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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CAMPUS REITOR JOÃO DAVID FERREIRA LIMA DEPARTAMENTO DE DIREITO KAMILA MARIA DA SILVA Do Semba Ao Samba - Um Exercício Do Direito Fundamental À Memória Resistência Sociocultural dos Negros no Brasil Através dos Enredos das Escolas de Samba Florianópolis 2021 Kamila Maria da Silva Do Semba ao Samba - Um exercício do Direito Fundamental à Memória. Resistência Sociocultural dos Negros no Brasil Através dos Enredos das Escolas de Samba Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Profa. Dra. Luana Renostro Heinen Florianópolis 2021 Ficha de identificação da obra Silva, Kamila Maria da Do Semba ao Samba - Um Exercício do Direito Fundamental à Memória : Resistência Sociocultural dos Negros no Brasil Através dos Enredos das Escolas de Samba / Kamila Maria da Silva ; orientadora, Luana Renostro Heinen, 2021. 78 p. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) - Universidade Federal de Santa Catarina , Graduação em Direito, Florianópolis, 2021. Inclui referências. 1. Direito. 2. Escolas de Samba. 3. Direito à Memória. 4. Direito Constitucional. 5. Manifestação Negra. I. Heinen, Luana Renostro. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Graduação em Direito. III. Título. Kamila Maria da Silva Do Semba ao Samba - Um exercício do Direito Fundamental à Memória. Resistência Sociocultural dos Negros no Brasil Através dos Enredos das Escolas de Samba Este Trabalho Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do Título de “Bacharel em Direito” e aprovado em sua forma final pelo Curso de Direito. Florianópolis, 24 de Setembro de 2021. ________________________ Prof. Luiz Henrique Urquhart Cademartori, Dr. Coordenador do Curso Banca Examinadora: ________________________ Profa. Luana Renostro Heinen, Dra. Orientadora Instituição UFSC ________________________ Mestranda PPGD Leticia Blank Netto, Avaliadora Instituição UFSC ________________________ Mestrando PPGD Edmo Cidade, Avaliador Instituição UFSC ________________________ Prof. Doutorando PPGD Rodrigo Sartoti, Avaliador Instituição UFSC Dedico este trabalho aos mais velhos, que vieram antes de mim, me mostraram o caminho e se dedicaram a transmitir seus conhecimentos. Dedico também aos mais novos, por continuarem a transformar e por acreditarem no poder da transmissão. Antes de sermos corpos, somos ancestralidade. UBUNTU. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, à minha orientadora Luana Renostro Heinen, que com muito respeito e dedicação, mesmo vivendo um momento atípico em que nos encontramos nesse momento, se dispôs a estar sempre presente. Obrigada por me auxiliar e aconselhar, com muita paciência, e por me conduzir à conclusão deste trabalho. Agradeço aos meus pais, por serem os principais incentivadores a cursar a graduação em Direito, em especial a minha mãe Ida Maris dos Santos, uma mulher guerreira, que educou seis filhos e o reflexo de todo seu esforço, apoio e incentivo nos estudos está no orgulho de dizer a todos que tem cinco filhos negros cursando o nível superior. Todo o meu esforço e dos meus irmãos é por você e pelos incansáveis dias e noites que se dedicou a nós. Ainda, destaco aqui meu agradecimento a minha irmã mais nova, Maria Luiza, que mesmo com seus 11 anos de idade, foi uma das principais incentivadoras para escrever as páginas desta monografia. Minha gratidão aos meus amigos, pelas conversas leves, pelos conselhos e por serem minhas principais referências negras e artísticas. Não poderia deixar de citar aqui dois grandes amigos, pois esse trabalho não teria acontecido se não fosse o apoio deles desde o início. Andria Santos, minha amiga, colega de curso, que foi também minha colega de estágio e hoje tem a minha família como extensão da sua, sou eternamente grata ao curso de Direito por ter conhecido você, obrigada pelas revisões e trocas. O outro agradecimento se estende ao André Rodrigues, que é muito mais que um amigo, é um anjo que surgiu em minha vida. O título e a inspiração do tema do trabalho de conclusão de curso é fonte das incansáveis noites que passamos conversando sobre nós, nossas memórias, nossa ancestralidade, nosso amor à arte e ao carnaval. Tenho muito orgulho em fazer parte do processo reconhecer a “pretitude” que existe em nós. Agradeço aos mestres do corpo docente, a coordenação, a direção do curso de Direito e a Universidade Federal de Santa Catarina. A educação Pública e de qualidade oferecida neste país, por resistir a tantas atrocidades e abandonos, graças a ela, nós negros e negras seguimos firmes e ocupando espaços, que a poucos anos atrás seriam inimagináveis. Encerro agradecendo a todos que direta ou indiretamente fizeram parte do meu processo educacional e da minha formação. “Dentro do samba eu nasci, me criei, me converti e ninguém vai tombar a minha bandeira” (João Nogueira e Paulo César Pinheiro) RESUMO O presente trabalho acadêmico versa sobre o Direito à Memória da população negra no Brasil e como ele é exercido pelas escolas de samba através dos desfiles carnavalescos. O problema levantado é: as escolas de samba exercitam o direito fundamental à memória através dos enredos das escolas de samba? Para respondermos e justificarmos que sim, usamos como sustentação fundamentos legais e históricos. Os Artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, preveem proteção legal às manifestações artísticas, exercidas pelos povos formadores da sociedade brasileira e aos patrimônios culturais. Abordamos a história da origem das escolas de samba, a estrutura atual e como os patrocínios e as empresas privadas interferem e/ou suprem alguns desfiles para aferir as hipóteses levantadas pelo problema. Faremos uma análise quantitativa e comparativa dos enredos negros das agremiações, lançados entre 1988 e 2021, para entendermos o modo de abordagem e como o cenário de cada marco cronológico político influencia na escolha dos temas. E no fim, através de uma análise social e jurídica, demonstraremos como o Estado desempenha o papel de proteger a maior manifestação popular artística do país. Palavras-chave: Escolas de Samba. Direito à Memória. Direito Constitucional. Manifestação Negra. Patrimônio Cultural. ABSTRACT This academic work deals with the Right to Memory of the black population in Brazil and how it is exercised by samba schools through carnival parades. The raised problem is: do samba schools exercise the fundamental right to memory through the plots? To answer and justify that we do use legal and historical grounds as support. Articles 215 and 216 of the Federal Constitution of 1988 provide for legal protection to artistic expressions, exercised by the people who form Brazilian society, and for cultural heritage. We will cover the history of samba schools’ origin, the current structure and how sponsorships and private companies interfere and/or supply some parades to assess the hypotheses raised by the problem. A quantitative comparative analysis is made of the black plots of the associations, launched between 1988 and 2021, in order to understand the approach and how the scenario of each political chronological milestone influences the choice of themes. And at the end, through a social and legal analysis, it is demonstrated how the State plays the role of protecting the largest popular artistic manifestation in the country. Keywords: Samba Schools. Right to Memory. Constitutional Right. Black Demonstration. Cultural Heritage. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Rancho “O Macaco é Outro” 31 Figura 2 - Deixa Falar 33 Gráfico 1 - Enredos Pretos por Ano 38 Gráfico 2 - Enredos Pretos e Enredos Patrocinados 40 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 14 1 DIREITO À MEMÓRIA: O CARNAVAL COMO MANIFESTAÇÃO DA CULTURAL POPULAR 16 1.1 O QUE É ODIREITO À MEMÓRIA 16 1.1.1 Direito à Memória como Direito Fundamental na Constituição de 1988 19 1.2 DIREITO À MEMÓRIA COMO GARANTIA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E DA CULTURA POPULAR 25 1.3 DO SEMBA AO SAMBA: AS ORIGENS 26 1.3.1 Quando Tocar Samba Dava Cadeia - Lei da Vadiagem 28 1.3.2 Antes das Escolas de Samba 30 1.3.3 Origem das Escolas de Samba 32 1.4 BARREIRAS RACIAIS SOFRIDAS PELO SAMBA - DEMOCRACIA RACIAL, PERDA DA IDENTIDADE E FINANCIAMENTO EXTERNO 35 2 OS ENREDOS DAS ESCOLAS DE SAMBA DO CARNAVAL DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA NEGRA COMO EXALTAÇÃO DA MEMÓRIA E LUTA POR DIREITOS 39 2.1 APRESENTAÇÃO E MAPEAMENTO DE ENREDOS DAS ESCOLAS DE SAMBA (COM RECORTE DE 33 ANOS DE DESFILES 1988 - 2021) 40 2.1.1 Análise Quantitativa/Comparativa das Temáticas dos Enredos Que Tiveram Manifestações Afirmativas Negras a Partir do Contexto de cada Década 41 2.1.2 Análise de Alguns dos Enredos que Marcaram História por sua Exaltação da Memória do Povo Negro e Manifestação de sua Luta por Direitos 43 2.1.2.1 Kizomba, Festa da Raça - Unidos de Vila Isabel 1988 44 2.1.2.2 A Saga de Agotime, Maria Mineira Naê - Beija-Flor de Nilópolis 2001 46 2.1.2.3 Meu Deus, Meu Deus Está Extinta a Escravidão? - Paraíso do Tuiuti 2018 47 2.1.2.4 Elza Deusa Soares - Mocidade Independente de Padre Miguel 2020 49 2.2 COMO OS ENREDOS DAS ESCOLAS DE SAMBA SÃO MANIFESTAÇÕES DE REIVINDICAÇÕES DE DIREITOS 50 2.3 COMO O DIREITO À MEMÓRIA REALIZADO POR MEIO DO CARNAVAL POSSIBILITA A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE DA POPULAÇÃO NEGRA - PL 256/2019 52 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 54 REFERÊNCIAS 56 APÊNDICE A - Tabelas dos títulos dos enredos das Escolas de Samba do Rio de Janeiro do período de 1988 até 2022 58 INTRODUÇÃO Visto que o carnaval das escolas de samba é fruto de manifestação popular de minorias, majoritariamente negra e periférica, buscaremos a importância do carnaval como manifestação popular de preservação e cultivo do Direito à Memória. Uma vez que há uma tentativa de matar o simbólico através do memoricídio, em que se busca apagar importância de outras culturas brasileiras, colocando o eurocentrismo como culto único e marginalizando outras manifestações, diversas escolas de samba desafiam a tentativa de matar a cultura popular e trazem, através da oralidade, que caracteriza o seu modo de transmissão de saberes, essas propostas de enredos em diversos desfiles. E ao mesmo tempo que brincam e manifestam seus Direitos, exaltam suas histórias através de outros pontos de vista. Visamos compreender a centralidade do direito à memória para a construção social negra, Identificar o arcabouço jurídico e políticas públicas acerca do manifesto cultural carnavalesco, através de uma abordagem histórica da origem do carnaval carioca, a partir da da cultura Africana trazida pelos povos escravizados, Analisaremos Os Artigos 215 e 216 da Constituição Federal, que propõem proteção legal para o patrimônio público e a memória da população formadora da sociedade brasileira, além de trazer uma análise do Projeto de Lei 256/2019, que tramita no Senado Federal e que tem por fito reconhecer as escolas de samba como manifestação da cultura nacional. Apresentaremos a estrutura do carnaval atualmente e mapearemos os temas de enredos das escolas de samba do grupo especial da cidade do Rio de Janeiro, antiga capital brasileira e cidade onde ocorreram os primeiros manifestos do modelo de carnaval que será apresentado. Entre os diversos enredos serão selecionados aqueles cuja temática seja: protestos, manifestos por seus direitos e reinvindicações políticas voltadas à história dos povos negros e periféricos. Para sustentação do tema, serão utilizadas obras sobre a história do carnaval, bem como sobre o direito à memória, e ainda, materiais históricos e de mídias, como jornais que se voltam a arquivar a memória carnavalesca .1 1 Utilizaremos como principal fonte o acervo disponível no site Galeria do Samba, o qual reúne os desfiles, enredos e samba de diversos anos. Disponível em: https://galeriadosamba.com.br/. Acesso em: 19 ago 2021. https://galeriadosamba.com.br/ 14 Visto que partiremos da análise jurídica e da comprovada formação social das escolas de samba e também a visão através da análise social, o método a ser utilizado para essa pesquisa é o de análise de discurso, mais precisamente, a da corrente da análise de conteúdo, que trata de “relacionar a frequência da citação de alguns temas, palavras ou ideias em um texto para medir o peso relativo atribuído a um determinado assunto pelo seu autor” (CHIZZOTTI, 2010, p.114). Este método, visa analisar as comunicações e interpretar o seu conteúdo, pois através da coleta de dados sobre os enredos que passaram na Marquês de Sapucaí, desdobrarmos os impactos sociais decorrentes dos fatores históricos e a interferências de outras culturas no processo identitário e as mensagens por trás de cada enredo abordado. É um trabalho que se insere no campo dos Estudos Jurídicos e Culturais, aliando-os à teoria literária, linguística, filosofia, sociologia, antropologia e a história. Pensar no direito à memória como propósito de pesquisa é muito importante, haja vista os poucos estudos e pesquisas, em especial focados em trabalhar a cultura como objeto principal.. Trazer o tema para questões sociais a partir de um ponto de vista histórico-jurídico, do desenvolvimento e da conquista dos direitos por parte da população afro-brasileira, é trazer também um outro olhar para esse direito fundamental, de forma que, espera-se, esse trabalho acadêmico servirá também como fonte para futuras pesquisas, já que uma das propostas é mapear e catalogar as temáticas que foram abordadas por essa parcela da população em seus manifestos populares. Ainda hoje, o modelo de carnaval das escolas de samba tem como objetivo não só a pregação da festa cristã e da figura momesca, ela é percursora e interlocutora de mensagens sociais, através das letras de samba-enredo, fantasias e alegorias, que serão mapeados em um dos capítulos do trabalho. São mais de 100 anos como veículo que dá voz a essa parcela da população minoritária, apesar de ser muito recente a garantia constitucional à memória. A construção da ideia de sociedade no Brasil possui uma narrativa distorcida por sua estrutura cronológica histórica, visto que antes do país se tornar República (1889), os negros de África que aqui chegaram como escravizados eram considerados como objetos de posse e não como pessoas/cidadãos. Sabendo que essa parcela da população não foi reinserida, mas que trouxe como bagagem hábitos culturais valiosos, legislações que assegurassem a permanência e propagação das memórias coletivas de grupos minoritários, movimentação que tem por fim valorização dos Direitos Humanos, sempre se fizeram necessárias. Tendo isso em mente, a proposta deste trabalho visa fazer um conectivo do direito fundamental à memória com o movimento social proposto pelas escolas de samba, que surgem no Rio de Janeiro em comunidades periféricas, onde os negros após abolição, se reuniram/aglomeraram formando grandes subúrbios, dando origem a grandes quilombos urbanos, movimentando-se culturalmente através da cultura carnavalesca, surgida no início do Século XX. Escrever e pesquisar sobre o tema vem da própria construção e educação social da autora. Sendo uma mulher negra, moradora de uma das comunidades periféricas de Florianópolis, cresceu com contato direto com a cultura carnavalesca das escolas de samba. E de forma natural, as vivências negras e ancestrais, oralizadas através dos cantos dos sambas de enredo e das reuniões carnavalescas,sempre lhe foram presentes. De modo que aprendeu sobre história, suas origens, ancestralidade e sobre manifestação social para além da sala de aula na educação tradicional escolar, por meio da transmissão oral e dos sambas de enredo. Após ingressar no meio universitário, uma outra óptica de estudos sociais se fez presente. A Sociologia Jurídica se apresenta como um campo para estudar como as manifestações culturais fazem parte de uma construção identitária para conquista e reivindicações de Direitos pelos cidadãos negros das comunidades. Vislumbra-se, a partir de então, a possibilidade de estabelecer a construção de um diálogo entre a sociedade marginalizada e o sistema jurídico posto, através da pesquisa dos fatores sociais que os contrastam. 16 1 DIREITO À MEMÓRIA: O CARNAVAL COMO MANIFESTAÇÃO DA CULTURAL POPULAR 1.1. O QUE É O DIREITO À MEMÓRIA Para adentrarmos no núcleo da pesquisa, que é o direito fundamental à memória exercido pelas escolas de samba, primeiramente precisamos conceituar o direito à memória em seu sentido literal e histórico do termo. A partir do momento em que se há um compartilhamento entre indivíduos, temos a transmissão da memória. Neste ponto, podemos ter a fragmentariedade da compreensão inicial, visto que aquilo que foi memorado em primeiro plano por alguém, a partir do momento que é transmitido a outrem (de forma escrita ou oralizada), passa por um processo de transformação, haja vista que a individualidade é um campo único, onde cada um irá contar, a partir do seu ponto de vista com as suas palavras as suas memórias. O autor Frances Yates, compreende esse aspecto denominando memória artificial, termo que dá significado como: “auxiliar e assistente da memória natural, a que chama ‘artificial’ devido ao termo ‘arte’, porque ela é encontrada artificialmente, pela sutileza da mente” (1966 p. 58). Esse segundo ato se utiliza de artifícios para transmissão, em que temos a subjetividade e unidade de cada ser em sua forma particular de transmitir. Fabiana Dantas, defende em sua tese que: “Do ponto de vista psicológico a memória confere ao indivíduo a consciência de sua subjetividade, bem como possibilita a sua inserção no corpo social através da identificação cultural”. (2008, p. 46). E é nesse campo do Direito à Memória, conceituada também como o Direito de transmissão, mostrando que a memória é uma necessidade tanto individual como um bem da coletividade, isso é, passada de uma pessoa a outra através da arte mnemônica, que esta pesquisa irá se debruçar. A memória pode ser conceituada também como o processo seletivo de retenção e utilização contínua de ideias, impressões, imagens, conhecimentos e experiências adquiridas e vividas anteriormente. Inseri-la como direito de um povo, comunidade ou grupo, é garantir que seus cultos, costumes, bem como acontecimentos ou marcos históricos, não sejam apagados por processos de dominação, dentro de uma ordem colonial (KILOMBA, 2008, p. 69). É importante compreendermos que nem sempre aquilo que se trata de tradição de um grupo e será transmitido, será baseado em fatos provados cientificamente, muitas vezes, esses podem provir de suas crenças ou religiões. E dentro dessa classificação a preservação é necessária, pois: “A falta da memória coletiva levaria à destruição dos valores, crenças e normas de conduta forjadas no curso da história de cada povo, minando assim o alicerce das suas instituições” (DANTAS, 2008 p. 47). O que importa para serem preservados é a história, a cultura e os hábitos, isto é, as características que formam a identidade do grupo de pessoas. Essa necessidade de preservação se dá especialmente em comunidades marginalizadas pela sociedade, como os grupos étnicos, alvos de etnocídio e memoricídio. Segundo Fernando Báez: O memoricídio consiste na eliminação de todo o patrimônio, seja ele tangível ou intangível, que simboliza resistência a partir do passado [...]. Controlar o passado é a melhor forma de planejar o futuro. Por isso, as elites culturais, subordinadas aos centros hegemônicos metropolitanos, aproveitaram-se da amnésia para abandonar qualquer tipo de resistência. A transculturação ou substituição da memória foi executada com perfídia em três etapas: a) pelo estilhaçamento da memória subjugada, aparecendo nas perdas e nostalgias; b) pela incorporação forçada da cultura dominante; c) e, pela elaboração, por parte dos sobreviventes, de estratégias de resistência e integração assinaladas pelo grau de contato” (apud RAMPINELLI, 2013, p. 139). Um dos atributos mais fortes do Direito à Memória, é compreender que, por sua maleabilidade, não existe uma história ou versão única, e sim, uma oportunidade de recontar uma história, a partir de outros pontos de vista. Tal característica é muito importante visto que: A possibilidade de escrever uma história alternativa e revisionista é a marca mais evidente da autodeterminação recém-conquistada. Nesse contexto, a memória é mais que a mera transmissão de experiências e tradições através das gerações: na verdade, representa a rememoração afirmativa, ainda que dolorosa, de perseguições políticas, étnicas, religiosas, que fundam a nascente cidadania (PERRONE, 2002, p. 101) (DANTAS, 49). Entender essas transmutações, é também permitir o direito ao esquecimento de determinados fatos dolorosos e que, o resguardo legal, está diretamente ligado à compreensão que existe uma multiculturalidade, bem como, reconhecer que houveram ataques e interferências externas, fatos esses, que muitas vezes ameaçaram de perda identitária os grupos sociais: A memória nos avisa, nos adverte e protege para não repetir de novo a injustiça. A recordação do passado presente serve para admoestar o porvir, para projetar um futuro no qual a continuidade da memória segue gerando e protegendo o 18 direito e a justiça como síntese da verdade encontrada e restabelecida (FILHO, 2013, p 141). Vemos com os pontos colocados a importância da preservação da memória, e com isso, começamos a entender como este Direito está ligado aos aspectos fundamentais, ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana e outros preceitos legais que veremos no tópico a seguir. 1.1.1 DIREITO À MEMÓRIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Mesmo o Brasil passando a ser uma República Federativa, em 1889, durante muitos anos os negros escravizados, que passaram da condição de objeto de propriedade para então serem considerados cidadãos, careceram de legislações que resguardassem suas dignidades e suas condições enquanto pessoas de Direito. Tão pouco lhes foram concedidas prerrogativas que estimulassem ou resguardassem suas culturas e histórias como parte da solidificação social desta federação. Reflexos desse descaso estatal e jurídico refletem até os dias atuais, quando vemos que os estudos voltados para esses grupos minoritários ainda se propõem a destacar somente o recorte dos negros e indígenas na condição de subalternos de uma cultura eurocentrada dominante no Brasil Colonial. Como bem discorre Chimamanda na obra “O Perigo de Uma História Única”, concentrar a memória sobre os corpos negros vindos de África, em uma história pautada apenas pela versão do ser dominante, é voltar-se a: [...] uma história única de catástrofe. Naquela história única, não havia possibilidade de africanos serem parecidos com ela de nenhuma maneira, não havia possibilidade de qualquer sentimento mais complexo que pena; não havia possibilidade de uma conexão entre dois seres humanos iguais.” (ADICHIE, 2019, p. 17). Nessa passagem do texto, Chimamanda conta que uma de suas colegas de quarto nos Estados Unidos possuía uma visão sobre África de pobreza, miséria e violência generalizada, que a ela, mesmo sendo de África pouco tinha vivência, pois a cultura e os hábitos identitários do seu país de origem, iam além daquela versão propagada pelo mundo. Assim, caímos no mito da história única, onde a versão mostrando os povos africanos como uma coisa só, fazendo com queestes se tornem para os outros nada além daquilo que foi propagado (ADICHE, 2019, p. 22). A educação formal também construiu de certo modo essa identidade, pois negros e negras, indígenas pouco possuíam, a não ser, a condição de subalternos dos colonizadores. Alunos em sala de aula, descendentes desses povos pouco se identificavam ou se viam 20 naquelas pessoas, como seus ancestrais. De que forma aqueles que são apresentados apenas como objeto de dor e sofrimento poderiam ser fruto de identificação? Pouco se fala da cultura, da riqueza dos hábitos costumes e religiosidade dentro dos espaços educacionais formais. O processo de Eugenia, é um dos culpados, a padronização e formação de estado que objetiva estar sempre mais próximo e adotar como identidade os hábitos e costumes dos colonizadores, do que as dos povos subalternizados. Junto a esse processo de “embranquecimento” forçado através da miscigenação, fruto na maioria das vezes de estupros, coage-se a adoção da identidade branca, fazendo com que muito repudiassem a ancestralidade negra e até mesmo a cor de sua pele. Entender que, para acontecer esse processo de identificação, é necessário estímulo através da transmissibilidade, propagação das riquezas culturais e dos hábitos, é fundamental para que este reconhecimento aconteça. Mas sobre o processo educacional formal, como meio de propagação desses valores, voltaremos a tratar de explorar suas complexidades e consequências sociais no capítulo 3. Importante agora é identificar que esses povos foram por muitos anos deixados de lado e que lutaram, resistindo por artifícios populares como a oralidade, com o intuito de manterem vivas as suas tradições e memórias, e como vimos no tópico anterior, pela superioridade posta de um grupo dominante dentro da pirâmide estatal, nunca foi uma tarefa fácil preservá-las. Somente após 10 décadas do declínio da monarquia e de ser instaurada a República, o Brasil passa a ter previsões legais a respeito da preservação da memória. A Constituição Federal de 1988 é pioneira, tardiamente, em trazer em seus artigos resguardos em relação a memória. Vejamos: Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais [...]” (BRASIL, 1988). O dispositivo invoca o reconhecimento do protagonismo dos grupos sociais formadores da sociedade brasileira, preservando a cultura, a história e as suas formas de expressão, levando em conta valorizar o agrupamento desses indivíduos que se reconhecem uns nos outros e objetivam preservar o que até o momento sofria marginalização. O autor Mamede Filho reforça que: “Nesse sentido, a alusão a ‘culturas populares’ e ‘afro-brasileiras’ é inédita na nossa história constitucional, pois a Constituição de 1988 foi a primeira, entre as cartas constitucionais brasileiras, a fazer esse tipo de referência, reconhecendo formalmente o protagonismo das populações negra e indígena no processo de formação da identidade nacional” (2008, p 169). Vejamos que o mesmo artigo constitucional não traz a definição explícita de quais grupos ele está se referindo, isso fica a cargo interpretativo, da história da formação do Brasil. Mas é de fácil identificação que os grupos afrodescendentes e indígenas são, ainda hoje, reconhecidos como os mais relevantes e espoliados historicamente. Isso porque esses dois, apesar da grande parcela de influência, também foram os que mais sofreram a interferência de dominação e apagamento das suas identidades durante todo o percurso dos registros históricos no solo brasileiro. Ressalto aqui, que até hoje são grupos extremamente marginalizados, a exemplo, vemos as lutas pelas terras indígenas sendo pauta anualmente contra as decisões que visam restringir o seu direito ancestral às terras que ocupam. Vemos também, negros ocupando a margem da pobreza: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, pretos e pardos correspondem a 75% da população vivendo na extrema pobreza (IBGE, 2019), reflexos do Brasil colonial, que ainda necessita de amparos de inclusão, pois por mais de 300 anos essa população foi vítima da escravização e de uma abolição sem reparação ou inclusão. Além de quê, o artigo 215 da Constituição Federal, da mesma seção que dispõe sobre a preservação da memória como patrimônio cultural, diz em seu parágrafo primeiro que: “O Estado protegerá todas as manifestações das culturas indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional" (BRASIL, 1988, p. 65). O artigo 216 da CF possui um aspecto transformador, pois através da função legitimadora, ainda que não esteja explícito no rol dos Direitos Fundamentais, faz alusão incontestável e irretroativa, como os que partem desses direitos, à medida que define que o patrimônio cultural e os direitos humanos decorre dos tratados internacionais e aprovados internamente. A proteção trazida por este artigo, passa a ter imediata aplicação, segundo artigo 5º §1º da CF que define a aplicabilidade dos direitos fundamentais, instruindo que: “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata", bem como, 22 não pode haver retrocesso. Esses grupos mais vulneráveis, de diversidade étnica e religiosa deverão ter então, um olhar garantidor a partir de políticas públicas de inclusão e estímulo às suas tradições, as suas religiosidades e seus manifestos. O que queremos dizer com isso é que foi: “a memória da negação histórica dos direitos humanos, em diferentes momentos da marcha do homem, que em grande medida permitiu o reconhecimento e a proclamação desses direitos.” (FILHO, p. 139), pois o processo de exclusão e minorização que se perpetuou por anos, foi a motivação para a previsão constitucional e termos a memória como patrimônio cultural dentro das prerrogativas fundamentais do estado brasileiro. O que difere os Direitos Fundamentais dos Direitos Humanos é a dimensão jurídico geográfica. Enquanto em âmbito internacional os direitos fundamentais são tratados enquanto Direitos Humanos, em plano interno eles são de vínculo constituinte, onde suas previsões estão dentro da Carta Magna brasileira, esta, optou por utilizar a expressão Direitos Fundamentais. Ambos refletem valores, vinculam e protegem, tanto os indivíduos como a coletividade, de ameaças e opressões que afetam suas dignidades: Exatamente por representarem as mais importantes necessidades do indivíduo e da sociedade, os direitos fundamentais concretizam os valores que mais lhes são caros, tornando-os por isso intangíveis. Embora possam variar de acordo com o contexto histórico e social, será fundamental o direito que representar os pressupostos de uma existência digna do ser humano, sem os quais não há realização, convivência ou sobrevivência possíveis. (DANTAS, 2008. p. 35). O direitos fundamentais estão interligados a noção de humanidade e dignidade, da necessidade do cidadão ao direito de liberdade, manifesto e segurança, onde: “a própria noção de ‘humanidade’ encontra-se vinculada à capacidade específica de aprender, memorizar e transmitir conhecimentos através do acervo denominado ‘patrimônio cultural“ (DANTAS, 2008, p. 59). Ainda, a autora comenta que o texto normativo deve ser consciente do seu propósito e alvos, visto que: “A Hermenêutica Constitucional, mais do que descobrir o sentido e o alcance do texto normativo, deve perquirir o significado social da aplicação da norma constitucional” (2008, p. 40), isto é, o dever/poder de conscientizar a abrigar ideologias, principalmente aquelas formadoras desociedade, em todas as camadas sociais. A Constituição Federal de 1988, embora utilize os termos de direitos e garantias individuais e direitos sociais e culturais, de forma tendenciosa a serem celebrados compreendidos como contrapostos, na realidade, assumiu uma integração de todas as pedras de direitos fundamentais, à guisa dos princípios da indivisibilidade e interdependência dos Direitos Humanos (SANTOS, 2011, p. 32) Passaremos a compreender o porquê se considerar como um direito fundamental, à memória sendo que em nenhum momento no rol dos direitos fundamentais, na Constituição Federal, no artigo 5º, que fala dos direitos e deveres individuais e coletivos, não se fala em direito à memória. Neste mesmo capítulo, entendemos que há abertura para essa interpretação nos incisos sexto e nono, e também o parágrafo 2º deste mesmo artigo, que diz que a Constituição é aberta a outros direitos fundamentais. Este artigo apresenta um critério material mas não taxativo, isto é, ele não é fechado a interpretações do que pode vir a se considerar ao longo dos anos, parte dos direitos fundamentais. Podendo se interpretar a expressão cultural e a expressão artística como fundamentais. Como é o patrimônio cultural, artístico e a memória dos povos formadores da identidade brasileira: Vejamos os artigos e seus respectivos parágrafos: TÍTULO II DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS CAPÍTULO I DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS Art. 5º Todos são iguais perante a lei [...] nos termos seguintes: [...] IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; [...] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; [...] IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (grifo nosso) Nos atentemos novamente ao texto dos artigos 215 e 216: SEÇÃO II DA CULTURA Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. 24 § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. [...] I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens culturais; [...] IV democratização do acesso aos bens de cultura; V valorização da diversidade étnica e regional. Vejamos como os artigos constitucionais se correlacionam. Temos no artigo 5º, que trata dos direitos fundamentais, as menções que abarcam o que está mais explícito nos outros citados artigos. Quanto a proteção fundamental das manifestações artísticas, das crenças e da proteção ao patrimônio e a cultura como um todo, não há, a partir desta análise, com negar o caráter fundamental que está disposto no capítulo III seção II nos artigos 215 e 216 que tratam sobre a cultura. Ao fim do artigo 5º, temos o § 2º, reforça que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” .2 Como mencionado ao longo deste tópico, a conjuntura legal ainda se faz valer por mecanismos interpretativos, mas não há como descartar a existência do caráter Constitucional para a tese aqui sustentada, haja vista a definição da proteção à liberdade de manifestação, a expressão artística, ao patrimônio cultural, e à memória dos povos formadores da identidade do país, todos com base nos artigos da Carta Magna, interligados e sustentando o que aqui é defendido como direito â fundamental a memória existente no samba. 2 Constituição Federal 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 20 ago 2021. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm 1.2 DIREITO À MEMÓRIA COMO GARANTIA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E DA CULTURA POPULAR Primeiramente, quando falamos em patrimônio cultural, nos referimos às "diretrizes que tratam da preservação dos bens culturais, a ideia central é reconhecer que os bens culturais produzidos em diversas épocas e sociedades são igualmente importantes para a memória coletiva. Ou seja, não há a priori uma hierarquização” (DANTAS, 2008, p. 72). Significa incluir a memória dos grupos formadores da sociedade brasileira no rol das proteções constitucionais. Reconhecendo os povos indígenas e os afro-brasileiros como fontes de identidade nacional cultural, mesmo esses tendo sido oprimidos, torturados e impedidos durante muitos anos, inclusive por legislações , a praticarem suas manifestações, hábitos e3 costumes, em um processo de hierarquização imposta pelos colonizadores, em geral homens fenotipicamente brancos, em sua grande maioria europeia, temos esse perfil dominador, que ao prevalecer a memoração do seu modo de vida, coibiu grupos minoritários. Podemos denominar este aspecto também como eurocentrismo, que significa colocar ao centro a cultura e os costumes europeus, dos colonizadores, e as margens, os povos colonizados, refletindo então o apagamento cultural destes. A teórica Grada Kilomba, denomina esse processo segregatório de “outrismo” onde se coloca o “outro” como antagonista das histórias (2008, p. 36). A ótica do colonizador como ponto de estudo é fundamental para entendermos porque por tanto tempo o patrimônio cultural negro foi silenciado. Essa cultura, que perpetuou por décadas, e ainda se mantém refletindo em diversos setores da nossa sociedade, nesse modelo de estado o: "indivíduo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ela/ele possa realmente ter" (KILOMBA, 2008, p. 39). Percebe-se que a resistência do patrimônio cultural dos negros, foi um processo árduo, anda ser definido em legislação, pois até este acontecimento não se podia considerar legítima a narrativa que foi contada sobre os negros, pois se a perspectiva não eram as deles, e sim, do opressor, esses eram tratados como outros. A única forma de legitimar o patrimônio é através da transmissão, de geração em geração, em uma laboração de memória dos povos, por eles mesmos. 3 Lei das Contravenções Penais, 1941 (ou "lei da vadiagem"). 26 Existir a possibilidade de enredar a própria história é dar sentido e vida a um novo olhar sobre a história e a cultura, porque o olhar projetando sempre o colonizador em primeiro plano acaba por criar uma perspectiva rasa sobre os costumes e hábitos: "a história que a história não conta" é um trecho do samba de escola de samba Estação Primeira de Mangueira, nela, está inserida este ideal de legitimar a perspectiva do vivente e colocá-lo como narrador dos seus ancestrais. A preservação do patrimônio cultural é fundamental para que o contrário não volte a ocorrer, haja vista que ainda hoje os descendentes desses povos ocupam um espaço social de minorias, o estado é máquina promotora da erradicação da desigualdade e fomentadora da democracia, é quem traz a luz constitucional a preservação desses patrimônios históricos sociais. Para Kilomba, diante disso, estamos lidando com: "as fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser. Fantasias que não nos representam, mas, sim, o imaginário branco" (2008, p. 38). Assim, o objeto basilar dos artigos 215 e 216, que constituem a preservação da cultura e do patrimônio cultural dos grupos formadores da sociedade é dever de reparação, significa: A negociação do reconhecimento, o indivíduo negocia a realidade. Nesse sentido, este último estado é o ato de reparar o mal causado pelo racismo através das mudanças de estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas, vocabulário, ou seja, através do abandono de privilégios(Kilomba, 2008, p. 46). A autora coloca ainda que, mesmo com mecanismos promovidos pelo Estado para a reparação, que pretendem amenizar a desigualdade, o subalterno, dentro desse regime de histórico repressivo, ainda sofre as consequências do pós-colonialismo, pois: ”está sempre confinada a posição de marginalidade e silêncio” (2008. p. 47) e não tem legitimidade para falar e ser ouvido, em diversos ambientes sociais. 1.3 DO SEMBA AO SAMBA: AS ORIGENS Para começar a desenvolver a abordagem sobre o conteúdo histórico acerca do carnaval, temos que ter sempre em mente que a cultura em si é fruto não só do processo de identidade única de um grupo, como vemos nos subtópicos anteriores, mas da interferência dos acontecimentos que cercam em diversos momentos do decurso temporal. E não é diferente quando se trata na cultura negra, quando africanos chegam ao Brasil, em um processo forçado de escravização por colonizadores europeus, esses, não tiveram a oportunidade de trazer consigo objetos pessoais materiais, mas isso não os impediu de trazerem bens valorativos, isto é, as suas memórias, histórias, crenças e hábitos culturais. E foi com estas, nos poucos momentos que podiam se reunir, que transmitiam aos seus descendentes suas heranças culturais, entre elas suas danças, músicas e personificações. E assim foi com o Semba, conceituado como: “movimento de dança caracterizado pelo embate frontal entre dois dançarinos; umbigada” (LOPES e SIMAS, 2015, p. 273), é uma modalidade cultural provinda da região Angola, na África, a prática tinha por hábito a junção dos corpos em movimentos sincronizados, ritmo “irmão” do samba que conhecemos hoje, é também ligado aos termos cabriolar, divertir-se e brincar, galantear e encantar, segundo tradução do quiocongo .4 Fica evidente que o molde estrutural aqui preconizado é uma transmutação geracional, haja vista que as interferências de outras culturas, tanto dos negros de outras regiões de África, como dos colonizadores, se fundam e agregam diferentes valores. O cotidiano do semba era festa corporal, praticado nos aquilombamentos e reuniões festivas dos afro-descendentes. Sobrevive até os dias atuais, mas sua mutação, o samba, começa a ter seus primeiros manifestos no final do século XIX e início do século posterior. Vejamos que esse período temporal é um marco, visto que a sua origem coincide por aproximação do período abolicionista, para ser mais exata, no ano de 1888, quando é posta a Léi Aúrea, lei essa que confere a todos os negros que estão no solo brasileiro a liberdade do escravo, trabalho forçado, não remunerado e abusivo. Logicamente, a lei que se impôs teve pouca ou nenhuma inserção social como critério de alocar essas pessoas, que antes eram tidas como propriedade de posse e passaram a ser considerados legalmente como cidadãos. Não só leis que visassem ressocialização, mas outras políticas eram necessárias, infelizmente o contrário se provou, leis que criminalizavam as práticas culturais passam a vigorar, voltaremos a comentar sobre esse ponto legislativo adiante. Fundamentando o samba, trata-se tanto de um gênero musical, como um bailado popular da cultura negra. O estilo popular teve origem nas rodas, onde negros se reuniam para cantar e dançar, e em muitas das vezes, usavam desses momentos como: “consolo de seu sofrimento para as dores da escravidão” (LOPES; SIMAS, 2015, p. 250), gênero que passa a 4 Linguagem banta do povo Quioco, habitantes do nordeste ao sul de Angola, República Democrática do Congo e o noroeste da Zâmbia, na África ocidental. 28 ser inevitavelmente associado ao carnaval. E é a partir dessa junção dos ritmos africanos com a aculturação dos seus descendentes, que surgem tais manifestos negros culturais no Brasil, que posteriormente dão origem às escolas de sambas, que dá ao país hoje, o título de produzir a maior festa popular do mundo .5 1.3.1 QUANDO TOCAR SAMBA DAVA CADEIA - LEI DA VADIAGEM Após dois anos promulgada Lei Áurea, em 1890 começam a surgir leis para criminalizar os negros e restringir a sua liberdade tão recentemente conquistada. O decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, que formulou um novo Código Penal, em caráter de urgência, passa a dispor que se uma pessoa andasse pelas ruas e não conseguisse comprovar que estava trabalhando, podia ser presa, tal "crime", caracterizando o infrator como mendigo, poderia render até 30 dias de prisão. Não coincidentemente, e sim propositalmente, ocorre logo após os negros terem registrada a liberdade e não serem inseridos dentro a sociedade, tão pouco do mercado de trabalho, isto é, viverem a carência de emprego e a dificuldade de se inserirem na sociedade que pautava estas leis. Vejamos estes artigos, além do 402 do referido Código Penal, que criminalizava a capoeira: Art. 391. Mendigar, tendo saude e aptidão para trabalhar Art. 394. Mendigar aos bandos, ou em ajuntamento, não sendo pae ou mãe e seus filhos impuberes, marido e mulher, cego ou aleijado e seu conductor. Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação proibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes: Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes. 5 Segundo o livro dos recordes: “Guinness World Records official” (2004). Disponível em: https://www.guinnessworldrecords.com.br/world-records/largest-carnival. Acesso em: 13 ago. 2021. https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=C%C3%B3digo_Penal_de_1890&action=edit&redlink=1 Parágrafo unico. É considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta.6 É claro que este fenômeno dava abertura pra criminalizar toda e qualquer participação social do negro nas ruas, quando se manifestava culturalmente. Dessa maneira as rodas de samba muitas vezes terminavam com apreensões tanto dos sambistas, como dos seus instrumentos musicais. Tais repressões e proibições obrigavam estes a se reunirem em locais em que estivessem seguros e protegidos, muitas vezes, eram nas casas e quintais das “tias baianas” , como a7 figura da Tia Ciata na pequena África brasileira, que eram abrigados, e onde faziam nos fundos dos quintais as rodas de samba (LOPES; SIMAS, 2015, p. 243). Mas as proporções e popularidade entre os negros e simpatizantes era tamanha, que esses manifestos tinham que sair dos terreiros obrigando-os a tomarem novamente as ruas. No Estado Novo, período que compreende de 1937 a 1946, surge a Lei das Contravenções Penais, através do Decreto Nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, que no artigo 59, dentro do capítulo que estabelecia as contravenções relativas a polícia de costumes, dispunha que: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”, teve como objetivo reforçar a perseguição aos negros, dito “vadios” e aos sambistas nas ruas. Obviamente tal coibição tornou ainda mais difícil a propagação e aceitação social da cultura. Para Luiz Antônio Simas e Nei Lopes, essas leis: [...] foram abundantemente utilizadas para coibir as manifestações culturais da população afrodescendente nos anos pós abolição, servindo, inclusive, para justificar, do ponto de vista legal, a repressão às rodas de samba e festas de candomblé - consideradas ofensivas aos bons costumes pela elite do período, adepta de projetos sistemáticos de branqueamento racial que apagassem referências do passado escravocrata brasileiro. (LOPES; SIMAS, 2015, p. 295). 7 Expressãoutilizada para se referir as senhoras que migraram da Bahia ao Rio de Janeiro e fundaram a “Pequena África brasileira”, comunidade que se localizava na região portuária da cidade, que abrigava negros e africanos libertos. 6 DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaoorigina l-1-pe.html. Acesso em 20 ago 2021. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html 30 Estados que não entendem o manifesto cultural como patrimônio, e sim como perturbação, estão muito longe de compreender o real processo e sentido democrático. Temos o racismo disfarçado de segurança pública, e o maquinário que calçou esse objetivo foi o processo eugenista, embranquecimento forçado da população e sobreposição cultural a partir do modelo europeu. Mas houve também, principalmente, o processo de gentrificação, expulsando os ex-escravizados e seus descendentes dos centros urbanos para locais mais distantes, daí o conceito “marginal” que é aquele se encontra às margens, nesse caso, as margens da sociedade. Tal acontecimento faz surgir as favelas e subúrbios, locais que carecem do olhar do estado, pela precarização habitacional, falta de segurança pública e diversas estruturas básicas, dentre elas, a sanitária. Esse abandono, junto à falta do olhar do Estado para esses espaços, causam diversas transformações sociais, obviamente, neste presente trabalho não focaremos nas mazelas, que é o poder paralelo, tráfico e outras barbáries que foram consequências desse abandono, mas é importante destacá-los para termos um olhar sobre esses espaços de maneira real e ampla, não apenas uma “romantização” da pobreza que acredita que só há fortalecimento cultural nesses lugares. Posto isso, a partir dessa segregação socioespacial forçada, tem-se também um fortalecimento cultural, visto que nesses espaços suburbanos os afrodescendentes passam a se sentir protegidos e livres para praticarem suas manifestações culturais. Acima de tudo, é fundamental ressaltar que a descentralização assume importantes posições de influência no que tange o estabelecimento do remanejamento para os ditos subúrbios, pois são principalmente nesses espaços que surgem as escolas de samba. 1.3.2 ANTES DAS ESCOLAS DE SAMBA A concepção do que temos sobre o carnaval das escolas de samba em suas origens é tão turva quanto toda a história do povo negro, isso porque, como já mencionamos anteriormente, estudar a história negra é se deparar com diversas transmissões e memorias da origem diferentes. Mas são esses pontos de vistas oralizados e transmitidos, e poucos deles registrados, que nos dão margem para elucidarmos a origem da festividade. Como dito, a identidade cultural negra sofreu e ainda sofre interferências externas, e assim foi com a origem carnavalesca, isso porque, antes de existir o modelo de carnaval que conhecemos hoje, os colonizadores trazem uma espécie recreativa e católica conhecida como Ranchos de Reis, tal festividade era um cortejo que desfilava pelas ruas anualmente, no dia 6 de janeiro, dia de Reis, como forma de celebrar as figuras dos três reis magos. Evidenciamos aqui que, participar dessas festas católicas cortejos e celebrações dos colonizadores, eram durante o período colonial e pós-colonial, uma maneira de reivindicar e tentativa de socialização: “[...] o momento inicial utilizado pelos negros para a saírem as ruas com seus cânticos e danças foi o das celebrações católicas [...]. Nesses momentos eles reivindicavam sua inserção na sociedade pelo ato simbólico da participação nas festas populares.” (LOPES e SIMAS, 2015, p. 252). E foi a partir dessa concepção que Hilário Jovino funda na cidade do Rio de Janeiro o Rei de Ouros, primeiro rancho carnavalesco. Porque, como conta em uma entrevista para o Jornal do Brasil , após aborrecer-se com o rancho Dois de Ouros, o qual fazia parte, resolveu8 fundar o próprio rancho, transferindo a data para o Carnaval, retirando as disciplinas religiosas, e trazendo a musicalidade aproximada da: “sonoridade africana, incluindo pandeiros, tantãs e ganzás na formação da banda” (MEIRELES, 2016). Figura 1 - Rancho “O Macaco é Outro”, nome que ironizava o racismo da sociedade. Estavam à frente Tia Ciata – fundadora – e Hilário, movimentador cultural. 8 Matéria de 18 de janeiro de 1913. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_03&pagfis=17729. acesso em 13 ago. 2021. http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_03&pagfis=17729 32 FONTE: SAGATIBA, Fernando. Hilário Jovino: Da Folia de Reis ao Carnaval .9 Os ranchos carnavalescos traziam também os estandartes e outras obrigatoriedades (alegorias, comissão de frente, porta-estandarte, coro feminino, orquestra, arte, enredo, mestre de canto e etc) muito se assemelham ao que temos como quesitos a serem julgados no carnaval das escolas de samba, isso porque, esses concursos de ranchos, embalado pelos ritmos da marcha-rancho (ritmo cadenciado, um pouco mais lento que o samba) é uma das fundamentações da sua origem identitária. Mas é claro, não possuía as principais características das escolas de samba: o surdo, a cuíca e o próprio samba. (CUNHA, 2014, p. 16). 1.3.3 ORIGEM DAS ESCOLAS DE SAMBA A belle époque brasileira, período que compreende de 1889, com a proclamação da República até o ano de 1922, foi um movimento inspirado no movimento cultural e de avanços expressivos, intelectual e artístico que se originou na França e parte da Europa. Tal identidade é instaurada e adotada também pela elite brasileira a fim de trazer identidade e fortalecimento da supremacia cultural dos colonizadores. Logicamente, este movimento é uma das explicações do processo de segregação e de racismo praticados, neste período, já que a rejeição a outras identidades, em especial as africanas, eram fortemente praticadas, inclusive, através de legislações que proíbam suas práticas, como vimos anteriormente. Os autores Lopes e Simas descrevem que neste período, a elite econômica visava um sonho eugênico de europeização da sociedade brasileira (2015, p. 87). Essas transformações levam as festividades para locais fechados. O entrudo e o Ranchos de Reis perdem força e10 passam a ser substituídos por bailes. Segundo o artigo publicado pelo site História Hoje, nesse período o carnaval de rua: “começa a perder adeptos entre a elite, que passa a frequentar carnavais em bailes de salão, com serpentina e confete, à moda veneziana”, as ruas passam a ser tomadas de fato por manifestos negros mais fortemente; e é na década de 20 que começam a surgir as primeiras escolas de samba (ARTES, 2015). 10 “O ‘Entrudo’ era uma brincadeira carnavalesca, trazida da Índia pelos portugueses. Era a principal manifestação do Carnaval no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. 9 Disponível em: https://raizdosambaemfoco.wordpress.com/2014/01/06/hilario-jovino-da-folia-de-reis-ao-carnaval/ acesso em 04 Ago. 2021. https://raizdosambaemfoco.wordpress.com/2014/01/06/hilario-jovino-da-folia-de-reis-ao-carnaval/ https://raizdosambaemfoco.wordpress.com/2014/01/06/hilario-jovino-da-folia-de-reis-ao-carnaval/ Segundo a definição da obra Dicionário Social do Samba, a escola de samba trata-se de uma sociedade musical, que com o intuito recreativo, participa dos desfiles carnavalescos (LOPES;SIMAS, 2015, p. 116). Há controvérsias quanto a qual foi a primeira escola de samba fundada, de um lado temos a Portela, que tem seus registros de fundação e atividades em 1923, escola considerada a mais antiga em atuação, mas suas atividades não se iniciaram com o formato de escola de samba, então, o consenso geral considera a “Deixa Falar”, fundada em 1928 no Estácio de Sá, bairro da então capital brasileira, a primeira agremiação,que traz os aspectos e formatos fundamentais do que se considera uma escola de samba. Em uma das transmissões e defesas de memória diz respeito ao nome “Escola de Samba”, a nomenclatura se dava a proximidade do local de fundação, bares da região ser a da escola normal no largo do Estácio, outra versão diz que os fundadores da deixa falar foram considerados professores da arte, por isso o termo escola. O Deixa Falar, além de reunir os jovens revolucionários compositores do bairro, pretendia também melhorar as relações dos sambistas com a polícia, já que, sem a autorização policial não tinham direito de promover as rodas de samba no Largo do Estácio e muito menos desfilar no carnaval. Por isso, trataram logo de legalizar a situação do grupo. Honra seja feita, a perseguição policial ao samba já não era tão violenta. Perseguia-se o jovem negro, como antes, durante e depois do Deixa eu Falar, uma das facetas mais repelentes do racismo brasileiro. Mas raramente por cantar, dançar ou tocar o samba. (CABRAL, 1996. p.38). É importante destacar que a considerada primeira escola de samba leva esse título pelo formato e que a mesma apresentou como proposta inicial, ela desfila com essa estrutura somente até o ano de 1931. Ela acaba não fazendo parte do primeiro concurso oficial entre escolas de samba, no ano de 1932, pois voltou a desfilar com o formato de rancho, que na época, possuía mais “prestígio social”, porém, por conflitos internos encerrou suas atividades. De todo modo, a agremiação Estácio de Sá, fundada em 1955, que desfila até os dias atuais, vem a ser reconhecida como primeira escola de samba pelo IPHAN , por se situar na mesma11 região da pioneira escola, declarando-se descendente direta da Deixa Falar. Figura 2 - Deixa Falar que anos depois se tornou Estácio de Sá, foi a primeira escola de samba do país. 11 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 34 FONTE: Jornal Diário Rio .12 As primeiras escolas de samba a competirem entre si, se encontravam na Praça Onze, importante epicentro cultural onde relacionavam-se, diversos grupos étnicos, religiosos e econômicos. Sem dúvidas, o local foi um polo de entrosamento motivado principalmente pelo samba, atualmente, nesta localidade se encontra a Marquês de Sapucaí, o sambódromo, e o Terreirão do Samba, espaço cultural com palco, onde ocorrem eventos de samba no carnaval e ao longo do ano. No ano de 1929 ocorreu não o primeiro desfile, pois não veio com a característica de cortejo, mas um concurso organizado pelo sambista e pai de Santo Zé Espinguela. Entre as entidades carnavalescas estavam a Mangueira, Estácio (formação anterior a atual Estácio de Sá e posterior a Deixa Falar) e a Oswaldo Cruz (que futuramente viria a se denominar Portela), a última foi a campeã daquele ano. Essas escolas eram provenientes dos morros e subúrbios, trazendo a representatividade e a folia para o centro da cidade. Não surpreendentemente, no ano de 1932 participam 19 agremiações no concurso, desta vez, organizado pelo jornal Mundo Esportivo ,13 destaco aqui que tal promoção ocorreu para “cobrir” a falta de campeonatos esportivos na época carnavalesca. Nesses anos as escolas não tinham obrigação nenhuma de apresentar samba que se relacionasse com uma temática ou com o que estava sendo apresentado, a temática era livre. Mas em 1931 a Portela já vinha trazendo a proposta de relacionar enredo ao samba, isto é, 13Primeiro jornal considerado a dedicar-se inteiramente ao esporte, fundado pelo jornalista Mário Filho, importante fomentador do carnaval e do futebol, que hoje dá nome ao estádio de futebol Maracanã. 12 Disponível em: https://diariodorio.com/deixa-falar-a-primeira-escola-de-samba-do-brasil-surgiu-no-estacio/amp/acesso. Acesso em 05 ago. 2021 https://diariodorio.com/deixa-falar-a-primeira-escola-de-samba-do-brasil-surgiu-no-estacio/amp/acesso propor uma temática onde fossem cantados samba que se relacionassem com os adereços e alegorias. E assim, ela apresenta “Sua Majestade o Samba!” exaltando a própria cultura negra musical, onde sua alegoria vinha como: “um conjunto musical e se constituía de um elemento da escola chamado Eurico, vestido em uma barrica que representava um pandeiro e um tamborim sobre a cabeça e os membros (braços e pernas) foram representando vaquetas” (CANDEIA; ISNARD, 1978, p. 18). Em 1933, organizado pelo jornal O Globo , ocorreu o primeiro desfile com subvenção14 pública. Este auxílio, ainda que constituído por uma pequena verba, veio da prefeitura do Distrito Federal. Segundo Cunha (2014, p. 20), somente em 1935 o desfile passa a ser promovido diretamente pela prefeitura, o que chamou a atenção da prefeitura, foi o elevado número, eram de 28 escolas de samba na dita União das Escolas de Samba (espécie de Liga das Escolas de Samba na época), somando o total de 12 mil componentes. Tal popularidade fez com que as escolas fossem legalizadas através de registro na polícia do Distrito do Rio de Janeiro, e foi assim que surgiu o título de grêmio recreativo para as escolas de samba. O ano de 1935 é também um marco, pois obrigatoriamente, pelas normas estabelecidas pela prefeitura, os enredos das escolas de samba passam a ser adotados pelo tema obrigatório “exaltação a Cultura Nacional”, não tardou a acontecer outro marco semelhante, a Liga da Defesa Nacional (LND) e a União Nacional dos Estudantes (UNE), deliberam juntos as escolas e determinando a obrigatoriedade de produzir enredos que exaltasse a luta brasileira e incentivar o alistamento militar na Segunda Guerra Mundial, pois o Brasil apesar de vivenciar a ditadura do Estado Novo à época, resolveu entrar na guerra: “ao lado das democracias liberais do ocidente” (LOPES; SIMAS, 2015, p. 140). E assim, entre os anos de 1943 e 1945 acontecem os conhecidos “carnavais da Guerra” e até o fim deste marco, as escolas apresentam esta narrativa comum. Em 1946 ocorre o “carnaval da vitória” que exalta e comemora o fim da guerra com êxito. 1.4 BARREIRAS RACIAIS SOFRIDAS PELO SAMBA - DEMOCRACIA RACIAL, PERDA DA IDENTIDADE E FINANCIAMENTO EXTERNO A partir da mnemônica da cultura africana através do samba, e do cultivo feito por seus descendentes, despertou-se um aspecto transformador que interferiu diretamente na execução 14 Jornal ainda em atividade. Integrante do Grupo Globo, foi fundado em 1925 por Irineu Marinho. 36 e propagação das tradições e manifestos negros, a "democracia racial". Ao mesmo tempo em que há a marginalização, a difícil aceitação, a proibição e a diminuição do samba, a democracia racial cultivou transformações e inserções, a partir do ideal de que todos são iguais, filhos de um mesmo "Deus" (aqui refiro a cultura cristã muito utilizada como artifício político e ainda dominante em nosso país), abrem-se portas para transformações da cultura das minorias em produtos midiáticos. Isto porque, a partir do momento que se vislumbrou o carnaval como algo rentável, houve uma popularidade de interesses, refletiram na integração racial, muitas pessoas brancas usaram do aspecto democrático para se inserirem neste meio. A autora Ana Maria Rodrigues traz um relato no livro “Samba Negro Espoliação Branca”, contando que: "a inclusão do elemento branco é tão recente e abrupta que um dos nossos informantes declarou: 'é de surpreender que da perseguição tenhamos passado a uma aceitação sem limites...'preocupa-me descobrir os limites desta aceitação" (RODRIGUES, 1984, p. 4). A exploração capital é um dos aspectos mais transformadores da cultura negra carnavalesca, o racismo ainda é muito presente, visto que, a partir do momento que muitas pessoas brancas passaram a se inserir dentro das escolas de samba, em geral ocupando cargos de poder, como presidência, diretoria, carnavalesco e destaque , há também a transformação15 plástica e oral (enredo e letra dos sambas), ou seja, na forma de contar e transmitir. E por esses mesmos feitos, muitas vezes, as escolas passaram a adotar novas personalidades e novos modelos,que se diferem do aspecto cultuado antes. Comparo aqui a gentrificação, que: “corresponde ao processo de modificação do espaço urbano, em que áreas periféricas são remodeladas e transformadas em espaços nobres ou comerciais.” , à eugenia, tiraram o aspecto negro e visando a exclusão de elementos16 comportamentais e culturais não tão desejados, trazendo uma roupagem mais “socialmente aceita”. Basicamente, passa a ocorrer traços racistas para que o produto carnavalesco seja vendido com mais facilidade. 16 Gentrificação. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/gentrificacao.htm. Acesso em 08 Ago 2021. 15 Desfilantes que representam as figuras/personagens mais importantes de um desfile. Diferem-se dos demais foliões por trajarem fantasias luxuosas e por ocuparem posições de literalmente destaque, isto é, nas posições mais altas dos carros alegóricos e ou em espaços privados, para essa pessoa, no chão. https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/gentrificacao.htm Enredos patrocinados foram umas das formas de rentabilizar e transformar em “produto carnaval”, a partir do momento que se entendem os enredos carnavalescos como meio oral de propagação de ideias e mecanismos de marketing. É importante destacar que esses acontecimentos não são uma tomada de espaço forçada, muitas vezes as próprias escolas de samba cedem para, que o objetivo final, que é ganhar o carnaval e fazer um desfile grandioso, esteja acima do padrão das outras escolas, mas, essas cessões acabam por desencadear consequências da perda da identidade. Uma das formas de marketing utilizadas são os enredos patrocinados, em que a escola em contato com alguma empresa, cidade ou personalidade, faz publicidade desta, em troca de capital. Assim foi em 2002, quando a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro levou para avenida o enredo intitulado “Asas de um Sonho, Viajando com o Salgueiro, o Orgulho de ser Brasileiro”, utilizando no título do enredo o slogan da TAM, companhia aérea patrocinadora do desfile. Esses enredos rendem milhões de reais, e como vitrines, as escolas de samba investem em desfiles grandiosos e luxuosos. Mas enredos como o apresentado pelo Salgueiro, logicamente possuía pouca identificação para a sua comunidade do Morro do Salgueiro , formada17 majoritariamente por pessoas da classe média baixa, que pouca ou nenhuma oportunidade possuíam de fazer viagens aéreas. A mesma “cessão” ocorre dentro das escolas de samba quanto a figura de alguns dos grandes “patronos” ou “presidentes de honra”, personalidades de poder, ligados em geral a alguma atividade ilícita ou negócios paralelos, como o jogo do bicho . Os bicheiros mesmo18 tendo sua figura diretamente ligada a contravenção penal , ao mesmo tempo que obtêm19 prestígio, visibilidade e confiança dentro das escolas de samba, como contrapartida, são alguns dos principais investidores de algumas agremiações, visto que a cultura carnavalesca só cresce, que os concursos seguem cada vez mais acirrados e os investimentos públicos 19 O jogo do bicho é proibido pela Lei das Contravenções Penais - Decreto-lei 3688/41. É considerado contravenção juntamente com jogos de azar, atividade de cassino e exploração não autorizada de loterias, correspondendo também ao crime de formação de quadrilha e corrupção. 18 O jogo do bicho foi criado em 1892 pelo barão João Batista Viana Drummond, dono do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, em Vila Isabel, Rio de Janeiro. É um jogo de loteria, em números que representam animais, porém, trata-se de uma bolsa ilegal de apostas. 17 O Morro do Salgueiro é uma favela localizada no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. 38 vindo como subvenção estatal são uma parcela irrisória comparado aos espetáculos apresentados .20 O interesse pelo investimento no espetáculo faz com que haja uma vinculação do simbólico e o econômico, e que esses de alguma forma caminhem muitas vezes em harmonia, pelo objetivo final que é a espetacularização. É importante ressaltar que a mensagem do enredo passa por diversas metamorfoses. A negociação dos temas a serem apresentados depende não só e unicamente do capital, mas também do contexto político de cada época, como vimos anteriormente com a Segunda Guerra Mundial, e como veremos adiante sobre o contexto atual, onde há uma valorização da identidade negra muito forte e atuante dentro das escolas de sambas. Pretendemos ao final verificar se mesmo com essas intervenções econômicas o viés identitário segue como prioridade para a comunidade do samba. No capítulo seguinte trarei novamente a temática dos enredos patrocinados como parte da descaracterização identitária trazendo um mapeamento e dados de algumas décadas dos desfiles, visto que eles cercam e se popularizam entre as escolas de samba principalmente no primeiro decênio dos anos 2000. 20 Em geral, as subvenções repassadas para as escolas de samba, feitas pela RioTur, variam, principalmente a cada gestão. Em 2017 o repasse para cada escola foi de 2 milhões, em 2018 de 1 milhão e em 2019 foi para 500 mil. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/noticia/2020/02/escolas-de-samba-amargam-baixo-interesse-de-patrocinadores-n o-rio.shtml Acesso em 23 ago 2021. “R$ 26 milhões no Carnaval geram R$ 2,2 bilhões para economia do Rio, diz ministro” Disponível em: https://setor1.band.uol.com.br/r-26-milhoes-no-carnaval-geram-r-22-bilhoes-para-economia-do-rio-diz-ministro/. Acesso em 02 set 2021. “Os desfiles são caríssimos: chegam a girar em torno de R $ 8,3 milhões a R $ 16,7 milhões, segundo as principais reportagens sobre o tema. Dessa maneira, as agremiações não se contentam e não se sustentam apenas com a verba cedida pelo governo e passam a apostar na captação de patrocínio”. Matéria da redação o site Exame. 2015. Disponível em: https://exame.com/marketing/os-sucessos-e-fracassos-dos-sambas-enredos-patrocinados/. Acesso em 23 ago 2021. https://www1.folha.uol.com.br/noticia/2020/02/escolas-de-samba-amargam-baixo-interesse-de-patrocinadores-no-rio.shtml https://www1.folha.uol.com.br/noticia/2020/02/escolas-de-samba-amargam-baixo-interesse-de-patrocinadores-no-rio.shtml https://setor1.band.uol.com.br/r-26-milhoes-no-carnaval-geram-r-22-bilhoes-para-economia-do-rio-diz-ministro/ https://exame.com.br/topicos/patrocinio https://exame.com/marketing/os-sucessos-e-fracassos-dos-sambas-enredos-patrocinados/ 2 OS ENREDOS DAS ESCOLAS DE SAMBA DO CARNAVAL DO RIO DE JANEIRO: A TEMÁTICA NEGRA COMO EXALTAÇÃO DA MEMÓRIA E LUTA POR DIREITOS O propósito deste capítulo é apresentar os enredos das escolas de samba, no período compreendido de 1988 – ano em que ocorre o marco dos 100 anos da abolição da escravatura - até o período atual 2021/2022, - as escolas apresentam seus enredos após o carnaval de 2020, mas com a pandemia instaurada pelo vírus da COVID-19, e o isolamento social foi necessário o cancelamento dos desfiles de 2021 e a transferência dos enredos para o ano de 2022. Serão apresentados no “Apêndice A” desta monografia, os títulos dos enredos de todos os desfiles que ocorreram dentro desse período de 33 anos, deles deles, extraídas as temáticas negras, isto é, poéticas que abordam diretamente a exaltação, manifesto, homenagens e a mnemônica da negritude . A partir dessas identificações, utilizaremos o termo “temática”21 negra para nos referirmos a elas, isto porque, entendemos como negritude, o orgulho do identitário racial, das descendências Africanas, da consciência e da valorização da cultura negra como um todo. Apresentaremos a problemática envolvida nos enredos patrocinados, que acabam por desempenhar um papel de exaltar cidades quando são os municípios seus patrocinadores ou marcas quando há o patrocínio por empresas. Disso decorre um afastamento da escola quanto à identidade das comunidades que lhe deram origem, o que dificulta a mobilização do enredo como oportunidade de exaltação da memória e manifesto político de luta por direitos. Faremos a apresentação de alguns dos enredos que marcaramo sambódromo, e o que elas representaram para a comunidade do samba. Por último, apresentaremos como os enredos das escolas de samba são manifestações de reivindicações de direitos e como o Direito à Memória realizado por meio do carnaval possibilita a afirmação da identidade da população 21 Exaltação - Entendemos como exaltação, a vontade de dispor e celebrar a importância de algo, ou alguém, neste caso, seria a memória negra e aqueles que se envolvem diretamente com a identidade destes. Ainda, fazemos uma referência ao “samba-exaltação” surgido em 1939, o gênero de caráter grandioso possuía letras ufanistas, enaltecendo a grandiosidade do país, nesta releitura o que será exaltado dentro do samba, é a própria cultura negra. Manifesto - Utilizaremos a palavra “manifesto” e suas variações para referenciar a mobilização de cunho social, político ou cultural, a fim de expressar, ou legitimar, uma mensagem, ou um apelo como forma de luta pelos direitos da população negra. 40 negra, e como o Projeto de Lei 256/2019 que tramita no Senado Federal vai ao encontro da preservação da memória apresentada nesta pesquisa, mas como o cenário político atual vai de encontro a sua proposta. 2.1 APRESENTAÇÃO E MAPEAMENTO DE ENREDOS DAS ESCOLAS DE SAMBA (COM RECORTE DE 33 ANOS DE DESFILES 1988 - 2021) Apesar de apresentarmos esses dados, que figuram os enredos focados em uma narrativa preta, frisa-se aqui que são numerosos também, os enredos que apresentam ao longo do seu texto-sinopses, passagens que exaltam a cultura negra. Muitos dos enredos analisados para esse levantamento, apresentavam como corpo da formação da história brasileira, a identidade e importância dos povos originários e pretos para a formação do país, a importância da cultura Africana, e em outros, homenageados negros faziam parte da memória dos enredos, como a escola de samba Mocidade Independe de Padre Miguel, que em 2009 apresenta o enredo Mocidade apresenta: Clube Literário Machado de Assis e Guimarães Rosa, estrelas em poesia, em que um dos homenageados é o poeta negro Machado de Assis, nestes casos abordaremos na tabela como “parcial”, isto é, apresenta em uma parcela relevante do seu enredo a temática negra, mas não tem o foco total nela. Gráfico 1 - Enredos Pretos por Ano Fonte: Elaborado pela autora Kamila Maria da Silva. 2021. No gráfico acima, conseguimos visualizar as abordagens por décadas, em que a média da temática negra era por volta de 2 a 3 escolas por ano. As Linhas dos gráficos têm grandes saltos, entre em 2020, e 2021/2022, abordaremos no tópico 2.2 o uma hipótese sobre o que pode ter causado os picos nesses anos. 2.1.1 ANÁLISE QUANTITATIVA/COMPARATIVA DAS TEMÁTICAS DOS ENREDOS QUE TIVERAM MANIFESTAÇÕES AFIRMATIVAS NEGRAS A PARTIR DO CONTEXTO DE CADA DÉCADA Um levantamento extraído desses dados é que, de todos desfiles, não houve representação total negra em 10 deles. Outro dado importante, é que em 2 desses anos, não coincidentemente, há um alto pico dos chamados popularmente pelos sambistas, enredos “CEP”. Os enredos CEP são aqueles patrocinados por prefeituras, governos de estado ou até mesmo um país, exaltam cidades ou locais, ou marcas específicas, patrocinados por empresas privadas. Utilizaremos nesta monografia a terminologia “CEP” como sigla para “Cidade, Estado ou País” ou “Cidade, Estado ou Patrocínio”, visto que em geral esses enredos visam arrecadar capital considerável para as escolas em troca de uma abordagem, que visa propagar determinada localidade e incentivar o turismo, ou, propagar um produto ou marca, afim de angariar futuros consumidores. Esses patrocínios visam arcar com parte do custo do desfile, em troca de publicidade ou marketing, inseridos implicitamente no desfile, enredo ou samba. Implicitamente, porque os regulamentos proíbem enredos de cunho comercial, haja vista, que as escolas recebem subvenção das emissoras pelo direito de transmissão, e que essas “propagandas” conflitam com as patrocinadoras da TV. Exemplo deste caso, temos o desfile de 2010, da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, “Das arquibancadas ao camarote nº 1, um "Grande Rio" de emoção, na apoteose do seu coração”. O camarote nº 1 era o tradicional camarote da cervejaria Brahma, que naquele ano completava 20 anos presente nos desfiles da Sapucaí, No entanto, a TV Globo, emissora responsável pela transmissão, estava sendo patrocinada pela cerveja Nova Schin. Tal conflito, fez com que em momentos da transmissão deste desfile não fosse possível ouvir o samba, que em sua letra, mencionava o tal camarote. 42 No gráfico abaixo podemos ter noção de quantos enredos foram patrocinados ao longo dos anos mapeados. É importante frisar que, neste caso, os números não são exatos, isto porque, como mencionado anteriormente, os patrocínios são implícitos, e ao menos que seja de fácil identificação ou estejam nas mídias e jornais essas informações, somente a leitura das sinopses dos enredos ou das letras dos sambas, não são suficientes para identificá-las. O que se propõe a discutir sobre esses números é o quanto a “onda” dos enredos que visam o levantamento de recursos financeiros, é provocativa para perda identitária das escolas, que em algumas ocasiões, deixam de propor uma abordagem com um viés político ou que os foliões das escolas se identifiquem, para se manifestarem de acordo com uma proposta comercial, sem que valorizassem a memória ou fizesse a reivindicação de direitos. Foi o caso da Mangueira, que em 2013 deixou de prestar homenagem ao centenário de uma das figuras negras mais importantes e influentes da sua história, o intérprete Jamelão, para contar com o patrocínio do município de Cuiabá. Gráfico 2 - Enredos Pretos e Enredos Patrocinados Fonte: Elaborado pela autora Kamila Maria da Silva. 2021. Nos anos de 2002 e 2013, como podemos observar, não houve desfiles que traziam temática negra em destaque, todavia, ressalta-se com esse levantamento, que nesses mesmos anos, houveram os grandes picos de enredos CEP, o que nos leva a concluir que o apagamento identitário e de manifesto, está ligado diretamente com este fator, que influenciou, não só esses anos especificamente, mas um vasto período que os cercam. Perde-se identidade e cria-se um acordo empresarial, em que os componentes são apenas peças propagandas de uma marca, existindo um sentimento vazio de representação. O carnavalesco Milton Cunha, em entrevista cedida a TV Brasil comenta sobre as problemáticas dos enredos patrocinados: “Dinheiro só é bem-vindo, quando ele é pra ajudar a embelezar os sambistas, e não, aprisionar a escola de samba em enredos que vão divulgar alguma coisa [...] eles só querem que a gente fale que eles são lindos o tempo inteiro, o problema do patrocínio é que você tem que ser chapa branca, você só pode dizer que tudo é maravilhoso. E a realidade é boa e má ao mesmo tempo” .22 2.1.2 ANÁLISE DE ALGUNS DOS ENREDOS QUE MARCARAM HISTÓRIA POR SUA EXALTAÇÃO DA MEMÓRIA DO POVO NEGRO E MANIFESTAÇÃO DE SUA LUTA POR DIREITOS Passando brevemente pelo primeiro ano pesquisado, 3 escolas trouxeram temáticas negras, foram as agremiações: Unidos de Vila Isabel, Beija-Flor de Nilópolis e Estação Primeira de Mangueira. Não coincidentemente, as três fizeram alusão a liberdade, isto porque, o ano de 1988 é um marco cronológico para a cultura negra, nele é “celebrado” os 100 da Lei Áurea, que põe fim a escravização no Brasil. De forma crítica, a Mangueira trata em uma passagem da sua sinopse que: “Nos tempos modernos, a grande maioria negra passou a viver nas favelas devido à falta de estrutura dos pós libertação, tendo em vista que não lhe foi dado o mínimo para enfrentar a nova realidade social” . Ressalto que a importância da consciência23 racial e a visão de que o fim da escravização, apesar de parecer tão distante, ainda era/é muito presente no dia a dia dos negros das comunidades. Em outro trecho, a escola reafirma essa consciência social, pautadas pelo racismo quando
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