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Nana Simons 2º Edição – 2020 Copyright © 2020 Nana Simons Todos os direitos reservados. SOLDADO DE GELO Revisão: Lidiane Mastello Capa: Murilo Guerra Diagramação: April Kroes CAVALHEIRO DAS SOMBRAS Revisão: Lidiane Mastello Capa: Ellen Scofield Diagramação: April Kroes SOLDADO DE GELO - LIVRO 1 Dedicatória Nota da autora Aviso Mini glossário Prólogo Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Capítulo 28 Capítulo 29 Capítulo 30 Capítulo 31 Capítulo 32 Capítulo 33 Bônus Capítulo 34 Capítulo 35 Capítulo 36 Capítulo 37 Capítulo 38 Epílogo Agradecimentos CAVALHEIRO DAS SOMBRAS - LIVRO 2 Nota da autora Dedicatória Prólogo Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Capítulo 28 Capítulo 29 Capítulo 30 Capítulo 31 Capítulo 32 Capítulo 33 Capítulo 34 Capítulo 35 Capítulo 36 Capítulo 37 Capítulo 38 Capítulo 39 Capítulo 40 Capítulo 41 Capítulo 42 Capítulo 43 Capítulo 44 Capítulo 45 Epílogo Agradecimentos Para todos que tem uma alma sombria, que meu Demeron quebre seu coração e que Onira te faça ver através dos pesadelos; Nem os piores sonhos devem nos impedir de continuar respirando. Olá, leitora e leitor. Obrigada por dar uma chance a esse livro, mas antes de começar a ler, eu recomendo fortemente que você leia os avisos com muita atenção e sem pular nenhuma palavra. Se decidir seguir em frente, aproveite a leitura e sinta-se livre para deixar sua avaliação, seja 1 ou 5 estrelas, eu gosto de ler todas elas. Se esse livro te causar revolta, indignação, lágrimas e no fim... suspiros com a redenção, então minha missão estará cumprida. Grande beijo, Nana Simons Lucca DeRossi (O Monstro em Mim – Série no Berço da máfia Livro 1) Luigi DeRossi (O Monstro Rendido – Série no Berço da máfia Livro 2) Dante DeRossi (O Monstro em Guerra – Série no Berço da máfia Livro 3) Juan Carlo Herrera (O Governador – Livro único) Aya Maria Herrera (O Governador) Este romance é uma ficção. Porém assuntos e temas abordados existem e foram estudados para a construção do livro. Romance dark;gótico;sombrio: subgênero literário do romantismo, associado a temas polêmicos e aborda temas pesados. Está ligado não apenas ao romance romântico, mas também a fascinação com o irracional, o demoníaco e o grotesco. Neste livro, é equivocado procurar mocinhos perfeitos, românticos e de arrancar suspiros de amor. Neste livro, você encontrará um antagonista. Ele é um anti-herói. O livro contém uma linguagem adulta e apropriada para maiores de 18 anos, contém descrições de sexo. Situações de abusos físicos e psicológicos. Torturas e descrições de rituais. Essas situações não são romantizadas. A autora não apoia nenhuma das práticas descritas. A opinião da autora sobre as religiões citadas não está presente no livro. Leia com a mente aberta. Kambarys – Rede de tráfico de pessoas, usadas como igrejas onde a seita realiza rituais de sacrifício e fazem uso das escravas sexuais. Mestre – Denominação dos homens que compram mulheres, ou ganham o direito de criar os filhos de suas escravas para treiná-los a servir. Quarto Reich – Termo utilizado para descrever um futuro teórico da história alemã - um sucessor do Terceiro Reich. Nas teorias da conspiração, o quarto Reich seria levantado como sucessor de Adolf Hitler na Alemanha nazista. Kings — Chefes do crime de países que se reúnem para tomar decisões a respeito de atividades que operam juntos. Itália, Alemanha, Rússia e México. High wizzard – Na tradução “Sumo-sacerdote” é o título dado aos homens de alta posição dentro das seitas, eles realizam magia negra para o grupo. Frigga – Deusa-Mãe na mitologia nórdica. Esposa de Odin e madrasta de Thor e mãe adotiva de Loki é a deusa da fertilidade, do amor e da união. É também a protetora da família, das mães e das donas-de-casa, e símbolo da doçura. Freya – Freya é a Deusa do amor na mitologia nórdica, mas também está associada ao sexo, luxúria, beleza, feitiçaria, fertilidade, ouro, guerra e morte. Simbologia da LIGA: Pedras preciosas que determinam a hierarquia dentro da organização. Sendo Esmeralda, Cristal, Safira, Rubi e a mais alta, Diamante. “O momento em que você terá que se erguer Acima dos melhores e provar a si mesmo Que seu espírito nunca morre” IMAGINE DRAGONS, WARRIORS TRÊS ANOS ANTES Havia dois tipos de homens que eu gostava de completar minhas missões levando a óbito: Homens que cometiam crimes contra a humanidade; Homens que cometiam crimes contra o meu país. Mudié Abramsen era um homem que eu queria matar, mas ele não se encaixava em nenhuma dessas duas espécies. Eu, na verdade, não sabia como classificá-lo até então. — É pelo bem maior — disse ele, sorrindo como se eu fosse seu amigo. Eu assenti a cada uma de suas palavras, concordando como um robô. Mudié era um dos gerentes do lugar, com quem eu vinha “trabalhando” pelos últimos cinco meses. Permaneci em silêncio após concordar com sua explicação sobre o porquê fazíamos o que fazíamos. Bebendo minha vodka Iordanov russa, enquanto observava a cena a minha frente. A grande sala subterrânea ficava a vários metros abaixo da água, numa ilha paradisíaca em Oslo, Noruega. A fila de meninas nuas ajoelhadas parecia não ter fim, e enquanto cada uma implorava por sua dose da heroína mais pura do Afeganistão, as que recebiam iam sendo distribuídas para os homens bebendo e falando ao redor. — É claro, tudo pelo o bem maior — respondi. — De onde elas vêm? Ele riu e cruzou os braços, orgulhoso em proporcionar aquele tipo de diversão doente para os homens ricos que pagavam pela privacidade de seus jogos de horror. — De todos os lugares do mundo. O chefe gosta de manter a variedade. — Ele parece um homem inteligente — falei. — Estou ansioso para conhecê-lo. — E você vai. Tem se mostrado fiel e muito rentável tanto aqui, quanto nas unidades mundiais da Kambarys. Ele virá hoje e você vai ser apresentado como um dos noviços. — E é só isso? — perguntei, brincando com a bebida no copo. — Passará pelo ritual, é claro. — Ritual? — Style Tieko, meu parceiro em diversas missões, perguntou ao meu lado. Eu quis jogar meu cotovelo em sua costela a fim de avisá-lo para prestar atenção em cada palavra que saía de sua boca, mas os olhos atentos de Mudié estavam em nós a todo o momento. — É claro. Você vai escolher uma dessas meninas e fodê-la enquanto entoa os cantos lituanos Illuminati. Deve tirar sangue delas com qualquer objeto de sua escolha enquanto faz isso, e quando derramar seu sêmen, deve tirar a vida dela. Eu já tinha ouvido sobre os rituais que a Kambarys realizava, por isso, não estava chocado. Não mais. A repulsa passou por mim interiormente apenas por pensar no que cada um daqueles homens fazia, incluindo esse ritual, mas mantive minha feição neutra, sem demonstrar nada. Fui treinado para não reagir, não sentir e não mostrar quando estava em missão. Tieko ficou tenso ao meu lado, mas não expressou nada além disso. Mudié o encarou por mais alguns segundos, como se quisesse ter certeza de nosso sangue frio, e voltou sua atenção às meninas a nossa frente. — Vocês vão escolher uma garota? Talvez duas ou três? — Eu gosto das minhas mulheres cientes quando estou dentro delas. — Tieko murmurou. Mudié o encarou com olhos estreitos. — Nossos irmãos não gostam de julgamentos de noviços. Eu bati no peito de Tieko e ri.Aos olhos de Mudié, deveria parecer uma camaradagem, mas meu parceiro sabia que era um aviso claro para manter a boca fechada e guardar suas opiniões para si mesmo. — O que meu amigo quer dizer — falei a Mudié. — É que o melhor jeito de aplicar a dor é quando nossas vítimas estão sentindo cada gota do sangue tirado de seus corpos. Eu vou escolher uma garota mais tarde. Gosto de observar primeiro. Os olhos de Mudié brilharam de satisfação e um sorriso perverso cruzou seus lábios. Ele me estendeu a mão e deu um tapa nas costas. — Você será um acréscimo valioso para nossa Sociedade. Eu assenti e sorri minimamente antes de ele sair. — Porra, vamos simplesmente parar isso! — disse Tieko, e sua voz demonstrava toda a repulsa pelas cenas a nossa frente. — Cale a boca e foque na missão. — Konstantinova, isso aqui é o inferno na Terra! Você não vai foder a porra de uma menina drogada e matá-la, certo? — A Liga enviará alguém para ajudá-las. Esse não é nosso trabalho. — Você está me fodendo? Quem sabe se essas meninas vão sobreviver até lá. Eu vou meter um tiro na cabeça desse cara e dar o fora daqui levando todas elas comigo. Perdendo a paciência, mas não o controle, o arrastei discretamente para um corredor escuro em direção à saída do salão e ergui minha mão ao seu pescoço, o empurrando contra a parede, então o prendi com meus olhos, sem demonstrar qualquer emoção. — Você acha que é o único que tem uma arma aqui? Esses homens têm dinheiro, muito dinheiro. Há políticos, aristocratas e homens de sangue da realeza aqui dentro. Você acha que querem deixar vazar o que fazem no tempo livre? — Eu não me importo com quem eles sejam. Essas garotas estão chapadas até a última fibra do cérebro e mal podem ficar de pé! — Eu sei, porra. Esse não é o primeiro círculo de tráfico humano que eu entro e não será o último, mas a nossa missão aqui é apenas uma: seguir o chefe e dar um tiro limpo, sem rastros, sem suspeitas, então saímos. Se você sair do foco da missão e der um tiro, será um banho de sangue. Essas garotas vão pagar com suas vidas e as chances de nós sairmos vivos daqui viram nulas. Ele me encarou por longos minutos, então fechou os olhos e assentiu. Quando o soltei, ele deu um suspiro quebrado. — Essa merda é fodida, porra. Tão fodida! — Sim, é. — Dei dois passos para voltar ao salão, mas ele ainda continuava escorado na parede, encarando o chão. — Agente Tieko, concentre-se na missão. — Você tem certeza de que a Liga enviará alguém? — Protocolo 3. — Sim, sim. — Ele suspirou. — Eu sei. Foco na missão. Eu saudei Hitler como cada um aqui dentro, quero justiça sobre essa merda. Fechei o botão do meu terno e dei um pequeno aceno para voltarmos para lá. Eu odiava estar preso àquelas roupas de três peças que impediam meus movimentos. Aquilo era com meu irmão, eu preferia algo mais rústico. Mas, para me infiltrar na rede, precisava parecer como um deles. — A Liga sabe o que acontece aqui, temos que pensar que a ajuda está vindo. Até onde sabemos, nada impede que haja agora mesmo alguma equipe em missão de resgate. Eu dizia a verdade. Os protocolos de segurança impediam que uma equipe ficasse ciente de outras missões, toda a confidencialidade garantia que tivéssemos sucesso sem interferir em qualquer outro trabalho. Por isso, não importava o que acontecia ao nosso redor, nosso objetivo era assassinar o chefe de Oslo, então até que outra cabeça assumisse o lugar, aquelas garotas podiam ser resgatadas. — Certo. — Ele concordou e voltamos para o centro. Eu já tinha estado em lugares fodidos, mas Kambarys era um dos que mais me surpreendeu. Meninas penduradas no teto, jogadas no chão, compartilhamentos macabros entre vários homens, cenas que me faziam querer vomitar. Eu não podia fazer justiça com as próprias mãos. Eram mais de 100 homens contra 2, nós não tínhamos nenhuma chance. O cheiro de medo, desespero e sexo, inflamava meu nariz, me dava dor de cabeça, me fazia querer acelerar as coisas e cumprir a missão para estar logo longe dali. Longe dos gritos de dor daquelas garotas e da felicidade dos homens do diabo de ter prazer no sofrimento delas. As atividades sexuais duraram mais duas horas. Tieko e eu nos mantivemos de pé num canto bebendo e observando tudo como se estivéssemos apreciando, ansiosos para começar nossa vez. Foi quando eu percebi que algo mudou, a energia do lugar se tornou mais pesada e os ânimos dos presentes ficaram mais sombrios. Eles tinham sede de sangue inocente. E foi só olhar para a entrada do salão que percebi o porquê. Kazel Maraba havia acabado de chegar. Um dos chefes das Kambarys mundiais e cabeça do tráfico humano que o FBI, a CIA e nem a NSA conseguiram uma puta foto. Mas, a diferença entre eles e a Liga, é que nós nunca seguíamos as regras e não tínhamos medo de burlar leis para cumprir nossos propósitos. Era o que fazíamos. O que éramos. Recrutados para sermos espiões e assassinos profissionais. No momento em que a missão foi dada para mim, Kazel Maraba deixou de ter uma chance. Os homens estavam praticamente urrando, extasiados com a presença de Kazel. Eu só queria meter uma bala no cérebro dele de uma vez. Passaram vários minutos de assovios, gritos e palmas, até que Mudié veio à frente e levantou as mãos, sinalizando a todos para fazer silêncio. Eu sabia o que vinha a seguir e não havia uma única parte de mim que não se sentia enjoada ao saber que eu tinha que fazer o gesto. Kazel levantou o braço direito e todos seguiram. — Heil, Heil, Heil! — Sua voz ecoou pelas paredes antigas como um cântico, e todos repetimos as três chamadas. — Heil, Heil, Heil! Eu tinha sangue alemão. Nasci na minha amada Frankfurt, e não havia nada que eu odiasse mais do que a mancha que o nazismo deixou em nossa nação. Mas, alguns daqueles homens eram seguidores férreos dos pensamentos de Hitler, o que fazia de mim, ali dentro, um adorador dele também. — Meus irmãos! — Continuou ele. — Hoje celebramos a vida, e para isso celebramos com sangue! Os homens gritaram, erguendo os braços em comemoração. Kazel gargalhou, feliz pela posição em que se encontrava. Para aqueles homens ele era um rei. Eu era um caçador sem compaixão, e para mim ele era apenas a Branca de Neve. Minha mão alcançou a arma no coldre e senti os dedos de Tieko em meu pulso, sinal de que da mesma forma que eu estava atento a ele, ele estava em mim. As palavras de Kazel começaram a soar como borrões, eu começava a perder o foco, tamanha minha fúria. Foi quando ele olhou para trás e estendeu a mão, alcançando de um de seus homens uma figura pequena e delicada, vestida numa túnica branca. A mulher tinha longos cabelos escuros que passavam de sua cintura e manteve os olhos baixos, o queixo quase encostado no peito. Ela era pequena, mas pelas curvas do corpo, percebi que não deveria ser tão jovem como as outras garotas ao redor, e a forma como Kazel a mantinha perto, segurando-a firmemente e não deixando os olhos muito afastados dela, eu sabia que ele devia tê-la há algum tempo. Me perguntei desde quando a pequena mulher frágil estaria sob as algemas de Kazel. — Irmãos, eu trouxe minha mistress para, em celebração dessa data única, dividi-la com vocês. — Os homens os saudaram em êxtase e alguns gritavam sua excitação. A mulher ergueu a cabeça como se as palavras do homem tivessem disparado algum botão dentro dela, e quando pude vê-la me impressionei com a beleza de seu rosto. Não havia surpresas do motivo pelo qual Kazel a mantinha tão perto. O pequeno nariz arrebitado combinava com o queixo fino e os lábios cheios, que tinham, inclusive, um corte no canto superior direito. Mas o que me impressionou foram os olhos. Eles tinham uma cor âmbar, quase amarelo. Mas, as olheiras profundas destacavam quão maltratada ela era, e a falta de brilho nos olhos bonitos deixava claro que não importava quanto tempo esteve com Kazel, foi o suficiente para tirar qualquer esperança daquele olhar. Ela parecia horrorizada, mas ao mesmo tempo, conformada. Como se tivesseaceitado que aquela era sua vida e destino. Eu queria chegar até ela e dizer que aquilo acabaria em breve, que a tortura ia parar, que os braços do monstro não a envolveriam nunca mais. — Mistress, ajoelhe-se e me dê prazer com sua boca. — Ele disse num tom calmo, mas eu conhecia a ameaça por trás de uma voz, e aquela definitivamente era uma. Condicionada através do medo, assustada demais para fazer algo além do que lhe foi ordenado, a mulher de olhos amarelos abaixou a cabeça novamente. — Sim, mestre. Eu não tive forças para assistir. Quando ela se ajoelhou à frente do homem e levou as mãos para a calça dele, olhei para Tieko e dei um aceno simples, deixando-o saber que mesmo que o sinal ainda não tivesse sido dado, eu estava prestes a completar a missão. O sangue fervia em minhas veias, pulsava com a adrenalina e a satisfação de ser aquele que colocaria uma bala na cabeça do filho da puta. Comecei a caminhar para trás devagar e desviei de todos que poderiam me chamar ou causar algum problema que poderia me impedir de chegar até a bolsa onde meu rifle estava esperando. Subi as escadas do corredor sul e fiz meu caminho até o ponto estratégico para completar a missão: assassinar o ditador que controlava a Kambarys de Oslo. Vi a mala preta e ajoelhei, pegando-a e tirando meu precioso, separado apenas para as melhores missões. Aquelas que me dariam mais gosto de realizar. Essa era a minha vida. Isso é o que eu fazia. Um espião alemão destinado a seguir toda e qualquer ordem que A Liga mandasse. Fossem serviços do Governo ou missões de ameaça à humanidade, como a que eu e Tieko estávamos naquele momento. Um sorriso lento se espalhou pelos meus lábios assim que Kazel estava na mira. Um único tiro que faria um buraco fatal em sua cabeça. Mas, quando tomei a segunda respiração de alívio, um barulho apitou no meu ouvido. Eu sabia o que aquilo significava e não havia nenhuma maneira de obedecer ao comando. A base da Liga estava chamando. Eles tinham acesso a uma câmera que eu instalei no grande salão e podiam me ver sair, podiam ver cada movimento que fiz, desde que não havia me escondido nas sombras. Então, se estavam chamando, era um sinal ruim. Fechando os olhos, pedi silenciosamente que as ordens não fossem o que eu temia. — Agente Konstantinova, abortar missão. Repetindo, abortar missão. — O quê? — perguntei em choque, meu temor se confirmando. — Protocolo 1, abortar missão. — Não se atreva, porra! — rosnei, meu dedo quase pressionando o gatilho. “É pelo bem maior.” As palavras rodopiavam em minha mente como um mantra. Um mantra que o fodido filho da puta colocou lá. O bem maior nunca poderia ser a tortura de meninas jovens e inocentes, roubando-as de suas vidas e as colocando numa escuridão de drogas e dor. Kazel Maraba tinha que pagar. Assim como Mudié, assim como todos os que escondiam e habitavam por vontade própria as Kambarys ao redor do mundo. — Agente, suas ações serão tomadas como um ato rebelde e implicará consequências. — Foda-se — sussurrei. — Ele é a missão. Por que diabos devo abortar? — Siga as ordens. Abortar missão. — A transmissão foi encerrada e eu olhei através da minha mira, para o homem que merecia, mais do que ninguém no mundo, a bala que atravessaria sua cabeça. Tieko estava no meio da multidão, olhava ansiosamente na mesma direção que eu, aguardando para ver a queda do monstro. Porra. Porra. Porra. Não deixe suas emoções dominarem seu juízo. A voz do meu pai soou na minha cabeça como se ele estivesse ao meu lado, e como se fossem suas mãos guiando-me a seguir as ordens. Eu me afastei do rifle, tirando o dedo do gatilho e deixando que Kazel continuasse a viver. Olhei horrorizado quando ele continuou se afundando no corpo da pequena mulher a sua frente, passando então a açoitá-la nas costas, rasgando o pano de seu longo vestido de seda branca com cada batida e marcando a pele clara. Provavelmente contabilizando o tempo, Tieko olhou para cima, direto para mim. Eu não podia acreditar naquela porra. Me aproximei de Tieko sem ter coragem de olhar em seus olhos e acenei para a saída do salão. — Vamos. — O quê? — Franziu a testa. — Nós não terminamos. — Ele olhou para seu relógio de pulso discretamente e se aproximou mais de mim. — Você está atrasado. Qual o problema? — Protocolo 1. Missão cancelada. Nós temos que sair. Os olhos concentrados de Tieko arregalaram em choque, engolindo em seco ele olhou ao redor e pela sua expressão, eu sabia que suas emoções estavam prestes a vir à tona. Eu rapidamente o tirei de lá, tremendo, odiando cada minuto que fiz meu caminho para a superfície. Quando emergimos para a costa da ilha, tiramos nossos equipamentos e comecei a caminhar para a areia, em direção ao nosso transporte. Não havia nenhum segurança na praia ou alojado em algum lugar para guardar a Kambarys de Oslo. Jogada inteligente, afinal, para que guardar algo que supostamente não existe? Quem imaginaria que abaixo daquela ilha onde as pessoas iam para se divertir e relaxar, existia um subterrâneo de escravidão sexual? — Eu vou fazer a chamada para informar que a missão foi cumprida. — Certo. Use o telefone à leste da costa. Eu vou para o ponto de encontro. — Certo. — Ele confirmou e começamos a nos separar, depois de alguns passos ele me chamou e virei para encará-lo. — Você acha que podemos perguntar sobre o resgate das garotas? Quando fui responder, um estrondo soou atrás de nós, cortando minhas palavras no ar e nos arremessando vários metros à frente. Uma onda nos cobriu antes de se afastar. Quando abri os olhos, com uma tontura infernal, vários pontos do meu corpo doíam e gotas de sangue pingaram pelos meus olhos. Uma pedra do lado da minha cabeça me mostrava que provavelmente bati com a queda. Com meus ouvidos ainda zumbindo, ergui a cabeça e olhei para a água, a fumaça que subia sem parar e o fogo aumentando não deixavam dúvidas sobre o que havia acabado de acontecer. Apertei o transmissor em meu ouvido, ligando para chamar a base, mas meus olhos estavam fixos na água. Se fechasse os olhos, podia ver as mais de cinquenta meninas inocentes boiando lado a lado, suas camisolas brancas idênticas soltas no mar e os cabelos igualmente compridos nadando em meio àquela imensidão azul. Uma dor como eu não sentia há muito tempo ameaçou crescer no meu peito, fazendo-me esfregar a carne numa tentativa inútil de afastá-la. Mas eu sabia que nada mudaria aquilo. O tempo era fixo e não havia volta para o que havia acabado de acontecer. Eu me segurei, levantando e sabendo que precisava conferir Style, ainda deitado na areia, enquanto meus olhos ainda estavam presos no fogo que a explosão do subterrâneo causou. Mas eu não podia me mover. Não podia tirar meus olhos do assassinato em massa que aconteceu diante de mim naquele paraíso tropical. Eu sabia que tinha acabado de deixar mais uma parte de mim para trás. Com o mar, o céu azul que de repente não parecia mais tão bonito, e com a minha recusa em salvá-las mais cedo. Todas as garotas mortas. Todas que eu deixei para trás. A mulher dos olhos amarelos. Tudo pelas malditas ordens. — Porra, porra, porra. — Soltei um murmúrio quebrado, me arrastando até Style. O virei, batendo em seu rosto e chamando-o sem cansar. Olhei para o mar novamente, sabendo que mesmo a região sendo parada, em breve a fumaça chamaria atenção. Quando voltei meus olhos para Style, não tive tempo de reagir. Seus olhos puxados estavam fixos em mim, frios como eu nunca vi meu parceiro antes, e no segundo seguinte uma seringa foi enfiada em meu pescoço, suas últimas palavras levando embora o último resquício de humanidade que havia em mim. — Sinto muito, Demeron. “O que você quer de mim? Por que não foge de mim? O que está querendo saber? O que você já sabe? Por que não está com medo de mim? Por que você se importa?” BILLIE EILISH, BURY A FRIEND DIAS ATUAIS - BERLIM, ALEMANHA — Style? — Eu o chamei. Minha voz tremia assim como minhas mãos. A paredee o chão estavam frios contra minhas pernas e costas, mas eu precisava ficar segura até meu irmão mais velho decidir o que fazer. — Tudo bem. — Seus olhos calmos desviaram de mim para o lado, para onde ele não queria que eu olhasse. — Eu estou com você, Oni. Sempre. Mas, continue olhando para mim, irmãzinha. Pode fazer isso? Pode olhar para mim não importa o que aconteça? — Tudo bem — sussurrei, minha testa franzida. — Não olhe para o chão, Oni. Não olhe para o lado. Apenas para mim. Suas mãos seguravam meu rosto, certificando-se de que eu faria o que ele pediu e olharia só para ele. — Eu posso me limpar agora? Ele segurou minha mão e tirou a grande peça de metal que meus dedos pequenos mal aguentavam segurar. O peso fez um baque no chão quando ele jogou longe. Eu queria ver, mas fiz o que pediu e continuei olhando para ele. Eu nunca ia deixar de olhar para ele. — Pronto, agora você vai fechar os olhos e se segurar em mim. Nós estaremos fora daqui em um minuto. Tudo bem? — Eu não respondi, começando a ficar assustada com o molhado em minhas mãos e meus pés. Style me chacoalhou — Oni! — Style? — perguntei baixinho, mas ele ouviu. Ele sempre me ouvia. — De quem é todo esse sangue? Acordei ofegante, suando e assustada. Olhando ao redor do quarto, deixei meus olhos se acostumarem a ausência de luz antes de sair da cama, respirando profundamente a cada passo dado. Sempre que esquecia meu calmante acontecia isso. Os malditos pesadelos me pegavam. Memórias ou lembranças de algo que eu nem sabia o que significava. Cambaleando até o banheiro, liguei o chuveiro no máximo e deixei a água refrescar meu corpo, limpando o suor e acalmando meus pensamentos. A luz do banheiro permanecia apagada, só a lâmpada fraca do corredor iluminava meu caminho. Eu preferia assim. O dia poderia ser noite todas as horas. Eu me entendia melhor com a escuridão. Colocando um roupão, constatei que ainda não passava das quatro, então voltei para a cama e coloquei o despertador para tocar a cada dez minutos. Me impedir de dormir, me impediria de sonhar outra vez. — Vou a uma filial da Calvin Klein e não estou sabendo? — Eu perguntei a minha assistente enquanto ela pendurava as fotos no quadro do escritório. — Quase isso. Eu juro que todas as vezes que pus meus olhos nesses homens, eles estavam perto de caras ainda mais gatos. Se meu irmão não fosse um psicopata total, eu sairia com todos. — Ela respondeu, pendurando a última. Eu tinha que concordar com seu comentário ácido sobre Kurton, mas mudei de assunto, não querendo azedar meu humor ao falar dele. — Certo. Então temos o pai — apontei para o mais velho. — E os filhos? — Dois filhos e um sobrinho. — Ok — murmurei. — Conte-me sobre eles. Enquanto Slom me apresentava aos nossos novos clientes, eu tentava guardar o máximo de informação e decorava itens importantes. Como os nomes e coisas significativas que já tivessem feito. Não eram os primeiros magnatas por quem eu era contratada e a primeira coisa que aprendi sobre eles, foi que o ego precisava ser massageado. Não me preocupava em fazer isso, mas da forma como eles geralmente elogiavam meu trabalho, eu gostava de poder dizer algo bom sobre o deles também. Os Konstantinovas eram meus primeiros clientes alemães, e inicialmente, quando a secretária de Stark, o dono da Konstantine Business, me ligou para marcar uma reunião, eu não imaginava o porquê. Eu conhecia alguns dos mais renomados artistas plásticos mundiais e aos poucos, me inseri na lista dos melhores artistas plásticos. Eu amava pintar, mas havia quem dissesse que minhas esculturas eram como poemas. As vezes pareciam mais uma sensação do que um objeto. Por isso eles me queriam. Mesmo que em uma breve pesquisa, descobri que nunca foram até um artista pessoalmente para encomendar um trabalho. Na minha posição, eu estava honrada. — Stark e os filhos, Regnar e Demeron, são de Frankfurt. Siriu, o sobrinho, é de Berlim. — Ah, Berlim... — suspirei sonhadoramente e Slom me imitou. Compartilhávamos a maioria das mesmas paixões. Capitais da arte sendo uma delas. — Stark é um magnata, empresário, e investe pesado em filantropia. Tem três bacharelados, licenciatura... Caramba! — Ela pausou. — Ele tem até doutorado, mas não consegui mais informações sobre o que. É um ex- agente do governo, mas também não sei o que ele fez e tem várias... — Slom. — A cortei — Acelere e vá para os pontos importantes, não vou interrogar o homem. — Sim, certo, me empolguei. Resumindo, ele é bom em tudo o que faz. Costuma comprar arte em leilões, você é de fato, a primeira que ele contrata para um trabalho exclusivo. — Isso é tão incrível. — Dei um pulinho, batendo palmas — Parece que estou na faculdade prestes a apresentar minha conclusão do curso outra vez. Vamos lá, Regnar agora. — Regnar é um dos maiores especialistas em joias do mundo, o conhecimento e o alto QI faz dele um cara constantemente envolvido na mídia. Ele está sempre em entrevistas, programas de empreendedorismo e até mesmo de fofocas. Ele tem carisma, a mídia gosta dele. É o único que achei fotos variadas, inclusive. É também o único com uma aliança no dedo, e pelo que eu saiba, sua esposa não compartilha da mesma simpatia que ele. — O que sabe sobre ela? — Kaladia, bem, eu a encontrei uma vez num evento que fui com Kurt. — Slom sentou-se na beira da mesa. — Hm... deixe-me ver por onde começar. — Slom levantou as duas mãos e começou a levantar dedo por dedo, a cada palavra. — Arrogante, mal humorada, se acha a dona do espaço que está, foi mal educada com cada garçom que a atendeu, e parece meio obsessiva, não tirava os olhos do marido. — E ele? — Parecia um louco apaixonado. E muito educado. Sinceramente, não sei como os dois funcionam juntos. — E Siriu? É um belo nome. — Não é só o nome. Se eu cometesse um crime, não me importaria de ser julgada por ele. Ele é chamado de Senhor X nos tribunais. O consideram um dos juízes mais implacáveis do país. Claro que isso o torna respeitado e temido, eu já tinha ouvido falar muito dele, inclusive já o tinha visto em alguns eventos, mas nunca houve oportunidade ou motivo para nos apresentar. Porém, quero, muito. — Ela me olhou e juntou as mãos, como se implorasse. — Me leve junto. Esse pode ser meu momento de olhar nos olhos dele e conquistá-lo. — Slom. — Repreendi, porém não segurei o riso. — E sobre Demeron? — Sim, sobre ele. — Ela levantou um papel em branco. — Não achei nada. — Como não achou nada? — Fora a foto dele com os outros e aquela de cabeça baixa, boné e óculos escuro, o nome dele aparece associado com o de Stark, mas não consegui nenhuma informação, nem mesmo uma data de nascimento. — Isso é tão esquisito. Ele não tem nem Instagram? Slom bufou. — Não. Deve ter uma deformação no rosto e o pai usou dinheiro para apagá-lo da rede. Vai entender os ricos. Lhe dei um olhar cético. — Você é rica. — Sim — disse ela — Mas tenho Instagram e tento colocar o máximo de mim na rede possível. Sou uma rica fácil de entender. — Deus! Você fala tanta bobagem. — Dei risada, balançando a cabeça. — Não consigo ter uma boa visão dele. — Eu disse, me aproximando para tentar vê-lo melhor. Mas a única foto em que estavam todos juntos parecia mais um retrato da monarquia. Estavam de pé, lado a lado, e a foto foi tirada de longe. — Você não consegue nem uma foto dele sozinho? — Tentei, mas por incrível que pareça só achei essa. É meio estranho. — Talvez ele seja tímido. — É, talvez. Mas acho que você vai descobrir. — Ela deu uma risadinha e me cutucou com a ponta da caneta. Revirando os olhos, apontei para a porta. — Vá trabalhar. Eu tenho uma reunião para me preparar. — Sim, chefa. — Com um sorriso, ela saiu. Eu voltei meu olhar para a foto e a tirei do quadro, observando os quatro homens que pareciam misteriosamente fascinantes e o mais maravilhoso de tudo... eles queriam a mim. Minha arte, meu talento, minha marca em seu hall de entrada. Eu não podia imaginar o porquê. O grande prédioalto e bem localizado parecia ainda mais refinado do que eu tinha ouvido falar. Ao mesmo tempo que tinha um ar de antiguidade, combinando com a arquitetura possuía alguns toques modernos, variando de vidro para colunas bem desenhadas e janelas enormes no arranha-céu. As fotos não faziam jus, também. Precisei tapar o olho com as mãos para conseguir olhar até o alto sem que o sol fizesse-me lacrimejar, e ainda assim, não consegui ver o último andar. Debaixo, parecia invadir o céu. Era majestoso. As três portas giratórias da frente não paravam, enquanto entrava e saía todos os tipos de gente. Homens muito elegantes e mulheres bem- vestidas. Clientes em potencial? Sócios? Funcionários? O taxista buzinou, me fazendo saltar e dar uns passos adiante, saindo de sua frente. Passei as mãos pelo meu vestido vermelho, desamassando da viagem conturbada do carro. É claro que ele não perdeu tempo em pegar um passageiro alguns metros à frente. Céus! Naqueles momentos eu sentia tanta falta do meu motorista. Viagens calmas, às vezes com conversas, outras em silêncio... Alguém que não estava tão apressado em pular de um passageiro para o outro que nem esperava eu colocar o cinto de segurança. Meu telefone tocou e na tela brilhava o nome dele, como se soubesse que estava vagando em meus pensamentos. — Mic, sério, como você faz isso? — perguntei e agradeci com um sorriso quando um rapaz me ajudou a girar a porta para entrar no grande prédio. — Isso o quê? — Tem sempre o timing perfeito. Eu acabei de chegar na Konstantine Business. — Sobreviveu ao táxi? — Meio amassada, mas sim. Estou considerando não sair do ateliê até você voltar. — Estarei aí amanhã. — Deixa de ser bobo, Mic. Você merece essas férias. — Eu preciso estar aí e manter um olho em você, garota. Seu irmão não está mais aqui, mas eu devo uma vida inteira a ele, e agora meu compromisso é com você. Uma pontada de tristeza me tocou ao falar sobre meu irmão, mas me obriguei a guardá-lo de volta naquela caixinha trancada no peito, sabendo que se começasse a remoer aquilo, não focaria no trabalho ou qualquer outra coisa pelo resto do dia. — De qualquer forma, fique e termine seu tempo de férias. Quando estiver de volta vai desejar nunca ter saído daí. — Duvido, garota. No segundo dia eu já estava entediado, caçando insetos pelo ar para não ter que ficar à toa. — Ah, Mic. Se soubesse como eu apreciaria estar no seu lugar... Sua risada me fez sorrir e peguei minha identidade na bolsa, entregando a uma das recepcionistas do largo balcão. — Bom, vá fazer suas coisas. Mas, não se esqueça, uma ligação e eu volto. — Eu sei, mas descarte essa ideia. Aproveite e se divirta. — Tchau, garota. Mic era minha única ligação com meu irmão. Fora ele, só restava a memória de Style. Meus pais morreram quando eu ainda era muito jovem, e Style assumiu a responsabilidade por mim, trabalhando e cuidando das coisas. Foi assim para tudo. Ele pagou meus estudos, minhas roupas, morou comigo mesmo já podendo se mudar e cuidar de si mesmo, apenas para não me deixar sozinha, e quando me formei, ele foi meu principal investidor. Meu irmão dizia que sabia reconhecer talentos, e não tinha a menor dúvida de que tudo o que fez por mim valeria a pena. Eu queria que ele pudesse estar comigo para me ver realizar tudo o que sonhei e compartilhei com ele. Queria poder agradecer por acreditar em mim mesmo quando eu não fui capaz. Peguei meu documento e a carteira de visitante, seguindo as instruções para chegar ao andar que Stark Konstantinova me esperava. Ao entrar no elevador, conferi minha aparência. Naquela manhã meu ateliê estava parado, o telefone mal tocava, então Slom me convenceu a deixá-la me arrumar à sua maneira. Meus longos cabelos pretos e lisos, ela prendeu uma mechinha para cima, deixando um daqueles “franjões”. E minha assistente tinha uma estranha obsessão pelos meus traços orientais, quase surtando de alegria quando a deixei maquiar meus olhos. Quando ela acabou e me deixou ver o resultado, perguntei como conseguiu deixá-los ainda mais puxados. O elevador apitou no andar correto e desci, instintivamente comecei a analisar o lugar. Já vinha fazendo isso desde que o carro havia parado na calçada, mas de dentro, podia ver com mais calma, captando quaisquer referências sobre os gostos dos Konstantinova’s. Mas, assim que virei a esquina, fui empurrada com brutalidade para trás, a parede foi o que me impediu de cair. Com os olhos arregalados, assisti quatro homens tentarem segurar alguém que lutava para se soltar dos braços deles, aos gritos. Os funcionários se afastavam ou saíam do andar, chamando o elevador ou indo pela escada. Eu sabia que deveria seguir o mesmo exemplo, mas apenas fiquei ali, escorada contra a parede como se estivesse me tornando parte dela, e assim, quem quer que fosse aquele a dar trabalho aos seguranças, não me veria. Um deles levantou uma arma de choque e encostou na coluna do cara, um grito agonizante ecoou pelas paredes e pareceu tremer o piso de mármore caro, seu corpo dobrou quando a cabeça ergueu com a dor, mas ele não caiu. Ele finalmente quase se soltou, o choque que deveria tê-lo derrubado, parecia só ter lhe dado mais gás. Eu ofeguei quando ele deu um passo ainda de costas, a poucos centímetros de mim, longe do círculo dos caras, quase fugindo. Como se estivesse se preparando para correr e virou em minha direção. E quando ele levantou a cabeça para mim, minha respiração foi audível. Os quatro homens o segurando não aguentariam muito mais tempo. O homem era forte, feroz, rosnava e os olhos sem foco pareciam enlouquecidos. Ele parecia um animal com raiva que precisava ser contido. Ele usava uma camisa branca que destacou os músculos enormes dos braços, que flexionavam com cada movimento de sua rebeldia, a camisa esticando no corpo poderosamente construído. A roupa não combinava com o lugar, a calça de moletom e os pés descalços não eram o tipo de coisa que alguém vestia em um império, mas naquele homem... pareceu simplesmente certo. Perfeito. O cabelo liso e curto era de um loiro escuro que combinava com o tom levemente dourado de sua pele. Quando seus olhos bateram em mim, quase perdi o ar. Eu não pensei. Eu não me movi. Eu não respirei. Estreitando os olhos para mim, piscou e inclinou a cabeça, como se quisesse me observar melhor. Os dentes eram brancos e perfeitamente retos, e uma covinha apareceu num único lado quando sua boca esticou num rugido raivoso, combinando com a discreta fenda no queixo marcado. Os cílios longos só o fizeram parecer mais lindo. Com sua proximidade, percebi o quão grande realmente era. Parecia um gigante. Alto e largo, me fez sentir pequena, delicada e... protegida. Ele não desviou o olhar. Os olhos azuis escuros não piscaram, e aos poucos ele foi ficando calmo em seus movimentos, menos bruto. Enquanto nos olhávamos, a besta enfurecida me olhou e ficou manso. Ele não pareceu nervoso ou inquieto como eu, nem de longe. Ele parecia seguro. Como se tudo estivesse em seu lugar. De repente, uma enorme mão segurou meu braço e cortou meu contato com o homem a minha frente. — Você está bem? Ele a machucou? Eu fitei o homem que falava comigo e franzi a testa, percebendo como era parecido com aquele que estava em surto. Ele tirou os óculos escuros e imediatamente o reconheci. Siriu Konstantinova, o tal Senhor X. — Nã-não. — Mal ouvi minha voz, mas pelo aceno bruto que ele deu, soube que havia me escutado. Soltando-me, Siriu acenou para uma mulher encostada na parede em frente à minha, que parecia em pânico. — Leve a senhorita Tieko para a sala de reuniões. Estaremos lá em poucos minutos. — Sim, senhor. — A mulher assentiu, hesitando os passos até mim e acenou com a mão, me mostrando o caminho. — Espere. — Eu disse a Siriu. — Mas e ele? Ele não me respondeu. Ao contrário disso, acenou novamente para a mulher, que segurou minha mão e me levou para longe. Os olhos do homem afastaram-se de mim e fitou Siriu, tão logo, se agitou novamente, tentandoalcançá-lo. A secretária me puxou outra vez, e assim que cruzamos o corredor, ouvi um grito agoniado, me soltei dela e voltei atrás, ouvindo-a praguejar enquanto me seguia. Parei escondida e ofeguei ao ver o homem ajoelhado, com dois dos guardas segurando-o e quase torcendo seu braço. A sua frente, Siriu passou a mão em sua cabeça e levantou uma seringa, a enfiando em seu pescoço. Então ajoelhou na frente dele e apoiou sua cabeça quando o enfurecido homem perdia a consciência. — Levem-no de volta — disse Siriu, em seu rosto nenhuma pista do que sentia. Eu quis ir até ele e exigir que chamasse um médico, que me levasse para ver o homem, mas antes que pudesse fazer qualquer outra coisa, a secretária colocou a mão no meu ombro e seguiu meu olhar, engolindo em seco. — Pelo amor de Deus... não o contrarie! Venha comigo e deixe-me fazer meu trabalho! Em transe, a segui pelo longo corredor, revivendo os últimos dez minutos como uma fita rebobinada que nunca passava dos mesmos dez minutos. — Quem... quem é aquele homem? — perguntei com a garganta seca. — Demeron Konstantinova. — Ela abriu uma porta e apontou para dentro. — Aguarde aqui. O senhor Stark vai vê-la em breve. — Por favor, me diga... — Não — disse ela, com os olhos acelerados fitando o corredor. — Não me faça mais perguntas. Eu preciso do meu trabalho... e gosto da minha vida. Deixando-me sozinha, eu agarrei minha bolsa com força contra o peito e fechei os olhos, respirando profundamente repetidas vezes. Respirações superficiais, pois meu coração batia feito um louco. Nunca tinha efetivamente vivido algo tão surreal em toda a minha vida. Nunca vi ninguém surtar na minha frente e ainda pior, agora sabendo que o homem em questão se chamava Demeron. Só podia ser um dos filhos de Stark. Mas, o que pensar de Siriu o dopando e não fazendo nada enquanto homens que seguiam suas ordens tratavam seu primo com tanta brutalidade, dando a ele que nem um animal recebia em circos. Incapaz de continuar ali, em meio àquelas pessoas e revivendo a cena que presenciei, tirei o salto, preparando-me para correr fora dali e abrir a porta. A comoção parecia nunca ter acontecido e a secretária não estava em sua mesa. Abrindo a porta da escada de emergência, saí daquele lugar. Mas, a cada degrau descido, me sentia pior pelo que vi. A cada passo dado para longe, eu via os olhos do homem enlouquecido. O misterioso homem de olhos azuis sobre o qual eu não sabia nada. "Você é um mundo distante Em algum lugar na multidão Em um lugar estrangeiro Você está feliz agora?" ELLEY DUHÉ, HAPPY NOW Saí de casa quando amanheceu, mesmo que estivesse acordada desde antes disso. A mochila nas costas continha roupas para caso eu precisasse sair do ateliê, e fui caminhando. Observar as ruas, pessoas e ambientes me inspirava. Minhas esculturas tinham a variedade que eu admirava, e por isso elas eram tão admiradas também. Era uma distância de mais de uma hora, mas eu precisava desse tempo para pensar. Quando deixei de pensar no pesadelo daquela madrugada, foi para fixar Demeron Konstantinova na minha mente, então, eu estava inquieta. Inquieta, atormentada e amedrontada. Ficava me perguntando se ele estaria numa ala psiquiátrica naquele momento, ou jogado em algum canto e esquecido por sua família. Em meus vinte e cinco anos, nada e ninguém tinha me abalado tanto. Dizer que sonhei com o rosto daquele homem me trouxe vergonha, mas eu lembrava de cada uma de suas expressões sombrias, os gritos e a dor nos olhos, essa era a mais pura verdade. E nos meus sonhos, ele se acalmava com o meu olhar. Olhei ao redor, de repente uma sensação de estar sendo observada começou a me corroer e eu parei de andar. Já estava suada, queria continuar, mas agi pensando na minha segurança e acenei para um táxi que passava, dando o endereço. Sabia que estava paranoica. Desde que recebi a notícia da morte de Style, já havia ficado temerosa com tudo ao meu redor. Meu irmão era quem me protegia, cuidava de mim e deixava claro que eu não tinha motivos para temer. Mas, sem ele e sabendo que nunca o veria outra vez, aquelas sensações aterrorizantes de que algo ruim me aconteceria a qualquer momento ficavam cada vez mais fortes. Sem saber, Demeron só piorou aquilo. Vesti o avental assim que cheguei, abri as janelas para deixar a luz natural entrar e peguei meus pincéis, ligando o som e aumentando o volume no máximo. As paredes à prova de som serviam exatamente para quando eu precisava extravasar e a pintura me proporcionava isso. Ali dentro eu estava protegida, segura e em paz. Mesmo que pacífica fosse a última coisa que eu me sentia. Eu gostava de pintar de vez em quando, por mais que minha paixão fosse criar formas, desenhá-las e defini-las com minhas próprias mãos. Quando eu era pequena, mamãe me deixava brincar onde eu quisesse ir. Me perdi no bairro algumas vezes, e numa delas andei pela floresta tentando achar o caminho de volta durante horas, até Style me encontrar, e quando voltamos para casa, eu esperava ser repreendida por mamãe e papai, mas eles não estavam. Nossa babá, uma garota do colegial da casa ao lado, estava nos esperando. Durante aquelas pequenas explorações, eu descobri que gostava de molhar a areia e construir castelos com pontes como nos desenhos de princesas. Depois Style começou a me dar massas de modelar coloridas, e eu enchia nossa casa com cada coisa que ficava boa para ser exibida. Quando fiz dez anos, ele me deu minha primeira maleta realista de esculturas. Quarenta minutos depois, estava com os braços doloridos de pintar e quando tomei uma distância para observar o quadro, neguei que aquilo havia sido feito pelas minhas mãos. — Que lixo — resmunguei e me deitei no chão, de braços abertos. John Lennon cantava Imagine como a minha trilha sonora e eu me permiti fechar os olhos novamente. Ainda não eram nem dez da manhã e eu estava exausta, porém, ainda assim, me sentia elétrica. Levantei-me, mesmo querendo continuar deitada, desejava cancelar minha agenda do dia e voltar para casa. Pedir uma comida leve e tomar um calmante para finalmente dormir. Mas, a minha vida não me permitia tomar uma folga repentina dessas, principalmente com os clientes que dali a poucas horas começariam a ligar. Tirei o avental e peguei uma garrafa de água quase congelada na copa, tomando até a metade. Fui para o escritório, liguei meu computador e o de Slom também, já sabendo que ela chegaria atrasada e reclamando que o seu demorava anos para ligar. Verifiquei meu e-mail, separando três pessoais e decidindo que deixaria Slom lidar com todo o resto. Pelo menos por hoje, eu disse a mim mesma. Um dos lembretes me chamou atenção e eu nem precisei o ler completamente para me lembrar do que se tratava. Peguei o telefone e disquei o número que já sabia de cor. Demorou alguns toques para atender, o que me fez até imaginar se ele estava decidindo se falava comigo ou não, mas finalmente atendeu, para a minha surpresa. — Olá, Enrico. — Onira, como vai? — Bem... escuta, eu queria saber como andam os processos com a investigação. O delegado suspirou. Já não aguentava mais as minhas ligações diárias e ter que repetir sempre a mesma coisa. — Já falamos sobre isso. — Eu sei, eu sei. Só quero ter logo esses papéis nas minhas mãos e ver por mim mesma. — Você os terá, eu estou fazendo o máximo que posso. — Certo — resmunguei, ríspida. — Me ligue se tiver qualquer novidade. Desliguei batendo o telefone na base e suspirei, me recostando na cadeira. Enrico Aguilar estava me enrolando. Eu era educada, mas não estúpida. Style havia me ensinado a ler as pessoas porque, por alguma razão, meu irmão parecia sempre ter um medo infundado de que eu teria que me virar sozinha em algum momento, o que eu achava ridículo, mas quatro meses antes passei a entender e desejei não ter rido dele todas as vezes que quis me ensinar defesa pessoal, táticas de segurança ou até mesmo linguagem corporal. Aquele momento havia chegado e eu estavalidando com tudo sozinha. Mas, eu aprendi o básico e mesmo se não tivesse, ainda assim conseguiria perceber que Enrico não me entregaria os documentos. Me perguntei diversas vezes porque ele teria entrado em contato comigo se sua intenção não era me ajudar com as investigações da morte do meu irmão, mas ao invés de colaborar, só ficava adiando e dizendo que “estava trabalhando nisso”. Eu recebi uma ligação no meio da noite dizendo que meu irmão havia sofrido um acidente de carro fatal, no qual ele e o motorista do outro carro não resistiram. Eu fiquei devastada. A ideia de dizer adeus a minha única família viva desmoronou como uma montanha em cima de mim. Mas, após o choque passar, percebi que tudo foi muito estranho. Se foi um acidente de carro, por que um policial não foi até a minha porta? Por que não me permitiram reconhecer seu corpo? Por que o caixão ficou fechado o tempo todo? Enrico estava no meio de tudo aquilo porque eles diziam que Style estava na fronteira do México, e o delegado designado para o caso era o senhor Aguilar, que não parecia motivado a me ajudar. E por que eu não recebi nenhum documento relacionado a sua morte? Autópsia, laudos, qualquer coisa? Tudo era suspeito e a cada teoria nova que surgia na minha mente, eu tentava me lembrar de algo que Style me disse, me agarrando à esperança de que os devaneios do meu irmão fariam sentido. Passei as mãos pelo rosto, reconhecendo que podia ser que eu estivesse finalmente ficando louca. Ou a exaustão estava plantando coisas na minha mente. Fui ao banheiro, passei uma água no rosto e voltei ao escritório, encontrando Slom sentada em sua mesa. Mas, isso não foi o que me fez travar no meio do caminho, e sim os três homens que ocupavam minha sala de reuniões. — Mas o que... — Comecei. Slom chegou perto, entregando-me nossas costumeiras pastas e o portfólio variado das minhas obras. — Quando cheguei Stark estava prestes a tocar a campainha, eu os deixei entrar. Vou levar o café em cinco minutos. — Sorrindo, ela piscou. — A reunião deve ter sido ótima ontem, hein? Para voltarem hoje. Quando ela fechou a porta, eu soltei uma respiração pesada e tentando conter minhas emoções, entrei na sala de vidro, deixando a porta aberta. Os três estavam sentados, mas Stark se levantou imediatamente, aproximando-se de mim. A família Konstantinova tinha um império de poder e sucesso a várias gerações, e aquele homem era uma parte fundamental nisso, mas toda a minha admiração por ele estava coberta de decepção. Stark era alto e forte, não parecia que já passava de seus cinquenta anos, e os olhos azuis me deixaram mais tristes ainda, pois eram idênticos aos de Demeron. Um minuto de silêncio tomou a sala antes de ele falar algo, e quando fez, me surpreendeu por ter sido tão direto. — Demeron tem certos... problemas. — Eu percebi — respondi sem nenhuma educação, mas naquele momento, nada mais me importava, a não ser saber se ele estava bem. — O que não entendi, foi porque o trataram daquele jeito. Ele é seu filho! — Fitei Siriu acusadoramente. — Seu primo! — Entendo que a cena toda deve ter sido profundamente perturbadora para você, Onira. Mas essa foi uma exigência de Demeron. — Ser sedado? Exposto e atingido com arma de choque? — O que fosse preciso para impedi-lo de machucar alguém — disse Siriu, o rosto calmo como no dia anterior e a voz tão controlada que parecia estar tratando de um negócio, não um familiar doente. — Eu não acredito nisso. O terceiro deles, Regnar, levantou com graça da cadeira e segurou minha mão, até mesmo invadindo meu espaço pessoal. — Demeron serviu ao exército grande parte de sua vida, e depois de certas missões você acaba ficando meio... lelé da cuca, se é que me entende. — Ele sorriu ironicamente, parecendo se divertir com meu tormento. — Ele tem problemas, como disse meu pai. Consequências mentais de anos servindo ao país. Ele é lúcido e está bem na maior parte do tempo, é claro, leva uma vida completa e normal, tirando as vezes que não quer comer ninguém. Arranquei minha mão da dele, dando um passo atrás. Meus olhos arregalados com a ousadia e desrespeito. Stark revirou os olhos e se aproximou de mim, ignorando o sorriso malicioso do filho. — Às vezes, como ontem, ele tem pesadelos, imagina que ainda está no serviço e pode ficar descontrolado. Aconteceu que estava no loft da empresa bem naquele momento. Ele atacou Ryses, minha secretária, aquela que você conheceu. Estava extremamente agressivo como você viu, então precisamos fazer algo que partiu meu coração, que foi detê-lo. Uma solução temporária. Tudo o que ele dizia fazia sentido, tudo batia, mas por algum motivo eu não conseguia acreditar. Talvez fosse meu instinto paranoica, talvez fossem os anos convivendo com Style e sua obsessão pela minha segurança, ou talvez... a dor nos olhos de Demeron. A indiferença de Siriu. — Onde ele está agora? — Em casa, descansando. — Mandou-me pedir desculpas, lhe trazer flores. — Siriu apontou para a mesa, onde um vaso estava perfeitamente montado. — E me disse para convencê-la a não desistir do trabalho por causa dele. — Eu não desistiria por causa dele, desistiria por causa de vocês. Mas, se é tudo como dizem, vou pensar, e peço a Slom que entre em contato quando me decidir. Stark sorriu e parecia um sorriso verdadeiro. — É tudo o que peço. Que reconsidere. Acho que você é uma das artistas mais talentosas da atualidade. Quero exibir quatro peças exclusivas da minha família, feitas por você, no meu próximo aniversário. Fitei Siriu, depois Regnar, e voltei a Stark. Todos pareciam arrependidos e sinceros. Relaxando meus ombros, me permiti dar um leve sorriso fechado e assentir para o homem que fazia tanta questão da minha arte para algo tão importante como sua família. Respirando profundamente, coloquei a ponta da caneta na tela do tablet e usei o tempo que Slom entrou na sala, servindo-lhes café e conversando brevemente com os três para tomar minha decisão. Lhe dei um olhar de reprovação quando descaradamente se jogava para Siriu, que não hesitou em envolvê-la em sua conversa, e dava risadinhas para as piadas inapropriadas de Regnar. Me perguntei se a criatura se esquecia que tinha uma esposa. Quando ela saiu, fitei Stark. — O que você quer das esculturas? Ignorei minhas paranoias, e a cada momento que voltava a pensar nos gritos, olhava para o vaso no meio da mesa. Isso ajudava a me recompor, mas não mudava que eu continuava definitivamente perturbada. “Não deveria estar aqui porque eu deveria estar morto Posso ver as luzes na minha frente” LIGHTS OF HOME, U2 BASE MILITAR DO BUNDESNACHRICHTENDIENST, BND (Serviço de Inteligência da Alemanha) ALGUMAS SEMANAS ANTES — Eu não deveria estar aqui. — Siriu Konstantinova repetiu pela segunda vez, enquanto observava dois guardas dando tapas no rosto de seu primo mais novo para acordá-lo. Ainda havia um toque de compaixão que o fez querer derrubar aquela porta e salvá-lo do mundo, mas ele sabia que não havia a menor possibilidade de ambos saírem com vida. E, além disso, sabia que Demeron merecia o que estava sendo feito a ele. — Sim, sim — Erike Ditz, o diretor da BND, resmungou. — Você é um homem da lei e tudo mais. Bem, eu também sou. Não, ele não era. O homem comandava a maior agência de espionagem da Alemanha e se recusava a deixar Demeron Konstantinova, um preso acusado de traição, voltar para A Liga, mesmo sabendo que as leis para os desertores do país eram tão rígidas lá quanto no sistema do Governo. — Seu primo se recusa a contar para onde Style Tieko foi, isso não pode ficar impune. A missão dele era clara e além de fracassar, os dois conspiraram para transformar uma missão de alto nível autorizada, em um ataque terrorista. As vidas daquelas meninas inocentes estão nas mãos deles, e seu primo pagará por isso sozinho se não entregar o parceiro. Siriu respirou profundamente e olhou através do vidro, vendo Demeron cuspir a água do afogamento simulado.Ele tinha estado preso entre quatro paredes de concreto sozinho durante quase dois anos, e o diretor finalmente decidiu que era tempo suficiente para tentar quebrá-lo. Já tinham passado para o terceiro dia de tortura e não tiraram uma palavra sequer de sua boca. Siriu sabia que continuaria assim. Ele não era um espião e nunca passou pelo treinamento militar que seus primos haviam passado, mas sabia como funcionava e Demeron aguentaria a tortura até a morte, mas nunca diria nada. Siriu ainda se recusava a acreditar que Demeron tivera algo a ver com isso. Antes de ser um espião, Demeron foi um militar exemplar, apaixonado pelo país. O que o levaria a trair e deserdar sua nação? — Ele nunca vai falar. Erike deu de ombros, sorrindo enquanto observava os guardas colocarem Demeron contra a parede, ligarem a mangueira de gelo líquido e apontarem para ele. A boca de seu primo se abriu num grito silencioso, enquanto os jatos de água batiam em seu corpo nu. — Ele pode não falar, mas vai receber a lei por ele e por Style. — Por que não o usa de outra forma? Os olhos de Erike mudaram para ele com interesse. — Ele pode não dizer onde Style está, mas pode nos levar até ele. — Está sugerindo que eu liberte um dos mais talentosos agentes? Ele vai desaparecer. — Não, ele não vai. Siriu foi para a porta e abriu, ouvindo Erike atrás dele mandando os guardas pararem. Ajoelhando ao lado de Demeron, viu como ele tremia incontrolavelmente, o corpo tendo espasmos da tortura. — Soldado — Siriu chamou, fazendo Demeron, sua carne e sangue, olhá-lo. O rosto mal era reconhecível, os olhos tão distantes que Siriu se perguntou se ele ainda podia ver. — Temos uma missão para você. Demeron reuniu todas as forças que ainda restavam sob seus ossos e a carne fraca em seu corpo, e se inclinou para frente, quase encostando nariz a nariz com seu primo quando rosnou: — Eu não sou mais um soldado. Siriu trancou a mandíbula e ficou de pé, afastando-se dele. Quando estava longe da mira das mangueiras, ordenou: — Liguem novamente. Mais forte dessa vez. Ele assistiu um de seus melhores amigos sofrer e foi atingido por alguns resquícios de água também. Mas, não se importou de molhar o terno àquela altura, quase nada abalava suas sombras. "O mundo desacelera Mas meu coração bate depressa agora Eu sei que essa é a parte Onde o fim começa" THE PUSSYCAT DOLLS, I HATE THIS PART DIAS ATUAIS — Como foi? — Slom perguntou assim que passou pelas portas do ateliê, referindo-se a minha reunião mais cedo com Stark, no prédio da Konstantine. — Normal — murmurei, concentrada na figura ganhando forma a minha frente. A verdade era que eu estava irracionalmente irritada. O tour que um funcionário me deu pelo prédio da Konstantine Business foi incrível, principalmente porque eu era uma boa admiradora de obras de arte, categoria em que aquele prédio se encaixava. Mas, eu tinha que admitir a mim mesma que foi o fato de ter ido a todos os andares e não encontrar Demeron, o que me deixou frustrada. — Stark não sabe o que quer. Ele pediu algo com o brasão de sua família, mas quando pedi maiores detalhes, ele não sabia. Disse que eu tenho orçamento ilimitado para escolher o material, fazer o que eu quiser para criar meu melhor trabalho. — Uau — disse ela, puxando uma cadeira para o outro lado da escultura, sentando-se de frente para mim. — Que generoso. Eu não respondi. A generosidade dele não significava nada para mim. Eu queria criar algo com alma, com paixão, com força, mas após a manhã que passei com Stark, comecei a me perguntar: por que ele havia realmente me chamado para isso, se era nítido que a escultura seria apenas algo para exibir? Eu não podia fazer uma exposição de uma peça só, portanto, ia exibir minha coleção nova, já criada, com quatro peças, e acrescentaria a de Stark como um bônus. Ela seria a estrela da noite. Ele achou que era uma ideia incrível, mas para ser bem sincera, havia uma pontinha de medo em mim que me fazia tremer cada vez que pensava no assunto. — Ele não está sendo, Slom — sussurrei, esculpindo então um anel de fogo, um dos detalhes que compunham a enorme figura. — Eu odeio criar algo só por criar. Meu trabalho nunca foi por dinheiro. Eu não me importo com a generosidade dele, se, no fim, ele vai olhar para a escultura como se sua próxima preocupação fosse encontrar um lugar para deixá-la e seguir em frente. Eu esculpia o que sentia em minhas veias. A vida, meu sangue bombeando, minhas emoções, sentimentos e angústias. Eu gostava de ver as pessoas sendo tocadas e profundamente incomodadas com uma enxurrada de sentimentos em minhas exposições. Elas deveriam pensar, refletir, se encorajar e entristecer. Isso era o que eu sentia enquanto as criava. Uma tristeza profunda, um incômodo constante e era atacada pelos pensamentos mais perturbadores. Na maioria das vezes, minhas lágrimas se misturavam ao material ainda pastoso, porque eu via as figuras antes de estarem construídas, e as sentia antes que pudesse sequer tocá-las. E Stark Konstantinova me desafiava a criar algo oculto, algo que eu não sentia, algo que não existia para mim. — Onira? — Slom perguntou e eu senti uma lágrima deslizar pela minha bochecha. Empurrei o suporte para o lado, derrubando o objeto sem significado no chão, a cera endurecida quebrando em milhões de pedaços aos nossos pés. Slom se levantou, puxando sua cadeira e voltando minutos depois com uma vassoura na mão. Ela não disse nada e nem tentou me tirar dali, mas levantei uma mão, pedindo silenciosamente para me deixar sozinha. Ela fez isso, e o barulho da porta fechando foi reconfortante. Continuei sentada, observando a peça irreconhecível aos meus pés. Mais uma vez pensei sobre Demeron. Me perguntei o que ele diria se eu perguntasse o que estava sentindo. Ele seria como seu pai e resumiria em dinheiro? Ou assim como da primeira vez, ele seria misterioso, intrigante e abalador? Inclinando-me, passei os dedos pelo gel no chão. Olhando o material da peça mais desafiadora da minha carreira e tive vontade de sorrir. Sabendo que apenas pelo que em menos de cinco minutos a presença de Demeron me fez sentir, com palavras em sentimentos, ele me faria criar a coisa mais extraordinária da minha vida. FRANKFURT, ALEMANHA PRESÍDIO SECRETO DE SEGURANÇA MÁXIMA PARA EX ESPIÕES A cela bem protegida do presídio de segurança máxima nos cantos mais esquecidos de Frankfurt era fria, e naquela noite se tornaria congelante para o prisioneiro em questão, que ansiava por sua liberdade em dez dias. As paredes que rodeavam o lugar eram frias e sem uma cor definida. Poderia ser branca, cinza ou até mesmo preta, dependia unicamente de quem a ocupava. E naquele momento, era tão escura quanto um abismo profundo. O homem de pé encapuzado segurou a arma com uma tranquilidade que os anos de treinamento o ensinou a ter. Aprendeu a caçar, rastrear e eliminar, ansiando para seu nível na Liga subir conforme riscava os nomes nas listas. Uma morte, um passo acima. Era a cadeia alimentar fatal, onde para sobreviver, era necessário matar. E nenhum dos integrantes se preocupava com isso. Os olhos do homem deitado na cama se abriram de imediato quando sentiu uma presença em sua cela, e com uma rapidez impressionante, ficou de pé. Não tentou lutar e nem resistiu. Sabia que estava em desvantagem. E no fundo, reconhecia que merecia aquele fim. Mas, de qualquer forma, resolveu tentar. — Quero falar com Stark. — Tarde demais. — O atirador respondeu, se sentindo mais satisfeito do que nunca com o embate. Orgulhoso da posição que estava. — Eu solicito um julgamento na Liga. — Você já teve um. E o resultado é a bala que daqui a poucos segundos estará cravada em seu coração. O prisioneiro ergueu o queixo, sabendo que não adiantava debater e muito menos tentar fugir. Sua hora havia chegado, e assim como deu as costas a seus companheiros, todos dariam as costas para ele também. Não havia ajuda, opções ou adiamento. Eraali e naquele momento. O julgamento final. — Suas últimas palavras? — Que Stark se lembre de mim quando morrer, porque os meus irão me vingar. O atirador inclinou a cabeça, sorrindo. — Passarei seu recado. Puxou o gatilho e o silenciador garantiu que a atenção desnecessária não fosse chamada. Quando o corpo grande desabou no chão, ele se aproximou e deitou o homem na cama novamente. Pegou o ácido que havia guardado no bolso e apagou o Rubi que havia no peito, acima do coração. O homem gemeu, segundos depois os olhos arregalaram em choque, e o ceifador levou os dedos ao pescoço dele, sentindo o pulso ficar mais fraco. Ficou de pé, abrindo a cela, e saiu, fingindo não ver o guarda que vigiava o corredor, assim como o guarda fez vista grossa para ele também. Escondeu a arma por dentro do sobretudo e saiu pelos portões, sorrindo para a noite. Missão cumprida. A Liga dos Diamantes colocou um alvo em suas costas, e independente de ser culpado ou inocente, o coração do homem deveria parar de bater quando a noite caísse. A Liga nunca errava, e como sempre, aquele era apenas mais um nome acrescentado à extensa lista de eliminações. "A mente é um campo de batalha Toda a esperança se foi Pensamentos como um campo minado Eu sou uma bomba prestes a explodir Talvez você deva prestar atenção por onde anda Não se perca O coração é um livro de histórias Uma estrela apagada Alguém está chegando Não olhe agora" FOO FIGHTERS, THE SKY IS A NEIGHBORHOOD Style e eu costumávamos ir à missa antes de ele ir embora, e mesmo que agora eu tentasse manter aquele costume vivo todos os domingos, era difícil sem meu irmão. Ainda que relutante, levantei cedo e fui, já sabendo que quando voltasse para casa não teria cabeça para mais nada. A igreja antiga, decorada de dentro para fora no estilo do século XVIII, era um luxo. Os desenhos que contavam histórias, cada detalhe nas pinturas do teto, nos lustres e até nas velas, fazia com que o chão daquele lugar intocável se tornasse sagrado. Sentei no canto do último banco, o véu na cabeça me dava uma pequena sensação de estar protegida, e ouvi o sermão do padre, inevitavelmente chorei nos coros. Nós nunca interagíamos com as pessoas que frequentavam, meu irmão era paranoico ao nível de desconfiar de tudo e todos, até mesmo das senhoras de bengalas, mas se esforçava para, pelo menos, ser gentil com a maioria delas. — Onira! — O padre chamou quando me viu na fila caminhando lentamente para fora. — Padre. — Acenei e dei-lhe um pequeno sorriso. Ele abriu os braços com um sorriso gentil nos lábios. — Estou feliz que veio. Sentimos sua falta nos últimos domingos. — Sinto muito não ter aparecido. Eu só fiquei pensando em como seria estranho me sentar aqui sem meu irmão. — Eu entendo. — Com um olhar simpático, ele assentiu. — E como foi? Como está indo? — Ele era minha única família, sinto sua falta todos os dias. Mas sei que ele não gostaria que eu deixasse de vir. Padre Terry segurou minhas mãos e deu um aperto consolador. Eu suspirei aliviada por simplesmente ter alguém que se importava. Ele não me conhecia particularmente e muito menos de Style. Só sabia nossos nomes e que vivíamos na cidade, mas fora isso, toda a gentileza e simpatia que nos dirigia era preocupação, afeto puro e cuidado. O homem sorridente e muito bonito queria cuidar de seu rebanho, e eu estava grata por isso. — Ficará mais fácil com o tempo e eu tenho certeza de que ele está olhando por você. — Obrigada, Padre. Eu estou me sentindo um pouco em falta, levando em conta tudo o que o senhor fez por mim e pelo meu irmão. Ele cortou com a mão no ar, me acalmando com simpatia. — Deixe disso. Vocês são parte dessa casa. O Senhor tem planos para você e mesmo que não entendamos Seus caminhos para Style, devemos confiar. Eu só cuido das coisas por aqui enquanto Ele me permite. Faço apenas o que posso. — Está enganado, Padre. Acalmou Style muitas vezes e me confortou várias também. Eu pensei que talvez... O senhor precisa de ajuda por aqui? Eu poderia ajudar com algo além de doações em dinheiro. Tenho um tempo livre consideravelmente bom. Ele sorriu. — Onira, você já faz muito contribuindo com a casa de Deus e principalmente vindo aqui mesmo diante de suas dificuldades e do momento que passou. E eu tenho tudo sob controle. — Certeza? — Olhe para essas senhoras. — Ele acenou com afeto para as velhinhas espalhadas pela igreja. — Elas anseiam pelo voluntariado e as obras que fazem aqui. Ter uma jovem moça ajudando as deixaria inseguras. Eu dei risada, aceitando. Eu sabia que ele estava brincando. Mesmo sério, Padre Terry tinha um bom senso de humor. — Tudo bem, Padre. Mas eu estou à disposição. Sua benção. — Que a graça de Deus lhe acompanhe, minha filha. Saí da igreja com um adeus e mais uma vez pensei em Mic, na facilidade que seria ter nosso motorista de volta. Em alguns momentos ficava tentada a ligar e pedir que voltasse de uma vez, mas me controlava. Não que ele fosse reclamar, afinal, depois de anos no exército, ele dizia ter perdido o dedo calmo, gostava de trabalhar. Isso me fazia pensar em algo que Style havia me dito uma vez. “Manter-se ocupado impede que homens como nós pensemos demais.” Eu nunca tinha entendido o que ele queria dizer com “homens como nós”, mas não perguntei. Conhecia meu irmão e sabia que havia coisas que simplesmente não se questionavam. Meu telefone tocou enquanto eu caminhava pela calçada para casa, e o nome de Slom piscando na tela me trouxe um sorriso. — Não me diga que deixou as luzes acesas e a porta destrancada e precisa que eu volte lá, de novo — falei e ouvi seu riso do outro lado. — Você fala como se eu já tivesse feito isso. — Ah, Slom... quem não te conhece até cai nesse seu papo inocente. — Bem, eu não aprontei no ateliê, mas sei que esse horário você deve estar saindo da sua missa. — Eu estou. — Timing perfeito! — disse ela e na mesma hora um SUV prateado parou ao meu lado. Dei um pulo para trás, mas a porta traseira se abriu e minha amiga saiu, correndo para mim. — Vim te pegar para gente almoçar! — Slom! Porra, você quer me matar do coração? — Acabou de sair da igreja e está com a porra na boca? Revirando os olhos para suas gracinhas, guardei o telefone. — É bom que a comida seja boa. — Deve ser ótima. Vamos. — Cruzou nossos braços e foi saltitando para o carro. — Kurt vai nos levar em um lugar novo que abriu no centro. Ele é o principal investidor e quer saber se perdeu dinheiro. Eu estanquei na mesma hora, pensando em milhões de maneiras de sair daquela situação. Atirando à minha amiga um olhar aturdido, soltei seu braço e dei um passo atrás. — Kurton? — perguntei enfaticamente. Ela só podia estar brincando comigo. — Sim, o que tem? Ah, por favor Oni, já faz tempo. Eu a encarei incrédula, e como se fosse invocado pelo próprio demônio, a porta do outro lado foi aberta e um dos meus maiores desgostos surgiu ali, tirando os óculos escuros que cobriam os olhos pretos. Ele teve a cara de pau de me dar um sorriso. Mas, é claro que ele faria isso, afinal, era Kurt. Acontece que Slom não era apenas minha amiga, assistente e futura sócia. Era também a irmã dele. Pensando bem, eu comecei no mesmo momento a reconsiderar a proposta de sociedade. Não podia acreditar nessa merda. Meu domingo havia começado tão pacífico, e então, aquilo. — Onira. — Ele me cumprimentou de longe. — Você está encantadora. Desviei os olhos dos seus e foquei em minha amiga. Não sei qual foi a luz que atingiu Slom, mas ela de repente pareceu arrependida, como se tivesse se dado conta da besteira que fez. Eu tinha evitado aquele homem com todo o esforço e ela o levou direto para mim. — Acho que não foi uma boa ideia? — ela meio afirmou e meio perguntou, torcendo os dedos. — Eu tenho planos, Slom — falei pausadamente, esperando que ela entendesse quão puta eu estava. — Acabei de me lembrar de algo que precisa da minha atenção. Mas vá em frente e almoce comseu irmão. — Ah, não, Oni. Por favor! — Estou um pouco abalada por ter vindo aqui a primeira vez sem Style. Eu não seria uma boa companhia agora. — Você é sempre boa companhia, Onira. — Kurt disse, recolocando os óculos. Respirando fundo, cerrei os dentes juntos e fitei Slom. — Tire-o de perto de mim. Ela rapidamente acenou e me deu um abraço. Eu não perdi o sorriso divertido que enfeitava o rosto do maior cafajeste da cidade. Kurton Ward. Kurt era um magnata dos negócios e esse fato parecia fazê-lo pensar que ele podia tudo. Ele estava envolvido com um pouco de tudo. Pelos boatos, variando e pisando dentro e fora da lei, mas independente de qual ramo fez dele tão poderoso, o fez também multibilionário, mas além disso, um idiota. Tanto dinheiro, uma personalidade venenosa e um cinismo que eu não entendia como cabia nele. Passar uma semana com ele foi o suficiente para saber que eu não ia aguentar ficar nem mais um dia. A vida dele era resumida ao trabalho, e quando decidia deixar o trabalho de lado, me procurava para fazer sexo. Ele levou minha virgindade enquanto declarava seu amor na beira do mar de sua ilha particular. Quando “terminamos” eu comecei a descobrir mais sobre ele, ouvir boatos sobre seus negócios e a assistir o desfile interminável de mulheres que ele exibia. Eu não podia culpá-las. Ele não era só absolutamente lindo, mas a forma como se movia, como falava... conquistava quem quer que fosse. O cabelo loiro escuro, que beirava ao castanho claro, num corte simples que parecia sempre despenteado, era um charme, mas a primeira coisa que eu notei foram os olhos. Ele tinha os olhos mais escuros e intensos que já vi. E aqueles lábios... um rosto emoldurado com uma mandíbula quadrada e um nariz perfeito. Ele era muito educado também, mas seu maior defeito estava nos lábios: as mentiras que escorriam tão fáceis deles. — Nós nos vemos amanhã, Slom. — Eu a abracei em despedida e acenei para ele secamente com a cabeça. — Adeus, Kurton. — Até logo, Onira — declarou com um sorriso perverso nos lábios. Me negando a perder a cabeça por seus jogos, me afastei e praticamente corri para virar a primeira esquina que vi, querendo urgentemente sair da visão daquele homem. O dia frio era bem-vindo, principalmente sabendo que eu podia chegar em casa e me aconchegar no sofá com uma taça de vinho. Por ser domingo, eu me daria o direito de ignorar qualquer ligação e alertas de e-mail. Passei pelo beco com meus saltos fazendo barulho a cada passo, e franzi a testa ao ver que no fim dele não tinha uma avenida ou rua movimentada. Peguei o próximo beco à direita, acelerando meu caminhar para encontrar uma saída e pegar um táxi. Foi quando ouvi outros passos além dos meus atrás de mim. Meu coração deu um salto e olhei para trás, não vendo nada além da rua vazia. Andei mais rápido, ouvindo um barulho mais alto dessa vez, como algo batendo num metal. Olhei para trás, vendo uma lata de lixo derrubada e alguém já entrando em meu campo de visão. Minha pele esfriou. Não pelo frio, mas de puro terror. Quem disse que os becos não são tão perigosos durante o dia não sabe de nada. Não esperando para ver se era realmente alguém atrás de mim ou só uma coincidência, me atirei na próxima curva que vi à esquerda, e corri. Corri como nunca antes. Meus pés desequilibrando no salto e meu cabelo atrapalhando a visão. Olhei para os dois lados, não vendo nada além de um labirinto sem fim, e comecei a entrar em pânico completo. Seguindo para a curva mais próxima, virei ainda correndo, mas no momento em que entrei no beco, bati em alguém. Mãos enluvadas seguraram meus braços e eu fechei os olhos, soltando um grito que ecoou pelas paredes sem reboco desertas. — Ei! — disse ele, tentando me impedir de acertá-lo com meus tapas. — Me solte, me solte! Deixe-me ir! — Onira, abra os olhos. Ouvindo a voz que tinha me atormentado, obedeci. Meu corpo estava entre acalmar ou tencionar mais ainda. — Você — sussurrei. Como ele estava ali? Como sabia quem eu era? Ele olhou para os lados, como se estivesse evitando meus olhos. Mas, ainda assim, eu não desviei dos dele. As irises azuis intensas que dois dias antes me aterrorizaram de medo por ele, naquele momento pareciam serenas. Podia mesmo ser o mesmo homem? Eu exalei uma respiração pesada e puxei o ar, tentando fazer meu coração parar de bater na garganta, sabendo que tudo estava bem, era ele e... Mas então isso me bateu. — Você está me seguindo? — gritei, tentando empurrá-lo. — É claro que não. — Ele franziu a testa, as sobrancelhas baixando juntas. — Eu estava caminhando e você simplesmente bateu em mim. O que está acontecendo? — Eu não sei — sussurrei. — Eu estava andando e de repente alguém começou a me seguir! Ele deu um passo atrás, colocando distância entre nós. — Sinto muito, não queria assustá-la mais do que já fiz. — Você se lembra... se lembra de mim? — Claro que sim. — Me evitando de novo, se afastou mais, enfiando as mãos nos bolsos. — Você viu o rosto? Saberia reconhecê-lo? — Não, eu não olhei direito. Ouvi passos atrás de mim a cada curva que eu fazia e entrei em pânico, comecei a correr. Ele soltou um suspiro, olhando por cima da minha cabeça. — Vou levá-la até sua casa. — O quê? Eu deveria prestar queixa, fazer algo. — Você não viu o rosto do sujeito, Onira. Não há nada que possa fazer. Os policiais não farão nada, porque não têm como te ajudar nesse caso. — Mas... mas e se... — Esses becos não têm câmeras e você não tem um rosto. Na verdade, não tem certeza se ele te seguiu, certo? — Ele parecia estar fazendo isso. — Tenho certeza de que você acha que parecia, mas pode não ser isso. Eu suspirei, encostando minha cabeça na parede, mas, na verdade, queria deitar meu rosto em seu peito largo, me aproximar o máximo possível da sensação de segurança que ele transparecia. — Tive tanta sorte em encontrá-lo, Demeron. — Segurei sua mão e dei um aperto, tentando sorrir em agradecimento. — Obrigada. Os olhos dele brilharam com as minhas palavras e esperei um sorriso aparecer em seu rosto, mas ele só endureceu mais ainda. — Sim. Você teve muita sorte. — Lugar legal. — Ele disse assim que entrou na minha casa. Se Style pudesse me ver, me trancaria no quarto por uma semana. Levar um estranho para dentro de casa seria considerado altamente proibido para o meu irmão. Eu olhei em sua direção, vendo-o olhar em volta e me admirei de como o grande homem parecia deslocado com suas botas pesadas e jeans dentro do meu apartamento decorado pela maior designer da França, rodeado de obras de artes que fui presenteada. — Obrigada. — Rindo de seu desconforto claro, apontei para o capuz e as luvas. — Você pode tirar isso aqui dentro, você sabe. Ele baixou o capuz para trás, expondo os fios do cabelo dourado, mas continuou com as luvas. Um silêncio estranho se construiu, e eu tirei o casaco, tentando deixá-lo confortável. Eu não podia acreditar que estava sozinha com alguém que tinha problemas mentais que poderiam sair do controle a qualquer momento. Estava me colocando em risco por curiosidade. Porque aquele homem me intrigou desde o primeiro momento, e isso não era algo que eu podia mudar. — Obrigada pelas flores. — Flores? — perguntou, franzindo o cenho. — Sim, Siriu as levou no meu ateliê. Cerrando a mandíbula, ele assentiu. — Claro, as flores. De nada. Indo para a estante das fotos, pegou um retrato da minha primeira viagem fora da Tailândia, em Paris, no museu Rodin. Eu estava ajoelhada na frente da escultura de Rodin, “O Beijo”, e olhava para o casal de pedra com as mãos sob o queixo, uma expressão sonhadora no rosto. — Quantos anos você tinha nessa foto? — Tinha acabado de fazer quatorze. Eu estava infernizando meu irmão há meses para me levar para conhecer o beijo mais famoso da história e de alguma forma ele conseguiu fazer isso. Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso. — Você era muito jovem. — A maioria das adolescentes em algum momento sabem que estão apaixonadas
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