em nosso trajeto sobre a prática da instalação na arte brasileira como um campo singular, de outras experimentações, expandido, conduziremos seu olhar pelas experiências dos artistas (a velha máxima da História da Arte: “Não existe arte, só os artistas”). Iniciaremos com uma investigação sobre o surgimento dessa prática no Brasil, analisando as obras de três artistas conhecidos por terem rompido os limites da arte: Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica. Depois, estudaremos o estabelecimento da prática da instalação e sua relação com a arte conceitual, bem como seu modo de se relacionar com os contextos históricos, provocando-os. Iremos conhecer trabalhos de Cildo Meireles, Carlito Carvalhosa e Nuno Ramos. Por último, em uma perspectiva mais contemporânea e urgente, investigaremos práticas decoloniais em instalações de dois artistas: Bené Fonteles e Rosana Paulino. Investigaremos um processo de pouco mais de 60 anos, o que é pouco para um período histórico. Somos, de alguma forma, seus contemporâneos. Portanto, as questões propostas nos trabalhos da Introdução Ontológica Uma busca íntima, em sua alma, em seu cerne. A instalação em arte no Brasil No vídeo a seguir, veremos o que significa a arte em um campo expandido. produção de todo este período, em alguma medida, são urgentes ainda hoje, como podemos perceber na produção de artistas do século XXI. Neste estudo, precisaremos entender o panorama político em que essa investigação acontece. Por isso, leremos textos dos próprios artistas e contaremos com a ajuda de geógrafos, historiadores e críticos de arte. Por meio deste conteúdo, estaremos, sem dúvida, nos ligando à produção artística de nosso tempo. Bons estudos! 1 - Primeiras investigações Ao �nal deste módulo, você será capaz de identi�car o surgimento da prática da instalação pelos artistas contemporâneos no Brasil nos anos 1960 e 1970. Vamos conhecer, neste módulo, um pouco da produção de três artistas brasileiros que desenvolveram propostas radicais nos anos 1960 e 1970, três artistas que seguem influenciando gerações. São eles: Hélio Oiticica Lygia Clark Lygia Pape Partindo de uma investigação pautada no construtivismo e nas pautas da escola Bauhaus, eles atravessaram os limites das linguagens tradicionais em exercícios radicais, às vezes irônicos, produzindo programas para suas próprias práticas que trouxeram para dentro dos processos o espectador. Antes de investigar as especificidades de suas práticas, vamos retomar os princípios da instalação a partir do texto da historiadora Cristina Freire. Construtivismo Movimento de vanguarda com foco na experimentação, em especial das novas manifestações de arte, influenciado pelas produções das revoluções industriais. Comentário É importante ressaltar que Cristina é pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea da USP, que possui o maior acervo de arte conceitual do país, reunido graças aos esforços do pesquisador e curador Walter Zanini, que assumiu a direção do recém-formado museu em 1963. Ele transformou um museu em um lugar de exercício para os artistas, promovendo exposições anuais chamadas de Jovem Arte Contemporânea (JAC) a partir de 1967. Essa foi uma exposição pautada no processo, os visitantes podiam entrar e ver a mostra em processo. A maior parte destas obras eram instalações, toda a mostra poderia ser entendida como uma instalação coletiva. É a partir da década de 1960 que o termo “instalação”, que até aqui significava montagem (a instalação) de uma exposição, passa a nomear essa operação artística em que o espaço (entorno) torna-se parte constituinte da obra. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Esta breve digressão estabelece para nós padrões de aproximação para as obras que veremos a seguir, nos informa sobre a prática artística e curatorial da época em que os artistas que veremos nesta unidade trabalhavam, mas não só isso, porque todos os artistas analisados nesta unidade trabalham com a prática da instalação e com as poéticas conceituais, nas quais o contexto e o processo são tão ou mais importantes que o objeto final, que sabemos pode ser efêmero. Entender que o objeto de arte pode ter sua experiência fragmentada no tempo, que ele pode ser manipulado e até construído pelo espectador que se torna ativador da proposta artística foi um caminho árduo que para os nossos três personagens se inicia com as experiências da abstração geométrica. Hélio Oiticica (1937-1980) O carioca Hélio Oiticica produziu muito, de anotações as grandes instalações, era uma produção intensa e vertiginosa. Ele chegou a transformar seu pequeno apartamento em Nova Iorque em uma instalação, enchendo-o de beliches, que ganharam cortinas, e chamou a estrutura de ninhos. Comentário Neste módulo o guiaremos nessa busca pelo desenvolvimento da produção de Hélio Oiticica. No entanto, dada às limitações de tempo e espaço, sugerimos que faça uma pesquisa para conhecer mais sobre este artista. Seus escritos e publicações estão disponíveis na rede. Vamos começar por algumas de suas obras: 1958 Metaesquema. 1960 Bilateral Equali, Não - Objeto. 1964 B15 Bólide Vidro 4 - Terra Identifique, enquanto analisa as obras reunidas no site do Itaú Cultural, os materiais utilizados por ele. Anote quais são esses materiais, tente definir se os objetos são pinturas, esculturas, objetos ou instalações, verifique as datas das obras, perceba quando fica mais difícil de nomear seus trabalhos dentro de gêneros bem definidos. Não deixe de anotar suas dúvidas. Vamos pensar! Hélio planejava seu trabalho, estudava suas referências, e era influenciado por aquilo que acontecia ao seu entorno. Precisamos lembrar que um artista faz escolhas para produzir, planeja, projeta, realiza e reflete sobre o que fez, para continuar produzindo. Todo artista tem um processo de trabalho em que ele experimenta e testa soluções para os problemas que lhe interessam. Apesar disso, os filmes populares, os filmes chamados de “pipoca”, frequentemente quando retratam um artista enfatizam sua vida pessoal e a relação dessas experiências com as obras que produz. Pôster do filme Van Gogh de Maurice Pialat. A produção é retratada como uma série de “iluminações” que ocorrem aos artistas, como se fossem inspirados por algo sobre o qual não têm controle. Como exemplo, podemos citar os filmes sobre Van Gogh (Van Gogh, de Alain Resnais, Sede de Viver, de Vicente Minnelli (o melhor para provar a tese) e Van Gogh, de Maurice Pialat),nos quais tudo isso é recorrente. Van Gogh era "iluminado", mas pensava o que o cercava, e vivia o espaço em sua expressão artística, tal como o fez Hélio Oiticica. Veja, leia e sinta A obra Grande Núcleo, de 1960, é composta de grandes placas de madeira pintadas de vários tons de amarelo, que de formas diversas parecem compor justamente um núcleo, mas sem nunca se tocar, fazendo com que os fragmentos em balanço sejam potência de encontro. O espectador, ao percorrer a obra, ao tentar ficar entre as placas, terá uma noção de forma em desenvolvimento. Grande Núcleo, Hélio Oiticica, 1960. Hélio escreveu em 1969: O processo de deslocar o principal foco estético para longe das chamadas artes ‘visuais’ e a introdução, então, dos outros sentidos, não deve ser considerado ou olhado de um ponto de vista puramente estético; é muito mais profundo; é um processo que, em seu sentido mais extremo, se relaciona e propõe uma possibilidade de novo comportamento descondicionado: a consciência do comportamento como chave fundamental para a evolução dos chamados processos da arte (...) olfato-visão-paladar-audição e tato misturam- se e são o que Merleau-Ponty chamou de ´simbólica´ do corpo onde todas as relações de sentido são estabelecidas em um contexto humano, como um ´corpo´ de significações e não a soma de significações apreendidas por canais específicos. (OITICICA, H. apud BRAGA, 2008, p. 16) Temos aqui um entendimento pleno sobre a sua produção, da construção conceitual da obra à sua exposição ao público. Assim ele parte de uma ruptura com as artes tradicionais, que ocorreu ainda quando, nos anos 1950, no Rio de Janeiro, ele fazia parte do grupo de artistas neoconcretos. A obra Núcleo NC 6 parte de uma investigação pictórica de linha construtiva, concreta, a cor sai da tela da pintura e da parede para se colocar em suspensão no espaço. Portanto uma quebra com a definição de objeto de arte. Núcleo NC 6, Hélio Oiticica, 1960. O Manifesto neoconcreto publicado no suplemento dominical do Jornal do Brasil em março de 1959, por ocasião da 1ª Exposição de Arte Neoconcreta, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, da qual Oiticica também participou, marca uma ruptura com a arte abstrata do grupo concreto, e estabelece um novo programa para estes artistas: É porque a obra de arte não se limita a ocupar um lugar no espaço objetivo ― mas o transcende ao fundar nele uma significação nova ― que as noções objetivas de tempo, espaço, forma, estrutura, cor etc. não são suficientes para compreender a obra de arte, para dar conta de sua ‘realidade’. A dificuldade de uma terminologia precisa para exprimir um mundo que não se rende a noções levou a crítica de arte ao uso indiscriminado de palavras que traem a complexidade da obra criada. (BRITO, 1999, p. 10-11) O manifesto estabelece um programa estético baseado na experimentação que leve em consideração o espaço, o tempo, a forma não como unidades, mas como fragmentos que irão encontrar um observador que irá realizar uma experiência estética construída com todos os sentidos, e que será única. Para exacerbar essa consciência por parte do espectador, Oiticica vai construir seus ambientes e obras para serem usufruídos com lentidão e atenção às reações físicas provocadas ― ou não ― pelos materiais. Antiarte ― compreensão e razão e de ser do artista, não mais um criador para a contemplação, mas como um motivador para a criação ― a criação, como tal, se completa pela participação dinâmica do ‘espectador’, agora considerado ‘participador’. (...) dar-lhe uma simples oportunidade de participação para que ele ‘ache’ aí algo que queira realizar ― é, pois, uma ‘realização criativa’ o que propõe o artista, realização esta isenta de premissas morais, intelectuais ou estéticas ― a antiarte está isenta disto (OITICICA, H. In: 27ª Bienal de São Paulo: Como Viver Junto. São Paulo: fundação Bienal, 2006, p. 22) Liberdade! As proposições de Hélio são libertadoras, liberais e libertárias. A década de 1960 será intensa para ele, em sua atuação no Rio de Janeiro, onde frequenta a comunidade do morro da Mangueira. A partir de então, desenvolve os Parangolés, que são capas de tecido e de materiais diversos que devem ser ativadas por um corpo. Parangolé P15, Capa 11, Incorporo a Revolta, Hélio Oiticica, 1967. Curiosidade Cabe lembrar que todos os seus textos citados aqui são pós golpe militar, portanto escritos durante a Ditadura Civil-militar iniciada em 1964. Por volta de 1968, Oiticica começa a ter seu trabalho reconhecido no exterior. O curador Guy Brett leva o trabalho do artista para uma exposição individual na Whitechapel Gallery em 1969. Na ocasião Hélio cria uma exposição/instalação, um grande ambiente chamado Éden (paraíso), que consistia em várias cabanas, cabines e tatames dispostos em um espaço de galeria, com muita areia no chão, vasos de plantas, e algumas TVs e rádios ligados dentro das cabanas. Éden, Hélio Oiticica, 1969. Tratava-se de um lugar para passar um tempo e se perder. Um transeunte poderia entrar naquela galeria, que era, e é, na verdade, um centro cultural, para se refugiar do frio que faz em Londres e se deparar com a obra que Hélio expunha ali: um ambiente quente e agradável, para tirar os sapatos, sentar e até dormir. A pesquisa de Hélio potencializa o papel do espectador, a quem é proposto ser criador, pois tem a autoridade de criar sua própria experiência. Em 1970, Oiticica parte para uma espécie de autoexílio em Nova Iorque, onde residiu por oito anos por não acreditar que pudesse desenvolver seu trabalho no Rio com tranquilidade, uma vez que se sentia cada vez mais asfixiado pela atmosfera política e pelo cerceamento da liberdade. Tropicália, Hélio Oiticica, 1967. Lygia Clark (1920-1988) Hélio era o lado de fora de uma luva, a ligação com o mundo exterior. Eu, a parte de dentro. Nós dois existimos a partir do momento em que há uma mão que calce a luva. (CLARK, 1998. p.7) Hélio Oiticica e Lygia Clark foram grandes amigos, discutiam seus problemas, seus trabalhos, suas referências e isto está documentado por cartas. Por isso, temos documentos incríveis e muito honestos sobre suas trajetórias nas cartas trocadas entre eles. Ambos saíram do Brasil por um tempo: Ela foi para Paris. Ele foi para Londres e Nova Iorque. Lygia também fez parte do grupo de artistas que assinou o Manifesto Neoconcreto em 1959, mas já ali sentia que se distanciava do grupo, pois em maio daquele mesmo ano escreve em seu diário uma carta a Mondrian falando de suas dúvidas. A trajetória de Lygia é muito parecida como a de muitos de seus contemporâneos. Inicia-se pela investigação daquilo que é próprio das linguagens tradicionais: na pintura, o plano e a cor; e na escultura, o volume e espaço. Assim como aconteceu com Hélio ela vai retirando a pintura da sua estrutura planar e levando a forma para o espaço, onde passa a investigar a ideia de objeto. Entre seus trabalhos mais conhecidos está a série dos Bichos. Obras de alumínio, e outros metais, em planos geométricos presos uns aos outros por dobradiças. Pedem a ativação do corpo de um ser vivo para que ganhem vida. Mondrian Piet Mondrian (1872-1944) foi um artista nascido nos Países Baixos e que migrou para Nova Iorque. Quando jovem, na Europa, ele se envolveu primeiro com o pós-impressionismo, depois foi desenvolvendo uma linguagem construtiva e abstrata. O Pós-impressionismo é um desdobramento do Impressionismo na pintura, que influenciou outras formas de manifestação de arte, como arquitetura, escultura e colagens. Bicho linear, Lygia Clark, 1960. A artista deseja o contato do espectador, da mesma maneira que Hélio precisava do corpo do outro para ativar os Parangolés. Bichos e Parangolés são objetos sem vida quando parados, são documentos da potência de um vir a ser que só se realiza na vibração do contato entre a proposição e o corpo de um sujeito. Ao tocar um dos Bichos o sujeito percebe a forma, a diferença entre os planos, e diferença entre a matériafria e a pele. Percebe sua vontade, suas escolhas, o tempo que passa na brincadeira da descoberta de um vir a ser. Lygia nomeia estes objetos de Bichos para enfatizar sua organicidade e a forma como eles nos olham, por assim dizer, cheios de expectativas, pois dependem de nós para vir a ser. A obra só existe quando tocada pelo participante, no encontro. Essa perspectiva é sem dúvida fenomenológica. Fenomenológica Se a fenomenologia é "um inventário da consciência como ambiente do universo", toda a questão da experiência natural do mundo é para retomar sobre outras bases diferentes daquelas da psicologia experimental e da epistemologia tradicionais. (...) fazendo fundo sobre os resultados experimentais da "psicologia da forma" e dos behavioristas, (sempre criticando seus esquemas de interpretação dos fenômenos observados), Merleau-Ponty se esforça para mostrar que a percepção é nossa relação original com o mundo, "um tipo de experiência originária". "Não é necessário, pois, se perguntar se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é necessário dizer ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos". O mundo da percepção se descobre "como berço das significações, sentido de todos os sentidos, e solo de todos os pensamentos". THEVENAZ, Pierre. O que é a fenomenologia? A fenomenologia de Merleau- Ponty (1952). Rev. NUFEN, Belém, v. 9, n. 2, p. 169-176, 2017. Podemos, então, entender a partir da filosofia todo este interesse que estes artistas têm em provocar e convocar os espectadores à participação. É um interesse em refletir sobre a própria realidade conforme ela se dá para cada um. Lygia Clark com uma de suas obras em 1972. A potência de vida, de vir a ser dos próprios sujeitos, passa a ser o principal interesse investigativo de Lygia. Desde a década de 1950 ela se interessa pela Psicanálise como forma de entender seu próprio devir artístico, esse interesse se torna cada vez mais importante com as experiências em que convoca o corpo do outro e pretende que este corpo se perceba como um sujeito e assuma sua fragmentação. Em 1970, ela parte para Paris para estudar Psicanálise em um grupo de estudos na Sorbonne (Faculté dArts Plastiques St. Charles) onde também leciona. Lygia vai se debruçar sobre a primeira experiência traumática de todo o sujeito, o nascimento, o que marca nossa separação da origem do corpo da mãe e nos lança para o desconhecido. O trabalho que explora essa questão com mais veemência é a instalação A casa é o corpo: Labirinto, montada na Bienal de Veneza em 1968. A instalação é um abrigo poético, desenhado para fazer o visitante experimentar um espaço que remete aos processos de reprodução no corpo feminino. Entrar é penetrar este corpo/casa/mãe. Estar nele é ovular e germinar, é uma experiência espaço-temporal que requer também que este visitante ceda suas concepções de arte, porque os termos de comparação para avaliar a obra já não existem mais: em seu lugar temos a particularidade de experiência vivida, o fenômeno. A casa é o corpo: penetração, ovulação, germinação, expulsão (The House is the Body), Lygia Clark, 1968. Sair da instalação é nascer de novo, se assim o participante quiser. Segundo a historiadora e crítica de arte Maria Alice Milliet da “negação da obra e do envolvimento ativo do público surge a nova poética do corpo na qual opera Lygia Clark” (1992, p. 153). Essa sua nova poética irá operar para além dos códigos da arte, na antiarte que nega a contemplação passiva, ou retiniana, para convidar o participante a se expressar no contato com a proposição. Em Paris, na década de 1970, suas investigações entram definitivamente no campo da Psicanálise. Ali a artista desenvolve uma terapêutica própria, com a invenção de exercícios coletivos ou individuais com o uso de “objetos relacionais”; estes sem dúvida ligados ao Bichos e às Obras Moles da década anterior. Ao suspender a palavra e usar ‘objetos relacionais’ – quase pura matéria, maleáveis e conformáveis ao toque – Clark ressuscita no paciente sensações arcaicas carregadas afetivamente. As revivescências psicossomáticas, provocadas pelo contato com o peso, a temperatura, a textura, o atrito, a sonoridade do ‘objeto relacional’, reconstituem as relações primeiras do corpo do paciente com o environment. (MILLIET, 1992, p. 165) Está em jogo na terapêutica o que já era essencial nas obras, o encontro do ponto de vista da fenomenologia, a tomada de consciência de um sujeito frente à sua realidade pessoal construída. O momento presente, do contato, repercute no passado/memória e cria um novo por vir. Curiosidade Ao voltar para o Brasil em 1975, ela abdica da arte para se tornar terapeuta. Seu ideal era o de que todos se tornassem praticantes da arte, a ponto de a arte como algo especial, suspenso da vida cotidiana não existisse mais. Se Lygia concordava ou não com isso é difícil dizer, em suas cartas e escritos, suas opiniões vão mudando. Mas ela rompe com a arte dos museus, com a arte das galerias, e com a própria arte. Seus experimentos irão acontecer diretamente com os sujeitos em uma terapêutica única. Sem dúvida um exemplo de desmaterialização radical da arte. Veja abaixo uma galeria com alguns de seus trabalhos: 1963 Pedra e ar. 1966 Respire Comigo. 1968 Óculos. Lygia Pape (1927-2004) O problema decisivo é definir o ambiente; para quem, para onde, e para quê ou por quê? Já não é permissível continuar a falar de Escultura ou de Pintura ou de qualquer outra arte no espaço e no tempo isoladamente. Nem mesmo, ou sobretudo, de Arquitetura. A obra em si de um artista não pode mais ser examinada por ela mesma. (...) é dentro do contexto ambiental que todas as artes e atividades correlatas podem encontrar o momento crucial de sua integração, quer dizer, de sua autêntica realização no complexo social. (PEDROSA, Mario. Mundo em crise, arte em crise, homem em crise. In: Mundo, arte, homem em crise. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 216.) Pedrosa escreveu o texto acima em 1967. Àquela época, como hoje, o mundo estava em crise política e econômica: Guerra Fria, ascensão de governos autoritários militares e antidemocráticos na América Latina; crise da arte: desmaterialização do objeto artístico, esfacelamento do autor. O homem estava em crise: a moral do homem branco e seu patriarcado estava sendo atacada pelos movimentos dos direitos civis, a crença na tecnologia como salvadora da humanidade era severamente questionada quando da expectativa de uma guerra nuclear, a psiquê humana como uma identidade unívoca se esfacelava. É nesse contexto que Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape encontraram a maturidade artística e firmaram suas posições éticas. Esta última permaneceu no Brasil lecionando em diferentes instituições, como a Escola de Belas Artes da UFRJ e a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Defendeu sua dissertação de mestrado Catiti Catiti na terra dos Brasis em 1980 no departamento de Filosofia da UFRJ. Em sua trajetória de trabalho, que a coloca frente ao problema da arte e contextualiza sua produção frente a certa identidade brasileira, ela se liga à tradição moderna para apontar também seu declínio. Seu trabalho irá enveredar por diversas linguagens, xilogravura, pintura, colagem, cinema, escultura, instalação. Mas não importa quais sejam, todas estão investida de senso crítico, quando não de ironia. Eat Me - A Gula ou a Luxúria? Versão I, Lygia Pape, 1976. Se a relação de Oiticica com os mestres da Estação Primeira de Mangueira, foi decisiva para a criação dos parangolés, para Pape a relação com a dança foi o que a levou definitivamente para o espaço tridimensional, libertando a cor e a forma do plano pictórico para que elas pudessem existir no espaço e no tempo. Entre 1958 e 1959 ela executa junto com o poeta Reynaldo Jardim duas montagens do Balé Neoconcreto: Balé Neoconcreto I, Lygia Pape, 1958. O Balé Neoconcreto fora uma proposta colaborativa que demandava a ação de bailarinos a fim de animar as formas geométricas e os volumesde cor construídas pelo artista. Os bailarinos eram colocados a maior parte do tempo dentro destes volumes, assumindo, portanto, a identidade dos objetos. Na primeira montagem a música era do músico concreto Pierre Henry, e, na segunda, do próprio Jardim. O crítico carioca Luiz Camillo Osorio entende essa experiência como um desenvolvimento do entendimento fenomenológico da forma, “o que deveria ser afirmado era o acontecimento poético enquanto experiência viva da forma”. Esta forma era um acontecimento que “nos dotaria de novas maneiras de sentir e ser no mundo”. (Lygia Pape: experimentação e resistência. In: Lygia Pape: espaço imantado. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012. p.106) O que foi o Balé Neoconcreto? O Balé Neoconcreto I (1958) adapta para o palco o poema concreto Olho-Alvo, de Jardim, com cilindros e paralelepípedos “vestidos” pelos bailarinos e tomando o lugar, respectivamente, das palavras “olho” e “alvo”. O poema funciona como uma espécie de partitura coreográfica: durante a apresentação, o conjunto de bailarinos perfaz uma rotação espelhada à luz das palavras e ao longo das cinco páginas do poema. É importante entender que o que leva os artistas que estamos estudando a experimentar para além dos gêneros artísticos instituídos é uma necessidade de buscar provocar reações do público, construir outra realidade e conscientizar a percepção do espectador. Isso não quer dizer que se espera que este espectador simplesmente compreenda uma estética e adira a ela, mas que ele simplesmente se perceba, reflita sobre como se dá a sua relação com o mundo. Para o artista suíço Paul Klee, a linha é o ponto em movimento, enquanto que o plano é construído pelo movimento da linha, e o volume, pelo desenvolvimento do plano no espaço. Pense no corpo do bailarino como a ponta do lápis que constrói a linha, lembre-se de como o corpo do bailarino cria linhas e as movimenta, criando planos. Balé neoconcreto transforma o trabalho da artista que, paralelamente, desenvolve uma série de xilogravuras, Tecelares e poemas objetos. Em 1960, como que reunindo essas experiências, constrói Livro poema, trabalho com tipografia e xilogravura, que opera na dimensão do livro objeto a percepção espaçotemporal trabalhada no balé, mas ao alcance da mão. Tecelar, Lygia Pape, 1958. Tecelares, Lygia Pape, 1957. As qualidades gráficas das linhas trabalhadas com sutileza para criar uma relação ambígua e permutável entre figura e fundo, linha e plano em Tecelares são levadas a diante em Ttéia. Na instalação o espaço ocupado é transformado pelas linhas que criam a ilusão de planos e volumes, engole o espectador que no seu percurso realiza a verdadeira construção do espaço. É a observação atenta da cidade, praticada em caminhadas noturnas com Hélio que a levam a pensar no conceito de Espaços imantados, situações-limite e bem definidas até geograficamente e onde estão acontecendo coisas especiais de nível poético. Podem ser naturais ou criadas. Pode ser a fala de um ambulante chamando o público a criar o “espaço imantando” ou um acidente natural, como um areal. E pode ser uma intervenção no espaço, Ttéia convidando o público a descobrir um desdobramento espaçotemporal único para ele. Veja a seguir: O que há de especial em entrar no espaço imantando de Ttéia? Se a percepção de cada indivíduo é única e cria a sua própria realidade, um passeio pela cidade não seria uma situação similar? A proposição da artista cria atenção sob um espaço-tempo. Há quem faça caminhadas com a mesma postura de quem entra em Ttéia, mas no geral ocupamos espaços preocupados com o nosso cotidiano, caminhamos para o trabalho, para o banco, para a padaria. Isso quando caminhamos, porque muitos preferem o automóvel. Comentário Até o tempo da caminhada hoje pode ser visto como utilitário, pois caminhamos não por caminhar, mas porque faz bem para a saúde, e nos preocupamos com o batimento cardíaco, o ritmo da passada, a quantidade de passos dados, os metros e os quilômetros percorridos, as calorias gastas. A instalação de Pape nos oferece uma suspensão espaçotemporal, uma suspensão do cotidiano utilitarista, para sermos formas jogando com outras formas, para sermos ponto, linha, plano e volume. Pele e carne, pensamento encarnado, percepção ativa. Veja alguns de seus trabalhos a seguir: Vem que eu te explico! Os vídeos a seguir abordam os assuntos mais relevantes do conteúdo que você acabou de estudar. Módulo 1 - Vem que eu te explico! Instalação no Brasil Módulo 1 - Vem que eu te explico! Hélio Oiticica Módulo 1 - Vem que eu te explico! Ligya Clark 1968 Divisor. 1980 Olho do Guará. 1986 Sem Título, 1986 Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 A arte de Hélio Oiticica foi considerada um marco no Brasil. Não que já não houvesse movimentos contemporâneos de arte dialogando com o mundo, mas principalmente por buscar públicos e formas diversos. É um marco conceitual do autor na arte brasileira: A A antiarte, crítica a todas as formas de arte acadêmica e a busca de uma arte popular. B O abstraísmo, com a defesa de que a arte precisa ser engajada e crítica à sociedade. C O neoconcretismo, como uma forma de materializar um mundo na arte. D O abstraísmo, negativa real do autor entendida como um ícone de fragilização da arte. E A antiarte, vinculada ao sentimento de que o artista não cria a partir de seu entorno, mas fomenta a criação. Parabéns! A alternativa A está correta. Entre as muitas experimentações de Hélio Oiticica está a promoção da antiarte, a lógica de que o artista não é o que possui um dom, mas aquele que promove, que estabelece o desejo da criação. Abstraísmo e neoconcretismos são discussões do caminho que o autor rompe. Questão 2 Nomes como o de Hélio Oiticica foram fundamentais para notar a chegada da Instalação no Brasil e como ela se consolida como um campo. Outros nomes importantes deram sua contribuição, como, por exemplo: I – Lygia Clark II – Lygia Pape ( ) Trouxe diálogos importantes da Fenomenologia e da Psicanálise para a construção e reflexão sobre o a papel da arte. ( ) A ruptura do espaço e da ação do artista ganhou muitas possibilidades, por exemplo, na valorização da dança, do samba ao balé. A identificação correta da característica das artistas é: A I e a segunda assertiva não corresponde às artistas. B II e II C II e I D I e I E I e II 2 - Instalação e poéticas conceituais Ao �nal deste módulo, você será capaz de relacionar a instalação e a arte conceitual nos trabalhos de Cildo Meireles, Carlito Carvalhosa e Nuno Ramos. Arte conceitual Uma das primeiras exposições a reunir os artistas conceituais foi Information, no MOMA (The Museum of Modern Art) de Nova Iorque, em 1970. O curador do departamento de escultura Knyston McShine foi o responsável pelo projeto. Ele notou que em diversos lugares do mundo a experiência escultórica assumia-se Parabéns! A alternativa D está correta. As duas assertivas tratam da obra de Lygia Clark. Ambas as artistas atuaram no campo da instalação no Brasil. Enquanto a instalação de Clark é mais física, mais voltada aos símbolos, Pape busca resposta no movimento, na ação humana. Ambas mantêm a ideia de o artista ser o valor, a liderança. como experiência espacial, e que além disso os artistas passavam a interferir no espaço real por meio de sistemas de circulação. Museu de Arte Mordena de Nova Iorque nos tempos atuais. Knyston reuniu artistas de diversas partes do mundo, dentre os quais Joseph Kosuth, Bruce Nauman, Josef Beuys, Hans Haacke, Yoko Ono, Marta Minujin, Artur Barrio, Hélio Oiticica e Cildo Meireles. Artistas jovens entre 20 e 40 anos. Cildo Meirelles tinha 22 anos de idade e Hélio Oiticica, 33. Veja alguns dos artistas a seguir: Yoko Ono Marta Minujin Cildo Meireles A arte conceitual é a nova fronteira de nosso campo expandido da instalação, seu olhar começa com a provocação sobre o padrão Arte = Cultura Ocidental. Emtermos práticos, a arte que, antes, deveria ser admirada, visual, passa a ser sentida, cheirada, bebida, abraçada, provocativa. O pensamento permite que materiais diversos se componham e se recriem. As instalações ganham objetos diversos, cotidianos, repensados. O embate contra esse olhar tem muitos exemplos, em especial o ato feroz, muitas vezes de crítica, ao velho formalismo. Condenstion cube, Hans Haacke, teve início em 1965 e foi completa em 2008. O brasileiro Cildo Meireles, que participa da já citada exposição Information, considerada como um dos marcos da arte conceitual, usa o esperado, mas vai além: critica abertamente a Ditadura de seu país e a influência americana, com notas de dinheiro e a explosão de garrafas de Coca-Cola. Veremos neste módulo propostas desenvolvidas por três artistas que recusam a ideia tradicional de objeto de arte, são eles Cildo Meireles, Carlito Carvalhosa e Nuno Ramos. O primeiro exibiu na referida exposição propostas da série Inserções em circuitos ideológicos, uma destas propostas foi imprimir a frase “Yankees go home” e um gráfico ensinando a fazer coquetel molotov em garrafas retornáveis de Coca-Cola. A mensagem era forte, nas décadas de 1960 e 1970, como já foi apontado, a política externa dos Estados Unidos, da Guerra Fria, promoveu a ascensão de diversos estados ditatoriais na América Latina, incluindo a nossa Ditadura Militar. Coquetel molotov Uma espécie de bomba caseira, barulhenta, mas de baixo poder destrutivo. Ditadura militar Durante os anos de 1960 e 1980 as américas central e do sul viveram a ascensão de governos de força, em grande parte ora patrocinados ora apoiado pelos Estados Unidos, com o objetivo de manter a região sob sua área de influência em um mundo dividido entre o comunismo soviético e o capitalismo liberal estadunidense. Arte e política, enquanto matrizes de pensamento, não se separam, e por isso é importante marcar o período, suas críticas na década de 1980, com o fim da Guerra Fria, e sua substituição por regimes democráticos nos anos de 1990. Cildo Meireles Imagine uma sala, como um cubo branco. Deve ter entre 25 e 30m2. O chão está forrado com lixas pretas bem ásperas. No centro, uma grande pilha de caixas de fósforo forma um grande cubo, da altura de um homem adulto. Ao redor, pendurado por fios, de forma a não tocar nas paredes, há espelhos retangulares. E protegendo as caixas de fósforos, cinco homens, com pose de seguranças, usam óculos escuros. Eles estão entre você e as caixas. Você se olha no espelho e se vê incluído na cena. Esta descrição se refere à obra Sermão da montanha: Fiat Lux, de 1979. Sermão da Montanha: Fiat Lux, Cildo Meireles, 1979. Este trabalho ficou na galeria do Centro Cultural apenas por 24hs. Instalação porque refaz o espaço e trabalha a percepção do espaço de modo bem radical. Performance porque conta com a participação de pessoas, os seguranças, e por ser efêmera. Há uma latente violência em Sermão da montanha, o perigo existe potencialmente nos próprios materiais, uma vez que as caixas de fosforo e as lixas eram reais. Uma faísca poderia provocar um desastre. Isso era percebido pelo espectador diante da situação construída “psicologicamente quando se entra em contato com o perigo, os sentidos se tornam mais alertas: não se vê apenas, mas sente-se, raciocina-se com maior intensidade”. (MEIRELES, Cildo. 2000, p.35) Lixas pretas bem ásperas. Fósforos formando um grande cubo. Cinco homens com pose de seguranças. Tratava-se de uma provocação transgressora. Na concepção mais tradicional de arte, as obras devem ser belas, e não causar medo. A obra, além disso, tinha um conteúdo político, porque é de 1979, ocasião em que os resquícios do AI -5 mantinham firmes o processo de censura. A supressão de direitos básicos, como habeas corpus, e livre defesa, além dos registros de tortura e desaparecimentos, criam um clima de medo em alguns artistas, funcionavam mais do que muitas vezes a ação efetiva, uma vez que em 1979 já era o momento de distensão e mudanças da linha de governo. Este clima permite a obra, mas também questiona o próprio estatuto do objeto artístico. A proposta quebra a expectativa do visitante, e o tira de seu conforto. Um espaço de re�exão que inclui o visitante diretamente no problema. Cildo investiga os conceitos e significados atribuídos aos objetos e materiais para além do óbvio: (...) Eu gostaria sim, de falar sobre uma região que não consta nos mapas oficiais, e que se chama Cruzeiro do Sul. Seus habitantes jamais a dividiram. Porém vieram outros, e a dividiram com uma finalidade. A divisão continua até hoje. (...) Quero algum dia que cada trabalho seja visto não como um objeto de elucubrações esterilizadas, mas como marcos, como recordações e evocações de conquistas reais e visíveis. E que quando ouvirem a História deste oeste estejam ouvindo lendas e fábulas e alegorias fantásticas. Porque o povo cuja História são lendas e fábulas é um povo feliz. (MEIRELLES, 1999, p. 106) A afirmação acima é parte do texto que acompanha a apresentação do trabalho Cruzeiro do Sul (1970) no catálogo da exposição Information. O trabalho é um cubo de madeira de 1 x 1 x 1 cm, metade feita de pinho, metade de carvalho, que cabe na ponta do dedo indicador. Mas segundo o projeto do artista a situação ideal para sua exposição é colocá-lo em um espaço de 200 m2. Por que algo tão pequeno em um espaço tão grande? Há uma investigação espacial em andamento com essa relação entre o pequeno, tão pequeno que pode passar desapercebido. O cubo é colocado direto no chão, de forma que um visitante desatento pode tropeçar nele. Por isso, na maior parte das vezes, a solução expográfica consiste em dirigir um forte feixe de luz sobre a peça. Cruzeiro do Sul, Cildo Meireles, 1970. Para o crítico paulista de arte Agnaldo Farias: “[...] além do fabrico de uma vasta área vazia, um volume que inspecionamos parcimoniosamente em busca de alguma coisa semelhante a uma obra de arte, o fato é que as duas lascas de madeira, pinho e carvalho, postas em contato íntimo, aludem à técnica ancestral mediante a qual os índios Tupi, também eles dizimados pelo avanço dos conquistadores brancos, produziam o fogo.” Lascas de pinho. Fogo. Lascas de carvalho. E ele continua: Lembre-se que não se tratava simplesmente da produção de um elemento: o fogo era uma substância sagrada e, consequentemente, a fricção entre os dois materiais era um ritual através do qual invocava-se a própria divindade. Portanto, mais do que um fato formal, o cubo em questão evoca uma epifania, um pórtico por onde irrompe um espaço de outra ordem, mitológico, da mesma ordem das estrelas, da constelação que dá o título ao trabalho e que era adorada pelas antigas nações indígenas desaparecidas, massacradas pelos conquistadores europeus. (Cildo Meireles: o lugar do artista, da obra, do público. In: JAREMTCHUK, Daria. RUFINONI, Priscila. Arte e Política: Situações. São Paulo: Alameda, 2010) Ao evocar o genocídio indígena, este pequeno cubo pode ser entendido como um trabalho tão político quanto Inserções em circuitos ideológicos, ambos falam de colonização e barbárie. Cruzeiro do Sul explora o espaço e sua natureza intersubjetiva, porque explora os sistemas simbólicos de criação do espaço, seja o sistema simbólico da arte, do mito, da ideologia, da política etc. O curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff pensa este pequeno cubo “como um emblema da condição moderna” (MEIRELES, 1999, p. 39) em sua capacidade de armazenar energia que poderá gerar fogo, consumindo o espaço em torno. Costumamos pensar o monumento como algo grande e celebratório, no geral, instalado no espaço urbano. O monumento representa um momento glorioso da história de um lugar, muitas vezes encarnado em um personagem político importante, um herói. Este monumento marca no tecido urbano um momento histórico agregador de uma narrativa histórica coerente. Podemos pensar o Cruzeiro do Sul como um antimonumento: não estáinstalado de forma perene no espaço, só existe como tal quando encontra um lugar e instaura um “espaço imantando”, para usar a expressão de Lygia Pape. O espectador que adentra este "espaço imantando" irá procurar por ele e irá encontrar um referencial espacial mínimo, e a escala de sua percepção. É antimonumento porque não define um momento profícuo da nossa história, mas um genocídio. E não é um monumento fúnebre porque não testemunha ou lamenta a morte como fim, mas talvez como semente, de um incêndio causado pela liberação da potência de energia do que pode retornar. Nós, brasileiros, somos não europeus, mas herdamos uma visão eurocêntrica. Assim, a maior parte de nós, em especial a população dos centros urbanos, sofre da mesma cegueira positivista. Não conhecemos e invisibilizamos a cultura indígena. Embora não precisemos para isso sermos cruéis com os povos da floresta, basta apoiar políticas públicas que estejam construídas por perspectivas colonizadoras, até mesmo a omissão basta. Dentro dessa argumentação, somos parte do problema. A forma indagadora de todas as perspectivas de atuação dos códigos simbólicos da obra de arte tende a fazer com que a obra de Cildo Meireles seja vista como arte conceitual. Por que é antimonumento? Os títulos dos trabalhos do artista são parte integrante, são chaves de entendimento, eles abrem os campos simbólicos. Em seus trabalhos há necessidade de reflexão crítica, assim poderemos ser um pouco garimpeiros também. Os artistas que veremos a seguir, de uma geração posterior, da geração de 1980 exploram também diferentes campos simbólicos para incluir o espectador em discussões essenciais à nossa experiência de mundo. Carlito Carvalhosa – A soma dos dias O que é o espaço? Como definir o espaço? Quais são as características e elementos do espaço captados pela percepção? Se a instalação manipula e constrói espaço, vamos nos deter um pouco sobre o espaço como matéria do trabalho. A Geografia trabalha com a descrição do espaço. Então, vamos buscar a ajuda de Milton Santos, geógrafo brasileiro, para nos ajudar na resposta às perguntas levantadas. Segundo ele “o espaço não é nem uma coisa nem um sistema de coisas, senão uma realidade relacional: coisas e relações juntas” (2008, p. 27). Quais coisas e quais relações? O mesmo autor observa que: O espaço deve ser considerado como um conjunto indissociável, de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche e anima, ou seja, a sociedade em movimento. O conteúdo (da sociedade) não é independente da forma (objetos geográficos), e cada forma encerra uma fração do conteúdo. (SANTOS, 2008, p. 28.) Sem a vida que preenche e anima não há espaço. Os objetos geográficos, a configuração territorial e material não se tornam espaço sem as ações humanas. Relações sociais são capazes de alterar a configuração territorial, os próprios objetos geográficos, que para os geógrafos “são tudo o que existe na Terra” (2009, p. 72). O foco de nossa pesquisa é sem dúvida a animação do espaço, como nos utilizamos dele. O espaço é uma realidade relacional, é �uído. Não há um espaço neutro, sem história. O espaço pode ser entendido como uma maneira de interpretar o mundo. Assim, se falamos de espaço como conceito, como um conjunto de princípios, na realidade só encontraremos concretamente espaços, no plural. Os espaços são construções a partir de relações entre indivíduos, existindo nessa relação um duplo movimento, construímos o espaço de acordo com nossas necessidades ao mesmo tempo em que o espaço pode determinar nossas necessidades com o passar do tempo. A cultura e os sistemas simbólicos são fundamentais na identi�cação de espaços na medida em que são mediadores das relações. Cada cultura em cada época constrói tipos de espaços diferentes. Tanto nas casas quanto nas cidades os tempos se sobrepõem para criar o espaço. Em uma sala de uma casa qualquer pode haver um sofá novinho junto a um banquinho herdado da avó. Hieróglifos egípcios, um dos símbolos da cultura egípcia. Nas cidades estão ali os marcos históricos, talvez o prédio da prefeitura e, na sua frente, um ponto de ônibus novinho. Herdamos e construímos espaço, seja em grande, seja em pequena escala. Todos os exemplos de instalação que examinamos tomam para si o entorno, o tempo, a memória, porque trabalham na relação entre o corpo e o ambiente. O corpo elabora o espaço por meio da percepção. Perceber é se envolver. A percepção visual não está isolada. O olho ocupa um corpo, este corpo se utiliza de muitos sentidos. E cada corpo tem uma história. Cada corpo é uma pessoa. Cada pessoa ocupa um lugar, um espaço. O designer, o artista e o artesão se esforçam para envolver o corpo dos usuários para construir espaços e significados. Assim, se um sofá é bonito e confortável toda a nossa relação com o ambiente fica mais amistosa, nos sentimos acolhidos. A relação forma e função é muito importante na arte também. Se o artista quer chamar atenção para um determinado conteúdo, em um determinado lugar, precisa lidar com a limitações impostas pelas circunstâncias. Se ele precisa colocar seu trabalho na rua, deve pensar em como se destacar de toda o ruído visual para chamar a atenção. Ver e ser visto: somos seres que observam ao mesmo tempo em que somos observados. Neste movimento nos comunicamos. E nos comunicamos utilizando o nosso olhar atento sobre a matéria. O artista Carlito Carvalhosa (1966-2021) fez uma instalação para a Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2010, em que podemos perceber como o espaço é criado provocando uma relação entre corpos e edifício. Conforme consta no site da Pinacoteca: O trabalho é composto por fitas de alumínio que sustentam grandes pedaços de tecidos (14 x 14m) e que envolvem todo o espaço central do Museu. Para completar, alunos da Escola de Música de São Paulo – Tom Jobim executarão obras do compositor americano Phillip Glass realizadas entre 1969 e 2009. (...) o Projeto Octógono Arte Contemporânea. O título da obra, A soma dos dias, faz referência aos sons que serão captados e reproduzidos diariamente por alto falantes instalados no espaço. Segundo Ivo Mesquita, “O projeto de Carvalhosa cria um labirinto branco e perturbador, que oferece uma experiência de opacidade e quase cegueira, ao mesmo tempo em que envolve o espectador pelo som, que discretamente reverbera pelas paredes no interior do museu. Visão e audição são os sentidos postos em questão ou ativados pelo trabalho”. (PINACOTECA, 2021) O Octógono é um espaço central da Pinacoteca. A instalação foi pensada para ocupá-lo. O prédio da instituição foi construído no século XIX, inaugurado em 1900. O projeto é de Ramos de Azevedo. Retrato de Ramos de Azevedo, Oscar Pereira da Silva. Curiosidade O prédio nunca foi terminado conforme seu projeto, nunca recebeu acabamento externo e nem a cúpula central, que deveria coroar justamente o espaço central onde hoje está o octógono. O prédio abrigava o Liceu de Artes e Ofícios e, cinco anos após sua inauguração, passa a abrigar também a Galeria de Pintura do Estado, na época com apenas 26 telas. É uma história bastante interessante. Em 1932, o acervo precisou sair dali porque o prédio foi requisitado na Revolução Constitucionalista, só voltando em 1947. Em 1989, o prédio passa a pertencer integralmente à Pinacoteca. Em 1994, são iniciadas as obras de restauro com projeto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha e ela é reinaugurada. À sua volta há um jardim, um parque e, ao seu lado, a estação da Luz, que foi durante mutito tempo a estação de trem mais importante da cidade. O bairro no entorno é chamado de Bom Retiro, um bairro de imigrantes, formado primeiramente pelos imigrantes judeus vindos da Europa, que ajudaram a criar o mercado de tecidos e roupas tão característico da região. Projeto de Ramos de Azevedo e Domiziano Rossi para o Liceu de Artes e Ofícios (1896), cujo edifício abrigou a Pinacotecaem dois períodos: meados da década de 1910-1932, e 1947-presente. Pinacoteca do Estado de São Paulo nos dias atuais. Se estamos examinando uma instalação produzida para uma circunstância espacial específica, é interessante pensar que lugar é esse onde a instalação é montada, porque o espaço é relacional, como vimos em Milton Santos. Especialmente porque não temos a percepção do espaço, falamos de uma obra que não estamos vendo, que nem existe mais. Se fôssemos de corpo presente visitar a exposição, muito do que eu descrevi seria visível materialmente. Poderíamos perceber as pessoas nas ruas, com diversos sotaques, perceber os diversos tipos de culinária convivendo no mesmo quarteirão. Os tijolos da fachada nos receberiam, e poderíamos concluir com facilidade a idade da construção. Carlito Carvalhosa era um artista paulista e estava muito familiarizado com essa paisagem. Carlito Carvalhosa. Carlito instala toda uma rede de relações por meio da matéria no espaço do Octógono para quem sabe definir a natureza daquele ponto naquele momento (o espectador). Uma natureza que existia potencialmente, porém só percebida quando da realização do projeto. Um labirinto de tecido branco que provoca uma sensação de névoa. Sua forma espiralada e a dimensão fazem com o que o corpo do sujeito se perca ali. Fora dos dias em que aconteciam as apresentações, ouvia-se as gravações dos barulhos captados no próprio local. Ou seja, dias se acumulam no registro sonoro. O último dia da instalação continha todos os ruídos captados durante a exposição, totalmente sobrepostos. O trabalho estimula a percepção dos participantes de muitas formas, considera o corpo em muitos aspectos, e registra a presença desse participante para transmiti-la aos outros, formando uma espécie de sambaqui sonoro. O Labirinto Sinta a sensação de estar dentro do labirinto. Soma dos dias foi uma instalação que distendeu e comprimiu o tempo, agindo no coração do edifício da Pinacoteca. Todo o museu tem a capacidade para suspender o tempo, a princípio por tirar os objetos de seus usos comuns, colocá-los em um cubo branco, até mesmo em uma vitrine, e preservá-los. Aqui o objeto obra é efêmero, não pode ser preservado, e nem está contido em uma vitrine: ele deve ser vivido enquanto produz tempo e espaço. A produção só acontece com a participação do espectador, é nele que a produção acontece tanto quanto no espaço. Exposição Soma dos dias (2011), Museu de Arte Moderna (MoMA). Desde os anos 1970 podemos notar que os artistas trabalham em diversos meios, com diversas linguagens, explorando sentidos intrínsecos à matéria ou atribuído junto ao espectador significados inusitados a certas situações. Nos anos 1980, a década da abertura política no Brasil, da volta da democracia, e também a década que vê o fim da Guerra Fria com a queda do muro de Berlim em 1989, o movimento das Diretas já, uma nova geração vê surgir a possibilidade de uma arte mais otimista, hedonista e festiva. Vimos surgir um retorno à pintura com a chamada geração 80. A volta a pintura não era apenas um movimento nacional. A curadora da 18ª Bienal de São Paulo, Sheila Leiner, pauta boa parte da exposição de 1985 justamente nesse retorno ao pictórico, reunindo a produção de artistas jovens do mundo todo. Ela cria três corredores que somavam 100 metros de extensão, exibindo as pinturas de grande formato com pouca distância umas das outras. Visitantes percorrem o corredor da 'Grande Tela' durante a 18ª Bienal, Exposição Especial Expressionismo no Brasil - Heranças e Afinidades. Vimos surgir um retorno à pintura com a chamada geração 80. A volta a pintura não era apenas um movimento nacional. A curadora da 18ª Bienal de São Paulo, Sheila Leiner, pauta boa parte da exposição de 1985 justamente nesse retorno ao pictórico, reunindo a produção de artistas jovens do mundo todo. Ela cria três corredores que somavam 100 metros de extensão, exibindo as pinturas de grande formato com pouca distância umas das outras. Esse arranjo fazia com que a autoria das obras se confundisse, afirmando a tese central da curadora de que esse retorno à pintura seria um movimento jovem, globalizado, experimental e rebelde, já que as pinturas traziam referência expressionistas, mas também do grafite. Essa produção também foi chamada de bad painting, ou pintura ruim, malfeita, porque a maioria desses jovens não se atentava à técnica, pintava com as tintas que tinha à mão, o que, muitas vezes, dava ao trabalho um aspecto mal feito: pedaços da pintura até mesmo se desprendiam do suporte. Essa é a geração de Carlito Carvalhosa e de Nuno Ramos, que com Paulo Monteiro, Rodrigo Andrade e Fábio Miguez compunham o grupo Casa 7. Não era um coletivo de arte, mas estes artistas paulistas dividiam um mesmo espaço de ateliê e as mesmas ideias sobre pintura. Todos eles, com pouco mais de 20 anos, participaram da 18ª Bienal. Estes artistas iniciaram suas carreiras trabalhando primariamente com pintura, mas depois do grupo desfeito, ainda em 1985 passaram a experimentar outras linguagens, sem deixar de abandonar valores pictóricos. Nuno Ramos – 111 Nuno iniciou seus estudos em Filosofia na USP, no início dos anos 1980. Ainda na universidade organizou publicações e publicou textos próprios. Ele transita entre a literatura e as artes visuais, de modo a complementá-las. Com vários livros publicados entre contos, ensaios e crônicas, seu último título foi Verifique se o mesmo... (2019), que reúne uma série de textos sobre política, arte e sociedade. Vaso Ruim, Nuno Ramos, 1999. A partir de um fato corriqueiro, um letreiro comum, Nuno tece uma rede complexa de relações, recorrendo a culturas pop e digital, e à política, para falar de um desconforto que o toma. Desde a década de 1980 o artista explora diferentes materiais na pintura, aderindo à tela tecidos usados, pedaços de pneu, cimento, telas de metal e o que for preciso para criar uma visualidade composta com resíduos urbanos. A materialidade do mundo pode vir carregada de feiura e violência, de excremento e dor, de gritos e de morte. Quando se faz necessário o artista não se furta de explorar essas matérias. No dia 02 de outubro de 1992 ocorreu um evento traumático para o Estado de São Paulo, o massacre do Carandiru. Evento complexo, que levou 111 presos à morte após a PM ter invadido o presídio para acabar com uma rebelião. A maior parte destes mortos era muito jovem, havia sido julgada ou estava à espera de julgamento por crimes pequenos e não violentos, e foi executada à queima-roupa. Massacre do Carandiru Há outros detalhes cruéis desta invasão que podem ser mais bem explorados no livro Estação Carandiru, de Dráuzio Varella. Como médico do presídio, ele conhecia alguns dos mortos e reuniu relatos dos sobreviventes. O livro serviu de base para o roteiro do filme Carandiru, de Hector Babenco. Temos uma ideia clara do impacto que o evento teve na percepção da violência por parte da sociedade pelos produtos culturais que citam o ocorrido. Além desses dois citados, temos músicas (“Diário de um detento”, dos Detentos mostram panos sujos de sangue após o massacre, em outubro de 1992. Nas artes visuais, em 1993, Nuno apresenta na Bienal de São Paulo sua instalação 111, cuja proposta foi relacionar os episódios trágicos com outros elementos plásticos (materiais como folhas de ouro, barro e cinzas, além de bulbos de vidro soprado), criando um clima de um anticlímax em sua obra de comoção, o cotidiano e o doloroso lado a lado. É notável na obra de Ramos sua dimensão repleta de rastros que insinuam certo mal-estar ― ou mesmo a impossibilidade ― “de produzir um discurso linear ou representação objetiva do trauma coletivo. O conteúdo do massacre surge como que por brechas, sempre intermediado e de maneira tangencial: os nomes, inscritos em matriz de linotipia” (RODRIGUES, 2020, p. 67-69). 111, Nuno Ramos, 1992. Havia no espaço 111 paralelepípedos, em cima de cada manchete de jornal, um recorte do jornalmesmo, embebido em parafina líquida. Eram muitas informações materiais diferentes, tornando impossível a criação de algum tipo de coerência narrativa. Não se tratava de discutir a culpa de uns ou de outros, mas de criar um marco para uma perda. Um marco que indicava a barbárie que causaria a morte de 111 indivíduos. Priscila Rossinetti Rufinoni nos traz uma interessante análise das escolhas de Ramos em 111: Ramos não se valeu de imagens fotográficas, muito embora elas tenham proliferado à exaustão, como grandes cenas de Pogroms, em todos os jornais. Nuno Ramos, entretanto, escolhe dar a seu trabalho um tom monumental, entre arcaico e rústico, a partir de matérias brutas como breu, vaselina, ouro, fumaça. O título é apenas o número, signo vazio da contagem dos mortos. Podemos pensar que, como sugere Theodor Adorno, esse formalismo distanciado, mítico, concede ao monumento um caráter pétreo, egípcio. Aquele formalismo egípcio da arte autônoma, remetida a si mesma em sua estrutura, para que desse interior pudesse explicitar sua historicidade tensa. Não à toa, às estruturas rudes e horizontais que demarcam uma espécie de via, Nuno Ramos dá o nome de múmias, múmia de barro, de cinza, de ouro. No meio do caminho, outro arco metálico vertical cruzado na horizontal (cruz) carrega os nomes gravados em linotipia. Uma pequena individualização mínima, diante dos fragmentos e dos paralelepípedos que se põem, cada um no seu espaço, como matéria informe, inominada, bruta. Os nomes, gravados em linotipo, estão na verdade em negativo, em estado de potência, não chegam a se materializar como letras impressas. Não há face humana, o jornal como a palavra, calcinados, aniquilam-se. (RUFINONI, 2016, p. 306-307) As fotos aéreas criavam um contexto, eram um mapa para o local do acontecido, o jornal dava a descrição do fato, os nomes em parafina identificavam as vítimas, os paralelepípedos eram substitutos dos corpos, a fumaça, o cheiro de incêndio, morte da qual fomos poupados. Rufinoni, em seu texto, elabora as opções dos materiais da obra como opção por criar uma atmosfera de desconforto carregada de vestígios, mas que nunca fecha uma história. Os materiais que não constroem propriamente uma forma fechada, como se esperaria de um monumento, em seus estados informes, pense na fumaça, são mais um testemunho de fracasso. 111, Nuno Ramos, 1992. Rufinoni, em seu texto, elabora as opções dos materiais da obra como opção por criar uma atmosfera de desconforto carregada de vestígios, mas que nunca fecha uma história. Os materiais que não constroem propriamente uma forma fechada, como se esperaria de um monumento, em seus estados informes, pense na fumaça, são mais um testemunho de fracasso. Fracasso de todo um projeto civilizatório. Nuno Ramos diz que não quer discutir as tecnicidades do jurídico, não era essa sua proposta, já que condenar ou não os pequenos agentes nada significa para as vítimas, mas sim nomear cada um uma última vez, para o céu, ou para além dessa ordenação humana que, no Brasil, nunca se concluiu de todo como norma. (RUFINONI, 2016, p. 308) Ainda que a obra levante essa discussão, o que ela propõe é um olhar sobre o mal, sobre seu fascínio, e mesmo sobre o mal em nós mesmos, que somos parte da população brasileira, que escolhemos os nossos representantes, nós, que damos autoridade ao estado. O valor da vida humana entra no juízo de valor em destaque nas obras quando encontramos os nomes dos detentos assassinados. Comentário Para além das culpas individuais, a perda de humanidade de quem perpetra o crime e de quem tem sua humanidade subtraída por ser vítima, o Estado era responsável tanto pelas vidas dos policiais quanto dos detentos. Em 2016 a condenação dos policiais envolvidos foi anulada após uma apelação e seguiu em juízo. Em reposta Nuno faz um desdobramento da proposta de uma forma coletiva e ainda mais pública. Para 111 Vigília Canto Leitura o artista reuniu 24 pessoas, entre artistas, professores, músicos, estudantes, e pediu que cada um lesse os nomes dos 111 detentos executados em uma transmissão ininterrupta que foi ao ar pelo Facebook e que também foi veiculada pela TV Cultura. Entre os leitores estavam o diretor de teatro Zé Celso Martinez Corrêa, o músico Paulo Miklos, a cantora Rita Cadillac, a cartunista Laerte, o escritor Ferrez, entre outros. Cada um deles foi filmado tendo como pano de fundo a cidade de São Paulo, pois a transmissão era feita a partir de um apartamento alto no centro da cidade, e todos tiveram liberdade para ler da forma que quisessem os nomes dos falecidos. Zé Celso Martinez Corrêa Paulo Miklos Laerte Instalação no Brasil: novas questões Vamos ver um pouco de visões de instalação na prática? Será que temos forma s de marcar forças, que a natureza pode ser uma questão crítica? Vem que eu te explico! Os vídeos a seguir abordam os assuntos mais relevantes do conteúdo que você acabou de estudar. Módulo 2 - Vem que eu te explico! Cildo Meirelles Módulo 2 - Vem que eu te explico! Grupo da Casa 7 Falta pouco para atingir seus objetivos. Vamos praticar alguns conceitos? Questão 1 Vivemos uma transição social e política entre os anos de 1970 e 2000. Saímos de um período de Ditadura Civil Militar, de Guerra Fria, da televisão e do rádio, para um mundo de democracia, denúncias, liberdade de expressão, consumo de “enlatados” de várias formas. A instalação brasileira de alguma forma acompanhou esse movimento. Observando a obra de Cildo Meirelles nesse viés podemos perceber que: A Sendo um jovem nos anos 1970, e um dos artistas mais maduros nos anos de 1990 e 2000, a obra de Cildo Meirelles mostra que os debates nacionais não mudaram nada ao longo do tempo. B No ano de 1979 seu olhar provocador para arte conceitual mostrava que a arte deveria ser bucólica, paisagísticas, mas que efetivamente podia ofertar um respiro aos tempos sombrios. C Quando nos anos 1990 seu debate passa a ser por outras críticas, como o reconhecimento das tradições complexas de nossa história, a crítica à cultura europeia como valor único civilizacional, Cildo Meirelles tornou-se um crítico fervoroso dos governos daquele momento. D Como ícone da instalação brasileira, sua defesa era da monumentalização das cidades e o reconhecimento do valor da arte brasileira. E Tendo passado por embates diferentes, a obra de Cildo mostra que o artista precisa se manter ativo em promover os debates, e suas obras fossem na ditadura ou nas questões indígenas, sempre buscaram esse papel. Parabéns! A alternativa E está correta. Cildo é um ponto de transição entre a primeira expansão e debates no campo da instalação no Brasil e a nova geração em caminhos do século XXI. Nesse sentido, ter vivido o peso da censura e o valor de uma democracia permite novas denúncias, e o autor não trai seu perfil. Questão 2 A redemocratização nos anos de 1980 teve um tom de otimismo e apontava um retorno a certo academicismo, com a revalorização da pintura. No entanto, artistas como Carlito Carvalhosa e Nuno Ramos, e o grupo que eles representavam, diante desse movimento mantiveram um olhar peculiar e importante para a instalação de arte no Brasil. Este fator deveu-se: A A certo hedonismo e valorização do otimismo de que o pior tinha passado. B A um tom academicista de retorno à arte clássica e representativa do Brasil. C À busca de valorizações artísticas nacionais puras, com valorização de aspectos indígenas e negros. D À proposição política de uma arte engajada e que levasse o povo à libertação e à nova Revolução. E À busca da relação com o público na composição e construção da arte, mesmo na pintura, mantendo a visão que marca a instalação brasileira e sua perspectiva conceitual. Parabéns! A alternativa E está correta. O grupo da Casa 7 apontava para uma nova turma de artistas em São Paulo que marcava uma desconfiança do retorno ao academicismo e à pintura. A instalação de Carlito Carvalhosa, o papel dedicado ao público, a obra que temsom, tem forma, tem um resultado direto da ação física dos sujeitos é a essência de sua construção. 3 - Decolonial e instalação Ao �nal deste módulo, você será capaz de associar o uso da prática da instalação pelos artistas contemporâneos e pela perspectiva histórica decolonial. Conceito de decolonialidade A partir dos anos 1990, passou a circular no meio acadêmico reflexões cada vez mais aprofundadas sobre a repercussão que o colonialismo Europeu exerceu no Novo Mundo, não só do ponto de vista econômico, social e histórico, mas também considerando uma produção de subjetividade que se dava como subalterna àquela do colonizador, tendo sido considerada pelo projeto moderno como exótica ou primitiva, sendo sempre “o outro” da história moderna. O pós-modernismo trouxe re�exões sobre as histórias pré-coloniais e coloniais que haviam sido invisibilizadas da história o�cial. Os estudos pós-coloniais passaram a buscar outra epistemologia, outra estrutura de pensamento que não fosse subalterna ao pensamento moderno. Essa abordagem das ciências humanas é iniciada por diversos pensadores, mas em especial pelo sociólogo peruano Anibal Quijano, pelo intelectual palestino Edward Said, e pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos. Anibal Qu�ano Edward Said Boaventura de Souza Santos Eles abordam o tecido social para identificar ali algo que geógrafos como Milton Santos e Michel de Certeau já identificavam em suas produções, que os sujeitos não resistem às narrativas homogeneizantes instituindo, em seus cotidianos, formas de produção de subjetividades não pensadas pelas regras normatizadoras de uma sociedade globalizada. Ao estudarmos a instalação no Brasil percebemos como isso se dá nos questionamentos dos artistas aqui apresentados. E a arte é uma importante forma de materialização e produção de subjetividades. Os estudos decoloniais são bastante complexos, e para entender melhor vamos conversar sobre isso com os professores Adriana Nakamuta e Rodrigo Rainha. A instalação em arte no Brasil e a decolonialidade Conceito, arte e compromisso: Rodrigo Rainha entrevista Adriana Nakamuta. É possível estudar as relações sociais levando em conta a opressão e a resistência, e usar parâmetros particulares, de culturas não ocidentais, para pensar e projetar a sociedade. Não podemos mais pensar a subjetividade de sujeitos indígenas, afro-brasileiros que conservam modos e religiões ancestrais como primitivos. A ideia de que há uma progressão cultural e social de uma sociedade dita “primitiva” para uma civilizada nos modos ocidentais é uma estrutura de pensamento colonial que coexiste hoje dentro dos interesses de um projeto civilizatório predador promovido por um sistema capitalista. Atualmente, mais e mais vozes de líderes intelectuais ou espirituais não ocidentais têm sido consideradas, como a do filósofo e ambientalista Ailton Krenak, indígena. Ailton Krenak Participou da assembleia constituinte de 1987 e tem participado como intelectual e ambientalista na resistência dos povos da floresta. No início da pandemia de Covid-19, em 2020, publicou o texto A vida não é útil, que podia ser baixado gratuitamente no site da editora Companhia das Letras, criticando o modo de vida segundo o qual não podemos parar de produzir nem que seja para salvar nossas vidas. Esses assuntos tão urgentes e relevantes estão presentes na arte, em vários artistas citados até aqui. Bené Fonteles – Ágora: Oca Tapera Terreiro Eu pergunto: o que os artistas ditos contemporâneos, principalmente europeus e norte-americanos com sua arte para consumo estético, catastrófica e sem apontar esperanças, propõem para um projeto construtivo e humanista no século XXI? (FONTELES, 2001. Manifesto Antes arte do que tarde. Consultado da internet em: 13 ago. 2021) Bené Fonteles nos coloca essa questão logo no início de seu texto. Por traz dela subjaz outra pergunta importante: A arte sozinha é capaz de nos dar esperanças? O artista escreve esse texto para afirmar a capacidade criativa dos sujeitos quando eles se responsabilizam por suas ações, buscando uma verdade intrínseca ao ato de criar que não se deixar intimidar pela opinião de um circuito artístico. Essa verdade está relacionada com uma consideração ética, de se ver em uma ligação com o mundo material e espiritual. Bené coleta objetos que encontra em suas caminhadas, como as que faz por praias; coleta objetos naturais e ferramentas de pesca que a maré traz. Estes objetos que o alumbram, o fascinam, vão se encontrando e tornando-se relíquias. Estes objetos carregados de aura são parte de um processo de transmutação. O artista, imbuído do papel de xamã, é capaz de tornar o objeto prenhe de significado em seu ato criador. Ele considera essa reunião de objetos um trabalho em andamento (work in progress), e sempre que precisa pode utilizá-los, reuni-los, sem a necessidade de chegar a um fim, a um estado pronto da obra. Trata-se de uma forma de pensar a arte que está à margem de um pensamento prevalecente na arte contemporânea, que na maior parte das vezes prioriza a narrativa conceitual em detrimento de um pensamento espiritualizado, de acordo com o qual aquilo que vemos é muito mais que a organização da matéria, é um dado sensível construído para ser uma espécie de portal para uma ancestralidade, para uma cosmologia. Pode parecer muita “viagem”, mas o artista pesquisa com seriedade religiões de matriz africana e rituais indígenas brasileiros criando ritos particulares. Atenção Não se trata também de apropriação cultural, pois seus rituais são feitos com a permissão de líderes religiosos e de xamãs, e até mesmo pedindo a permissão e a assistência de orixás. O artista torna-se meio para a manifestação de entidades. Ele pretende religar as pessoas a valores espirituais transcendentes utilizando símbolos e narrativas ancestrais que são atualizados e incorporados ao agora. Vejamos apresentação que a página da 32ª Bienal faz da obra do artista: Marcada pela esfera ritualística, a criação de Bené Fonteles abarca instalações, esculturas e manifestos em profundo diálogo com questões ambientais, saberes populares e o desejo de fundir o “ser brasileiro” e o “ser universal”. Desde a década de 1970, Fonteles empreende projetos transdisciplinares que extrapolam as fronteiras da arte, autodenominando-se “artivista”. (32ª Bienal de São Paulo - Incerteza Viva, 14 ago. 2021) O reencantamento do mundo é a criação de sentido, e a religião muitas vezes faz isso: contextualiza nossa experiência de sofrimento, dor, alegria em um âmbito mais amplo e transcendental, nos inserindo no cosmo, na narrativa dos deuses, ou no tempo infinito. Para a 32ª Bienal de São Paulo, realizada em 2016, o artista criou a instalação Ágora: Oca Tapera Terreiro. Tratava-se mesmo de uma oca, um lugar de encontro, no qual reuniu pessoas e fez rituais. Ágora: OcaTaperaTerreiro, Bené Fonteneles, 2016. A instalação era composta por uma estrutura de pau-a-pique e telhado de palha. Dentro tínhamos um grande salão. Em seu centro, um círculo de terra e farinha de mandioca de Bragança. Bancos e cadeiras estavam voltados para o círculo. E rodeando tudo, nas paredes, tínhamos 250 objetos trazidos da casa do artista. Tinha fotos do Roberto Carlos, Buda, livros, cestaria, e muitas peças indígenas. Estrutura de pau-a-pique e telhado de palha. Círculo de terra e farinha de mandioca. Alguns dos objetos trazidos de casa. O artista propunha o choque entre estes convívios, isto é, aos objetos e às fotos que constam na descrição da obra. Convidou outros artistas e pensadores para participar da obra. Convidou Ailton Krenak para pintar as colunas e fazer um ritual ali. Bené, “artivista”, foi um dos responsáveis pela criação do Parque Nacional dos Guimarães. Sua proposta buscou ligar este terreno urbano moderno a suas raízes soterradas pelo concreto. Ele quer tornar presente o apagamento daquilo que é ancestral. A instalação estava inserida no contexto da 32ª Bienalde São Paulo, que tinha o título de Incerteza Viva. No catálogo da mostra está publicado o texto “A incerteza entre o medo e a esperança”, do sociólogo Boaventura de Sousa Santos. O sociólogo descreve a nossa sociedade entre o medo e a esperança. E nesta sociedade, segundo Boaventura, são muitas as nossas incertezas: do conhecimento, da democracia, da natureza, da dignidade. Alguns dos causadores de nossas incertezas são: pandemia, aquecimento global, ascensão de governos autoritários e concentração de riqueza. Não se trata de desacreditar a ciência ou a tecnologia e bani-la de nosso horizonte. O autor aponta que a esperança moderna no projeto civilizatório tecnocrata, em sua expectativa de construir um mundo melhor por meio dos avanços tecnológicos eurocêntricos, portanto de autoridade colonial, considera qualquer outra forma de conhecimento inferior, a ponto de exterminá-la. A crise ambiental e o aquecimento global são, em parte, resultado dessa cultura que oprime, por exemplo, as culturas e as tecnologias ancestrais dos povos indígenas. É preciso escuta! Bêne nos lembra, em sua instalação, da coexistência em nós mesmos daquilo que é ancestral e daquilo que é novo. O tempo não é linear na visão dele, e mesmo na de muitos cientistas. O espaço da arte pode nos fazer refletir sobre isso, e pode trazer visibilidade para o que o sociólogo chama de “maiorias sem poder”. Segundo ele, “a luta terá mais êxito, e a revolta, mais adeptos, na medida em que mais e mais gente for se dando conta de que o destino sem esperança das maiorias sem poder é causado pela esperança sem medo das minorias com poder” (2001, p. 45). Rosana Paulino – Tecelãs O objetivo desta tese é construir, através de trabalhos realizados na área de poéticas visuais, uma reflexão que procure compreender como a mulher negra é vista na sociedade brasileira atual e o modo pelo qual as sombras lançadas pela escravidão sobre esta população se refletem nas negrodescendentes ainda hoje, criando e perpetuando locais simbólicos e sociais para este grupo. (PAULINO, 2011, p. 4) O texto acima é o resumo que apresenta a tese da artista, disponível em sua página pessoal. Tal qual Ligia Pape, citada no módulo 1, Rosana também enveredou pela academia. Hoje ela trabalha na Universidade Federal do Cariri. Na sociedade brasileira, em seu racismo estrutural, sabemos que academia e os circuitos das artes são locais com pouca presença da população negra. Assim, a artista declara seu lugar de fala, como forma de combate e resistência para afirmar seu lugar dentro de um ambiente que simbolicamente a sociedade não lhe atribui. Na sociedade brasileira, em seu racismo estrutural, sabemos que academia e os circuitos das artes são locais com pouca presença da população negra. Assim, a artista declara seu lugar de fala, como forma de combate e resistência para afirmar seu lugar dentro de um ambiente que simbolicamente a sociedade não lhe atribui. Em 2019, a artista teve sua obra apresentada na exposição individual Rosana Paulino: a costura da memória, que reuniu 140 trabalhos feitos em duas décadas, representando a produção da primeira mulher negra a ter uma exposição individual retrospectiva na Pinacoteca de São Paulo. Ao revolver o início de sua história pessoal, Rosana Paulino observa que o problema da representação dos negros traduz-se na sua quase ausência nos mais variados aspectos da vida dos brasileiros e na história, sobretudo na história das artes visuais. A artista surge no cenário artístico nos anos 1990 e se distingue, desde o início de sua prática, como voz única de sua própria geração, ao abordar de forma afiada temas socais, étnicos e de gênero. Questões perturbadoras no contexto da sociedade brasileira. (PINACOTECA, acesso em 15 ago. 2021) Rosana se vale do espaço da arte para discutir apagamentos e alienações. Ainda durante a sua formação, em 1994, a artista iniciou o trabalho Parede da Memória, que consiste em 1500 imagens costuradas como pequenas almofadinhas, pequenos patuás, presos de forma regular na parede. As imagens usadas partem de 11 fotos da família da artista que ela reproduz no tecido, colore e costura à mão. A costura e o bordado foram aprendidos com a mãe. Parede da memória (Wall of Memory), Rosana Paulino, 1994/2015. O ponto de partida deste trabalho e de alguns outros são vivencias pessoais, memórias familiares, mas por meio dessa repetição e da escala do trabalho as imagens são retiradas de um espaço introspectivo e familiar para um espaço público onde há espaço para a construção de uma memória coletiva. Os rostos daquelas pessoas nos encaram e nos perguntamos sobre elas ― Quem foram? Como viveram? ―, nos lembramos de nossos próprios parentes, de nossa relação com os antepassados. Zoom de Parede da memória (Wall of Memory), Rosana Paulino, 1994/2015. Vamos conhecer um pouco mais de sua história: A vida e a obra de Rosana Paulino Assista ao vídeo para conhecer mais sobre Rosana Paulino. Enquanto pertenceu à artista as imagens foram se perdendo, outras foram acrescentadas, em um movimento análogo ao da nossa memória. O patuá, um amuleto, normalmente usado para proteger, aqui embora proteja a permanência de uma memória pela sua materialização ele, também é protegido pela artista que o mantém, e agora pela Pinacoteca que assume o trabalho de guardiã da memória. A artista trabalha bastante com as linguagens gráficas, gravura, desenho, aquarela e une essas linguagens em construções maiores, em instalações como Parede da memória. Um assunto recorrente na obra da artista é a resistência, a resiliência, a capacidade de depois da queda se levantar. Tecelãs, Rosana Paulino, 2003. Tecelãs (2003) é o nome dado a uma série de desenhos e a uma instalação. Os desenhos, grafites e aquarela nos apresentam a um corpo de mulher construído por linhas fortes e delicadas, às vezes até trêmulas. Essas linhas saem de dentro do corpo para amarrar a mulher contendo os gestos. Não são desenhos naturalistas, são fruto de uma representação própria sem preocupação com ser fiel a p ç p p p p ç um belo corpo. O desenho aqui é fiel a um universo simbólico investigativo que se revolve para entender este corpo e suas dores. O sexo exposto parece deixar o corpo mais frágil do que sensual. São muitas as divagações sobre estes corpos. Na instalação de mesmo nome ela reúne cerca de 100 esculturas de terracota entre pequenos bustos e formas que parecem casulos vazios, não muito maiores que as palmas da mão. Nas bases dos bustos estão enroladas linhas de algodão que parecem sair da boca das figuras. A aparência é de criaturas amorfas, em processo de metamorfose, lembrando larvas ou pulpas. Segundo a artista, em entrevista à revista TPM, “são analogias das mulheres com os insetos, algo que já aparece em diversas mitologias. Na obra, a mulher tira de dentro de si os fios com que ela faz seu casulo ― se reconstrói, morre e renasce.” (ANIC, L. C. In: Revista TPM, 2018) Tecelãs, Rosana Paulino, 2003. Comentário Ela assume a complexidade de seu lugar de fala, sem criar hierarquias. E busca nos tornar atentos para as formas de representação. Estas questões ainda se mostram pertinentes em uma estrutura em que o machismo e o racismo estrutural levavam a crimes cometidos cotidianamente, são feminicídios, assédios, manutenção de trabalho doméstico similar à escravidão, ofensas racistas, prisões arbitrárias de jovens negros, e mesmo a morte de pessoas negras culpabilizadas pela polícia ou vítimas inocentes de “balas perdidas”, como no caso de Kathlen Romeu morta em uma operação policial na comunidade Lins de Vasconcelos, onde tinha ido visitar a vó. Assim como a atriz Taís Araújo, as jornalistas Maju Coutinho e Glória Maria, a biomédica Jaqueline Goes, a jogadora de futebol Marta, em seus respectivos campos ajudam toda uma sociedade a enfrentar seus tabus e fantasmas, possibilitando que jovens se identifiquem com elas. Rosana Paulino no campo acadêmico e artístico tem a mesma importância.
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