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Box O Cavalheiro das Sombras

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Nana Simons
2º Edição – 2020
 
Copyright © 2020 Nana Simons
Todos os direitos reservados.
 
SOLDADO DE GELO
Revisão: Lidiane Mastello
Capa: Murilo Guerra
Diagramação: April Kroes
 
CAVALHEIRO DAS SOMBRAS
Revisão: Lidiane Mastello
Capa: Ellen Scofield
Diagramação: April Kroes
 
 
 
SOLDADO DE GELO - LIVRO 1
Dedicatória
Nota da autora
Aviso
Mini glossário
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Bônus
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Epílogo
Agradecimentos
 
CAVALHEIRO DAS SOMBRAS - LIVRO 2
 
Nota da autora
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Epílogo
Agradecimentos
 
 
 
Para todos que tem uma alma sombria, que meu Demeron quebre seu coração
e que Onira te faça ver através dos pesadelos; Nem os piores sonhos devem
nos impedir de continuar respirando.
 
 
 
Olá, leitora e leitor.
Obrigada por dar uma chance a esse livro, mas antes de começar a ler,
eu recomendo fortemente que você leia os avisos com muita atenção e sem
pular nenhuma palavra. Se decidir seguir em frente, aproveite a leitura e
sinta-se livre para deixar sua avaliação, seja 1 ou 5 estrelas, eu gosto de ler
todas elas.
Se esse livro te causar revolta, indignação, lágrimas e no fim... suspiros
com a redenção, então minha missão estará cumprida.
Grande beijo, Nana Simons
 
 
 
 
Lucca DeRossi (O Monstro em Mim – Série no Berço da máfia Livro 1)
Luigi DeRossi (O Monstro Rendido – Série no Berço da máfia Livro 2)
Dante DeRossi (O Monstro em Guerra – Série no Berço da máfia Livro 3)
Juan Carlo Herrera (O Governador – Livro único)
Aya Maria Herrera (O Governador)
 
 
Este romance é uma ficção. Porém assuntos e temas abordados existem
e foram estudados para a construção do livro.
Romance dark;gótico;sombrio: subgênero literário do romantismo,
associado a temas polêmicos e aborda temas pesados. Está ligado não apenas
ao romance romântico, mas também a fascinação com o irracional, o
demoníaco e o grotesco.
Neste livro, é equivocado procurar mocinhos perfeitos, românticos e de
arrancar suspiros de amor. Neste livro, você encontrará um antagonista. Ele é
um anti-herói.
O livro contém uma linguagem adulta e apropriada para maiores de 18
anos, contém descrições de sexo. Situações de abusos físicos e psicológicos.
Torturas e descrições de rituais. Essas situações não são romantizadas.
A autora não apoia nenhuma das práticas descritas. A opinião da autora
sobre as religiões citadas não está presente no livro.
Leia com a mente aberta.
 
 
Kambarys – Rede de tráfico de pessoas, usadas como igrejas onde a
seita realiza rituais de sacrifício e fazem uso das escravas sexuais.
Mestre – Denominação dos homens que compram mulheres, ou ganham
o direito de criar os filhos de suas escravas para treiná-los a servir.
Quarto Reich – Termo utilizado para descrever um futuro teórico da
história alemã - um sucessor do Terceiro Reich. Nas teorias da conspiração, o
quarto Reich seria levantado como sucessor de Adolf Hitler na Alemanha
nazista.
Kings — Chefes do crime de países que se reúnem para tomar decisões
a respeito de atividades que operam juntos. Itália, Alemanha, Rússia e
México.
High wizzard – Na tradução “Sumo-sacerdote” é o título dado aos
homens de alta posição dentro das seitas, eles realizam magia negra para o
grupo.
Frigga – Deusa-Mãe na mitologia nórdica. Esposa de Odin e madrasta
de Thor e mãe adotiva de Loki é a deusa da fertilidade, do amor e da união. É
também a protetora da família, das mães e das donas-de-casa, e símbolo da
doçura.
Freya – Freya é a Deusa do amor na mitologia nórdica, mas também
está associada ao sexo, luxúria, beleza, feitiçaria, fertilidade, ouro, guerra e
morte.
Simbologia da LIGA: Pedras preciosas que determinam a hierarquia
dentro da organização. Sendo Esmeralda, Cristal, Safira, Rubi e a mais alta,
Diamante.
 
 
 
 
 
“O momento em que você terá que se erguer
Acima dos melhores e provar a si mesmo
Que seu espírito nunca morre”
IMAGINE DRAGONS, WARRIORS
 
 
TRÊS ANOS ANTES 
Havia dois tipos de homens que eu gostava de completar minhas
missões levando a óbito:
Homens que cometiam crimes contra a humanidade; 
Homens que cometiam crimes contra o meu país. 
Mudié Abramsen era um homem que eu queria matar, mas ele não se
encaixava em nenhuma dessas duas espécies. Eu, na verdade, não sabia
como classificá-lo até então. 
— É pelo bem maior — disse ele, sorrindo como se eu fosse seu amigo. 
Eu assenti a cada uma de suas palavras, concordando como um
robô. Mudié era um dos gerentes do lugar, com quem eu vinha “trabalhando”
pelos últimos cinco meses. Permaneci em silêncio após concordar com sua
explicação sobre o porquê fazíamos o que fazíamos. Bebendo
minha vodka Iordanov russa, enquanto observava a cena a minha frente. A
grande sala subterrânea ficava a vários metros abaixo da água, numa ilha
paradisíaca em Oslo, Noruega. A fila de meninas nuas ajoelhadas parecia não
ter fim, e enquanto cada uma implorava por sua dose da heroína mais pura do
Afeganistão, as que recebiam iam sendo distribuídas para os homens bebendo
e falando ao redor. 
— É claro, tudo pelo o bem maior — respondi. — De onde elas vêm? 
Ele riu e cruzou os braços, orgulhoso em proporcionar aquele tipo de
diversão doente para os homens ricos que pagavam pela privacidade de seus
jogos de horror. 
— De todos os lugares do mundo. O chefe gosta de manter a variedade. 
— Ele parece um homem inteligente — falei. — Estou ansioso para
conhecê-lo. 
— E você vai. Tem se mostrado fiel e muito rentável tanto aqui, quanto
nas unidades mundiais da Kambarys. Ele virá hoje e você vai ser apresentado
como um dos noviços. 
— E é só isso? — perguntei, brincando com a bebida no copo. 
— Passará pelo ritual, é claro. 
— Ritual? — Style Tieko, meu parceiro em diversas missões, perguntou
ao meu lado. Eu quis jogar meu cotovelo em sua costela a fim de avisá-lo
para prestar atenção em cada palavra que saía de sua boca, mas os olhos
atentos de Mudié estavam em nós a todo o momento. 
— É claro. Você vai escolher uma dessas meninas e fodê-la enquanto
entoa os cantos lituanos Illuminati. Deve tirar sangue delas com qualquer
objeto de sua escolha enquanto faz isso, e quando derramar seu sêmen, deve
tirar a vida dela.
Eu já tinha ouvido sobre os rituais que a Kambarys realizava, por isso,
não estava chocado. Não mais. A repulsa passou por mim interiormente
apenas por pensar no que cada um daqueles homens fazia, incluindo esse
ritual, mas mantive minha feição neutra, sem demonstrar nada. Fui treinado
para não reagir, não sentir e não mostrar quando estava em missão. 
Tieko ficou tenso ao meu lado, mas não expressou nada além
disso. Mudié o encarou por mais alguns segundos, como se quisesse ter
certeza de nosso sangue frio, e voltou sua atenção às meninas a nossa frente. 
— Vocês vão escolher uma garota? Talvez duas ou três? 
— Eu gosto das minhas mulheres cientes quando estou dentro delas.
— Tieko murmurou. 
Mudié o encarou com olhos estreitos.
— Nossos irmãos não gostam de julgamentos de noviços.
Eu bati no peito de Tieko e ri.Aos olhos de Mudié, deveria parecer uma
camaradagem, mas meu parceiro sabia que era um aviso claro para manter a
boca fechada e guardar suas opiniões para si mesmo.
— O que meu amigo quer dizer — falei a Mudié. — É que o melhor
jeito de aplicar a dor é quando nossas vítimas estão sentindo cada gota do
sangue tirado de seus corpos. Eu vou escolher uma garota mais tarde. Gosto
de observar primeiro. 
Os olhos de Mudié brilharam de satisfação e um sorriso perverso cruzou
seus lábios. Ele me estendeu a mão e deu um tapa nas costas. 
— Você será um acréscimo valioso para nossa Sociedade. 
Eu assenti e sorri minimamente antes de ele sair. 
— Porra, vamos simplesmente parar isso! — disse Tieko, e sua voz
demonstrava toda a repulsa pelas cenas a nossa frente. 
— Cale a boca e foque na missão. 
— Konstantinova, isso aqui é o inferno na Terra! Você não vai foder a
porra de uma menina drogada e matá-la, certo? 
— A Liga enviará alguém para ajudá-las. Esse não é nosso trabalho. 
— Você está me fodendo? Quem sabe se essas meninas vão sobreviver
até lá. Eu vou meter um tiro na cabeça desse cara e dar o fora daqui levando
todas elas comigo. 
Perdendo a paciência, mas não o controle, o arrastei discretamente para
um corredor escuro em direção à saída do salão e ergui minha mão ao seu
pescoço, o empurrando contra a parede, então o prendi com meus olhos, sem
demonstrar qualquer emoção. 
— Você acha que é o único que tem uma arma aqui? Esses homens têm
dinheiro, muito dinheiro. Há políticos, aristocratas e homens de sangue da
realeza aqui dentro. Você acha que querem deixar vazar o que fazem no
tempo livre? 
— Eu não me importo com quem eles sejam. Essas garotas estão
chapadas até a última fibra do cérebro e mal podem ficar de pé! 
— Eu sei, porra. Esse não é o primeiro círculo de tráfico humano que eu
entro e não será o último, mas a nossa missão aqui é apenas uma: seguir o
chefe e dar um tiro limpo, sem rastros, sem suspeitas, então saímos. Se você
sair do foco da missão e der um tiro, será um banho de sangue. Essas garotas
vão pagar com suas vidas e as chances de nós sairmos vivos daqui viram
nulas. 
Ele me encarou por longos minutos, então fechou os olhos e assentiu.
Quando o soltei, ele deu um suspiro quebrado. 
— Essa merda é fodida, porra. Tão fodida! 
— Sim, é. — Dei dois passos para voltar ao salão, mas ele ainda
continuava escorado na parede, encarando o chão. — Agente Tieko,
concentre-se na missão. 
— Você tem certeza de que a Liga enviará alguém? 
— Protocolo 3. 
— Sim, sim. — Ele suspirou. — Eu sei. Foco na missão. Eu saudei
Hitler como cada um aqui dentro, quero justiça sobre essa merda.
Fechei o botão do meu terno e dei um pequeno aceno para voltarmos
para lá. Eu odiava estar preso àquelas roupas de três peças que impediam
meus movimentos. Aquilo era com meu irmão, eu preferia algo mais rústico.
Mas, para me infiltrar na rede, precisava parecer como um deles.
— A Liga sabe o que acontece aqui, temos que pensar que a ajuda está
vindo. Até onde sabemos, nada impede que haja agora mesmo alguma equipe
em missão de resgate.
Eu dizia a verdade. Os protocolos de segurança impediam que uma
equipe ficasse ciente de outras missões, toda a confidencialidade garantia que
tivéssemos sucesso sem interferir em qualquer outro trabalho. Por isso, não
importava o que acontecia ao nosso redor, nosso objetivo era assassinar o
chefe de Oslo, então até que outra cabeça assumisse o lugar, aquelas garotas
podiam ser resgatadas. 
— Certo. — Ele concordou e voltamos para o centro. 
Eu já tinha estado em lugares fodidos, mas Kambarys era um dos que
mais me surpreendeu. Meninas penduradas no teto, jogadas no chão,
compartilhamentos macabros entre vários homens, cenas que me faziam
querer vomitar. Eu não podia fazer justiça com as próprias mãos. Eram mais
de 100 homens contra 2, nós não tínhamos nenhuma chance. 
O cheiro de medo, desespero e sexo, inflamava meu nariz, me dava dor
de cabeça, me fazia querer acelerar as coisas e cumprir a missão para estar
logo longe dali. Longe dos gritos de dor daquelas garotas e da felicidade dos
homens do diabo de ter prazer no sofrimento delas. 
As atividades sexuais duraram mais duas horas. Tieko e eu nos
mantivemos de pé num canto bebendo e observando tudo como se
estivéssemos apreciando, ansiosos para começar nossa vez. 
Foi quando eu percebi que algo mudou, a energia do lugar se tornou
mais pesada e os ânimos dos presentes ficaram mais sombrios. Eles tinham
sede de sangue inocente. E foi só olhar para a entrada do salão que percebi o
porquê. 
Kazel Maraba havia acabado de chegar. Um dos chefes
das Kambarys mundiais e cabeça do tráfico humano que o FBI, a CIA e nem
a NSA conseguiram uma puta foto. Mas, a diferença entre eles e a Liga, é que
nós nunca seguíamos as regras e não tínhamos medo de burlar leis para
cumprir nossos propósitos. 
Era o que fazíamos. O que éramos. 
Recrutados para sermos espiões e assassinos profissionais. 
No momento em que a missão foi dada para mim, Kazel Maraba deixou
de ter uma chance. 
Os homens estavam praticamente urrando, extasiados com a presença
de Kazel. Eu só queria meter uma bala no cérebro dele de uma vez. Passaram
vários minutos de assovios, gritos e palmas, até que Mudié veio à frente e
levantou as mãos, sinalizando a todos para fazer silêncio. Eu sabia o que
vinha a seguir e não havia uma única parte de mim que não se sentia enjoada
ao saber que eu tinha que fazer o gesto. 
Kazel levantou o braço direito e todos seguiram. 
— Heil, Heil, Heil! — Sua voz ecoou pelas paredes antigas como um
cântico, e todos repetimos as três chamadas. 
— Heil, Heil, Heil! 
Eu tinha sangue alemão. Nasci na minha amada Frankfurt, e não havia
nada que eu odiasse mais do que a mancha que o nazismo deixou em nossa
nação. Mas, alguns daqueles homens eram seguidores férreos dos
pensamentos de Hitler, o que fazia de mim, ali dentro, um adorador dele
também. 
— Meus irmãos! — Continuou ele. — Hoje celebramos a vida, e para
isso celebramos com sangue! 
Os homens gritaram, erguendo os braços em comemoração. 
Kazel gargalhou, feliz pela posição em que se encontrava. Para aqueles
homens ele era um rei. 
Eu era um caçador sem compaixão, e para mim ele era apenas a Branca
de Neve. Minha mão alcançou a arma no coldre e senti os dedos de Tieko em
meu pulso, sinal de que da mesma forma que eu estava atento a ele, ele estava
em mim. 
As palavras de Kazel começaram a soar como borrões, eu começava a
perder o foco, tamanha minha fúria. Foi quando ele olhou para trás e estendeu
a mão, alcançando de um de seus homens uma figura pequena e delicada,
vestida numa túnica branca. 
A mulher tinha longos cabelos escuros que passavam de sua cintura e
manteve os olhos baixos, o queixo quase encostado no peito. Ela era pequena,
mas pelas curvas do corpo, percebi que não deveria ser tão jovem como as
outras garotas ao redor, e a forma como Kazel a mantinha perto, segurando-a
firmemente e não deixando os olhos muito afastados dela, eu sabia que ele
devia tê-la há algum tempo. Me perguntei desde quando a pequena mulher
frágil estaria sob as algemas de Kazel. 
— Irmãos, eu trouxe minha mistress para, em celebração dessa data
única, dividi-la com vocês. — Os homens os saudaram em êxtase e alguns
gritavam sua excitação. 
A mulher ergueu a cabeça como se as palavras do homem tivessem
disparado algum botão dentro dela, e quando pude vê-la me impressionei
com a beleza de seu rosto. Não havia surpresas do motivo pelo qual Kazel a
mantinha tão perto. O pequeno nariz arrebitado combinava com o queixo fino
e os lábios cheios, que tinham, inclusive, um corte no canto superior direito.
Mas o que me impressionou foram os olhos. Eles tinham uma cor âmbar,
quase amarelo. Mas, as olheiras profundas destacavam quão maltratada ela
era, e a falta de brilho nos olhos bonitos deixava claro que não importava
quanto tempo esteve com Kazel, foi o suficiente para tirar qualquer esperança
daquele olhar. 
Ela parecia horrorizada, mas ao mesmo tempo, conformada. Como se
tivesseaceitado que aquela era sua vida e destino. 
Eu queria chegar até ela e dizer que aquilo acabaria em breve, que a
tortura ia parar, que os braços do monstro não a envolveriam nunca mais. 
— Mistress, ajoelhe-se e me dê prazer com sua boca. — Ele disse num
tom calmo, mas eu conhecia a ameaça por trás de uma voz, e aquela
definitivamente era uma. 
Condicionada através do medo, assustada demais para fazer algo além
do que lhe foi ordenado, a mulher de olhos amarelos abaixou a cabeça
novamente. 
— Sim, mestre. 
Eu não tive forças para assistir. Quando ela se ajoelhou à frente do
homem e levou as mãos para a calça dele, olhei para Tieko e dei um aceno
simples, deixando-o saber que mesmo que o sinal ainda não tivesse sido
dado, eu estava prestes a completar a missão. 
O sangue fervia em minhas veias, pulsava com a adrenalina e a
satisfação de ser aquele que colocaria uma bala na cabeça do filho da puta.
Comecei a caminhar para trás devagar e desviei de todos que poderiam me
chamar ou causar algum problema que poderia me impedir de chegar até a
bolsa onde meu rifle estava esperando. Subi as escadas do corredor sul e fiz
meu caminho até o ponto estratégico para completar a missão: assassinar o
ditador que controlava a Kambarys de Oslo. 
Vi a mala preta e ajoelhei, pegando-a e tirando meu precioso, separado
apenas para as melhores missões. Aquelas que me dariam mais gosto de
realizar. 
Essa era a minha vida. Isso é o que eu fazia. Um espião alemão
destinado a seguir toda e qualquer ordem que A Liga mandasse. Fossem
serviços do Governo ou missões de ameaça à humanidade, como a que eu
e Tieko estávamos naquele momento. 
Um sorriso lento se espalhou pelos meus lábios assim que Kazel estava
na mira. Um único tiro que faria um buraco fatal em sua cabeça. Mas, quando
tomei a segunda respiração de alívio, um barulho apitou no meu ouvido. Eu
sabia o que aquilo significava e não havia nenhuma maneira de obedecer ao
comando. A base da Liga estava chamando. Eles tinham acesso a uma câmera
que eu instalei no grande salão e podiam me ver sair, podiam ver cada
movimento que fiz, desde que não havia me escondido nas sombras. Então,
se estavam chamando, era um sinal ruim. 
Fechando os olhos, pedi silenciosamente que as ordens não fossem o
que eu temia. 
— Agente Konstantinova, abortar missão. Repetindo, abortar missão. 
— O quê? — perguntei em choque, meu temor se confirmando. 
— Protocolo 1, abortar missão. 
— Não se atreva, porra! — rosnei, meu dedo quase pressionando o
gatilho. 
“É pelo bem maior.” 
As palavras rodopiavam em minha mente como um mantra. Um mantra
que o fodido filho da puta colocou lá. O bem maior nunca poderia ser a
tortura de meninas jovens e inocentes, roubando-as de suas vidas e as
colocando numa escuridão de drogas e dor. Kazel Maraba tinha que pagar.
Assim como Mudié, assim como todos os que escondiam e habitavam por
vontade própria as Kambarys ao redor do mundo. 
— Agente, suas ações serão tomadas como um ato rebelde e implicará
consequências. 
— Foda-se — sussurrei. — Ele é a missão. Por que diabos devo
abortar? 
— Siga as ordens. Abortar missão. — A transmissão foi encerrada e eu
olhei através da minha mira, para o homem que merecia, mais do que
ninguém no mundo, a bala que atravessaria sua cabeça. 
Tieko estava no meio da multidão, olhava ansiosamente na mesma
direção que eu, aguardando para ver a queda do monstro. Porra.
Porra. Porra. 
Não deixe suas emoções dominarem seu juízo. 
A voz do meu pai soou na minha cabeça como se ele estivesse ao meu
lado, e como se fossem suas mãos guiando-me a seguir as ordens. Eu me
afastei do rifle, tirando o dedo do gatilho e deixando que Kazel continuasse a
viver. Olhei horrorizado quando ele continuou se afundando no corpo da
pequena mulher a sua frente, passando então a açoitá-la nas costas, rasgando
o pano de seu longo vestido de seda branca com cada batida e marcando a
pele clara. 
Provavelmente contabilizando o tempo, Tieko olhou para cima, direto
para mim. Eu não podia acreditar naquela porra. 
Me aproximei de Tieko sem ter coragem de olhar em seus olhos e acenei
para a saída do salão. 
— Vamos. 
— O quê? — Franziu a testa. — Nós não terminamos. — Ele olhou para
seu relógio de pulso discretamente e se aproximou mais de mim. — Você
está atrasado. Qual o problema? 
— Protocolo 1. Missão cancelada. Nós temos que sair. 
Os olhos concentrados de Tieko arregalaram em choque, engolindo em
seco ele olhou ao redor e pela sua expressão, eu sabia que suas emoções
estavam prestes a vir à tona. 
Eu rapidamente o tirei de lá, tremendo, odiando cada minuto que fiz
meu caminho para a superfície. 
Quando emergimos para a costa da ilha, tiramos nossos equipamentos e
comecei a caminhar para a areia, em direção ao nosso transporte. Não havia
nenhum segurança na praia ou alojado em algum lugar para guardar
a Kambarys de Oslo. Jogada inteligente, afinal, para que guardar algo que
supostamente não existe? Quem imaginaria que abaixo daquela ilha onde as
pessoas iam para se divertir e relaxar, existia um subterrâneo de escravidão
sexual? 
— Eu vou fazer a chamada para informar que a missão foi cumprida. 
— Certo. Use o telefone à leste da costa. Eu vou para o ponto de
encontro. 
— Certo. — Ele confirmou e começamos a nos separar, depois de
alguns passos ele me chamou e virei para encará-lo. — Você acha que
podemos perguntar sobre o resgate das garotas? 
Quando fui responder, um estrondo soou atrás de nós, cortando minhas
palavras no ar e nos arremessando vários metros à frente. Uma onda nos
cobriu antes de se afastar. Quando abri os olhos, com uma tontura infernal,
vários pontos do meu corpo doíam e gotas de sangue pingaram pelos meus
olhos. Uma pedra do lado da minha cabeça me mostrava que provavelmente
bati com a queda. 
Com meus ouvidos ainda zumbindo, ergui a cabeça e olhei para a água,
a fumaça que subia sem parar e o fogo aumentando não deixavam dúvidas
sobre o que havia acabado de acontecer. 
Apertei o transmissor em meu ouvido, ligando para chamar a base, mas
meus olhos estavam fixos na água. Se fechasse os olhos, podia ver as mais de
cinquenta meninas inocentes boiando lado a lado, suas camisolas brancas
idênticas soltas no mar e os cabelos igualmente compridos nadando em meio
àquela imensidão azul. Uma dor como eu não sentia há muito tempo
ameaçou crescer no meu peito, fazendo-me esfregar a carne numa tentativa
inútil de afastá-la. 
Mas eu sabia que nada mudaria aquilo. O tempo era fixo e não havia
volta para o que havia acabado de acontecer. Eu me segurei, levantando e
sabendo que precisava conferir Style, ainda deitado na areia, enquanto meus
olhos ainda estavam presos no fogo que a explosão do subterrâneo causou. 
Mas eu não podia me mover. Não podia tirar meus olhos do assassinato
em massa que aconteceu diante de mim naquele paraíso tropical. Eu sabia
que tinha acabado de deixar mais uma parte de mim para trás. Com o mar, o
céu azul que de repente não parecia mais tão bonito, e com a minha recusa
em salvá-las mais cedo. 
Todas as garotas mortas. Todas que eu deixei para trás. 
A mulher dos olhos amarelos. 
Tudo pelas malditas ordens. 
— Porra, porra, porra. — Soltei um murmúrio quebrado, me arrastando
até Style. 
O virei, batendo em seu rosto e chamando-o sem cansar. Olhei para o
mar novamente, sabendo que mesmo a região sendo parada, em breve a
fumaça chamaria atenção. 
Quando voltei meus olhos para Style, não tive tempo de reagir. Seus
olhos puxados estavam fixos em mim, frios como eu nunca vi meu parceiro
antes, e no segundo seguinte uma seringa foi enfiada em meu pescoço, suas
últimas palavras levando embora o último resquício de humanidade que havia
em mim. 
— Sinto muito, Demeron.
 
 
 
 
“O que você quer de mim?
Por que não foge de mim?
O que está querendo saber?
O que você já sabe?
Por que não está com medo de mim?
Por que você se importa?”
BILLIE EILISH, BURY A FRIEND
 
 
DIAS ATUAIS - BERLIM, ALEMANHA 
— Style? — Eu o chamei. Minha voz tremia assim como minhas mãos. A
paredee o chão estavam frios contra minhas pernas e costas, mas eu
precisava ficar segura até meu irmão mais velho decidir o que fazer. 
— Tudo bem. — Seus olhos calmos desviaram de mim para o lado, para
onde ele não queria que eu olhasse. — Eu estou com você, Oni. Sempre. Mas,
continue olhando para mim, irmãzinha. Pode fazer isso? Pode olhar para
mim não importa o que aconteça? 
— Tudo bem — sussurrei, minha testa franzida. 
— Não olhe para o chão, Oni. Não olhe para o lado. Apenas para mim. 
Suas mãos seguravam meu rosto, certificando-se de que eu faria o que
ele pediu e olharia só para ele. 
— Eu posso me limpar agora? 
Ele segurou minha mão e tirou a grande peça de metal que meus dedos
pequenos mal aguentavam segurar. O peso fez um baque no chão quando ele
jogou longe. Eu queria ver, mas fiz o que pediu e continuei olhando para
ele. 
Eu nunca ia deixar de olhar para ele. 
— Pronto, agora você vai fechar os olhos e se segurar em mim. Nós
estaremos fora daqui em um minuto. Tudo bem? — Eu não respondi,
começando a ficar assustada com o molhado em minhas mãos e meus pés.
Style me chacoalhou — Oni! 
— Style? — perguntei baixinho, mas ele ouviu. Ele sempre me ouvia. —
De quem é todo esse sangue? 
 
Acordei ofegante, suando e assustada. Olhando ao redor do quarto,
deixei meus olhos se acostumarem a ausência de luz antes de sair da cama,
respirando profundamente a cada passo dado. Sempre que esquecia meu
calmante acontecia isso. Os malditos pesadelos me pegavam. Memórias ou
lembranças de algo que eu nem sabia o que significava. 
Cambaleando até o banheiro, liguei o chuveiro no máximo e deixei a
água refrescar meu corpo, limpando o suor e acalmando meus pensamentos.
A luz do banheiro permanecia apagada, só a lâmpada fraca do corredor
iluminava meu caminho. 
Eu preferia assim. O dia poderia ser noite todas as horas. Eu me entendia
melhor com a escuridão. 
Colocando um roupão, constatei que ainda não passava das quatro, então
voltei para a cama e coloquei o despertador para tocar a cada dez minutos.
Me impedir de dormir, me impediria de sonhar outra vez. 
— Vou a uma filial da Calvin Klein e não estou sabendo? — Eu
perguntei a minha assistente enquanto ela pendurava as fotos no quadro do
escritório. 
— Quase isso. Eu juro que todas as vezes que pus meus olhos nesses
homens, eles estavam perto de caras ainda mais gatos. Se meu irmão não
fosse um psicopata total, eu sairia com todos. — Ela respondeu, pendurando
a última. 
Eu tinha que concordar com seu comentário ácido sobre Kurton, mas
mudei de assunto, não querendo azedar meu humor ao falar dele. 
— Certo. Então temos o pai — apontei para o mais velho. — E os
filhos? 
— Dois filhos e um sobrinho. 
— Ok — murmurei. — Conte-me sobre eles. 
Enquanto Slom me apresentava aos nossos novos clientes, eu tentava
guardar o máximo de informação e decorava itens importantes. Como os
nomes e coisas significativas que já tivessem feito. Não eram os primeiros
magnatas por quem eu era contratada e a primeira coisa que aprendi sobre
eles, foi que o ego precisava ser massageado. Não me preocupava em fazer
isso, mas da forma como eles geralmente elogiavam meu trabalho, eu gostava
de poder dizer algo bom sobre o deles também. 
Os Konstantinovas eram meus primeiros clientes alemães, e
inicialmente, quando a secretária de Stark, o dono da Konstantine Business,
me ligou para marcar uma reunião, eu não imaginava o porquê. Eu conhecia
alguns dos mais renomados artistas plásticos mundiais e aos poucos, me
inseri na lista dos melhores artistas plásticos. Eu amava pintar, mas havia
quem dissesse que minhas esculturas eram como poemas. As vezes pareciam
mais uma sensação do que um objeto. Por isso eles me queriam. Mesmo que
em uma breve pesquisa, descobri que nunca foram até um artista
pessoalmente para encomendar um trabalho. 
Na minha posição, eu estava honrada. 
— Stark e os filhos, Regnar e Demeron, são de Frankfurt. Siriu, o
sobrinho, é de Berlim. 
— Ah, Berlim... — suspirei sonhadoramente e Slom me imitou.
Compartilhávamos a maioria das mesmas paixões. 
Capitais da arte sendo uma delas. 
— Stark é um magnata, empresário, e investe pesado em filantropia.
Tem três bacharelados, licenciatura... Caramba! — Ela pausou. — Ele
tem até doutorado, mas não consegui mais informações sobre o que. É um ex-
agente do governo, mas também não sei o que ele fez e tem várias... 
— Slom. — A cortei — Acelere e vá para os pontos importantes, não
vou interrogar o homem. 
— Sim, certo, me empolguei. Resumindo, ele é bom em tudo o que faz.
Costuma comprar arte em leilões, você é de fato, a primeira que ele contrata
para um trabalho exclusivo. 
— Isso é tão incrível. — Dei um pulinho, batendo palmas — Parece que
estou na faculdade prestes a apresentar minha conclusão do curso outra vez.
Vamos lá, Regnar agora. 
— Regnar é um dos maiores especialistas em joias do mundo, o
conhecimento e o alto QI faz dele um cara constantemente envolvido na
mídia. Ele está sempre em entrevistas, programas de empreendedorismo e até
mesmo de fofocas. Ele tem carisma, a mídia gosta dele. É o único que achei
fotos variadas, inclusive. É também o único com uma aliança no dedo, e pelo
que eu saiba, sua esposa não compartilha da mesma simpatia que ele. 
— O que sabe sobre ela? 
— Kaladia, bem, eu a encontrei uma vez num evento que fui com Kurt.
— Slom sentou-se na beira da mesa. — Hm... deixe-me ver por onde
começar. — Slom levantou as duas mãos e começou a levantar dedo por
dedo, a cada palavra. — Arrogante, mal humorada, se acha a dona do espaço
que está, foi mal educada com cada garçom que a atendeu, e parece meio
obsessiva, não tirava os olhos do marido. 
— E ele? 
— Parecia um louco apaixonado. E muito educado. Sinceramente, não
sei como os dois funcionam juntos. 
— E Siriu? É um belo nome. 
— Não é só o nome. Se eu cometesse um crime, não me importaria de
ser julgada por ele. Ele é chamado de Senhor X nos tribunais. O consideram
um dos juízes mais implacáveis do país. Claro que isso o torna respeitado e
temido, eu já tinha ouvido falar muito dele, inclusive já o tinha visto em
alguns eventos, mas nunca houve oportunidade ou motivo para nos
apresentar. Porém, quero, muito. — Ela me olhou e juntou as mãos, como se
implorasse. — Me leve junto. Esse pode ser meu momento de olhar nos olhos
dele e conquistá-lo. 
— Slom. — Repreendi, porém não segurei o riso. — E sobre Demeron? 
— Sim, sobre ele. — Ela levantou um papel em branco. — Não achei
nada. 
— Como não achou nada? 
— Fora a foto dele com os outros e aquela de cabeça baixa, boné e
óculos escuro, o nome dele aparece associado com o de Stark, mas não
consegui nenhuma informação, nem mesmo uma data de nascimento. 
— Isso é tão esquisito. Ele não tem nem Instagram? 
Slom bufou. 
— Não. Deve ter uma deformação no rosto e o pai usou dinheiro para
apagá-lo da rede. Vai entender os ricos. 
Lhe dei um olhar cético. 
— Você é rica. 
— Sim — disse ela — Mas tenho Instagram e tento colocar o máximo
de mim na rede possível. Sou uma rica fácil de entender. 
— Deus! Você fala tanta bobagem. — Dei risada, balançando a cabeça.
— Não consigo ter uma boa visão dele. — Eu disse, me aproximando para
tentar vê-lo melhor. Mas a única foto em que estavam todos juntos parecia
mais um retrato da monarquia. Estavam de pé, lado a lado, e a foto foi tirada
de longe. — Você não consegue nem uma foto dele sozinho? 
— Tentei, mas por incrível que pareça só achei essa. É meio estranho. 
— Talvez ele seja tímido. 
— É, talvez. Mas acho que você vai descobrir. — Ela deu uma risadinha
e me cutucou com a ponta da caneta. 
Revirando os olhos, apontei para a porta. 
— Vá trabalhar. Eu tenho uma reunião para me preparar. 
— Sim, chefa. — Com um sorriso, ela saiu. 
Eu voltei meu olhar para a foto e a tirei do quadro, observando os quatro
homens que pareciam misteriosamente fascinantes e o mais maravilhoso de
tudo... eles queriam a mim. Minha arte, meu talento, minha marca em seu hall
de entrada. 
Eu não podia imaginar o porquê. 
O grande prédioalto e bem localizado parecia ainda mais refinado do
que eu tinha ouvido falar. Ao mesmo tempo que tinha um ar de antiguidade,
combinando com a arquitetura possuía alguns toques modernos, variando de
vidro para colunas bem desenhadas e janelas enormes no arranha-céu. As
fotos não faziam jus, também. Precisei tapar o olho com as mãos para
conseguir olhar até o alto sem que o sol fizesse-me lacrimejar, e ainda assim,
não consegui ver o último andar. Debaixo, parecia invadir o céu. Era
majestoso. As três portas giratórias da frente não paravam, enquanto entrava
e saía todos os tipos de gente. Homens muito elegantes e mulheres bem-
vestidas. Clientes em potencial? Sócios? Funcionários? 
O taxista buzinou, me fazendo saltar e dar uns passos adiante, saindo de
sua frente. Passei as mãos pelo meu vestido vermelho, desamassando da
viagem conturbada do carro. É claro que ele não perdeu tempo em pegar um
passageiro alguns metros à frente. 
Céus! Naqueles momentos eu sentia tanta falta do meu motorista.
Viagens calmas, às vezes com conversas, outras em silêncio... Alguém que
não estava tão apressado em pular de um passageiro para o outro que nem
esperava eu colocar o cinto de segurança. Meu telefone tocou e na tela
brilhava o nome dele, como se soubesse que estava vagando em meus
pensamentos. 
— Mic, sério, como você faz isso? — perguntei e agradeci com um
sorriso quando um rapaz me ajudou a girar a porta para entrar no grande
prédio. 
— Isso o quê? 
— Tem sempre o timing perfeito. Eu acabei de chegar
na Konstantine Business. 
— Sobreviveu ao táxi? 
— Meio amassada, mas sim. Estou considerando não sair do ateliê até
você voltar. 
— Estarei aí amanhã. 
— Deixa de ser bobo, Mic. Você merece essas férias. 
— Eu preciso estar aí e manter um olho em você, garota. Seu irmão não
está mais aqui, mas eu devo uma vida inteira a ele, e agora meu compromisso
é com você. 
Uma pontada de tristeza me tocou ao falar sobre meu irmão, mas me
obriguei a guardá-lo de volta naquela caixinha trancada no peito, sabendo que
se começasse a remoer aquilo, não focaria no trabalho ou qualquer outra
coisa pelo resto do dia. 
— De qualquer forma, fique e termine seu tempo de férias. Quando
estiver de volta vai desejar nunca ter saído daí. 
— Duvido, garota. No segundo dia eu já estava entediado, caçando
insetos pelo ar para não ter que ficar à toa. 
— Ah, Mic. Se soubesse como eu apreciaria estar no seu lugar... 
Sua risada me fez sorrir e peguei minha identidade na bolsa, entregando
a uma das recepcionistas do largo balcão. 
— Bom, vá fazer suas coisas. Mas, não se esqueça, uma ligação e eu
volto. 
— Eu sei, mas descarte essa ideia. Aproveite e se divirta. 
— Tchau, garota. 
Mic era minha única ligação com meu irmão. Fora ele, só restava a
memória de Style. Meus pais morreram quando eu ainda era muito jovem,
e Style assumiu a responsabilidade por mim, trabalhando e cuidando das
coisas. Foi assim para tudo. Ele pagou meus estudos, minhas roupas, morou
comigo mesmo já podendo se mudar e cuidar de si mesmo, apenas para não
me deixar sozinha, e quando me formei, ele foi meu principal investidor. Meu
irmão dizia que sabia reconhecer talentos, e não tinha a menor dúvida de que
tudo o que fez por mim valeria a pena. 
Eu queria que ele pudesse estar comigo para me ver realizar tudo o que
sonhei e compartilhei com ele. Queria poder agradecer por acreditar em mim
mesmo quando eu não fui capaz. 
Peguei meu documento e a carteira de visitante, seguindo as instruções
para chegar ao andar que Stark Konstantinova me esperava. 
Ao entrar no elevador, conferi minha aparência. Naquela manhã meu
ateliê estava parado, o telefone mal tocava, então Slom me convenceu a
deixá-la me arrumar à sua maneira. Meus longos cabelos pretos e lisos, ela
prendeu uma mechinha para cima, deixando um daqueles “franjões”. E minha
assistente tinha uma estranha obsessão pelos meus traços orientais, quase
surtando de alegria quando a deixei maquiar meus olhos. Quando ela acabou
e me deixou ver o resultado, perguntei como conseguiu deixá-los ainda mais
puxados. 
O elevador apitou no andar correto e desci, instintivamente comecei a
analisar o lugar. Já vinha fazendo isso desde que o carro havia parado na
calçada, mas de dentro, podia ver com mais calma, captando quaisquer
referências sobre os gostos dos Konstantinova’s. 
Mas, assim que virei a esquina, fui empurrada com brutalidade para trás,
a parede foi o que me impediu de cair. Com os olhos arregalados, assisti
quatro homens tentarem segurar alguém que lutava para se soltar dos braços
deles, aos gritos. Os funcionários se afastavam ou saíam do andar, chamando
o elevador ou indo pela escada. Eu sabia que deveria seguir o mesmo
exemplo, mas apenas fiquei ali, escorada contra a parede como se estivesse
me tornando parte dela, e assim, quem quer que fosse aquele a dar trabalho
aos seguranças, não me veria. 
Um deles levantou uma arma de choque e encostou na coluna do cara,
um grito agonizante ecoou pelas paredes e pareceu tremer o piso de mármore
caro, seu corpo dobrou quando a cabeça ergueu com a dor, mas ele não caiu. 
Ele finalmente quase se soltou, o choque que deveria tê-lo derrubado,
parecia só ter lhe dado mais gás. Eu ofeguei quando ele deu um passo ainda
de costas, a poucos centímetros de mim, longe do círculo dos caras, quase
fugindo. Como se estivesse se preparando para correr e virou em minha
direção. 
E quando ele levantou a cabeça para mim, minha respiração foi audível. 
Os quatro homens o segurando não aguentariam muito mais tempo. O
homem era forte, feroz, rosnava e os olhos sem foco pareciam enlouquecidos.
Ele parecia um animal com raiva que precisava ser contido. Ele usava uma
camisa branca que destacou os músculos enormes dos braços, que
flexionavam com cada movimento de sua rebeldia, a camisa esticando no
corpo poderosamente construído. A roupa não combinava com o lugar, a
calça de moletom e os pés descalços não eram o tipo de coisa que alguém
vestia em um império, mas naquele homem... pareceu simplesmente certo.
Perfeito. 
O cabelo liso e curto era de um loiro escuro que combinava com o tom
levemente dourado de sua pele. Quando seus olhos bateram em mim, quase
perdi o ar. 
Eu não pensei. Eu não me movi. Eu não respirei. 
Estreitando os olhos para mim, piscou e inclinou a cabeça, como se
quisesse me observar melhor. Os dentes eram brancos e perfeitamente retos, e
uma covinha apareceu num único lado quando sua boca esticou num rugido
raivoso, combinando com a discreta fenda no queixo marcado. Os cílios
longos só o fizeram parecer mais lindo. Com sua proximidade, percebi o
quão grande realmente era. Parecia um gigante. Alto e largo, me fez sentir
pequena, delicada e... protegida. 
Ele não desviou o olhar. Os olhos azuis escuros não piscaram, e aos
poucos ele foi ficando calmo em seus movimentos, menos bruto. Enquanto
nos olhávamos, a besta enfurecida me olhou e ficou manso. Ele não
pareceu nervoso ou inquieto como eu, nem de longe. Ele parecia seguro.
Como se tudo estivesse em seu lugar. 
De repente, uma enorme mão segurou meu braço e cortou meu contato
com o homem a minha frente. 
— Você está bem? Ele a machucou? 
Eu fitei o homem que falava comigo e franzi a testa, percebendo como
era parecido com aquele que estava em surto. Ele tirou os óculos escuros e
imediatamente o reconheci. Siriu Konstantinova, o tal Senhor X. 
— Nã-não. — Mal ouvi minha voz, mas pelo aceno bruto que ele deu,
soube que havia me escutado. Soltando-me, Siriu acenou para uma mulher
encostada na parede em frente à minha, que parecia em pânico. 
— Leve a senhorita Tieko para a sala de reuniões. Estaremos lá em
poucos minutos. 
— Sim, senhor. — A mulher assentiu, hesitando os passos até mim e
acenou com a mão, me mostrando o caminho. 
— Espere. — Eu disse a Siriu. — Mas e ele? 
Ele não me respondeu. Ao contrário disso, acenou novamente para a
mulher, que segurou minha mão e me levou para longe. Os olhos do homem
afastaram-se de mim e fitou Siriu, tão logo, se agitou novamente, tentandoalcançá-lo. A secretária me puxou outra vez, e assim que cruzamos o
corredor, ouvi um grito agoniado, me soltei dela e voltei atrás, ouvindo-a
praguejar enquanto me seguia. 
Parei escondida e ofeguei ao ver o homem ajoelhado, com dois dos
guardas segurando-o e quase torcendo seu braço. A sua frente, Siriu passou a
mão em sua cabeça e levantou uma seringa, a enfiando em seu pescoço.
Então ajoelhou na frente dele e apoiou sua cabeça quando o enfurecido
homem perdia a consciência. 
— Levem-no de volta — disse Siriu, em seu rosto nenhuma pista do que
sentia. Eu quis ir até ele e exigir que chamasse um médico, que me levasse
para ver o homem, mas antes que pudesse fazer qualquer outra coisa, a
secretária colocou a mão no meu ombro e seguiu meu olhar, engolindo em
seco. 
— Pelo amor de Deus... não o contrarie! Venha comigo e deixe-me fazer
meu trabalho! 
Em transe, a segui pelo longo corredor, revivendo os últimos dez
minutos como uma fita rebobinada que nunca passava dos mesmos dez
minutos. 
— Quem... quem é aquele homem? — perguntei com a garganta seca. 
— Demeron Konstantinova. — Ela abriu uma porta e apontou para
dentro. — Aguarde aqui. O senhor Stark vai vê-la em breve. 
— Por favor, me diga... 
— Não — disse ela, com os olhos acelerados fitando o corredor. — Não
me faça mais perguntas. Eu preciso do meu trabalho... e gosto da minha vida. 
Deixando-me sozinha, eu agarrei minha bolsa com força contra o peito e
fechei os olhos, respirando profundamente repetidas vezes. Respirações
superficiais, pois meu coração batia feito um louco. Nunca tinha efetivamente
vivido algo tão surreal em toda a minha vida. Nunca vi ninguém surtar na
minha frente e ainda pior, agora sabendo que o homem em questão se
chamava Demeron. Só podia ser um dos filhos de Stark. Mas, o que pensar
de Siriu o dopando e não fazendo nada enquanto homens que seguiam suas
ordens tratavam seu primo com tanta brutalidade, dando a ele que nem um
animal recebia em circos. 
Incapaz de continuar ali, em meio àquelas pessoas e revivendo a cena
que presenciei, tirei o salto, preparando-me para correr fora dali e abrir a
porta. A comoção parecia nunca ter acontecido e a secretária não estava em
sua mesa. Abrindo a porta da escada de emergência, saí daquele lugar. 
Mas, a cada degrau descido, me sentia pior pelo que vi. 
A cada passo dado para longe, eu via os olhos do homem enlouquecido. 
O misterioso homem de olhos azuis sobre o qual eu não sabia nada. 
 
 
 
 
"Você é um mundo distante
Em algum lugar na multidão
Em um lugar estrangeiro
Você está feliz agora?"
ELLEY DUHÉ, HAPPY NOW
 
 
 
Saí de casa quando amanheceu, mesmo que estivesse acordada desde
antes disso. A mochila nas costas continha roupas para caso eu precisasse sair
do ateliê, e fui caminhando. Observar as ruas, pessoas e ambientes me
inspirava. Minhas esculturas tinham a variedade que eu admirava, e por isso
elas eram tão admiradas também. 
Era uma distância de mais de uma hora, mas eu precisava desse tempo
para pensar. Quando deixei de pensar no pesadelo daquela madrugada, foi
para fixar Demeron Konstantinova na minha mente, então, eu estava inquieta.
Inquieta, atormentada e amedrontada. Ficava me perguntando se ele
estaria numa ala psiquiátrica naquele momento, ou jogado em algum canto e
esquecido por sua família. Em meus vinte e cinco anos, nada e ninguém tinha
me abalado tanto. Dizer que sonhei com o rosto daquele homem me trouxe
vergonha, mas eu lembrava de cada uma de suas expressões sombrias, os
gritos e a dor nos olhos, essa era a mais pura verdade. 
E nos meus sonhos, ele se acalmava com o meu olhar. 
Olhei ao redor, de repente uma sensação de estar sendo observada
começou a me corroer e eu parei de andar. Já estava suada, queria continuar,
mas agi pensando na minha segurança e acenei para um táxi que passava,
dando o endereço. Sabia que estava paranoica. Desde que recebi a notícia da
morte de Style, já havia ficado temerosa com tudo ao meu redor. Meu irmão
era quem me protegia, cuidava de mim e deixava claro que eu não tinha
motivos para temer. Mas, sem ele e sabendo que nunca o veria outra vez,
aquelas sensações aterrorizantes de que algo ruim me aconteceria a qualquer
momento ficavam cada vez mais fortes. 
Sem saber, Demeron só piorou aquilo. 
Vesti o avental assim que cheguei, abri as janelas para deixar a luz
natural entrar e peguei meus pincéis, ligando o som e aumentando o volume
no máximo. As paredes à prova de som serviam exatamente para quando eu
precisava extravasar e a pintura me proporcionava isso. Ali dentro eu estava
protegida, segura e em paz. 
Mesmo que pacífica fosse a última coisa que eu me sentia. 
Eu gostava de pintar de vez em quando, por mais que minha paixão
fosse criar formas, desenhá-las e defini-las com minhas próprias mãos. 
Quando eu era pequena, mamãe me deixava brincar onde eu quisesse ir.
Me perdi no bairro algumas vezes, e numa delas andei pela floresta tentando
achar o caminho de volta durante horas, até Style me encontrar, e quando
voltamos para casa, eu esperava ser repreendida por mamãe e papai, mas eles
não estavam. Nossa babá, uma garota do colegial da casa ao lado, estava nos
esperando. 
Durante aquelas pequenas explorações, eu descobri que gostava de
molhar a areia e construir castelos com pontes como nos desenhos de
princesas. Depois Style começou a me dar massas de modelar coloridas, e eu
enchia nossa casa com cada coisa que ficava boa para ser exibida. Quando fiz
dez anos, ele me deu minha primeira maleta realista de esculturas. 
Quarenta minutos depois, estava com os braços doloridos de pintar e
quando tomei uma distância para observar o quadro, neguei que aquilo havia
sido feito pelas minhas mãos. 
— Que lixo — resmunguei e me deitei no chão, de braços abertos. 
John Lennon cantava Imagine como a minha trilha sonora e eu me
permiti fechar os olhos novamente. Ainda não eram nem dez da manhã e eu
estava exausta, porém, ainda assim, me sentia elétrica. Levantei-me, mesmo
querendo continuar deitada, desejava cancelar minha agenda do dia e voltar
para casa. Pedir uma comida leve e tomar um calmante para finalmente
dormir. 
Mas, a minha vida não me permitia tomar uma folga repentina dessas,
principalmente com os clientes que dali a poucas horas começariam a ligar. 
Tirei o avental e peguei uma garrafa de água quase congelada na
copa, tomando até a metade. Fui para o escritório, liguei meu computador e o
de Slom também, já sabendo que ela chegaria atrasada e reclamando que o
seu demorava anos para ligar. Verifiquei meu e-mail, separando três pessoais
e decidindo que deixaria Slom lidar com todo o resto. 
Pelo menos por hoje, eu disse a mim mesma. 
Um dos lembretes me chamou atenção e eu nem precisei o ler
completamente para me lembrar do que se tratava. Peguei o telefone e disquei
o número que já sabia de cor. Demorou alguns toques para atender, o que me
fez até imaginar se ele estava decidindo se falava comigo ou não, mas
finalmente atendeu, para a minha surpresa. 
— Olá, Enrico. 
— Onira, como vai? 
— Bem... escuta, eu queria saber como andam os processos com a
investigação. 
O delegado suspirou. Já não aguentava mais as minhas ligações diárias e
ter que repetir sempre a mesma coisa. 
— Já falamos sobre isso. 
— Eu sei, eu sei. Só quero ter logo esses papéis nas minhas mãos e ver
por mim mesma. 
— Você os terá, eu estou fazendo o máximo que posso. 
 — Certo — resmunguei, ríspida. — Me ligue se tiver qualquer
novidade. 
Desliguei batendo o telefone na base e suspirei, me recostando na
cadeira. Enrico Aguilar estava me enrolando. Eu era educada, mas não
estúpida. Style havia me ensinado a ler as pessoas porque, por alguma razão,
meu irmão parecia sempre ter um medo infundado de que eu teria que me
virar sozinha em algum momento, o que eu achava ridículo, mas quatro
meses antes passei a entender e desejei não ter rido dele todas as vezes que
quis me ensinar defesa pessoal, táticas de segurança ou até mesmo linguagem
corporal. 
Aquele momento havia chegado e eu estavalidando com tudo sozinha.
Mas, eu aprendi o básico e mesmo se não tivesse, ainda assim conseguiria
perceber que Enrico não me entregaria os documentos. Me perguntei diversas
vezes porque ele teria entrado em contato comigo se sua intenção não era me
ajudar com as investigações da morte do meu irmão, mas ao invés de
colaborar, só ficava adiando e dizendo que “estava trabalhando nisso”. 
Eu recebi uma ligação no meio da noite dizendo que meu irmão havia
sofrido um acidente de carro fatal, no qual ele e o motorista do outro carro
não resistiram. Eu fiquei devastada. A ideia de dizer adeus a minha única
família viva desmoronou como uma montanha em cima de mim. Mas, após o
choque passar, percebi que tudo foi muito estranho. 
Se foi um acidente de carro, por que um policial não foi até a minha
porta? 
Por que não me permitiram reconhecer seu corpo? 
Por que o caixão ficou fechado o tempo todo? 
Enrico estava no meio de tudo aquilo porque eles diziam
que Style estava na fronteira do México, e o delegado designado para o caso
era o senhor Aguilar, que não parecia motivado a me ajudar. E por que eu não
recebi nenhum documento relacionado a sua morte? Autópsia, laudos,
qualquer coisa? Tudo era suspeito e a cada teoria nova que surgia na minha
mente, eu tentava me lembrar de algo que Style me disse, me agarrando à
esperança de que os devaneios do meu irmão fariam sentido. 
Passei as mãos pelo rosto, reconhecendo que podia ser que eu estivesse
finalmente ficando louca. Ou a exaustão estava plantando coisas na minha
mente. 
Fui ao banheiro, passei uma água no rosto e voltei ao escritório,
encontrando Slom sentada em sua mesa. Mas, isso não foi o que me fez
travar no meio do caminho, e sim os três homens que ocupavam minha sala
de reuniões. 
— Mas o que... — Comecei. 
Slom chegou perto, entregando-me nossas costumeiras pastas e o
portfólio variado das minhas obras. 
— Quando cheguei Stark estava prestes a tocar a campainha, eu os
deixei entrar. Vou levar o café em cinco minutos. — Sorrindo, ela piscou. —
A reunião deve ter sido ótima ontem, hein? Para voltarem hoje. 
Quando ela fechou a porta, eu soltei uma respiração pesada e tentando
conter minhas emoções, entrei na sala de vidro, deixando a porta aberta. 
Os três estavam sentados, mas Stark se levantou imediatamente,
aproximando-se de mim. 
A família Konstantinova tinha um império de poder e sucesso a várias
gerações, e aquele homem era uma parte fundamental nisso, mas toda a
minha admiração por ele estava coberta de decepção. Stark era alto e forte,
não parecia que já passava de seus cinquenta anos, e os olhos azuis me
deixaram mais tristes ainda, pois eram idênticos aos de Demeron. 
Um minuto de silêncio tomou a sala antes de ele falar algo, e quando
fez, me surpreendeu por ter sido tão direto. 
— Demeron tem certos... problemas. 
— Eu percebi — respondi sem nenhuma educação, mas naquele
momento, nada mais me importava, a não ser saber se ele estava bem. — O
que não entendi, foi porque o trataram daquele jeito. Ele é seu filho! —
Fitei Siriu acusadoramente. — Seu primo! 
— Entendo que a cena toda deve ter sido profundamente perturbadora
para você, Onira. Mas essa foi uma exigência de Demeron. 
— Ser sedado? Exposto e atingido com arma de choque? 
— O que fosse preciso para impedi-lo de machucar alguém — disse
Siriu, o rosto calmo como no dia anterior e a voz tão controlada que parecia
estar tratando de um negócio, não um familiar doente. 
— Eu não acredito nisso. 
O terceiro deles, Regnar, levantou com graça da cadeira e segurou
minha mão, até mesmo invadindo meu espaço pessoal. 
— Demeron serviu ao exército grande parte de sua vida, e depois de
certas missões você acaba ficando meio... lelé da cuca, se é que me entende.
— Ele sorriu ironicamente, parecendo se divertir com meu tormento. — Ele
tem problemas, como disse meu pai. Consequências mentais de anos servindo
ao país. Ele é lúcido e está bem na maior parte do tempo, é claro, leva uma
vida completa e normal, tirando as vezes que não quer comer ninguém. 
Arranquei minha mão da dele, dando um passo atrás. Meus olhos
arregalados com a ousadia e desrespeito. 
Stark revirou os olhos e se aproximou de mim, ignorando o sorriso
malicioso do filho. 
— Às vezes, como ontem, ele tem pesadelos, imagina que ainda está no
serviço e pode ficar descontrolado. Aconteceu que estava no loft da empresa
bem naquele momento. Ele atacou Ryses, minha secretária, aquela que você
conheceu. Estava extremamente agressivo como você viu, então precisamos
fazer algo que partiu meu coração, que foi detê-lo. Uma solução temporária. 
Tudo o que ele dizia fazia sentido, tudo batia, mas por algum motivo eu
não conseguia acreditar. Talvez fosse meu instinto paranoica, talvez fossem
os anos convivendo com Style e sua obsessão pela minha segurança, ou
talvez... a dor nos olhos de Demeron. 
A indiferença de Siriu. 
— Onde ele está agora? 
— Em casa, descansando. 
— Mandou-me pedir desculpas, lhe trazer flores. — Siriu apontou para a
mesa, onde um vaso estava perfeitamente montado. — E me disse para
convencê-la a não desistir do trabalho por causa dele. 
— Eu não desistiria por causa dele, desistiria por causa de vocês. Mas,
se é tudo como dizem, vou pensar, e peço a Slom que entre em contato
quando me decidir. 
Stark sorriu e parecia um sorriso verdadeiro. 
— É tudo o que peço. Que reconsidere. Acho que você é uma das
artistas mais talentosas da atualidade. Quero exibir quatro peças exclusivas da
minha família, feitas por você, no meu próximo aniversário. 
Fitei Siriu, depois Regnar, e voltei a Stark. Todos pareciam
arrependidos e sinceros. Relaxando meus ombros, me permiti dar um leve
sorriso fechado e assentir para o homem que fazia tanta questão da minha arte
para algo tão importante como sua família. 
Respirando profundamente, coloquei a ponta da caneta na tela do tablet
e usei o tempo que Slom entrou na sala, servindo-lhes café e conversando
brevemente com os três para tomar minha decisão. 
Lhe dei um olhar de reprovação quando descaradamente se jogava para
Siriu, que não hesitou em envolvê-la em sua conversa, e dava risadinhas para
as piadas inapropriadas de Regnar. Me perguntei se a criatura se esquecia que
tinha uma esposa. 
Quando ela saiu, fitei Stark. 
— O que você quer das esculturas? 
Ignorei minhas paranoias, e a cada momento que voltava a pensar nos
gritos, olhava para o vaso no meio da mesa. Isso ajudava a me recompor, mas
não mudava que eu continuava definitivamente perturbada. 
 
 
 
 
“Não deveria estar aqui porque eu deveria estar morto
Posso ver as luzes na minha frente”
LIGHTS OF HOME, U2
 
 
 
 
BASE MILITAR DO BUNDESNACHRICHTENDIENST, BND
(Serviço de Inteligência da Alemanha)
 
 
ALGUMAS SEMANAS ANTES 
 
— Eu não deveria estar aqui. — Siriu Konstantinova repetiu pela
segunda vez, enquanto observava dois guardas dando tapas no rosto de seu
primo mais novo para acordá-lo. 
Ainda havia um toque de compaixão que o fez querer derrubar aquela
porta e salvá-lo do mundo, mas ele sabia que não havia a menor possibilidade
de ambos saírem com vida. E, além disso, sabia que Demeron merecia o que
estava sendo feito a ele. 
— Sim, sim — Erike Ditz, o diretor da BND, resmungou. — Você é um
homem da lei e tudo mais. Bem, eu também sou. 
Não, ele não era. O homem comandava a maior agência de espionagem
da Alemanha e se recusava a deixar Demeron Konstantinova, um preso
acusado de traição, voltar para A Liga, mesmo sabendo que as leis para os
desertores do país eram tão rígidas lá quanto no sistema do Governo. 
— Seu primo se recusa a contar para onde Style Tieko foi, isso não pode
ficar impune. A missão dele era clara e além de fracassar, os dois
conspiraram para transformar uma missão de alto nível autorizada, em um
ataque terrorista. As vidas daquelas meninas inocentes estão nas mãos deles,
e seu primo pagará por isso sozinho se não entregar o parceiro. 
Siriu respirou profundamente e olhou através do vidro,
vendo Demeron cuspir a água do afogamento simulado.Ele tinha estado
preso entre quatro paredes de concreto sozinho durante quase dois anos, e o
diretor finalmente decidiu que era tempo suficiente para tentar quebrá-lo. Já
tinham passado para o terceiro dia de tortura e não tiraram uma palavra
sequer de sua boca. Siriu sabia que continuaria assim. Ele não era um espião
e nunca passou pelo treinamento militar que seus primos haviam passado,
mas sabia como funcionava e Demeron aguentaria a tortura até a morte, mas
nunca diria nada. 
Siriu ainda se recusava a acreditar que Demeron tivera algo a ver com
isso. Antes de ser um espião, Demeron foi um militar exemplar, apaixonado
pelo país. O que o levaria a trair e deserdar sua nação? 
— Ele nunca vai falar. 
Erike deu de ombros, sorrindo enquanto observava os guardas
colocarem Demeron contra a parede, ligarem a mangueira de gelo líquido e
apontarem para ele. A boca de seu primo se abriu num grito silencioso,
enquanto os jatos de água batiam em seu corpo nu. 
— Ele pode não falar, mas vai receber a lei por ele e por Style. 
— Por que não o usa de outra forma? 
Os olhos de Erike mudaram para ele com interesse. 
— Ele pode não dizer onde Style está, mas pode nos levar até ele. 
— Está sugerindo que eu liberte um dos mais talentosos agentes? Ele vai
desaparecer. 
— Não, ele não vai. 
Siriu foi para a porta e abriu, ouvindo Erike atrás dele mandando os
guardas pararem. Ajoelhando ao lado de Demeron, viu como ele tremia
incontrolavelmente, o corpo tendo espasmos da tortura. 
— Soldado — Siriu chamou, fazendo Demeron, sua carne e sangue,
olhá-lo. O rosto mal era reconhecível, os olhos tão distantes que Siriu se
perguntou se ele ainda podia ver. — Temos uma missão para você. 
Demeron reuniu todas as forças que ainda restavam sob seus ossos e a
carne fraca em seu corpo, e se inclinou para frente, quase encostando nariz a
nariz com seu primo quando rosnou: 
— Eu não sou mais um soldado. 
Siriu trancou a mandíbula e ficou de pé, afastando-se dele. Quando
estava longe da mira das mangueiras, ordenou: 
— Liguem novamente. Mais forte dessa vez. 
Ele assistiu um de seus melhores amigos sofrer e foi atingido por alguns
resquícios de água também. Mas, não se importou de molhar o terno àquela
altura, quase nada abalava suas sombras. 
 
 
 
 
 
"O mundo desacelera
Mas meu coração bate depressa agora
Eu sei que essa é a parte
Onde o fim começa"
THE PUSSYCAT DOLLS, I HATE THIS PART
 
 
 
DIAS ATUAIS
 
— Como foi? — Slom perguntou assim que passou pelas portas do
ateliê, referindo-se a minha reunião mais cedo com Stark, no prédio da
Konstantine. 
— Normal — murmurei, concentrada na figura ganhando forma a minha
frente. 
A verdade era que eu estava irracionalmente irritada. O tour que um
funcionário me deu pelo prédio da Konstantine Business foi incrível,
principalmente porque eu era uma boa admiradora de obras de arte, categoria
em que aquele prédio se encaixava. Mas, eu tinha que admitir a mim mesma
que foi o fato de ter ido a todos os andares e não encontrar Demeron, o que
me deixou frustrada. 
— Stark não sabe o que quer. Ele pediu algo com o brasão de sua
família, mas quando pedi maiores detalhes, ele não sabia. Disse que eu tenho
orçamento ilimitado para escolher o material, fazer o que eu quiser para criar
meu melhor trabalho. 
— Uau — disse ela, puxando uma cadeira para o outro lado da
escultura, sentando-se de frente para mim. — Que generoso. 
Eu não respondi. A generosidade dele não significava nada para mim.
Eu queria criar algo com alma, com paixão, com força, mas após a manhã
que passei com Stark, comecei a me perguntar: por que ele havia realmente
me chamado para isso, se era nítido que a escultura seria apenas algo para
exibir? 
Eu não podia fazer uma exposição de uma peça só, portanto, ia exibir
minha coleção nova, já criada, com quatro peças, e acrescentaria a
de Stark como um bônus. Ela seria a estrela da noite. Ele achou que era uma
ideia incrível, mas para ser bem sincera, havia uma pontinha de medo em
mim que me fazia tremer cada vez que pensava no assunto. 
— Ele não está sendo, Slom — sussurrei, esculpindo então um anel de
fogo, um dos detalhes que compunham a enorme figura. — Eu odeio criar
algo só por criar. Meu trabalho nunca foi por dinheiro. Eu não me importo
com a generosidade dele, se, no fim, ele vai olhar para a escultura como se
sua próxima preocupação fosse encontrar um lugar para deixá-la e seguir em
frente. 
Eu esculpia o que sentia em minhas veias. A vida, meu sangue
bombeando, minhas emoções, sentimentos e angústias. Eu gostava de ver as
pessoas sendo tocadas e profundamente incomodadas com uma enxurrada de
sentimentos em minhas exposições. 
Elas deveriam pensar, refletir, se encorajar e entristecer. 
Isso era o que eu sentia enquanto as criava. Uma tristeza profunda, um
incômodo constante e era atacada pelos pensamentos mais perturbadores. Na
maioria das vezes, minhas lágrimas se misturavam ao material ainda pastoso,
porque eu via as figuras antes de estarem construídas, e as sentia antes que
pudesse sequer tocá-las. 
E Stark Konstantinova me desafiava a criar algo oculto, algo que eu não
sentia, algo que não existia para mim. 
— Onira? — Slom perguntou e eu senti uma lágrima deslizar pela
minha bochecha. 
Empurrei o suporte para o lado, derrubando o objeto sem significado no
chão, a cera endurecida quebrando em milhões de pedaços aos nossos
pés. Slom se levantou, puxando sua cadeira e voltando minutos depois com
uma vassoura na mão. Ela não disse nada e nem tentou me tirar dali, mas
levantei uma mão, pedindo silenciosamente para me deixar sozinha. Ela
fez isso, e o barulho da porta fechando foi reconfortante. 
Continuei sentada, observando a peça irreconhecível aos meus pés. 
Mais uma vez pensei sobre Demeron. 
Me perguntei o que ele diria se eu perguntasse o que estava sentindo.
Ele seria como seu pai e resumiria em dinheiro? 
Ou assim como da primeira vez, ele seria misterioso, intrigante e
abalador? 
Inclinando-me, passei os dedos pelo gel no chão. Olhando o material da
peça mais desafiadora da minha carreira e tive vontade de sorrir. Sabendo que
apenas pelo que em menos de cinco minutos a presença de Demeron me fez
sentir, com palavras em sentimentos, ele me faria criar a coisa mais
extraordinária da minha vida. 
FRANKFURT, ALEMANHA 
PRESÍDIO SECRETO DE SEGURANÇA MÁXIMA PARA EX
ESPIÕES 
 
A cela bem protegida do presídio de segurança máxima nos cantos mais
esquecidos de Frankfurt era fria, e naquela noite se tornaria congelante para o
prisioneiro em questão, que ansiava por sua liberdade em dez dias. As
paredes que rodeavam o lugar eram frias e sem uma cor definida. Poderia ser
branca, cinza ou até mesmo preta, dependia unicamente de quem a ocupava.
E naquele momento, era tão escura quanto um abismo profundo. 
O homem de pé encapuzado segurou a arma com uma tranquilidade que
os anos de treinamento o ensinou a ter. Aprendeu a caçar, rastrear e eliminar,
ansiando para seu nível na Liga subir conforme riscava os nomes nas listas.
Uma morte, um passo acima. Era a cadeia alimentar fatal, onde para
sobreviver, era necessário matar. E nenhum dos integrantes se preocupava
com isso. 
Os olhos do homem deitado na cama se abriram de imediato quando
sentiu uma presença em sua cela, e com uma rapidez impressionante, ficou de
pé. Não tentou lutar e nem resistiu. Sabia que estava em desvantagem. E no
fundo, reconhecia que merecia aquele fim. Mas, de qualquer forma, resolveu
tentar. 
— Quero falar com Stark. 
— Tarde demais. — O atirador respondeu, se sentindo mais satisfeito do
que nunca com o embate. 
Orgulhoso da posição que estava. 
— Eu solicito um julgamento na Liga. 
— Você já teve um. E o resultado é a bala que daqui a poucos segundos
estará cravada em seu coração. 
O prisioneiro ergueu o queixo, sabendo que não adiantava debater e
muito menos tentar fugir. Sua hora havia chegado, e assim como deu as
costas a seus companheiros, todos dariam as costas para ele também. Não
havia ajuda, opções ou adiamento. 
Eraali e naquele momento. 
O julgamento final. 
— Suas últimas palavras? 
— Que Stark se lembre de mim quando morrer, porque os meus irão me
vingar. 
O atirador inclinou a cabeça, sorrindo. 
— Passarei seu recado. 
Puxou o gatilho e o silenciador garantiu que a atenção desnecessária não
fosse chamada. Quando o corpo grande desabou no chão, ele se aproximou e
deitou o homem na cama novamente. Pegou o ácido que havia guardado no
bolso e apagou o Rubi que havia no peito, acima do coração. O homem
gemeu, segundos depois os olhos arregalaram em choque, e o ceifador levou
os dedos ao pescoço dele, sentindo o pulso ficar mais fraco. 
Ficou de pé, abrindo a cela, e saiu, fingindo não ver o guarda que
vigiava o corredor, assim como o guarda fez vista grossa para ele também. 
Escondeu a arma por dentro do sobretudo e saiu pelos portões, sorrindo
para a noite. 
Missão cumprida. 
A Liga dos Diamantes colocou um alvo em suas costas, e independente
de ser culpado ou inocente, o coração do homem deveria parar de bater
quando a noite caísse. 
A Liga nunca errava, e como sempre, aquele era apenas mais um nome
acrescentado à extensa lista de eliminações. 
 
"A mente é um campo de batalha
Toda a esperança se foi
Pensamentos como um campo minado
Eu sou uma bomba prestes a explodir
Talvez você deva prestar atenção por onde anda
Não se perca
O coração é um livro de histórias
Uma estrela apagada
Alguém está chegando
Não olhe agora"
FOO FIGHTERS, THE SKY IS A NEIGHBORHOOD
 
 
 
 
Style e eu costumávamos ir à missa antes de ele ir embora, e mesmo que
agora eu tentasse manter aquele costume vivo todos os domingos, era difícil
sem meu irmão. Ainda que relutante, levantei cedo e fui, já sabendo que
quando voltasse para casa não teria cabeça para mais nada. 
A igreja antiga, decorada de dentro para fora no estilo do século XVIII,
era um luxo. Os desenhos que contavam histórias, cada detalhe nas pinturas
do teto, nos lustres e até nas velas, fazia com que o chão daquele lugar
intocável se tornasse sagrado. 
Sentei no canto do último banco, o véu na cabeça me dava uma pequena
sensação de estar protegida, e ouvi o sermão do padre, inevitavelmente chorei
nos coros. Nós nunca interagíamos com as pessoas que frequentavam, meu
irmão era paranoico ao nível de desconfiar de tudo e todos, até mesmo das
senhoras de bengalas, mas se esforçava para, pelo menos, ser gentil com a
maioria delas. 
 — Onira! — O padre chamou quando me viu na fila caminhando
lentamente para fora. 
— Padre. — Acenei e dei-lhe um pequeno sorriso. 
Ele abriu os braços com um sorriso gentil nos lábios. 
— Estou feliz que veio. Sentimos sua falta nos últimos domingos. 
— Sinto muito não ter aparecido. Eu só fiquei pensando em como seria
estranho me sentar aqui sem meu irmão. 
— Eu entendo. — Com um olhar simpático, ele assentiu. — E como
foi? Como está indo? 
— Ele era minha única família, sinto sua falta todos os dias. Mas sei que
ele não gostaria que eu deixasse de vir. 
Padre Terry segurou minhas mãos e deu um aperto consolador. Eu
suspirei aliviada por simplesmente ter alguém que se importava. Ele não me
conhecia particularmente e muito menos de Style. Só sabia nossos nomes e
que vivíamos na cidade, mas fora isso, toda a gentileza e simpatia que nos
dirigia era preocupação, afeto puro e cuidado. O homem sorridente e muito
bonito queria cuidar de seu rebanho, e eu estava grata por isso. 
— Ficará mais fácil com o tempo e eu tenho certeza de que ele está
olhando por você. 
— Obrigada, Padre. Eu estou me sentindo um pouco em falta, levando
em conta tudo o que o senhor fez por mim e pelo meu irmão. 
Ele cortou com a mão no ar, me acalmando com simpatia. 
— Deixe disso. Vocês são parte dessa casa. O Senhor tem planos para
você e mesmo que não entendamos Seus caminhos para Style, devemos
confiar. Eu só cuido das coisas por aqui enquanto Ele me permite. Faço
apenas o que posso. 
— Está enganado, Padre. Acalmou Style muitas vezes e me confortou
várias também. Eu pensei que talvez... O senhor precisa de ajuda por aqui?
Eu poderia ajudar com algo além de doações em dinheiro. Tenho um tempo
livre consideravelmente bom. 
Ele sorriu. 
— Onira, você já faz muito contribuindo com a casa de Deus e
principalmente vindo aqui mesmo diante de suas dificuldades e do momento
que passou. E eu tenho tudo sob controle. 
— Certeza? 
— Olhe para essas senhoras. — Ele acenou com afeto para as velhinhas
espalhadas pela igreja. — Elas anseiam pelo voluntariado e as obras que
fazem aqui. Ter uma jovem moça ajudando as deixaria inseguras. 
Eu dei risada, aceitando. Eu sabia que ele estava brincando. Mesmo
sério, Padre Terry tinha um bom senso de humor. 
— Tudo bem, Padre. Mas eu estou à disposição. Sua benção. 
— Que a graça de Deus lhe acompanhe, minha filha. 
Saí da igreja com um adeus e mais uma vez pensei em Mic, na
facilidade que seria ter nosso motorista de volta. Em alguns momentos ficava
tentada a ligar e pedir que voltasse de uma vez, mas me controlava. Não que
ele fosse reclamar, afinal, depois de anos no exército, ele dizia ter perdido o
dedo calmo, gostava de trabalhar. Isso me fazia pensar em algo
que Style havia me dito uma vez. 
“Manter-se ocupado impede que homens como nós pensemos demais.” 
Eu nunca tinha entendido o que ele queria dizer com “homens como
nós”, mas não perguntei. Conhecia meu irmão e sabia que havia coisas que
simplesmente não se questionavam. 
Meu telefone tocou enquanto eu caminhava pela calçada para casa, e o
nome de Slom piscando na tela me trouxe um sorriso. 
— Não me diga que deixou as luzes acesas e a porta destrancada e
precisa que eu volte lá, de novo — falei e ouvi seu riso do outro lado. 
— Você fala como se eu já tivesse feito isso. 
— Ah, Slom... quem não te conhece até cai nesse seu papo inocente. 
— Bem, eu não aprontei no ateliê, mas sei que esse horário você deve
estar saindo da sua missa. 
— Eu estou. 
— Timing perfeito! — disse ela e na mesma hora um SUV prateado
parou ao meu lado. Dei um pulo para trás, mas a porta traseira se abriu e
minha amiga saiu, correndo para mim. — Vim te pegar para gente almoçar! 
— Slom! Porra, você quer me matar do coração? 
— Acabou de sair da igreja e está com a porra na boca? 
Revirando os olhos para suas gracinhas, guardei o telefone. 
— É bom que a comida seja boa. 
— Deve ser ótima. Vamos. — Cruzou nossos braços e foi saltitando
para o carro. — Kurt vai nos levar em um lugar novo que abriu no centro. Ele
é o principal investidor e quer saber se perdeu dinheiro. 
Eu estanquei na mesma hora, pensando em milhões de maneiras de sair
daquela situação. Atirando à minha amiga um olhar aturdido, soltei seu braço
e dei um passo atrás. 
— Kurton? — perguntei enfaticamente. Ela só podia estar brincando
comigo. 
— Sim, o que tem? Ah, por favor Oni, já faz tempo. 
Eu a encarei incrédula, e como se fosse invocado pelo próprio demônio,
a porta do outro lado foi aberta e um dos meus maiores desgostos surgiu ali,
tirando os óculos escuros que cobriam os olhos pretos. Ele teve a cara de pau
de me dar um sorriso. 
Mas, é claro que ele faria isso, afinal, era Kurt. 
Acontece que Slom não era apenas minha amiga, assistente e futura
sócia. Era também a irmã dele. Pensando bem, eu comecei no mesmo
momento a reconsiderar a proposta de sociedade. Não podia acreditar nessa
merda. Meu domingo havia começado tão pacífico, e então, aquilo. 
— Onira. — Ele me cumprimentou de longe. — Você está encantadora. 
Desviei os olhos dos seus e foquei em minha amiga. Não sei qual foi a
luz que atingiu Slom, mas ela de repente pareceu arrependida, como se
tivesse se dado conta da besteira que fez. Eu tinha evitado aquele homem
com todo o esforço e ela o levou direto para mim. 
— Acho que não foi uma boa ideia? — ela meio afirmou e meio
perguntou, torcendo os dedos. 
— Eu tenho planos, Slom — falei pausadamente, esperando que ela
entendesse quão puta eu estava. — Acabei de me lembrar de algo que
precisa da minha atenção. Mas vá em frente e almoce comseu irmão. 
— Ah, não, Oni. Por favor! 
— Estou um pouco abalada por ter vindo aqui a primeira vez sem Style.
Eu não seria uma boa companhia agora. 
— Você é sempre boa companhia, Onira. — Kurt disse, recolocando os
óculos. 
Respirando fundo, cerrei os dentes juntos e fitei Slom. 
— Tire-o de perto de mim. 
Ela rapidamente acenou e me deu um abraço. Eu não perdi o sorriso
divertido que enfeitava o rosto do maior cafajeste da cidade. 
Kurton Ward. 
Kurt era um magnata dos negócios e esse fato parecia fazê-lo pensar que
ele podia tudo. Ele estava envolvido com um pouco de tudo. Pelos boatos,
variando e pisando dentro e fora da lei, mas independente de qual ramo fez
dele tão poderoso, o fez também multibilionário, mas além disso, um idiota.
Tanto dinheiro, uma personalidade venenosa e um cinismo que eu não
entendia como cabia nele. Passar uma semana com ele foi o suficiente para
saber que eu não ia aguentar ficar nem mais um dia. A vida dele era resumida
ao trabalho, e quando decidia deixar o trabalho de lado, me procurava para
fazer sexo. Ele levou minha virgindade enquanto declarava seu amor na beira
do mar de sua ilha particular. 
Quando “terminamos” eu comecei a descobrir mais sobre ele, ouvir
boatos sobre seus negócios e a assistir o desfile interminável de mulheres que
ele exibia. Eu não podia culpá-las. Ele não era só absolutamente lindo, mas a
forma como se movia, como falava... conquistava quem quer que fosse. 
O cabelo loiro escuro, que beirava ao castanho claro, num corte simples
que parecia sempre despenteado, era um charme, mas a primeira coisa que eu
notei foram os olhos. Ele tinha os olhos mais escuros e intensos que já vi. E
aqueles lábios... um rosto emoldurado com uma mandíbula quadrada e um
nariz perfeito. Ele era muito educado também, mas seu maior defeito estava
nos lábios: as mentiras que escorriam tão fáceis deles. 
— Nós nos vemos amanhã, Slom. — Eu a abracei em despedida e
acenei para ele secamente com a cabeça. — Adeus, Kurton. 
— Até logo, Onira — declarou com um sorriso perverso nos lábios. 
Me negando a perder a cabeça por seus jogos, me afastei e praticamente
corri para virar a primeira esquina que vi, querendo urgentemente sair da
visão daquele homem. 
O dia frio era bem-vindo, principalmente sabendo que eu podia chegar
em casa e me aconchegar no sofá com uma taça de vinho. Por ser domingo,
eu me daria o direito de ignorar qualquer ligação e alertas de e-mail. Passei
pelo beco com meus saltos fazendo barulho a cada passo, e franzi a testa ao
ver que no fim dele não tinha uma avenida ou rua movimentada. Peguei o
próximo beco à direita, acelerando meu caminhar para encontrar uma saída e
pegar um táxi. 
Foi quando ouvi outros passos além dos meus atrás de mim. Meu
coração deu um salto e olhei para trás, não vendo nada além da rua vazia.
Andei mais rápido, ouvindo um barulho mais alto dessa vez, como algo
batendo num metal. Olhei para trás, vendo uma lata de lixo derrubada e
alguém já entrando em meu campo de visão.
Minha pele esfriou. Não pelo frio, mas de puro terror. 
Quem disse que os becos não são tão perigosos durante o dia não sabe
de nada. 
Não esperando para ver se era realmente alguém atrás de mim ou só uma
coincidência, me atirei na próxima curva que vi à esquerda, e corri. Corri
como nunca antes. Meus pés desequilibrando no salto e meu cabelo
atrapalhando a visão. Olhei para os dois lados, não vendo nada além de um
labirinto sem fim, e comecei a entrar em pânico completo. Seguindo para a
curva mais próxima, virei ainda correndo, mas no momento em que entrei no
beco, bati em alguém. Mãos enluvadas seguraram meus braços e eu fechei os
olhos, soltando um grito que ecoou pelas paredes sem reboco desertas. 
— Ei! — disse ele, tentando me impedir de acertá-lo com meus tapas. 
— Me solte, me solte! Deixe-me ir! 
— Onira, abra os olhos. 
Ouvindo a voz que tinha me atormentado, obedeci. Meu corpo estava
entre acalmar ou tencionar mais ainda. 
— Você — sussurrei. 
Como ele estava ali? Como sabia quem eu era? 
Ele olhou para os lados, como se estivesse evitando meus olhos. Mas,
ainda assim, eu não desviei dos dele. As irises azuis intensas que dois dias
antes me aterrorizaram de medo por ele, naquele momento pareciam serenas.
Podia mesmo ser o mesmo homem? 
Eu exalei uma respiração pesada e puxei o ar, tentando fazer meu
coração parar de bater na garganta, sabendo que tudo estava bem, era ele e... 
Mas então isso me bateu. 
— Você está me seguindo? — gritei, tentando empurrá-lo. 
— É claro que não. — Ele franziu a testa, as sobrancelhas baixando
juntas. — Eu estava caminhando e você simplesmente bateu em mim. O que
está acontecendo? 
— Eu não sei — sussurrei. — Eu estava andando e de repente alguém
começou a me seguir! 
Ele deu um passo atrás, colocando distância entre nós. 
— Sinto muito, não queria assustá-la mais do que já fiz. 
— Você se lembra... se lembra de mim? 
— Claro que sim. — Me evitando de novo, se afastou mais, enfiando as
mãos nos bolsos. — Você viu o rosto? Saberia reconhecê-lo? 
— Não, eu não olhei direito. Ouvi passos atrás de mim a cada curva que
eu fazia e entrei em pânico, comecei a correr. 
Ele soltou um suspiro, olhando por cima da minha cabeça. 
— Vou levá-la até sua casa. 
— O quê? Eu deveria prestar queixa, fazer algo. 
— Você não viu o rosto do sujeito, Onira. Não há nada que possa fazer.
Os policiais não farão nada, porque não têm como te ajudar nesse caso. 
— Mas... mas e se... 
— Esses becos não têm câmeras e você não tem um rosto. Na verdade,
não tem certeza se ele te seguiu, certo? 
— Ele parecia estar fazendo isso. 
— Tenho certeza de que você acha que parecia, mas pode não ser isso. 
Eu suspirei, encostando minha cabeça na parede, mas, na verdade,
queria deitar meu rosto em seu peito largo, me aproximar o máximo possível
da sensação de segurança que ele transparecia. 
— Tive tanta sorte em encontrá-lo, Demeron. — Segurei sua mão e dei
um aperto, tentando sorrir em agradecimento. — Obrigada. 
Os olhos dele brilharam com as minhas palavras e esperei um sorriso
aparecer em seu rosto, mas ele só endureceu mais ainda. 
— Sim. Você teve muita sorte. 
— Lugar legal. — Ele disse assim que entrou na minha casa. 
Se Style pudesse me ver, me trancaria no quarto por uma semana. Levar
um estranho para dentro de casa seria considerado altamente proibido para o
meu irmão. 
Eu olhei em sua direção, vendo-o olhar em volta e me admirei de como
o grande homem parecia deslocado com suas botas pesadas e jeans dentro do
meu apartamento decorado pela maior designer da França, rodeado de obras
de artes que fui presenteada. 
— Obrigada. — Rindo de seu desconforto claro, apontei para o capuz e
as luvas. — Você pode tirar isso aqui dentro, você sabe. 
Ele baixou o capuz para trás, expondo os fios do cabelo dourado, mas
continuou com as luvas. 
Um silêncio estranho se construiu, e eu tirei o casaco, tentando deixá-lo
confortável. Eu não podia acreditar que estava sozinha com alguém que tinha
problemas mentais que poderiam sair do controle a qualquer momento.
Estava me colocando em risco por curiosidade. Porque aquele homem me
intrigou desde o primeiro momento, e isso não era algo que eu podia mudar. 
— Obrigada pelas flores. 
— Flores? — perguntou, franzindo o cenho. 
— Sim, Siriu as levou no meu ateliê. 
Cerrando a mandíbula, ele assentiu. 
— Claro, as flores. De nada. 
Indo para a estante das fotos, pegou um retrato da minha primeira
viagem fora da Tailândia, em Paris, no museu Rodin. Eu estava ajoelhada na
frente da escultura de Rodin, “O Beijo”, e olhava para o casal de pedra com
as mãos sob o queixo, uma expressão sonhadora no rosto. 
— Quantos anos você tinha nessa foto? 
— Tinha acabado de fazer quatorze. Eu estava infernizando meu irmão
há meses para me levar para conhecer o beijo mais famoso da história e de
alguma forma ele conseguiu fazer isso. 
Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso. 
— Você era muito jovem. 
— A maioria das adolescentes em algum momento sabem que estão
apaixonadas

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