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42 FRAGMENTOS DE ESFERAS DISCURSIVAS MURILO J. DA COSTA REFLEXÃO A ESCRITA DE FLUSSER h á dois objetos a que se refere o título deste artigo apresenta- do no seminário A Escrita de Flusser, no Memorial da Amé- rica Latina, e que poderiam ser tratados separada ou conjunta- mente. Poder-se-ia falar primeiro da escrita do au- tor no sentido de criação linguística, de invenção, de estilo, e posteriormente da recente tradução do livro Die Schrift, desse filósofo. A opção, contu- do, é analisar a escrita de Flusser ao comentar seu livro A Escrita, publicado pela editora Annablu- me em fevereiro deste ano. A escrita flusseriana é compreendida tanto em alemão quanto em portu- guês como plurilíngue. Trata-se, é verdade, de uma escrita constitutivamente plural: são fragmentos de várias esferas discursivas; e isso uma breve análise da escolha lexical com- prova (desde relatos da literatura reli- giosa até excertos da literatura cientí- fica); em vários registros, desde o mais formal até o coloquial, textualizados sobre os sistemas de referência de, no mínimo, quatro línguas: alemão, portu- guês, inglês e francês. Essa pluralidade, pois, será observada na escrita da re- cente obra desse “filósofo, culturólogo e comunicólogo brasileiro”. Vilém Flusser nasceu em 12 de maio de 1920 em Praga, e lá iniciou os estudos em filosofia. Diante da ascen- são do nazismo, e devido à sua ascen- dência judaica, emigrou para a Ingla- terra em 1939. No ano seguinte, ainda em fuga do nazismo, veio para o Bra- sil acompanhado de sua esposa, Edith Flusser. Depois de trabalhar na indús- tria do sogro, resolveu dedicar-se à vida intelectual. Iniciou a carreira docente na Escola de Arte Dramática Alfredo Mesquita. Lecionou ainda no Institu- to Tecnológico de Aeronáutica (ITA), na Fundação Armando Alvares Pen- teado (FAAP) e na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Foi um dos mais instigantes intelectu- ais na área da filosofia da comunicação. Na década de 1970, quando a mídia se impôs definitivamente nas relações co- municacionais cotidianas, iniciou uma cruzada para demonstrar que a tecno- logia contribui na abertura de um enor- me e novo campo de possibilidades de criação. Além da reflexão sobre a mídia, Flusser desenvolveu importantes en- saios teóricos sobre a linguagem, as lín- guas e o fenômeno da tradução. Ainda que tenha vivido no Bra- sil durante 33 anos, e jamais morado na Alemanha, sua obra é mais estuda- da pelos alemães que pelos brasileiros. Sua obra também é mais conhecida por suas reflexões sobre mídia e contem- poraneidade. Uma recente publicação sobre o autor, o livro A Época Brasilei- ra de Vilém Flusser, de Eva Batlickova, pode reverter esse quadro, não apenas torná-la mais atrativa para os leitores brasileiros, como também jogar luzes sobre as reflexões de sua fase inicial de produção, desenvolvida aqui no Brasil. O livro A Escrita, último ensaio escrito antes do acidente que lhe tirou a vida, é uma obra fundamental para se conhe- cer o pensamento do filósofo. Para ele, os códigos digitais e as imagens técni- cas produzidas por aparelhos poderão decretar a morte da escrita, isto é, do código alfabético, das letras. Ao longo da obra, o autor discute, antes de mais nada, a história da escrita, desde as ins- crições, quando o suporte desse gesto de escrever era a argila, a pedra; pas- sando pelas sobrescrições, escrita cujo suporte é o papel; até o momento, que ele designa de pós-história, em que os códigos digitais terão substituído a mo- dalidade escrita de uso da língua. Ele discorre sobre a escrita à mão e sobre a escrita elaborada por meio dos apa- relhos, sobre a escrita linear e sobre os novos códigos digitais produzidos com o computador, a máquina fotográfica e a televisão. “Da mesma maneira como o alfabeto procedeu originalmente contra os pictogramas, os códigos digitais pro- 43 FO TO s : r e p r O d u ç ã O As aulas de Vilém Flusser atraíam alunos de vários cursos. 44 cedem atualmente contra as letras, para superá-las. Da mesma maneira como, originalmente, o pensamento funda- mentado no alfabeto se engajou contra a magia e o mito (contra o pensamen- to imagético), também o pensamento baseado em códigos digitais se engaja contra ideologias processuais, “progres- sivas”, para substituí-las por modos de pensar cibernéticos, sistemoanalíticos e estruturais”, escreve o autor na página 161, no capítulo sobre os códigos di- gitais. E continua, “da mesma maneira como as imagens ao longo da história se defenderam para não serem suplan- tadas por textos, também o alfabeto atualmente defende-se para não ser su- plantado pelos novos códigos – apenas um pequeno consolo para todos aqueles engajados na permanência da escrita de textos, pois a coisa se acelerou”. Por ocasião dessa reflexão sobre o declínio da escrita linear em nossa cultura, Flusser faz uma leitura, uma análise de todas as atividades humanas que se desenvolveram em torno desse gesto e avalia o que perderemos e o que será diferente se abrirmos mão do escrever. Daí, o subtítulo do livro: há futuro para a escrita? Para o professor e pesquisador Norval Baitello Jr., Flusser elabora nessa obra uma antropologia da escrita. Entre outros, há capítulos dedicados aos livros, às cartas e ao ri- tual epistolar, aos jornais, às papelarias, às escrivaninhas etc., aspectos de nosso cotidiano apreendidos por um olhar fe- nomenológico. É um olhar pessimista e melancólico. Esse olhar, por exem- plo, é apreendido no capítulo Cartas, em que ele discorre sobre o ritual de enviar e receber essa escrita. Um tom que também permanece no capítulo Li- vros, em que faz considerações sobre o desaparecimento da escrita publicada nas páginas de papel de um livro. Para o autor, ao abrir mão da escrita, as atividades organizadas em torno desse gesto tam- bém desaparecerão: as cartas, os livros, as papelarias e até mesmo a cidade. Assim, o argumento flusseriano objetiva mostrar que um dia o alfabe- to – invenção que levou o ser humano a ingressar no período histórico, carac- terizado pelo pensamento lógico, linear, conceitual – desaparecerá completamen- te da face da Terra. Para ele, não é fácil conviver com essa ideia, pois há pessoas que acreditam, entre as quais ele se inclui, que não poderiam viver sem escrever. E não é porque queiram tornar-se grandes escritores, mas porque acreditam que precisam escrever, já que só no gesto do escrever podem expressar sua existência. Esse conteúdo temático é perfei- to para o gênero de discurso seleciona- do pelo filósofo: trata-se do ensaio. O ensaísmo já diz respeito a sua prática de escrita. Vilém Flusser não era jorna- lista. Nem escrevia tratados científicos. O próprio autor discorre sobre esse gê- nero em vários momentos de sua obra. Rainer Guldin, um dos principais co- mentadores da obra de Flusser na Eu- ropa, e que servirá de base para as con- siderações sobre a prática de escrita de Flusser, expõe em sua obra Philosophieren zwischen den Sprachen: Vilém Flussers Werk que “o ensaio indica a perspectiva esco- lhida desde o início (...). Ele não silen- cia, ao contrário do tratado científico, Para Flusser, códigos di- gitais e imagens técnicas poderão decretar o fim da escrita. 45 a dependência do ponto de vista. Isso já é anunciado na escolha do título. Es- creve-se sobre uma área geral de difícil definição e submete-se, portanto, à sus- peita da deslealdade científica. Escreve- se tanto sobre o cotidiano quanto sobre temas filosóficos. (...) Não há limites temáticos para a escrita ensaística. (...) Ensaios são, para Flusser, narrativas fe- nomenológicas: eles vivem do engaja- mento que liga aqueles que escrevem ao seu objeto, e tornam o ponto de vista de quem vê o verdadeiro tema”. Ainda de acordo com o autor, “a escrita ensaística é a renúncia consciente a uma explica- ção abrangente e a um ponto de vista hegemônico, a partir do qual tudo po- deria ser compreendidopor uma única visão. Ensaios não fornecem projetos de mundo totalizadores, eles perma- necem fragmentários. (...) Assim como o ensaio está aberto a todos os temas, também procura combinar diferentes línguas, estilos e registros. Finalmente, ensaios não propõem imagens harmo- niosas e consensuais, mas esboços e ca- ricaturas. São espelhos de distorção em que a realidade se fragmenta, o tema é decomposto e remontado”. Pode-se afirmar, portanto, que essa escrita ensaística é uma das princi- pais características do estilo flusseriano de escrever. É no ensaio, e por meio dele, que o autor desenvolve sua autoria. Trata-se de uma escrita única e autoral. Há um posfácio no livro. À página 178, no fim desse posfácio, o autor assina e data (V. F., junho de 1989). A assinatu- ra é totalmente desnecessária. Ninguém, além do próprio Flusser, poderia ter es- crito essa obra. Nesse aspecto reside ou- tra característica da escrita do autor, uma criação linguística que assemelha-se em certa medida à escrita literária. Há uma escrita autoral, em que repetições, redun- dâncias, topicalizações, modalizações etc. são marcas da intencionalidade do autor vinculada ao estilo do gênero “ensaio”. E que mais caracteriza a escrita de Vilém Flusser? A escrita flusseriana é, como já se mencionou, compreen- dida tanto em alemão quanto em por- tuguês como plurilíngue. O conceito “escrita plurilinguística” remonta aos escritos do próprio autor, que define o surgimento do próprio plurilinguismo como a superposição de camadas lin- guísticas sobre um núcleo já esfacela- do: alemão e tcheco, duas línguas com estruturas radicalmente diferentes, in- fluenciaram a formação de seu pensa- mento em duas partes iguais. Ao definir a própria escrita por meio dessa imagem, Flusser nos leva a visualizá-la como camadas geológicas que se sobrepõem, mantendo seus limi- tes. Poder-se-ia, contudo, falar de uma linguagem caleidoscópica. Não pode- mos esquecer que o projeto do autor era, segundo Guldin, “instalar-se na apatridade, isto é, superar o desenraiza- mento, ao transformá-lo em uma pátria de segundo grau. Para ele, ao contrário da ideia corrente, apatridade não signi- fica mais e nem apenas a falta doloro- sa de uma pátria única e sagrada, mas a sobreposição libertadora de muitas pá- trias diferentes. Abundância, portanto, e não carência. (...) Aquilo que é múltiplo frequentemente ameaça se desfazer em seus componentes e se separar inexora- velmente. Uma solução é a tradução e a retradução como construção de pontes de entendimento, um ir e vir precário, porém esclarecedor, entre ilhas de lín- guas e margens estranhas”. Portanto, no caso de Flusser, trata- se de uma escrita que refrata esse proje- to existencial. Sua escrita é desenraizada. São como passos leves que, em oposição ao que escreve no livro, não deixam ras- tros – ou procuram não deixar. Murilo Jardelino da Costa é professor e pesquisa- dor, especialista em linguística e pedagogia empírica.
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