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TCC - KAMILA Maria da Silva.docx

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Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CAMPUS REITOR JOÃO DAVID FERREIRA LIMA
DEPARTAMENTO DE DIREITO
KAMILA MARIA DA SILVA
Do Semba Ao Samba - Um Exercício Do Direito Fundamental À Memória
Resistência Sociocultural dos Negros no Brasil Através dos Enredos das Escolas de Samba
Florianópolis
2021
Kamila Maria da Silva
Do Semba ao Samba - Um exercício do Direito Fundamental à Memória.
Resistência Sociocultural dos Negros no Brasil Através dos Enredos das Escolas de Samba
Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em
Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade
Federal de Santa Catarina como requisito para a
obtenção do título de Bacharel em Direito.
Orientadora: Profa. Dra. Luana Renostro Heinen
Florianópolis
2021
Ficha de identificação da obra
Silva, Kamila Maria da
Do Semba ao Samba - Um Exercício do Direito
Fundamental à Memória : Resistência Sociocultural
dos Negros no Brasil Através dos Enredos das Escolas
de Samba / Kamila Maria da Silva ; orientadora,
Luana Renostro Heinen, 2021.
78 p.
Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) -
Universidade Federal de Santa Catarina , Graduação
em Direito, Florianópolis, 2021.
Inclui referências.
1. Direito. 2. Escolas de Samba. 3. Direito à
Memória. 4. Direito Constitucional. 5. Manifestação
Negra. I. Heinen, Luana Renostro. II. Universidade
Federal de Santa Catarina. Graduação em Direito.
III. Título.
Kamila Maria da Silva
Do Semba ao Samba - Um exercício do Direito Fundamental à Memória.
Resistência Sociocultural dos Negros no Brasil Através dos Enredos das Escolas de Samba
Este Trabalho Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do Título de “Bacharel
em Direito” e aprovado em sua forma final pelo Curso de Direito.
Florianópolis, 24 de Setembro de 2021.
________________________
Prof. Luiz Henrique Urquhart Cademartori, Dr.
Coordenador do Curso
Banca Examinadora:
________________________
Profa. Luana Renostro Heinen, Dra.
Orientadora
Instituição UFSC
________________________
Mestranda PPGD Leticia Blank Netto,
Avaliadora
Instituição UFSC
________________________
Mestrando PPGD Edmo Cidade,
Avaliador
Instituição UFSC
________________________
Prof. Doutorando PPGD Rodrigo Sartoti,
Avaliador
Instituição UFSC
Dedico este trabalho aos mais velhos, que vieram antes de mim,
me mostraram o caminho e se dedicaram a transmitir seus
conhecimentos. Dedico também aos mais novos, por
continuarem a transformar e por acreditarem no poder da
transmissão. Antes de sermos corpos, somos ancestralidade.
UBUNTU.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, à minha orientadora Luana Renostro Heinen, que com
muito respeito e dedicação, mesmo vivendo um momento atípico em que nos encontramos
nesse momento, se dispôs a estar sempre presente. Obrigada por me auxiliar e aconselhar,
com muita paciência, e por me conduzir à conclusão deste trabalho.
Agradeço aos meus pais, por serem os principais incentivadores a cursar a graduação
em Direito, em especial a minha mãe Ida Maris dos Santos, uma mulher guerreira, que educou
seis filhos e o reflexo de todo seu esforço, apoio e incentivo nos estudos está no orgulho de
dizer a todos que tem cinco filhos negros cursando o nível superior. Todo o meu esforço e dos
meus irmãos é por você e pelos incansáveis dias e noites que se dedicou a nós. Ainda, destaco
aqui meu agradecimento a minha irmã mais nova, Maria Luiza, que mesmo com seus 11 anos
de idade, foi uma das principais incentivadoras para escrever as páginas desta monografia.
Minha gratidão aos meus amigos, pelas conversas leves, pelos conselhos e por serem
minhas principais referências negras e artísticas. Não poderia deixar de citar aqui dois grandes
amigos, pois esse trabalho não teria acontecido se não fosse o apoio deles desde o início.
Andria Santos, minha amiga, colega de curso, que foi também minha colega de estágio e hoje
tem a minha família como extensão da sua, sou eternamente grata ao curso de Direito por ter
conhecido você, obrigada pelas revisões e trocas. O outro agradecimento se estende ao André
Rodrigues, que é muito mais que um amigo, é um anjo que surgiu em minha vida. O título e a
inspiração do tema do trabalho de conclusão de curso é fonte das incansáveis noites que
passamos conversando sobre nós, nossas memórias, nossa ancestralidade, nosso amor à arte e
ao carnaval. Tenho muito orgulho em fazer parte do processo reconhecer a “pretitude” que
existe em nós.
Agradeço aos mestres do corpo docente, a coordenação, a direção do curso de
Direito e a Universidade Federal de Santa Catarina. A educação Pública e de qualidade
oferecida neste país, por resistir a tantas atrocidades e abandonos, graças a ela, nós negros e
negras seguimos firmes e ocupando espaços, que a poucos anos atrás seriam inimagináveis.
Encerro agradecendo a todos que direta ou indiretamente fizeram parte do meu
processo educacional e da minha formação.
“Dentro do samba eu nasci, me criei, me converti
e ninguém vai tombar a minha bandeira”
(João Nogueira e Paulo César Pinheiro)
RESUMO
O presente trabalho acadêmico versa sobre o Direito à Memória da população negra no Brasil
e como ele é exercido pelas escolas de samba através dos desfiles carnavalescos. O problema
levantado é: as escolas de samba exercitam o direito fundamental à memória através dos
enredos das escolas de samba? Para respondermos e justificarmos que sim, usamos como
sustentação fundamentos legais e históricos. Os Artigos 215 e 216 da Constituição Federal de
1988, preveem proteção legal às manifestações artísticas, exercidas pelos povos formadores
da sociedade brasileira e aos patrimônios culturais. Abordamos a história da origem das
escolas de samba, a estrutura atual e como os patrocínios e as empresas privadas interferem
e/ou suprem alguns desfiles para aferir as hipóteses levantadas pelo problema. Faremos uma
análise quantitativa e comparativa dos enredos negros das agremiações, lançados entre 1988 e
2021, para entendermos o modo de abordagem e como o cenário de cada marco cronológico
político influencia na escolha dos temas. E no fim, através de uma análise social e jurídica,
demonstraremos como o Estado desempenha o papel de proteger a maior manifestação
popular artística do país.
Palavras-chave: Escolas de Samba. Direito à Memória. Direito Constitucional. Manifestação
Negra. Patrimônio Cultural.
ABSTRACT
This academic work deals with the Right to Memory of the black population in Brazil and
how it is exercised by samba schools through carnival parades. The raised problem is: do
samba schools exercise the fundamental right to memory through the plots? To answer and
justify that we do use legal and historical grounds as support. Articles 215 and 216 of the
Federal Constitution of 1988 provide for legal protection to artistic expressions, exercised by
the people who form Brazilian society, and for cultural heritage. We will cover the history of
samba schools’ origin, the current structure and how sponsorships and private companies
interfere and/or supply some parades to assess the hypotheses raised by the problem. A
quantitative comparative analysis is made of the black plots of the associations, launched
between 1988 and 2021, in order to understand the approach and how the scenario of each
political chronological milestone influences the choice of themes. And at the end, through a
social and legal analysis, it is demonstrated how the State plays the role of protecting the
largest popular artistic manifestation in the country.
Keywords: Samba Schools. Right to Memory. Constitutional Right. Black Demonstration.
Cultural Heritage.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Rancho “O Macaco é Outro” 31
Figura 2 - Deixa Falar 33
Gráfico 1 - Enredos Pretos por Ano 38
Gráfico 2 - Enredos Pretos e Enredos Patrocinados 40
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 14
1 DIREITO À MEMÓRIA: O CARNAVAL COMO MANIFESTAÇÃO DA
CULTURAL POPULAR 16
1.1 O QUE É ODIREITO À MEMÓRIA 16
1.1.1 Direito à Memória como Direito Fundamental na Constituição de 1988 19
1.2 DIREITO À MEMÓRIA COMO GARANTIA DE PRESERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO CULTURAL E DA CULTURA POPULAR 25
1.3 DO SEMBA AO SAMBA: AS ORIGENS 26
1.3.1 Quando Tocar Samba Dava Cadeia - Lei da Vadiagem 28
1.3.2 Antes das Escolas de Samba 30
1.3.3 Origem das Escolas de Samba 32
1.4 BARREIRAS RACIAIS SOFRIDAS PELO SAMBA - DEMOCRACIA
RACIAL, PERDA DA IDENTIDADE E FINANCIAMENTO EXTERNO 35
2 OS ENREDOS DAS ESCOLAS DE SAMBA DO CARNAVAL DO RIO DE
JANEIRO: A TEMÁTICA NEGRA COMO EXALTAÇÃO DA MEMÓRIA E
LUTA POR DIREITOS 39
2.1 APRESENTAÇÃO E MAPEAMENTO DE ENREDOS DAS ESCOLAS DE
SAMBA (COM RECORTE DE 33 ANOS DE DESFILES 1988 - 2021) 40
2.1.1 Análise Quantitativa/Comparativa das Temáticas dos Enredos Que Tiveram
Manifestações Afirmativas Negras a Partir do Contexto de cada Década 41
2.1.2 Análise de Alguns dos Enredos que Marcaram História por sua Exaltação
da Memória do Povo Negro e Manifestação de sua Luta por Direitos 43
2.1.2.1 Kizomba, Festa da Raça - Unidos de Vila Isabel 1988 44
2.1.2.2 A Saga de Agotime, Maria Mineira Naê - Beija-Flor de Nilópolis 2001 46
2.1.2.3 Meu Deus, Meu Deus Está Extinta a Escravidão? - Paraíso do Tuiuti 2018 47
2.1.2.4 Elza Deusa Soares - Mocidade Independente de Padre Miguel 2020 49
2.2 COMO OS ENREDOS DAS ESCOLAS DE SAMBA SÃO MANIFESTAÇÕES
DE REIVINDICAÇÕES DE DIREITOS 50
2.3 COMO O DIREITO À MEMÓRIA REALIZADO POR MEIO DO CARNAVAL
POSSIBILITA A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE DA POPULAÇÃO NEGRA -
PL 256/2019 52
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 54
REFERÊNCIAS 56
APÊNDICE A - Tabelas dos títulos dos enredos das Escolas de Samba do Rio de
Janeiro do período de 1988 até 2022 58
INTRODUÇÃO
Visto que o carnaval das escolas de samba é fruto de manifestação popular de minorias,
majoritariamente negra e periférica, buscaremos a importância do carnaval como
manifestação popular de preservação e cultivo do Direito à Memória.
Uma vez que há uma tentativa de matar o simbólico através do memoricídio, em que se
busca apagar importância de outras culturas brasileiras, colocando o eurocentrismo como
culto único e marginalizando outras manifestações, diversas escolas de samba desafiam a
tentativa de matar a cultura popular e trazem, através da oralidade, que caracteriza o seu modo
de transmissão de saberes, essas propostas de enredos em diversos desfiles. E ao mesmo
tempo que brincam e manifestam seus Direitos, exaltam suas histórias através de outros
pontos de vista.
Visamos compreender a centralidade do direito à memória para a construção social
negra, Identificar o arcabouço jurídico e políticas públicas acerca do manifesto cultural
carnavalesco, através de uma abordagem histórica da origem do carnaval carioca, a partir da
da cultura Africana trazida pelos povos escravizados, Analisaremos Os Artigos 215 e 216 da
Constituição Federal, que propõem proteção legal para o patrimônio público e a memória da
população formadora da sociedade brasileira, além de trazer uma análise do Projeto de Lei
256/2019, que tramita no Senado Federal e que tem por fito reconhecer as escolas de samba
como manifestação da cultura nacional.
Apresentaremos a estrutura do carnaval atualmente e mapearemos os temas de enredos
das escolas de samba do grupo especial da cidade do Rio de Janeiro, antiga capital brasileira e
cidade onde ocorreram os primeiros manifestos do modelo de carnaval que será apresentado.
Entre os diversos enredos serão selecionados aqueles cuja temática seja: protestos, manifestos
por seus direitos e reinvindicações políticas voltadas à história dos povos negros e periféricos.
Para sustentação do tema, serão utilizadas obras sobre a história do carnaval, bem como
sobre o direito à memória, e ainda, materiais históricos e de mídias, como jornais que se
voltam a arquivar a memória carnavalesca .1
1 Utilizaremos como principal fonte o acervo disponível no site Galeria do Samba, o qual reúne os desfiles,
enredos e samba de diversos anos. Disponível em: https://galeriadosamba.com.br/. Acesso em: 19 ago 2021.
https://galeriadosamba.com.br/
14
Visto que partiremos da análise jurídica e da comprovada formação social das escolas
de samba e também a visão através da análise social, o método a ser utilizado para essa
pesquisa é o de análise de discurso, mais precisamente, a da corrente da análise de conteúdo,
que trata de “relacionar a frequência da citação de alguns temas, palavras ou ideias em um
texto para medir o peso relativo atribuído a um determinado assunto pelo seu autor”
(CHIZZOTTI, 2010, p.114). Este método, visa analisar as comunicações e interpretar o seu
conteúdo, pois através da coleta de dados sobre os enredos que passaram na Marquês de
Sapucaí, desdobrarmos os impactos sociais decorrentes dos fatores históricos e a
interferências de outras culturas no processo identitário e as mensagens por trás de cada
enredo abordado.
É um trabalho que se insere no campo dos Estudos Jurídicos e Culturais, aliando-os à
teoria literária, linguística, filosofia, sociologia, antropologia e a história. Pensar no direito à
memória como propósito de pesquisa é muito importante, haja vista os poucos estudos e
pesquisas, em especial focados em trabalhar a cultura como objeto principal.. Trazer o tema
para questões sociais a partir de um ponto de vista histórico-jurídico, do desenvolvimento e da
conquista dos direitos por parte da população afro-brasileira, é trazer também um outro olhar
para esse direito fundamental, de forma que, espera-se, esse trabalho acadêmico servirá
também como fonte para futuras pesquisas, já que uma das propostas é mapear e catalogar as
temáticas que foram abordadas por essa parcela da população em seus manifestos populares.
Ainda hoje, o modelo de carnaval das escolas de samba tem como objetivo não só a
pregação da festa cristã e da figura momesca, ela é percursora e interlocutora de mensagens
sociais, através das letras de samba-enredo, fantasias e alegorias, que serão mapeados em um
dos capítulos do trabalho. São mais de 100 anos como veículo que dá voz a essa parcela da
população minoritária, apesar de ser muito recente a garantia constitucional à memória.
A construção da ideia de sociedade no Brasil possui uma narrativa distorcida por sua
estrutura cronológica histórica, visto que antes do país se tornar República (1889), os negros
de África que aqui chegaram como escravizados eram considerados como objetos de posse e
não como pessoas/cidadãos. Sabendo que essa parcela da população não foi reinserida, mas
que trouxe como bagagem hábitos culturais valiosos, legislações que assegurassem a
permanência e propagação das memórias coletivas de grupos minoritários, movimentação que
tem por fim valorização dos Direitos Humanos, sempre se fizeram necessárias.
Tendo isso em mente, a proposta deste trabalho visa fazer um conectivo do direito
fundamental à memória com o movimento social proposto pelas escolas de samba, que
surgem no Rio de Janeiro em comunidades periféricas, onde os negros após abolição, se
reuniram/aglomeraram formando grandes subúrbios, dando origem a grandes quilombos
urbanos, movimentando-se culturalmente através da cultura carnavalesca, surgida no início do
Século XX.
Escrever e pesquisar sobre o tema vem da própria construção e educação social da
autora. Sendo uma mulher negra, moradora de uma das comunidades periféricas de
Florianópolis, cresceu com contato direto com a cultura carnavalesca das escolas de samba. E
de forma natural, as vivências negras e ancestrais, oralizadas através dos cantos dos sambas
de enredo e das reuniões carnavalescas,sempre lhe foram presentes. De modo que aprendeu
sobre história, suas origens, ancestralidade e sobre manifestação social para além da sala de
aula na educação tradicional escolar, por meio da transmissão oral e dos sambas de enredo.
Após ingressar no meio universitário, uma outra óptica de estudos sociais se fez
presente. A Sociologia Jurídica se apresenta como um campo para estudar como as
manifestações culturais fazem parte de uma construção identitária para conquista e
reivindicações de Direitos pelos cidadãos negros das comunidades. Vislumbra-se, a partir de
então, a possibilidade de estabelecer a construção de um diálogo entre a sociedade
marginalizada e o sistema jurídico posto, através da pesquisa dos fatores sociais que os
contrastam.
16
1 DIREITO À MEMÓRIA: O CARNAVAL COMO MANIFESTAÇÃO DA
CULTURAL POPULAR
1.1. O QUE É O DIREITO À MEMÓRIA
Para adentrarmos no núcleo da pesquisa, que é o direito fundamental à memória
exercido pelas escolas de samba, primeiramente precisamos conceituar o direito à memória
em seu sentido literal e histórico do termo.
A partir do momento em que se há um compartilhamento entre indivíduos, temos a
transmissão da memória. Neste ponto, podemos ter a fragmentariedade da compreensão
inicial, visto que aquilo que foi memorado em primeiro plano por alguém, a partir do
momento que é transmitido a outrem (de forma escrita ou oralizada), passa por um processo
de transformação, haja vista que a individualidade é um campo único, onde cada um irá
contar, a partir do seu ponto de vista com as suas palavras as suas memórias.
O autor Frances Yates, compreende esse aspecto denominando memória artificial,
termo que dá significado como: “auxiliar e assistente da memória natural, a que chama
‘artificial’ devido ao termo ‘arte’, porque ela é encontrada artificialmente, pela
sutileza da mente” (1966 p. 58). Esse segundo ato se utiliza de artifícios para transmissão, em
que temos a subjetividade e unidade de cada ser em sua forma particular de transmitir.
Fabiana Dantas, defende em sua tese que: “Do ponto de vista psicológico a memória confere
ao indivíduo a consciência de sua subjetividade, bem como possibilita a sua inserção no corpo
social através da identificação cultural”. (2008, p. 46).
E é nesse campo do Direito à Memória, conceituada também como o Direito de
transmissão, mostrando que a memória é uma necessidade tanto individual como um bem da
coletividade, isso é, passada de uma pessoa a outra através da arte mnemônica, que esta
pesquisa irá se debruçar.
A memória pode ser conceituada também como o processo seletivo de retenção e
utilização contínua de ideias, impressões, imagens, conhecimentos e experiências adquiridas e
vividas anteriormente. Inseri-la como direito de um povo, comunidade ou grupo, é garantir
que seus cultos, costumes, bem como acontecimentos ou marcos históricos, não sejam
apagados por processos de dominação, dentro de uma ordem colonial (KILOMBA, 2008, p.
69).
É importante compreendermos que nem sempre aquilo que se trata de tradição de um
grupo e será transmitido, será baseado em fatos provados cientificamente, muitas vezes, esses
podem provir de suas crenças ou religiões. E dentro dessa classificação a preservação é
necessária, pois: “A falta da memória coletiva levaria à destruição dos valores, crenças e
normas de conduta forjadas no curso da história de cada povo, minando assim o alicerce das
suas instituições” (DANTAS, 2008 p. 47). O que importa para serem preservados é a história,
a cultura e os hábitos, isto é, as características que formam a identidade do grupo de pessoas.
Essa necessidade de preservação se dá especialmente em comunidades marginalizadas pela
sociedade, como os grupos étnicos, alvos de etnocídio e memoricídio. Segundo Fernando
Báez:
O memoricídio consiste na eliminação de todo o patrimônio, seja ele tangível ou
intangível, que simboliza resistência a partir do passado [...]. Controlar o
passado é a melhor forma de planejar o futuro. Por isso, as elites culturais,
subordinadas aos centros hegemônicos metropolitanos, aproveitaram-se da
amnésia para abandonar qualquer tipo de resistência. A transculturação ou
substituição da memória foi executada com perfídia em três etapas: a) pelo
estilhaçamento da memória subjugada, aparecendo nas perdas e nostalgias; b) pela
incorporação forçada da cultura dominante; c) e, pela elaboração, por parte dos
sobreviventes, de estratégias de resistência e integração assinaladas pelo grau de
contato” (apud RAMPINELLI, 2013, p. 139).
Um dos atributos mais fortes do Direito à Memória, é compreender que, por sua
maleabilidade, não existe uma história ou versão única, e sim, uma oportunidade de recontar
uma história, a partir de outros pontos de vista. Tal característica é muito importante visto
que:
A possibilidade de escrever uma história alternativa e revisionista é a marca mais
evidente da autodeterminação recém-conquistada. Nesse contexto, a memória é mais
que a mera transmissão de experiências e tradições através das gerações: na
verdade, representa a rememoração afirmativa, ainda que dolorosa, de perseguições
políticas, étnicas, religiosas, que fundam a nascente cidadania (PERRONE, 2002, p.
101) (DANTAS, 49).
Entender essas transmutações, é também permitir o direito ao esquecimento de
determinados fatos dolorosos e que, o resguardo legal, está diretamente ligado à compreensão
que existe uma multiculturalidade, bem como, reconhecer que houveram ataques e
interferências externas, fatos esses, que muitas vezes ameaçaram de perda identitária os
grupos sociais:
A memória nos avisa, nos adverte e protege para não repetir de novo a
injustiça. A recordação do passado presente serve para admoestar o porvir, para
projetar um futuro no qual a continuidade da memória segue gerando e protegendo o
18
direito e a justiça como síntese da verdade encontrada e restabelecida (FILHO, 2013,
p 141).
Vemos com os pontos colocados a importância da preservação da memória, e com isso,
começamos a entender como este Direito está ligado aos aspectos fundamentais, ao princípio
da Dignidade da Pessoa Humana e outros preceitos legais que veremos no tópico a seguir.
1.1.1 DIREITO À MEMÓRIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL NA CONSTITUIÇÃO
DE 1988
Mesmo o Brasil passando a ser uma República Federativa, em 1889, durante muitos
anos os negros escravizados, que passaram da condição de objeto de propriedade para então
serem considerados cidadãos, careceram de legislações que resguardassem suas dignidades e
suas condições enquanto pessoas de Direito. Tão pouco lhes foram concedidas prerrogativas
que estimulassem ou resguardassem suas culturas e histórias como parte da solidificação
social desta federação.
Reflexos desse descaso estatal e jurídico refletem até os dias atuais, quando vemos que
os estudos voltados para esses grupos minoritários ainda se propõem a destacar somente o
recorte dos negros e indígenas na condição de subalternos de uma cultura eurocentrada
dominante no Brasil Colonial. Como bem discorre Chimamanda na obra “O Perigo de Uma
História Única”, concentrar a memória sobre os corpos negros vindos de África, em uma
história pautada apenas pela versão do ser dominante, é voltar-se a:
[...] uma história única de catástrofe. Naquela história única, não havia
possibilidade de africanos serem parecidos com ela de nenhuma maneira, não havia
possibilidade de qualquer sentimento mais complexo que pena; não havia
possibilidade de uma conexão entre dois seres humanos iguais.” (ADICHIE, 2019,
p. 17).
Nessa passagem do texto, Chimamanda conta que uma de suas colegas de quarto nos
Estados Unidos possuía uma visão sobre África de pobreza, miséria e violência generalizada,
que a ela, mesmo sendo de África pouco tinha vivência, pois a cultura e os hábitos identitários
do seu país de origem, iam além daquela versão propagada pelo mundo. Assim, caímos no
mito da história única, onde a versão mostrando os povos africanos como uma coisa só,
fazendo com queestes se tornem para os outros nada além daquilo que foi propagado
(ADICHE, 2019, p. 22).
A educação formal também construiu de certo modo essa identidade, pois negros e
negras, indígenas pouco possuíam, a não ser, a condição de subalternos dos colonizadores.
Alunos em sala de aula, descendentes desses povos pouco se identificavam ou se viam
20
naquelas pessoas, como seus ancestrais. De que forma aqueles que são apresentados apenas
como objeto de dor e sofrimento poderiam ser fruto de identificação? Pouco se fala da cultura,
da riqueza dos hábitos costumes e religiosidade dentro dos espaços educacionais formais.
O processo de Eugenia, é um dos culpados, a padronização e formação de estado que
objetiva estar sempre mais próximo e adotar como identidade os hábitos e costumes dos
colonizadores, do que as dos povos subalternizados. Junto a esse processo de
“embranquecimento” forçado através da miscigenação, fruto na maioria das vezes de
estupros, coage-se a adoção da identidade branca, fazendo com que muito repudiassem a
ancestralidade negra e até mesmo a cor de sua pele. Entender que, para acontecer esse
processo de identificação, é necessário estímulo através da transmissibilidade, propagação das
riquezas culturais e dos hábitos, é fundamental para que este reconhecimento aconteça. Mas
sobre o processo educacional formal, como meio de propagação desses valores, voltaremos a
tratar de explorar suas complexidades e consequências sociais no capítulo 3.
Importante agora é identificar que esses povos foram por muitos anos deixados de lado
e que lutaram, resistindo por artifícios populares como a oralidade, com o intuito de manterem
vivas as suas tradições e memórias, e como vimos no tópico anterior, pela superioridade posta
de um grupo dominante dentro da pirâmide estatal, nunca foi uma tarefa fácil preservá-las.
Somente após 10 décadas do declínio da monarquia e de ser instaurada a República, o
Brasil passa a ter previsões legais a respeito da preservação da memória. A Constituição
Federal de 1988 é pioneira, tardiamente, em trazer em seus artigos resguardos em relação a
memória. Vejamos:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais [...]” (BRASIL, 1988).
O dispositivo invoca o reconhecimento do protagonismo dos grupos sociais formadores
da sociedade brasileira, preservando a cultura, a história e as suas formas de expressão,
levando em conta valorizar o agrupamento desses indivíduos que se reconhecem uns nos
outros e objetivam preservar o que até o momento sofria marginalização. O autor Mamede
Filho reforça que: “Nesse sentido, a alusão a ‘culturas populares’ e ‘afro-brasileiras’ é
inédita na nossa história constitucional, pois a Constituição de 1988 foi a primeira,
entre as cartas constitucionais brasileiras, a fazer esse tipo de referência, reconhecendo
formalmente o protagonismo das populações negra e indígena no processo de formação da
identidade nacional” (2008, p 169).
Vejamos que o mesmo artigo constitucional não traz a definição explícita de quais
grupos ele está se referindo, isso fica a cargo interpretativo, da história da formação do Brasil.
Mas é de fácil identificação que os grupos afrodescendentes e indígenas são, ainda hoje,
reconhecidos como os mais relevantes e espoliados historicamente. Isso porque esses dois,
apesar da grande parcela de influência, também foram os que mais sofreram a interferência de
dominação e apagamento das suas identidades durante todo o percurso dos registros históricos
no solo brasileiro. Ressalto aqui, que até hoje são grupos extremamente marginalizados, a
exemplo, vemos as lutas pelas terras indígenas sendo pauta anualmente contra as decisões que
visam restringir o seu direito ancestral às terras que ocupam. Vemos também, negros
ocupando a margem da pobreza: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
pretos e pardos correspondem a 75% da população vivendo na extrema pobreza (IBGE,
2019), reflexos do Brasil colonial, que ainda necessita de amparos de inclusão, pois por mais
de 300 anos essa população foi vítima da escravização e de uma abolição sem reparação ou
inclusão. Além de quê, o artigo 215 da Constituição Federal, da mesma seção que dispõe
sobre a preservação da memória como patrimônio cultural, diz em seu parágrafo primeiro
que: “O Estado protegerá todas as manifestações das culturas indígenas e afro-brasileiras, e
das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional" (BRASIL, 1988, p. 65).
O artigo 216 da CF possui um aspecto transformador, pois através da função
legitimadora, ainda que não esteja explícito no rol dos Direitos Fundamentais, faz alusão
incontestável e irretroativa, como os que partem desses direitos, à medida que define que o
patrimônio cultural e os direitos humanos decorre dos tratados internacionais e aprovados
internamente. A proteção trazida por este artigo, passa a ter imediata aplicação, segundo
artigo 5º §1º da CF que define a aplicabilidade dos direitos fundamentais, instruindo que: “as
normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata", bem como,
22
não pode haver retrocesso. Esses grupos mais vulneráveis, de diversidade étnica e religiosa
deverão ter então, um olhar garantidor a partir de políticas públicas de inclusão e estímulo às
suas tradições, as suas religiosidades e seus manifestos.
O que queremos dizer com isso é que foi: “a memória da negação histórica dos direitos
humanos, em diferentes momentos da marcha do homem, que em grande medida permitiu o
reconhecimento e a proclamação desses direitos.” (FILHO, p. 139), pois o processo de
exclusão e minorização que se perpetuou por anos, foi a motivação para a previsão
constitucional e termos a memória como patrimônio cultural dentro das prerrogativas
fundamentais do estado brasileiro.
O que difere os Direitos Fundamentais dos Direitos Humanos é a dimensão jurídico
geográfica. Enquanto em âmbito internacional os direitos fundamentais são tratados enquanto
Direitos Humanos, em plano interno eles são de vínculo constituinte, onde suas previsões
estão dentro da Carta Magna brasileira, esta, optou por utilizar a expressão Direitos
Fundamentais. Ambos refletem valores, vinculam e protegem, tanto os indivíduos como a
coletividade, de ameaças e opressões que afetam suas dignidades:
Exatamente por representarem as mais importantes necessidades do indivíduo e da
sociedade, os direitos fundamentais concretizam os valores que mais lhes são caros,
tornando-os por isso intangíveis. Embora possam variar de acordo com o contexto
histórico e social, será fundamental o direito que representar os pressupostos de
uma existência digna do ser humano, sem os quais não há realização, convivência ou
sobrevivência possíveis. (DANTAS, 2008. p. 35).
O direitos fundamentais estão interligados a noção de humanidade e dignidade, da
necessidade do cidadão ao direito de liberdade, manifesto e segurança, onde: “a própria
noção de ‘humanidade’ encontra-se vinculada à capacidade específica de aprender,
memorizar e transmitir conhecimentos através do acervo denominado ‘patrimônio cultural“
(DANTAS, 2008, p. 59). Ainda, a autora comenta que o texto normativo deve ser consciente
do seu propósito e alvos, visto que: “A Hermenêutica Constitucional, mais do que descobrir o
sentido e o alcance do texto normativo, deve perquirir o significado social da aplicação da
norma constitucional” (2008, p. 40), isto é, o dever/poder de conscientizar a abrigar
ideologias, principalmente aquelas formadoras desociedade, em todas as camadas sociais.
A Constituição Federal de 1988, embora utilize os termos de direitos e garantias
individuais e direitos sociais e culturais, de forma tendenciosa a serem celebrados
compreendidos como contrapostos, na realidade, assumiu uma integração de todas
as pedras de direitos fundamentais, à guisa dos princípios da indivisibilidade e
interdependência dos Direitos Humanos (SANTOS, 2011, p. 32)
Passaremos a compreender o porquê se considerar como um direito fundamental, à
memória sendo que em nenhum momento no rol dos direitos fundamentais, na Constituição
Federal, no artigo 5º, que fala dos direitos e deveres individuais e coletivos, não se fala em
direito à memória. Neste mesmo capítulo, entendemos que há abertura para essa interpretação
nos incisos sexto e nono, e também o parágrafo 2º deste mesmo artigo, que diz que a
Constituição é aberta a outros direitos fundamentais. Este artigo apresenta um critério material
mas não taxativo, isto é, ele não é fechado a interpretações do que pode vir a se considerar ao
longo dos anos, parte dos direitos fundamentais. Podendo se interpretar a expressão cultural e
a expressão artística como fundamentais. Como é o patrimônio cultural, artístico e a memória
dos povos formadores da identidade brasileira:
Vejamos os artigos e seus respectivos parágrafos:
TÍTULO II
DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
CAPÍTULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Art. 5º Todos são iguais perante a lei [...] nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
[...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias;
[...]
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença; (grifo nosso)
Nos atentemos novamente ao texto dos artigos 215 e 216:
SEÇÃO II
DA CULTURA
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais.
24
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional.
[...]
I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II produção, promoção e difusão de bens culturais;
[...]
IV democratização do acesso aos bens de cultura;
V valorização da diversidade étnica e regional.
Vejamos como os artigos constitucionais se correlacionam. Temos no artigo 5º, que trata
dos direitos fundamentais, as menções que abarcam o que está mais explícito nos outros
citados artigos. Quanto a proteção fundamental das manifestações artísticas, das crenças e da
proteção ao patrimônio e a cultura como um todo, não há, a partir desta análise, com negar o
caráter fundamental que está disposto no capítulo III seção II nos artigos 215 e 216 que tratam
sobre a cultura. Ao fim do artigo 5º, temos o § 2º, reforça que “Os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte” .2
Como mencionado ao longo deste tópico, a conjuntura legal ainda se faz valer por
mecanismos interpretativos, mas não há como descartar a existência do caráter Constitucional
para a tese aqui sustentada, haja vista a definição da proteção à liberdade de manifestação, a
expressão artística, ao patrimônio cultural, e à memória dos povos formadores da identidade
do país, todos com base nos artigos da Carta Magna, interligados e sustentando o que aqui é
defendido como direito â fundamental a memória existente no samba.
2 Constituição Federal 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Acesso em 20 ago 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
1.2 DIREITO À MEMÓRIA COMO GARANTIA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CULTURAL E DA CULTURA POPULAR
Primeiramente, quando falamos em patrimônio cultural, nos referimos às "diretrizes que
tratam da preservação dos bens culturais, a ideia central é reconhecer que os bens culturais
produzidos em diversas épocas e sociedades são igualmente importantes para a memória
coletiva. Ou seja, não há a priori uma hierarquização” (DANTAS, 2008, p. 72). Significa
incluir a memória dos grupos formadores da sociedade brasileira no rol das proteções
constitucionais. Reconhecendo os povos indígenas e os afro-brasileiros como fontes de
identidade nacional cultural, mesmo esses tendo sido oprimidos, torturados e impedidos
durante muitos anos, inclusive por legislações , a praticarem suas manifestações, hábitos e3
costumes, em um processo de hierarquização imposta pelos colonizadores, em geral homens
fenotipicamente brancos, em sua grande maioria europeia, temos esse perfil dominador, que
ao prevalecer a memoração do seu modo de vida, coibiu grupos minoritários.
Podemos denominar este aspecto também como eurocentrismo, que significa colocar ao
centro a cultura e os costumes europeus, dos colonizadores, e as margens, os povos
colonizados, refletindo então o apagamento cultural destes. A teórica Grada Kilomba,
denomina esse processo segregatório de “outrismo” onde se coloca o “outro” como
antagonista das histórias (2008, p. 36). A ótica do colonizador como ponto de estudo é
fundamental para entendermos porque por tanto tempo o patrimônio cultural negro foi
silenciado. Essa cultura, que perpetuou por décadas, e ainda se mantém refletindo em
diversos setores da nossa sociedade, nesse modelo de estado o: "indivíduo é cirurgicamente
retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ela/ele possa realmente ter"
(KILOMBA, 2008, p. 39).
Percebe-se que a resistência do patrimônio cultural dos negros, foi um processo árduo,
anda ser definido em legislação, pois até este acontecimento não se podia considerar legítima
a narrativa que foi contada sobre os negros, pois se a perspectiva não eram as deles, e sim, do
opressor, esses eram tratados como outros. A única forma de legitimar o patrimônio é através
da transmissão, de geração em geração, em uma laboração de memória dos povos, por eles
mesmos.
3 Lei das Contravenções Penais, 1941 (ou "lei da vadiagem").
26
Existir a possibilidade de enredar a própria história é dar sentido e vida a um novo olhar
sobre a história e a cultura, porque o olhar projetando sempre o colonizador em primeiro
plano acaba por criar uma perspectiva rasa sobre os costumes e hábitos: "a história que a
história não conta" é um trecho do samba de escola de samba Estação Primeira de Mangueira,
nela, está inserida este ideal de legitimar a perspectiva do vivente e colocá-lo como narrador
dos seus ancestrais.
A preservação do patrimônio cultural é fundamental para que o contrário não volte a
ocorrer, haja vista que ainda hoje os descendentes desses povos ocupam um espaço social de
minorias, o estado é máquina promotora da erradicação da desigualdade e fomentadora da
democracia, é quem traz a luz constitucional a preservação desses patrimônios históricos
sociais. Para Kilomba, diante disso, estamos lidando com: "as fantasias brancas sobre o que a
negritude deveria ser. Fantasias que não nos representam, mas, sim, o imaginário branco"
(2008, p. 38).
Assim, o objeto basilar dos artigos 215 e 216, que constituem a preservação da cultura e
do patrimônio cultural dos grupos formadores da sociedade é dever de reparação, significa:
A negociação do reconhecimento, o indivíduo negocia a realidade. Nesse sentido,
este último estado é o ato de reparar o mal causado pelo racismo através das
mudanças de estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas,
vocabulário, ou seja, através do abandono de privilégios(Kilomba, 2008, p. 46).
A autora coloca ainda que, mesmo com mecanismos promovidos pelo Estado para a
reparação, que pretendem amenizar a desigualdade, o subalterno, dentro desse regime de
histórico repressivo, ainda sofre as consequências do pós-colonialismo, pois: ”está sempre
confinada a posição de marginalidade e silêncio” (2008. p. 47) e não tem legitimidade para
falar e ser ouvido, em diversos ambientes sociais.
1.3 DO SEMBA AO SAMBA: AS ORIGENS
Para começar a desenvolver a abordagem sobre o conteúdo histórico acerca do carnaval,
temos que ter sempre em mente que a cultura em si é fruto não só do processo de identidade
única de um grupo, como vemos nos subtópicos anteriores, mas da interferência dos
acontecimentos que cercam em diversos momentos do decurso temporal.
E não é diferente quando se trata na cultura negra, quando africanos chegam ao Brasil,
em um processo forçado de escravização por colonizadores europeus, esses, não tiveram a
oportunidade de trazer consigo objetos pessoais materiais, mas isso não os impediu de
trazerem bens valorativos, isto é, as suas memórias, histórias, crenças e hábitos culturais.
E foi com estas, nos poucos momentos que podiam se reunir, que transmitiam aos seus
descendentes suas heranças culturais, entre elas suas danças, músicas e personificações.
E assim foi com o Semba, conceituado como: “movimento de dança caracterizado pelo
embate frontal entre dois dançarinos; umbigada” (LOPES e SIMAS, 2015, p. 273), é uma
modalidade cultural provinda da região Angola, na África, a prática tinha por hábito a junção
dos corpos em movimentos sincronizados, ritmo “irmão” do samba que conhecemos hoje, é
também ligado aos termos cabriolar, divertir-se e brincar, galantear e encantar, segundo
tradução do quiocongo .4
Fica evidente que o molde estrutural aqui preconizado é uma transmutação geracional,
haja vista que as interferências de outras culturas, tanto dos negros de outras regiões de
África, como dos colonizadores, se fundam e agregam diferentes valores.
O cotidiano do semba era festa corporal, praticado nos aquilombamentos e reuniões
festivas dos afro-descendentes. Sobrevive até os dias atuais, mas sua mutação, o samba,
começa a ter seus primeiros manifestos no final do século XIX e início do século posterior.
Vejamos que esse período temporal é um marco, visto que a sua origem coincide por
aproximação do período abolicionista, para ser mais exata, no ano de 1888, quando é posta a
Léi Aúrea, lei essa que confere a todos os negros que estão no solo brasileiro a liberdade do
escravo, trabalho forçado, não remunerado e abusivo. Logicamente, a lei que se impôs teve
pouca ou nenhuma inserção social como critério de alocar essas pessoas, que antes eram tidas
como propriedade de posse e passaram a ser considerados legalmente como cidadãos. Não só
leis que visassem ressocialização, mas outras políticas eram necessárias, infelizmente o
contrário se provou, leis que criminalizavam as práticas culturais passam a vigorar,
voltaremos a comentar sobre esse ponto legislativo adiante.
Fundamentando o samba, trata-se tanto de um gênero musical, como um bailado
popular da cultura negra. O estilo popular teve origem nas rodas, onde negros se reuniam para
cantar e dançar, e em muitas das vezes, usavam desses momentos como: “consolo de seu
sofrimento para as dores da escravidão” (LOPES; SIMAS, 2015, p. 250), gênero que passa a
4 Linguagem banta do povo Quioco, habitantes do nordeste ao sul de Angola, República Democrática do Congo
e o noroeste da Zâmbia, na África ocidental.
28
ser inevitavelmente associado ao carnaval. E é a partir dessa junção dos ritmos africanos com
a aculturação dos seus descendentes, que surgem tais manifestos negros culturais no Brasil,
que posteriormente dão origem às escolas de sambas, que dá ao país hoje, o título de produzir
a maior festa popular do mundo .5
1.3.1 QUANDO TOCAR SAMBA DAVA CADEIA - LEI DA VADIAGEM
Após dois anos promulgada Lei Áurea, em 1890 começam a surgir leis para criminalizar
os negros e restringir a sua liberdade tão recentemente conquistada. O decreto nº 847, de 11
de outubro de 1890, que formulou um novo Código Penal, em caráter de urgência, passa a
dispor que se uma pessoa andasse pelas ruas e não conseguisse comprovar que estava
trabalhando, podia ser presa, tal "crime", caracterizando o infrator como mendigo, poderia
render até 30 dias de prisão. Não coincidentemente, e sim propositalmente, ocorre logo após
os negros terem registrada a liberdade e não serem inseridos dentro a sociedade, tão pouco do
mercado de trabalho, isto é, viverem a carência de emprego e a dificuldade de se inserirem na
sociedade que pautava estas leis.
Vejamos estes artigos, além do 402 do referido Código Penal, que criminalizava a
capoeira:
Art. 391. Mendigar, tendo saude e aptidão para trabalhar
Art. 394. Mendigar aos bandos, ou em ajuntamento, não sendo pae ou mãe e seus
filhos impuberes, marido e mulher, cego ou aleijado e seu conductor.
Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a
vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a
subsistencia por meio de occupação proibida por lei, ou manifestamente offensiva da
moral e dos bons costumes:
Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal
conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou
instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou
desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:
Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes.
5 Segundo o livro dos recordes: “Guinness World Records official” (2004). Disponível em:
https://www.guinnessworldrecords.com.br/world-records/largest-carnival. Acesso em: 13 ago. 2021.
https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=C%C3%B3digo_Penal_de_1890&action=edit&redlink=1
Parágrafo unico. É considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a
alguma banda ou malta.6
É claro que este fenômeno dava abertura pra criminalizar toda e qualquer participação
social do negro nas ruas, quando se manifestava culturalmente. Dessa maneira as rodas de
samba muitas vezes terminavam com apreensões tanto dos sambistas, como dos seus
instrumentos musicais.
Tais repressões e proibições obrigavam estes a se reunirem em locais em que estivessem
seguros e protegidos, muitas vezes, eram nas casas e quintais das “tias baianas” , como a7
figura da Tia Ciata na pequena África brasileira, que eram abrigados, e onde faziam nos
fundos dos quintais as rodas de samba (LOPES; SIMAS, 2015, p. 243). Mas as proporções e
popularidade entre os negros e simpatizantes era tamanha, que esses manifestos tinham que
sair dos terreiros obrigando-os a tomarem novamente as ruas.
No Estado Novo, período que compreende de 1937 a 1946, surge a Lei das
Contravenções Penais, através do Decreto Nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, que no artigo
59, dentro do capítulo que estabelecia as contravenções relativas a polícia de costumes,
dispunha que: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho,
sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria
subsistência mediante ocupação ilícita”, teve como objetivo reforçar a perseguição aos
negros, dito “vadios” e aos sambistas nas ruas. Obviamente tal coibição tornou ainda mais
difícil a propagação e aceitação social da cultura. Para Luiz Antônio Simas e Nei Lopes, essas
leis:
[...] foram abundantemente utilizadas para coibir as manifestações culturais da
população afrodescendente nos anos pós abolição, servindo, inclusive, para
justificar, do ponto de vista legal, a repressão às rodas de samba e festas de
candomblé - consideradas ofensivas aos bons costumes pela elite do período, adepta
de projetos sistemáticos de branqueamento racial que apagassem referências do
passado escravocrata brasileiro. (LOPES; SIMAS, 2015, p. 295).
7 Expressãoutilizada para se referir as senhoras que migraram da Bahia ao Rio de Janeiro e fundaram a “Pequena
África brasileira”, comunidade que se localizava na região portuária da cidade, que abrigava negros e africanos
libertos.
6 DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaoorigina
l-1-pe.html. Acesso em 20 ago 2021.
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html
30
Estados que não entendem o manifesto cultural como patrimônio, e sim como
perturbação, estão muito longe de compreender o real processo e sentido democrático.
Temos o racismo disfarçado de segurança pública, e o maquinário que calçou esse
objetivo foi o processo eugenista, embranquecimento forçado da população e sobreposição
cultural a partir do modelo europeu. Mas houve também, principalmente, o processo de
gentrificação, expulsando os ex-escravizados e seus descendentes dos centros urbanos para
locais mais distantes, daí o conceito “marginal” que é aquele se encontra às margens, nesse
caso, as margens da sociedade. Tal acontecimento faz surgir as favelas e subúrbios, locais que
carecem do olhar do estado, pela precarização habitacional, falta de segurança pública e
diversas estruturas básicas, dentre elas, a sanitária.
Esse abandono, junto à falta do olhar do Estado para esses espaços, causam diversas
transformações sociais, obviamente, neste presente trabalho não focaremos nas mazelas, que é
o poder paralelo, tráfico e outras barbáries que foram consequências desse abandono, mas é
importante destacá-los para termos um olhar sobre esses espaços de maneira real e ampla, não
apenas uma “romantização” da pobreza que acredita que só há fortalecimento cultural nesses
lugares.
Posto isso, a partir dessa segregação socioespacial forçada, tem-se também um
fortalecimento cultural, visto que nesses espaços suburbanos os afrodescendentes passam a se
sentir protegidos e livres para praticarem suas manifestações culturais. Acima de tudo, é
fundamental ressaltar que a descentralização assume importantes posições de influência no
que tange o estabelecimento do remanejamento para os ditos subúrbios, pois são
principalmente nesses espaços que surgem as escolas de samba.
1.3.2 ANTES DAS ESCOLAS DE SAMBA
A concepção do que temos sobre o carnaval das escolas de samba em suas origens é tão
turva quanto toda a história do povo negro, isso porque, como já mencionamos anteriormente,
estudar a história negra é se deparar com diversas transmissões e memorias da origem
diferentes. Mas são esses pontos de vistas oralizados e transmitidos, e poucos deles
registrados, que nos dão margem para elucidarmos a origem da festividade.
Como dito, a identidade cultural negra sofreu e ainda sofre interferências externas, e
assim foi com a origem carnavalesca, isso porque, antes de existir o modelo de carnaval que
conhecemos hoje, os colonizadores trazem uma espécie recreativa e católica conhecida como
Ranchos de Reis, tal festividade era um cortejo que desfilava pelas ruas anualmente, no dia 6
de janeiro, dia de Reis, como forma de celebrar as figuras dos três reis magos. Evidenciamos
aqui que, participar dessas festas católicas cortejos e celebrações dos colonizadores, eram
durante o período colonial e pós-colonial, uma maneira de reivindicar e tentativa de
socialização: “[...] o momento inicial utilizado pelos negros para a saírem as ruas com seus
cânticos e danças foi o das celebrações católicas [...]. Nesses momentos eles reivindicavam
sua inserção na sociedade pelo ato simbólico da participação nas festas populares.” (LOPES e
SIMAS, 2015, p. 252).
E foi a partir dessa concepção que Hilário Jovino funda na cidade do Rio de Janeiro o
Rei de Ouros, primeiro rancho carnavalesco. Porque, como conta em uma entrevista para o
Jornal do Brasil , após aborrecer-se com o rancho Dois de Ouros, o qual fazia parte, resolveu8
fundar o próprio rancho, transferindo a data para o Carnaval, retirando as disciplinas
religiosas, e trazendo a musicalidade aproximada da: “sonoridade africana, incluindo
pandeiros, tantãs e ganzás na formação da banda” (MEIRELES, 2016).
Figura 1 - Rancho “O Macaco é Outro”, nome que ironizava o racismo da sociedade. Estavam à frente Tia
Ciata – fundadora – e Hilário, movimentador cultural.
8 Matéria de 18 de janeiro de 1913. Disponível em:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_03&pagfis=17729. acesso em 13 ago. 2021.
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_03&pagfis=17729
32
FONTE: SAGATIBA, Fernando. Hilário Jovino: Da Folia de Reis ao Carnaval .9
Os ranchos carnavalescos traziam também os estandartes e outras obrigatoriedades
(alegorias, comissão de frente, porta-estandarte, coro feminino, orquestra, arte, enredo, mestre
de canto e etc) muito se assemelham ao que temos como quesitos a serem julgados no
carnaval das escolas de samba, isso porque, esses concursos de ranchos, embalado pelos
ritmos da marcha-rancho (ritmo cadenciado, um pouco mais lento que o samba) é uma das
fundamentações da sua origem identitária. Mas é claro, não possuía as principais
características das escolas de samba: o surdo, a cuíca e o próprio samba. (CUNHA, 2014, p.
16).
1.3.3 ORIGEM DAS ESCOLAS DE SAMBA
A belle époque brasileira, período que compreende de 1889, com a proclamação da
República até o ano de 1922, foi um movimento inspirado no movimento cultural e de
avanços expressivos, intelectual e artístico que se originou na França e parte da Europa. Tal
identidade é instaurada e adotada também pela elite brasileira a fim de trazer identidade e
fortalecimento da supremacia cultural dos colonizadores. Logicamente, este movimento é
uma das explicações do processo de segregação e de racismo praticados, neste período, já que
a rejeição a outras identidades, em especial as africanas, eram fortemente praticadas,
inclusive, através de legislações que proíbam suas práticas, como vimos anteriormente.
Os autores Lopes e Simas descrevem que neste período, a elite econômica visava um
sonho eugênico de europeização da sociedade brasileira (2015, p. 87). Essas transformações
levam as festividades para locais fechados. O entrudo e o Ranchos de Reis perdem força e10
passam a ser substituídos por bailes. Segundo o artigo publicado pelo site História Hoje,
nesse período o carnaval de rua: “começa a perder adeptos entre a elite, que passa a frequentar
carnavais em bailes de salão, com serpentina e confete, à moda veneziana”, as ruas passam a
ser tomadas de fato por manifestos negros mais fortemente; e é na década de 20 que começam
a surgir as primeiras escolas de samba (ARTES, 2015).
10 “O ‘Entrudo’ era uma brincadeira carnavalesca, trazida da Índia pelos portugueses. Era a principal
manifestação do Carnaval no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX.
9 Disponível em:
https://raizdosambaemfoco.wordpress.com/2014/01/06/hilario-jovino-da-folia-de-reis-ao-carnaval/ acesso em 04
Ago. 2021.
https://raizdosambaemfoco.wordpress.com/2014/01/06/hilario-jovino-da-folia-de-reis-ao-carnaval/
https://raizdosambaemfoco.wordpress.com/2014/01/06/hilario-jovino-da-folia-de-reis-ao-carnaval/
Segundo a definição da obra Dicionário Social do Samba, a escola de samba trata-se de
uma sociedade musical, que com o intuito recreativo, participa dos desfiles carnavalescos
(LOPES;SIMAS, 2015, p. 116). Há controvérsias quanto a qual foi a primeira escola de
samba fundada, de um lado temos a Portela, que tem seus registros de fundação e atividades
em 1923, escola considerada a mais antiga em atuação, mas suas atividades não se iniciaram
com o formato de escola de samba, então, o consenso geral considera a “Deixa Falar”,
fundada em 1928 no Estácio de Sá, bairro da então capital brasileira, a primeira agremiação,que traz os aspectos e formatos fundamentais do que se considera uma escola de samba.
Em uma das transmissões e defesas de memória diz respeito ao nome “Escola de
Samba”, a nomenclatura se dava a proximidade do local de fundação, bares da região ser a da
escola normal no largo do Estácio, outra versão diz que os fundadores da deixa falar foram
considerados professores da arte, por isso o termo escola.
O Deixa Falar, além de reunir os jovens revolucionários compositores do bairro,
pretendia também melhorar as relações dos sambistas com a polícia, já que, sem a
autorização policial não tinham direito de promover as rodas de samba no Largo do
Estácio e muito menos desfilar no carnaval. Por isso, trataram logo de legalizar a
situação do grupo. Honra seja feita, a perseguição policial ao samba já não era tão
violenta. Perseguia-se o jovem negro, como antes, durante e depois do Deixa eu
Falar, uma das facetas mais repelentes do racismo brasileiro. Mas raramente por
cantar, dançar ou tocar o samba. (CABRAL, 1996. p.38).
É importante destacar que a considerada primeira escola de samba leva esse título pelo
formato e que a mesma apresentou como proposta inicial, ela desfila com essa estrutura
somente até o ano de 1931. Ela acaba não fazendo parte do primeiro concurso oficial entre
escolas de samba, no ano de 1932, pois voltou a desfilar com o formato de rancho, que na
época, possuía mais “prestígio social”, porém, por conflitos internos encerrou suas atividades.
De todo modo, a agremiação Estácio de Sá, fundada em 1955, que desfila até os dias atuais,
vem a ser reconhecida como primeira escola de samba pelo IPHAN , por se situar na mesma11
região da pioneira escola, declarando-se descendente direta da Deixa Falar.
Figura 2 - Deixa Falar que anos depois se tornou Estácio de Sá, foi a primeira escola de samba do país.
11 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
34
FONTE: Jornal Diário Rio .12
As primeiras escolas de samba a competirem entre si, se encontravam na Praça Onze,
importante epicentro cultural onde relacionavam-se, diversos grupos étnicos, religiosos e
econômicos. Sem dúvidas, o local foi um polo de entrosamento motivado principalmente pelo
samba, atualmente, nesta localidade se encontra a Marquês de Sapucaí, o sambódromo, e o
Terreirão do Samba, espaço cultural com palco, onde ocorrem eventos de samba no carnaval e
ao longo do ano. No ano de 1929 ocorreu não o primeiro desfile, pois não veio com a
característica de cortejo, mas um concurso organizado pelo sambista e pai de Santo Zé
Espinguela. Entre as entidades carnavalescas estavam a Mangueira, Estácio (formação
anterior a atual Estácio de Sá e posterior a Deixa Falar) e a Oswaldo Cruz (que futuramente
viria a se denominar Portela), a última foi a campeã daquele ano.
Essas escolas eram provenientes dos morros e subúrbios, trazendo a
representatividade e a folia para o centro da cidade. Não surpreendentemente, no ano de 1932
participam 19 agremiações no concurso, desta vez, organizado pelo jornal Mundo Esportivo ,13
destaco aqui que tal promoção ocorreu para “cobrir” a falta de campeonatos esportivos na
época carnavalesca.
Nesses anos as escolas não tinham obrigação nenhuma de apresentar samba que se
relacionasse com uma temática ou com o que estava sendo apresentado, a temática era livre.
Mas em 1931 a Portela já vinha trazendo a proposta de relacionar enredo ao samba, isto é,
13Primeiro jornal considerado a dedicar-se inteiramente ao esporte, fundado pelo jornalista Mário Filho,
importante fomentador do carnaval e do futebol, que hoje dá nome ao estádio de futebol Maracanã.
12 Disponível em:
https://diariodorio.com/deixa-falar-a-primeira-escola-de-samba-do-brasil-surgiu-no-estacio/amp/acesso. Acesso
em 05 ago. 2021
https://diariodorio.com/deixa-falar-a-primeira-escola-de-samba-do-brasil-surgiu-no-estacio/amp/acesso
propor uma temática onde fossem cantados samba que se relacionassem com os adereços e
alegorias. E assim, ela apresenta “Sua Majestade o Samba!” exaltando a própria cultura negra
musical, onde sua alegoria vinha como: “um conjunto musical e se constituía de um elemento
da escola chamado Eurico, vestido em uma barrica que representava um pandeiro e um
tamborim sobre a cabeça e os membros (braços e pernas) foram representando vaquetas”
(CANDEIA; ISNARD, 1978, p. 18).
Em 1933, organizado pelo jornal O Globo , ocorreu o primeiro desfile com subvenção14
pública. Este auxílio, ainda que constituído por uma pequena verba, veio da prefeitura do
Distrito Federal. Segundo Cunha (2014, p. 20), somente em 1935 o desfile passa a ser
promovido diretamente pela prefeitura, o que chamou a atenção da prefeitura, foi o elevado
número, eram de 28 escolas de samba na dita União das Escolas de Samba (espécie de Liga
das Escolas de Samba na época), somando o total de 12 mil componentes. Tal popularidade
fez com que as escolas fossem legalizadas através de registro na polícia do Distrito do Rio de
Janeiro, e foi assim que surgiu o título de grêmio recreativo para as escolas de samba.
O ano de 1935 é também um marco, pois obrigatoriamente, pelas normas estabelecidas
pela prefeitura, os enredos das escolas de samba passam a ser adotados pelo tema obrigatório
“exaltação a Cultura Nacional”, não tardou a acontecer outro marco semelhante, a Liga da
Defesa Nacional (LND) e a União Nacional dos Estudantes (UNE), deliberam juntos as
escolas e determinando a obrigatoriedade de produzir enredos que exaltasse a luta brasileira e
incentivar o alistamento militar na Segunda Guerra Mundial, pois o Brasil apesar de
vivenciar a ditadura do Estado Novo à época, resolveu entrar na guerra: “ao lado das
democracias liberais do ocidente” (LOPES; SIMAS, 2015, p. 140). E assim, entre os anos de
1943 e 1945 acontecem os conhecidos “carnavais da Guerra” e até o fim deste marco, as
escolas apresentam esta narrativa comum. Em 1946 ocorre o “carnaval da vitória” que exalta
e comemora o fim da guerra com êxito.
1.4 BARREIRAS RACIAIS SOFRIDAS PELO SAMBA - DEMOCRACIA RACIAL,
PERDA DA IDENTIDADE E FINANCIAMENTO EXTERNO
A partir da mnemônica da cultura africana através do samba, e do cultivo feito por seus
descendentes, despertou-se um aspecto transformador que interferiu diretamente na execução
14 Jornal ainda em atividade. Integrante do Grupo Globo, foi fundado em 1925 por Irineu Marinho.
36
e propagação das tradições e manifestos negros, a "democracia racial". Ao mesmo tempo em
que há a marginalização, a difícil aceitação, a proibição e a diminuição do samba, a
democracia racial cultivou transformações e inserções, a partir do ideal de que todos são
iguais, filhos de um mesmo "Deus" (aqui refiro a cultura cristã muito utilizada como artifício
político e ainda dominante em nosso país), abrem-se portas para transformações da cultura
das minorias em produtos midiáticos. Isto porque, a partir do momento que se vislumbrou o
carnaval como algo rentável, houve uma popularidade de interesses, refletiram na integração
racial, muitas pessoas brancas usaram do aspecto democrático para se inserirem neste meio. A
autora Ana Maria Rodrigues traz um relato no livro “Samba Negro Espoliação Branca”,
contando que: "a inclusão do elemento branco é tão recente e abrupta que um dos nossos
informantes declarou: 'é de surpreender que da perseguição tenhamos passado a uma
aceitação sem limites...'preocupa-me descobrir os limites desta aceitação" (RODRIGUES,
1984, p. 4).
A exploração capital é um dos aspectos mais transformadores da cultura negra
carnavalesca, o racismo ainda é muito presente, visto que, a partir do momento que muitas
pessoas brancas passaram a se inserir dentro das escolas de samba, em geral ocupando cargos
de poder, como presidência, diretoria, carnavalesco e destaque , há também a transformação15
plástica e oral (enredo e letra dos sambas), ou seja, na forma de contar e transmitir. E por
esses mesmos feitos, muitas vezes, as escolas passaram a adotar novas personalidades e novos
modelos,que se diferem do aspecto cultuado antes.
Comparo aqui a gentrificação, que: “corresponde ao processo de modificação do espaço
urbano, em que áreas periféricas são remodeladas e transformadas em espaços nobres ou
comerciais.” , à eugenia, tiraram o aspecto negro e visando a exclusão de elementos16
comportamentais e culturais não tão desejados, trazendo uma roupagem mais “socialmente
aceita”. Basicamente, passa a ocorrer traços racistas para que o produto carnavalesco seja
vendido com mais facilidade.
16 Gentrificação. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/gentrificacao.htm. Acesso em 08
Ago 2021.
15 Desfilantes que representam as figuras/personagens mais importantes de um desfile. Diferem-se dos demais
foliões por trajarem fantasias luxuosas e por ocuparem posições de literalmente destaque, isto é, nas posições
mais altas dos carros alegóricos e ou em espaços privados, para essa pessoa, no chão.
https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/gentrificacao.htm
Enredos patrocinados foram umas das formas de rentabilizar e transformar em “produto
carnaval”, a partir do momento que se entendem os enredos carnavalescos como meio oral de
propagação de ideias e mecanismos de marketing.
É importante destacar que esses acontecimentos não são uma tomada de espaço forçada,
muitas vezes as próprias escolas de samba cedem para, que o objetivo final, que é ganhar o
carnaval e fazer um desfile grandioso, esteja acima do padrão das outras escolas, mas, essas
cessões acabam por desencadear consequências da perda da identidade. Uma das formas de
marketing utilizadas são os enredos patrocinados, em que a escola em contato com alguma
empresa, cidade ou personalidade, faz publicidade desta, em troca de capital. Assim foi em
2002, quando a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro levou para avenida o enredo
intitulado “Asas de um Sonho, Viajando com o Salgueiro, o Orgulho de ser Brasileiro”,
utilizando no título do enredo o slogan da TAM, companhia aérea patrocinadora do desfile.
Esses enredos rendem milhões de reais, e como vitrines, as escolas de samba investem em
desfiles grandiosos e luxuosos. Mas enredos como o apresentado pelo Salgueiro, logicamente
possuía pouca identificação para a sua comunidade do Morro do Salgueiro , formada17
majoritariamente por pessoas da classe média baixa, que pouca ou nenhuma oportunidade
possuíam de fazer viagens aéreas.
A mesma “cessão” ocorre dentro das escolas de samba quanto a figura de alguns dos
grandes “patronos” ou “presidentes de honra”, personalidades de poder, ligados em geral a
alguma atividade ilícita ou negócios paralelos, como o jogo do bicho . Os bicheiros mesmo18
tendo sua figura diretamente ligada a contravenção penal , ao mesmo tempo que obtêm19
prestígio, visibilidade e confiança dentro das escolas de samba, como contrapartida, são
alguns dos principais investidores de algumas agremiações, visto que a cultura carnavalesca
só cresce, que os concursos seguem cada vez mais acirrados e os investimentos públicos
19 O jogo do bicho é proibido pela Lei das Contravenções Penais - Decreto-lei 3688/41. É considerado
contravenção juntamente com jogos de azar, atividade de cassino e exploração não autorizada de loterias,
correspondendo também ao crime de formação de quadrilha e corrupção.
18 O jogo do bicho foi criado em 1892 pelo barão João Batista Viana Drummond, dono do Jardim Zoológico do
Rio de Janeiro, em Vila Isabel, Rio de Janeiro. É um jogo de loteria, em números que representam animais,
porém, trata-se de uma bolsa ilegal de apostas.
17 O Morro do Salgueiro é uma favela localizada no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro.
38
vindo como subvenção estatal são uma parcela irrisória comparado aos espetáculos
apresentados .20
O interesse pelo investimento no espetáculo faz com que haja uma vinculação do
simbólico e o econômico, e que esses de alguma forma caminhem muitas vezes em harmonia,
pelo objetivo final que é a espetacularização.
É importante ressaltar que a mensagem do enredo passa por diversas metamorfoses. A
negociação dos temas a serem apresentados depende não só e unicamente do capital, mas
também do contexto político de cada época, como vimos anteriormente com a Segunda
Guerra Mundial, e como veremos adiante sobre o contexto atual, onde há uma valorização da
identidade negra muito forte e atuante dentro das escolas de sambas. Pretendemos ao final
verificar se mesmo com essas intervenções econômicas o viés identitário segue como
prioridade para a comunidade do samba.
No capítulo seguinte trarei novamente a temática dos enredos patrocinados como parte
da descaracterização identitária trazendo um mapeamento e dados de algumas décadas dos
desfiles, visto que eles cercam e se popularizam entre as escolas de samba principalmente no
primeiro decênio dos anos 2000.
20 Em geral, as subvenções repassadas para as escolas de samba, feitas pela RioTur, variam, principalmente a
cada gestão. Em 2017 o repasse para cada escola foi de 2 milhões, em 2018 de 1 milhão e em 2019 foi para 500
mil. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/noticia/2020/02/escolas-de-samba-amargam-baixo-interesse-de-patrocinadores-n
o-rio.shtml Acesso em 23 ago 2021.
“R$ 26 milhões no Carnaval geram R$ 2,2 bilhões para economia do Rio, diz ministro” Disponível em:
https://setor1.band.uol.com.br/r-26-milhoes-no-carnaval-geram-r-22-bilhoes-para-economia-do-rio-diz-ministro/.
Acesso em 02 set 2021.
“Os desfiles são caríssimos: chegam a girar em torno de R $ 8,3 milhões a R $ 16,7 milhões, segundo as
principais reportagens sobre o tema. Dessa maneira, as agremiações não se contentam e não se sustentam apenas
com a verba cedida pelo governo e passam a apostar na captação de patrocínio”. Matéria da redação o site
Exame. 2015. Disponível em:
https://exame.com/marketing/os-sucessos-e-fracassos-dos-sambas-enredos-patrocinados/. Acesso em 23 ago
2021.
https://www1.folha.uol.com.br/noticia/2020/02/escolas-de-samba-amargam-baixo-interesse-de-patrocinadores-no-rio.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/noticia/2020/02/escolas-de-samba-amargam-baixo-interesse-de-patrocinadores-no-rio.shtml
https://setor1.band.uol.com.br/r-26-milhoes-no-carnaval-geram-r-22-bilhoes-para-economia-do-rio-diz-ministro/
https://exame.com.br/topicos/patrocinio
https://exame.com/marketing/os-sucessos-e-fracassos-dos-sambas-enredos-patrocinados/
2 OS ENREDOS DAS ESCOLAS DE SAMBA DO CARNAVAL DO RIO DE
JANEIRO: A TEMÁTICA NEGRA COMO EXALTAÇÃO DA MEMÓRIA E LUTA
POR DIREITOS
O propósito deste capítulo é apresentar os enredos das escolas de samba, no período
compreendido de 1988 – ano em que ocorre o marco dos 100 anos da abolição da escravatura
- até o período atual 2021/2022, - as escolas apresentam seus enredos após o carnaval de
2020, mas com a pandemia instaurada pelo vírus da COVID-19, e o isolamento social foi
necessário o cancelamento dos desfiles de 2021 e a transferência dos enredos para o ano de
2022.
Serão apresentados no “Apêndice A” desta monografia, os títulos dos enredos de todos
os desfiles que ocorreram dentro desse período de 33 anos, deles deles, extraídas as temáticas
negras, isto é, poéticas que abordam diretamente a exaltação, manifesto, homenagens e a
mnemônica da negritude . A partir dessas identificações, utilizaremos o termo “temática”21
negra para nos referirmos a elas, isto porque, entendemos como negritude, o orgulho do
identitário racial, das descendências Africanas, da consciência e da valorização da cultura
negra como um todo.
Apresentaremos a problemática envolvida nos enredos patrocinados, que acabam por
desempenhar um papel de exaltar cidades quando são os municípios seus patrocinadores ou
marcas quando há o patrocínio por empresas. Disso decorre um afastamento da escola quanto
à identidade das comunidades que lhe deram origem, o que dificulta a mobilização do enredo
como oportunidade de exaltação da memória e manifesto político de luta por direitos.
Faremos a apresentação de alguns dos enredos que marcaramo sambódromo, e o que
elas representaram para a comunidade do samba. Por último, apresentaremos como os enredos
das escolas de samba são manifestações de reivindicações de direitos e como o Direito à
Memória realizado por meio do carnaval possibilita a afirmação da identidade da população
21 Exaltação - Entendemos como exaltação, a vontade de dispor e celebrar a importância de algo, ou alguém,
neste caso, seria a memória negra e aqueles que se envolvem diretamente com a identidade destes. Ainda,
fazemos uma referência ao “samba-exaltação” surgido em 1939, o gênero de caráter grandioso possuía letras
ufanistas, enaltecendo a grandiosidade do país, nesta releitura o que será exaltado dentro do samba, é a própria
cultura negra.
Manifesto - Utilizaremos a palavra “manifesto” e suas variações para referenciar a mobilização de cunho social,
político ou cultural, a fim de expressar, ou legitimar, uma mensagem, ou um apelo como forma de luta pelos
direitos da população negra.
40
negra, e como o Projeto de Lei 256/2019 que tramita no Senado Federal vai ao encontro da
preservação da memória apresentada nesta pesquisa, mas como o cenário político atual vai de
encontro a sua proposta.
2.1 APRESENTAÇÃO E MAPEAMENTO DE ENREDOS DAS ESCOLAS DE SAMBA
(COM RECORTE DE 33 ANOS DE DESFILES 1988 - 2021)
Apesar de apresentarmos esses dados, que figuram os enredos focados em uma
narrativa preta, frisa-se aqui que são numerosos também, os enredos que apresentam ao longo
do seu texto-sinopses, passagens que exaltam a cultura negra. Muitos dos enredos analisados
para esse levantamento, apresentavam como corpo da formação da história brasileira, a
identidade e importância dos povos originários e pretos para a formação do país, a
importância da cultura Africana, e em outros, homenageados negros faziam parte da memória
dos enredos, como a escola de samba Mocidade Independe de Padre Miguel, que em 2009
apresenta o enredo Mocidade apresenta: Clube Literário Machado de Assis e Guimarães
Rosa, estrelas em poesia, em que um dos homenageados é o poeta negro Machado de Assis,
nestes casos abordaremos na tabela como “parcial”, isto é, apresenta em uma parcela
relevante do seu enredo a temática negra, mas não tem o foco total nela.
Gráfico 1 - Enredos Pretos por Ano
Fonte: Elaborado pela autora Kamila Maria da Silva. 2021.
No gráfico acima, conseguimos visualizar as abordagens por décadas, em que a média
da temática negra era por volta de 2 a 3 escolas por ano. As Linhas dos gráficos têm grandes
saltos, entre em 2020, e 2021/2022, abordaremos no tópico 2.2 o uma hipótese sobre o que
pode ter causado os picos nesses anos.
2.1.1 ANÁLISE QUANTITATIVA/COMPARATIVA DAS TEMÁTICAS DOS ENREDOS
QUE TIVERAM MANIFESTAÇÕES AFIRMATIVAS NEGRAS A PARTIR DO
CONTEXTO DE CADA DÉCADA
Um levantamento extraído desses dados é que, de todos desfiles, não houve
representação total negra em 10 deles. Outro dado importante, é que em 2 desses anos, não
coincidentemente, há um alto pico dos chamados popularmente pelos sambistas, enredos
“CEP”.
Os enredos CEP são aqueles patrocinados por prefeituras, governos de estado ou até
mesmo um país, exaltam cidades ou locais, ou marcas específicas, patrocinados por empresas
privadas. Utilizaremos nesta monografia a terminologia “CEP” como sigla para “Cidade,
Estado ou País” ou “Cidade, Estado ou Patrocínio”, visto que em geral esses enredos visam
arrecadar capital considerável para as escolas em troca de uma abordagem, que visa propagar
determinada localidade e incentivar o turismo, ou, propagar um produto ou marca, afim de
angariar futuros consumidores. Esses patrocínios visam arcar com parte do custo do desfile,
em troca de publicidade ou marketing, inseridos implicitamente no desfile, enredo ou samba.
Implicitamente, porque os regulamentos proíbem enredos de cunho comercial, haja vista, que
as escolas recebem subvenção das emissoras pelo direito de transmissão, e que essas
“propagandas” conflitam com as patrocinadoras da TV. Exemplo deste caso, temos o desfile
de 2010, da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, “Das arquibancadas ao camarote nº
1, um "Grande Rio" de emoção, na apoteose do seu coração”. O camarote nº 1 era o
tradicional camarote da cervejaria Brahma, que naquele ano completava 20 anos presente nos
desfiles da Sapucaí, No entanto, a TV Globo, emissora responsável pela transmissão, estava
sendo patrocinada pela cerveja Nova Schin. Tal conflito, fez com que em momentos da
transmissão deste desfile não fosse possível ouvir o samba, que em sua letra, mencionava o tal
camarote.
42
No gráfico abaixo podemos ter noção de quantos enredos foram patrocinados ao longo
dos anos mapeados. É importante frisar que, neste caso, os números não são exatos, isto
porque, como mencionado anteriormente, os patrocínios são implícitos, e ao menos que seja
de fácil identificação ou estejam nas mídias e jornais essas informações, somente a leitura das
sinopses dos enredos ou das letras dos sambas, não são suficientes para identificá-las. O que
se propõe a discutir sobre esses números é o quanto a “onda” dos enredos que visam o
levantamento de recursos financeiros, é provocativa para perda identitária das escolas, que em
algumas ocasiões, deixam de propor uma abordagem com um viés político ou que os foliões
das escolas se identifiquem, para se manifestarem de acordo com uma proposta comercial,
sem que valorizassem a memória ou fizesse a reivindicação de direitos. Foi o caso da
Mangueira, que em 2013 deixou de prestar homenagem ao centenário de uma das figuras
negras mais importantes e influentes da sua história, o intérprete Jamelão, para contar com o
patrocínio do município de Cuiabá.
Gráfico 2 - Enredos Pretos e Enredos Patrocinados
Fonte: Elaborado pela autora Kamila Maria da Silva. 2021.
Nos anos de 2002 e 2013, como podemos observar, não houve desfiles que traziam
temática negra em destaque, todavia, ressalta-se com esse levantamento, que nesses mesmos
anos, houveram os grandes picos de enredos CEP, o que nos leva a concluir que o apagamento
identitário e de manifesto, está ligado diretamente com este fator, que influenciou, não só
esses anos especificamente, mas um vasto período que os cercam.
Perde-se identidade e cria-se um acordo empresarial, em que os componentes são
apenas peças propagandas de uma marca, existindo um sentimento vazio de representação. O
carnavalesco Milton Cunha, em entrevista cedida a TV Brasil comenta sobre as problemáticas
dos enredos patrocinados: “Dinheiro só é bem-vindo, quando ele é pra ajudar a embelezar os
sambistas, e não, aprisionar a escola de samba em enredos que vão divulgar alguma coisa [...]
eles só querem que a gente fale que eles são lindos o tempo inteiro, o problema do patrocínio
é que você tem que ser chapa branca, você só pode dizer que tudo é maravilhoso. E a
realidade é boa e má ao mesmo tempo” .22
2.1.2 ANÁLISE DE ALGUNS DOS ENREDOS QUE MARCARAM HISTÓRIA POR SUA
EXALTAÇÃO DA MEMÓRIA DO POVO NEGRO E MANIFESTAÇÃO DE SUA LUTA
POR DIREITOS
Passando brevemente pelo primeiro ano pesquisado, 3 escolas trouxeram temáticas
negras, foram as agremiações: Unidos de Vila Isabel, Beija-Flor de Nilópolis e Estação
Primeira de Mangueira. Não coincidentemente, as três fizeram alusão a liberdade, isto porque,
o ano de 1988 é um marco cronológico para a cultura negra, nele é “celebrado” os 100 da Lei
Áurea, que põe fim a escravização no Brasil. De forma crítica, a Mangueira trata em uma
passagem da sua sinopse que: “Nos tempos modernos, a grande maioria negra passou a viver
nas favelas devido à falta de estrutura dos pós libertação, tendo em vista que não lhe foi dado
o mínimo para enfrentar a nova realidade social” . Ressalto que a importância da consciência23
racial e a visão de que o fim da escravização, apesar de parecer tão distante, ainda era/é muito
presente no dia a dia dos negros das comunidades. Em outro trecho, a escola reafirma essa
consciência social, pautadas pelo racismo quando

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