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85 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Nesta unidade, você irá conhecer a metodologia utilizada por Piaget para estudar o desenvolvimento cognitivo da criança. Para isso, serão apresentados as provas operatórias e seus critérios de aplicação, bem como a atitude do experimentador durante a entrevista. Da mesma forma, serão conhecidas as respostas e as reações que a criança pode apresentar e os critérios e os procedimentos para avaliação disso. 7 O MÉTODO CLÍNICO DE PIAGET 7.1 Avaliação da inteligência segundo a abordagem psicométrica e a abordagem psicogenética Com a finalidade de descrever as habilidades intelectuais do indivíduo, compreender como o sujeito pensa e constrói o conhecimento, Piaget utilizou como método de investigação o método clínico. O objetivo do método clínico piagetiano é compreender como o sujeito pensa e a forma como resolve situações‑problema, de que maneira responde às questões elaboradas. O enfoque está em compreender como e quando o sujeito utiliza determinado conhecimento e no processo que o leva a dar uma determinada resposta. Portanto, a resposta “errada” pode ser uma forma de raciocínio do sujeito em determinada fase de seu desenvolvimento e isso deve estar bem claro para o adulto. Dessa forma, o método clínico de Piaget tem como pressuposto uma avaliação da inteligência a partir de uma abordagem psicogenética (avaliação dos processos de desenvolvimento da inteligência), que difere da maneira mais tradicional utilizada em psicologia, à abordagem psicométrica (avaliação ou quantificação das respostas corretas dadas pelo sujeito ao exame). A seguir, apresentamos as principais diferenças entre as duas abordagens: • Abordagem psicométrica – o primeiro teste de inteligência em uma perspectiva psicométrica foi elaborado em 1905 pelos psicólogos franceses Theodore Simon (1872‑1961) e Alfred Binet (1857‑1911). Esse teste, de caráter verbal e elaborado em grau crescente de dificuldade, visava obter o Quociente Intelectual (QI). Ao longo dos anos surgiram outros testes na tentativa de aperfeiçoar os critérios de medição da inteligência. O objetivo dos testes psicométricos é a mensuração das habilidades mentais. A aplicação dos testes é feita por meio do controle de variáveis ambientais, rapport com o examinador, controle por meio de um manual com: perguntas específicas a serem feitas, respostas padronizadas a serem dadas pelo Unidade III 86 Unidade III sujeito e controle do tempo (cronômetro). Para que não haja interferência no desempenho do sujeito, é necessário, portanto, a padronização do material e o controle do ambiente. • Abordagem psicogenética – o objetivo é investigar a forma como o sujeito pensa e resolve determinadas situações que lhe são apresentadas. O controle está no entendimento de respostas e instruções (controle psicológico), ao invés da padronização das mesmas e das situações externas (controle fisicalista). O investigador, nessa perspectiva, está interessado em compreender o processo que leva um sujeito a esta ou àquela resposta. Para isso, deve ter amplo conhecimento da teoria piagetiana, que irá nortear as perguntas que irá fazer durante a aplicação das provas, bem como a maneira como irá avaliar as respostas dadas pela criança. Observação Alfred Binet nasceu em 8 de julho de 1857 (Nice) e faleceu em 28 de outubro de 1911 em Paris. Psicólogo e pedagogo renomado pelos estudos da inteligência pela psicometria, foi o primeiro a elaborar testes psicométricos para avaliação do Quociente Intelectual (QI). Assim, todas as respostas dadas pelo sujeito são interpretadas com a finalidade de entender o processo que as gerou e as diferenças individuais não são avaliadas como indicadores de inteligência – como na abordagem psicométrica – e sim como indicadores do estádio do desenvolvimento cognitivo em que o sujeito se encontra. Para aplicar o método clínico, Piaget utilizou entrevistas puramente verbais e também apresentou situações‑problema com materiais concretos, a fim de possibilitar ao sujeito a antecipação e a explicação, após determinada demonstração. A isso Piaget denominou provas operatórias. Piaget salienta que somente após um ano de exercícios diários de estudo e aplicação das provas operatórias, fundamentados em uma base teórica sólida, é que irá permitir ao psicólogo a utilização do método clínico de maneira a propiciar uma compreensão sobre o pensamento do sujeito. Nas palavras de Piaget (2005): O bom experimentador deve, efetivamente, reunir duas qualidades muitas vezes incompatíveis: saber observar, ou seja, deixar a criança falar, não desviar nada, não esgotar nada e, ao mesmo tempo, saber buscar algo de preciso, ter a cada instante uma hipótese de trabalho, uma teoria, verdadeira ou falsa, para controlar. É preciso ter‑se ensinado o método clínico para compreender a verdadeira dificuldade. Ou os alunos que se iniciam sugerem à criança tudo aquilo que desejam descobrir, ou não sugerem nada, pois não buscam nada e, portanto, também não encontram nada. 87 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA De acordo com Carraher (1994), quatro procedimentos devem ser levados em consideração pelo psicólogo durante a aplicação do método clínico: • Acompanhar o raciocínio, não corrigir ou completar suas respostas de acordo com seu próprio raciocínio, não concluir pelo sujeito. • Buscar justificativas para respostas dadas, uma vez que o interesse principal do estudo da inteligência na teoria de Piaget está em compreender o processo pelo qual o sujeito chegou àquela resposta, as relações estabelecidas entre os fatos e a compreensão se a resposta foi dada com convicção ou ao acaso. • Verificar a certeza com que o sujeito responde, ou seja, se a resposta está inserida em um sistema dedutivo o sujeito responde com convicção, se a resposta é dada na ausência desse sistema, o sujeito a modifica toda vez que o examinador faz questionamentos. • Evitar ambiguidades nas respostas dadas pelo sujeito, não cabe ao psicólogo escolher qual dos possíveis significados foi aquele pretendido pelo sujeito. Outro aspecto fundamental na aplicação do método clínico piagetiano são os critérios de avaliação das respostas dadas pelo sujeito. Diferentemente da abordagem psicométrica, a avaliação das respostas não se faz pela contagem de acertos e erros, mas sim pela compreensão do raciocínio utilizado pelo sujeito para chegar àquela resposta, na compreensão da perspectiva a partir da qual o sujeito responde. Nesse sentido, o erro é tão importante, ou mais, que o acerto, uma vez que indica, para nós, o processo de pensamento ou raciocínio do sujeito durante o processo de construção de conhecimento. O erro no construtivismo é possível e necessário, pois faz parte de um processo interno, de uma autorregulação – para aprender, o sujeito precisa compreender e internalizar os fatos por oposição à simples cópia e repetição de modelos externos. Piaget propõe níveis de desenvolvimento ao avaliar as respostas dadas pelas crianças durante o método clínico: • Nível I: corresponde àquele em que a criança não resolve o problema, nem sequer o entende, ou então, responde erroneamente, mas com convicção. • Nível II: corresponde a conflito, ambivalência, dúvida, em que a criança oscila em suas respostas, apresentando flutuações. Percebe o erro somente depois de ter cometido, não sendo capaz de antecipá‑lo, por isso as ações da criança se baseiam em ensaio e erro, na tentativa, na solução empírica. • Nível III: corresponde àquele em que a criança apresenta uma solução suficiente à questão e a compreensão do problema como é colocado. Os erros podem ocorrer, mas o que muda é a maneira como o sujeito lida com eles: podem ser antecipados, neutralizados, pré‑corrigidos ou compensados. 88 Unidade III A questão fundamental que se coloca do ponto de vista psicológico e pedagógico é como podemos criar situações‑problema que possibilitem ao sujeito “transformar o erro em algo observável para si mesmo”, a ponto de que possa antecipá‑lo,neutralizá‑lo, corrigi‑lo ou compensá‑lo de maneira autônoma. 7.2 Fundamentos históricos e metodológicos Os estudos piagetianos sobre o conhecimento estão alicerçados em bases epistemológicas, mas diferentemente dos epistemólogos de sua época, que se baseavam na razão pura, Piaget se propõe a realizar uma verificação experimental, para a qual utilizou o método clínico com as adaptações que o objeto de estudo requeria (VISCA, 1997). Observação O método clínico não é uma criação piagetiana, como muitos pensam, na verdade nasceu no século V a.C. na Grécia, e desde seu nascimento até os dias atuais tem sido utilizado em diferentes estudos. O modelo piagetiano de investigação da inteligência é chamado de método clínico ou método crítico e se manteve constante durante todo o tempo em que foi utilizado por Piaget em suas investigações, embora tenham ocorrido certos aperfeiçoamentos. Vinh‑Bang (apud VISCA, 1997) apresenta quatro etapas de desenvolvimento no método clínico piagetiano: • 1ª etapa: elaboração do método (1920‑1930) – observação pura e método da conversação. • 2ª etapa: observação clínica (1930‑1940) – decorre da observação que Piaget faz de seus filhos no estádio sensório‑motor e início do pré‑operatório, indicando o valor da observação como método de investigação em crianças pré‑verbais. • 3ª etapa: formalização (1940‑1955) – método misto, porque renuncia ao método da conversação pura e simples para adotar o método crítico, em que utiliza as contra‑argumentações verbais e as deformações nos objetos apresentados à criança com a finalidade de investigar o pensamento lógico subjacente. • 4ª etapa: recentes (desde 1955) – o método clínico, que antes era utilizado apenas com interesse epistemológico, a partir desse momento passa a ser empregado com finalidade psicológica e psicopedagógica por uma equipe de especialistas de diferentes áreas em Genebra. Isso permitiu não um novo modo de interrogar, mas novos tipos de perguntas. 89 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Portanto, com a finalidade de descrever as habilidades intelectuais do indivíduo e compreender como o sujeito pensa e constrói o conhecimento, Piaget utilizou como estratégia de investigação o método clínico e procurou adequá‑lo à medida que o foi utilizando ao longo de seus estudos. O objetivo do método clínico piagetiano é compreender como o sujeito pensa, resolve situações‑problema e de que maneira responde às questões elaboradas. O enfoque está na compreensão de como e quando o sujeito utiliza determinado conhecimento e no processo que o leva a dar uma determinada resposta. Portanto, a resposta “errada” pode ser uma forma de raciocínio do sujeito em determinado momento de seu desenvolvimento, e isso deve estar bem claro para o adulto. Dessa forma, o método clínico de Piaget tem como pressuposto uma avaliação da inteligência a partir de uma abordagem psicogenética (avaliação dos processos de desenvolvimento da inteligência), que difere da maneira mais tradicional utilizada em psicologia, à abordagem psicométrica (avaliação ou quantificação das respostas corretas dadas pelo sujeito ao exame). Para melhor compreender a perspectiva piagetiana de avaliação da inteligência, apresentamos, a seguir, os principais aspectos de cada uma delas. 7.2.1 Abordagem psicométrica Alfred Binet nasceu em 8 de julho de 1857 (em Nice) e faleceu em 28 de outubro de 1911 em Paris. Psicólogo e pedagogo renomado, pelos estudos da inteligência pela psicometria, foi o primeiro a elaborar testes psicométricos para avaliação – o Quociente Intelectual (QI). O primeiro teste de inteligência, em uma perspectiva psicométrica, elaborado por Binet e seu colega, também francês, Theodore Simon (1872‑1961) foi em 1905. Esse teste, de caráter verbal e em grau crescente de dificuldade, visava obter a quantificação da inteligência por meio de uma escala, o quociente intelectual (QI) do indivíduo. Ao longo dos anos, surgiram outros testes na tentativa de aperfeiçoar os critérios de medição da inteligência. Em 1939, David Wechsler (1896‑1981), psicólogo americano, desenvolveu um dos mais importantes testes para avaliação clínica de capacidade intelectual: a Escala de Inteligência para Crianças (Wisc) e a Escala de Inteligência para Adultos (Wais). Lembrete Somente aos psicólogos é autorizada a utilização e aplicação dos testes psicométricos de inteligência. 90 Unidade III 7.2.2 Abordagem psicogenética O objetivo, na abordagem psicogenética, é investigar a forma como o sujeito pensa e resolve determinadas situações que lhe são apresentadas. O controle está no entendimento das respostas e instruções (controle psicológico), em vez da padronização das mesmas e das situações externas (controle fisicalista). O investigador, nessa perspectiva, está interessado em compreender o processo que leva um sujeito a esta ou àquela resposta. Para isso, deve ter amplo conhecimento da teoria piagetiana, que irá nortear as perguntas que serão feitas durante a aplicação das provas, bem como a maneira como serão avaliadas as respostas dadas pela criança. Assim, todas as respostas dadas pelo sujeito são interpretadas com a finalidade de entender o processo que as gerou, e as diferenças individuais não são avaliadas como indicadores de inteligência – como na abordagem psicométrica –, e sim como indicadores do estádio do desenvolvimento cognitivo em que o sujeito se encontra. Para aplicar o método clínico, Piaget utilizou entrevistas puramente verbais e também apresentou situações‑problema com materiais concretos, a fim de possibilitar ao sujeito a antecipação e a explicação, após determinada demonstração. Esse material Piaget chamou de provas operatórias, que vamos estudar ainda nesta unidade. 7.3 Procedimentos do experimentador O método clínico de Piaget consiste em uma técnica de entrevista com crianças, em que por meio de um conjunto de intervenções sistemáticas se faz uma investigação sobre o pensamento do sujeito. As perguntas abordam conceitos da física, da matemática, da moral, da natureza e de vários outros temas que compõem o conhecimento geral. Durante a entrevista, o experimentador elabora perguntas e contra‑argumentações a partir das respostas dadas pela criança e avalia sua qualidade e abrangência. Para isso, é esperado que o experimentador apresente duas qualidades: • saiba observar, permita que a criança fale e não desvie ou esgote nada; • saiba buscar algo de preciso, tenha a cada instante uma hipótese de trabalho, uma teoria, verdadeira ou falsa, para investigar. Piaget propõe, portanto, que os seguintes procedimentos devam ser levados em consideração pelo experimentador durante a aplicação do método clínico: • acompanhar o raciocínio, não corrigir ou completar suas respostas de acordo com seu próprio raciocínio, não concluir pelo sujeito; 91 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA • buscar justificativas para respostas dadas, uma vez que o interesse principal do estudo da inteligência na teoria de Piaget está em compreender o processo pelo qual o sujeito chegou àquela resposta, as relações estabelecidas entre os fatos e a compreensão se a resposta foi dada com convicção ou ao acaso; • verificar a certeza com que o sujeito responde, ou seja, se a resposta está inserida em um sistema dedutivo, se o sujeito responde com convicção, se a resposta é dada na ausência desse sistema, o sujeito a modifica toda vez que o examinador faz questionamentos; • evitar ambiguidades nas respostas dadas pelo sujeito, não cabe ao experimentador escolher qual dos possíveis significados foi aquele pretendido pelo sujeito. Para que esses procedimentos sejam concretizados, é necessário que o experimentador utilize três tipos de perguntas características no método clínico‑crítico: • Perguntas de exploração: o objetivo é fazer aflorar a noção cuja existência e estruturação se quer comprovar. • Perguntas de justificação: que centram o sujeito sobre as razões do estado atual do objeto e nas explicações concernentesa sua produção e à legitimação de seu ponto de vista. • Perguntas de contra‑argumentação: o objetivo é estabelecer se as aquisições da criança são ou não estáveis e qual o grau de equilíbrio de suas ações ante os problemas, bem como apreender sua atividade lógica profunda. A entrevista inicia à medida que o experimentador propõe uma tarefa à qual a criança apresentará uma resposta. Não há resposta certa ou errada, a intenção do experimentador é avaliar o nível de pensamento da criança, e sua atitude durante a aplicação deve ser flexível, possibilitando uma interação espontânea com a criança. Nesse sentido, o rapport é muito importante para deixá‑la à vontade durante as atividades. Lembrete Rapport é uma relação, especialmente única, de confiança mútua ou afinidade emocional. Criar o rapport pode ser entendido como o estabelecimento de confiança, harmonia e cooperação em uma relação. Assim que a criança dá uma resposta, o experimentador faz outras perguntas, colocando uma variação no problema, ou seja, criando uma nova situação‑problema. Para isso, utiliza sua experiência e o referencial teórico piagetiano. 92 Unidade III Sendo assim, as perguntas (exploração, justificação, contra‑argumentação) têm como objetivo esclarecer o que está implícito na resposta da criança e propiciar uma melhor compreensão de sua estrutura cognitiva (a maneira como o sujeito pensa e em qual estádio do desenvolvimento está incluído). Portanto, no método clínico piagetiano, não há como criar uma padronização das perguntas a serem feitas (como na abordagem psicométrica), pois o objetivo é seguir o pensamento da criança para onde quer que ele se dirija. Piaget salienta que somente após um ano de exercícios diários de estudo e aplicação das provas operatórias, fundamentados em uma base teórica sólida, é que irá permitir, ao entrevistador, a utilização do método clínico de maneira a propiciar uma compreensão sobre o pensamento do sujeito. Nas palavras de Piaget (2005, p. 11): O bom experimentador deve, efetivamente, reunir duas qualidades muitas vezes incompatíveis: saber observar, ou seja, deixar a criança falar, não desviar nada, não esgotar nada e, ao mesmo tempo, saber buscar algo de preciso, ter a cada instante uma hipótese de trabalho, uma teoria, verdadeira ou falsa, para controlar. É preciso ter‑se ensinado o método clínico para compreender a verdadeira dificuldade. Ou os alunos que se iniciam sugerem à criança tudo aquilo que desejam descobrir, ou não sugerem nada, pois não buscam nada e, portanto, também não encontram nada. 7.4 Respostas e reações dos sujeitos Outro aspecto fundamental na aplicação do método clínico piagetiano são os critérios para avaliação das respostas dadas pelo sujeito. Diferentemente da abordagem psicométrica, a avaliação das respostas não se faz pela contagem de acertos e erros, mas sim pela compreensão do raciocínio utilizado pelo sujeito para chegar àquela resposta, na compreensão da perspectiva a partir da qual o sujeito responde. Nesse sentido, o erro é tão importante, ou mais, que o acerto, uma vez que indica, para nós, o processo de pensamento ou raciocínio do sujeito durante o processo de construção de conhecimento. O erro no construtivismo é possível e necessário, pois faz parte de um processo interno, de uma autorregulação – para aprender, o sujeito precisa compreender e internalizar os fatos por oposição a simples cópia e repetição de modelos externos. Para a avaliação das respostas, deve‑se utilizar como critério os indicadores apresentados por Piaget em relação às estruturas de pensamento da criança em cada estádio do desenvolvimento cognitivo. Em outras palavras, por meio das provas operatórias, podemos conhecer o funcionamento das estruturas de pensamento do sujeito, suas funções lógicas e o nível cognitivo em que se encontra. 93 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Sendo assim, como apresentamos anteriormente, Piaget propõe níveis de desenvolvimento ao avaliar as respostas dadas pelas crianças durante o método clínico: • Nível I: corresponde àquele em que a criança não resolve o problema, nem sequer o entende, ou, então, responde erroneamente, mas com convicção. • Nível II: corresponde ao conflito, ambivalência, dúvida, em que a criança oscila em suas respostas, apresentando flutuações. Percebe o erro somente depois de o ter cometido, não sendo capaz de antecipá‑lo, por isso as ações da criança se baseiam em ensaio e erro, na tentativa, na solução empírica. • Nível III: corresponde àquele em que a criança apresenta uma solução suficiente à questão e à compreensão do problema como é colocado. Os erros podem ocorrer, mas o que muda é a maneira como sujeito lida com eles: podem ser antecipados, neutralizados, pré‑corrigidos ou compensados. A questão fundamental que se coloca do ponto de vista psicológico e pedagógico é como podemos criar situações‑problema que possibilitem ao sujeito transformar o erro em um observável para si mesmo, a ponto de que possa antecipá‑lo, neutralizá‑lo, corrigi‑lo ou compensá‑lo de maneira autônoma. Piaget observou que a criança pode apresentar cinco reações durante as respostas às provas operatórias, sendo duas delas manifestações de condutas significativas da aprendizagem e desenvolvimento da criança. As principais reações da criança durante o método clínico são as seguintes: • Não importismo: quando a pergunta aborrece a criança ou, de maneira geral, não provoca nenhum esforço de adaptação, a criança responde qualquer coisa e de qualquer forma, sem mesmo procurar divertir‑se ou construir um mito. • Fabulação: quando a criança, sem mais refletir, responde à pergunta inventando uma história em que não acredita, ou na qual crê, por simples exercício verbal. • Crença sugerida: quando a criança esforça‑se para responder a uma questão, sem que esta lhe seja sugestiva, ou quando busca simplesmente contentar o examinador, sem considerar sua própria reflexão. A pergunta não é da criança ou não lhe interessa, por isso responde na perspectiva do examinador e não na sua própria. • Crença desencadeada: quando a criança responde com reflexão, extraindo a resposta de seus próprios recursos, sem sugestão para ela, dizemos que há crença desencadeada. A crença desencadeada é influenciada necessariamente pelo interrogatório, pois a simples maneira como a questão é colocada e apresentada à criança força‑a a raciocinar em certa direção e a sistematizar seu saber de certo modo; mas ela é, contudo, um produto original do pensamento da criança, pois nem o raciocínio feito por ela para responder à questão nem o conjunto dos conhecimentos anteriores que utiliza durante sua reflexão são diretamente influenciados pelo experimentador. A crença desencadeada não é, portanto, nem espontânea nem propriamente sugerida: ela é 94 Unidade III produto de um raciocínio feito sob comando, mas por meio de materiais (conhecimentos da criança, imagens mentais, esquemas motores, pré‑ligações sincréticas etc.) e de instrumentos lógicos originais (estrutura de raciocínio, orientações do espírito, hábitos intelectuais etc.). • Crença espontânea: quando a criança não tem necessidade de raciocinar para responder à questão, mas pode dar uma resposta imediata à questão porque já formulada ou formulável, há a crença espontânea. Há, portanto, crença espontânea quando a questão não é nova para a criança e quando a resposta é fruto de uma reflexão anterior e original. Excluímos naturalmente desse tipo de reação, como de resto de cada uma das precedentes, as respostas influenciadas pelos ensinamentos recebidos anteriormente ao interrogatório. Há aí um problema distinto, e naturalmente muito complexo, que consiste em distinguir, nas respostas recebidas, o que provém da criança e o que foi inspirado pela companhia adulta. Concluindo, durante o método clínico, é objetivo do experimentador a presença de crenças desencadeadas, uma vez que é ele que apresenta as situações‑problema, observa e discute com acriança sobre suas hipóteses, favorecendo, assim, a construção do conhecimento e o consequente desenvolvimento das estruturas operatórias do pensamento. Da mesma forma, o professor que compreende o método clínico pode utilizá‑lo como estratégia metodológica construtivista em sua prática pedagógica ao planejar e ministrar suas aulas. São as crenças desencadeadas que mais desejamos em nossos alunos. 7.5 Provas operatórias Vamos, então, a seguir, apresentar algumas das provas operatórias estudadas por Piaget e descrevê‑las, em relação aos procedimentos de aplicação e avaliação. Quadro 9 Apresentação das provas operatórias piagetianas Prova 1 Conservação de pequenos conjuntos discretos de elementos Prova 2 Conservação da quantidade de matéria Prova 3 Conservação de quantidade de líquidos Prova 4 Conservação de comprimento 95 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Prova 1 - Conservação de pequenos conjuntos discretos de elementos A) B) Figura 19 ‑ A) Primeira modificação espacial; B) segunda modificação espacial Materiais: 9 fichas vermelhas e 9 fichas amarelas. Início da prova: o experimentador deve dispor sobre a mesa de 5 a 7 fichas vermelhas e solicitar à criança que coloque, de maneira equivalente, a mesma quantidade de fichas amarelas. Os elementos vermelhos e amarelos devem apresentar correspondência termo a termo, e o experimentador não deve continuar a prova até que a criança perceba que tem a mesma quantidade de fichas nas duas coleções (igualdade inicial). Primeira modificação: o experimentador espaça (ou une) as fichas vermelhas, de modo a formar uma linha mais comprida (ou mais curta) que as fichas amarelas, e pergunta: “Eu tenho mais, menos ou a mesma quantidade de fichas que você?”. Argumentação: onde tem mais? Onde tem menos? Por que tem a mesma quantidade? Como é que você sabe? Contra-argumentação: olha como esta linha é comprida, será que não tem mais fichas? (para resposta conservativa); você se lembra de que, antes, as duas fileiras tinham a mesma quantidade de fichas? (para resposta não conservativa). O experimentador faz a volta empírica (retorno das fichas ao início da prova), fazendo as perguntas sobre a igualdade das fichas em cada coleção. Segunda modificação: o experimentador coloca as fichas vermelhas em círculo sobre a mesa e pede à criança que coloque ao redor a mesma quantidade de fichas amarelas, e pergunta: “Eu tenho mais, menos ou a mesma quantidade de fichas que você?”. 96 Unidade III Argumentação: onde tem mais? Onde tem menos? Por que tem a mesma quantidade? Como é que você sabe? Contra-argumentação: se as fichas fossem balas e você comesse todas as suas e eu comesse todas as minhas, comeríamos a mesma quantidade ou um comeria mais e outro menos? Por quê? Outras perguntas: você não acha que estas fichas de dentro possuem menos quantidade que estas de fora? Explique por quê. Um menino de sua idade me disse que aqui (curta) tem menos, será que ele estava certo, ou não? (para resposta conservativa); você não acha que estas fichas de dentro e as de fora possuem a mesma quantidade? Explique por quê. (para resposta não conservativa). Nas observações feitas por Piaget, crianças de 4 a 5 anos apresentam julgamentos não conservativos; crianças a partir de 6 anos apresentam julgamentos estáveis de conservação que são justificados por identidade, reversibilidade e compensação. Observação De acordo com Piaget, as idades são apenas valores indicativos. Dependendo do contexto social e do sistema escolar da criança, poderá haver variações no que se refere às idades em que essas condutas são mais frequentes. Prova 2 – Conservação da quantidade de matéria Igualdade inicial Modificação do elemento experimental (achatamento) Modificação do elemento experimental (alargamento) Modificação do elemento experimental (partição) Figura 20 97 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Materiais: 2 bolas de massa de modelar de cores diferentes, com 4 cm de diâmetro cada. Início da prova: o experimentador pede à criança para igualar as duas bolas quanto à sua quantidade. “Tem a mesma quantidade de massa nas duas bolas?”. O experimentador não deve continuar a prova até que a criança perceba que tem a mesma quantidade de massa nas duas bolas (igualdade inicial). Primeira modificação: o experimentador deve transformar uma das bolas em uma salsicha (cerca de 12 cm) e perguntar: “E agora, tem a mesma quantidade de massa na bola e na salsicha?”. Argumentação: como é que você sabe? Pode me explicar? Contra-argumentação: mas a salsicha é mais larga, você não acha que tem mais quantidade de massa do que na bola? (para resposta conservativa); você se lembra que antes as duas bolas tinham a mesma quantidade? O que você acha agora? (para resposta não conservativa). O experimentador faz a volta empírica (retorno das bolas ao início da prova), fazendo as perguntas sobre a igualdade das mesmas. Segunda modificação: o experimentador transforma uma das bolas em bolacha (cerca de 7 cm de diâmetro) e procede como na primeira deformação, terminando o problema com a volta empírica. Terceira modificação: o experimentador fragmenta em migalhas uma das bolas (cerca de 8 a 10 pedaços) e procede como para as outras deformações. Nas observações feitas por Piaget, crianças de 5 a 6 anos apresentam julgamentos não conservativos; crianças a partir de 7 anos apresentam julgamentos estáveis de conservação que são justificados por identidade, reversibilidade e compensação. 98 Unidade III Prova 3 – Conservação de quantidade de líquidos A1 A2 B C D1 D2 D3 D4 Materiais A1 A2 Igualdade inicial Primeira modificação Segunda modificação Terceira modificação Figura 21 Materiais: 2 vasos iguais A1 e A2; 1 vaso mais fino e alto B; 1 vaso mais largo e baixo C; 4 vasinhos iguais D1, D2, D3, D4; 2 garrafas contendo líquidos de cores diferentes. Início da prova: o experimentador faz primeiro a criança constatar que os recipientes A1 e A2 são de dimensões idênticas (altura e diâmetro). E não deve continuar a prova até que a criança perceba que os dois vasos são iguais (igualdade inicial). Em seguida, pega uma das garrafas e despeja o líquido em A1 e pede à criança que pegue a outra garrafa e despeje a mesma quantidade em A2. Pergunta: “Se eu beber neste copo (A1) e você beber neste outro (A2), nós beberemos igual ou um beberá mais e o outro 99 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA menos? Por quê?”. Caso a criança diga que tem mais em um do que no outro, diga a ela que faça com que fiquem com a mesma quantidade. O experimentador não deve continuar a prova até que a criança perceba que os dois vasos são iguais (igualdade inicial). Primeiro transvasamento: o experimentador despeja o líquido de A2 em B e pergunta: “Será que agora nós temos a mesma quantidade ou um tem mais que o outro? Será que um tem muito e o outro pouco?”. Argumentação: como é que você sabe? Pode me explicar? Contra-argumentação: mas aqui (B) sobe mais, você não acha que tem mais para beber? (para resposta conservativa); mas antes não tinha a mesma quantidade? (para resposta não conservativa). O experimentador faz a volta empírica (retorno ao início da prova), fazendo as perguntas sobre a igualdade das mesmas. Segundo transvasamento: o experimentador despeja o líquido de A2 em C e pergunta: “Será que agora nós temos a mesma quantidade ou um tem mais que o outro? Será que um tem muito e o outro pouco?”. Argumentação: como é que você sabe? Pode me explicar? Contra-argumentação: mas aqui (C) está com nível do líquido mais baixo, você não acha que tem menos para beber? (para resposta conservativa); mas antes não tinha a mesma quantidade? (para resposta não conservativa). Terminar o problema com a volta empírica. Segundo transvasamento: o experimentador despeja o líquido de A2 em D1, D2, D3, D4 e procede como para os outros transvasamentos, insistindo sobre a comparação entre os quatro vidros e o vidro A. Nas observações feitas por Piaget, crianças de 5 a 6 anos apresentamjulgamentos não conservativos; crianças a partir de 7 anos apresentam julgamentos estáveis de conservação que são justificados por identidade, reversibilidade e compensação. 100 Unidade III Prova 4 – Conservação de comprimento Perguntas iniciais Primeira situação Segunda situação Figura 22 Materiais: dois fios flexíveis de comprimentos diferentes (10 cm e 15 cm). Início da prova: o experimentador inicia a prova dispondo sobre a mesa os dois fios e diz: “Vamos fazer de conta que estes fios são dois caminhos, este maior (A) é meu e este menor (B) é o seu. Façamos de conta que vamos caminhar por estes caminhos. Nós iremos caminhar igualmente ou um caminhará mais que o outro?”. A criança deve compreender a desigualdade dos fios e emitir o julgamento A > B. Primeira modificação: o experimentador deve diminuir o fio maior (A) para coincidir as extremidades com o menor (B) e perguntar: e agora? Eu vou andar mais, menos ou o mesmo tanto que você? Argumentação: como é que você sabe? Pode me explicar? Contra-argumentação: mas olhe, não estão do mesmo tamanho? Será que não vamos andar o mesmo tanto? (para resposta conservativa); mas você se lembra como estavam os fios antes? O que você acha agora? (para resposta não conservativa). Voltam‑se, então, os fios para a disposição inicial (volta empírica). Segunda modificação: o experimentador deve diminuir o fio maior (A), de modo que fique menor que o fio (B) e que haja entre os fios A e B uma diferença em uma das extremidades. Faz‑se, então, como na primeira situação, questões de comparação dos comprimentos de A e B e, na contra‑argumentação, conforme as respostas da criança. 101 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Nas observações feitas por Piaget, crianças de 6 a 7 anos apresentam julgamentos não conservativos; crianças a partir de 8 anos apresentam julgamentos estáveis de conservação que são justificados por identidade, reversibilidade e compensação. Exemplo de aplicação Convidamos você a pesquisar em sites na internet filmes que apresentam crianças sendo entrevistadas pelo método clínico piagetiano. Será uma ótima oportunidade para verificar os procedimentos utilizados pelo experimentador, os tipos de respostas e reações da criança, bem como conferir as características do desenvolvimento cognitivo infantil estudados nesta disciplina. 8 ESTÁDIOS DO DESENVOLVIMENTO MORAL 8.1 Afetividade e interação social em Piaget Embora não tão conhecidas, as ideias de Piaget sobre as relações entre afetividade e inteligência são muito úteis e atuais, pois falam de uma interdependência entre elas, de uma relação íntima e inseparável. O livro Seis estudos de psicologia (PIAGET, 2003) tem em sua primeira parte uma síntese, feita pelo próprio autor, sobre a evolução da inteligência, da afetividade e da vida social. Com base nele, iremos apresentar a seguir as principais ideias desse autor sobre o assunto. Ele afirma que existe um paralelo constante entre a vida afetiva e intelectual e que afetividade e inteligência são aspectos indissociáveis e complementares de toda conduta humana. Piaget vai insistir que, em toda e qualquer conduta, nós temos os instrumentos ou a técnica (os movimentos e a inteligência) e ela implica modificações e valores finais, o valor dos fins (os sentimentos), ou seja, o dinamismo energético. Dessa forma, ele considera que não há ação puramente intelectual, nem atos puramente afetivos. A seguir, apresentamos uma síntese das principais características e construções afetivas nos estádios de desenvolvimento de Piaget. 8.1.1 Período de 0 a 2 anos, que corresponde ao período sensório-motor No início da vida, o bebê vive um primeiro momento dominado pela presença das técnicas reflexas, ou seja, de impulsos instintivos elementares, ligados, por exemplo, à alimentação e às emoções primárias (espécies de reflexos afetivos), próximas ao sistema fisiológico (por exemplo, o medo ligado à perda de equilíbrio e mudanças bruscas). 102 Unidade III Figura 23 Disponível em: https://bit.ly/3s2cZ7q. Acesso em: 5 jul. 2021. Progressivamente, o bebê desenvolverá suas percepções e criará os primeiros hábitos e começará a vivenciar uma série de sentimentos elementares ou afetos perceptivos ligados às modalidades da sua própria atividade: como sentimentos de agradável/desagradável; de prazer/dor; e os primeiros sentimentos de sucesso e fracasso. Nessa fase, ele ainda não possui consciência de si, de suas ações e, menos ainda, desses primeiros sentimentos. À medida que ele começa a identificar os objetos (diferenciando‑se deles), os sentimentos ligados à própria atividade multiplicam‑se e diferenciam‑se: alegrias ou tristezas ligadas a sucessos e fracassos, esforço e interesse e fadiga e desinteresse. Aqui surgem os afetos intencionais, que envolvem essas regulações elementares do sujeito, que podem ser positivas (ligadas ao esforço para persistir numa atividade) ou negativas (sentimentos de fadiga ou desinteresse que levam à interrupção da ação). Já próximo dos 18 aos 24 meses, originam‑se os primeiros sentimentos interindividuais, na medida em que começa a diferenciar as pessoas. Começam a se firmar, então, as primeiras simpatias e antipatias, que serão típicas do próximo período. Observação Você já reparou na alegria do bebê quando consegue realizar uma ação em que estava concentrado, como encaixar uma tampa num pote? São sentimentos de sucesso de que fala Piaget. 8.1.2 Período de 2 a 7 anos, que corresponde ao Período pré-operatório Nessa fase, conhecida como primeira infância, uma grande evolução da afetividade consiste nos afetos intuitivos e ocorrerá baseada em três novidades afetivas essenciais: 103 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA • Consolidação dos sentimentos interindividuais (afeições, simpatias e antipatias) ligados à socialização das ações. Tais sentimentos espontâneos entre as pessoas nascem de uma troca, cada vez mais rica, de valores (assim como por meio da linguagem se dá uma troca de signos verbais). Ambas se desenvolvem ligadas à presença (ou ausência) de valorização mútua e de uma escala de valores comuns. • Aparição de sentimentos normativos (relação adulto‑criança). Aqui o foco incide sobre o sentimento de respeito unilateral, reservado a pessoas mais velhas e/ou consideradas superiores a si. Tal sentimento consiste numa combinação de afeição e temor, e das ordens e avisos dados por alguém respeitado irá se originar o sentimento de dever. Tais sentimentos já possuem valores normativos (envolvendo regras e noções de certo e errado), pois não são mais determinados por regulações espontâneas, como eram as simpatias. É importante frisar que esses primeiros sentimentos morais permanecem intuitivos, ligados a uma moral heterônoma. • Regularizações de valores e interesses (ligadas ao pensamento intuitivo em geral). O interesse é o prolongamento da necessidade, ou seja, é a orientação própria a todo ato de assimilação mental, o que vincula o sujeito ao objeto de seu conhecimento. Ele possui duas funções: de regulador de energia, mobilizando as reservas internas de força (o que mantém uma criança interessada numa brincadeira, por exemplo), e de formador de um sistema de valores (“interesses”), quando percebemos a escolha individual de cada atividade de maior interesse. À medida que a criança tem sucesso, ou não, frente a uma atividade, ela constrói e alimenta uma escala de valores que envolve juízos sobre si mesma (de superioridade e inferioridade, mas, muitas vezes, ligados a fracassos imaginários). Figura 24 Disponível em: https://bit.ly/3rlA8SY. Acesso em: 5 jul. 2021. 104 Unidade III Lembrete Aqui é importante perceber como nos sentimentos de inferioridade e superioridade, o aspecto intelectual está interligado ao afetivo, ao incluir um julgamento e uma escala de valores. 8.1.3 Período dos 7 aos 12 anos, que corresponde ao período operatório concreto Esse período se concentra na consolidação dos afetos normativos, que correspondema dois elementos centrais: a vontade e o respeito mútuo. Nessa fase, a criança torna‑se capaz de tomar decisões com base na vontade, ou na força de vontade, o que para Piaget corresponde ao verdadeiro equivalente afetivo das operações da razão. Ela se torna necessária quando há conflito entre tendências, consistindo o ato de vontade em fazer triunfar uma tendência superior e fraca sobre outra, inferior e forte, por exemplo, se uma criança está com vontade de jogar bola com os colegas, mas precisa estudar para uma prova. Jogar bola consiste em uma tendência inferior e forte (pois envolve uma satisfação mais imediata e com menor esforço), enquanto estudar para a prova é superior e fraca, pois envolve ganhos mais importantes, ainda que mais distantes no tempo e, portanto, mais fracos. A criança precisará, por meio de sua vontade, abrir mão da primeira tendência em favor de outra. Nas palavras do autor: “Mas a vontade não é, de nenhum modo, a própria energia a serviço desta ou daquela tendência. É uma regulação da energia, o que é bem diferente, e uma regulação que favorece certas tendências em favor de outras” (PIAGET, 2003, p. 56). O sentimento do respeito mútuo irá tomar o lugar do respeito antes vivido unilateralmente, e ele surge em função da cooperação das crianças, quando elas se atribuem um valor pessoal equivalente, não se limitando a valorizar a uma ou outra ação específica. Paralelamente, ocorre a passagem de uma ideia de regras eternas e mágicas, à noção de regras como fruto de vontades comuns e acordos: os contratos entre jogadores. Com isso, a criança irá tornar‑se capaz, progressivamente, de assumir um comprometimento autônomo frente às regras e desenvolverá sentimentos mais abstratos, como de honestidade, companheirismo, justiça, solidariedade. O respeito mútuo conduz, portanto, a uma organização nova de valores morais (por isso é considerado um afeto normativo), fortalecendo a reciprocidade, a autonomia e a cooperação como uma forma de equilíbrio superior à moral da simples submissão (fundada em sentimentos morais “intuitivos” ou seminormativos, relativos ao período anterior). Lembrete O respeito mútuo é considerado um afeto normativo, pois implica que o indivíduo estabeleça uma correlação entre seus sentimentos, sua conduta e sua reflexão sobre ela (aspectos afetivos e intelectuais). 105 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA 8.1.4 Período da adolescência, a partir dos 12 anos, que corresponde ao período operatório formal A partir da adolescência, as construções anteriores se fortalecerão, ganhando em extensão (aplicando‑se a contextos os mais variados) e profundidade (argumentação, justificativas). Ou seja, Piaget defende que, com as conquistas típicas da adolescência, baseadas no pensamento hipotético‑dedutivo e formal, cada vez mais o indivíduo será capaz de refletir, ponderar, julgar situações de forma mais complexa e profunda. Isso, no entanto, não se dará de uma hora para outra, mas se estenderá por toda a juventude e vida adulta. E aqui o papel das relações sociais e interpessoais será de extrema relevância, no sentido de permitir e incentivar esse desenvolvimento ou, por outro lado, de dificultar ou mesmo impedi‑lo. Quando tratarmos, ao final desta unidade, do período da adolescência, retomaremos com mais detalhe essas questões. Por hora, vamos destacar três afirmações de Piaget que sintetizam como ele vê as relações, tão íntimas e indissociáveis, entre o desenvolvimento da afetividade e da cognição. Vimos como estas construções sucessivas consistem em descentralização do ponto de vista, imediato e egocêntrico, para situá‑lo em coordenação mais ampla de relações e noções, de maneira que cada novo agrupamento terminal integre a atividade própria, adaptando‑a a uma realidade mais global. Paralelamente a esta elaboração intelectual, viu‑se a afetividade libertar‑se pouco a pouco do eu para submeter‑se, graças à reciprocidade e à coordenação dos valores, às leis da cooperação. É a afetividade que atribui valor às atividades e lhes regula a energia. Mas a afetividade não é nada sem a inteligência, que lhe fornece meios e esclarece fins. Na realidade, a tendência mais profunda de toda a atividade humana é a marcha para o equilíbrio. E a razão – que exprime as formas superiores deste equilíbrio – reúne nela a inteligência e a afetividade (PIAGET, 2003, p. 64‑65). Você deve ter notado que o papel das outras pessoas é crucial para o desenvolvimento e o exercício da nossa afetividade, pois, para Piaget, os afetos dirigem‑se tanto aos objetos (como vimos no caso do interesse) como às pessoas (exemplificado nas simpatias e no respeito). Vamos, agora, aprofundar‑nos um pouco mais na importância das interações sociais para esse autor, adiantando que muitas vezes, e como veremos de forma injusta e equivocada, seus leitores desconsideram esse lado de sua obra, afirmando que ele somente se preocupou com a dimensão individual do desenvolvimento humano. Como dissemos, a teoria de Piaget é interacionista, isto é, fala de um sujeito que conhece (sujeito epistêmico) mediado por constantes trocas com a realidade e, ao interagir com ela, torna‑se capaz de conhecer cada vez mais e melhor. Vejamos como Lino de Macedo esclarece o sentido desse interacionismo e como já aponta para a complementaridade com o mundo externo, que se forma por objetos e pessoas. 106 Unidade III O que significa interação? Por que uma teoria é interacionista? No caso da teoria de Piaget, isso decorre de sua visão de que conhecimento e vida só se realizam na dialética de suas conservações e transformações, em contextos de troca, em que elementos do “exterior” e do “interior” complementarmente são necessários ao sujeito que conhece e vive (MACEDO, 2009, p. 46). É importante sabermos que o próprio Piaget afirma que as interações sociais desempenham um papel cada vez maior no curso do desenvolvimento humano. Para começar, ele inclui dentre os quatro fatores necessários ao desenvolvimento justamente as interações sociais, e os outros três são: a maturação (os elementos endógenos do organismo), a experiência (a ação ativa e real sobre objetos e situações) e a equilibração (que, como vimos, trata das organizações e reorganizações do conhecimento pelo sistema cognitivo do sujeito). Em um texto direcionado ao exame mais amplo acerca de questões sociais e políticas, intitulado Para onde vai a educação? (PIAGET, 1998), como o direito a uma educação pautada em princípios democráticos, ele sublinha essa questão num trecho que trazemos para você a seguir: O desenvolvimento do ser humano está subordinado a dois grupos de fatores: os fatores de hereditariedade e adaptação biológicas, dos quais depende a evolução do sistema nervoso e dos mecanismos psíquicos elementares, e os fatores de transmissão ou de interação sociais, que intervêm desde o berço e desempenham um papel de progressiva importância, durante todo o crescimento, na constituição dos comportamentos e da vida mental. Falar de um direito à educação é, pois, em primeiro lugar, reconhecer o papel indispensável dos fatores sociais na própria formação do indivíduo (PIAGET, 1998, p. 29, grifos nossos). Sem definir estádios específicos ao tema das interações sociais, mesmo assim é possível destacar momentos sucessivos e interdependentes nesse campo, num percurso que caminha do egocentrismo a uma progressiva descentração e diferenciação em relação ao outro. Vejamos alguns pontos principais desse trajeto, enfocando a dimensão interpessoal. Nos primeiros anos, a inteligência é essencialmente individual, o sujeito – a criança – age centrado, preso, à atividade própria. Vive, ao mesmo tempo, numa fusão ou indiferenciação em relação à realidade (tanto física como social), incapaz de perceber tanto a si mesmo como ao outro. Observa Piaget (1975, p. 368, grifos nossos): “a idade em que a criança é mais egocêntrica é também aquela em que ela mais imita, sendo o egocentrismo a indiferenciação do eu e do grupoou a confusão do ponto de vista próprio com o dos outros”. É interessante ele afirmar que, embora a criança imite cada vez mais o outro (e podemos lembrar, por exemplo, a alegria do bebê imitando as feições e os gestos dos adultos, como mostrar a língua e dar tchau), isso não significa que tenha consciência disso, pois ela vive essa indiferenciação frente ao outro; ainda não se constituiu como individualidade (nem possui aparato cognitivo para isso!) À medida que cresce e se desenvolve, a criança começará a perceber a si mesma e aos outros, o que veremos na linguagem (no uso dos pronomes “eu”, “meu”), nas brincadeiras (começando a interagir 107 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA e “brincar” junto de fato) e no pensamento (sendo capaz de expressar suas ideias próprias de forma descolada dos outros). O desenvolvimento cognitivo e afetivo tem como um de seus pilares, certamente, as interações sociais. No caso do desenvolvimento da moralidade, da noção de certo e errado, dos valores e dos juízos, ocorre algo semelhante. No começo, a criança, ou o bebê, não tem noção nenhuma das regras (vive uma condição chamada de anomia): as regras são exercidas e resguardadas pelos adultos que a cerca. Por exemplo, cuidando para não expô‑la a objetos e situações perigosas ou inadequadas. À medida que progride no lento processo de se diferenciar dos outros nas ações, nos afetos e no pensamento, a criança começará a julgar e agir de forma moral, embora, inicialmente, o faça de modo dependente dos adultos. Ou seja, ele exercerá uma moral heterônoma, vinda de fora de sua consciência, à qual ela se submeterá por amor ou temor pelas pessoas significativas (como pais, professores, irmãos mais velhos). Essa fase é vital e delicada, pois, por conta dessa dependência e submissão aos outros, ela se torna vulnerável ao ambiente e, como sabemos, poderá inclusive vivenciar situações não saudáveis. Estamos nos referindo, por exemplo, às diversas situações de abuso que, infelizmente, acompanhamos pela mídia. Prosseguindo no seu desenvolvimento, o pensamento da criança dará um passo decisivo e sem volta: que será a capacidade de analisar as situações com base na reversibilidade e na reciprocidade. O que isso quer dizer? Ao mesmo tempo em que ela precisará apoiar‑se na lógica, na coerência, para poder continuar se desenvolvendo cognitivamente (e aqui mais uma vez o papel do ambiente será central), viverá a mesma necessidade de substituir sua visão heterônoma por uma postura autônoma: própria, pessoal, que considere a si e aos outros simultaneamente. É interessante, mais uma vez, destacar o papel do grupo ao pressionar a criança nessa direção. Imaginemos a seguinte cena: uma criança vê uma mochila igual à sua (mas que é do colega) e a pega para si. Quando o colega chega, ela se recusa a devolver, pois para ela a mochila com aquele desenho “só pode ser a sua”, ela não reconhece que pode haver outra igual que não seja a sua (não consegue diferenciar). Quando o colega ou a professora a questiona, trazendo‑lhe a sua verdadeira mochila, ela vai sendo impulsionada a construir a reversibilidade (o que só ocorrerá de forma mais consolidada após os 7 anos, em média). Tanto a lógica do pensamento como a moralidade se baseiam na necessidade que o ser humano tem de construir e seguir regras: tanto para seu desenvolvimento individual como para o da própria comunidade e sociedade em que vive. Isto é, da mesma forma que o sistema cognitivo, as relações sociais carecerão, para se sustentarem, de mecanismos de regulação, como a construção de regras e sentimentos morais. Logo, a regra outra coisa não é que a condição da existência do grupo social, e, se aparece como obrigatória à consciência, é porque a vida comum transforma essa consciência em sua própria estrutura, inculcando‑lhe o sentimento de respeito (PIAGET, 1994, p. 87). 108 Unidade III Portanto, a vivência do indivíduo num grupo social, o qual segue determinadas regras, vai impulsionar uma mudança qualitativa tanto no pensamento como nas relações da criança com os outros. As relações mais dependentes e unilaterais da primeira infância serão substituídas por relações mais igualitárias e fundadas nos sentimentos de autonomia e cooperação: palavras‑chave no repertório piagetiano. Você já pode antever, aluno, a importância da escola para Piaget, pois o tipo de ambiente, de relações, que ela oferece às crianças estará diretamente relacionado ao modo como elas construirão, ou não, essas qualidades. Antes de tratarmos do tema escola, finalizemos com mais algumas palavras do próprio Piaget sobre essa dimensão social do desenvolvimento humano, extraídas do livro O juízo moral na criança. Agora, conforme a cooperação substitui a coação, a criança dissocia seu eu do pensamento do outro. Com efeito, quanto mais cresce, menos sofre o prestígio do mais velho, mais discute de igual para igual e mais oportunidade tem de livremente opor, além da obediência, da sugestão ou do negativismo, seu ponto de vista ao ponto de vista de qualquer outro: desde então, não só descobre a fronteira entre o eu e o outro, como aprende a compreender o outro e a se fazer compreender por ele. Logo, cooperação é fator de personalidade, se entendermos por personalidade não o eu inconsciente do egocentrismo infantil, nem o eu anárquico do egoísmo em geral, mas o eu que se situa e se submete, para se fazer respeitar, às normas da reciprocidade e da discussão objetiva (PIAGET, 1994, p. 82). Saiba mais Você vê como é central o papel da afetividade e das interações sociais na teoria do desenvolvimento de Piaget? Você já tinha essa ideia? Para aprofundar mais seus estudos sobre esse tema, indicamos o artigo a seguir: LA TAILLE, Y. de. Desenvolvimento do juízo moral e afetividade na teoria de Jean Piaget. In: LA TAILLE, Y. de; OLIVEIRA, M. K.; DANTAS, H. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992. 8.2 Anomia, heteronomia, semiautonomia, autonomia moral Jean Piaget investigou a maneira como a criança constrói o significado da regra e, para isso, criou vários dilemas que, em formato de histórias, possibilitavam à criança julgar quem errou e, dessa forma, compreender o pensamento do sujeito em relação ao desenvolvimento do julgamento moral. 109 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Exemplo de dilema moral elaborado por Piaget (1932/1994) • Um menino, que se chama Jean, está em seu quarto. É chamado para jantar. Entra na sala para comer. Mas atrás da porta há uma cadeira. Sobre a cadeira há uma bandeja com 15 xícaras. Jean não pode saber que há tudo isso atrás da porta. Entra: a porta bate na bandeja, e, bumba!, as 15 xícaras se quebram. • Era uma vez um menino chamado Henri. Um dia em que sua mãe estava ausente, foi pegar doces no armário. Subiu numa cadeira e estendeu o braço. Mas os doces estavam muito no alto e ele não pode alcançá‑los para comer. Entretanto, tentando apanhá‑los, esbarrou numa xícara. A xícara caiu e se quebrou. Ao perguntar para várias crianças se um sujeito errou mais do que o outro, até por volta dos 7 anos, elas irão dizer que quem quebrou mais xícaras – Jean – foi quem errou mais, julgando o erro (ou a regra que define o que é errado) pela quantidade do dano material. Esse tipo de argumento se baseia na responsabilidade objetiva, ou seja, na análise dos aspectos objetivos da situação (no caso, a quantidade de xícaras quebradas). As crianças, a partir dos 8/9 anos, irão julgar o erro/a regra pela intencionalidade do sujeito ao cometer determinado ato. No caso, a segunda criança (Henri) estaria mais errada, pois demonstrou a intenção de desobedecer à mãe, ainda que o dano material (quantidade de xícaras) tenha sido bem menor. A partir dessa idade, as crianças serão capazes de analisar que, no primeiro caso, embora tenham sido quebradas mais xícaras, não houve uma má intenção na ação do sujeito, o prejuízo ocorreu sem intenção (“sem querer”). Os dilemas morais apresentam temascomuns na infância (dano material, mentira, roubo) e permitem compreender de que maneira ocorre o desenvolvimento na construção da regra pela criança, o que estará diretamente ligado à capacidade de a criança participar dos jogos de regras, aceitando e submetendo‑se a elas. De acordo com Piaget, o desenvolvimento moral ocorre em quatro períodos: Quadro 10 - Estádios do desenvolvimento moral Estádio do desenvolvimento moral Faixa etária Características 1. Anomia 0 a 2 anos Não há consciência da regra 2. Heteronomia 2 a 6 anos Há consciência da regra: a criança é heterônoma, mas governada por outrem 3. Semiautonomia 7 a 11 anos Início da autonomia moral: a criança ainda depende das regras do meio para se organizar 4. Autonomia 12 a 15 anos Construção da autonomia moral Para que haja o desenvolvimento de uma moralidade de autonomia, é necessário que a criança desenvolva‑se em um ambiente onde as regras possam ser construídas e internalizadas de maneira 110 Unidade III significativa pelo sujeito. Um ambiente permeado pela moralidade da heteronomia moral fará com que o sujeito continue heterônomo na fase adulta. • Moralidade heterônoma: o sujeito obedece cegamente à regra, ou então, não a cumpre e calcula o risco para não ser pego. Pode levar também à delinquência. • Respeito unilateral: um manda e o outro obedece, respeito pelo medo da dor física e dor moral. • Moralidade autônoma: obedece à regra, adéqua à regra as suas necessidades sem modificá‑la, assume a responsabilidade de suas escolhas – se escolher não cumprir a regra assumirá as consequências não se esquivando ou culpando ao outro. • Respeito mútuo: respeito por cooperação, as regras são obedecidas por ambos, pois há a compreensão de seu significado na relação. De acordo com Piaget, o desenvolvimento moral ocorre em quatro períodos, embora ele sublinhe que o último deles (autonomia) nunca se constituirá de forma plena e eventuais retrocessos à condição anterior, de heteronomia, podem ocorrer. Já tratamos desse tema ao longo deste livro‑texto, mas faremos uma breve retomada, por que ele se vincula diretamente à possibilidade de realização dos jogos de regras. Anomia (0 a 2 anos) Não existe consciência da regra pela criança. Existe a repetição e a formação de hábitos, que servirão de base para a compreensão e o exercício futuro das regras. Obviamente, as regras fazem parte da vida da criança/bebê de maneira indireta, pois elas são observadas e seguidas pelos adultos que cuidam dela. Heteronomia (2 a 6 anos) Aqui, já começa a existir consciência da regra, embora a criança seja governada pelo outro, por uma autoridade externa. Assim, ela vive uma condição de respeito unilateral: um manda e o outro obedece, e esse respeito se baseia no medo da dor física e dor moral (perder o amor do outro, a quem se admira, por exemplo). Nessa fase heterônoma, a criança obedece cegamente à regra, ou, então, não cumpre a regra e calcula o risco para não ser pego não a descumprindo. Permanecer nessa postura pode levar a comportamentos de delinquência, em que não são considerados os valores morais envolvidos nos atos praticados, mas apenas os modos de se fugir ou driblar a punição (enganar os outros). Semiautonomia (7 a 11 anos) Início da autonomia moral, mas a criança ainda depende das regras do meio para organizar‑se, já aparecem características de autonomia, mas são mais instáveis e frágeis. 111 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Autonomia (12 a 15 anos) Construção da autonomia moral: o indivíduo obedece à regra, busca formas de adequá‑la às suas necessidades sem modificá‑la, ou ele próprio flexibiliza seus interesses, pois valoriza a adesão e o sentido das regras para as relações humanas. Por ser capaz de avaliar as situações (com base no pensamento operatório formal), a criança/adolescente assume a responsabilidade de suas escolhas: se escolher não cumprir a regra, assumirá as consequências não se esquivando ou culpando ao outro. Uma mudança central será na qualidade das relações de respeito, que se baseiam no respeito mútuo (reciprocidade): respeito por cooperação, as regras são obedecidas por ambos, pois há a compreensão de seu significado na relação. Aqui é interessante destacar que as regras não são mais consideradas sagradas ou imutáveis (o que víamos na heteronomia), mas são fruto de consensos, de modo que podem ser modificadas mediante acordos entre as partes (o que fica muito evidente nos grupos de crianças dessa idade, que modificam regras dos jogos e criam variações). Para que haja o desenvolvimento de uma moralidade autônoma, é necessário que a criança se desenvolva em um ambiente em que as regras possam ser construídas e internalizadas de maneira significativa pelo sujeito. Um ambiente permeado pela moralidade da heteronomia moral fará com que o sujeito continue heterônomo na fase adulta. Os jogos de regras constituem, assim, importantes situações em que as crianças e adolescentes experimentam essas diferentes relações com as regras, assumindo progressivamente uma postura mais autônoma e, portanto, responsável. 8.3 O jogo em uma em perspectiva psicogenética Antes de começarmos este item, convidamos você a refletir sobre algumas questões: qual o sentido dos jogos para as crianças? E para você? Qual a relação que eles possuem com o desenvolvimento humano? Eles “servem” apenas para distrair e desenvolver habilidades sensoriais e motoras ou têm outra função? Todos nós, ao menos enquanto éramos crianças, jogamos. Brincar de casinha, jogar bola, brincar de esconde‑esconde, de carrinho, jogar peteca, bola de gude, xadrez… São infinitas as possibilidades, tanto nas formas mais solitárias (pular corda, por exemplo) como nas mais coletivas (futebol, basquete etc.). Vivemos momentos de alegria, euforia e até “suamos a camisa”, sentimo‑nos frustrados quando errávamos, ou invejávamos a habilidade maior de algum colega… Enfim, jogar faz parte da vida de todos e, mesmo em condições econômicas mais precárias, sempre as crianças acham uma forma de se divertir, brincando e jogando (aqui, infelizmente, não podemos deixar de comentar as crianças que observamos nas ruas das cidades grandes, que mesmo demonstrando falta de higiene e alimentação adequadas, jogam entre si e brincam com papéis, com pedaços de madeira, com galhos de árvores pegados nos jardins públicos etc.). Todos, enfim, jogamos, ainda que muitos de nós nunca tenhamos parado para refletir sobre a importância do jogo na nossa vida: seja quando ainda éramos crianças, seja nas fases seguintes. Pois bem, perguntas semelhantes a essas foram feitas pelo próprio Piaget. Como seu interesse maior de pesquisa sempre foi compreender como pensavam as crianças, como interagiam com seu próprio 112 Unidade III conhecimento e como este evoluía ao longo dos anos até a idade adulta, ele logo observou que o jogar era uma atividade ímpar no sentido de conhecer o universo infantil. E como sua perspectiva epistemológica é psicogenética, foi esse mesmo ponto de vista que utilizou para estudar esse assunto: ou seja, ele tem um olhar evolutivo e dinâmico para o jogo na vida infantil. Piaget possui três livros principais em que tratou diretamente do tema jogo e, analisando cada um, iremos compreender as três razões desse seu interesse. Seguindo a ordem cronológica como foram escritos, examinemos esses três textos. O juízo moral na criança (1932) – desenvolvimento moral Para Piaget, o jogo tem importância fundamental na construção das regras pela criança, pois permite ao sujeito a descentralização, essencial à autonomia. E esse é o tema central desse livro, bastante original na época, pois, além de estudar a gênese da moralidade na criança, estudou esse tema indo a campo, entrevistando e observando como as crianças jogavam. Nele, Piaget apresenta inúmeros exemplos que fundamentam um dos princípios da sua teoria: que a ação precede a tomada de consciência dessa ação pelo sujeito. Isso nos jogos fica bastante evidente: aprendera jogar um jogo não depende de que antes você saiba como jogar, ao contrário, aprende‑se jogando! E, mesmo assim, nem sempre tomamos consciência de como são nossas estratégias no jogo, mesmo quando já jogamos suficientemente bem. Piaget e seus colaboradores realizaram inúmeras entrevistas com crianças de diferentes idades, especialmente sobre o jogo de bola de gude – bastante popular naquela época, na sociedade em que Piaget vivia (Genebra, na Suíça). Ele vai demonstrar que a prática das regras dos jogos evolui em ritmo diferente da consciência dessas mesmas regras. Mais adiante, quando tratarmos do tema “jogo de regras”, examinaremos melhor como ocorrem essas evoluções e como elas se relacionam diretamente com a evolução das ações e dos valores e juízos (julgamentos) morais das crianças, lembrando que, como já comentamos anteriormente neste livro‑texto, a direção do desenvolvimento humano, para Piaget, se dá do egocentrismo para a descentração. Por fim, é importante você saber que nesse mesmo livro, vinculado à questão da evolução da relação com as regras e normas (dos jogos e, por extensão, as regras sociais), Piaget também tratou de temas como a mentira e a noção de justiça. Observação Piaget discorda que a moralidade é aprendida pela pressão externa do ambiente sociocultural, mas defende um olhar interacionista e de construção dessa moralidade, com base na ação e na experiência. 113 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA A formação do símbolo na criança (1945) – desenvolvimento cognitivo Esse livro trata de uma época fundamental do desenvolvimento infantil: o estádio pré‑operatório, em que a criança começará a fazer diferentes usos da capacidade de representação, liberando‑se do egocentrismo prático do estádio anterior. O enfoque, portanto, será cognitivo e não sociomoral como no livro anterior. Vejamos como o próprio autor fala disso: No terreno do jogo e da imitação, pode‑se acompanhar de maneira contínua a passagem da assimilação e da acomodação sensório‑motoras – os dois processos que nos pareceram essenciais na constituição das formas primitivas e pré‑verbais da inteligência – para a assimilação e acomodação mentais que caracterizam os inícios da representação (PIAGET, 1990, p. 11). Na parte dedicada ao jogo, Piaget fará um exame detalhado e com muitas ilustrações de situações práticas da evolução do jogo, desde as primeiras semanas de vida, na condição de bebê, com uma ênfase claramente motora, até a adolescência, com jogos de nível mais abstrato e coletivo. Esse será o tema que estudaremos nas próximas partes desta unidade, que corresponde às quatro estruturas dos jogos analisadas pelo autor: jogo de exercício, jogo simbólico, jogo de construção e jogo de regras. As formas elementares da dialética (1980) – dialética e equilibração Nesse terceiro livro, escrito já no final da vida de Piaget, encontramos em cada capítulo análises empíricas de jogos específicos (como jogo de xadrez simplificado e jogo das boas perguntas), mas com o enfoque comum: ilustrar o trabalho dinâmico e dialético da nossa inteligência, ou seja, detalhar como se dá o mecanismo de equilibração cognitiva. Entre os três livros comentados, esse talvez seja o mais complexo, pois se fundamenta em toda a obra do autor e numa análise cognitiva mais profunda. Ele tem inspirado muitas pesquisas na área da Psicologia do Desenvolvimento e da Educação. Dentre eles, podemos destacar um livro, organizado pelo professor Lino de Macedo, Jogo, psicologia e educação: teoria e pesquisas (2009). Nele, você encontra relatos de diferentes pesquisas, muitas delas realizadas em contexto educacional, diretamente com alunos ou mesmo com professores, e que propõem reflexões e mesmo atividades práticas úteis ao cotidiano docente. Segundo Lino de Macedo, que faz a apresentação desse livro, Piaget destaca a principal função dos jogos, qual seja, a de “serem veículo para processos de desenvolvimento e de solicitarem, por sua estrutura e conteúdo, uma qualidade de interação de natureza construtiva, ou seja, que supõe formas de interdependência relacional ou dialética” (PIAGET, 1996, p. 7). Mas o que isso quer dizer para nós, num contexto de formação em pedagogia? Que observar os jogos entre crianças e, mais que isso, propô‑los intencionalmente a elas – trata‑se de uma forma de intervenção que promove o seu desenvolvimento, pois os jogos “pedem” um aperfeiçoamento constante do jogador, além de sua atenção, envolvimento, tomada de decisão e tantas outras habilidades cognitivas, afetivas e sociais tão fundamentais. 114 Unidade III Como vimos, Piaget apresenta em seus estudos três grandes tipos de estruturas que caracterizam os jogos infantis, acrescentando uma quarta – os jogos de construção: • jogo de exercício: estádio sensório‑motor (0‑2 anos); • jogo simbólico: estádio pré‑operatório (2‑6 anos); • jogos de construção: transição; • jogo de regra: estádio operatório (7‑15 anos). Lembrete As estruturas lúdicas analisadas por Piaget, e que se relacionam aos estádios do desenvolvimento cognitivo, são: jogo de exercício, jogo simbólico, jogo de construção e jogo de regras. Saiba mais Dica de leitura: matéria do professor Lino de Macedo “Brincar é mais que aprender” (2007) para a Revista Nova Escola, da Editora Abril. Fala do valor do jogo e do brincar para o desenvolvimento infantil: vale a pena acessar o texto! MACEDO, L. Brincar é mais que aprender. Revista Nova Escola, [s.d.]. Disponível em: https://bit.ly/3gf01gW. Acesso em: 5 maio 2012. 8.3.1 Jogo de exercício Os jogos de exercício correspondem à primeira forma de jogo da criança e são característicos do primeiro estádio do desenvolvimento, o sensório‑motor, embora essa estrutura de jogo permaneça até a vida adulta. Mas isso nós veremos com detalhes mais adiante. Vamos primeiro entender de que se trata esse tipo de jogo. Como o nome sugere, o foco desse jogo é o exercício de uma função, ou seja, está diretamente relacionado ao prazer que a criança extrai de exercitar (aprender, explorar) uma função. Num exemplo, um bebê necessariamente precisa aprender a mamar (em um seio ou mamadeira), por uma questão de sobrevivência, e depende, para isso, da ação do reflexo de sugar, inato, portanto. Entretanto, o que Piaget irá observar é que mais do que servir como base para a alimentação do bebê, o reflexo de sugar irá se transformar no esquema de sugar (como estudamos quando falamos do primeiro estádio) e, além disso, será fonte de brincadeira, de exploração lúdica e de prazer funcional. Ou seja, ao repetir 115 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA (e exercitar, portanto) uma função como o mamar, a criança estará fortalecendo seu domínio sobre ela, o que lhe proporciona satisfação, segurança. A esse respeito, Macedo sintetiza: [...] a assimilação funcional, ou o prazer pela alimentação de algo que se tornou parte de um sistema e que por isso pede repetição, caracteriza o aspecto lúdico ou autotélico dos esquemas de ação. [...] A repetição, requerida pelas demandas de assimilação funcional dos esquemas de ação, tem por consequências algo muito importante para o desenvolvimento da criança: a formação de hábitos (MACEDO, 1997, p. 129). Esse caráter autotélico a que Macedo se refere significa que, no nosso exemplo, a criança tem prazer em brincar de sugar o seio como um fim em si mesmo, um prazer do sugar/mamar pelo prazer que essa atividade, a sua repetição e o domínio progressivo dessa função, proporciona a ela. E isso nós observamos facilmente quando vemos um bebê ser amamentado a partir de poucas semanas. Ele brinca com o seio da mãe, mesmo sem extrair leite dele. Mas isso não vale só para esse esquema: podemos pensar que quando qualquer um de nós, mesmo quando mais velhos, aprendemos uma função nova – como aprender a utilizar sozinho os talheres ou um aparelho celular novo, por exemplo – vivenciamos um prazer em explorar e “brincar” com esse objeto que vai além do uso prático da alimentação independente e da comunicaçãocom outra pessoa ou dos efeitos práticos que o aparelho permite realizar. Nesse sentido, como afirmamos anteriormente, os jogos de exercício que se iniciam quando a inteligência ainda é pré‑verbal, essencialmente prática e inconsciente, permanecem como “pano de fundo” em nossas vidas para sempre. Ou melhor, pensando na perspectiva psicogenética do autor, quanto mais um bebê e uma criança pequena forem expostos e estimulados a viverem situações de jogos de exercício, isso criará uma base de prazer e satisfação em aprender que se manterá até a vida adulta. Ou, em contrapartida, se privarmos um bebê de “brincar” com os objetos e explorar livremente sua ação sobre eles, ele poderá desenvolver uma relação pouco prazerosa, mecânica, com as aprendizagens futuras. Vemos, então, que a criança bem pequena brinca/joga sozinha, mesmo que sem utilização da noção de regras (o que só será possível cognitivamente bem mais adiante). Com isso, Piaget quer mostrar que o ato de jogar é uma atividade natural e espontânea do homem e surge como prazer funcional em repetir exercícios motores (gestos, movimentos) – agitar os braços, sacudir objetos, emitir sons, caminhar, pular, correr etc. Lembrete Embora característico do primeiro estádio, o jogo de exercício será integrado pelas estruturas posteriores e permanecerá até a vida adulta. Os jogos de exercício, portanto, formarão uma base importante para a aprendizagem cognitiva, para o desenvolvimento da inteligência e, ao mesmo tempo, para o desenvolvimento da afetividade. Esse 116 Unidade III tipo de jogo infantil favorece essa relação de prazer sensorial e perceptivo e do desenvolvimento das preferências individuais! Figura 25 – Jogo de exercício Disponível em: https://bit.ly/3ogez4k. Acesso em: 2 jul. 2021. Saiba mais Convidamos você a acessar a entrevista do filósofo Gilles Brougére sobre o aprendizado do brincar, em que ele defende que o prazer deve ser um elemento central no brincar. GURGEL, T. Entrevista com Gilles Brougère sobre o aprendizado do brincar. Notícias Notre Dame, 2019. Disponível em: https://bit.ly/34vTEmM. Acesso em: 2 fev. 2021. Boa leitura! 8.3.2 Jogo simbólico Com o avanço do desenvolvimento infantil e a aquisição da capacidade de representação, alicerçada principalmente na linguagem falada, veremos o aparecimento de uma nova estrutura lúdica: o jogo simbólico. Como o nome destaca aqui, o foco não estará mais no prazer do exercício de uma função, mas em simbolizar, imaginar, criar significados para os objetos e situações. Nesses chamados jogos de faz de conta, a satisfação do eu estará na possibilidade de transformação do real em função dos seus desejos e, por isso, a assimilação nesse caso não é mais funcional, mas é uma “assimilação deformante”. 117 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA Em outras palavras, o jogo simbólico tem como função assimilar as relações e os significados predominantes no meio ambiente e, também, é uma maneira de autoexpressão, de criação pessoal. O jogo de faz de conta possibilita à criança a realização de sonhos e fantasias, revela conflitos, medos e angústias, aliviando tensões e frustrações. É a fase das brincadeiras de boneca, casinha, escolinha, personagens, super‑heróis etc. Por que jogar e brincar são formas de representação? Uma das consequências maravilhosas, nesse contexto de repetir, variar, recombinar e inventar, é poder criar representações. Quando brincam de casinha, as crianças vivem a experiência de reconstruir o cotidiano e simbolizar a vida (MACEDO, 2002, p. 159). É importante frisar que esse movimento de atribuir significados aos objetos e às pessoas (como ao se tornar uma princesa ou bruxa) a criança não faz apenas com base em conteúdos individuais: muito ao contrário, pelo jogo simbólico, as crianças expressam e “mergulham” no universo de sua cultura, do grupo a que pertencem. Embora o brincar simbólico seja universal, uma necessidade de todo ser humano (o que Piaget perseguiu em sua obra: o sujeito epistêmico e universal), o tema de brincadeira e como cada criança representará os papéis será específico e particular de cada contexto e cada criança. Outro aspecto fundamental na estrutura dos jogos simbólicos é sua função socializadora. Graças a eles, as crianças aprendem, também, a se tornarem, por exemplo, brasileiras, aprendem a sentir pertencendo a uma pátria, a uma cultura ou religião. Esquemas simbólicos são, a propósito, organizações de imagens, de ideias, de representações, de atividades corporais, por intermédio das quais o sujeito pode tematizar um papel, pode operar uma coisa como se fosse outra, pode realizar ações como conteúdos de formas agora simbólicas, isto é, que representam aspectos sociais e culturais (MACEDO, 2002, p. 160). Nos jogos de exercício, era o corpo da criança, sua capacidade de funcionar de agir, que sustentava seu prazer. Aqui, o prazer estará em dominar esse universo simbólico e, inclusive, buscar compreendê‑lo, mas agora numa dimensão relacional e coletiva. Quando um grupo de crianças brinca de casinha, por exemplo, e representam os diferentes papéis, de mãe, pai, filho etc., elas estão buscando compreender como se dão essas relações na vida social. Observação No jogo de exercício, a criança descobre a forma da ação, no simbólico, ela inventa o conteúdo para os objetos (MACEDO; PETTY; PASSOS, 1997). Os livros de história infantil, os filmes de animação, a literatura infantil em geral oferecem exemplos vários desse momento tão rico e fascinante da vida infantil e de como esses jogos simbólicos são necessários ao desenvolvimento cognitivo, afetivo e social e não são distrações, apenas. 118 Unidade III Saiba mais Sobre este tema sugerimos que você leia o poema “A bailarina”, da importante escritora Cecília Meireles, em que, com extrema delicadeza, ela descreve a brincadeira de uma menina ao se transformar em bailarina. O poema está no livro: MEIRELES, C. Ou isto ou aquilo. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. No livro A formação do símbolo na criança (1990), em que Piaget descreve, inclusive, diferentes fases internas a cada um dos tipos de jogo que estamos estudando neste texto, ele afirma que nem sempre é fácil distinguir um jogo de exercício de um jogo simbólico. Por exemplo, porque podemos encontrar jogos de exercícios verbais, como quando as crianças brincam com as palavras. Mas como, então, saber diferenciá‑los? No primeiro caso, o interesse da criança está na mera repetição das palavras, na brincadeira com sons, por exemplo, e no segundo “ela se interessa pelas realidades simbolizadas, servindo tão só o símbolo para evocá‑las” (PIAGET, 1990, p. 56). Mais uma vez, portanto, fica claro que a dimensão sociocultural é uma das características marcantes desse tipo de jogo. Figura 26 – Jogo simbólico Disponível em: https://bit.ly/3ANycWI. Acesso em: 5 jul. 2021. Piaget afirma que grande parte dos conteúdos simbolizados na brincadeira são conscientes para o sujeito: por exemplo, se ele utiliza uma colher como uma varinha mágica, ele tem noção clara das funções (da colher e da varinha) e do modo como é possível associá‑las na brincadeira. Porém, ele também reconhecerá que há um simbolismo secundário, como ele denomina, nos jogos cujas motivações podem ser inconscientes ao próprio sujeito. Esse é um dos raros, mas marcantes, momentos em sua obra em que trata de temas relacionados à afetividade. Ele dirá que o símbolo permite à criança expressar 119 PSICOLOGIA CONSTRUTIVISTA diferentes “esquemas afetivos, isto é, resumos ou moldes dos diversos sentimentos sucessivos que esse personagem provoca” (PIAGET, 1945, 1990, p. 226). Ou seja, além dos conteúdos culturais referentes àquilo que observa e assimila cognitivamente das relações de que participa, a criança, num ato de simbolizar um pai numa brincadeira de casinha, por exemplo, expressará seus sentimentos diversos (e mesmo ambivalentes, como amor e temor, submissão e independência etc.) frente a essa figura.
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