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DANIELLE PISANJ DE FREITAS ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas, Ed. Nova Fronteira, 2006. ROSA Guimarães. Noites do Sertão: Buriti, Ed. Nova Fronteira, 2000. 84 , TRATAMENTO DE UMA NEUROSE DO TEDIO:, UM OLHAR DASEINSANALITIC01 MEDARD BOSS o paciente era um médico de trinta e dois anos, de uma família de classe média, solteiro e sem laços religiosos específicos. Em toda sua vida, até onde podia se lembrar, sentia-se perseguido por sentimentos de culpa severos e persistentes, que tinham feito de suaexistência uma sucessão de atas autodestrutívos e autopunitivos. Entre os vinte e cinco e os vinte e oito anos de idade, tinha seguido uma análise de quatrocentas e vinte horas de duração, conduzida pelo terapeuta nos moldes da teoria freudiana. Suas associações livres e sonhos levaram-no, no decorrer de sua primeira terapia, à firme convicção de que sofria de um fone complexo de Édipo e de castração. Frequentemente tinha sonhos eróticos com uma figura materna, várias vezes com sua mãe real. Estes sonhos eram seguidos por punições advindas de uma figura paterna onírica que visava à completa e violenta destruição de símbolos fálicos. Nem o paciente, nem o analista podiam negar que suas açôes autodestrutívas procu- ravam, na verdade, apaziguar seu sentimento de culpa e sua angústia de castração. Entre a multiplicidade de possíveis símbolos fálicos, a 1. Título original "Tratamento modificado daseinsanaliticamente de uma neurose moderna do tédio com comentários do paciente", retirado do livro Psychoanalysis and Daseinsanalysis, de Medard Boss. BasicBooks, Inc., Publishers. New York . 2"edição. 1963 85 MEDARDBOSS escolha recaía cada vez mais em torres de igrejas, principalmente as de estilo gótico. Certa vez, por exemplo, o sonhador se encontrava no andar térreo de uma torre gótica quando um velho, que tinha as feições inconfundíveis de seu antigo professor de anatomia, atacou a base da torre com um imenso instrumento cortante, parecido com uma faca, procurando assim demoli-la e soterrar o sonhador entre as ruínas. O instrumento parecia-se, embora em dimensões bem maio- res, com o bisturi de dissecação que ele havia utilizado no primeiro semestre de seu curso de medicina. Ainda que, através das cuidadosas observações do analista, o paciente tivesse aprendido a ver um símbolo fálico nestas torres de igreja sonhadas, e a reconhecer no professor de anatomia o disfarce simbólico de seu pai castrador, nada mudou durante os três anos de análise, seja na sombria monotonia de seus sonhos, seja no caráter estereotipado de sua vida cotidiana ou na morosidade crônica de seu estado psíquico. No entanto, estes sentimentos de culpa foram aliviados de alguma forma com a decisão de trocar de analista durante o quarto ano de análise. O paciente sentiu-se muito mais seguro com sua nova terapia porque não era mais obrigado a deitar-se em um divã, mas podia sentar-se em frente ao médico, envolto na atmosfera camarada da fumaça de um cigarro. O segundo analista, diferentemente de seu antecessor, via imagens propriamente religiosas nas igrejas sonhadas pelo paciente. Através de diálogos semanais, que duravam várias horas e nos quais o analista era quem mais participava (diferentemente do método freudiano), o paciente foi levado, através da evidência convincente de inumeráveis referências mitológicas e etnológicas, à convicção de que pensamentos e noções religiosas em geral correspondem a uma função psíquica primordial. Ele aprendeu que havia tanta "realidade psíquica" ligada a estas últimas quanto em suas fantasias sexuais. 86 TRATAMENTO DEUMA NEUROSE DO TÉDIO: UMOlHAR DASEINSANALITICO Avidamente agarrou-se ao conceito de que seus sonhos reli- giosos tinham origem, fundamentalmente, em estruturas arquetí- picas comuns à humanidade, isto é, no inconsciente coletivo de sua psique. Isto lhe restituiu a confiança de que seus pensamentos, que muitas vezes lhe pareciam estranhos e absurdos, não mais o isola- vam da companhia do resto da humanidade. Mas não demorou muito para que o estado do paciente estagnasse novamente. No fim do segundo ano desta psicoterapia, o analista lhe explicou que já havia ensinado a ele tudo o que estava em seu poder, e que pouco ganharia com o seu prosseguimento. Deveria, pois, daí em diante, confiar em seu próprio discernimento e deixar de olhar a si mesmo como doente ou anormal. O paciente fez o melhor que pôde. Procurou desenvolver um maior interesse por suas atividades médicas e, ao mesmo tempo, conseguiu através de tenacidade e consciência admiráveis se familiarizar meticulosa- mente com a-literatura psicológica. Entretanto, continuava insatis- feito consigo mesmo e com o mundo em geral, inexplicavelmente. Tentou desenvolver um hobby, na esperança de que trouxesse mais significado à sua vida. Dedicou-se a colecionar cristais. Estas peças preciosas, no entanto, apenas o induziam a limpar e polir incessan- temente suas superfícies. Em poucos meses a diversão desencadeou uma compulsão furiosa pela limpeza fanática. Suas roupas também tinham de estar cada vez mais imaculadas, sem que lhe pudesse fal- tar, em hipótese alguma, um lenço perfeitamente branco. Culpava-se por ser um esteta tão exagerado, mas sua autocen- sura não o ajudava - e nem àqueles que o cercavam, que tinham que suportar seu pedantismo. Sua busca por um terceiro psicoterapeuta após dois anos de intervalo se deu fundamentalmente devido à falta de orientação interior e a um vazio de sentimentos que o faziam enxergar tudo sob um olhar deformado e escarnecido. 87 MEDARDBOSS No início deste novo tratamento, logo informou o terapeuta de que era somente por falta de opção que, mais uma vez, consul- tava um psicoterapeuta. Sua experiência havia lhe mostrado que em psicologia as coisas aconteciam em um círculo vicioso. Com astúcia, provou ao colega analista de modo bem claro que, basicamente, não fazia a mínima diferença se algo espiritual - como sentimentos religiosos - fosse visto como mera sublimação de uma fixação libidi- nosa infantil ou se fosse pensado como algo originado numa função psíquica por um hipotético "arquétipo" no inconsciente coletivo. Pois, ao se postular um A dedutível de um B ou de um C ou de um X, já se adulterou este A como A em algo derivativo, nâo-autônomo. Onde haveria algo genuíno e real que fizesse com que valesse a pena viver? KIeist havia sido inteiramente consistente ao tirar sua própria vida quando, após ler a filosofia kantiana da inescrutabilidade das coisas em si mesmas, percebeu-se como habitante de um mundo de miragens irreais. O paciente assegurava que o mundo dos psicólo- gos modernos era muito mais espectral, pois nele revertia-se a um conceito de "realidades psíquicas" antes mesmo de se haver demons- trado a existência de uma única "psique". Neste momento crítico, o analisando foi aconselhado a deixar de lado a psicologia. Ele deveria deitar-se como tinha feito durante sua primeira análise e, sem qualquer reserva ou precaução, quer con- sigo, quer com o analista, dizer tudo o que lhe viesse à mente: fos- sem pensamentos, idéias, fantasias, sonhos, memórias, emoções ou sensações corporais, por mais dolorosas, vergonhosas aparentemente descabidas ou inúteis que pudessem parecer. O paciente ficou um tanto reticente diante do desafio de buscar um esclarecimento de si mesmo sem a psicologia; no entanto, estava disposto a abrir mão de futuras discussões científicas e assentiu sem questionamento. A primeira grande dificuldade de sua terceira psicoterapia apareceu cerca de seis meses após seu início. O analisando começou 88 TRATAMENTO DE UMA NEUROSE DO TÉDIO: UM OlHAR DASEINSANALfTICO a sonhar, quase todas as noites, com banheiros trancados, o que é sempre uma indicação confiável de que a pessoa tem algo a libe- rar de seu ser mais profundo, mas que ainda não consegue fazê-lo. Inicialmente, o paciente apenas aborrecia-se porque estes sonhos pareciam levá-lo diretamente a sua primeira análise freudiana, que tinha sidomuitas vezes caracterizada pelo mesmo tipo de expe- riência noturna. Ele estava também insatisfeito porque o antigo "nada a dizer" da parte do analista havia recomeçado. O terapeuta, de acordo com o sábio conselho de Freud, restringia-se a dirigir a atenção do paciente com uma ou duas frases para a resistência e o enclausuramento das portas dos banheiros em seus sonhos e, a par- tir disto, a questionar a inacessibilidade destes lugares sujos para o sonhador. O analista estava preparado para enfrentar uma resistên- cia turbulenta à terapia deste esteta meticuloso, deste colecionador de cristais hiper-limpos ao chacoalhar com suas questões a porta dos banheiros trancados. Mas ele talvez tenha superestimado a capaci- dade de seu paciente, cuja relação com a esfera fecal intrusiva e com toda corporeidade "inferior" tomou depressa uma forma severa- mente psícótica, uma vez que não mais podia evitar estes âmbitos de seu mundo através do ato compulsivo de colecionar e limpar cristais " "puros. Um sonho forneceu o anúncio da psicose. Novamente, o paciente encontrava-se frente a uma porta trancada de um banheiro. Desta vez, no entanto, sua necessidade de defecar era tão imperiosa que ele atirou-se com todas as suas forças sobre a porta e a arrom- bou. Mas, ao invés de entrar no banheiro como esperava, ele perce- beu que estava no meio de uma grande igreja diretamente em frente a pia batismal. Sobre esta pia, presa ao teto da igreja, estava sus- pensa uma corda grossa. Era a corda com a qual o sacristão tocava o imenso sino da torre. Desorientado, ele não teve escolha senão suspender-se na corda do sino, acima da pia batismal onde, ainda 89 dirk Highlight dirk Highlight MEDARDBOSS agarrando-se na corda, aliviou-se. Os movimentos de seu intestino não paravam; logo ele estava atolado até os joelhos em seus próprios excrementos. Tentando escapar desta crescente massa de excremen- tos, procurou com todas as suas forças subir pela corda do sino até a torre da igreja, mas seus pés estavam presos nas fezes. De alguma maneira, com toda essa movimentação frenética, a corda acabou por enroscar-se inextricavelmente em seu pescoço. Além disso, seus esforços desesperados para subir pela corda puseram em movimento o sino da torre. Mas o pior de tudo era que a cada soar do sino lá no alto a corda, inexplicavelmente, enroscava-se em volta do eixo do sino, criando uma tensão que o puxava para cima. Seus pés, no entanto, continuavam aprisionados em seus excrementos, de modo que a cada badalada do sino ele estava sendo rasgado em dois. Na agonia destas terríveis torturas corporais, ele desperta. Assim que acordou, o paciente ouviu "vozes" que o insulta- vam com diversos impropérios, chamando-o de "cagão". Pior, no entanto, que estas "alucinações auditivas" foram as "alucinações olfativas". A qualquer lugar que fosse sentia cheiro de esgoto e fezes. Ele mal conseguia comer. Nos dias seguintes estava enfurecido com seu analista por tê-lo deixado sentir toda a imundície de sua corpo- reidade, roubando-lhe assim sua dignidade humana. Em sua fúria quebrou dois grandes vasos da sala de consulta atirando um no chão e o outro contra a parede, por pouco não atingindo a cabeça do analista. Antes que o surto acabasse toda a sala estava encharcada de água e o carpete repleto de pétalas de flores e cacos de louça. Depois que sua raiva se esvaiu frente à calma imperturbável do analista, cor- reu para casa choramingando, se enfiou na cama, fechou os olhos e entrou num estado catatônico por dois dias. Psiquiatricamente, o quadro clínico sugeria mais um típico surto esquizofrênico do que uma crise histérica. Neste momento, mais que nunca o analista assistiu seu paciente. Permaneceu sentado ao seu lado o dia inteiro 90 TRATAMENTO DE UMA NEUROSE DO TÉDIO: UM OlHAR DASEINSANALfTICO e a maior parte da noite e alimentou-o através de sonda, e nada o demoveria de assumir inteiramente o cuidado de seu paciente, sozinho e com suas próprias mãos. Quarenta e oito horas depois, ao despertar de seu estupor, o paciente se atirou nos braços do tera- peuta como uma criança se agarra a sua mãe, chamando-o centenas de vezes "mamãe, mamãe, querida, querida'. Então, ele abriu os olhos como se despertasse de um sonho profundo. Pelo final do dia seguinte ele já havia se recomposto, mas ainda estava terrivelmente angustiado. Poucas semanas mais tarde, o terapeuta pôde retomar a técnica clássica da análise, com o paciente deitado. O paciente agra- deceu, antes de tudo, por tê-lo aceito com todas as suas necessidades terrenas, permitindo que verificasse, literalmente pela primeira vez em sua vida, que uma pessoa não precisa se envergonhar de sua cor- poreidade, não precisa negar sua existência e excluí-la de sua vista. No sonho inicial, imediatamente antes do irromper de sua confusão, o paciente sucumbiu completamente ao âmbito terreno, fecal. Este havia tomado a forma de seu aprisionamento na pia batismal e seu esforço desesperado para içar-se. Durante o subse- quente estado psicótico acordado, a totalidade de sua existência estava igualmente absorvida na sua relação com a esfera fecal. Ele estava ainda menos capaz de relacionar-se com esta esferacorno um si-mesmo livre e independente; sua relação com esgotos ganhou tal domínio que o deixou totalmente entregue ao âmbito fecal, seu ser inteiramente atolado na sujeira. Seu estado mostrava completa queda ou submissão ao âmbito fecal, pois ele somente ouvia, sentia e cheirava excrementos; ele não percebia nada além disso em tudo que encontrava e sofria "alucinações olfativas e auditivas". Estes "delírios" sensoriais não podem ser entendidos em sentido inverso, isto é, como derivados de um tipo de afeto interno ou de estímulos dentro de um órgão sensitivo, ou como localizados numa área do cérebro a partir da qual seriam projetados. Podem, no entanto, ser 91 dirk Highlight MEDARDBOSS compreendidos com base na condição da totalidade de sua existên- cia, do fato de ter sido completamente capturado no âmbito fecal. A única coisa necessária, então, seria dar ao paciente a possibilidade de voltar, por um curto período, a um tempo anterior ao enganoso ponto de virada de sua história de vida, de recolher-se no comporta- mento de uma criancinha. Esta era, de fato, a relação com o mundo que correspondia ao estado verdadeiro de sua existência. Era, por- tanto, aqui que ele poderia consolidar-se, com certa rapidez, em um genuíno si - mesmo, que poderia conseguir o que até agora ele não havia conseguido: a capacidade de caminhar independen- temente e de assumir responsavelmente todas as possibilidades de relacionamentos, inclusive a relação com os âmbitos fecal e terrenos do mundo humano. A partir de então, ele poderia conquistar um modo de relação mais aberto, mais livre e mais amoroso com âmbi- tos cada vez mais amplos. No entanto, algo permaneceu muito difícil para o paciente perdoar. Ele se perguntava, continuamente, que gênio maligno o havia permitido cometer a blasfêmia de, entre todos os lugares pos- síveis, levar suas fezes para dentro de uma igreja e na pia batísmal, Muito lhe ajudou aqui uma questão colocada pelo terapeuta: não será da própria essência humana que ele deva o tempo todo se reconciliar com sua condição essencial de estar entre céu e terra? Talvez tenha sido exatamente esta tensão que o conduziu à desor- dem em seu sonho e em seu subsequente surto psicótico na vida acordada, uma vez que ele nunca permitiu que o terreno-fecal ou o divino-celestial entrassem em seu mundo e nunca os aceitara em seus próprios direitos. Ele havia rejeitado ambos os elementos e interpôs uma distância irreconciliável entre eles e si mesmo. A segunda parte desta suposição do médico era contestada com grande vivacidade pelo paciente. Antes de tudo, no curso de sua segunda análise, dizia ele, havia adquirido uma abrangente compreensão 92 TRATAMENTO DEUMA NEUROSE DO TÉDIO: UM OlHAR DASEINSANAlfTICO da verdade psíquica deuma imagem arquetípica divina no incons- ciente coletivo da psique humana. O analista perguntou por que, então, quase todas as noites ele sonhava com o interior de igrejas? Como ele explicava a alternância curiosa e persistente destes sonhos com outros sonhos fecais e sonhos de sexualidade? As igrejas de seus sonhos por vezes eram escuras e, por vezes, luminosas, irradiando da cúpula uma luz azulada e não-terrena. Em um sonho recente, Jesus Cristo havia aparecido corporalmente e olhava-o em silêncio, cheio de expectativas. De outra feita, ele havia escutado a poderosa voz de Deus reverberando em uma imensa catedral como um oceano de sinos tocando e que disse: "Eu sou quem eu sou". Desde que ele havia se jogado nos braços do analista ao sair de seu estupor catatônico, ele não experienciou outras alucinações auditivas no estado de vigília. O paciente não podia negar que todas suas experiências oníricas eram intensas e arrasadoramente fortes e, às vezes, tão beatíficas que iluminavam toda sua vida vígil também. Finalmente teve de admitir que com todas as suas profundas idéias psicológicas ele estava, basicamente, desamparado para compreen- der suas experiências religiosas. Dessa maneira ele pôde amadurecer para entender porque não se atrevia a deixar que estas aparições divino-celestiais fossem as realidades imediatas assim como se apre- sentavam a ele. Por que ele constantemente precisava se defender do desafio que elas ofereciam através da transformação em abstraçôes psicológicas, tais como o hipotético arquétipo? Enquanto estava sendo ameaçado pelos sonhos fecais e em sua confusão psicótica o paciente, em nenhum momento, duvidou da imediata realidade da corporeidade. Após mais seis meses de análise - durante os quais, cada vez mais, o analista precisava apenas estar lá, sem nada dizer, aberto a ele - o paciente não mais precisava entender objetos e seres huma- nos como reflexos enigmáticos e fantasmáticos. Não mais precisava 93 dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight MEDARDBOSS entendê-los como meras realidades psíquicas impingidas a partir de algo inescrutável para dentro de sua consciência através de órgãos sensitivos - os quais servem como arquétipos ou outro tipo de len- tes refratoras, parte de um complexo sistema telescópico psíquico. Tampouco apareciam para ele como algo simplesmente presente (Vorhanden), inacessível à aproximação direta e investidas de sig- nificado somente à luz de imagens do mundo e projetos de mundo (Welt-entwürfe). Tornou-se capaz de acolher e levar a sério tudo o que lhe aparecesse, desde o mais terreno até o mais celestial, como as realidades intrínsecas imediatas que elas são, aparecendo à luz de seu Dasein. Deste modo, alcançou sua liberdade e sentiu-se pleno e completo. Por um bom período anterior a isto, no entanto, ele tinha sido constantemente atormentado por aquele sonho da torre da igreja gótica e de seu professor de anatomia que, durante sua pri- meira etapa analítica, só pode ser compreendido como uma repre- sentação simbólica disfarçada de seu pai castrador. Este sonho parou de atormentá-lo apenas quando o paciente ousou deixar a torre da igreja ser uma torre de igreja, e o homem ser o professor de anato- mia, permitindo que ambos se aproximassem dele em seus signifi- cados e conteúdos plenamente genuínos. O que lhe ocorreu é que uma torre de igreja gótica, por si mesma, é um poderoso gesto em direção ao céu. Como ele colocou, "a torre da igreja orienta o olhar dos homens por uma longa distância em seu entorno até a morada de Deus". Por muito tempo, na verdade desde que começara seus estu- dos de medicina, o paciente fechou sua mente ao apelo da torre da igreja. O professor de anatomia, objeto de sua admiração, através de sua erudição e cinismo, havia destruído a fé em Deus do paciente. Assim, uma possibilidade importante da vida, isto é, sua relação religiosa básica, foi sepultada e enterrada. Como já foi 94 TRATAMENTO DE UMA NEUROSE DO TÉDIO: UM OLHARDASEINSANALfTICO mostrado anteriormente, uma negação e o fechamento de alguém para qualquer possibilidade de comportamento impossibilita atingir seu verdadeiro si-mesmo em sua totalidade e, por isso, o homem fica inevitavelmente em débito com relação àquilo que lhe foi ori- ginalmente confiado. Todos os sentimentos de culpa são profunda- mente enraizados nesta dívida, independente das múltiplas facetas e disfarces nos quais ela possa aparecer. Esta dívida também jazia sob os sentimentos de culpa de nosso paciente. A causa originária e última de sua eclosão (da culpa) foi sua fuga tanto da totalidade de sua corporeidade quanto de sua religiosidade. Mas ele não havia simplesmente fugido de um encontro com um símbolo psicológico de natureza libidinosa ou arquetípica. Ele havia se fechado para a proximidade tanto do que é terreno como do que é divino em sua totalidade imediata. Cerca de onze anos se passaram desde o ameaçador episódio psícótíco pelo qual passou este paciente na sua última análise. Ele se casou e teve quatro filhos. Este casamento, de uma vivacidade incomum, trouxe grande enriquecimento humano para ambos os cônjuges. Em seu trabalho ele é considerado um homem com força de vontade e capacidade de trabalho excepcionais e irradia uma cor- dialidade calorosa e bom humor inabalável. Agradece por cada novo dia, uma vez que os menores gestos adquiriram um significado novo e muito mais rico. Há pouco tempo este homem, excepcionalmente inteligente e sensível, em uma carta a seu terceiro analista, procura explicar os motivos pelos quais suas duas primeiras tentativas de análise não tiveram êxito. O âmbito fecal já o ocupava terrivelmente na sua pri- meira análise e, com certeza, não se poderia dizer que o primeiro analista havia falhado em chamar a atenção do paciente para a anali- dade prevalente nos seus sonhos. 95 dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight MEDARDBOSS "Eu não me atrevi", ele escreve, "a penetrar com tranquilidade nesta esfera da sujeira sem reservas porque desde o início sentia que para meu analista não havia força sustentável na esfera espiritual e religiosa. Ele sempre tentava reduzir as minhas igrejas oníricas a sím- bolos genitais. Todo o domínio do sagrado, para ele, não era mais que uma espécie de produto de sublimação. Isto explica porque não apareceu, naquela situação psicanalítica, nenhuma corda firmemente atada ao teto, como no meu sonho da igreja e excremento, para que eu pudesse agarrar e ancorar-me na minha descida para a região ter- rena e fecal. O perigo de cair sem salvação na sujeira e no caos teria sido, então, muito maior. Tenho que admitir que só recentemente pude ver isto claramente; estou bastante convencido, no entanto, de que aí resideo verdadeiro motivo daquele primeiro fracasso". Minhas recordações do tempo que passei com meu segundo analista são como um repouso num jardim elegante de um arranha- -céu americano, enfeitado com lindos buquês de flores. Durante aqueles dois anos, jamais chegou a minha altura o menor aroma da terra coberta pelo asfalto da rua. Nenhum sonho fecal surgiu nesses dois anos, e nas conversas psicoterapêuticas estávamos a qui- lômetros do estado infantil a que retrocedi na fase de confusão que eu experienciei quando estava com você; de resto, somente depois deste estado pueril é que meu renascimento e amadurecimento posterior puderam ter início. Como tudo o que era terreno perma- necia selado, eu também não podia desenvolver-me genuinamente. Somente agora compreendo de modo mais completo o que vi na última parte da análise com você: que havia uma fina trama con- tínua entre meus temas fecais e sexuais e as experiências religiosas que me prendiam tão profundamente. Não diz Nietzsche em algum lugar: "quanto mais uma pessoa ascender para o céu,tanto mais profundamente ela precisa afundar suas raízes na terra, se não quiser ser levada pelo primeiro vento que vier"? 96 TRATAMENTO DEUMANEUROSE DO TÉDIO: UMOlHAR DASEINSANALfTICO Esta carta, tão reveladora da elevada importância das relações terapêuticas, deixa-nos ainda com a questão de como é possível que muitos pacientes tornem-se visivelmente melhores mesmo sendo conduzidos por seus analistas meramente a uma compreensão inte- lectual de símbolos de um tipo ou outro. Uma resposta possível no presente estado de nosso conhecimento é a de que, para certas pessoas, a imediata realidade dos fenômenos penetra de alguma maneira a blindagem da teorização psicológica.A possibilidade disto acontecer aumenta se o próprio analista em seu relacionamento com o paciente (de modo não deliberado, é claro) permanece aberto ao conteúdo indisfarçável das coisas como elas são. A recuperação será muito menos casual, entretanto, se a compreensão humana do analista, aprofundada e enriquecida daseinsanaliticamente, mostrar-se como uma mudança deliberada no próprio analista. A experiência de Freud nos ensinou que um pré-requisito da terapia psicanalítica é a "purificação" do terapeuta através de sua análise de treinamento. Se, através de anos de um esforço sincero para muito além do escopo das teorias psicológi- cas anteriores, o daseinsanalista chegar a vislumbrar a essência do homem como abertura-para-o-mundo, ele conseguirá cada vez mais extrair alegria da responsabilidade confiada a ele e a dignidade da existência emprestada a ele enquanto ser humano. Será assim, ao mesmo tempo, cada vez mais capaz de ajudar seus pacientes a, mais que aliviar seus sintomas, participar efetivamente da abertura e da liberdade humanas, cujas dimensões certamente ultrapassam de muito os conceitos de uma "psique", de uma "subjetividade" ou de uma "personalidade. Tradução: MARIA DEFÁTIMA DEALMEIDA PRADO Membro da Associação Brasileirade Daseinsanalyse - ABD fátima.prado@gmail.com 97 dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight dirk Highlight
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