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CHARTIER, R Cultura escrita, Literatura e História

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C4B6c Chartier, Roger 
Cultura escrita, literatura e história: Conversas de Reger Chartier com Carlos 
Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. - Porto 
Alegre : ARTMED Editora, 2001. 
1. Ensino da Leitura. 1. Título 
CDU 372.41 
Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto - CRB 10/1 023 
ISBN BS-7307-766-: 
,, 
' .:\; 
Roger Chartier 
Cultura Escrita, 
Literatura e História 
Conversas de Roger Chartier 
com Carlos Aguirre Anaya, 
jesús Anaya Rosique, Daniel Gofdin 
e Antonio Saborit 
Tradução: 
T ERNANIROSA 
Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição: 
llZAJARDIM 
Professora da Faculdade de Educação da UFRGS. 
PORTO ALEGRE, 2001 
Obra originalmente publicada Sob o título . . . . 
Cultura escrita, literatura e historia: Coacciones transgred1das y hbertades restnng1das 
- Conversaciones de Roger Chartier con Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, 
Daniel Goldin y Antonio Saborit 
© Fendo de Cultura Económica, 1999 
ISBN 968-16-5974-0 
Editor do texto: 
ALBERTO CUE 
Capa: 
JOAQUIM DA FONSECA 
Preparação do original: 
ANDRÉ LUIS AGUIAR 
Leitura final: 
MARIA DA GLÓRIA ALMEIDA DOS SANTOS 
Supervisão editorial: 
MÔNICA BALLEJO CANTO 
Editoração eletrônica e filmes: 
GRAFLINE EDITORA GRÁFICA 
Reservados todos os direitos de publicação, em lí ngua portuguesa, à 
ARTMED� EDITORA S.A. 
Av. Jerônimo de Ornelas, 670 - Santana 
90040-340 Porto Alegre RS 
Fone (51) 3330-3444 Fax (51) 3330-2378 
É proibida a duplicação ou reprodução deste vol��e, no to?o_ ou em pa�te, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletron1c?, �ecamco, gravaça_o, fotocópia, distribuição na Web e outros), sem perm1ssao expressa da Ed1tora. 
SÃO PAULO 
Av. Rebouças, 1073 ·Jardins 
05401-150 São Paulo SP 
Fone (11) 3062-3757 Fax (1 1) 3062-2487 
SAC 0800 703-3444 
IMPRESSO NO BRASIL 
PRINTED IN BRAZ/L 
::(• 
AUTOR E PARTICIPANTES 
Roger Chartier (Lyon, França, 1945). É diretor dos estudos em Ciências So­
ciais da École des Hautes Études, diretor do centro internacional de Synthêse­
Fondation pour la Science e membro de diferentes conselhos editoriais (Studies 
in Print Culture and History ofThe Book; In-Octavo; Iichiko; Maná; Estudios de 
Antropología Social, entre outros) . Administra cursos, seminários e conferêÓ.ci­
as nas principais universidades do mundo, e recebeu as seguintes distinções: 
Annual Award o f the American Prinring fjistory Association, Grancl Prix d'Historie 
(Prix Gobert) da Académie Française: Corresponding Fellow of the British Aca­
demy. Entre suas obras destacam-se: Espacio público, críti.cay desacralización en 
el sigla XVIIIhos orígenes culturales de la Revolución francesa; Libras, lecturas y 
lectores en la sociedad moderna; Lecturas y lectores en la Francia del Anti.guo 
Régimen; Escribir las prácti.cas e Foucault, De Certau, Marin; e Historia de la 
lectura en el mundo occidental (em colaboração com Guglielmo Cavallo). 
Carlos Aguirre Anaya. Antropólogo egresso d& Escuela Nacional de Antro­
pología e Histeria; pesquisador da Dirección de Estudios Históricos do INAH, 
da qual foi vice-diretor (1989-1995), e onde coordena o Seminario de Historia 
Urbana. Foi assessor de pesquisa do Museo de la Ciudad de México (1996-
1998). Autor de numerosos artigos e ensaios, entre suas obras recentes encon­
tram-se: "La cerámica y la ciudad: permanencias e innovaciones", La cerámica 
en la ciudad de México (1325-1917) (Departamento del Distrito Federal, 1997); 
"El centro - um espaço para todos", El Centro Histórico ayer, hoy y mafíana 
(Departamento del Distrito Federal-INAH, 1997). Ministrou conferênci&s em 
várias instituições, centros de pesquisa e universidades. É diretor da revista 
Historias, e fundador e editor executivo do Breve Fondo Editorial. 
VI 
Jesús Anaya Rosique. Editor, tradutor e pesquisador da indústria editorial e 
da história da edição contemporânea. Em 1992, fundou a primeira pós-gradu­
ação de edição na América Latina, com apoio da Universidad de Guadalajara e 
da Cámara Nacional de la Indústria Editorial Mexicana. Desde 1996 é diretor 
editorial do Grupo Planeta no México. 
Alberto Cue. Estudou história na Universidad Nacional Autónoma do Méxi­
co. Desde 1978 exerce seu trabalho como editor, ao lado do catedrático e tradu­
torWenceslao Roces no Fondo de Cultura Económica. A partir de 1989, colaborou 
em diversas editoras em tarefas relacionadas com a produção editorial. 
Daniel Goldin. Estudou língua e literatura hispânica na Universidad Nacio­
nal Autónoma de México. Criou e dirige os programas de livros para crianças e 
jovens, e de formação de leitores do Fondo de Cultura Económica. 
Antonio Saborit. Realizou estudos de literatura inglesa e história na Facul­
tad de Filosofia y Letras da UNAM, e de realização cinematográfica no Centro 
Universitario de Estudios Cinematográficos. Escreveu numerosos artigos, pró­
logos e ensaios sobre história cultural e literária para diversas publicações peri­
ódicas e livros coletivos e próprios. Editou, entre outros: Todo es historia de Luis 
González y Gonzáles (Cal y Arena, 1989); Cuando éramos menos de Renato 
Leduc (Cal y Arena, 1989); Una mujer sin país. Las cartas de Tina Modotti a 
Edward Weston (Cal y Arena, 1992), e Crónicas desde la cárcel de Heriberto Frías 
(Breve Fondo Editorial, 1995). É coordenador do Seminario de Historia de la 
Cultura Nacional de la Dirección de Estudios Históricos do INAH, da qual foi 
titular entre 1989 e 1995. É vice-diretor da revista Historias, membro da mesa 
dir<tora do projetoRecovering the U. S. HíspanicLiterary Heritage (Universidade 
de Houston), fundador e editor executivo do Breve Fondo Editorial, membro do 
conselho editorial das revistas Biblioteca de México e Memoria. Fellow do pro­
grama "Friends of the Princeton University Library'' (1998-1999). 
APRESENTAÇÃO 
Pela capacidade de unir a reflexão metodológica e teórica com uma rigorosa 
investigação empírica em um campo que por si mesmo convoca a diversida� 
de de ciências sociais, Reger Chartier é, além de um pensador�chave para o 
estudo da cultura escrita, uma presença seminal no panorama contemporâ� 
neo das ciências sociais. 
Desta vitalidade falavam as numerosas traduções de suas obras para o 
espanhol, mas principalmente a grande diversidade de seus leitores: histori­
adores, antropólogos, sociólogos, críticos literários, pedagogos, literatos ou 
editores. r 
Esta oõra tem sua origem em um encontro do autor, um historiador 
francês, com quatro leitores mexicanos, com diferentes formações profissio­
nais, para quem a obra de Chartier foi fundamental, e está destinado aos 
seus leitores, àqueles que queiram se aproximar pela primeira vez da sua 
obra e a tatta pessoa que tem interesse em compreender, de uma maneira 
mais profunda, a cultura e, especificamente, a cultura escrita. 
Como a própria obra de Chartier, este livro exige do leitor atenção, 
reflexão, análise, releitura. Neste sentido, não é uma leitura fácil, mas, sem 
dúvida, é uma experiência estimulante e enriquecedora. Chartier é um pen� 
sador rigoroso e, simultaneamente, de grande generosidade. 
Ao final falamos dele como arquiteto de sua própria obra, e de sua 
preferência pelas pequenas construções frente aos grandes monumentos. Tam­
bém como urbanista, quer dizer, como um artista que planeja espaços para 
que outros construam, vivam e convivam. Ao escrever estas linhas, volto a 
sentir isso. Penso que nesta obra há material para iniciar ou prosseguir muitas 
outras. Espero que alguns leitores encontrem nela alento para continuar ou 
aprofundar a compreensão da história da cultura escrita em nosso idioma. 
VIII APRESENTAÇÃO 
Isso era parte do que buscamos ao convidá-lo. Estou certo 
,
�e qu:, para 
.
o 
leitor que tiver o primeiro contato com Chartier, a marca sera mdel�vel, P?�s 
jamais poderá voltar a se aproximar de um livr? .sem sen�r que es:a partlcl­pando em uma longa e complexa cadeia de praticas e objetos, �ultas. vezes esquecida, em que nós, humanos, temos buscado e gerado sentido,diferen­
ciando-nos e criando uniões, exercendo poder e questionando-o. 
Esta obra não teria sido possível sem a valiosa ajuda de Alberto Cue, 
outro leitor de Chartier e um colaborador esmerado e atento. Quero deixar 
registrado nosso agradecimento. 
Daniel Goldin 
PRÓLOGO 
Os antigos não professavam nosso culto ao livro; viam no livro um sucedâ­
neo da palavra oral. Aquela frase que se cita sempre - Scripta manet 
verba volant - não significa que a palavra oral seja efêmera, mas que a 
palavra escrita é algo duradouro e morto. Em troca, a palavra oral tem 
algo de alado, de leve; alado e sagrado, como disse Platão. (Jorge Luis 
Borges. Borges oral, "El Libro", 1978.) 
Como as aptigas comédias espanholas, este livro desenvolve-se em cinco jor­
nadas, que constituem o rastro escrito (e agora impresso) das extensas con­
versas que mantive com quatro amigos mexicanos: Carlos Aguirre Anaya, 
Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Sal:Íorit. 
A e�eriência foi magnífica e difícil para mim. Magnífica, pois permitiu­
me confrontar meu trabalho e minha reflexão com as preocupações, as inquie­
tações e as perguntas guiadas por outras referências e outros conhecimentos 
distintos dos meus. Difícil, pois o diálogo (sobretudo quando implica o uso de 
uma língua estrangeira) está sempre ameaçado pela imprecisão ou a repeti­
ção. Mas valia a pena correr o risco, já que nossa obra, em sua própria forma, 
ilustra duas idéias que me parecem fundamentais para compreender a cultu­
ra escrita em sua complexidade e em sua história. 
Antes de tudo, mais ainda que em outros, um livro baseado em uma 
série de conversas supõe uma multiplicidade de mediações e de intermediári­
os entre as palavras enunciadas e a página impressa. Em nosso caso, a própria 
construção desta obra exigiu a capacidade e o cuidado de todos aqueles que 
contribuíram em suas diversas etapas: o registro das mudanças, sua transcri-
X PRÓLOGO 
ção, a correção do "manuscrito", sua releitura, a composição e a impressão, 
e a edição. Não há melhor maneira de mostrar que os autores não escrevem 
os livros, mas que estes são objetos que requerem numerosas int�rvenções. 
Conforme o tempo e o lugar, estas não são idênticas tampouco os papéis se 
distribuem de igual maneira. Desde meados do século XV, os processos de 
produção do livro impresso mobilizam os conhecimentos e os procedimen­
tos de todos os que trabalham na oficina tipográfica (editores, revisores, 
linotipistas, impressores). Surge assim, com a multiplicação de manuscritos 
que descansam no trabalho dos copistas e difere da fabricação do livro no 
Oriente, na China e no Japão, que até o século XIX ignora o emprego maciço 
de caracteres móveis ao depender do trabalho dos calígrafos, que copiam o 
texto, e do dos gravadores, que o dispõem em pranchas de madeira que 
servem para a impressão. As técnicas mudam e, com elas, os protagonistas 
da fabricação do livro, mas permanece o fato de que o texto do autor não 
pode chegar a seu leitor senão quando as muitas decisões e operações lhe 
deram forma de livro. Não dá para esquecer isto ao lê-lo. 
Esta obra deseja mostrar o corte que sempre separa a palavra viva do 
texto escrito. O projeto não carece de paradoxos, pois somente devido à sua 
transcrição pode o nível oral deixar um rastro que possibilite sua difusão. 
Apesar desta traição obrigatória, pôr em forma escrita - e, no caso presente, 
na de publicação impressa - não apaga nunca de todo o que há de específico 
na prática oral_: um encadeamento mais espontâneo das idéias, um temor 
menor às digressões e aos rodeios, uma expressão menos restrita das opiniões 
e dos pensamentos. 
Daí, talvez, o interesse por tentar, como aqui se faz de alguma maneira, 
voltar a uma velha questão: a da impossível e, portanto, necessária fixação 
das palavras, que, em sua forma oral, desaparecem tão logo são pronuncia­
das. Esta contradição foi compartilhada no passado por todos aqueles que se 
esforçaram por reproduzir e transmitir as palavras ditas pelos comediantes 
em cena, os pregadores ou os professores desde o alto de seu estrado, ou 
inclusive os legisladores ao deliberar nas assembléias. Capturar as palavras 
ao vivo conduz inventar os sistemas para transcrever e preservar na escrita 
sua força viva: estes desafios não são próprios de nosso presente. Alimenta­
ram a redação de numerosos textos, dirigiram a invenção de novas técnicas, 
de escritas rápidas no registro sonoro, e ligaram duradouramente certos gê­
neros (o sermão, o discurso, a cena dramática) com a oralidade, embora nos­
sas palavras tenham sofrido mudanças ao serem transcritas na tentativa de 
tornar possível a comunicação, esperamos que tenham conservado algo da 
liberdade original que tiveram. 
PRÓLOGO X.l 
O tema fundamental da obra dirige-se a duas perguntas: como com­
preender_as mudanç_as da cul�ura escEita em uma perspectiva de IOniá du­
raç��:? ��?.-�-�tuai a literatura na base do conjunto de discursos que Uma sociedade pr?.��� e recebe? Estes serão os fios condutores ao longo de nossas jOrnadas. · · 
Em nossa primeira jornada, tentamos sublinhar e datar, a partir dos 
inquietantes diagnósticos acerca do presente, as principais mudanças que 
em diversos momentos transformaram a própria forma do livro ou do objeto 
escrito, as técnicas de produção e reprodução dos textos, as _modalidad�� qe 
�.ua _"publicaçãC?" e. as práticas de sua leitura. SemelhantePérspe�tiVa, que feliZiii.êrite atravessa os séculos, permite identificar as revoluções mais es­
senciais da cultura escrita e dar um lugar mais justo, mais importante e me­
nos heróico à invenção de Gutemberg. 
Após a perspectiva de longa duração, vem o inventário dos lugares. Em 
nosso segundo diálogo, esforçamo-nos para delinear o mapa da história do 
livro, entendendo em duplo sentido - os antigos espaços da produção e a 
circulação dos impressos e a geografia contemporânea - a disciplina que os 
estuda. Semelhante enfoque introduz, necessariamente, uma dimensão com­
parativa em nossos diálogos, convidando assim à reflexão em torno das evo­
luções paralelas ou discordantes entre o Velho Mundo europeu e o das 
sociedades americanas. Deste modo, ensaia-se uma reflexão comum em tor­
no dos marc<JS territoriais e cronológicos mais pertinentes para a história da 
edição, do liVro e da leitura na América - por exemplo, no caso mexicano. 
As duas jornadas seguintes tentam situar os diversos usos estéticos, pri­
vados ou públicos da escrita e, depois, da impressão. Desejamos mostrar o 
que um enfoque que restitui o papel do leitor e da leitura, seguidamente 
ignorado pm. crítica literária, pode trazer para a compreensão das o bras, 
incluindo as mais clássicas e canônicas. Em sua conferência pronunciada em 
1978, Jorge Luis Borges indicava com sutileza que um livro só adquire exis­
tência quando tem um leitor que o lê, e que seus significados mudam com 
suas leituras: 
O que são as palavras postas em um livro? O que são esses símbolos mor­
tos? Nada absolutamente. O que é um livro se não o abrimos? É simples­
mente um cubo de papel e couro, com folhas; mas se o lemos acontece 
algo estranho, creio que muda a cada vez. Heráclito disse (o repeti dema­
siadas vezes) que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Ninguém 
se banha duas vezes no mesmo rio porque as águas mudam, mas o mais 
terrível é que nós não somos menos fluidos que o rio. Cada vez que lemos 
um livro, o livro mudou, a conotação das palavras é outra. 
XII PRÓLOGO 
Daí a necessidade1 para o historiador, de refletir sobre as fontes e os 
meios que permitem abordar este ato sempre efêmero e misterioso que é a 
apropriação de um texto. 
Ao poder poético e secreto do livro se acrescenta outro, público e crítico, 
que foi objeto de nossa quarta jornada. Para os homens do Iluminismo, o 
surgimento da opinião pública supôs a circulação do escrito, o intercâmbio 
epistolar, a leitura crítica, a formulação de juízos. A partir deste momento 
fundador, as diversas modalidades de constituição e de controle·da opinião 
são sucedidas pelas novas práticas de leitura instauradas pela Revolução Fran­
cesa e, mais tarde, pelas transformações da imprensa jornalística na segunda 
metade do século XIX. Esboçamos aqui o inventário. 
Esta constatação só pode conduzir-nos ao exame do presente e a uma 
apreciação mais rigorosa dos efeitos produzidos pela revolução do texto ele· 
trônico sobre as práticas, os usos e as concepções do escrito. Como pensar, 
nesta nova economia da escrita, a criação estética, a identidade do texto, a 
submissão ou a liberdade do leitor e, finalmente, a definição do espaço públi­
cO e a -relãção êbm ós podere;;'? Ésta é a questão fundamental que nos tem 
reclamado como leitores, intelectuais e cidadãos. 
Não é próprio de uma boa comédia concluir sem um epílogo destinado a 
captar a benevolência dos espectadores. Assim é este livro, que se encerra 
com uma reflexão em torno da maneira, ou melhor, das maneiras de escrever 
a história e em torno da responsabilidade própria dos historiadores. Se estes 
compartilham com os romancistas as figuras retóricas e as formas narrativas 
que organizam todos os relatos, quaisquer que estes sejam, de história ou de 
ficção, sua tarefa específica é propor um conhecimento adequado do que fize­
ram - as maneiras de atuar e de pensar, de ler, escrever e dizer- os homens 
e as mulheres do passado. Este conhecimento não carece de importância pois 
é capaz de revelar as falsificações que os poderes querem produzir, assim 
como de destruir as falsas idéias que alteram nossa relação com a história. 
Esta exigência de um conhecimento fundamentado e crítico animou cada um 
dos protagonistas destas conversas a tentar fazer mais inteligível a revolução 
da cultura escrita que vivemos, apesar de não se ter sempre urna exata per· 
cepção de suas dimensões. 
Ao reler estas conversas, pareceu· me que as tramas lhe deram sua coe· 
rência. Antes de mais nada, uma idêntica forma de pensar a criação literária, 
o trabalho do historiador e as práticas do escrito é o que conferiu unidade a 
nossos diálogos. Em cada caso, o importante é compreender como os signifi· 
cados impostos São transgredidos, mas também como a invenção - a do 
autor ou a do leitor - se vê sempre refreada por aquilo que impõem as capa· 
PRÓLOGO XIII 
cidades, as normas e os gêneros. Contra uma visão simplista que supõe a 
servidão dos leitores quanto às mensagens inculcadas, lembra�se que a recep· 
ção é criação, e o consumo, produção. No entanto, contra a perspectiva inver­
sa que postula a absoluta liberdade dos indivíduos e a força de uma 
imaginação sem limites, lembra�se que toda criação, toda apropriação, está 
encerrada nas condições de possibilidade historicamente variáveis e social· 
mente desiguais. Desta dupla evidência resulta o projeto fundamental, que 
acredita descobrir corno, erll contextos diversos e mediante práticas diferen� 
tes (escrita literária, a operação historiográfica, as maneiras de ler), estabe� 
lece·se o paradoxal entrecruzamento de restrições transgredidas e de 
liberdades restringidas, 
A segunda trama de nossas conversas surge de uma interrogação sobre o 
próprio papel dos participantes das ciências humanas e sociais em nossas 
sociedades. À distância do velho modelo de moderado afastamento do mun­
do, mas também da figura do intelectual profético, o que buscamos conjunta� 
mente é algo diferente: quais são as condições para que os conhecimentos 
particulares, de análises especializadas, possam procurar os instrumentos crí­
ticos e os modos de inteligibilidade aproveitáveis para compreender melhor 
as realidades do presente, seguidamente cruéis ou inquietantes? Um projeto 
assim explica porque nos mais diver$OS momentos deste livro discutem�se os 
conceitos e as categorias de análise (apropriação, aculturação, representação, 
etc,) capazeTde deslocar nosso conhecimento do passado e fundar uma visão 
mais lúcida acerca dos tempos que vivemos. 
Ficaríamos alegres se este livro, a muitas vozes e a muitas mãos, pudes· 
se contribuir para realizar esse exercício de lucidez. · 
Roger Chartier 
SUMÁRIO 
AUTOR E PARTICIPANTES................................................................. V 
APRESENTAÇÃO ............................................................................... VII 
PRÓLOGO . ... .. ........... ... . . . . . ...... .. .. . . .................. ......... .... ... . ..... .. ... . .. ..... IX 
Primeira Jornada 
A CULTURA ESCRITA NA PERSPECTIVA DE LONGA DURAÇÃO....... 19 
Por qu� a história do livro? ..................... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 19 
Crise do livro e da cúltura escrita. ............................................. 20 
A crise da leitura: os discursos e seus produtores ..................... 24 
A biblioteca universal: sonhos e pesadelos .............. .................. 27 
Do lilml à leitura .................................... ............... .................... 29 
Gutemberg reconsiderado ........... ................. . ...... . .......... ........... 34 
As revoluções da leitura .............................. .............................. 37 
Do rolo ao códice ................ . . ...... . . . . . . . . . . . ......... .......................... 43 
Figuras do editor ....................................................................... 44 
Editor e publisher .............................................................. ........ 46 
O autor e o editor ...................................................................... 50 
Copyright e propriedade literária .............................................. 51 
Notas .. ... . . . . ... ...... .. ................ .................. ........... ........................ 55 
...._ __ __ ,,_ .. " .. --·--·---------- --·-·-
Segunda Jorna da 
OS ESPAÇOS DA HISTÓRIA DO LIVRO ............................................ . 
A história do livro: centro e periferias .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Livros, revoluções e colonização .............................................. . 
Apropriações e traduções ......................................................... . 
Para urna história do livro no México ....................................... . 
O que é a contemporaneidade? ..... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Livros e educação ..................................................................... . 
O papel dos intelectuais ............. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 
Notas ........................................................................................ . 
Terceira Jornada 
LITERATURA E LEITURA .................................................................. . 
Práticas da oralidade e cultura gráfica ..................................... . 
O historiador e a literatura ...................................................... . 
Moliêre e Shakespeare em seu tempo .......... ............................ . 
O rei e o poeta . . . . ..................................................................... . 
As fontes da história da leitura .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Palavras de leitores .................................................................. . 
Literatura e sociedade .............................................................. . 
Iluminismo e Revoluç�o, Revolução e Iluminismo ................... . 
Notas ................................... ..................................................... . 
/Ó u. a r t a J o r n a d a . PRATICAS PRIVADAS, ESPAÇO PUBLICO ........................................ . ' 
O poder do livro ....................................................................... . 
Aculturação e apropriação ....................................................... . 
Entender a Revolução .............................................................. . 
A.ieit:üra· ·reVolucionada................ ........................................... .. 
Definições da opinião pública .................................................. . 
Da descrição do presente à invenção do futuro ........................ . 
Invenção do jornal ................................................................. . . . 
A ordem dos livros .... . . ............................................................. . 
Evento e monumento .............................. . ................ . ............... . 
Notas ....................................................................................... .. 
57 
57 
62 
66 
69 
71 
73 
79 
81 
�r 
83 
83 
88 
91 
96 
99 
101 
104 
107 
110 
113 
113 
115 
117 
120 
123 
126 
128 . .'-�-1--
132 .,. ' ·') 
135 ., 
137 
'(", 
T 
Quinta Jornada 
A REVOLUÇÃO DO TEXTO ELETRÔNICO ......................................... . 
A leitura: hábito ou interiorização ... . . . . . . . . ............................... .. 
A Bi"blia e as imagens: protestantismo e catolicismo ... . . . . ..... . . . .. 
O texto como imagem .. . . . . . . . . . . . ................................................ .. 
Frente à tela ...... . . . ....................... .......... ...... ............................. . 
A forma e o sentido ............................... . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 
O texto na idade da representação eletrônica .......................... . 
Escrever e ler no século XXI .................................................... .. 
Disciplina e invenção, distinção e divulgação ......................... .. 
O leitor e o_ poder ..................................... . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 
A legibilidade do mundo ......................................................... .. 
Notas .......................................................... . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............ . 
E p í l og o 
AS PRÁTICAS DA HISTÓRIA ............................................................ . 
A história das práticas culturais .................. .... ........................ .. 
Diálogos .......................... ......................................................... . 
Deslocamentos ········;.;···· ........................................................... . 
Micro-história e macroantopologia ...................... .................... . 
A história, entre a narração e o conhecimento ... . . . . . . . . . . . . .. .. . . . . . .. 
Qual retorno ao político? ........................................................ .. 
A construção conflitante de sentido ........................................ .. 
História, falsificação e ficção ......................... ........................... . 
Estilos historiográficos ............................................................. . 
A ilus� autobiográfica ........................... . . . . . . . .......... ... . . .. ......... . 
Notas ............................................................ ........................... .. 
Apêndice 
BIBLIOGRAFIA DE ROGER CHARTIER .............•................................. 
139 
139 
140 
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187 
Primeira Jornada 
A CULTURA ESCRITA 
NA PERSPECTIVA DE 
LONGA DURAÇÃO 
POR QUE A HISTÓRIA DO LIVRO? 
., 
JEsús ANAYA ROSIQUE: Gostaria de começ /-;:�;;,'uma t,érgunta f'uito simples: por que a história do livro, da edição,, Q.a leitura J dos�eitores? /' ROGER CHARTIER: Sim, por que faz os ·sfo hoje•em-<11a? Por que a im­
portância c�.pcedida à história do livro, da leitura, dos leitores? Isto acont.�.ce em um morflento em que os discursos mais coryunSvepam sobre a perda deste mundo de objetos: o livro impresso, ou das :Práticas,,ffieste caso a·iêitura. '-
Parece-me que a reflexão histó��ca. ou socihl_Qgi.c:i' ou filosófica ·que· se 
dedica ao tema daJeitura, do livro, �ós _suportes dos textos, pode ser vincula­da a este' prese11te talvez para corrigifC;:s·díagnósticos mais sombrios. Apesar 
de ser ve'rãadéira a concorrênCia erit[�,.qo_e .. a tela (algo comum hoje em 
dia), há uma resistência, uma presença, não só d.Os.�t�xtos impressos como 
também dos textos em geral, porque os novos meios de comunicação são 
,suportéS.Pàra a comunicação tanto de textos como de imagens. Parece-me "que·dêVe.mos nos distanciar um pouco da perspectiva à maneira de MacLuhan, 
em que se supõe que há uma concorrência entre o livro, que significa os 
textos, e as telas do cinema e da televisão, que significam imagens. Nas novas [ telas - as dos compUtadores - há muitos textos, e existe uma possibilidade 
c-;ria de uma nova forma de com�ÍcaçãÔ·q�e. se articula, agrega e vincula 
textos, imagens e sons. Assim, pois, � cultura teXtual resiste QU, melhor dito, 
se fortalece,\no mundo dos novos meiO"S de comunicação. ;. 1 '·· ·� .. . ·-., 
20 ROGER CHARTIER 
Esta é uma primeira razão para recusar, corrigir ou matizar os diagnós� 
ticos que seguidamente se fazem acerca do presente. Outra razªº,_acredito, é 
{) o�gfSi:ro h.��.QrtS9 .. C;le todos os critérios, conceitos e<rry�·�SeÊ.�!:�<?9'que se tem em relação à Cultura escrita de nosso tempo, pois acontece· como se a,s 
categorias que utilizamos espontaneamente fossem categorias inVai{ávefs, �ni­
versais. Certo, o livro existe desde a Antigüidade, mas não da mesma forma. 
O mesmo acontece com a Fa:teg�iri'!-__ g_�J�Itl;JX�i:Jler silenciosamente, nà soli­
dão, embora seja em um espaço público, nem sempre foi uma prática com­
partilhada. E o mesmo acontece com a categoria de autor. Para nós, um texto 
literário identifica-se em primeiro lugar com um nome próprio, tem um autor, 
se bem que não é o caso para todos os textos, nem sequer em nossa sociedade 
, -por exemplo, uma publicidade não tem autor, um texto legislativo não tem 
l autor. Um texto jurídico funciona sob um regime de identificação que não se 
\ vincula à figura personalizada que se expressa por meio do nome do autor. 
Livro, leitura, autor. Parece-me que muitos dos trabalhos históricos con­
temporâneos mantêm uma certa distância em relação a esses conceitos es­
pontaneamente utilizados e possibilitam pensar, de maneira diferente, o 
passado, embora também o futuro, pois o que consideramos irrefletidamente 
como im�diato ou necessário, P�..?..�CJ:�lati>::iz�49 se __ for s�tua_QQ.J�m uma 
trajetória _ci_e. �Ç>p.ga duração. Talvez o interesse que desperta em muitos de nós 
este� campo de estudo, seja explicado pelo fato de que se trata de uma refle� 
, xão um tanto distinta �-�§.9-�r�g _ _ dqs_.meiqs de comunicação �obreª_ç;qnçQt;-
/h/�ê_:t_:��-����_:_�i::.�!�-������-���:�!fnS_��ssão dos textos, i�essos ou não. E não devemos esquecer que e uma( visão realmente histórica.· Co que significa 
agarrar-se às descontinuidades, difhen'ças e discrepándas) que permitiria ter 
uma idéia mais complexa e, talvez, mais adequada do passado, para se apro-
ximar do futuro com maior força de invenção e imaginação. -·-. · 
CRISE DO LIVRO E DA CULTURA ESCRITA 
ANAYA: Algo me chama a atenção. O conceito de ucri.se do livro" aparece- e você 
a menciona - no final do século XIX, especificamente em 1890. 
CHARTIER: Sim. Há duas maneiras de ver este problema. A expressão "�J.i�S(����� �90, �uando a idéia de uma super­produção de livros estava muito prese"il.teerifre os editores, observadores e 
jornalistas, como se o mercado que cresceu na segunda metade do século XIX 
não fosse suficiente para absorver a produção nos últimos 10 anos desse mes­
mo século. Não se trata de uma crise em relação aos outros meios de com uni-
CULTURA ESCRITA, LITERATURA E HISTÓRIA 21 
cação, mas que se inscreve na defasagem entre um mercado insuficiente ·e a 
capacidade de produção de novos livros, multiplicada pelas novas técnicas de 
impressão e composição como a linotipia e a monotipia. Mas esta crise do 
final do século XIX indica algo mais profundo, que ocorre quase q"tiedesde�Õs 
pnmeírõS-11.V!Õs-iãiPressos, frente a pensamentos contraditóriossobre a cultu- e ra escrita. Há o temor à perda, o que faz com que no século XVI se recolham 
os textos ma���SJJ!<?ê.,�--�-�, �:Yt�Jpliqu�.m impressos para assim fi�á-108. e�J:êS-�---7-'"·-·--· ··-· - - - ,, ' ' .. ,,.,,_�--. . - ... _ _ .. . . .... . . gata-los do esquedme_nto. Estabelecem-se as edições mais corretas possíveis côfu-áldéiã"de Corri POr' e "depois conservar um patrimônio escrito, que com o 
manuscrito sempre corria o risco de desaparecer. Essa primeira idéia de con­
servação fundamenta até agora a vontade de manter na dimensão mais minu­
ciosa possível o patrimônio escrito. Por outro lado, existe o temor ao excesso, 
o temor próprio de uma sociedade completamente inVa:didá-pOi- seli'pât"ri�ô­
nio escrito e pela impossibilidade de que cada indivíduo maneje e domestique 
esta abundância textual. Daí começam, me parece, todos os esforços para 
classificar, organizar, escolher e estabelecer, dentro desta,minudência-·inquie­
tante, possíveis usos. O ensino, as bibliotecas e os sistemas de classificação 
são os instrumentos para controlar esse medo de que se multipliquem os tex­
tos, de que, finalmente, se transformem em. um. e_xces,so perigoso e temível. É 1 
muito forte a contradição entre � obsessão da perda,:que requer a acumula- f. 
çãO, ê a P.��º_ç_t,IJ1{lÇ,ã.() p�.!9 .. . �x.:�e.�_s_9:� · q��eXlg.e:�elecionar e escolher. l ÀíiAYA: Teria isto alguma relaÇão co� o q�e. �Qê€ -COlOcá Tto vOlume V da 
História da lida privada na forma de duas polarizações, a da cultura letrada e a 
da cultura populci.�·. quando fala dos movimentos revolucionários populares do 
século XVI, onde o�: escritos são. destruídos porque sêf,o vistos como umq força yY1 
inimiga e, por_?!-{..tfO lado, quando os letrados mostram seu desprezo pelos textos -
impressos,"" livros impressos, por considerá-los como urry.a vulgarização? A ,t. 
CHARTI�R: Sim. Podem ser analisadas de maneira mais precisa estas ex­
ceções que at�avessam a sociedade ocidental. Por e"xemplo, há uma forte so- I 
_·br.emvê_nci<.\ da ci�culação manuscrita �oS' textos até o século· xV:m e _ tàl:'{ez � 
��n�������;���:���i�i�!l��J:T;Ji�i�i����!��62!�J1�) 
texto impresso. '-
Contudo, o fundamental é ver, por um lado, como a cultura impressa 
estabelece-se de maneira muito profunda no mundo do texto manuscrito (este 
é outro tema que podemos discutir mais tarde), e, por outro, ver como a 
circ���ção dos ma�uscritos tem seus próprios valores, sua própria lógica. So­bre isso se pensa imediatamente nos textos proibidos, nos manuscritos filosó-
,/ 
./ 
22 ROGER CHARTIER 
ficos dos séculos XVII ou XVIII, nos livros de segredos ou nos livros de magia. 
Mas além desse vínculo entre o manuscrito e o segredo ou o perigo, há gênew 
ros literários clássicos para os quais a antologia maJcrita é uma forma ordiw nária - por exemplo, a poesia. � ,Att1' Há gêneros que encontram um mercado, mes um mercado restrito e f))'>l'·� escolhido po�·o da forma ID?JlUScrita. Por exemplo, as gazetas manuscri-
;> tas do sé�ul X\/Iii:)}ue podiam rea�_�r. ID'!_is:_�apidamet:ttêJtoS�áCOD.teéimê
-iít��� 
definindo, á 'Siíii� 'Um público seleto. Há util·modelo··átiStocrático da escrita, 
que vai do século XVI ao XVIII (e que poderia ser chamado de gentleman 
writer, de gentleman amateur), que S�E� __ co!ll o. __ Ip._�n-�.s��!_t_� h� �<?._n-..J-·1-' tr��gw.t�� ..... P��-�-�? � .. uto�, so�re a_forn:ta de sua obf� e sobre o QJ���,;;,�t.�t.:: público,_p__gj§__q�::�anus��ito -�ircul�" em g�ral �enn:o de um meio yla��
-õifffie-
11,·-��-;\r �_b..o_mgg_êneo;�-Os-1�it_q_r€:s .�ão autores potenciai�. e, desta maneira, existe f.?<_\. um control_e..implícíto sobre a interpretação; acredita-se que as intenções do ,e 1 ,. •l texto podem ser decifradas corretamente por leitores que comparti ham o 
., '' ; mesmo modelo cultural, a mesma comunidade de interpretação que o autor. 
-J:/i/.-r.\�_�)., Isto pode ser observado no século XVI. Sobre isso existe um famoso artigo de 
,_ ._:., "" Francisco Rico sobre a "edição" manuscrita do Lazarillo de Tormes. Ainda que . ·'/' 1-� não tenhamos o manuscrito, a prova decisiva, todos os indícios textuais que 
Rico sublinha em seu estudo acerca das edições impressas do Lazarillo levam 
a pensar que é plausiveLa hipótese de uma primeira circulação do texto em 
forma manuscritâ.l � 
A sobrevivência do manu!Íf:rito estabelece-se além disso com outra ob­
sessão: a \corrupção dos textos. Com a iiJlpreii!)-� se amplia est� obsessão, que 
existia an't�s na relaç�� _entre .·autor f copista, 'mas que, posteriormente, se 
desenvolve Cl:e-man�ífa muito mais fo�e qua1_1.d6 se encontram �ois mundos: 
por um lado, da escrita, do saber; do ib.tetéâmbio intelectua��_,das maneiras 
honestas, da ética letrada, e, por outro, o mundo da ofic;ina tipográfica, que é 
o da concorrência, do dinheiro, dos operários e das técnicas que 'transformam 
um texto· manuscrito em um objeto impresso, e que desta forma multiplica as oportunidades de leitura. Daí o risco da corrupção do texto pelos erros dos 
compositores, pela multiplicação das edições piratas e plagiadas, multiplica­
do por um capitalismo selvagem que tenta aproveitar o novo produto sem 
respeito ao autor nem à obra, e pelas más interpretações pois a grande distân­
cia do escritor em relação aos leitores permite a liberdade na apropriação dos 
textos. 
Observa-se isto em uma dimensão particularmente importante no cam­
po religioso. O exemplo de Lutero é muito interessante. Ele publica traduções 
em alemão da B{blia que, ao se difundir, permitem interpretações diversas, o 
CULTURA ESCRITA, LITERATURA E HISTÓRIA 23 
que proporciona as raízes de movimentos como a Guerra dos Camponeses. É a razão pela qual Lutero, quase na metade da década de 1520, realiza um movimento retrógrado - publicando os catecismos. Estudos recentes mos­tr.aram,que no luteranismo a Btôlia n��o era o livro de cada um: era o livro do pa_st�r�, Ó livro dos candidatos a precep-t·OréSêdéSiãStiCó�Çól.i"o liVro da paró­quià óu do templo. O fundamental é a mediação do catecismo entre o texto sagrado e a interpretação dos fiéis; e observa-se, talvez de maneira parado­xal, que no século XVI e ao longo do XVII; até a segunda reforma da década de 1680, há mais �roxifl_lt_çl�çl�.en_çr� o catoliciSJ:llO e o luteranismo que entre o luteranisrri"à e as otit:ras formas da RefOima (cà.lVl:O.ismo, puritanismo, pietis­mo), que consideram a Bz'blia como o livro fundamental da leitura coletiva familiar e pessoal. 2 ' 
Parece-me que a atitude de Lutero exemplifica essa obsessão pela cor­
rupção do texto, pela falta de controle da leitura devido à circulação do livro 
impresso, frente ao livro manuscrito que, em troca, permite manter a comuni­
dade de interpretação entre o autor e o leitor. Este é o tema do livro de um 
colega inglês chamado Harold Lave (1993).' Ali se descrevem todas as for­
mas da cultura do manuscrito na Inglaterra do século XVII, desde sua circula­
çãolimitada a uma comunidade de interpretação até as formas comerciais da 
"ediç.&9__:�.manuscrita. Além disso, t�J;llOS todos os est�dos feitos na França 
sobre a vinculação entre textos manuscritos proibidos ou perigosos.4 Estas 
observações acerca da sobrevivência do manuscrito coloca o tema do vínculo 
entre o podtr e a imprensa, e mais ainda, entre o poder e a escrita em suas 
duas dimensões. Porque, como disse Armando Petrucci no título de um de 
seus artigos, devemos distinguir entre o poder da escrita e o poder sobre a 
escrita. 
É pos.Wel observar o poder da escrita na obra Henrique VI, de Shakes­
peare, na qual uma rebelião popular é caracterizada por meio de sua rejeição 
ao texto impresso (algo um tanto curioso porque é Um anacronismo terrível, 
pois a revolução de Jacke Cade sucedeu antes da invenção de Gutemberg, 
embora Shakespeare não tenha se preocupado muito com a cronologia neste 
texto). Porém, mais do que uma rejeição à imprensa, é uma rejeição ao escri­
to como forma de imposição de uma autoridade: a do Estado ou a dos pode­
rosos: Esta forma de rejeição da escrita poderiaser estudada em relação com 
a iconoclastia, a destruição das imagens que impõem uma crença, uma auto­
ridade, um poder (e infelizmente não há muitos estudos sobre o tema da 
"iconoclastia escriturai", se assim posso chamá-la, um tema de estudo muito 
apaixonante). Não só se observa o poder da escrita em toda a escrita adminis­
trativa que os Estados produzem a partir de sua construção na Idade Média, e 
---........... ________ ·--··-·----·�----- --· ···- -
24 ROGER CHARTIER 
que controlam, vigiam e castigam, para citar Foucault, como também por 
meio de formas mais imediatas como as escritas públicas que se exibem na 
cidade. Há um livro apaixonante de Petrucci, intitulado La Scritura,5 que não 
trata de todas as formas de escrita, mas apenas das escritas que ele chama 
"expostas". As grandes escritas�J)í$ráfic3S:\que se vêem na R��a antiga e que 
aparecem - depois de seu esquecimento dura�te a Id?de Medta -como um 
elemento de expressão do poder nas monarqmas da epoca moderna (século 
XVI a XVIII), são muito interessantes porque essas inscrições não podem ser 
lidas pela maioria do povo por dois motivos: estão inscritas em latim e se 
acham colocadas a uma altura que ultrapassa o olhar normal. Não podem ser 
decifradas mas tornam visível o poder e delimitam um território marcado, 
apropriad� pelo poder por meio da escrita. Aqui aparece uma �dimensã? �a escrita do poder, ou do poder por meio da escrita, expressada na o no coti�la­
no da prática burocrática ou administrativa e de controle, mas na da domma-
ção simbólica da escrita. , " . 
O poder sobre a escrita é outro tema. Refere-se as concorrenc1as p�r� 
definir uma norma de escrita, as formas de ensino �a escrita, Os., usos legttl­
mos desta capacidade segundo.,os-�stamentos.D_\l_
.as Ca:nradas sqci�js, ou-a-": 
divisão entre··os sexos. Segundo uma tradição na cultm:a ocidental,{\ mulher/ 
devia saber ler) mas não ter a capacidade de escrev�r-. A leitura é uni -veíe�tô 
que iJ:npõe y.rtia autoridade� o téxto transmite em sua lC:it�ra_ (ao me!f()_S e o que pensam os produtores de texto) uma ordem, u�� �tsc1phna,_ uma forya de coação. Pelo contrário, a escrita procura a posstbüt��9.e dehb�rd_��e ao 
ser utilizada para comunicação, intercâmbio, possibilidade de escapar· da or­
dem- patriarcal, matrimonial ou familiar. Este é outro tema muito im�orta�te' 
que até agora foi trabalhado mais pelos estudiosos da ç:ul_tura do manr�-�nto,
 
mas que poderia ser estendido para o estudo da cultura Impressa. 
A CRISE DA LEITURA: 
OS DISCURSOS E SEUS PRODUTORES 
CARLos AGUIRRE: Podemos voltar ao tema da crise do livro. Como sabemos, esta 
se caracterizou, no século XIX, por uma abundância de livros, insufici�-�cia d� 
leitores, preocupação pela conservação do patrimônio escrito e pela(tergrver�a-� (fãõ.do que 0 autor propunha originalmente. Mas, de quem nasce �stapreoc�pa-
çãO
)
? São as pessoas que fazem os livros, as relacionadas com o mundo dos ltvros 
e da leitura, ou são outros setores da sociedade? Ao mesmo tempo, podemos n�s 
perguntar como se estabelece esta crise na atualidade. Acho que no presente nao 
CULTURA ESCRITA, LITERATURA E H I STÓRIA 25 
existe tanto uma preocupação com a saturação do mercado como com a dimi­
nuição dos leitores frente à concorrência dos meios audiovisuais. 
ANAYA: Este é um tema para discussão ... 
AGUIRRE: Bem, então a pergunta seria de quem surge, como se apresenta a 
crise do livro no século XIX. E, em segundo lugar, talvez . .ppssamos compçzrá-la 
com a crii�, atual. ,r-- \ , ', '\ CHARtiER: Isso é importante porque as,tfrês obsessões)(perda, -�xcesso)e :\ corrupção/ não são temas abstratos e estão 'Vinculados--ábs ineios"(j_ue .. t-r:aíls� 
-.-�item _g.a'i; ouvintes ou aos leitores. Parece� me que embora estas três obses­sõêSêXistam de maneira mais ou menos permanente desde os séculos centrais 
da Idade Média, ao se desenvolver de novo uma cultura escrita ampla, seus 
produtores não são os mesmos em cada tempo. Assim, é claro que a definição 
de uma crise do livro como produção excessiva em relação com o mercado do 
final do século XIX vem do âmbito dos editores. É um tema diretamente vin­
culado a seu temor econômico, pois a história da edição na França do século 
XIX pode ser escrita como uma série de dificuldades, de falências, para os 
editores, Na década de 1830 e depois, nos anos posteriores a 1848, mais 
particularmente no final do século XIX, muitos editores desapareceram. Con­
solidaram-se as editoras que tinham mais força, e que são as que vão dominar 
o mercado da ficção a partir dos primeiros anos do século XX. A crise dos 
últimos anos do XIX é como um filtro que vai conduzir ao desaparecimento 
dos mai� fraros e ao fortalecimento dos mais poderosos. Toda a preocupação, todo o d1scurso, vem deste mundo da edição, cruzado pelas inquietações e os 
riscos que ameaçam as empresas. 
Parece�me que todo este discurso não tem as m:esmas raízes nos séculos 
XVII ou XVIIL-Neste1Íltimo não é um discurso dos editores;-� mais um discur­
so dos letrmlos perteli'sentes aos meios cultos, dos autores cJ.ue se agarram à 
corrupção dos .. ��-�!OS ejque se perguntam como limitá�la. São eles que estão 
obcecàdÔs pela perda dos textos e inventam'todas esté!-s-bibliotecas, imaginá­
rias ou reais, em--qüe vai se conservar a parte mà1s--anlpla possível do patrimô� 
nio escrito. Aqui os atores que definem o discurso, que o difundem, que o 
produzem, não são os mesmos. É uma questão que deve ser vista a longo 
prazo, mas não para dizer, como se faz algumas vezes, que a história é uma 
repetição ou que há inconstantes históricas, porque os temas, embora fossem 
expressados da mesma maneira, têm sentidos muito diferentes segundo a 
configuração intelectual ou política nos quais se configuram. 
DANIEL GOLDIN: Neste sentido, volto à pergunta antes formulada por Car­
los: qual é a relação entre a crise do livro que externam os editores no século XIX 
e a crise atual? 
26 ROGER CHARTIER 
CHARTIER: Sim, mas antes teríamos que discutir como mudaram os pro­
dutores destes discursos em diversas configurações históricas. Para deslocar­
nos do século XIX para o presente, é .claro,que os atores do campo do discurso 
atual são, em primeiro lugar, os pedagogos �todo o mundo da escola e da 
educação, que por sua vez lametltam um retrOcesso das capa���?es ou das 
práticas deJeitura e tetj(am levar a "cabo campanhàs ae aífabetiiãÇãO"iião 
exêlUSiV��ente c�ffi. -o·s analfabetos, mas também com alfabetizados, para 
assim reforçar as. prát� _�a� .d.e leitura de pe$soas_que sabem ler, mas que não lêem. out!-OS âtoreSSãõ ·os editores� porque entre eles se desenvolveU um 
novo temo�; que é o temor aos novos meios de comunicação e ao texto eletrô­
nico como uma ameaça à produção tradicional de livros. Por exemplo, em um 
congresso da União Internacional de Editores em Barcelona, em 1996, havia 
em quase todas as exposições uma obsessão: como sobreviver em um mundo 
em que a edição eletrônica vai ser a mais poderosa.6 
ANAYA: E o mais curioso é que nestes últimos anos foram publicados mais 
livros do que em toda a história da humanidade. Quer dizer; se revisamos as 
cifras de produção em títulos e exemplaress nunca na história da humanidade se 
havia impresso tantos livros. Alguém dizia que talvez seja um modelo exauridos 
mas que está chegando a seu limite máximo. 
GOLDIN: Chama-me a atenção que com freqüência os quefalan:t desta crise do 
livro sejam editores, uma classe nova de editores - os publisher businessmen. Eles 
,se queÍXQ.[!l da diminuição de leitores como se fosse uma verdade incontestável. 
_ CHART�ER: Sim, mas interessa saber quem são os �roduto.res dos �iscur-soS que se a\ticulam ao redor de um tema como a cnse do livro. Alem dos 
!pedagogos e �o mundo da escola, que lamentam a diminuição das capacida­
d�s ou das piáticas de leitura, existe o mundo editorial. Por um lado, o que 
ch:aq1a a �teíÍ.ção é o fato de que este diagnóstico, que aponta como resultado 
um desl�camento da edição tradicional pelo surgimentoda edição eletrônica, 
continue sendo formulado como uma pergunta. Os editores r�Petem a ques­
tão, assim como a resposta de Umberto Eco, que é o autor e�pécializado neste 
� tipo de colocação. A resposta é: o livro impresso vai sobfeviver para certos 
, usos, e para outros a edição eletrônica vai superar as formas tradicionais. 
Aqui a pergunta nos leva a integrar dentro da reflexão profissional os discur­
sos "científicos" que podem matizar ou escl.arecer o diagnóstico. E, por outro, 
é interessante ver que há uma luta de classes entre os editores, por assim 
dizer. Realmente, como podem os editores se adequar a este novo modelo de 
editor? Nem todos têm o mesmo desejo nem as mesmas possibilidades para 
desempenhar este novo papel empresarial, que é ao mesmo tempo editor de 
livros impressos e editor de textos eletrônicos, que atua como um business-
. ' 
CULTURA ESCRITA, LITERATURA E H I STÓRIA 27 
man dos meios de comunicação e ao mesmo tempo como um editor tradicio­nal que escolhe textos e autores, e que se preocupa com sua difusão. Há aqui um modelo que se impõe. Uma exposição particularmente interessante em Barcelona foi a de Bertelsmann, que falou durante uma hora com absoluta autoridade para impor Uma imagem da nova empresa editorial, e que em minha opinião, multiplicou os medos dos editores tradicionais, que pens�ram �ue �e veriam destruídos neste novo mundo. Era absolutamen� fascinante e mqutetante obseiVar s�--medo, seUs temores, suas expectativas� E há um terceiroj'Protagonista; que é o mundo dos autores, b mundo da cultura literária, que S� preoc.�pa; por meio de ensai�'s .. ou_ da J>'esquisa em estabelecer e situar de Õiàiieha correta o. que acontece em· ��ss6 .. pres�nte dentro da perspectiva de longa duração. É o projeto a que pertenço � que nos reúne nesta conversa. · / 
A BIBLIOTECA UNIVERSAL: SONHOS E PESADELOS 
CHARTIER: No presente, a tensão entre a obsessão ou a preocupação pelo ex� cesso e a necessidade de uma recompilação do patrimônio escfito podem levar a posições diversas, a práticas diversas. Desde o século XVI toda a refle­xão sobre os instrumentos que perm,item a conservação e a orga�ização deste patrimônio sira em torno das bibliotecas (e agora também muitos dos deba� tes se referefn a elas), que são o receptáculo natural deste patrimônio escrito. Mas além das bibliotecas, temos todas as formas de produção escrita sobre a cultura escrita cuja intenção é esgotar essas formas: catálogos, bibliografias e todas essas coleções que no século XVIII, e mesmo antes, já entrando o século XVI, se chamaram "bibliotecas" e que não eram lugares ou edifícios, mas coleções de autores, de títulos, de textos. Este é um �lemento que permanece no presente pela figura da biblioteca como edifício, ou, de uma nova maneira, pela figura universal de disponibilidade do patrimônio escrito graças às redes eletrônicas. É o mesmo sonho de uma exaustão prometida que fundamenta os projetos da arquitetura das novas bibliotecas e os projetos do patrimônio escrito, acessível a cada um por meio de uma rede eletrônica, independente� mente do lugar. 
Algumas vezes, tem-se a idéia de que para resistir ao excesso (porque é a mesma coisa em uma biblioteca, onde todos os livros não podem ser lidos, . ou frente à tela da rede eletrônica, onde não se podem receber nem manusear : todos os textos acessíveis) são necessárias seleções e escolhas, por meio de í diversos discursos, dos textos considerados como os mais importantes. A idéia 
. \ 
28 ROGER CHARTlER 
da redução, desenvolvida por meio de todo o trabalho da construção dos 
cânones dos textos clássicos, por meio da crítica (pela escola, pelos poderes, 
etc.), encontra uma forma radical no século XVIII com as utopias que encer� 
raro em um livro todos os conhecimentos úteis, o que era a maneira radical de 
se distanciar da acumulação. Existiam aqueles livros chamados "extratos" ou 
"espíritos", na acepção alquímica de quando se extrai uma essência ou um 
perfume. Estes pequenos livros tentavam extrair o mais útil da acumulação 
�ivresca. �\ll outra oportunidade comentei um texto utópico, que é mais uma tucronia, l� Luis-Sébastien Mercier. Em O ano 2440, por um lado, há uma 
f,mensa , gueira de todos os livros inúteis que são os romances ou os livros 
pie sos, etc., e, por outro, a biblioteca do rei, que tem unicamente os livros 
úteis que são resultado do processo de escolhas dentro de uma acumulação, 
agora inútil. 
O livro que deve ser queimado é outro tema interessante. Para terminar 
com este assunto, da queima de livros, menciono que um colega espanhol lhe 
dedicou um pequeno ensaio, pois há dive�saS·-�m iras de pensar a queima 
de livros:7 a repres·s�o�- a -!?-q
.
uisição, os a�tos �e fé, supressão de �udo o �ue 
é perigo�o··para a fe e, por, outro lado, c1: queima orno uma técmca rad1cal 
para suPrimir o excesso, o iriútil, que, co�o no c o de Mercier, se pretende 
que haja ma_i� .. ��p�ço pat'â os livros que rea1meÍÍte devem ser lidos. 
ANAYA: Há uma prática comercial vigente hoje em dia que é a guilhotina e 
que se aplica aos livros que já estão fora do mercado. 
CHARTlER: São as mortes dos livros, não é "a morte do livro", são as 
mortes físicas do livro. Como na Bastilha, onde no século XVIII os livros eram, 
co'mo se diz em francês, pilomés, quer dizer, moídos, transformadõi;·em!Ja� 
e papelão. Mas estes exemplares da mesma ediçã9.-ébntinuam circulando. ', 
GoLDIN: Parece-me interessante nos determos e;fn atoshparentemente iguai;_� 
· 
que, no entanto, não podem ser interpretados de umà--rnelma mane-iraporterém 
distintos atores e estarem sustentados por diferentes discursos.' 
CHARTIER: Penso que essa é uma de nossas linhas de reflexão nestas jor­
nadas: não há uma estabilidade de sentido dos mesmos objetos ou das mes­
mas práticas, quando mudam q_��C?i:1textos-enf�úi-�Si8.s'--práticas são.efetiyadaS. 
Por detrás do discurso, em sua e·Stàbilidade; Oú por detrás da prática, em sua 
homogeneidade, quando os atores mudam, quando as relações mudam, se 
impõem novas significações. Abordar as descontinuidades culturais é uma 
lição fundamental que deve ser entendida contra toda forma de universaliza­
ção, demasiado apressada e um tanto míope. 
f.. 
CULTURA ESCRITA, LITERATURA E HISTÓRIA 29 
DO LIVRO À LEITURA 
ANAYA: Em relação a pergunta por que a história do livro?, lembro que Lucien 
Febvre diz no prefácio dessa obra seminal que foi E.Apparition du livre: " ... propo­
mo-nos estudar nestas páginas a ação cultural e a influência do livro nestes 
últimos 400 anos . .. "8 e encontro um modelo que me parece muito semelhante ao 
que você propõe no posfácio do quarto volume da Histoire de l'éditionfrançaise,9 
�--qu€""'�/ es_ta ,tr_íplice _interslc
.
ção, riru�
.
oo 
_
iltt;ttrativa 
.
se observarmos as distintas t� da ISto na d� ltvro, e�-tr� texto�VJet_9 
.. 
(. neste caso o livro impresso, embora 
P dgsse os mencwnar tambe-m.---a-fa.sh:(u.f?.. vem, a do--i_ivro em outro formato 
aind� transitório na ediç�o �letrôn�ca) e ftr:.áticas cultu�9-is (as leituras e os uso; dos livros por parte dos drstmtos lettores). Esêe-mOO:el6 me parece também equi­
valente à história do livro que propunha Robert Darnton em What is the History of Books? ,10 na qual os livros impressos fru;em parte de um circuito de comuni­
cação que vai do autor ao leitor e que tem como principais estações intermediá­
rias editores, impressores, livreiros e bibliotecários. A história do livro da leitura 
concebida como parte do processo de comunicação social. 
' ' 
,. - .. .CT_OLDIN: Eu tenho es.t(l preo_c1,1paç�o: a história.do··1ivtd, cOnforme aVança, St-::��!!.ve�t�_!_f!!: __ '-!_1!!-9-_�-����!::�a ���tur:a_elambém em uma,hjstória do escrit�.e já nao 
_
do ltvro .. Qu�� ��e� � .. liv��-d���-"d:__::.r o recipiente único e privilegiâdo da escnta, e ���3�!!!§!q}}q__�a ciiltura escritã:j CHARTIER: Aqui nos apiõli:ítrnnnosdeuiíi ponto metodológico importàn­
te que nos ttmete à discussão ou colaboração entre historiadores que vêm de 
uma tradição de históriasocial e cultural, como é meu caso, e que pertencem 
ao mundo - não quero dizer escola porque não me parece que haja escola _ 
�?,�-�.���-
les, à sua tradição, com historiadores da literatura, bibliógrafos,([)a: 
c_1eograf9:ve-outros, o que implica reconhecer o vínculo essencial entre o textõ 
em .su_a mater_ialidade, �ue suporta os textos,.. e as práticas de apropriação, que sao as leituras. Mmtos estudos evitaram limitar-se ao que chamamos 
"leitura" desde o momento em que, sem serem lidos, os livros podem ser 
utilizados com fins de magia, para estabelecer uma distinção social ou com 
uso medicinal, como quando se utilizava o livro como proteção e se �credita­
va que pondo-o sobre o corpo do doente este seria curado. Mas, para voltar ao 
tema central, que é este espaço intelectual, resisto um pouco a falar do circui­
to, da comunicação por uma razão, talvez muito francesa: porque na França ha um domínio específico das "ciências da comunicação" que seguidamente 
impõe suas categorias, seu léxico, sua maneira de trabalhar toda história do 
livro, o que de certo modo produz uma forma anacrônica de relação com 0 
passado porque todos os conceitos, critérios e categorias desta disciplina vêm 
30 ROGER CHARTIER 
da comunicação moderna. Este debate tem uma tradução muittJ evidente na 
França, pois em Lyon há uma escola que prepara os bibliotecários a partir da 
ciência da informação e da comunicação. E claro que isto resulta, por um 
lado em uma formação profisSional precisa e operatória para os estudantes, 
mas 
'
por outro impõe à história categorias demasiado anacr�nicas em rela�ão 
às realidades do passado, incluindo o passado recente do seculo XIX. Por tsso 
não gosto de definir desta maneira, a partir da ciência da informação e da 
comunicação, minha própria perspectiva de �o� . � 
o essencial é superar du� li��t�çõ��: �imeiq. é _que na tradtçao da história da literatura, e além da histona da literatura;" mu�tos-trabalh�s sobre 
os textos esqueceram que estes não e��-���!l:l:. �()r_a _ _ de uma\�-��-e_ri.�li<:J�_de qu_
e 
lhes dá existência. Esta materialidade geralmente ê um objeto, um manuscnM 
to ou um impresso, mas também pode ser uma forma de representação d? 
texto sobre o palco, uma forma de transmissão vinculada às práticas da oral�M 
dade: recitar um texto, lêMlo em voz alta, etc. Todos estes elementos maten­
ais, corporais ou físicos, pertencem ao processo de produção de sentido, e as 
formas mais radicais d� ignorar esta dimensão são clar�111ente as cor�en!_�-�-a. 
crítica literária m��lisi�a ·r;OUvelle critique franceSa e o ne}1'_�:iti�­
cisTiCiiOrte�amfricáriÔ-;-que ·e·squeéeraffi pOr completo esta dimensão, na me­
am·á êffi-qü'e--o--enJOque está localizado no funcionamento da linguagem dentro 
da obra sem se ocupar com sua forma material. MAYA: MaS ·não é certo qu��entro da história da literatura ou da crítica 
literária, é 4 teoria da recepção, 
-
..fu,hdam�ntalmente a __ al�m-�� que propõe uma 
correção des$e_p!-?��2..4§..Yista? -- · 
CHARTiER: Sim, mas para mim é uma correção insuficiente. Se bem que 
com a crítica em torno de quem pensa ou que posição de sentido lingüístico é 
real tentouMse restituir algo da dimensão dialética do texto e do leitor. Este 
enf�que conseguiu "tin1r" a leitura do texto, pois a leitura já _não é concebida 
como resultado de urti funcionamento lingüístico puro, mas como resultado 
da· int�;�çâo entre texto 
.
e leitor. Ao lado da teoria da i-ec_epção, devemos 
... Considerar o que nos 'Estados Unidos se chama.r�.�der's response theory, que é 
mais um enfoque fenog1enológico e,_ de certa f?rmà:;·a--corrente irrij:>orta�te 
nos Estados Unidos dó."new historicism."-�2.� l?.��p?_�, por meio de um conceito 
como o de negociação, <iüe a relação entre o texto literário e os discursos _
e 
práticas ordinários do mundo social, sejam ritua�s, religiosos, juríd�cos.' polítlM 
cos, admini�trati:v.:o� ou cot�d�anos. Tal p:r��ect1va �_e pare·�e -n;�It?_.l,nteres­sante, pai( restitui �s condtçoes de posSlbthdade do texto h;e:an�,;Ja que o 
texto sempl:ejoga, desloca e reformula estes discursos ou 
-praticas do �undo 
social, �lém de �tivar as condições de inteligibilidade, tanto para os lettores 
CULTURA ESCRITA, LITERATU-RA E HISTÓRIA 3 1 
como para os espectadores ou os ouvintes, que entendem o texto em relação 
a estas práticas e estes discursos compartilhados, sem deixar de perceber a 
distância, a diferença, o deslocamento literário. Esta corrente articulou-se em 
torno da literatura isabelina, Shakespeare em primeiro lugar, e se identificou 
com o nome de Stephen Greenblat, em Berkeley,ll .
. __ . 
. 
Nestas três perspectivas, a m��s fenomenológica, a rJQ..g_er�s response -theoM ry; a mais vinculada às categorias literárias, a teoria da recepção; ou esta 
nova corrente do new historicism, que pensa em termos de negociações a 
relação entr� a ob
. 
ra
_
e o mu
.
ndo social, há al
.
go fundamental: "sacar" a J�it.�.r� / 
do texto pms �gê�-� pensaç!.a em u�a relação dialética) ou dialógica (é o 
termo da teoria da recepção), se assemelha ã.o manter uma idéia abstrata do 
texto. É como se o texto de Madame Bovary ou de Quixote atuassem sobre o 
leitor ou a leitora em si mesmos, sem a mediação do encontro com o texto, 
por meio de um . ..páfticllla� _objeto impressp que . não con_tém unicamente o texto no sentido ""SemâDtiêO,-·mas que tem uma ·6iateri�lidade ' um formato 
imagens, -uma c3pa, uffia distribuição, etc.; quer di�er; ·Eúéffie_n;os que impor: \ 
ta��!::�!.:<>._ no processo de construção de sentido. Por est� raZão, parece-me que inclusive naS peà;pectiVas mais prôxiffias do trabalho do historiador, que 
são as três que citamos, devemos superar o que permanecé abstrato em relaM 
ção ao texto e superar a falta de ���rihéCimentos, o que é particularmente 
certo na. .teoria dã·-i'éêepção do texto ou na teoria do reader's response da 
história do livro. Isto é um pouco mais complicado Tio caso do new historicism 
porque estesliüstoriadores da literatura isabelina não podem ignorar o imenM 
so trabalho que foi feito sobre a história editorial das obras de Shakespeare e 
dos outros dramaturgos isabelinos. No entanto, embora conheçam o anterior, 
tratam o texto independentemente de suas formas de transmissão, e neste 
caso não sã&.-unicamente as formas impressas do livro, mas também as forM 
mas dra�áticas no palco. 
t1. lim,���çao seguinte;-:que se vincula à anterio;, é que se abstrai não o 
texto, mas o leitor. Quando disse que as formas do texto (orais, escritas ou 
dramáticas) importam na construção de sentido, não é menos importante o 
papel do leitor neste ato de produção cultural. Mas é um leitor abstrai<>-oijue 
maneja a teoria da recepção ou a teoria do reader's re;pon.Se, pois se trata de 
um leitor que de fato universaliza a posição ou a capacidade de leitura do 
leitor profissional do século XX, ao ponto de existir o chiste de que o leitor da 
teoria da recepção é a projeção para o universal da figura do próprio Hans-X.. Robert Jauss, seu grande impulsionador. - · ' 
·r --neve-mos transformar o leit�� .. !:.� historiador, s_ociólogo, se assim podeM 
m�s dizer. Qualquer leitor pertence a uma comunidade de interpretação e se 
32 ROGER CHARTIER 
define em relação às capacidades de leitura; entre os analfabetos e os leitores 
virtuoses há todo um leque de capacidades que deve ser reconstruído para 
entender o ponto de partida de uma comunidade de leitura. Depois vêm as 
normas, regras, convenções e códigos de leitura próprios a cada uma das 
comunidades de leitura. Nisto consiste a maneira de dar uma realidade soei-
' ocultural à figura do leitor. Posso dizer, _d_e maneira um pouco simplista, que 
'i se deve levar em consideração � �a-�er}�li�_(l_d�--��5-��}-� a corporeidade do 
\ leitor, mas não so como unláCOrporeidade física (porque ler é fazer gestos), 
' mas também como uma corporeidade social e culturalmente construída. 
Há muitos autores dq . .s..�culo XX que refletiram de maneira não histórica 
sobre a relaçãoentre o �Orpo do leito� a materialidade do livro e o próprio 
texto. Há um ensaio de Walter B"éhjaínin sobre a história a longo prazo do 
livro e o que implica para o leitor a passagem do livro da Antigüidade (em 
forma de rolo) para o livro da modernidade (em forma de códice), e ali temos 
umé. reflexão cabal.soP,r�--a. leitura. Outro, de Jorge Luis_ Borg�s� vincula-se 
estreitamente a essa dimensão das transformações dos modos de
--l�f)or meio 
do tempo, seja e�
-
S��;f��ffitila.Ções imaginárias ou de ficção, Citi� rios ensaios 
que dedicou à história da leitura. Ele lembra um texto famoso no qual Santo 
Agostinho evoca São Ambrósio lendo sem produzir sons, sem ruminar ou 
"mastigar" a palavra. Santo Agostinho tinha-se espantado diante desta práti­
ca de leitura, e Borges conhecia muito bem o referido texto. O que pode se 
observar em um texto como este? O interessante é que há escritores que sem­
pre escaparam do modelo lingüístico da crítica literária que, finalmente, foi 
incorporado pelos escritores no momento de pensar que inscrever suas pala­
vras no escrito era suficiente para impor sentido. Outros pensc:�.ram· que o 
pr_o.�o de produção de sentido era um p�oc�sso complexo, com· mui.�-��9� 
(t�s: �SmesffioS,õTdtõr·e;_�lem deles, o(edit6r, os tipógrafO_s, ê't-amh.ém os livreiros, os críticos, a.. escola� os literatos, ête:-"" '··--�-· 
ANAYA: Você propõe Uma resposta a esta "onipotência" do texto que não 
leva em consideração o leitor. E por outro lado, há as experiências dos leitores, 
. muito variadas e irredutíveis, e que levariam a um beco sem saída, pois como 
estudar tantas experiências tão distintas? 
CHARTIER: As práticas são inumeráveis. Cada um de nós realiza em um 
dia de vida profissional ou privada milhares de práticas cotidianas, ordiná­
rias. É impossível para a história recolher ou dar uma representação adequa­
da dessas práticas múltiplas, porque há uma situação muito difícil para a 
análise. Parece-me que o que podemos fazer na história da leitura não é resti­
tuir as leituras de cada leitor do passado ou do presente, como se tratássemos 
de chegar à leitura do primeiro dia do mundo, mas sim, organizar modelos de --- . ··- ------
' 
CULTURA ESCRITA, LITERATURA E HISTÓRIA 33 
(.f�ra�-�orreseon�a�-��gl-�Q_f!Q_a.@fig���� h�s!��� _ell) �rP� _co�­�-= p�r��-�lllar d� ����rp_retaÇao. Desta maneira, Iião se consegue recons­truir a leitura, mas descrever as condições compartilhadas que a definem, e a 
partir das quais o leitor pode produzir esta criação de sentido que sempre está 
presente em cada leitura. Assim, é decepcionante o programa de uma história 
da leitura que é, antes de mais nada, em sua realização, uma descrição das 
restrições sobre a leitura, que pertencem à capacidade de ler, aos códigos de 
leitura e às condições práticas, sociais, econômicas do ler. Mas parece-me que 
é a única via para evitar uma história da leitura fragmentada por completo, 
que captaria apenas a recopilação de experiências singulares. Devemos re­
construir as convenções de le��Q.res que -�-t?.-_p.erf!!:item, quando as fontes o ofe­recem, a compreensão de p_��-p�l���já que entendidas como exemplares, ou em sua origiJialidade radical. _.1 
• 
ANAYA: Como a que f� Carlo Ginzburg, por exemplo, em O queijo e os 
vermes... , 
C . \ HARTIER: Sim, como o que faz .Ginzburg. O problema é que devemos 
jogar com uma liberdade sempre limitada pelas capacidades e recursos; e, 
além disso, ver quando se transgridem estas restrições. Poderia articular-Sé --.... 
uma fórmula como a sua, dentro da história da leitura, supõe-se, em princí­
pio, que a leitura seja uma prática de invenção de sentido, uma produção de 
sentido. A partir de tal fato, devemoS compreender que essa invenção não é 
aleatória, mas está sempre inscrita dentro de coações, restrições e limitações 
compartilhadas; e por outro lado que, como invenção, sempre desloca ou 
supera estas limitações que a restringem. É algo parecido com a idéia de uma 
história das liberdades limitadas ou das restrições superadas, que seria o coro 
de uma história da leitura. 
Mas eS4lJ.ecemos a trajetória que vai do livro ao escrito. Para mim é claro 
agora que uma das extensões do programa clássico de uma nova história do 
livro, transformada em história da leitura, consiste ·em reinscrevê-la dentro 
d�-�-l!l�- história de longa duração da cultura -esc�ita�)tomada em toda sua 
dimensão. Ao falar da relação entre cultura manuscrita e cultura impressa, 
achamos uma primeira aproximação a esta restituição de um mundo mais 
completo, que não desvincula uma forma ou outra da transmissão de textos. 
Parece-me que essa concepção mais ampla da cultura escrita se vê muito con­
cretamente n��ais r.���!!!��--t_���� -�e investi&iiÇaô:)Por exemplo, pode-se 
ilustrar por meio da trajetória de Henri-Jean-Maitlü;êÍesde seu primeiro livro, 
escrito com Lucien Febvre (embora de fato é um livro de Martin, pois Febvre 
só deu a estrutura e escreveu o prólogo): EApparition du livre, que foi publica­
do em 1958.12 Porém, o significativo, apesar de seu título, é que o primeiro 
34 ROGER CHARTIER 
livro de Martin foi dedicado ao livro impresso, a seus efeitos, a suas conseqü­
ências sobre a cultura ocidental. 
ANAYA: Há outro trabalho de Martin, também esquecido, sobre a escrita, 
em que explica em detalhes quais são as condições culturais que tornam possível 
a invenção da imprerLSa.13 
CHARTIER: É o.utro tema; um livro de Martin mais recente se intitula 
-� J Histoire et_PC?uvoirs de l_�écriC� É interessante que o historiador que fundou na França -a históriá do-livro te;;ha produzido enfim uma obra de grande fôlego 
dedicada à relação entre a escrita e os poderes, desde a Babilônia até o século 
xx:. Mas a ambição não era unicamente situar o livro dentro da cultura escrita 
em cada período, mas escrever também uma história realmente de longa du­
ração da cultura escrita. É um exemplo de até que ponto se estendeu agora o 
campo de reflexão, desde o livro impresso, a invenção de Gutemberg, na 
cultura do impresso, até a cultura escrita em suas diversas expressões e usos. 
GUTEMBERG RECONSIDERADO 
GowiN: Há uma afirmação que você Jaz em Libras, lecturas y lectores en la 
sociedad moderna, se. não me engano, que diz: "Desde Gutemberg, toda a cultura 
ocidental pode ser considerada cultura do impresso". Você comparava a cultura 
ocidental com a coreana e a chinesa, no sentido de como o impresso permeou 
distintCLS partes da cultura_ . . 
A.NAYA: Por isso é preciso mencionar também o interesse sobre o escrito e 
não só sobre o livro, no sentido a que você se refere em outros livros ou em outros 
ensaios sobre o surgimento do texto escrito, na festa, por exemplo . . . . 
CHARTIER: Exatamente. Isto dever ser explicado. Talvez se possa susten� 
tar essa afirmação com certas correções. Podemos começar pela segunda par� 
te, que é mais fácil em um certo sentido. A citação corresponde à verdade se 
consideramos a palavra tipográfic::a; po�que, como disse no �n�aio-�Del códice 
a la pantalla" ("Do códic�--à tela"), nÔ\Oriente há uma. situação :um tanto 
paradoxal.lS Por um lado,i�hina e Coréia inventaram, ff!.Ulto ante�,..c�.e Gut�IJ1� 
berg, os caracteres móveis>que são oS que definem a imprensa tipográfica 
com letras de molde. Seu uso estava limitado às edições do imperador, dos 
monastérios; ou teve uma vinculação descontínua, como no Japão, o que é 
compreensível porque em línguas com uma multiplicidade de caracteres es� 
critos ou, como na japonesa, com uma multiplicidade de escritas, imprimir 
com caracteres móveis supõe um grande número de caracteres e em socieda­
des onde as línguas necessitam centenas de milhares desses tipos não se pode 
CULTURA ESCRITA, LITERATURA E HISTÓRIA 35 
pensar na forma da oficina tipográfica ocidental. Mas isto não significa (e 
seria um possível equívoco pensá� lo ao ler essa citação) que não haja na Chi� 
na, na Coréia nem no Japão uma cultura impressa muito ampla. Mas é uma 
cultura impressa que utiliza outra técnica: a da gravaçãodo texto em pran� 
chas de madeira, com uma impressão baseada na técnica de fricção da folha 
de"'apel posta sobre a prancha de madeira gravada. i;t técnica da xilogravu�' 
Í"a,_)� sobre essa base se desenvolveram, como no Ocidente, editores privados, ls-âlas de leitura, gêneros populares. Existe assim uma cultura não unicamente 
do escrito, como também do impresso, mas com uma técnica que não é a 
ocidental, e que tem seu próprio interesse porque mantém um forte vínculo 
com a caligrafia. As pranchas eram gravadas a partir de modelos caligrafados, 
o que assegurava uma relação, perdida no Ocidente, entre a escrita manuscri� 
ta em suas .formas mais estéticas e as letras impressas. E as pranchas eram 
guardadas. Então, o problema da comparação é complicado porque temos a 
invenção da tipografia em países que vffio d�senvolver uma cultura do impres� 
so a partir de outra técnica. (�- """ 
Quanto a toda a cultura do\Ocidente, esta pode ser considerada como 
uma._çultura do impresso· porque h�a r:elação com o escrito por meio do 
impreSSO, nas cidades-pêlo menos, ond;;e vêem cartazes, inscrições, livros 
nas lojas dos livreiros, éditos ou text,os oficiais colados nas paredes. Há uma 
presença do escrito impresso, que cria condições de presença de uma cultura 
do empréstirpo, mesmo para os analfabetos, que contam aí com mediações 
para poder e�tabelecer uma relação com esta cultura impressa: mediação da 
leitura coletiva em voz alta, mediação de um deciframento do texto a partir 
da imagem, quando existe uma no início do texto, e· outras. Desta maneira, 
parece�me que a cultura do impresso impregnou a totalidade das práticas 
culturais, inel-uindo as que não são de leitura, como as rituais ou as de festas, 
e incluindo a população analfabeta ou mal alfabetizada. Para mim "qui esta­
ria talvez a diferença de cultura e de manuscrit9·: Por exemplo, o manuscrito 
dõ-tabelião ou o manuscrito do padre são objetos em que se fixam relações ou 
ac�t-�Cinl.elltos peSSõâis, m-as que são mantidos à distância pelas pessoas; é o 
mesmo que um arquivo, não é algoãbertOãô 01fi8:f.(pJ:e pê.ite-fiCe á6 éôtidiano. 
Esta é a razão pela qual parece haver uma distância entre o campo e a cidade, 
mas que vai se reduzir, a partir do século XVIII, graças à edição dos livros de 
catálogo pelos livreiros. Gostaria também de dizer que deve se comentar ou 
se matizar minha formulação citada para evitar equívocos; é que há livros ou 
textos impressos que se transformam em práticas ou em comportamentos 
para aqueles que os lêem e para aqueles que os escutam ler; e toda a literatu� 
ra da urbanidade, os tratados de comportamento, os textos que indicam as 
36 ROGER CHARTIER 
práticas religiosas, etc., são textos que devem se tornar gestos, comportamen­
tos. Desta maneira, se vê como a cultura do impresso pode articular e gover­
nar as práticas mais corporais e espontâneas. 
GowiN: Poderia também destacar que, a partir da concepção da cultura do 
escrito, se dá a Gutemberg e à invenção da imprensa um papel menos impo.rtan­te ou matizado, já que o mais_ relevante é a passagem do volume ou rolo pa'r;a o 
cÓdice. Mas visto deste ou;�··a.nguzo, sim, Gutemberg é importante. -------- , 
CHARTIER: Sim, mas para nossa discussão é um ponto mais de método. E 
um ponto que podemos esclarecer porque concerne ao próprio exercício que 
estamos fazendo. Em primeiro lugar, não se pode pensar que haja necessaria­
mente uma absoluta coerência em uma trajetória de investigação, e em al­
guns textos podem estar presentes erros ou equívocos que desaparecerão, 
quando se lêem outras coisas ou se abre uma ou outras diferenças. Mê._s _ _ o 
problema com o texto impresso � _q�.H� !l�q �-� .Pc:Jt:le apagar, e se há um erro este 
petffianecera·ru:e:õ·aesaP·ãreCiinento definitivo dO livrO. Assim, há .�§is·�� que 
esCreVI que talvez agora me pareceriam completamente absurdas. um· pri­
meiro ctspecto é a trajetóriã ·de investigação, que amplia o âmbito de referên­
cias e que dá um estatuto talvez um tanto fraco, se é que não completamente 
falso a certas coisas anteriormente ditas ou escritas. O segundo problema 
surg� quando esta trajetória de investigação se expressa por meio de tradu­
ções, e que são outra fonte de incoerências, pois os textos nem sempre são 
traduzidos de acordo com suas datas de publicação. Particularmente, fiz re­
compilações de ensaios com uma intenção precisa, seja temática ou em fun­
ção do público destinatário ou dos leitores de outros países; e aqui podemos 
encontrar de maneira sintética textos meus que foram escritos com uma dis­
tância que talvez algumas vezes pode não ser o suficiente para dar uma idéia 
da trajetória de minhas investigações ou possibilitar a correção permanente 
de afirmações. <;> outro fâto �i: speito ao c?n:e�do. Ser�a absurdo dizer que a inven­
ção d� Gutemberg na conta na htstona do Ocidente, mas o que me parece 
importànte.,...agora ais do que no momento desse ensaio citado, é_ q_ue de':�­
mos situar, loc�lizar em sua justa e correta importâ�cia -��te invento. Tudo o 
que fótilito dêpols déssé texto é criticar os que atribuem a Guiemberg tanto 
uma ruptura absoluta com o passado da cultura escrita como os elementos de 
nossa relação com os textos (uma certa forma de estabilidade dos textos, a 
invenção da figura do autor, a invenção da leitura silenciosa, etc.). Isto me 
parece um grande perigo. Por esta razão, devemos considerar em longa dura­
ção o que ocorre com a passagem do rolo ao códice, e deste à tela, o que 
acontece na história de longa duração da leitura e também o que acontece 
· ;: 
CULTURA ESCRITA, LITERATURA E HISTÓRIA 37 
nas relações da cultura manuscrita e a cultura impressa. Tocamos um po1:1co 
em tudo isto. A comparação entre Ocidente e as culturas do Oriente vai no 
mesmo sentido: relativizar a importância do invento de Gutemberg em seus 
diversos níveis. Mas resta algo: por um lado, Gutemberg abre na história do 
Ocidente a possibilidade da multiplicação dos textos em um tempo em que 
esta era restrita; e por outro, a multiplicação com uma baixa nos custos de 
PJ9PY.ção vem a ser uma realidad�àDSõhitamei1tê"1D.dubitáVei� ·fun.crameiital, 
que possibilitou o que assinalei: a PÇ.�_etração da cu_ltura escrita, graças à sua forma impressa, em ITI�_ios sociais que_ tr3diCionalriientê-ési:avam fora do mundo 
do escrito. Esta péri€traçã6 contaminou a tOda"s as práticas e a todo o povo, 
pefo menos durante certo tempo e apenas nas cidades. É uma questão de 
escala de entendimento e de perspectiva; mas seria um absurdo negar a im­
portância de Gutemberg, que proporcionou algo que foi uma novidade funda­
mental, essencial, e que foi percebido nos séculos XV e XVI. Em texto que 
redigi depois, em 1995, utilizei os exemplos de Condorcet e Malesherbes, da 
França do século XVIII, para desenhar uma cronologia de longa duração da 
cultura escrita. Ambos fixam-se ao invento de Gutemberg, considerado por 
Condorcet no Esboço de uma história do progresso do espírito humano como 
equivalente à invenção do alfabeto. Os dois momentos chave no texto de 
Condorcet são a invenção do alfabe�o. e a invenção da imprensa, que semea­
ram as bases de nossas percepções, Perspectivas e representações. Penso que 
há algo fund_Jlmental neste enfoque, mas, como historiadores, devemos mati� 
zar ambos irlventos. 
AS REVOLUÇÕES DA LEITURA 
GOWIN: Você faz uma periodização da história do livr9 e da história da leitura; 
fala de conceitos como "revolução da leitura" ou 1'revolução do livro" e, em certa 
ocasião, diz que a revolução da leitura, a p�a.ssagem da leitura em voz alta para 
a leitura silenciosa, é uma revolução que preC"é.dé. a essa r�válução" do lil(rO qüe foi 
o Sürgrm.ento-dá liVro impressó. 
. 
-···--· CHÃRTIER: Entraiiios em uma história complicada por diversas razões. A 
mais importante delas é a existência de distintas linhas de transformações. Se 
queremos simplificar, tem-se a linha de transformações das técnicas de repro� 
dução de textos; e aqui o momento da invenção de Gutemberg é essencial.

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