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1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Centro de Comunicação e Letras Programa de Pós-Graduação em Letras A REALIZAÇÃO DO SUJEITO EU NO PORTUGUÊS BRASILEIRO INFORMAL: UM ESTUDO NO GÊNERO VIDEOLOG Felipe Vivian Goulart Orientadora: Profª. Drª. Maria Helena de Moura Neves São Paulo 2015 2 FELIPE VIVIAN GOULART A REALIZAÇÃO DO SUJEITO EU NO PORTUGUÊS BRASILEIRO INFORMAL: UM ESTUDO NO GÊNERO VIDEOLOG Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Profª. Drª. Maria Helena de Moura Neves São Paulo 2015 3 FELIPE VIVIAN GOULART A REALIZAÇÃO DO SUJEITO EU NO PORTUGUÊS BRASILEIRO INFORMAL: UM ESTUDO NO GÊNERO VIDEOLOG Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Aprovada em BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Maria Helena de Moura Neves (Orientadora) Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. José Gaston Hilgert (Examinador interno) Universidade Presbiteriana Mackenzie Profª. Drª. Marli Quadros Leite (Examinadora externa) Universidade de São Paulo 4 G694r Goulart, Felipe Vivian A realização do sujeito \”eu\” no português brasileiro informal : um estudo no gênero videolog. / Felipe Vivian Goulart – 2015. 148 f. : il. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015. Referências bibliográficas: f. 145-148. 5 À família e aos amigos, pela compreensão; a Mariana Kishimoto, por tudo; aos animais, em especial ao Mikuim e ao Fofão, por me manterem são. 6 AGRADECIMENTOS Ao Fundo Mackenzie de Pesquisa, pela bolsa concedida. A minha orientadora, pela paciência e dedicação. A Thaís Verdolini e a Ronaldo Batista, por todo o incentivo. A John Lachlan Mackenzie, pelas sugestões que deram origem ao capítulo sobre priming. A André Coneglian, por todo o auxílio. 7 RESUMO Por ser o português uma língua cujo paradigma conjugacional tradicional traz desinências específicas para cada pessoa verbal, também com formas distintas para o singular e o plural, seria de esperar que fosse canônico nesse idioma o apagamento do sujeito pronominal. Esse não parece, no entanto, ser o caso no português brasileiro, variedade em que o preenchimento do sujeito pode ocorrer mesmo quando, à primeira vista, não se verifica a presença de qualquer fator que atue na necessidade de tal explicitação, sobretudo na oralidade informal. O objetivo deste trabalho é, portanto, apontar os fatores condicionantes da escolha entre sujeito expresso e sujeito zero no português brasileiro informal, sendo a investigação restrita à 1ª pessoa do singular. Embora a base teórica do trabalho seja primariamente funcional, também se recorre ao suporte sociolinguístico, especialmente quanto à variação diafásica e ao monitoramento. Diante da necessidade de um material de análise que refletisse a realidade da linguagem em sua forma mais espontânea, não marcada por autocensura ou preocupação com a forma, elegeu-se como corpus o gênero novo dos videologs, constituído prototipicamente por vídeos amadores e não roteirizados publicados na Internet. A análise revela que a explicitação do sujeito é motivada por diversas outras necessidades além da garantia de que o ouvinte será capaz de identificar o sujeito pretendido pelo falante. Palavras-chave: Realização do sujeito. Elipse. Primeira pessoa do singular. Informalidade. Videologs. 8 ABSTRACT Inasmuch as the Portuguese conjugational paradigm includes specific inflections for each person, as well as distinctions between singular and plural, it would make sense to expect pronominal subject omission to be the norm in this language. This does not, however, seem to be the case in Brazilian Portuguese, a variety in which subject expression may occur even when, at first sight, there are no factors making such explicitness necessary, especially in informal spoken language. The aim of this paper is, thus, to determine the conditioning factors of the choice between overt subject and zero subject in informal Brazilian Portuguese, with a scope limited to the first person singular. Although the theoretical framework of this paper is primarily functional, some sociolinguistic support was also deemed necessary, especially regarding diaphasic variation and self-monitoring. Due to the need for a body of data which reflected the reality of language in its most spontaneous form, unmarked by self-censorship or concern for form, it seemed appropriate to elect as the corpus for this analysis the new genre of videologs, prototypically consisting of homemade, unscripted, online-published videos. The analysis reveals that subject expression is motivated by many other necessities besides the guarantee that the listener will be able to identify the subject intended by the speaker. Keywords: Subject realization. Ellipsis. First person singular. Informality. Videlogs. 9 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - A realização do sujeito eu no português brasileiro informal ............. 48 Quadro 2 - Relação entre região do Brasil e realização do sujeito eu ............... 50 Quadro 3 - A realização do sujeito eu no português europeu informal .............. 56 Quadro 4 - A realização do sujeito eu no português brasileiro formal ................ 60 Quadro 5 - Relação entre realização do sujeito eu e exclusividade desinencial 64 Quadro 6 - Relação entre região do Brasil e realização do sujeito eu com e sem desinências exclusivas ................................................................................ 64 Quadro 7 - Relação entre realização do sujeito eu e polaridade ....................... 77 Quadro 8 - Relação entre região do Brasil e realização do sujeito eu com polaridade positiva e negativa ............................................................................. 78 Quadro 9 - Relação entre realização do sujeito eu e operadores de negação... 79 Quadro 10 - Relação entre realização do sujeito eu e intervenções entre o sujeito e o verbo........................................................................................ ........... 84 Quadro 11 - Relação entre região do Brasil e realização do sujeito eu com e sem intervenções entre sujeito e verbo................................................................ 86 Quadro 12 - Relação entre realização do sujeito eu e contexto de oração relativa.................................................................................................................. 95 Quadro 13 - Relação entre região do Brasil e a realização do sujeito eu em orações relativas.................................................................................................. 96 Quadro 14 - Relação entre realização do sujeito eu e coordenação (com manutenção da 1ª pessoa do singular; sem orações intervenientes).................. 110 Quadro 15 - Relação entre realização do sujeito eu dentro e fora de coordenadas (com manutenção da 1ª pessoa do singular; sem orações intervenientes) e região do Brasil......................................................................... 110 Quadro 16 - Relação entre realização do sujeito eu e coordenação (com manutenção da 1ª pessoa do singular; sem orações intervenientes; sempausas ou cortes entre as coordenadas)............................................................. 112 Quadro 17 - Escolhas de sujeito (expresso ou zero) motivadas por priming...... 124 Quadro 18 - Forma do sujeito e motivação por priming...................................... 125 Quadro 19 - Relação entre região do Brasil e priming........................................ 126 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Imagem alvo........................................................................................ 120 11 LISTA DE ABREVIAÇÕES CORPUS PRIMÁRIO – PORTUGUÊS BRASILEIRO INFORMAL Abreviação Vlogueiro/Canal Região Título do videolog AL-1 Aldair Santos Norte Andar de Van AL-2 Comportamento Escolar AL-3 Tecno Melody BV-1 Bruna Vieira Sudeste 50 fatos sobre mim BV-2 O que tem na minha bolsa BZ-1 Thiago Buzzy Sul BuzzyCast 01# BZ-2 BuzzyCast 02# CN-1 Curinotizando Centro-Oeste Desafio da Canela CN-2 Preconceito DF-1 Dâniel Fraga Sudeste Nancy Andrighi por que não censura seu cu? DF-2 Ser ateu no Brasil DF-3 Porque eu não voto em Geraldo Alckmin FM-1 Flávia Melissa Sudeste Como lidar com críticas negativas e-ou maldosas? FM-2 Resistências, frequência energética e Ego 12 CORPUS PRIMÁRIO – PORTUGUÊS BRASILEIRO INFORMAL (CONTINUAÇÃO) Abreviação Vlogueiro/Canal Região Título do videolog GS-1 Gota Serena Nordeste O DIA QUE ARRANQUEI 3 DENTES GS-2 PAQUERA LL-1 Lido Lendo Centro-Oeste Como eu Leio LL-2 LIDO nas Férias + O que estou LENDO PC-1 PC Siqueira Sudeste Sonhos, Medo de Escuro e Deus no Twitter PC-2 Crianças Feias, Poesia de Twitter e Skyrim PC-3 Afrodisíacos, Frio e Trapacear a Vida PC-4 Justin Bieber Maconheiro, Caça as Bruxas e Stop PT-1 Arthur Petry Sul E AE #2 PT-2 É TUDO MERDA RC-1 Por Rachel Norte Como Usar Seu Corpo Ao Seu Favor RC-2 Meninas Que Jogam Video Game SD-1 Sidinho Pop Centro-Oeste 1º semestre Faculdade de Jornalismo SD-2 33 fatos sobre mim WN-1 Whindersson Nunes Nordeste MULHER CAGA WN-2 Namoro, relacionamentos, amor e bla bla 13 CORPUS DE CONTROLE – PORTUGUÊS EUROPEU INFORMAL Abreviação Vlogueiro/Canal Título do videolog AC-1 Anny Is Candy A socialização AC-2 2014 FR-1 Feromonas A Xbox One + Fera FR-2 Mio NB-1 Nurb Diferenças e semelhanças dos festivais a que eu fui NB-2 A tua mãe é tão gorda que dá leite de morsa SL-1 Segundas-Feiras com o Luz Flappy Bird, Estádio da Luz e Dia dos Namorados SL-2 Selfies e Oscars CORPUS DE CONTROLE – PORTUGUÊS BRASILEIRO FORMAL Abreviação Informante/Expositor Evento FS Fernando Sardinha Videoaula: “Biotipos MB Marcelo Bonecker Palestra: “Por um futuro sem cárie” MS Márcia Cristina Souza Palestra: “Ética no ambiente de trabalho” RS Rachel Sheherazade Discurso na Câmara de João Pessoa 14 Índice Introdução .............................................................................................................. 16 2 - Metodologia ....................................................................................................... 23 2.1 – O material de análise ........................................................................ 23 2.2 – Seleção ............................................................................................. 24 2. 3 – Coleta dos dados ............................................................................. 25 2.4 – Análise de ocorrências ...................................................................... 28 3 – O direcionamento teórico da análise .............................................................. 30 3.1 – Conceitos gerais ............................................................................... 30 3.2 – A aplicação da teoria em uma investigação da realização do sujeito 32 4 – O gênero discursivo em análise ..................................................................... 37 5 – A marcação verbal do sujeito de 1ª pessoa do singular ............................... 43 6 – Análise dos dados ........................................................................................... 48 6.1 – Resultados da análise do preenchimento do sujeito de 1ª pessoa do singular no português brasileiro informal ................................................... 48 6.1.1 – Apresentação e comparação dos dados ..................................... 48 6.1.2 – Distribuição regional ................................................................... 50 6.1.3 – Marcação .................................................................................... 51 6.1.4 – Casos atípicos ............................................................................ 53 6.2 – Resultados da análise do preenchimento do sujeito de 1ª pessoa do singular nos corpora de controle................................................................ 55 6.2.1 – Português europeu informal ........................................................ 56 6.2.2 – Português brasileiro formal ......................................................... 59 6.3 – Resultados da análise de potenciais fatores atuantes no preenchimento do sujeito de 1ª pessoa do singular ................................... 63 6.3.1 – O suposto fator decisivo: a exclusividade desinencial ................. 63 6.3.1.1 – Resultados quantitativos ...................................................... 63 6.3.1.2 – Análise dos dados ................................................................ 65 15 6.3.1.2.1 – Sujeito expresso com desinência exclusiva ................... 65 6.3.1.2.2 – Sujeito expresso com desinência não exclusiva ............ 66 6.3.1.2.3 – Sujeito zero com desinência exclusiva ........................... 71 6.3.1.2.4 – Sujeito zero com desinência não exclusiva .................... 72 6.3.2 – Um fator pouco óbvio para o fenômeno em questão: a polaridade dos enunciados ..................................................................................... 75 6.3.2.1 – Resultados quantitativos ...................................................... 77 6.3.2.2 - Análise dos resultados .......................................................... 79 6.3.2.2.1 - A hipótese da motivação prosódica ................................ 80 6.3.2.2.2 - A hipótese da pressuposição .......................................... 87 6.3.3 – Um fator não previsto, mas altamente influente: a natureza adjetiva da oração em análise (oração relativa) .................................... 93 6.3.3.1 – Resultados quantitativos ...................................................... 95 6.3.3.2 - Análise dos resultados .......................................................... 96 6.3.3.2.1 - A hipótese do candidato favorecido ................................ 96 6.3.4 – Um fator de determinação textual: a reiteração de predicações em 1ª pessoa do singular .......................................................................... 102 6.3.4.1 - Resultados quantitativos ..................................................... 109 6.3.4.2 – Análise dos resultados ....................................................... 113 6.3.5 – Um fator instanciado na ausência de motivações prevalentes: o priming ................................................................................................ 118 6.3.5.1 - Resultados quantitativos ..................................................... 124 6.3.5.2 – Análise dos resultados ....................................................... 126 7 – Conclusões ..................................................................................................... 131 Referências bibliográficas ................................................................................... 145 16 INTRODUÇÃO Por ser o português uma língua cujo paradigma conjugacional traz, tradicionalmente,desinências específicas para cada pessoa verbal, também com formas distintas para o singular e o plural, seria de esperar que fosse canônico nesse idioma o apagamento do sujeito pronominal. No entanto, esse comportamento não parece ser consagrado no português brasileiro, variedade em que o preenchimento do sujeito pode ocorrer mesmo quando, à primeira vista, não se verifica nenhuma circunstância que torne tal explicitação funcionalmente necessária, sobretudo na oralidade informal. O apagamento do sujeito, se muito frequente em uma produção, normalmente resulta em uma sensação de artificialidade, mesmo quando não causa problema de interpretação. Diante desse cenário, parece pertinente averiguar o que há por trás da escolha entre explicitar ou apagar o pronome-sujeito no português brasileiro. O principal fenômeno de interesse neste trabalho será, portanto, a realização do sujeito. No entanto, esse fenômeno não será explorado em toda a sua dimensão, e sim com duas restrições altamente determinantes do rumo da investigação. A primeira restrição diz respeito à pessoa e ao número gramaticais: a investigação será limitada à 1ª pessoa do singular. A segunda diz respeito ao registro: a investigação será limitada à língua informal. Fica definido, assim, o objetivo geral deste trabalho: identificar e descrever os fatores que condicionam a escolha entre preenchimento ou omissão do sujeito eu no português brasileiro informal (obviamente com uma delimitação do objeto de análise). O estabelecimento da 1ª pessoa como alvo da investigação implica um afastamento da referenciação interna ao texto (endofórica), associada ao uso da 3ª pessoa, e leva a uma concentração no mecanismo da referenciação que vai para fora do texto (exofórica), relacionada à autoinserção do falante em sua própria construção. Em outras palavras, o que está em foco aqui não é a referenciação que engloba a introdução e a ligação das entidades que fazem parte do texto – e, por isso, é altamente coesiva (Halliday e Hasan, 1976; Halliday, 1994) –, e sim a referenciação que vai ao elemento primeiro da situação do discurso, o enunciador (Benveniste, 2005; Flores, 2005), cuja autoinserção no texto não é dependente de menções prévias. 17 Esta pesquisa tem seu embasamento primário nas teorias funcionalistas, que, embora diferentes entre si, estão de comum acordo quanto à indicação da competência comunicativa como principal objeto de investigação. Em outras palavras, interessa a uma pesquisa funcionalista entender o que garante a eficiência da comunicação. Às expressões linguísticas, que são o principal meio de que o usuário dispõe para comunicar-se, ficam atribuídas diversas funções. Decorre disso que, teoricamente, se o usuário pode escolher entre apresentar o que em princípio seria o mesmo conteúdo por meio de duas (ou mais) expressões linguísticas diferentes, cada opção terá um efeito diferente na comunicação. E o falante “sabe” disso, o que é evidenciado pelo fato de que, em princípio, ele usa uma forma com determinado efeito quando este está alinhado com seus propósitos interativos. Como exemplifica Furtado da Cunha (2010, p. 157), serão as motivações pragmáticas do usuário em uma dada situação que determinarão se ele dirá Você é desonesto ou Desonesto é você. O mesmo, aqui se supõe, deve ocorrer com a escolha entre sujeito preenchido e sujeito zero. Com essas considerações, chega-se aos objetivos específicos deste trabalho, que acompanharão o objetivo geral de determinar os fatores condicionantes da realização do sujeito eu: 1 - buscar a relação de frequência entre sujeito expresso e sujeito zero em uma amostra do português brasileiro informal – e, em seguida, contrastá-la com a frequência encontrada em dois corpora de controle; 2 - determinar os fatores motivadores do preenchimento e da omissão do sujeito de 1ª pessoa do singular de modo que se possa ter alguma previsibilidade sobre a escolha do falante entre eu e zero em uma dada situação; alternativamente, concluir que a escolha entre eu e zero ocorre de forma aleatória; 3 - descrever os efeitos produzidos por cada uma das duas opções na comunicação, isto é, a “diferença” entre usar eu e usar zero; alternativamente, concluir que é falsa a pressuposição de que essas opções produzem efeitos diferentes. Resta, ainda, descrever duas metas que são mais adequadamente apresentadas como verificações paralelas de interesse do que como objetivos gerais ou específicos. A primeira diz respeito à busca por uma explicação objetiva para a estranheza (mais perceptível na oralidade do que na escrita) que é causada pela omissão sistemática do sujeito eu. Interessa a este trabalho explicar por que, mesmo 18 quando não traz prejuízo à compreensão, a omissão do pronome eu em todas as instâncias da 1ª pessoa do singular resulta em uma construção de aparência artificial ou endurecida. Isso fica ilustrado quando, em correlação com uma passagem do corpus como (1) de madrugada eu também desenvolvo uma espécie de medo do escuro... eu não sei por que de madrugada eu fico com:: medo das coisas que nem criança... que nem quando eu vou pegar um copo d‟água na cozinha... e tá escuro e eu tenho medo de atravessar a:: a sala. (PC-1) imagina-se uma construção como a que segue, com todos os sujeitos de 1ª pessoa apagados: (1a) de madrugada ø também desenvolvo uma espécie de medo do escuro... ø não sei por que de madrugada ø fico com:: medo das coisas que nem criança... que nem quando ø vou pegar um copo d‟água na cozinha... e tá escuro e ø tenho medo de atravessar a:: a sala. O fato de alguns sujeitos elípticos (como o último, ligado à forma tenho) contribuírem mais do que outros para a impressão de artificialidade constitui um ponto de especial interesse investigativo. Espera-se que a identificação dos contextos que favorecem (e desfavorecem) a explicitação do eu torne possível apontar de forma mais criteriosa os casos em que a omissão desse pronome parece mais ou menos forçada. A segunda verificação paralela está relacionada à exploração do português brasileiro informal. Interessa a este trabalho descrever, mesmo que em uma simples parcela, características desse registro, que com tanta frequência é indevidamente associado à modalidade oral. O indivíduo que se aventura a buscar material teórico relacionado à língua informal é quase invariavelmente direcionado a estudos da língua falada, apresentados como o material teórico mais próximo disponível. Entretanto, entendendo-se que língua falada e língua informal não são a mesma coisa, busca-se aqui empreender uma descrição do português brasileiro informal como um campo fértil e independente a ser explorado, e não como um apêndice levado em conta por acaso em outra área de estudo mais consolidada. É certo que, em um trabalho concentrado em um único fenômeno gramatical (no caso, na realização do sujeito eu), uma descrição do português brasileiro informal em toda a sua dimensão, isto é, a elaboração de uma “gramática do português brasileiro 19 informal”, é uma tarefa inexequível. Ainda assim, espera-se que a investigação desse fenômeno propicie ao menos algumas descobertas relacionadas à variedade linguística em que ele é investigado. Ter o Funcionalismo como base também dirige a escolha do material de análise, levando à eleição de uma amostra representativa da linguagem viva. Embora o analista possa utilizar-se de construções inventadas em algumas situações, essas simulações têm papel bastante limitado. Somente a produção real permite uma análise verdadeiramente frutífera, uma vez que somente nela estará em jogo todo o processamento de “cognição e comunicação, processamento mental, interação social e cultura, mudança e variação, aquisição e evolução”1 (Givón, 1995, p. xv) que o uso da língua envolve, e que roteiros de obras de ficção ou campanhas publicitáriasgeralmente não reproduzem com fidelidade. Com isso em mente, buscou-se um material que representasse a linguagem em seu uso efetivo, o que, finalmente, levou à eleição do gênero dos videologs como corpus principal desta pesquisa. Mais especificamente, o corpus é composto por videologs informais de falantes do português brasileiro, de modo a possibilitar uma análise da língua real em uma modalidade não roteirizada e marcada pelo registro de interesse deste trabalho. Parte-se desta etapa inicial com a hipótese de que a escolha entre eu e zero é primariamente condicionada por um fator pragmático. Nessa hipótese, o sujeito seria categoricamente explícito nas situações em que o falante o apresenta como um elemento contrastivo: por exemplo, quando for de seu interesse especificar que, enquanto outros indivíduos não executaram uma dada ação, ele (o falante) a executou. Isso não significa, no entanto, que o sujeito expresso ocorra exclusivamente nessas situações: a hipótese não exclui a possibilidade de o sujeito ser explicitado sem que tal necessidade pragmática se verifique; propõe-se apenas que, quando presente, ela deve garantir a explicitação. O motivo principal seria o fato de a desinência verbal, por si só, não ser capaz de comportar a tonicidade que é característica do foco contrastivo, sendo necessário, portanto, um pronome reto, que pode ser tônico. Naturalmente, não se espera que a necessidade de contraste seja a única força em operação no fenômeno da realização do sujeito: o corpus escolhido será 1 Tradução de Neves (1997, p. 3). 20 analisado em função de diversos fatores, com o intuito de distinguir os que se mostram determinantes na escolha entre sujeito preenchido e sujeito zero. Esta etapa introdutória prevê, ainda, como possível resultado, a classificação da variação como livre, caso nenhum dos fatores analisados demonstre condicionar a escolha em questão de forma consistente. Encerra-se esta seção com um delineamento do trajeto investigativo desenvolvido. O capítulo inicial é voltado para a apresentação da metodologia do trabalho. Primeiramente, é oferecida uma breve explicação do gênero dos textos que serviram como corpus primário. Em seguida, são descritos os procedimentos de seleção de exemplares desse gênero, da coleta dos dados desses exemplares e, finalmente, da análise desses dados. No capítulo seguinte, são expostos os principais conceitos teóricos que norteiam a investigação. Conforme declarado, este trabalho tem seu embasamento primário nas teorias funcionalistas; no entanto, dada a importância aqui atribuída a questões como registros e níveis de monitoramento, pareceu pertinente recorrer também à sociolinguística, entendendo-se que aportes desse campo da Linguística tornariam as análises mais proveitosas. Expostos os procedimentos de pesquisa e a base teórica, a seguir se oferece uma descrição mais detalhada do gênero videolog. Alguns tópicos de discussão são os métodos de produção comuns aos videologs, os propósitos com que um videolog normalmente é criado e os motivos que estão por trás da escolha desse gênero como material de análise. Antes de passar à análise dos dados encontrados, o trabalho traz uma incursão pelo fenômeno da mudança do quadro pronominal do português brasileiro, processo intimamente ligado à perda do princípio pro-drop apontada por Duarte (1995) nessa variedade do idioma. Essa etapa tem como meta uma apresentação dos paradigmas de conjugação realmente usados pelo falante do português contemporâneo – isto é, paradigmas diferentes daqueles tradicionalmente associados ao idioma –, de modo a tornar claros os pontos onde há e onde não há exclusividade desinencial para a 1ª pessoa do singular. A análise tem início com a apresentação e discussão de um quadro quantitativo geral da realização do sujeito eu no português brasileiro informal, obtido a partir do levantamento das ocorrências do corpus primário. A apresentação desses dados deve permitir a sinalização de casos atípicos, isto é, de casos em que a taxa 21 de preenchimento do sujeito é anormalmente alta ou baixa. Espera-se que esses casos tragam pistas relacionadas às circunstâncias que influenciam significativamente o fenômeno em análise. Durante as apresentações dos dados quantitativos, um espaço é reservado para a breve exploração dos dados encontrados em dois corpora de controle: um representativo do português europeu informal e outro representativo do português brasileiro formal. O interesse por trás da inclusão do português europeu como corpus de controle não é apenas o de comparar os resultados dessa variedade aos da variedade representada no corpus primário. Interessa, também, comparar os resultados encontrados nesta pesquisa com os resultados já apresentados em um importante trabalho realizado na área. Ao investigar a realização do sujeito no português europeu, Duarte (1995) chegou à conclusão de que o sujeito zero é a opção favorita nessa variedade do idioma, em todas as pessoas do discurso. Embora a autora já tenha utilizado em sua pesquisa um corpus de natureza coloquial, interessa aqui descobrir se o português europeu mantém a configuração por ela encontrada – isto é, a preferência pelo apagamento do sujeito – mesmo em uma situação comunicativa tão informal quanto a de um videolog. Vale apontar desde já que, embora o português europeu tenha revelado inclinação ao sujeito nulo na pesquisa de Duarte (1995), a 1ª pessoa do discurso foi a que apresentou maior tendência a ter seu pronome-sujeito explicitado. O português brasileiro formal, por sua vez, foi escolhido como corpus de controle com o objetivo de confirmar o poder atribuído à informalidade de favorecer a explicitação do sujeito. Em outras palavras, por motivos que serão explicados mais à frente, este trabalho está, de certa forma, embasado na hipótese de que um nível baixo de formalidade deve favorecer uma alta frequência de preenchimento do sujeito. Uma comparação entre os dados encontrados na língua informal e os encontrados na língua formal pode servir como meio de confirmar (ou descartar) essa hipótese. A análise que se apresenta nos capítulos seguintes, passando por potenciais fatores condicionantes de natureza diversa (sintática, prosódica, pragmática), deve sinalizar os contextos em que os falantes, em geral, são mais inclinados à expressão e ao apagamento do eu. Espera-se que essas descobertas favoreçam uma melhor 22 compreensão do fenômeno da realização do sujeito, bem como de seus efeitos na interação e de sua relação com a informalidade. 23 2 - METODOLOGIA 2.1 – O MATERIAL DE ANÁLISE Na busca por um corpus que refletisse a realidade da linguagem em sua forma mais espontânea, não marcada por autocensura ou preocupação com a forma, certamente o ideal seria uma gravação secreta de indivíduos em uma situação de conversação cotidiana. Somente um trabalho baseado em produções linguísticas cujos autores não tenham ciência de estar sendo documentados pode pressupor a ausência de monitoramento da parte dos falantes. Até mesmo esses casos, na verdade, podem não ser completamente livres de monitoramento: são tantas e tão subjetivas as variáveis envolvidas que nunca é possível, diante de um enunciado, afirmar com certeza que sua estruturação não foi calculada. Tendo em vista que nem a omissão nem a explicitação do sujeito constituem desvio à norma padrão prescrita, o fato gramatical aqui analisado certamente não recebe tanta atenção do falante em situações formais quanto, por exemplo, a concordância, a regência, a pronúncia (na oralidade) ou a escolha vocabular – pontos em que o cuidado do falante pode fazer a diferença entre um uso de prestígio e um uso estigmatizado. Ainda assim, julgou-se importante para este trabalho o exame de um material emque o monitoramento fosse mínimo ou nulo, com base na hipótese de que, mesmo sem estigma, um nível elevado de autopoliciamento poderia afetar a realização do sujeito: parece lógico supor que, em certos contextos, principalmente quando a desinência já indica a 1ª pessoa do singular, o falante preocupado e consciente tenderia a omitir o pronome-sujeito. Um exemplo desses contextos seriam as construções formadas por vários verbos em 1ª pessoa do singular seguidos. Sendo a não repetição excessiva de palavras um dos cuidados característicos da produção monitorada (em circunstâncias em que não há justificativa pragmática para a explicitação constante), o falante que se monitora normalmente não repetiria um pronome eu para cada um dos verbos da construção – diferentemente do que muitas vezes ocorre na fala mais relaxada, como ficará evidente mais à frente. Assim, a este trabalho interessa compreender os mecanismos de produção linguística dos falantes em uma forma tão livre de tensões sociais quanto isso é possível. Os motivos pelos quais o gênero dos videologs foi 24 escolhido para esse fim estão expostos de forma detalhada no capítulo 4, em que esse gênero é caracterizado. 2.2 – SELEÇÃO Embora os videologs, em geral, possam ser considerados produções amadoras e informais, chega a surpreender a quantidade de exemplares do gênero que trazem um discurso nitidamente pré-formulado ou mesmo roteirizado. Tornou-se claro que não bastaria simplesmente reunir videologs de forma indiscriminada para compor um corpus adequado a esta pesquisa, visto que nem todo videolog reúne as qualidades de informalidade e espontaneidade aqui buscadas. Iniciou-se, assim, uma procura por videologs que apresentassem as características de uma produção desinibida – hesitações, truncamentos, reformulações, repetições, palavras-tabus, transgressões à norma padrão e, eventualmente, “construções anômalas” (ver capítulo 4). Esses sinais guiaram a seleção dos exemplares apropriados para esta pesquisa. Outra preocupação que permeou esta etapa foi a de encontrar videologs em que houvesse uma ocorrência consistente de discurso na 1ª pessoa do singular. Visto que a maioria dos videologs não ultrapassa dez minutos de duração, não é muito difícil encontrar exemplares do gênero que transmitam toda a sua mensagem com menos de meia dúzia de ocorrências de 1ª pessoa do singular, tornando inviável qualquer estudo percentual dos fatores que levam à explicitação e à omissão do sujeito eu. Videologs com essa característica foram preteridos. Por fim, buscou-se, nesta fase, reunir um material que fosse, minimamente, representativo do português brasileiro como um todo, com o intuito de tornar adequada a inclusão do nome dessa variedade no título do trabalho. O corpus conta com pelo menos dois vlogueiros para cada uma das cinco regiões do país, embora o Sudeste seja a região predominante tanto no número de vlogueiros escolhidos quanto no volume de material coletado. O Sudeste acabou compondo uma parte maior do material de análise por ser mais fácil o acesso aos videologs dessa região, que provavelmente são mais numerosos – e certamente são mais divulgados e visualizados – que o das outras quatro. Ainda, o site em que todos os videologs selecionados estão hospedados não apresenta nenhuma opção de filtragem dos vídeos por seu local de origem, o que dificultou consideravelmente a descoberta de vlogueiros pertencentes a outras regiões (especialmente à região Nordeste). Por 25 esse motivo, foi necessário realizar uma extensa pesquisa para encontrar aparentes representantes de cada uma delas e, em seguida, investigar os vídeos publicados ou a biografia do vlogueiro para confirmar essa origem2. Além disso, dos videologs das regiões Norte e Nordeste encontrados, muitos não se enquadravam nos moldes necessários a esta pesquisa: em vez da produção espontânea e informal que aqui se buscava, esses videologs apresentavam espécies de documentários ou “teatrinhos”, tornando-se candidatos inelegíveis para o corpus. 2. 3 – COLETA DOS DADOS Estando definidos os videologs que serviriam à investigação pretendida, a fase seguinte consistiu em registrar as ocorrências de interesse neles contidas, ou seja, listar os momentos em que o falante efetua a sua opção entre sujeito preenchido e sujeito zero na 1ª pessoa do singular. Para esse fim, foram feitas transcrições das gravações, seguindo as normas do Projeto NURC (Preti; Urbano, 1990, p. 7-8). Seguir essas normas significa, entre várias outras instruções, indicar a incompreensão de palavras ou segmentos com parênteses vazios, restringir as iniciais maiúsculas a nomes próprios e a sílabas proferidas com ênfase, pontuar qualquer pausa com reticências e sinalizar comentários descritivos do transcritor com parênteses duplos. As únicas alterações que esta pesquisa traz em relação ao código proposto pelo Projeto NURC são a sinalização das ocorrências de interesse (eu ou ø) em negrito e a utilização do sinal “(?)”, também em negrito, para indicar ocasiões em que, em razão de audição insatisfatória de trecho que precede verbo na 1ª pessoa do singular, não foi possível afirmar com segurança se o eu foi ou não explicitado, sendo necessário desconsiderar a ocorrência. É o que pode ser visto abaixo: (2) em certo momento... durante a viagem... os vidros começaram a ficar todos... embaçados... e (?) comecei a limpar:: a janela... (BZ-1) Outra razão para desconsideração de ocorrências deriva das edições que permeiam o gênero do videolog. A versão bruta de uma gravação de videolog pode ser bastante longa. Os autores, para evitar que seus vídeos fiquem longos e 2 Esse problema se repetiu durante a seleção do corpus de controle composto por videolog portugueses. 26 tediosos (ou simplesmente para evitar que ultrapassem a duração permitida pelo site que os hospeda), costumam cortar os trechos que consideram irrelevantes. Esses cortes podem, eventualmente, ocorrer imediatamente antes de um verbo na 1ª pessoa do singular, tornando impossível para o transcritor afirmar se antes desse verbo houve ou não explicitação do pronome eu. Veja-se abaixo: (3) foi na oitava série... ((corte na gravação)) tinha nove anos... (WN-2) Os critérios que determinam a validez de cada ocorrência não se limitam à qualidade auditiva dos segundos que precedem cada verbo na 1ª pessoa do singular. Há situações em que a fala está perfeitamente audível, mas acaba apresentando alguma sorte de truncamento ou reformulação precisamente no momento em que o falante faz sua escolha entre preenchimento e omissão. Em uma ocasião em que o falante, já tendo explicitado o eu em uma oração, hesita e reconstrói essa oração sem repetir o pronome, é impossível para o transcritor, sem recorrer a adivinhações, determinar se o falante apenas completou a construção que já havia iniciado, em que o eu já estava expresso, ou se ele a recomeçou, desta vez com sujeito zero. Essas ocorrências, portanto, também são descartadas, não recebendo o destaque do negrito. É o que se verifica nas passagens seguintes: (4) e assim gente eu... eh num sou dona da verdade (...) (FM-1) (5) então esse é o motivo... do qual eu não per/ num tô perguntando de verdade como é que as pessoas tão... (PC-1) Também pareceu apropriado excluir da análise os verbos no infinitivo pessoal. A justificativa está no fato de não haver distinção formal entre o infinitivo pessoal e o infinitivo impessoal quando o verbo está na 1ª pessoa do singular. Um verbo como cortar, se conjugado na 2ª pessoa do singular ou em qualquer pessoa do plural do infinitivo pessoal, apresentará formas distintivas como cortares, cortarmos, cortardes e cortarem; no entanto, esse mesmo verbo conjugado na 1ª pessoa do singular do infinitivo pessoal continuará apresentando sua forma base,cortar. Decorre disso que, embora seja sempre possível, diante de um verbo no infinitivo precedido por um eu, saber que se trata do infinitivo pessoal, quando se vê um verbo no infinitivo sem sujeito expresso nem sempre se pode afirmar com certeza se o verbo é pessoal ou impessoal. Para ilustrar a questão, veja-se que nos segmentos abaixo, em que o sujeito é explícito, o infinitivo é inequivocamente pessoal: 27 (6) aí eu procurei no meu Kindle lá o que que tinha lá de uma coisa mais leve pra eu ler... (LL-2) (7) aliás:: tão falando pra eu cortar a minha barba (...) (PC-2) Porém, quando o verbo não vem acompanhado de um pronome-sujeito, torna-se necessário recorrer a deduções e análises contextuais para determinar se o infinitivo é pessoal (e associado à 1ª pessoa) ou não: (8) então PAra de pedir pra qui/ clicar em joinha porque isso enche o saco... (PC-3) (9) mas é bom... eu curto... agora é só tomar o meu suquinho de revólver... (e) eu vou desbloquear essa conquista... da fase adulta (PC-3) (10) e antes de começar eu queria agradecer a todos vocês... (RC-2) Assim, a desconsideração dos verbos no infinitivo pessoal serve como uma forma de evitar um favorecimento indevido da explicitação sobre a omissão. Afinal, se esses verbos fossem considerados, cada ocorrência de [eu + infinitivo] seria rapidamente encaminhada ao grupo da explicitação, elevando o seu número, enquanto cada ocorrência de [ø + infinitivo] seria causa de dúvida quanto à intenção do falante. Visto que só acabariam sendo incluídas as ocorrências em que o contexto tornasse incontestável a natureza pessoal do verbo, muitas ocorrências que o falante também pretendia como de 1ª pessoa do singular, por não evidenciar sua pessoalidade, não seriam encaminhadas para somar aos números da omissão. De qualquer forma, essa medida pode não ser suficiente para evitar totalmente o favorecimento da explicitação do sujeito nos resultados, em razão de questões práticas da transcrição. Tome-se como exemplo o primeiro fator desqualificador de ocorrência mencionado, ou seja, a necessidade de uma qualidade auditiva mínima da fala do autor no momento da ocorrência. A palavra eu pode ser proferida com mais ou menos força, de forma mais ou menos clara. Enquanto as ocorrências em que ela aparece em tom alto e claro são rapidamente aceitas na contagem, é possível que, em muitas ocorrências em que o falante não a profere, o transcritor não saiba se ela de fato não foi proferida ou se ela apenas foi proferida com menos força e clareza, não tendo opção senão descartá-la. Algo semelhante acontece com as exclusões devidas a cortes na gravação próximos ao momento da ocorrência: quando a gravação é retomada já no instante do proferimento de um verbo, como acontece em (3), torna-se necessário excluir a ocorrência por não ser possível determinar se houve ou não um eu imediatamente 28 antes da retomada. Isso pode levar à exclusão de várias ocorrências em que o falante, simplesmente, iniciou sua fala com um sujeito zero – mesmo porque é improvável que o falante, ao editar a gravação bruta, tenha voluntariamente cortado a primeira palavra de um segmento que julgou adequado para integração no vídeo final, transformando um eu tinha nove anos em tinha nove anos. Contudo, vale apontar que, por dois motivos, é bastante provável que diversas instâncias em que o sujeito era preenchido também tenham sido descartadas. Primeiro: é presumível que os critérios de descarte acima descritos, embora apresentem maior probabilidade de excluir ocorrências de sujeito zero, também tenham eliminado algumas de sujeito preenchido. Segundo e mais importante: durante a transcrição, foram classificadas como de sujeito zero as ocorrências em que não se verificou uma explicitação sonora do pronome eu; no entanto, é possível estimar que o que se tem em alguns desses casos nada mais é do que uma supressão fonética. Em outras palavras, haveria casos em que o pronome eu, apesar de fazer parte do texto que o falante pretendia proferir, simplesmente não teve força suficiente para emergir na fala. Isso remete à natureza fisiológica e sonora da fala, bem como ao fato de que, quando se trabalha com a língua realizada, trabalha-se com um produto final, com um reflexo da intenção original do falante e não com essa intenção em si. Espera-se, idealmente, que qualquer desequilíbrio causado pelos critérios de desclassificação de ocorrências se tenha anulado ao fim da coleta. Caso um dos lados tenha de fato sido favorecido, espera-se que essa imprecisão seja desprezível, não alterando de forma significativa a representatividade dos dados coletados em relação ao material de que foram retirados. 2.4 – ANÁLISE DE OCORRÊNCIAS A análise desenvolvida no decorrer do trabalho consiste no isolamento de traços considerados como potenciais fatores condicionantes do preenchimento do sujeito eu. As ocorrências de 1ª pessoa do corpus são divididas em dois grupos: um grupo das ocorrências em que o traço está presente, outro das ocorrências em que o traço está ausente. Dentro de cada um desses grupos, faz-se uma divisão entre ocorrências de sujeito expresso e ocorrências de sujeito zero. O propósito desse procedimento é fornecer uma noção de quais situações favorecem (e de quais 29 desfavorecem) o preenchimento do sujeito eu. Por exemplo, se dentro do grupo em que o traço X está presente há 60% de preenchimento do sujeito, e dentro do grupo em que o traço X está ausente a taxa de preenchimento é de 80%, é possível concluir que a ausência do traço X contribui para a explicitação do sujeito, ao menos quantitativamente. Pretende-se, a partir das tendências numéricas reveladas, partir para análises qualitativas. 30 3 – O DIRECIONAMENTO TEÓRICO DA ANÁLISE 3.1 – CONCEITOS GERAIS Como foi apontado na Introdução, o trabalho tem sua base teórica projetada dentro da teoria funcionalista, em especial em suas propostas mais convergentes (Halliday, 2004; Dik, 1997; Givón, 1993; 1995; Coseriu, 1992; Hengeveld e Mackenzie, 2008). Como explicita Neves (2013, p. 16), um trabalho embasado no Funcionalismo traz como assunções básicas: a impossibilidade de descrever a língua e, por consequência, a gramática como um sistema autônomo (Givón, 1995); a compreensão das formas da língua não como um fim em si mesmas, mas como meios para um fim (Halliday, 2004); a integração, na gramática, dos componentes sintático, semântico e pragmático (Dik, 1997; Givón, 2001); a susceptibilidade da gramática às pressões do uso (Givón, 1993); e, de especial relevância para esta investigação, a necessidade do falante de fazer escolhas simultâneas dentre opções oferecidas pela gramática (Halliday, 2004). Ainda segundo Neves (2013, p. 17), são pontos centrais de investigação dentro desse aparato de uma teoria funcionalista da linguagem: as relações entre discurso e gramática; a liberdade do falante de, dentro de certas restrições, organizar suas construções de acordo com suas motivações pragmáticas; a distribuição da informação no texto e a importância que o falante atribui a cada bloco informacional; o fluxo de informação e o fluxo de atenção, ou seja, a maneira como os blocos informacionais surgem no texto e são direcionados pelo falante para a absorção do ouvinte. Nesse sentido, têm papel fundamental neste trabalho tanto a classificação de blocos informacionais (como dados, acessíveis ou novos) quanto a noção de contrastividade, conforme propostas por Chafe (1994) em sua discussão sobre o custo de ativação da informação. Como pesquisa relacionada a formalidade e informalidade em linguagem, este trabalho também deve, naturalmente, buscar sustentação na corrente que entende a língua como um organismo composto por diversas variedades que se alternam, e não como um organismo unidimensional, isto é, ele deve buscar apoio na sociolinguística.É de pacífica aceitação a ideia de que, em qualquer comunidade linguística desenvolvida, existem situações em que os falantes sentem a necessidade de formular suas expressões linguísticas com mais cuidado, 31 encaixando-as em certos padrões sociais, e outras situações em que esses mesmos falantes se sentem à vontade para expressar-se da maneira que lhes parece mais conveniente ou confortável. A seguinte passagem, relacionada à tensão que um falante sente ao ter sua fala analisada, reflete essa concepção: Qualquer observação sistemática de um falante define um contexto formal em que ele confere à fala mais do que o mínimo de atenção. No corpo principal de uma entrevista, onde se pede e se dá informação, não se deve esperar encontrar o vernáculo em uso. Por mais que o falante nos pareça informal ou à vontade, podemos sempre supor que ele tem uma fala mais informal, outro estilo no qual se diverte com os amigos e discute com a mulher. (Labov, 2008, p. 244, grifos do autor) Essa tensão costuma estar intimamente ligada a uma sensação de culpa da parte do falante com relação a sua fala. Joos (1967, p. 4), em discussão sobre os falantes anglófonos (igualmente aplicável aos lusófonos), aponta que o trabalho dos linguistas pouco fez para atenuar essas sensações no falante comum, que se repreende quando percebe que sua produção linguística não corresponde àquilo que lhe foi ensinado como a única forma “certa” de falar. Joos (1967) afirma que, embora a população geral tenha há muito tempo chegado ao consenso de que o clima mais proveitoso é aquele que varia, essa população ainda não alcançou a mesma conclusão no que diz respeito à língua. O autor declara, no entanto, que esses mesmos falantes, tendo ou não consciência disso, são capazes de alternar habilidosamente entre as variedades do idioma de acordo com as exigências de cada situação. É claro, por outro lado, que, como sugere Labov (2008, p. 251) o grau dessa habilidade varia de falante para falante. Embora o próprio Joos (1967) sugira que existe uma relação escalar entre formalidade e informalidade, isto é, que há vários níveis de formalidade na língua, para os propósitos desta pesquisa basta uma distinção binária entre situações em que o usuário sente que deve prestar atenção à forma como fala e situações em que o usuário fala de forma mais relaxada. Desses dois tipos de produção linguística diferentes surgem, obviamente, opções fonológicas, morfológicas, sintáticas e mesmo textuais diferentes; desses dois conjuntos de opções, então, surgem duas variedades – embora sem uma fronteira rígida que as distinga. No presente caso, trata-se do português brasileiro formal e do português brasileiro informal. A diferenciação das duas variedades e, sobretudo, a caracterização desta última, é tarefa raramente executada sem uma aparente absorção do eixo formal-informal pelo eixo falado-escrito, ficando, em termos gerais, a formalidade associada à língua 32 escrita e a informalidade associada à língua falada. Este trabalho toma como base a existência de uma clara distinção entre esses dois eixos, o que, naturalmente, tem duas implicações: a de que a língua falada pode ser formal e a de que a língua escrita pode ser informal. 3.2 – A APLICAÇÃO DA TEORIA EM UMA INVESTIGAÇÃO DA REALIZAÇÃO DO SUJEITO A realização do sujeito da 1ª pessoa do singular – isto é, a inserção ou não inserção do pronome eu na sentença – é, antes de tudo, uma questão sintática. Disso seria possível inferir que uma investigação restrita à sintaxe bastaria para explorar esse tópico. Como mencionado acima, porém, um dos princípios do Funcionalismo é a relação íntima entre sintaxe, semântica e pragmática. Essa visão leva o analista apoiado na teoria a incluir todos esses componentes em seu universo de análise, com o objetivo de determinar o que está por trás de um fenômeno que, na verdade, não é puramente sintático. Givón (2001, p. 19) ilustra essa interpendência dos componentes da língua com a possibilidade de, a partir de uma “oração neutra” – she cut the meat with a knife –, criar um sujeito formado por oração relativa. O autor apresenta estes três possíveis resultados: a) The knife with which she cut the meat ø (was dull). b) *The knife she cut the meat ø (was dull). c) The knife she cut the meat with ø (was dull). Como uma das motivações por trás da construção relativa é o desejo de evitar repetições desnecessárias, e o instrumento da oração neutra é correferente com o núcleo ancorador da oração relativa (the knife), esse instrumento acaba sendo codificado como zero (ø). Por outro lado, esse zero precisa ser compensado de alguma forma para que o valor semântico do referente seja mantido, razão pela qual b) não é aceitável. Essa necessidade semântica tem impacto sintático: resulta no surgimento de with which no início da oração relativa em a), e no surgimento de apenas with ao fim da construção mais informal c). Segundo o autor, essas estratégias tornam possível a reconstrução do papel semântico do sintagma omitido. 33 Assim como a semântica, a pragmática também exerce influência na apresentação formal da expressão linguística (Givón, 2001, p. 19): a própria formulação de uma construção como a) ou b) normalmente estará associada a uma necessidade de topicalizar o instrumento the knife, que resulta no mencionado desejo de evitar repetições e, consequentemente, no zero. Referindo-se a essas duas construções, Givón (2001, p. 19) sintetiza assim a questão: E a estrutura sintática geral de [a), b)] tem alguns traços motivados pela necessidade de codificar a semântica proposicional das orações („with‟), alguns motivados pela necessidade de codificar seu contexto discursivo- pragmático (zero), e alguns motivados por uma combinação de ambas. 3 Dik (1997, p. 7-8) apresenta a pragmática como o domínio englobador da semântica e da sintaxe, sendo a semântica instrumental em relação à pragmática e a sintaxe instrumental em relação à semântica. Uma vez que, para o Funcionalismo, uma língua natural é um instrumento de interação social (Dik, 1997, p. 5), o objetivo primário nessa linha de pesquisa é descobrir a quais propósitos esse instrumento serve. Isso faz da pragmática o campo primário do uso da língua. Dentro da pragmática, a sintaxe permite ao usuário formar expressões complexas para transmitir conteúdos semânticos complexos, e esses conteúdos semânticos permitem ao usuário comunicar-se de formas sutis e diferenciadas (Dik, 1997, p. 8), atingindo assim seus propósitos na interação. Estes podem ir desde uma mudança na informação pragmática do receptor – ou seja, em seu estoque de conhecimentos, crenças, pressuposições, opiniões e sentimentos – até uma ação física desse mesmo receptor, como, por exemplo, acender a luz. Para Dik (1997, p. 8), portanto, dentro dessa visão da relação entre os componentes da língua, “não há espaço para algo como uma sintaxe „autônoma‟”4. Essa sintaxe autônoma a que se refere o autor é o sistema historicamente atribuído à língua pelo formalismo – corrente de tradição de certo modo complementar à do funcionalismo. Na teoria formalista, o sistema linguístico é entendido como independente em relação a todos os fatores externos à própria língua, como a intenção do falante, o nível de intimidade entre ele e o ouvinte, e a informação que 3 Segue o original: And the overall syntax of [a), b)] has some features prompted by the need to code the clauses‟ propositional-semantics („with‟), some prompted by the need to code its discourse- pragmatic context (zero), and some prompted by a combination of both. 4 Todas as traduções presentes neste trabalho são de nossa autoria, salvo quando explicitado o contrário. 34 ambos compartilham, para citar apenas alguns exemplos. Isso torna a relação entre as formas e as estruturasda língua um domínio completamente autônomo em relação aos fatores ligados ao seu uso efetivo. Aceitar essa sintaxe autônoma implicaria a possibilidade de analisar um fato gramatical como o focalizado neste trabalho – a realização do sujeito de uma das pessoas do discurso – sem recorrer às condições de produção da construção que o veiculou. Ainda, mesmo dentro do campo das formas linguísticas, uma análise formalista tende a não investigar além da construção de interesse, ou seja, a não averiguar como a construção em foco relaciona-se com o texto de que faz parte. A análise funcionalista, além de buscar um mapeamento da gramática do texto (e não apenas da frase ou da oração), inclui os fatores externos à sintaxe, que, acredita-se, moldam tanto o uso da língua quanto a língua em si (Givón, 1995, p. 26; Halliday, 2004, p. 31). Longe de fazer parte de um sistema fechado em si mesmo e dissociado das necessidades de seus usuários, as formas linguísticas não são, para o funcionalista, elementos arbitrários que começam e terminam em si; são, na verdade, meios para um fim. Cabe lembrar a proposta de Halliday (2004, p. 29- 30), segundo a qual a língua tem três metafunções: representar as experiências dos usuários (ideacional), modificar as relações entre esses usuários (interpessoal), e construir as sequências de discurso coesivas e contínuas que possibilitam tanto essa representação de experiências quanto essa interação entre usuários (textual). Sendo assim, somente a investigação das situações de uso efetivo da língua possibilitaria descobrir o que determina a escolha por uma ou outra forma (sujeito expresso/sujeito zero). Foi isso que motivou, neste trabalho, a busca de ocorrências reais vindas de falantes do português brasileiro. Uma volta a Halliday (2004, p. 23-24) mostra ainda que “um texto é o produto de uma seleção contínua em uma rede muito ampla de sistemas”. No caso da realização do sujeito da 1ª pessoa do singular, tem-se uma escolha paradigmática entre eu e ø. Obviamente, não se trata de uma escolha consciente; na verdade, o falante automaticamente faz escolhas significativas voltadas à construção do significado pretendido. Assim, pode ser iluminador indagar por que uma opção do eixo paradigmático não foi a selecionada. Por exemplo, em uma situação em que o falante optou pelo preenchimento do sujeito, o entendimento da razão pela qual o sujeito nulo foi preterido pode revelar aspectos importantes desse mecanismo de escolhas. 35 Quando se questiona por que um falante, em dada situação, optou por explicitar o sujeito em vez de omiti-lo, ou vice-versa, quase sempre é necessário voltar a atenção ao estatuto informacional do sujeito de 1ª pessoa do singular na enunciação. Chafe (1994, p. 71-81) explica essa propriedade dos blocos de informação segundo o seu custo de ativação, isto é, segundo o esforço necessário para, em determinado ponto da interação, tornar uma ideia mentalmente ativa. Uma ideia que já estava ativa nesse ponto exige menos esforço para se manter ativa e, portanto, constitui informação dada. Por sua vez, uma ideia que estava semiativa nesse ponto exige esforço intermediário para se converter em ativa e, consequentemente, constitui informação acessível. Finalmente, uma ideia que estava inativa nesse ponto requer esforço maior para se converter em ativa e, assim, constitui informação nova. Na língua falada, a regra geral é informações novas (e acessíveis) surgirem com força na superfície textual, sob a forma de um sintagma nominal enfatizado, enquanto informações dadas são expressas como pronomes atenuados, quando não simplesmente apagadas da superfície por meio de elipses (Chafe, 1994, p. 75). O que até aqui se expôs sobre estatuto informacional pode levar à pressuposição de que o sujeito pronominal eu seria sempre expresso como um elemento átono, quando não apagado. Afinal, visto que esse é o destino das informações dadas no que diz respeito à forma, e que a ideia do enunciador do discurso nunca pode ser considerada inteiramente nova, faz sentido esperar que o sujeito eu receba esse mesmo tratamento. Essa expectativa se desfaz quando se acrescenta à equação o fenômeno da contrastividade. Segundo Chafe (1994, p. 76- 7), as situações de contraste são uma circunstância clara em que informações dadas podem receber ênfase igual ou mesmo superior àquela normalmente associada a informações novas, o que o autor exemplifica com a seguinte transcrição5: a(A) ... Have the .. ánimals, b(A) .. ever attacked anyone ín a car? c(B) ... Well I d(B) well Í hèard of an élephant, 5 A passagem é oferecida aqui conforme apresentada pelo autor, com sinais de transcrição diferentes dos utilizados na coleta do corpus deste trabaho. 36 e(B) .. that sát dówn on a VẂ one time. Embora a ideia do falante B já estivesse bem estabelecida no discurso, esse falante carrega o pronome pessoal I de tonicidade ao construir sua resposta na linha d. Isso é devido ao fato de haver outros indivíduos presentes durante a interação, que poderiam ter respondido à pergunta em seu lugar e também poderiam ter oferecido uma resposta diferente da sua. O exemplo de Chafe, que por acaso envolve justamente a explicitação do sujeito da 1ª pessoa do singular, demonstra que os falantes, ao selecionar um candidato em detrimento de outro(s), tendem a enfatizar aquele que foi selecionado (mesmo quando se trata de um referente exofórico). Finalmente, no que diz respeito às escolhas dos falantes entre formas diferentes que expressam conteúdos semelhantes, cabe ressaltar o papel histórico que a sociolinguística teve no início da análise da variação entre enunciados antigamente considerados “iguais”. Anteriormente desconsiderados pelos estruturalistas, os fatores condicionantes dessas escolhas – em que se enquadra precisamente a escolha entre sujeito pleno e sujeito nulo – passaram a constituir objeto de estudo dos sociolinguistas, como aponta Labov (2008, p. 14, grifos do autor): O postulado básico da linguística (Bloomfield 1933: 76) declarava que alguns enunciados eram o mesmo. Por conseguinte, eles estavam em variação livre, e se considerava lingüisticamente insignificante saber se um ou outro ocorria num momento particular. Relações de mais ou menos, portanto, eram descartadas do raciocínio lingüístico: uma forma ou regra só podia ocorrer sempre, opcionalmente ou nunca. A estrutura interna da variação ficava, portanto, removida dos estudos lingüísticos e, com ela, o estudo da mudança em progresso. Assim, com a variação entre enunciados “iguais” em foco, resta lembrar a postulação de Tarallo (2007, p. 5) de que, embora a língua falada possa a princípio parecer completamente desordenada, é possível encontrar ordem no “caos linguístico”. Por trás de escolhas aparentemente aleatórias, é possível descobrir um sistema “devidamente estruturado” (Tarallo, 2007, p. 81), em que ficam claros os fatores que direcionam os falantes em uma ou em outra direção. É isso que se busca empreender nesta pesquisa, sendo o objeto a escolha entre eu e zero. 37 4 – O GÊNERO DISCURSIVO EM ANÁLISE Pode não ser óbvio, em um primeiro momento, o motivo de os videologs terem sido escolhidos como um material de análise adequado para esta pesquisa. Com o intuito de eliminar essa e outras possíveis dúvidas, este capítulo busca proporcionar um melhor entendimento da natureza desse gênero. O videolog ou vlog é uma forma predominante do vídeo “amador” no Youtube, tipicamente estruturada sobre o conceito do monólogo feito diretamente para a câmera, cujos vídeos são caracteristicamente produzidos com pouco mais que uma webcam e pouca habilidade em edição. Os assuntos abordados vão de debates políticos racionais a arroubos exacerbados sobre o próprio Youtube e detalhes triviais da vida cotidiana. (Burgess e Green2009 apud Montanha, 2011, p. 154) Trata-se, pois, de uma mistura do gênero da conversação com o do diário – combinação bastante conveniente a esta pesquisa, já que ambos os tipos de produção costumam ser informais. Quase tudo nos videologs, aliás, costuma propiciar a informalidade: o cenário, normalmente, é a casa – ou, mais especificamente, o quarto – do autor (ambiente pessoal, privado); a complexidade da produção do vídeo é mínima, tipicamente limitada a edições feitas pelo próprio autor, quando tanto; ainda, a ferramenta que hospeda os vídeos permite que os espectadores respondam ao autor por meio de comentários escritos, aos quais ele pode reagir em vídeos posteriores. Esse último fator caracteriza o autor como um indivíduo acessível e próximo a seus ouvintes, distanciando o gênero do videolog do gênero do jornal televisivo, por exemplo, em que, como aponta Montanha (2011, p. 163), “a abertura à interação é limitada e pautada pelo modelo tradicional de comunicação (emissor-mensagem-receptor)”. A única variável que parece ter o potencial de reverter a informalidade do videolog (bem como o de intensificá-la de vez) é o assunto discutido. Canais dedicados à criação de videologs com posicionamentos relacionados a temas polêmicos, como política, religião, laicidade, feminismo e vegetarianismo, tendem a exibir comportamentos linguísticos mais formais, justamente por carregarem uma carga de debate, associada a uma busca por adesão e respeitabilidade. Esses videologs menos pessoais e mais argumentativos podem, mesmo, trazer amostras de edição mais sofisticada, intercalando o discurso do autor com, por exemplo, trechos de entrevistas ou documentários que fundamentem a posição tomada. Uma vez que, assim como em um debate, a exposição de argumentos-chaves 38 preestabelecidos é essencial ao sucesso desses vídeos, eles costumam ser marcados por produções linguísticas nitidamente menos espontâneas, podendo o nível de planejamento prévio à gravação variar desde a anotação de pontos principais até a aparente memorização completa de um roteiro. É por esse motivo que esses vídeos foram, em geral, descartados durante a coleta do corpus deste trabalho. Vale frisar, por outro lado, que certos videologs mantêm suas características de informalidade e espontaneidade mesmo ao lidar com questões polêmicas, o que permitiu que alguns vídeos desse grupo (embora não muitos) fossem selecionados. Esta investigação dá prioridade, assim, àqueles vídeos que trazem as qualidades aqui tidas como prototípicas dos videologs: linguagem espontânea e informal; planejamento de fala limitado à anotação de pontos-chaves; produção simples e de natureza ou aparência amadora. Vídeos desse tipo constituirão a parte mais substancial do material de análise, isto é, o corpus primário, e qualquer outra sorte de material eventualmente analisada neste trabalho terá um papel primariamente contrastivo. Resta, então, conhecer melhor esses videologs considerados modelares do gênero, no que interessa a este trabalho. Suas gravações costumam ser iniciadas com um propósito específico: a exploração de um tópico que pode variar desde eventos coletivos, como os protestos de junho de 2013, até experiências particulares. Porém, bem aos moldes da conversação, raramente os videologs se mantêm do começo ao fim restritos ao assunto que inicialmente os impulsionou, sendo habitual que uma produção, ao término de seu curso, tenha passado por dois ou três temas relativamente independentes. Tal ausência de planejamento estende-se ao plano linguístico. A fala é marcada por correções e hesitações. O vocabulário é simples e o falante não parece censurar o uso de palavras-tabus, o que, de um ponto de vista sociolinguístico, funciona como mais uma forte evidência da ausência de automonitoramento. No que diz respeito à construção, a informalidade do meio em que se produz esse gênero costuma propiciar uma despreocupação em relação ao seguimento da norma padrão. Interessa notar, ainda, a possibilidade da ocorrência de construções “anômalas”, que não parecem enquadrar-se em nenhum caso de opção entre variante padrão e variante não padrão (como a escolha entre ir à padaria – variante padrão – e ir na padaria – variante não padrão). Esses casos parecem constituir 39 verdadeiros acidentes linguísticos, frutos da complicada tarefa de pensar simultaneamente em o que dizer e em como dizer, inerente à oralidade (Hilgert, 2011). A primeira ocorrência adiante traz uma concordância de número gramatical que não segue nem a norma padrão nem o molde diastrático estigmatizado (que seria nos meu(s) sonho), e a segunda ocorrência traz uma opção de regência bastante incomum para o verbo discorrer: (11) por algum motivo no meus sonhos eu não consigo a/atirar... (PC-1) (12) e como geralmente pessoas não estão bem se elas falassem assim “não:: eu não tô bem na verdade” e começasse a discorrer pelo assunto que ela não tá bem... eu não ia ter muito como ajudar e ia me arREPENder de ter perguntado como ela tava... (PC-1) Não se deve, no entanto, tomar a ausência de planejamento e monitoramento como absoluta: trata-se da gravação de um falante que não apenas sabe que está sendo gravado, mas produz seu texto especificamente para ser gravado. Esse falante, em princípio, preocupa-se com a imagem que passará de si. Também é ele quem determina, na etapa final do processo, se o videolog será disponibilizado ao público ou não. Ao assistir à própria gravação, está em seu poder decidir se sua fala está adequada para a publicação e, se lhe parecer necessário, cancelar ou refazer o vídeo – recurso obviamente inexistente na conversação. Nesse ponto, portanto, o videolog aproxima-se da escrita, já que o papel e o lápis, unidos ao tempo, permitem ao escritor formular e reformular uma produção quantas vezes isso lhe parecer necessário. Na discussão dessa faceta dos videologs, não se pode deixar de mencionar a ferramenta da edição, que, embora sutil, elimina diversos momentos de preparação entre cada fala do autor, na tentativa de tornar o vídeo mais dinâmico. Esses cortes, porém, podem fazer a diferença entre haver ou não acesso aos instantes em que mais fica evidente o fato de que a produção acontece em tempo real, com suas formulações, silêncios e truncamentos. Assim, a ciência (e intenção) por parte do autor de estar sendo gravado, bem como a filtragem a que seu trabalho é submetido antes de ser publicado, novamente nos leva à seguinte conclusão: o corpus ideal para a análise dos recursos linguísticos em sua forma mais espontânea seria composto por gravações de falantes que não tinham ciência de estarem sendo gravados. Este trabalho, no entanto, parte do pressuposto de que os videologs – ao menos os selecionados – são permeados por uma atmosfera suficientemente 40 informal e relaxada para que a análise se desenvolva de forma satisfatória, especialmente quanto ao objeto em investigação. Como discutido no capítulo 2, há uma disparidade significativa entre os videologs no que diz respeito à ocorrência de discurso na 1ª pessoa do singular. Em geral, o surgimento desse tipo de discurso está diretamente vinculado ao grau de subjetividade do tema tratado, como evidencia a diferença entre certos vídeos do corpus: enquanto um videolog em que o autor discorre sobre as ações supostamente condenáveis de uma ministra traz apenas 15 ocorrências de 1ª pessoa do singular em sete minutos de gravação, um videolog em que outro autor discorre sobre seus gostos e hábitos pessoais traz nada menos que 74 ocorrências em cinco minutos. É importante ter em mente, no entanto, que, mesmo nos vídeos em que o autor não está falando de si, as ocorrências de 1ª pessoa do singular não são inexistentes; como demonstra a comparação que se acaba de fazer, elas diminuem, mas não desaparecem por completo. As causas do surgimentoda 1ª pessoa do singular nessas produções menos subjetivas, em que o tema é pouco ligado à pessoa do autor, são inúmeras e imprevisíveis, mas abaixo estão algumas que são frequentes o suficiente para merecer menção. a) a expressão de opinião: (13) eu acho que todo mundo é assim (...) (FM-1) b) a indicação de (des)conhecimento: (14) eh:: eu não sei:: o QUE tá acontecendo eh:: nos últimos tempos (...) (FM-1) c) e a indicação de fonte: (15) eu/ ontem eu vi uma notícia... [DF-2]) Finalmente, cabe oferecer um exemplo de um produtor de videologs, isto é, de um vlogueiro. Em razão de um cumprimento amplamente satisfatório dos requisitos da seleção, boa parte do material eleito para a investigação é proveniente do mesmo autor: o vlogueiro PC Siqueira, que se tornou famoso no meio com seu canal, chamado “Mas Poxa Vida”. Quase sempre ultrapassando o marco das duzentas mil visualizações, seus vídeos refletem o molde anteriormente descrito: os temas variam entre os problemas sociais e o mundano; as edições são limitadas a cortes e efeitos relativamente simples (por exemplo, preto e branco em momentos específicos); a linguagem é informal, não planejada e não monitorada, sem 41 restrições quanto ao emprego de palavras-tabus. A ausência de roteiro fica confirmada no seguinte trecho de entrevista concedida por PC Siqueira (Jesus, 2011, p. 12-13): Sai naturalmente. Não planejo. Só às vezes quando tem um assunto muito em voga e acho pertinente comentar, aí eu penso um pouco antes. Mas basicamente as idéias são tidas no meio da gravação. (...) Eu falo com o conhecimento que tive a partir de jornais e notícias. Não faço um estudo profundo. Não é um ensaio, são somente opiniões, vontade de falar. As informações até aqui apresentadas sobre os videologs permitem sua classificação de acordo com o conjunto de traços proposto por Vilela e Koch (2001) para o que chamam de gêneros utilitários. Esse grupo é formado pelos gêneros não literários, isto é, por “esquemas de ação complexos normalizados socialmente que estão ao dispor do falante de uma língua” (Vilela e Koch, 2001, p. 543), e, portanto, inclui o videolog. Os três traços propostos pelos autores envolvem a presença (física) do interlocutor, o canal do texto e a preparação envolvida na enunciação. Assim, o videolog pode ser classificado como um gênero monologal (e não dialogal)6, falado (e não escrito) e espontâneo (e não refletido). A esses três critérios podem ser somados outros quatro propostos por Helbig (1975, apud Vilela e Koch, 2001, p. 541): a publicitação do enunciado linguístico, a especificidade do partner, a modalidade de tratamento do tema (explicativa, descritiva, argumentativa, associativa) e o grau de contenção ou esforço teórico da comunicação. Os videologs enquadram-se de forma positiva no primeiro critério, uma vez que são vídeos expostos publicamente na Internet. Quanto ao segundo critério da lista, embora alguns videologs sejam direcionados a públicos específicos, como é o caso de canais relacionados a videogames ou maquiagem, o videolog aqui considerado prototípico trata de assuntos de interesse geral, não havendo especificidade do partner. A modalidade do tratamento do tema, por sua vez, não é 6 Preferiu-se, durante a classificação dos videologs, a oposição monologal/dialogal à oposição monológico/dialógico. O termo dialógico – que, segundo Bres (2005, p. 49), é derivado não do substantivo comum diálogo e sim do termo bakhtiniano dialogismo – diz respeito à propriedade intrínseca a todo enunciado de ser, de alguma forma, direcionado a outros enunciados. O termo dialogal, por outro lado, diz respeito a uma propriedade mais concreta e facilmente verificável: uma produção é dialogal se envolve falantes em alternância de turno. Os videologs são negativos quanto a esse traço, isto é, normalmente envolvem um falante que discursa sozinho (embora obviamente seu discurso seja direcionado a alguém). Diante disso, classificar os videologs como monologais e não dialogais pareceu mais apropriado do que classificá-los como monológicos e não dialógicos. A distinção aqui resumida é exposta de forma mais aprofundada em Bres (2005). 42 fixa nos videologs como o é em uma receita ou em uma discussão científica. Assim como as conversações, a maioria dos videologs não tem toda a sua extensão restrita a um só tipo textual, o que, muito provavelmente, é uma consequência da já mencionada fácil transição entre temas envolvida no gênero. Por fim, o grau de contenção ou esforço teórico da comunicação no videolog comum é baixo, uma vez que o falante desse gênero não costuma filtrar sua produção nem recorrer a artifícios complexos para expor suas ideias: novamente, apesar de monologal, o gênero assemelha-se à conversação, e não exige grande esforço didático. A descrição que se acaba de desenvolver está resumida no quadro a seguir, em que os critérios “modalidade de tratamento do tema” e “grau de contenção ou esforço teórico na comunicação” foram reformulados de modo a permitir uma classificação dicotômica, positiva ou negativa: Gênero Monologal Falado Espontâneo Público Videolog + + + + Gênero Associado a partner específico Associado a tipo textual fixo Associado a contenção ou esforço teórico Videolog - - - Os videologs são, portanto, um terreno de análise novo e atraente para linguistas, especialmente para aqueles que se encontram diante da difícil tarefa de encontrar material produzido em baixa (ou nula) monitoração. A eventual análise de outro tipo de material no decorrer deste trabalho será devidamente sinalizada. 43 5 – A MARCAÇÃO VERBAL DO SUJEITO DE 1ª PESSOA DO SINGULAR Quando se tem como objetivo apontar os fatores que determinam a realização de um sujeito pronominal, seja este o eu ou qualquer outro pronome, é imprescindível saber até que ponto as desinências verbais são capazes de apontar cada combinação número-pessoal de forma inequívoca. Um sujeito de uma pessoa gramatical cujas desinências lhe são exclusivas tem, em princípio, menos necessidade de surgir na superfície textual do que um sujeito construído com verbo cujas desinências são compartilhadas com outra(s) pessoa(s) gramatical(is). Em outras palavras, seria de supor que quanto mais as formas verbais na 1ª pessoa do singular trouxerem desinências associadas unicamente a essa pessoa e esse número, menor será a necessidade, na língua em questão, de que o falante explicite o eu para garantir a interpretação correta da estrutura argumental. A seção que aqui se inicia, portanto, tem como meta apresentar os casos em que há e os casos em que não há exclusividade desinencial do sujeito de 1ª pessoa do singular no português brasileiro atual. Primeiramente, veja-se, adiante, o paradigma conjugacional do presente do indicativo tradicionalmente associado a um verbo regular, como cantar: canto cantas canta cantamos cantais cantam Tem-se aí um modelo em que a cada número e pessoa gramatical se liga um morfema distinto. Essa mesma situação de exclusividade desinencial em todas as pessoas e números verifica-se em outros dois paradigmas do modo indicativo: o futuro do presente (cantarei, cantarás, cantará, cantaremos, cantarão) e o pretérito perfeito (cantei, cantaste, cantou, cantamos, cantastes, cantaram). 44 Mesmo na configuração tradicional (em que a 2ª pessoa mantém suas desinências próprias), quando se passa desses três paradigmas de tempo-modo para outros, deixa de haver exclusividade desinencial absoluta no quadro, ou seja, a exclusividade desinencial deixa de abranger todas as pessoas gramaticais. Observe- se, abaixo, o mesmo verbo cantar conjugado no pretérito imperfeito do indicativo: cantava cantavas cantava cantávamos cantáveis cantavam Como se pode observar, no pretérito imperfeito do